Resumo: Pretendo desenvolver nesse trabalho a concepção de Kant acerca da noção de conceito,
de acordo com a Lógica e a Crítica da Razão Pura, mostrando como é possível distinguir objetos
da experiência por meio de conceitos, ou seja, como são construídos os conceitos empíricos.
Segundo Longuenesse7, para Kant, ''todo juízo é síntese, quer dizer, ligação de
representações''; e o que esta ligação tem de específico, no que se refere à síntese sensível, é ''que ela
é ligação de conceitos'', i.e., ''ela tem por meio 'a unidade analítica da consciência' ''8. De acordo com
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Trabalho escrito em 1996.
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Doutorando em Filosofia, PUCRS.
2 Kant, I., Lógica, trad. de Guido Antônio de Almeida, E.T.B., RJ, 1992, p. 109.
3 Id., Crítica da Razão Pura, trad. de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger, S.P., Abril Cultural, 1980.
4 Ibid., B 93.
5 Id., loc.cit.
6 Id., Crítica da Razão Pura, B 102.
7 Longuenesse, B.,Kant et le Pouvoir de Juger Sensibilité et Discursivité dans l'analytique Transcendentale
de la Critique de la Raison Pure, Paris, P.U.F., 1993.
8 Ibid, pp. 91-3.
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Kant9, a síntese de representações só é possível mediante ''a consciência dessa síntese'', pois, é só
porque ''posso, numa consciência, ligar um múltiplo de representações dadas, [que] é possível que
eu mesmo me represente, nessas representações, a identidade da consciência, isto é, a unidade
analítica da apercepção só é possível pressupondo alguma unidade sintética qualquer'' 10. E a
''unidade analítica da consciência'' eleva a unidade sintética de uma representação comum a coisas
diferentes ao estatuto de um conceito comum (conceptus communis)11. Isto equivale a dizer que a
relação de ''ser comum a vários'', que é a propriedade fundamental do conceito, é para Kant, a
''unidade analítica da consciência''.
A lógica transcendental, por sua vez, recebe da estética transcendental, como matéria dos
conceitos puros do entendimento, um diverso da sensibilidade a priori. Sem este diverso dado como
matéria, a lógica transcendental seria destituída de conteúdo, e, portanto, vazia. Disso se segue o
seguinte: a lógica geral se ocupa dos conceitos, desconsiderando os objetos; a lógica transcendental,
ao contrário, se ocupa dos objetos, quanto à sua fonte12.
Na introdução à Lógica Transcendental, na Crítica da Razão Pura, lemos que o ''nosso
conhecimento surge de duas fontes principais da mente, cuja primeira é receber as representações (a
receptividade das impressões)'' —a sensibilidade— ''e a segunda a faculdade de conhecer um
17 Essa observação é feita por Smith, N.K. , in A Commentary to Kant's ''Critique of Pure Reason'', N.Y.,
1950, pp. 181-182.
18 Kant, I., Textos Pré-críticos, trad. de José de Andrade e Alberto Reis, Porto, Editora, 1983, p.101.
19 ''Antes de todos os juízos objetivos, comparamos os conceitos para chegar à identidade (de muitas
representações sob um conceito) com vista aos juízos universais, ou à diversidade de tais representações para
a proddução de juízos particulares; à concordância, da qual podem formar-se juízos afirmativos, e à
oposição, ada qual podem formar-se juízos negativos, etc. Por essa razão deveríiamos, como parece,
denominar conceitos comparativos (conceptus comparationis) os conceitos indicados.'' Critica da Razão
Pura, B 317-318.
20 Longuenesse, op.cit., p. 134.
21 Kant, Lógica, A 141/Ak 92.
22 Em Ak 58/A 85, lemos o seguinte: ''(o) conhecimento humano é, da parte do entendimento, discursivo;
quer dizer, ele tem lugar mediante representações que fazem daquilo que é comum a várias coisas o
fundamento do conhecimento, por conseguinte, mediante notas características enquanto tais. Nós só
reconhecemos [Erkennen], pois, as coisas mediante características (...). Uma nota característica é aquilo
que, numa coisa, constitui uma parte do conhecimento da mesma; ou ... uma representação parcial na
medida em que é considerada como uma razão de conhecimento da representação inteira. Por conseguinte,
todos os nossos conceitos são notas características e pensar nada mais é do que representar mediante notas
características.'' . Kant, Lógica.
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fundamento do conhecimento, por conseguinte, mediante notas características enquanto tais'' 23. Ora,
se ''os nossos conceitos são notas características'' e ''pensar é representar por meio de notas
características'', então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos 24. E um conceito é
gerado quanto à sua forma por meio dos três atos lógicos do entendimento: a comparação, a
reflexão e a abstração25.
