Você está na página 1de 2

Pré-leitura: O texto que iremos ler chama-se “Cabeleira”.

Antes de iniciar a leitura,


formule hipóteses sobre o tema do texto.

CABELEIRA
Meu pai, ainda chorando, me disse vá e corte o cabelo. Tentei ficar com ele mais algum tempo,
embora continuasse repetindo vá e corte o cabelo. Mesmo de olho fechado ou arrumando as flores do
caixão ou trocando as velas gastas ou comendo pão com carne moída e tomando café frio ele só repetia
vá e corte o cabelo. Durante a noite toda eu ouvi esta ordem sem poder cumpri-la. Tive que esperar o dia
nascer para encontrar alguém que estivesse disposto a tosar meus cabelos loiros e encaracolados que
desciam até perto da cintura. O pai dizia que meu cabelo tinha o tamanho do sofrimento da mãe e que era
hora de cortá-lo bem curto. O mais curto possível. Acredito que ele queria que eu rapasse a cabeça, não
deixando nenhum vestígio desta obscena cabeleira, como dizia minha avó.
Eu também queria acabar com ela, pois todo mundo se divertia com meu aspecto. Os poucos
amigos me chamavam de maricas e isto fere muito a gente. Papai tinha consciência de que eu estava
sofrendo por algo que não era responsabilidade de ninguém e ficava triste.
Foi então que ele me disse, enxugando as lágrimas com as fraldas da camisa, vá e corte o cabelo
bem baixinho, meu filho. E eu esperei até amanhecer, porque não havia ninguém que pudesse cortá-lo.
Mas o pai não compreendia esta diferença entre dia e noite, só desejava que eu cortasse o cabelo e então
dizia, entre bravo e desanimado, vá e corte, e eu não podendo, por algum tempo, fazer aquilo que mais
desejávamos.
Quando mamãe ainda tinha forças, eu me sentava em sua cama e ela, recostada em almofadas,
me penteava. Nessas horas, era bom ter tão vasta cabeleira que necessitava de cuidados e carinhos. A
mãe, de certa maneira, se sentia culpada pela deformação de meus traços masculinos. Eu nunca tinha ido
à escola, mesmo já tendo doze anos, para não ser motivo de gracinhas. Uma prima mais velha me
ensinou a ler e escrever em casa. Mesmo assim, sempre havia alguém para importunar.
Foi então que o pai disse vá, menino, e corte essa porcaria que não resolveu nada. Enquanto o dia
não clareava, tive que ouvir a mesma ordem, como um disco que repete uma única faixa. Quando as
pessoas vinham lhe dar os pêsames ou perguntar sobre os preparativos para o enterro ou se informar
sobre a localização do banheiro ou pedir maiores detalhes sobre a morte ou exigir que se consolasse, o
pai apenas repetia, mesmo que eu não estivesse por perto, vá e corte, ou, esse cabelo é o sofrimento dela
e você não tem o direito de me fazer lembrar de tudo novamente, ou, vá, corte este emaranhado de dias e
dores.
O pai não entendia que para mim os cabelos longos tinham um duplo sentido — recordavam os
sofrimentos mas também o carinho de mamãe. Eu queria cortar, apesar de não sentir raiva deles —
apenas vergonha.
Foi então que o pai, com a boca cheia de pão, me disse vá e corte essa merda. Ao dizer estas
palavras, notei que estava com vontade de arrancar meus cabelos com as mãos. Saí de perto e fiquei
ouvindo a mesma frase até que o dia amanheceu e eu enfim pude cortar o cabelo.
Minha mãe só teve um filho e, quatro anos após meu nascimento, ficou muito doente, desenganada
pelos médicos. Tentaram de tudo e por fim recorreram à fé. Papai fez uma promessa a não sei que santo:
meu cabelo não seria cortado até que ela sarasse. Era uma maneira de sacrificar o filho, como nas
sagradas escrituras — me disseram.
Foi por isso que meu pai, quando mamãe morreu, oito anos depois da promessa, me disse vá e
corte o cabelo, agora não precisamos mais de seu sacrifício. O pai não sabia dizer outra coisa, somente a
mesma ordem que eu não podia obedecer, pois era noite, e ele, sem entender, ficava remoendo aquele
estribilho levemente alterado.
Não se importou comigo, não me fez nenhum carinho enquanto estive no velório. Acho que queria
se afastar de mim. Pra ele, eu era a assombração de mamãe. Por isso dizia vá e corte, tentando fazer com
que eu desaparecesse de sua frente.
Quando o sol nasceu e o comércio abriu, fui ao centro de Peabiru, passando sobre a imensa valeta
que cruza a avenida principal. Entrei no pequeno salão e me sentei na cadeira. O barbeiro trabalhou com
rapidez, enquanto eu olhava os cachos pelo chão. Resolvi pegar um e pôr no bolso (é aquele que guardo
na caixinha, dentro da gaveta da cômoda). O resto podia ser jogado fora.
Descobri, através do espelho, uma outra pessoa que se escondia sob minha cabeleira.
Na volta, vim caminhando de uma forma diferente e até cheguei a assobiar uma música da moda,
como se eu, transformado e desconhecido, não tivesse nada a ver com o que estava acontecendo.
Foi então que, me vendo de cabelo curto, meu pai me abraçou e me beijou, dizendo que bom que
você veio. E, sentados diante do caixão, ficamos olhando para mamãe, também ela sem seus lindos
cabelos, caídos depois do tratamento.
Miguel Sanches Neto

********
Fizemos a leitura de um conto. O conto é um texto de ficção, em geral curto, com poucos
personagens, envolvidos numa única ação, com clímax e desfecho. Façamos agora as atividades de
interpretação do conto “Cabeleira” de Miguel Sanches Neto.

Atividades de interpretação do conto


1) Por qual motivo o protagonista do conto mantinha os cabelos longos?
2) Por que o menino não frequentava a escola?
3) Por que o pai ordenou o corte dos cabelos?
4) Você acha que o pai agiu certo ao ordenar o corte? Por quê?
5) O menino afirma que a cabeleira para ele tinha um duplo sentido. Explique.
6) Explique a frase: “Descobri, através do espelho, uma outra pessoa que se escondia sob
minha cabeleira”.
7) Explique a diferença de atitude do pai para com o filho antes e depois do corte de cabelo.
8) Podemos inferir qual a doença que a mãe do rapaz tinha? Por quê?
9) O conto foi narrado em primeira pessoa. Retire um trecho que comprove essa afirmação.
10) Dê sua opinião sobre o conto “Cabeleira”.

Você também pode gostar