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O Trabalho Como Categoria Fundante Do Ser Social:

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January 2, 2018

Imagem: A Guerra do Fogo (filme, 1981).

“Já fizemos notar que a sociedade está, necessariamente, conectada à natureza — não só
não pode existir sem ela como, ainda, os seus membros (isto é, os homens) somente
existem enquanto dispõem de uma estrutura natural viva, o seu corpo com as suas
funções biológicas. No mesmo compasso, salientamos que a sociedade não se identifica
com a natureza e não pode ser explicada por ela. Ou seja: estamos argumentando que a
sociedade constitui um tipo de ser específico, uma esfera ontológica peculiar, radicalmente
distinta do ser natural, a que cabe a designação de ser social. Detenhamo-nos, agora, na
questão da gênese do ser social. A questão da gênese do ser social possuiu duas
dimensões teóricas rigorosamente articuladas, uma, ontológica e, a outra, estritamente
científica.

O aspecto ontológico é sumariado pela questão: o que distingue o ser social da natureza e,
portanto, qual o conteúdo substancial do salto para além da natureza que constituiu a
gênese do mundo dos homens? Este é um aspecto que apenas pode ser resolvido
ontologicamente pois diz respeito à distinção essencial dos homens para com a natureza.
Nesse sentido, a resposta precisa a esta questão — os homens se distinguem da natureza
por consubstanciarem uma terceira esfera ontológica cuja essência (como veremos logo a
seguir) é uma causalidade não mais apenas dada, como no mundo natural, mas posta por
atos humanos — pode e deve ser dada pela ontologia.

Todavia, esta resposta ontológica está longe de ser suficiente para elucidar as formas
historicamente concretas do salto ontológico do homem para além da natureza. A busca
pelas mediações históricas concretas — como se deu o salto, qual a primeira sociedade
humana, onde e quando ela surgiu — é uma tarefa que cabe à antropologia e à
arqueologia. A ontologia não pode nem deve substituir a ciência; deduzir ontologicamente
o processo histórico é um enorme equívoco[1]. Todavia, o simétrico também é verdadeiro:
não podemos querer resolver as questões ontológicas a partir de estudos científicos, ao
fim e ao cabo porque estes nem sempre são resolutivos das questões ontológicas as
quais, sempre, versam sobre as categorias as mais universais.

Feito este esclarecimento preliminar acerca da relação entre ontologia e ciência, voltemos
à nossa questão: a gênese do ser social.

O surgimento da vida foi produto de um longo caminho evolutivo da matéria inorgânica ao


cabo do qual emergiu um novo tipo de ser, dotado da capacidade de se reproduzir, o ser
vivo, orgânico. Este surgimento configurou um salto ontológico uma vez que a passagem
do inorgânico ao orgânico fez aparecer na natureza, que até então era composta apenas
por processos químicos e físicos, algo absolutamente novo, a reprodução biológica.

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Todos os processos inorgânicos são um mero transformar-se em outro. Um átomo (ou
uma molécula) se combina quimicamente com outro átomo (ou molécula) para produzir
uma terceira substância. Ou, se for um processo físico, uma dada forma de energia cede
lugar a uma outra (a liberação de calor pelo fogo, a conversão de eletricidade em luz, etc.).
Todo processo inorgânico tem esta característica decisiva, a de tornar-se outro processo
inorgânico.

Com o aparecimento da vida pela primeira vez temos um complexo que só pode existir se
for capaz de reproduzir a si mesmo (goiabeira dá goiabas que geram goiabeiras, etc.).
Diferente da natureza, o ser vivo só é ser vivo se for capaz de reproduzir a si mesmo. Os
seres vivos compõem um novo tipo de ser (uma nova esfera ontológica), cujas
características não podem ser deduzidas das propriedades da matéria inorgânica.