Mas para que estabelecer a identidade, a diversidade, a concordância e a oposição, por meio
da comparação de conceitos antes de formar juízos objetivos? De acordo com Longuenesse, a
comparação que Kant tem em vista é ''aquela por meio da qual conceitos são formados pela
comparação de representações sensíveis'' 26. Esta comparação é aquela que permite que ''objetos
sensíveis sejam tornados representáveis e efetivamente representados por conceitos'' 27, uma vez que
todos os conceitos devem ter um uso empírico.
Conforme Longuenesse, a ''comparação de representações sensíveis que dá lugar á formação
de conceitos é orientada em direção da busca de caracteres comuns'' 28. Há um procedimento de
conversão de representações ou intuições em conceitos. A fim de produzir um conceito, conforme
Longuenesse, as três operações do entendimento trabalham de forma conjunta. Mas é somente
porque está vinculada às outras duas que a comparação se encaminha ao geral, i.e., ao conceito. De
acordo com Longuenesse, comparar ''representações em vista da formação de conceitos, é portanto
comparar esquemas; e comparar esquemas, graças aos três atos conjuntos da comparação
propriamente dita, da reflexão e da abstração, é acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão
mesma de suas identidades e diferenças''29.
Como vimos, o objetivo da lógica geral, de acordo com Kant, é o de saber como o
entendimento pode referir-se a objetos em geral, ou seja, saber como ''representações dadas se
tornam conceitos no pensamento''30. Por esta razão, ela abstrai ''de todo conteúdo do conhecimento,
isto é, de toda referência do mesmo ao objeto, e só considera a forma lógica na relação dos
conhecimentos entre si, isto é, a forma do pensamento em geral'' 31. Desse modo, não pode se ocupar
da matéria do conhecimento, mas apenas da sua forma, partindo apenas do fato de que
representações são dadas e são transformadas em conceitos.
Para Kant, conceitos são notas características obtidas mediante síntese de diversas
representações. É por intermédio da síntese que converto uma nota característica de um objeto dado
em conceito. Essas notas, por sua vez, podem ser analíticas ou sintéticas; as primeiras são os
conceitos da razão, as segundas, os conceitos da experiência.
32 De acordo com a Lógica, o conceito é ''uma representação universal ou uma representação daquilo que é
comum a diversos objetos, logo uma representação na medida em que pode estar contida em diferentes
objetos''. No conceito, é necessário distinguir uma matéria e uma forma. ''A matéria dos conceitos é o objeto;
sua forma, a universalidade.''. Id., Lógica, A 139/Ak 91 - A 140/Ak 91.
33 ''Todos os conceitos dados empiricamente ou a posteriori se denominam conceitos da experiência...''. Ibid.,
A 143/ Ak 93.
34 Id., Crítica da Razão Pura, B 755.
35 ''Todas as definições são analíticas ou sintéticas. As primeiras são definições de um conceito dado; as
últimas de um conceito factício.''. Id., Lógica, A 217/Ak 141.
36 Ibid., A 218/Ak 141.
37 Id., loc.cit.
38 ''À síntese compete tornar distintos os objetos; à análise, tornar distintos os conceitos. Aqui o todo precede
as partes, lá as partes precedem o todo. O filósofo apenas torna distintos conceitos dados. Às vezes a gente
procede sinteticamente, mesmo que o conceito, que se quer tornar distinto dessa maneira, já esteja dado. Isso
ocorre com freqüência com proposições da experiência, na medida em que não se esteja satisfeito com as
características já pensadas em um conceito dado.''. Ibid., A 95-96/Ak 64.
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Na Lógica39, encontramos a maneira pela qual podemos tornar distintos o conteúdo de um
conceito e a sua extensão ou esfera. Na verdade, tornar distinto o conteúdo de um conceito é
distinguir o que está contido no conceito, aquilo que o conceito contém em si —as suas notas
características—; tornar distinta a extensão de um conceito é distinguir o que está contido sob ele —
os objetos aos quais ele se aplica. A distinção do conteúdo de um conceito se faz: (i) mediante a
exposição, que é a explicitação exaustiva, uma a uma, de suas notas características; e (ii) mediante a
definição, que consiste na apresentação originária do ''conceito minucioso de uma coisa'' 40 dentro de
seus limites. Em outros termos, a definição de um conceito consiste na determinação pormenorizada
de todas as suas notas características.
Ora, considerando que um conceito empírico tem por matéria a síntese de um múltiplo de
representações dadas pela experiência sensível, essa exigência, de acordo com o texto da Lógica,
jamais pode ser satisfeita 41, pois é sempre possível que se encontre na experiência características a
mais do conceito que não tinham sido antes vistas. Para Kant, somente os conceitos arbitrários
podem ser definidos, pois o seu objeto não é dado nem a posteriori, pela experíência sensível, nem a
priori, pela natureza do entendimento, mas é inteiramente construído pelo pensamento, e é por essa
razão que a síntese, na definição do conceito arbitrário, é possível, uma vez que eu ''tenho que saber
o que eu quis pensar''42 com ele, pois eu próprio o formei. Ou seja, ele pode ser totalmente
delimitado, na apresentação de suas notas características, tal como exige a definição.
