Aqui, entretanto, uma dúvida pode surgir: chegar a uma conclusão teórica,
uma conclusão sobre como as coisas são, é realmente algo que cabe a nós decidir?
Sobre esse ponto, posições extremamente opostas foram sustentadas; podemos
tomar Descartes e Shelley* como típicos defensores dessas posições. Descar-
tes parece ter considerado que crer em algo era simplesmente uma questão de
escolha: ao menos por um período de tempo e em um momento de tranquilida-
de, você pode deixar de acreditar em algo que agora acredita. Algumas pessoas
parecem ter sustentado possuir o poder de adotar crenças a qualquer momento,
como a Rainha Branca** que (reconhecidamente com prática) podia crer em pelo
menos seis coisas impossíveis antes do café da manhã. As palavras da Rainha são,
provavelmente, uma alusão a um personagem de Oxford, W. G. (“Ideal”) Ward,
outrora Fellow do Balliol; ele era um truculento ultramontano*** em religião, e
conta-se que expressou o desejo de que um infalível documento papal pudesse
chegar até ele, todas as manhãs, antes do café da manhã, para que acreditasse no
The Times. Em nossos dias, um oficial da cúria romana parece ter igualmente ale-
gado que, se o Papa aparecesse com um novo decreto aprovando a contracepção
artificial, ele mesmo passaria de sua certeza atual de que esta prática é errada para
uma igual certeza de que ela não é errada.
Esse tipo de comando sobre nossas próprias crenças é algo que poucos de
nós podem reivindicar. Shelley sustentaria que é algo que ninguém pode verda-
deiramente reivindicar. De acordo com Shelley, quando estamos considerando
se algo é verdadeiro, é uma mera questão de sentimento espontâneo se assen-
timos ou dissentimos ou se suspendemos o juízo; sentimentos não podem ser
comandados, tampouco crenças. Isso aparece em The Necessity of Atheism – um
interessante ensaio, que lastimo ser demasiadamente inacessível para ser usado
como texto no trabalho diário de departamentos de filosofia. A compreensão de
Shelley das causas da crença humana veio a mostrar-se muito falha; ele esperava
que seu ensaio fizesse com que os professores de Oxford deixassem de acreditar
na existência de Deus, mas, em vez disso, ele foi simplesmente mandado embora.
A verdade parece estar entre esses dois extremos. Crenças não podem ser
“ligadas” ou “desligadas” de acordo com a nossa vontade, mas elas estão, até certo
ponto, sob nosso controle. Nós podemos formar hábitos de pensamento que mo-
dificarão nossas crenças para o bem ou para o mal, e a formação de tais hábitos
é certamente voluntária. É ainda mais claro que podemos nos apegar voluntaria-
*
N. de T.: Percy Bysshe Shelley (1792-1822), um dos mais importantes poetas românticos ingleses.
**
N. de T.: Personagem de Alice no País dos Espelhos de Lewis Carroll (1832-1898).
***
N. de T.: O ultramontanismo é a doutrina que defende a tese da infalibilidade do papa.
*
N. de T.: Thomas Hardy (1840-1928), romancista e poeta inglês do movimento naturalista.
**
N. de T.: Kwame Nkrumah (1909-1972), presidente de Gana entre 1960 e 1966, autor de vários
livros, entre eles Consciencism.
que se acredita fosse certo ou ao menos provável, algumas vezes produz, de fato,
uma crença; nem todo raciocínio é uma racionalização. Alguns pensadores sus-
tentaram, ou pelo menos foram acusados de ter sustentado, que todo ato de dar
razões para nossas crenças é uma racionalização: as razões apresentadas nunca
determinaram o surgimento da crença, mas foram criadas após o seu surgimento.
Se alguém defende essa opinião, é tolice de sua parte alegar quaisquer razões ou
evidências para ela, pois, se essa pessoa estiver certa, então a concordância ou
discordância de outras pessoas em relação ao seu ponto de vista se dará indepen-
dentemente de considerarem quaisquer razões por ela alegadas. Este livro está
escrito na convicção contrária de que a consideração das razões para se crer em
algo em certas ocasiões resulta na crença apropriada; se alguém não compartilha
dessa convicção, esse alguém dificilmente pode exigir razões para adotá-la.
N. de T.: Clive Staples Lewis (1898-1963), escritor irlandês, autor da famosa série de livros infantis
*
As Crônicas de Nárnia.
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