Ainda que seja muito inicial o nosso conhecimento de como, por quais mediações, por
quais etapas e processos se efetivou o salto ontológico do inorgânico à vida, temos a
certeza de que as formas elementares deste ser vivo já exibiam as características
decisivas das formas de vida mais desenvolvidas que hoje conhecemos. Em primeiro
lugar, elas apenas podiam se reproduzir em contínua interação com a natureza, da qual
retiravam os imprescindíveis alimentos e energia. Apoderar-se da natureza sob a forma de
alimentos e energia já era, mesmo nos estágios mais primitivos, uma característica dos
organismos vivos. Mas não apenas isto. À medida que vão se alimentando e eliminado
seus dejetos, vão também transformando o ambiente em que vivem, influenciando assim
as suas condições de reprodução no futuro, bem como interferindo na a reprodução dos
outros seres vivos. Em poucas palavras, até mesmo na vida a mais primitiva já existiam
pelo menos três características básicas das formas orgânicas mais desenvolvidas:
reprodução biológica, interação com a natureza, interação dos organismos vivos entre si.
Destas interações, mediante processos evolutivos complicados e muitíssimo longos em
termos temporais, as formas de vida diferenciaram-se enormemente e se desenvolveram a
ponto de constituir organismos animais bastante complexos, superiores na escala natural
— os primatas. As indicações científicas permitem afirmar que foi dos primatas, através de
outro salto ontológico, que surgiu o ser humano.

Trata-se, mesmo, de um salto: o surgimento da espécie humana não configura uma


necessidade da evolução biológica nem o desdobramento de uma programação genética
— é uma autêntica ruptura nos mecanismos e regularidades naturais. O surgimento da
vida trouxe à existência uma nova categoria, a reprodução biológica; de modo análogo, a
gênese do ser social corresponde ao aparecimento de uma categoria radicalmente nova,
que não pode ser derivada da natureza: a reprodução social. Com o ser humano
desenvolve-se um novo tipo de ser, uma nova materialidade, até então inexistente, e cujas
peculiaridades não se devem à herança biológica nem à programação genética — um tipo
de ser radicalmente inédito, o ser social.

Na base deste salto está o trabalho, uma forma de interação com a natureza
completamente distinta da reprodução biológica. Nesta, a apropriação da natureza sob a
forma de alimentos e energia é feita segundo determinações dadas pelo código genético e,
como ocorre entre os animais superiores (chipanzés ou cachorros domésticos, por
exemplo), quando surgem algumas formas de consciência, elas são apenas germinais,
sempre a serviço e submetidas às determinações biológicas. É por isso que os animais
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não necessitam da linguagem, bastando os sinais para a sua reprodução. Ao contrário da
reprodução biológica, a reprodução social é um processo fundado pelo trabalho, um tipo de
atividade na qual o indivíduo humano primeiro elabora na consciência (como idéia, como
ideação) para depois transformar a natureza naquilo que necessita. Tal interação com a
natureza é sempre, como veremos, mediada pela consciência e pelas relações sociais;
estas comparecem no mundo dos homens com funções que possibilitam um tipo de
transformação da matéria natural completamente diferente daquela operada pelos animais
e plantas. É este novo tipo de transformação da natureza que, para Marx (e Lukács), funda
a diferenciação do homem com a natureza, funda a evolução humana. É por este modo de
transformação do mundo natural que o ser humano, ao transforma a natureza, transforma
também a sua “própria natureza” social.

O trabalho é pois, a categoria fundante do mundo dos homens porque, em primeiro lugar,
atende à necessidade primeira de toda sociabilidade: a produção dos meios de produção e
de subsistência sem os quais nenhuma vida social poderia existir. Em segundo lugar,
porque o faz de tal modo que já apresenta, desde o seu primeiro momento, aquela que
será a determinação ontológica decisiva do ser social, qual seja, a de que, ao transformar
o mundo natural, os seres humanos também transformam a sua própria natureza, o que
resulta na criação incessante de novas possibilidades e necessidades históricas, tanto
sociais como individuais, tanto objetivas quanto subjetivas”.

[1] Lembremos apenas um, talvez o mais conhecido: Galileu tentando convencer o tribunal
da Inquisição de que os dados empíricos das suas observações astronômicas deveriam
ser considerados como mais verdadeiros que as teses escolásticas deduzidas da Bíblia.
Há um belo texto de Brecht que, se não é um retrato histórico fiel do ocorrido, possibilita
que vários dos elementos ideológicos do interrogatório do cientista renascentista sejam
tratados de modo didático: Galileu Galilei. (Brecht, 1999). Um estudo mais atualizado é o
de Ridondi, 1991.

LESSA, Sergio. Trabalho e Proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo:


Cortez Editora, 2007, p. 139-142.

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