A distinção da extensão ou esfera de um conceito, por sua vez, se faz mediante a divisão
lógica deste, que consiste na determinação de um conceito com relação a todos os ''objetos possíveis
contidos sob ele, enquanto se opõem, i.e., diferem um do outro'' 43. Dividir logicamente um conceito
consiste portanto em considerar o que está contido sob este conceito —sua extensão—, e não o que
está contido nele — seu conteúdo.
Consideremos, por fim, aqui o caso dos conceitos empíricos. A fim de ilustrar a nossa
interpretação, tomemos um conceito empírico, e.g., o de cão: 'cão é um animal quadrúpede latidor'.
Dado o conceito empírico de cão: (i) Como torno este conceito logicamente distinto? e (ii) Como,
por meio deste conceito, torno o objeto distinto?
(i) Torno o conceito acima logicamente distinto, desmembrando-o em suas partes
constituintes e elucidando-as uma a uma; ou seja, parto do conceito dado —do todo—, e analiso
uma a uma as notas características que o compõem —as partes. Para tanto, dentro do nosso
exemplo, devo apresentar o conceito de animal e o de quadrúpede, etc. Com isso, de acordo com
Kant, ao analisar os conceitos que compõem o conceito —tornando-os claros e distintos, e, assim
fazendo, tornando distinto o conceito em questão, pois torno mais clara a sua forma mediante a
explicitação de suas partes— eu não aumento o meu conhecimento quanto ao conteúdo do conceito,
pois este continua o mesmo, o que modifico é a sua forma, uma vez que, por meio da análise, ''eu
aprendo apenas a melhor distinguir ou a conhecer com mais clara consciência aquilo que já estava
no conceito dado''44.
39 ''A consciência distinta do conteúdo dos conceitos é promovida pela exposição e definição dos mesmos; a
consciência distinta da sua extensão, ao contrário pela divisão lógica dos mesmos.''. Ibid., Ak 140/A 218.
40 Id., Crítica da Razão Pura, B 755.
41 ''Visto que a síntese dos conceitos empíricos não é arbitrária, mas empírica e, enquanto tal, jamais pode ser
completa (porque se podem sempre descobrir na experiência outras características mais do conceito), os
conceitos empíricos também não podem ser definidos.''. Id., Lógica, A 219/Ak 141-142.
42 Id., Crítica da Razão Pura, B 757.
43 Id., Lógica, Ak 146/A 225.
44 Ibid., A 95/Ak 64.
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(ii) De acordo com Kant, eu formo um conceito empírico, a partir de representações dadas,
por intermédio dos três atos lógicos do entendimento, a saber: a comparação, a reflexão e a
abstração. Portanto, primeiro comparo as representações entre si; depois, reflito sobre o que há de
comum entre estas diferentes representações; e, por último, abstraio daquilo em que elas se
diferenciam, para somente então ficar com o que há de essencialmente comum a todas elas. Esta
representação, ou conjunto de representações comuns, das diversas representações dadas, é o meu
conceito comum a estas representações. Neste caso, eu vou das partes —as notas características
comuns a várias representações— ao todo —a síntese destas notas comuns num conceito dado.
Portanto, torno distinto o objeto com o conceito na medida em que eu formo este conceito. Ou
melhor, no caso do conceito empírico de cão, utilizado aqui como exemplo, quando formo este
conceito, torno distinto o objeto cão —e todos aqueles aos quais o conceito se aplica enquanto
membros desta classe por ele designada. Posso dizer que, antes de formar o conceito de cão, não
podia distinguir esta representação das demais representações, e.g., da de cavalo, lobo, gato, etc.
A tarefa do filósofo, ocupado apenas com a forma lógica do conhecimento em geral, é aquela
descrita em (i), ou seja, ''tornar distintos conceitos dados''. É este ''procedimento analitico para
produzir distinção, o único do qual a Lógica pode se ocupar, é a primeira e mais importante
exigência quando se trata de tornar nosso conhecimento distinto'' 45. À medida, porém, em que um
conceito empírico dado é insuficiente para determinar um objeto da experiência, podemos
acrescentar, sinteticamente, uma característica nova às demais. No caso do conceito empírico de
cão, se não tivéssemos a característica diferenciadora 'latidor', por exemplo, poderíamos nos
encontrar, no domínio da experiência, embaraçados frente à necessidade de diferenciar entre este e
um cavalo, uma vez que 'animal quadrúpede' serviria para identificar tanto um quanto outro. Com o
conceito 'animal quadrúpede' eu poderia, sim, diferenciar cavalos, gatos e cães de homens, por
exemplo, mas não aqueles entre si.
45 Id., loc.cit.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: