Você está na página 1de 114

COLÓQUIOS

VIo Colóquio de História e


Historiografia no Vale do Iguaçu

ANAIS
2011
A Revista Colóquios é uma publicação anual do Colegiado de História
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União de Vitória
(FAFIUV), contendo os resultados do evento Colóquio Nacional de
História e Historiografia no Vale do Iguaçu

Ficha Catalográfica

Colóquios, vol. 1, No 1, Maio de 2011. Anais do


6º Colóquio Nacional de História e
Historiografia no Vale do Iguaçu.
União da Vitória: Colegiado de História

Anual
ISSN 1982-7415
1.História 2. Historiografia 3. Ciências
Humanas

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

Direitos reservados.
Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.

4
COLÓQUIOS
Revista do Colegiado de História da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV)
Volume 1, No 1, Maio de 2011

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória


(FAFIUV)
Diretor: Valderlei Garcias Sanchez
Vice-Diretora: Leni Trentim Gaspari

Colegiado de História
Coordenador: André Bueno
Vice-Coordenadora: Dulceli T. Estacheski
Aldanila E. Siquinelli
Eloy Tonon
Everton Crema
Ilton C. Martins
Jefferson W. Gohl
Leni T. Gaspari
Michel Kobelinski

EXPEDIENTE

Organização do Volume
André Bueno; Dulceli T. Estacheski; Aldanila E. Siquinelli; Eloy Tonon; Everton
Crema; Ilton C. Martins; Jefferson W. Gohl; Leni T. Gaspari; Michel Kobelinski

Diagramação e Arte
André Bueno e Fernando Gohl

5
6
UMA APRESENTAÇÃO
Sem delongas, mas 2011 nos marca uma virada: a FAFIUV torna-
se universidade, o curso de História colhe resultados cada vez
mais significativos, a Pós Graduação gratuita de História é um
sucesso consistente, abrindo portas para um Mestrado Strictu-
sensu, e a revista Colóquios aprofunda seu perfil de vinculadora
de pesquisas.

Em 2011, o tema do Colóquio foi História e Gênero; as


comunicações seguiram nesse sentido, e tivemos um grande
afluxo de textos vindos dos professores, da Pós e dos visitantes.
Escolhas são necessárias, por conta do formato, recursos e da
disponibilidade de espaço; a qualidade, no entanto, foi nosso
maior desafio, por sua presença marcante que tornou
indispensável – e porém, prazeroso – o processo de definição dos
textos desse volume.

No mais, as apresentações (a meu ver) são sempre formas polidas


de louvar sucessos; digno-me, pois, de dizer que gasto palavras
em informar o óbvio: nossa revista está cada vez melhor, e isso
nos dá muito orgulho. É nosso desejo apenas compartilhá-lo com
você, leitor e estudante.

André Bueno
Coordenador do Curso de História
FAFIUV 2010-2011

“E digo a todos que, o que faço agora, já foi feito e dito pelos que
vieram antes; e que ao repeti-los, só o faço para que aqueles que
vêm agora não se esqueçam de como deve ser feito”
Sabedoria Chinesa

7
8
PRESENÇA
FEMININA NO
ESPAÇO PÚBLICO:
MULHERES
FERROVIÁRIAS
NAS “GÊMEAS DO
IGUAÇU”1
Leni Trentim Gaspari2
(FAFIUV/UEPR)

A chegada dos trilhos e trens

Com a chegada dos trilhos na Vila de


União da Vitória, em 1905, e a inauguração da Ponte
Ferroviária sobre o Rio Iguaçu, em 1906, permitindo
a passagem dos trens, inaugurou-se um novo
momento histórico na vida da população ribeirinha.
Um novo imaginário surge com a presença
da locomotiva, cortando e aproximando espaços e
pessoas, como uma “fonte de encantamento”, porque
reforçou a dimensão de possíveis realizações
mágicas, impensáveis até então, despertando para a
possibilidade de se pensar no rompimento de certos
limites. Olhar a máquina que anda, “monumento
móvel”, constituiu-se certamente num espetáculo
repleto de imagens que surpreenderam a todos os
homens e mulheres da época, na pequena vila de
União da Vitória, no início do século XX.
Ampliaram-se o número de trens que
passavam pelas cidades de União da Vitória e Porto
União, alterando todo o modo de viver da
população. Pode-se imaginar que a passagem dos
trens tenha ocasionado um impacto social e mental
na comunidade, considerando que os trens eram um
elemento novo e perturbador aos moradores

1
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior sobre a
passagem dos trens nas cidades de União da Vitória e
Porto União.
2
Professora do Colegiado de História da FAFIUV e
pesquisadora sobre História Local. Membro da Academia
de Letras do Vale do Iguaçu.
9
familiarizados com canoas, balsas e barcos a vapor, da mulher na vida pública era vista como
no rio, e, em terra, com carroças, charretes e incompatível a sua condição feminina, de ser esposa
diligências. e mãe, feita para o casamento e maternidade, além
Esse fato ocasionou inúmeras disso, considerada um ser frágil.
transformações na estrutura social e econômica das Segnini (1982, p. 59) informa que, em
cidades, com a movimentação que surge pelo 1919, irrompeu em São Paulo um movimento
transporte de mercadorias e deslocamento de grevista dos ferroviários e, entre as reivindicações,
passageiros, tendo em vista a ligação do sul com o constava “proibição de trabalho dos menores de 14
centro do país. Ao lado das transformações anos, como também do trabalho noturno das
econômicas, outros aspectos da vida social e cultural mulheres”. Esse mesmo documento reivindicava a
começaram a ser alterados. Ampliaram-se as “equiparação do salário das mulheres ao dos
oportunidades de trabalho, nos diversos setores homens”, numa atitude em busca da igualdade. Na
como na rede hoteleira, nas lojas, lanchonetes e época, o movimento feminista em São Paulo
restaurantes e, também, pela necessidade de mão-de- buscava canalizar as energias femininas, com vistas
obra para o serviço ferroviário, surgindo uma nova à melhor participação da mulher na sociedade,
classe social na cidade: os ferroviários. assim, é possível que isso tenha influenciado na
Para Gorgozinho (2008, p. 32), a ferrovia redação do documento.
representou para milhares de trabalhadores a
primeira oportunidade real de profissionalização e Mulheres e ferrovia nas “Gêmeas do Iguaçu”
de “ascensão social”. Ser ferroviário era motivo de
orgulho pelo respeito, status e importância social A instalação da ferrovia proporcionou às
que passou a ter na comunidade. A relação mulheres possibilidades de inserção na esfera
assalariada de trabalho na ferrovia, significou, pública, de um lado como visualizadora e partícipe
portanto, uma possibilidade de avanço em termos de um novo momento e de um novo local de “ver e
empregatícios” afirma o autor. Esclarece ainda que ser vista” na praça e na estação e, de outro como ser
para entrar na rede muitos jovens eram admitidos atuante, competente e comprometida, construindo
sem remuneração, por determinado tempo, na uma identidade feminina no âmbito da ferrovia,
condição de aprendiz de mecânico, limpador de como ferroviária.
máquinas, aprendiz de torneiro mecânico ou em Procurando dar visibilidade às mulheres
tarefas subalternas, como as de trabalhador de linha, ferroviárias, dos anos 40, das cidades de Porto União
servente de pedreiro, lenheiro, trabalhador de e União da Vitória, fui ao encontro de algumas
baldeação, praticante geral, entre outros delas, ouvir suas experiências e suas percepções
Vale ressaltar que embora o número sobre a mulher no espaço da ferrovia e sobre o
expressivo de contratos fosse masculino mostrando preconceito masculino. Foi possível constatar pela
que a ferrovia era um “mundo dos homens”, as narrativa das entrevistadas que na década de 40 nas
mulheres também vão aos poucos se tornando cidades gêmeas a reação masculina em relação a
visíveis, ocupando espaços expondo-se a ocupação das mulheres em funções na rede
competitividade do mercado de trabalho e ferroviária, foi semelhante a descrita pela Revista
estabelecendo relações de sociabilidade com o sexo Correio dos Ferroviários, mencionada anteriormente.
oposto no universo dos trens e trilhos. No relato de Elza Bachinski Weigsding
Possas (2001) mostra em sua pesquisa (2007)3:
sobre as mulheres ferroviárias, que, em São Paulo, o
primeiro grupo de mulheres admitidas no serviço ___ Ah! Nossos colegas de escritório
ferroviário aconteceu em 1918, e foram designadas a não viam com bons olhos nossas
ocupar diversas secções departamentais. Exerceram atividades ferroviárias! Achavam que
funções nas áreas de telegrafia, telefonia, nós deveríamos estar em casa lavando
contabilidade, à escrita, transcrição de faturas e roupas, cozinhando para nossos
manifestos como exímias datilógrafas. No entanto, maridos (as casadas) e não tirando
vozes masculinas se fizeram ouvir diante dessa nova emprego dos homens! Eu,
situação, pois naquele mesmo ano, conforme a principalmente senti grande preconceito
Revista do Correio dos Ferroviários (1967, p. 15), a
imprensa publicou severa advertência: “as mulheres 3
Sra. Elza Weigsding. Atuou como ferroviária no período
estão sorrateiramente roubando os espaços de 1947 até 1977, quando se aposentou. Sua fala reflete o
masculinos principalmente nas ferrovias!” Essa grande amor pela sua profissão, o grande conhecimento a
preocupação insere-se na mentalidade do início dos respeito da ferrovia local e lamenta profundamente o
anos 20, do século passado, quando a participação declínio da ferrovia no Brasil. Entrevista realizada em
2007.
10
dos colegas, alegaram que era filha de Mas mudanças de mentalidade não
comerciante, não precisava trabalhar. acontecem de um dia para o outro, é um processo a
Sentiam inveja violenta a ponto de me longo prazo e, num artigo publicado por uma
prejudicarem até na carreira, preterida ferroviária na década de 70, percebe-se que a visão
nas promoções etc. sobre a mulher que exerce atividade fora do lar ainda
não é bem vista na sociedade, nessa década.
Essas atitudes refletem a visão masculina
na época, e agiram como mecanismos para manter a
mulher subordinada ao lar e ausentes do espaço A eficiência da mulher
público .Percebe-se como ela era pensada ao exercer
um cargo fora do âmbito privado. Assumir funções Muito se tem falado e criticado sobre o
fora de casa configurava-se como excesso de ingresso de mulheres nos lugares em
liberdade principalmente à mulher casada que já que o „sexo forte‟ se acha com „direto‟
tinha uma função institucionalizada “ser dona de de ocupar. Dizem eles que o lugar da
casa”. mulher é no recesso do lar, cuidando
As narrativas reescrevem a realidade vivida dos filhos, cozinhando, fazendo
pelas mulheres no contexto do trabalho ferroviário e arrumações [...] Com a evolução dos
suas lembranças trazem à tona, o seu passado, ao tempos e como o padrão atual de vida é
rememorar sua própria história. Doralice Tavares dos mais altos, torna-se necessário o
Rabelo (2007) contribuiu com a pesquisa ao auxilio da mulher para o perfeito
esclarecer que: equilíbrio do orçamento doméstico. [...]
Daí a imensidade de moças e esposas
___ As mulheres sempre foram vistas que, ante as agruras de uma vida sem
de certa maneira, por alguns, com bons conforto e usando da inteligência que
olhos por outros, como intrusas. Não possuem e que os homens não
senti nenhum preconceito, quando reconhecem, tomaram de assalto a
comecei a trabalhar na Ferrovia fui a fortaleza somente guarnecida pelos
primeira mulher a exercer funções no fortes. Essa introdução serve para
escritório, anexo ao Deposito de focalizar a Rede de Viação Paraná-
locomotivas, onde só trabalhavam Santa Catarina, em cujos escritórios,
homens. Talvez por ser filha de chefe labutam dezenas de mulheres. É preciso
da seção, nunca ouvi nenhuma piada. ser-se cego para não perceber o trabalho
Na secretaria do Distrito ocorriam eficiente de EVA em todos os setores a
algumas piadas, entre eles, a de que que ela se „atreve‟ enveredar, para
“lugar de mulher é em casa, lavando, desconsolo e despeito de muitos
passando e cozinhando”, mas a resposta homens. Como ferroviária, tenho
não tardava estamos aqui por não haver observado que o elemento masculino
um homem competente para preencher produz, mas que a mulher não lhe fica
essa vaga. atrás. Se meia dúzia delas trabalha por
diletantismo, a maioria o faz porque
A defesa em causa própria surge rápida, precisa. [...] E porque precisa, tem a
porque esse novo espaço ocupado pela mulher, oportunidade de demonstrar que a
vislumbrava novas oportunidades no mundo do pretensa superioridade intelectual do
trabalho. Elas tinham consciência de que ao se homem sobre a mulher não passa de um
exporem publicamente poderiam provar sua mito...
competência e derrubar mitos como “lugar de Nada mais que isso!
mulher é na cozinha”, e passar a serem vistas como Os fatos falam melhor do que as
parceiras de trabalho, e que tinham muito a palavras.
contribuir no universo da ferrovia. Concordo com (Fonte: FERREIRA, 1972, p. 30).
Possas (2001, p.383) quando afirma que “nessa
convivência ambígua de papéis e funções, as
mulheres dos anos 40 transitavam pelos espaços O texto de Ferreira mostra a dificuldade
conquistados, vivendo sob pressão os conflitos de de substituir traços de uma cultura de poder e
sua identidade feminina numa sociedade em subordinação bem como as relações entre colegas
transição” marcadas por conflitos. A defesa que a autora do
texto e ferroviária faz das mulheres, contestando a

11
fragilidade e a inferioridade intelectual feminina, é Ponto, com registro de horas
pertinente, porque diante das evidências sobre a trabalhadas pelos funcionários das
resistência feminina em jornadas duplas de trabalho, estações dos trechos São Francisco do
na atuação em serviços que exigem grande esforço Sul a Porto União (SC) e a Marcelino
físico, é prova de que a fragilidade feminina é mito, Ramos (RS) e de Porto União (SC), a
como escreve Ferreira, embora as diferenças Engenheiro Gutierrez (PR). Executava
biológicas sejam inquestionáveis. a separação e distribuição dos
Mas, voltando às mulheres ferroviárias nas contracheques dos funcionários, sendo
“Gêmeas do Iguaçu”, afinal, quem eram elas? O que que o pagamento era realizado em
faziam? De que forma se tornaram ferroviárias? Os “carro pagador” e mais tarde em
relatos das minhas entrevistadas foram fundamentais bancos. Fazia elaboração do “quadro
para que eu pudesse encontrar algumas respostas. justificativa” de despesas com
Doralice Tavares Rabelo (2007)4 foi funcionários do distrito (RABELO,
admitida no serviço ferroviário em 20 de setembro 2007).
de 1946, na Rede Viação Paraná Santa Catarina, por
meio de seleção entre vários candidatos e a As funções delegadas a Doralice na Rede
exigência de escolaridade era o “curso primário”. Ferroviária mostram que a ocupação desse espaço
Segundo ela, sua busca por essa profissão aconteceu público pelas mulheres, com papéis prescritos para
pelo incentivo de seus familiares, tendo em vista que ambos os sexos, foi momento de aprendizado,
fazia parte de uma família de ferroviários, tanto do conquista para a valorização da atuação feminina na
lado materno, quanto paterno. Iniciou como Rede ferroviária, pois além das atividades por ela
praticante de escritório, fazendo cursos para mencionadas, assumiram ainda áreas de telegrafia,
promoção aos cargos de “escriturária e oficial contabilidade, transcrição de faturas e manifestos,
administrativo”. Com o passar dos anos, foi registros e outras práticas. Consultada sobre a
assumindo outras funções: contratação de mulheres para os serviços de limpeza
dos ambientes de trabalho, explicou-me que essa
___ Com a privatização a RVPSC, tarefa era feita por funcionários homens.
passou a pertencer a Rede Federal S.A. Elza Bachinski Weigsding (2007), em sua
Então optei, em 1975, pelo regime CLT narrativa, revela o amor por sua profissão e o
no cargo de Agente Administrativo, no orgulho de ter sido ferroviária. Admitida em 1947,
nível mais alto da classe. Foram várias como “Praticante de Agência”, tendo, no entanto,
funções: a) no departamento da trabalhado anteriormente, como “praticante
locomoção onde iniciei, no escritório gratuita”. Segundo suas informações, o desejo de seu
anexo ao depósito de locomotivas. pai era que fosse professora, profissão feminina vista
Executava o registro do movimento com bons olhos pela sociedade na época, mas ela
diário das locomotivas a vapor, seguiu seu coração:
consumo de combustíveis e
quilometragem percorrida. b) registro ___ Após trabalhar como praticante
de substituições de rodeiros “sofungi” gratuita por 3 meses e pouco fui
em vagões. c) registro individual das admitida como “Praticante de Agência”
escalas e execuções de serviços cargo que era inicial, exercendo-o na
prestados pelos maquinistas. Secretaria da Rede. Fiquei muito feliz e
Transferida para a secretaria do 3º contente por ter conseguido o meu
Distrito fui designada para trabalhar na primeiro emprego aos 18 anos de idade,
seção do ponto. Iniciando nessa seção numa empresa que eu admirava muito.
como responsável pelo registro de horas Era em emprego muito bom para aquela
trabalhadas pelos funcionários do Setor época! Lá dentro procurei subir de
de Tração. Com redução de pessoal categoria submetendo-me a concursos
passei a ser responsável pela Seção do internos para categorias superiores a
que estava exercendo, como
4 “conferente”, escrituraria e oficial
Sra. Doralice Tavares Rabelo. Iniciou seu trabalho como
ferroviária no ano de 1946 e aposentou-se em 1977. administrativo [...]. ( WEIGSDING,
Pertencente a família de ferroviários. É grande 2007).
conhecedora das atividades ferroviárias e sobre os trens
das “Gêmeas do Iguaçu” e suas informações foram Ao rememorar seu tempo de ferroviária,
decisivas no sentido de mostrar o papel da mulher na Elza Bachinski Weigsding (2007) deixa transparecer
ferrovia. Entrevista realizada em 2007.
12
emoção, alegria e o significado de que sua profissão Anete Santos Correia, Sandra Lúcia
era sua vida: “[...] Adoro estrada de ferro e trens. Muller, Jane Terezinha Silva e Roseli
Penso que herdei o gosto por trens e ferrovias e a Benghi Efron.
vida de ferroviários da parte do meu avô Pedro
(paterno) que nos anos 1900 era um ferroviário na
longínqua Rússia”. Hoje aposentada, mas com A atuação do universo feminino aqui
saudades ela demonstra gratidão: “[...] Agradeço a apontado pela narradora reflete que o trabalho da
Deus todos os dias pelo emprego que tive, único. mulher teve grande importância no funcionamento
Estou feliz pela família que tenho e, mais feliz ainda diário da ferrovia e no desenvolvimento das duas
por ter sido uma “Ferroviária” feliz! Sinto tristeza cidades. A vida delas foi permeada por
pelo fim da Ferrovia.” responsabilidade, competência e valores vivenciados
Na medida em que os relatos das mulheres no cotidiano do viver nas “Gêmeas do Iguaçu”,
vão-se fortalecendo, expressam suas lembranças e exercendo a profissão de ferroviária, e isso, em certa
tornam possível compreender o significado do medida, significou ter o ritmo da vida envolvido
trabalho cotidiano, seja no escritório seja na estação. pelos apitos do trem, pois, desde muito cedo,
Evidencia-se na fala das entrevistadas o gosto pelo vivenciaram os acontecimentos da vida ferroviária.
trabalho e de falar sobre ele. Trata-se de um “tempo”
que já passou, mas que marcou profundamente a Um olhar sobre o cotidiano das mulheres de
vida delas. Mulheres pioneiras, conquistando família de ferroviários
espaços, como menciona Doralice Tavares Rabelo Nesse caminhar em busca dessas histórias,
(2007) “___ [...] a admissão de mulheres na ferrovia aprendi com as mulheres entrevistadas que o
veio abrir novos caminhos para que a mulher envolvimento com as situações diárias na Rede
pudesse mostrar que tem capacidade de administrar Ferroviária alcançava as outras mulheres da família,
e ser respeitada, ir além dos afazeres domésticos”. como a esposa, e filhos dos funcionários, no viver
Outras mulheres partilharam e cotidiano. A presença feminina em algumas estações
contribuíram com o serviço ferroviário nas cidades destacou-se no ambiente doméstico, tendo em vista
de União da Vitória e Porto União. Doralice (2007) que, nas pequenas vilas e cidades, era comum o
afirma que a “primeira mulher a trabalhar na agente da estação e sua família residirem nesse
Ferrovia em Porto União da Vitória, no setor espaço, para dar conta de suas responsabilidades da
administrativo, nos anos 40, foi Nair Vieira forma mais apropriada. As palavras de Glaci Chila e
Donadella, e destaca, a seguir, outros nomes de que Silva (2007)5 confirmam as ideias acima
ela tem lembrança: mencionadas:

___ Na secretaria do Distrito ___ Minha avó sempre morou em


trabalhavam: Doralice Tavares Rabelo, estação (Rebouças, Tomazina, Serra
Elza Bachinski Weigsding, Thereza Morena, etc) vivia à sombra do marido,
Araujo Bordignon, Emilia Cordeiro chefe da estação, só na “lida” como
Brittes; Alzira Nisgoski, transferida mãe e dona de uma casa às vezes
para Curitiba; Roseli Schmidt, bastante agitada por ser uma extensão
transferida para Curitiba; Maria da plataforma (pública) e do escritório
Aparecida Dias, transferida para da Rede, ligados por uma porta às
Curitiba; Lori Matzembacker, dependências da moradia. Na casa de
transferida para Joinville e Iracema meu avô, como nas demais de mesmo
Lazier. Na agência da Estação de União tipo, as visitas eram comuns. Muitos
trabalharam Cecília e Ladislava (não clientes especiais (que usavam os trens
lembro sobrenome). No escritório do para transportar seus produtos, suas
setor comercial: Maria Ziloá Dipp cargas) amigos que precisavam esperar
Vieira, transferida para Curitiba; Lúcia o trem, fiscais da Rede, mestres de
Dias trabalhava no setor de recebimento obras ou engenheiros que vinham à
de lenha. Transferida para Curitiba. No
telégrafo da estação trabalhou uma 5
Sra. Glaci Chila e Silva. Professora, pertence à família
senhora, da qual não lembro o nome. de ferroviários e lembra com muitos detalhes sobre o
Após 1978, foram admitidas as cotidiano dos ferroviários, da estação e da sua vida dentro
seguintes funcionárias: Elza Duda, nesse “mundo de sonhos” que foram suas viagens de trem
Marlene Terezinha Gasnhar Tonet, e as férias na Estação, casa de seu avô. Suas narrativas
Denise Warnier Biela, Neusa Olenka, foram ricas em detalhes a respeito dos ferroviários, da
estação e das mulheres.
13
serviço naquele trecho, etc, eram bolachas, marmelada e outros doces. Também
convidados a transpor a porta de acesso compravam-se no armazém, sapatos, panelas, louças
entre o escritório e o lar da família do e tecidos.
agente para ali descansar ou fazer uma Conforme depoimento de Therezinha
refeição. Assim sendo, a dona da casa Thiel Moreira (2007)8: “___ além de alimentos havia
devia estar sempre disponível, solícita, calçados, tecidos para venda. Não raro dava-se de
preparada para atender os hóspedes. cara com alguém com vestido da mesma fazenda
Não era uma obrigação do chefe da que o seu”.
estação hospedar ninguém, mas era A esse respeito é bastante elucidativo o
uma regra de boa educação, de cortesia depoimento de Glaci Chila e Silva (2007):
(SILVA, 2007).

O fato de ser ferroviário favoreceu a ___ Pela facilidade de crédito, pelo


contratação de algumas moças, filhas de preço especial e até por uma questão
ferroviários, tendo em vista que as moças cultural, a gente quase nunca comprava
auxiliavam os pais em inúmeras atividades nas tecidos na Petry ou na Flor da Vitória
estações de trens, como ocorreu na família de Glaci como as outras mulheres. Era no
Chila e Silva (2007): armazém da Cooperativa 26 de
Outubro, que trazia produtos de
___ Já na minha família tivemos duas qualidade, mas com pouca variedade.
mulheres ferroviárias. Naquele tempo Naquele tempo não havia roupa
não havia concurso, os funcionários industrializada, era importante seguir a
eram indicados e depois de um tempo moda, mas com exclusividade, com
vinha um fiscal da Chefia de Tráfego individualidade. Era a pior coisa do
fazer um teste, verificar a atuação da mundo aparecer numa festa, ou numa
pessoa e recomendar a contratação (ou missa, ou no cinema com vestido igual
não). Assim meu avô ensinou e de outra. Então, quando acontecia da
empregou duas filhas. Cooperativa trazer um tecido bonito,
moderno, era comum dali uns dias a
A ferrovia, para muitos, foi considerada a gente deparar com várias filhas ou
melhor opção de emprego, pelas vantagens salariais mulheres de ferroviários com vestidos
e benefícios oferecidos pela Rede Ferroviária, tais quase idênticos. Para que isso não
como a assistência médica no Hospital 26 de acontecesse comigo e com minha irmã,
Outubro6, as moradias que proporcionavam minha mãe que era costureira, enchia os
conforto, embora sem luxo, às famílias dos vestidos de bordadinhos, botõezinhos,
ferroviários, pois a maioria vivia em casas da Rede, sutaches, sianinhas, rendinhas,
como na Vila Ferroviária, e os engenheiros no babadinhos, etc. Ficavam
complexo próximo à Estação União, em bonitas escandalosamente diferentes, e eu não
residências. sabia o que era pior: se me vestir igual
As compras eram realizadas na as outras ou chamar tanto a atenção.
Cooperativa Mista 26 de Outubro7 e os mantimentos
eram levados em casa, bastava preencher uma lista As narrativas das entrevistadas mostram os
onde já estava escrito o que tinha no armazém, como significados de cada fato relacionado ao tempo da
por exemplo, ... kg de charque, ... latas de azeite, ... ferrovia e como se desenvolveram na consciência de
pedaços de sabão, entre outros. Glaci (2007) cada uma as diferentes situações que permearam sua
esclarece que, no princípio, as compras eram levadas vida. Ao relembrar esse “tempo, que já se foi”,
em carroças e mais tarde em pequeno caminhão. A ressurgem as lembranças da infância, da juventude e
narradora lembra que as crianças faziam a maior o desejo de recompor o passado pela oportunidade
festa, quando a comida chegava, pois havia de expressar os sentimentos que permaneceram
vivos em sua memória, seja como membro de uma
6
O Hospital 26 de Outubro estava localizado na Rua
Marechal Floriano Peixoto, próximo ao IAP, em União da
8
Vitória. Foi inaugurado em 1946 e desativado em 1996. Therezinha Thiel Moreira. Filha do senhor Ary
Esse espaço hoje foi adquirido por profissionais liberais e Marcondes Thiel, ferroviário que tinha muito orgulho de
funcionam ali diversos tipos de serviços públicos. pertencer à classe ferroviária. Seu depoimento em 2007,
7
Localizava-se no atual prédio do IAP, esquinada Rua registra suas percepções acerca do cotidiano da vida do
Marechal Floriano Peixoto. ferroviário.
14
família de ferroviários seja como ela própria As “gares”, as estações ferroviárias,
ferroviária. com seus múltiplos murmúrios,
fervilhantes de pessoas que se
Presença feminina na estação: “lugar de ver e ser locomoviam incessantemente diante do
vista” tempo-relógio, deixavam transparecer
os movimentos de uma sociedade que,
A chegada dos trens e trilhos e a se de um lado atenuava as distinções
concentração de pessoas na Estação alteraram sociais entre a burguesia e aristocracia,
sobremaneira os costumes da sociedade local, em apesar de manter exacerbada a tensão
relação à presença feminina no espaço público, entre social entre elas, de outro, expunha o
eles a Praça Hercílio Luz e a Estação Férrea. A praça fosso social em relação às camadas
era freqüentada pelas famílias e jovens que ficavam populares, também usuárias desse
a espera da chegada dos trens. Tanto a praça como a arrojo tecnológico.
estação foi ponto de “paquera” ou de “flerte”,
usando termos da época. Vestidas com simplicidade, faziam-se
A visibilidade das mulheres nesse presentes na multidão de ir e vir nos trens de terceira
momento pode ser evidenciada por meio de fotos, de classe, superlotados. Nas estações, inserindo-se no
textos nos jornais e de relatos. Ruschel (2006)9, que espaço público, estabeleceram uma convivência
ao nos prestar algumas informações, conta que seu repleta de conflitos e contradições perante os grupos
amigo Odilon Silva, hoje ferroviário aposentado, sociais.
quando “[...] solteiro gostava muito de viajar aos Nas “Gêmeas do Iguaçu”, percebe-se que o
domingos, porque em todas as estações tinha espaço da estação, bem como o da praça no contexto
bastante moças e rapazes esperando o trem passar e das duas cidades que este estudo contempla, não
surgia [...] aquela paquera rápida”. Era comum, podem ser vistos separadamente, pois ambos
portanto, a presença feminina nas estações, proporcionaram à mulher oportunidades de inserções
despertando emoções. assíduas na esfera pública.
Observar os viajantes que embarcavam, É bem verdade que essa inserção era
desembarcavam e que estavam no trem como limitada, buscando preservar a boa moral das jovens.
viajantes, as mulheres faziam-se presentes, Ficava mal à reputação das jovens que usassem
ostentando suas melhores roupas, como afirma Glaci roupas muito ousadas, rir ou falar em tom de voz
Chila e Silva (2005) “[...] havia mulheres muito alto e, principalmente, estar desacompanhada.
impecavelmente vestidas, com o fio da meia retinho, Tais atitudes seriam prejudiciais aos planos de
de saltos altos, de luvas e até casacos de pele”. Era casamento. E como a estação, tal qual a praça, era
comum a presença de prostitutas, “fazendo o ponto”, lugar de sociabilidade, de “flirt”, de conhecer e ver
vestidas de forma mais chamativa, para encontrar gente, muitos namoros iniciaram ali. Além disso,
cliente e outras, pedindo esmolas. Mesmo espaço... “[...] as jovens suspiravam ao ver os viajantes,
outros motivos... tantas histórias! Essa realidade não homens, lindos, elegantes e bonitos” que utilizavam
era pertinente apenas às “Gêmeas do Iguaçu”, era o trem Internacional, conforme relato de Elza
visível por todo o país. Bachinski Weigsding (2007). Se para os belos
Em outras cidades, essa prática era homens as jovens casadouras lançavam lânguidos
corriqueira. Perrot (1994, citada por POSSAS, olhares e suspiros, para as mulheres viajantes, não
2001), comenta que as prostitutas podiam ser vistas faltava admiração pelas roupas, sapatos e chapéus
exibindo-se em trajes sofisticados ou tão diferentes dos usados habitualmente pelas
disfarçadamente, “fazendo o ponto”, na busca de um mulheres das cidades “Gêmeas do Iguaçu”.
possível cliente, para sobreviver. Além dessas
mulheres também se fazia presente, número
considerável de maltrapilhas, pedindo esmolas. Considerações Finais
Na pesquisa Possas (2001, p. 66) registra
que: Procurei registrar o papel da mulher
ferroviária, a qual é pouca lembrada pela
historiografia oficial, como forma de atuar de
9
Sr. Renato Ruschel. Autor da obra intitulada “Estação maneira mais efetiva na construção de um
União” a qual ilustra a capa deste livro. Também ilustrou conhecimento histórico que mostre mais pessoas
este trabalho com inúmeras informações, em 2006, a reconhecendo-se como sujeitos. A atuação delas em
respeito da Estação e dos trens nas “Gêmeas do Iguaçu”. diferentes setores da ferrovia oportunizou-lhes
Outras obras suas retratam fatos da história local, vivenciar experiências de trabalho fora do espaço
preservando memórias.
15
privado do lar ou das escolas, o espaço de trabalho RUSCHEL, Renato. Entrevista. União da Vitória,
considerado feminino e aceito pela sociedade. Dessa 2006.
forma, inaugurou-se um novo olhar sobre o trabalho SILVA, Glaci Chila e. Entrevista concedida a
da mulher, com flexibilização de tarefas e práticas Rodrigo Kozakiewicz, 2005.
específicas anteriormente consideradas exclusivas SILVA, Glaci Chila e. Entrevista. União da Vitória,
do homem. 2007.
Pelas memórias das mulheres, membros WEIGSDING, Elza Bachinski. Entrevista. União
das famílias de ferroviários ou simplesmente da Vitória, 2007.
moradoras das cidades, foi possível destacar a
presença feminina na Estação União, que viera a ser
um espaço de sociabilidade. A memória construída
pelos homens e mulheres que fizeram parte do
cotidiano do “tempo dos trens” mostrou a existência
de uma cultura ferroviária, na qual fica evidente o
afetivo, o compromisso e a importância da ferrovia
nas cidades. As fontes orais, conforme aponta
Garrido (1993), também são fontes documentais, e a
utilização delas pelo historiador é relevante para se
fazer História.
Enfim, fica evidente que a presença
feminina na Rede Ferroviária proporcionou
visibilidade às mulheres, tanto no espaço físico,
quanto no espaço profissional, como seres agentes
de transformações. Com seu “jeitinho de ser mulher”
conseguiram introduzir num universo que não era
olhado como seu, o convívio harmonioso e solidário.
Juntas trocaram ideias, compartilharam dificuldades,
construíram uma história que foi marcada por
competência, perseverança, disciplina... enfim
muitos desafios.

REFERÊNCIAS

CORREIO dos Ferroviários. Curitiba: RFFSA, n.


405, jul. 1967.
FERREIRA, Lúcia. A eficiência da mulher. Correio
dos Ferroviários. Curitiba, n. 454, p. 30, ago. 1972.
GORGOZINHO, Batistina Maria de Sousa.
Ferroviário: Cruzamento de linhas. História Viva.
Caminhos do trem: profissão ferroviária. São Paulo,
v. 5, p.32-39, 2008.
POSSAS, Lídia Maria Vianna. Mulheres, trens e
trilhos: modernidade no sertão paulista. São Paulo:
EDUSC, 2001.
SEGNINI. Liliana R. Petrilli. Ferrovia e
Ferroviários: uma contribuição para análise do
poder disciplinar na Empresa. São Paulo: Autores
Associados; Cortez, 1982.

ENTREVISTAS

MOREIRA, Therezinha Thiel. Entrevista. União da


Vitória, 2007.
RABELO, Doralice Tavares. Entrevista. União da
Vitória, 2007.

16
MULHERES
HONESTAS NÃO
VÃO AO BAILE DE
CARNAVAL:
HONRA
MASCULINA E
MORALIDADE
FEMININA NO
FINAL DO SÉCULO
XIX E INÍCIO DO
SÉCULO XX
Dulceli de Lourdes
Tonet Estacheski
Introdução

Lucia Maria Novaes tinha dezoito anos,


vivia em Fazenda Taquara-Tibagy, seu pai Jeronymo
e sua mãe Josepha, que já havia falecido, foram
escravos de José Felix Novaes e Silva. Lúcia que foi
batizada um mês antes da abolição cresceu sem
saber ler, nem escrever e trabalhava como criada de
servir para sobreviver, já que seu pai era uma pessoa
pobre. Lucia, portanto, não era uma daquelas jovens
cujos belos pertences foram preservados e hoje estão
expostos na Casa de Sinhara em Castro, conhecida
como o museu da mulher castrense, seu espaço
social era bem outro.
No dia 8 ou 9 de fevereiro de 1906, Lucia
encontrou-se com o jovem José Mazzini Galetto,
rapaz de 21 anos, nascido de Curitiba, que sabia ler e
escrever e era lavrador em Castro. Ele a convidou
para um passeio no mato, para além da ponte,
prometeu-lhe casamento e depois a deflorou. Lucia
contou que depois disso tiveram relação sexual mais

17
uma vez e que o próprio José disse a ela que formas distintas. O Estado segregava, como no caso
revelasse o ocorrido, pois assim se casariam. do degredo imposto às mulheres adúlteras disposto
Mas José não cumpriu a promessa, não no Livro V das Ordenações Filipinas ou reprimia
casou-se com Lúcia que acabou contando tudo a seu através da disposição de penas severas e humilhação
pai e este pediu ao promotor público que pública para os transgressores; a Igreja confinava em
denunciasse o jovem pelo crime de defloramento. conventos ou casas de recolhimento e a família
Iniciou-se assim um processo em que a vítima, condenava buscando apoio em uma das instituições
Lúcia, precisou defender-se de acusações de acima para que a desonra não punida da mulher não
desonestidade. 10 significasse a desonra de toda a família.
A honestidade, no final do século XIX e
início do XX, era entendida de forma diferente para Um homem poderia ser desonrado se
homens e mulheres, para eles significava integridade viessem a público atividades sexuais de
de conduta em relação ao trabalho, à honra de sua filha, ou esposa, que não fossem
dívidas e proteção da família, para elas estava ligada legitimadas pelos códigos morais da
à sua conduta sexual. sociedade. [...] A honra da mulher era
A análise dos processos por crime de antes de mais nada algo sobre o qual se
defloramento ocorridos no período de 1890 a 1916, empenhavam todos os homens e
encontrados no Arquivo Público da Cidade de também as instituições por eles
Castro-PR, Casa da Cultura Emília Erichsen, auxilia representadas: a Igreja e o Estado. A
na compreensão das relações sociais neste tempo, honra feminina configurava-se então
em que homens e mulheres vivenciaram papéis como um bem pessoal de cada mulher,
sociais distintos que não somente lhes foram uma propriedade da família, porque
impostos, mas também assumidos ou aceitos por poderia atingi-la, e também um bem
eles. público, porque estava em jogo a
preservação dos bons costumes exigida
Honra, honestidade, moralidade... pelo código moral. (ALGRANTI, 1993,
p. 113)
Ao escrever sobre as mulheres do período
colonial Algranti (1993, p. 111) argumenta que A honra masculina pautava-se na
“honra ou virtude são termos equivalentes, que manutenção da palavra, no cumprimento do dever,
expressam o comportamento das mulheres em na independência financeira e na capacidade de
relação à conduta sexual”. A autora analisa prover e proteger sua família. Estas eram funções do
pareceres do intendente geral da política da Corte, homem honrado portador de virtudes como
Paulo Fernandes Viana, sobre a conduta moral de honestidade, grandeza de caráter, dignidade e
mulheres, cujos pais ou maridos solicitavam sua capacidade de empreender atos de coragem que
intervenção para o internamento delas em visassem defender estas mesmas virtudes.
recolhimentos femininos ou conventos. Estas atitudes, consideradas fundamentais
Algranti (1993) analisa também documentos para a honra da elite masculina, eram observáveis
destes espaços que além de uma opção pessoal por também em meio às classes menos favorecidas que
uma vida religiosa podiam significar um ambiente habitavam nas cidades e também nas zonas rurais.
de reclusão para preservar a honra feminina, punir a Para a elite o homem honrado poderia angariar
transgressão de normas de conduta, servir de retiro cargos públicos, por exemplo, para outras parcelas
para viúvas ou ainda figurar-se em uma forma de sociais a honra conferia respeitabilidade entre os
resistência feminina possibilitando a fuga de um pai seus.
ou marido dominador. Para Algranti (1993, p. 111) “O cidadão
Nesta sociedade a castidade, a pureza e a virtuoso jamais teria sido um homem casto, mas,
fidelidade como sinônimos de honra eram atributos sim, um homem forte, como significa o próprio
reservados às mulheres. A mulher honrada ou termo virtus (força).” Quanto à mulher:
honesta era aquela virgem enquanto solteira, fiel
enquanto casada e casta ao tornar-se viúva. A figura ideal da mulher honrada, no
Para preservar a honra, punir sua século XVIII, é portanto aquela que
transgressão e também para recuperá-la, as controla seus maus instintos e, recatada,
instituições – Estado, Igreja e família – agiam de oculta seu corpo, ciente das paixões que
é capaz de desencadear [...]. É a mulher
10
A história aqui relatada consta no processo por crime de sem identidade, virtuosa e honrada que
defloramento de 03/09/1906. Caixa 1905/1906. Arquivo o século XIX consagrará
Público de Castro/PR - Casa da Cultura Emília Erichsen.
18
definitivamente. (ALGRANTI, 1993, p. casamento, por exemplo, mas com toda uma
120) estrutura social afetada por esta „mancha‟. Com a
autoridade moral da Igreja que pregava a castidade e
Dois argumentos são aqui destacados, era desobedecida; com a reputação da família,
primeiro a diferenciação da honra masculina e instituição civil mais importante da República, onde
feminina – uma almejada por possibilitar destaque o pai era o „chefe‟ e era desrespeitado em sua
social e outra imposta em nome da primeira – e, autoridade; e com o Estado que optou pela estrutura
segundo, a continuidade de um discurso regulador familiar como modelo de sua atuação: assim como o
da conduta feminina presente no Brasil desde o pai cuidava da família o Estado cuidava do povo, o
período da colonização. que fazia com que a desonra familiar fosse uma
Priore (1995) salienta que as mulheres da desmoralização para o Estado.
Colônia, passaram pelo que ela chama de „processo Caulfield (2000, p. 77) declara que “uma
de adestramento‟ através de um discurso sobre mulher solteira não virgem era considerada uma
padrões ideais de comportamento, importado da prostituta em potencial” e ao punir o defloramento, a
metrópole, propagado por moralistas, pregadores e lei estava protegendo um princípio moral e o
confessores. Estudos demonstram que este discurso casamento era o único meio de eliminar a punição,
não esmaece com o passar do tempo, mas assume pois ele reparava os danos causados à mulher, à sua
novas configurações. família e à sociedade.
O „adestramento‟ da mulher que no período O sentimento de angústia dos homens que
da colonização do Brasil fazia parte de um processo consideravam as mulheres incapazes de manter ou
civilizatório aliado ao desejo de difusão da fé defender sua própria honra e ao mesmo tempo
católica, segundo Priore (1995; 2003), no século XX sentiam-se responsáveis por estas ações, já que sua
passa a integrar uma discussão sobre modernidade e virtude era medida pela capacidade de prover e
progresso. defender sua família os conduziu a buscar apoio na
Em sua obra „Em Defesa da Honra‟, Igreja, com seu discurso regulador da moral, e no
Caulfield (2000) discute os conceitos de moralidade Estado, na legislação marcada por princípios morais
e modernidade a partir dos sentidos da honra sexual e religiosos.
para a sociedade do Rio de Janeiro do período de Tanto este discurso como a forma masculina
1918 a 1940. Suas fontes de estudo compreendem de recorrer à ação violenta ou à Justiça para manter
desde cartas pessoais apreendidas pela polícia, sua honra, preocupantemente vinculada à fidelidade
inquéritos policiais por crimes sexuais, os Códigos feminina, permaneceu por um longo período e é
Penais de 1890 e 1940, o Código Civil de 1916, percebido nas argumentações de Chalhoub (2001, p.
estudos de juristas, médicos e autoridades religiosas. 180) ao estudar padrões de comportamento de
A autora argumenta que a virgindade homens e de mulheres da classe trabalhadora do Rio
feminina era motivo de discussão entre os de Janeiro na primeira metade do século XX, o autor
intelectuais da época, pois para uns a preocupação afirma: “a honra do homem depende da conduta da
com ela e com a defesa da honra sexual era mulher, que lhe deve ser absolutamente fiel, e é
evidência de „atraso nacional‟, enquanto para outros exatamente essa dependência que legitima seu poder
era um testemunho do progresso do país, já que o sobre ela”.
respeito pela honra da mulher era um sinal de O autor argumenta que este fator é uma
„conquista da civilização‟. permanência de noções patriarcais do período
Estas discussões, segundo a autora, eram colonial quando o homem exercia poder sobre todo
relevantes para a sociedade da época, pois: o grupo familiar e sobre os demais dependentes de
sua propriedade e destaca que ao estudar os
As ofensas à honra sexual das mulheres processos por crimes passionais no período percebeu
eram mais complexas: elas podiam que o modelo ideal de mulher ainda era aquele
ofender a autoridade moral da Igreja e baseado na docilidade, submissão e fidelidade ao
do Estado, a inviolabilidade e a marido, enquanto o modelo ideal masculino
reputação pública da família, autoridade permaneceu sendo o de provedor da família.
paterna privada, a integridade Fausto (2001, p. 197) ao discutir sobre o
individual ou o patrimônio familiar. Código Criminal do Império, que em 1830 substituiu
(CAULFIELD, 2000, p. 59). o Livro V das Ordenações Filipinas, sustenta que
houve um abrandamento das penas para os crimes
Em outras palavras, a preocupação não era sexuais e isso se deve a uma adaptação “a uma
com a mulher somente, ou com a honra feminina sociedade onde a família regular, sacramentada pela
„manchada‟ pela perda da virgindade fora do Igreja e depois pelo Estado, era minoritária e onde se

19
entrecruzavam os valores da pureza das mulheres e Processos por crime de defloramento como fonte
da condescendência para com o desregramento de pesquisa histórica
masculino”.
Isto não significa que o discurso sobre a Documentos do poder judiciário como
honra desapareceu por completo. A permanência do inventários, testamentos, processos cíveis e
sentido e da importância da honra na legislação criminais são importantes fontes para a pesquisa
brasileira pode ser percebida nas considerações do histórica. Bacellar (2006) argumenta que os mais
próprio Fausto (2001) sobre o Código Penal de 1890 explorados são os testamentos e inventários por
onde os delitos de ordem sexual aparecem com o trazerem informações sobre o patrimônio familiar,
título de „crimes contra a segurança da honra e sobre as últimas vontades de um indivíduo que
honestidade das famílias‟. O autor comenta: revelam também a religiosidade e as formas de
relações sociais.
Atendo-me ao Código Penal de 1890 Os processos cíveis e criminais utilizados
em sua redação original, o artigo 266 como fonte histórica possibilitam o estudo de
definia como delito „atentar contra o diferentes atores sociais, desde os envolvidos
pudor de pessoa de um ou de outro diretamente nos processos, réus e vítimas, como das
sexo, por meio de violência ou ameaça testemunhas, promotores, juízes. Trazendo à tona
com o fim de saciar paixões lascivas ou um conjunto de relações que evidenciam práticas
por depravação moral‟. O texto culturais, noções de valores, relações de poder, de
abrangia todo tipo de relação sexual não amizade, compadrio ou parentesco.
consentida, com exceção das „relações As fontes judiciais podem auxiliar nos
normais‟, ou seja, o coito vaginal, estudos sobre a religiosidade, por exemplo,
objeto específico dos crimes de observando-se que no século XIX as ações se
defloramento e estupro. O alvo iniciavam com a seguinte expressão “Anno do
principal da proteção legislativa era, Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil,
entretanto, a „honra‟, corporificada na oitocentos...”, e que na legislação estavam presentes
mulher, através da definição dos crimes valores morais e religiosos, como nos casos de
de estupro (artigo 269) – ato pelo qual o defesa da honra e da família.
homem abusa com violência de uma Fausto (2001) argumenta que o processo
mulher, seja virgem ou não – e de penal se constitui em um produto artesanal com
defloramento (artigo 267), consistente características muito próprias que vão, desde a letra
em „deflorar mulher de menor idade, caprichada ou indecifrável do escrivão a um
empregando sedução, engano ou conjunto de signos que permitem reflexões, mesmo
fraude‟. Mas não se trata precipuamente antes de uma leitura mais apurada do texto.
de proteger a „honra‟ como atributo A partir da verificação, por exemplo, da
individual feminino e sim como presença ou não de petições de advogados entre as
apanágio do marido ou da família. transcrições dos atos processuais, da utilização de
Desvenda-se desse modo o pressuposto papel timbrado ou datilografado nas defesas,
de que a honra da mulher é o principalmente em períodos mais distantes, é
instrumento mediador da estabilidade possível perceber a ausência ou disponibilidade de
de instituições sociais básicas – o recursos da vítima e também o grau de prestígio de
casamento e a família. (FAUSTO, seu defensor.
2001, p. 195-196) Um documento que pode constar nos
processos, geralmente apresentado pelo réu, é o
Mesmo sofrendo alterações, tanto as documento de antecedentes. Fausto (2001) o aponta
relações familiares quanto o discurso sobre a honra, como uma mostra da rede de relações sociais do
não perderam sua relevância social. Sobre o crime acusado utilizada para afirmar sua respeitabilidade
de estupro Fausto (2001) lembra que o Código Penal perante a sociedade. A sentença pode ser
de 1890 confere punições distintas para os interpretada a partir desta documentação verificando
agressores de “mulher honesta” e para os agressores o peso que se deu a uma simples declaração mal
de prostitutas. A honestidade, a honra da mulher escrita de uma pessoa humilde e a uma declaração
ainda aparece relacionada com sua conduta sexual. formal de pessoas influentes da sociedade em
questão.
O processo penal é um documento que
apresenta a quebra de uma norma legal, apresenta a
reconstituição de um fato na busca por uma verdade

20
visando punir ou absolver um indivíduo, traduzindo nem para enterrar. Foi ser moça”. Andar
a opção da sociedade na definição do correto, da desacompanhada dos tutores ou na companhia de
transgressão, das formas de punição, das rapazes era um sinal de „desonestidade‟ das
circunstâncias atenuantes deixando transparecer a meninas, pois era uma conduta imprópria para
influência das relações sociais em toda sua trama. jovens honradas.
O defensor de José no processo acima citado
O caso de Lúcia e outras meninas elenca uma série de ações supostamente praticadas
por Lúcia que a desabonam, desde freqüentar bailes
No processo em que o jovem José é acusado e festas ao andar nas ruas sozinha.
do defloramento de Lucia11 consta um discurso de
seu defensor visando demonstrar que ela não era Quem ignorava que Lucia a mais de
uma jovem honesta. Argumenta que “O zeloso pai anno era mulher perdida? Uma mulher
acreditou talvez na ingenua confissão de Lucia, que honesta e principalmente donzella
para passar aos olhos de seu pai como mulher freqüenta ou é costume freqüentar, pelo
honesta, não trepidou de atirar para o denunciado a carnaval, aos bailes das meretrizes com
autoria de sua deshonra” (grifos do documento) e em as danças mais escandalosas?...
seguida passa a relatar uma série de atitudes de Entretanto assim Lucia procedia. Disse
Lucia que comprovariam sua desonestidade. ella que foi o denunciado o autor de sua
desonra, na tarde de 28 de fevereiro
Mas passemos a narrar minuciosamente deste anno, n‟um matto, além da ponte
a vida de Lucia. Há muitos annos vive onde foi a seu convite, sem violência,
ella fora da companhia de seu pai e é apenas com promessa de cazamento...
creada de servir. Ora isso nada prova Ora se isso fosse verdade era crível que
em seu desabono, si ella tivesse um uma donzella em pleno dia, fosse
bom comportamento; mas tendo o assim, sozinha à um matto tão distante
exemplo em caza, onde outra irmã já se como o é o do outro lado da ponte sem
prostituio, vivendo quase livre. receio para entregar-se ao denunciado?
(grifos do documento)
Morar longe do olhar paterno que deveria
ser o regulador da conduta, aliado ao fato de que sua A conduta das jovens devia ser
irmã perdeu a honestidade anteriormente confere à irrepreensível, antes e depois de casar-se. Quanto
Lucia a propensão à desonestidade. O estigma de mais discreta, mais honrada. Enfeitar-se apenas para
mulher desonrada não afetava apenas a jovem o marido e, mesmo com este, o pudor nas relações
transgressora das normas de conduta sexual, que a devia ser mantido, manter-se sobre a proteção
partir de tal ato passava a ser encarada como uma masculina, seja do pai, irmão, avô, marido ou outro
“prostituta em potencial”, como afirma Caufield tutor era necessário e qualquer desvio nestas
(2000), mas também a outras mulheres da família. condutas podia classificar a mulher como desonesta
Tal mentalidade estava arraigada na ou sem honra.
sociedade brasileira a tal ponto que a literatura O defensor de José recorre até mesmo ao
regionalista de Monteiro Lobato, reveladora de fato de que as testemunhas de acusação eram
costumes da cultura interiorana brasileira, nos dá “moças solteiras” e afirmaram que foi a própria
mostras disso. No conto „Mata pau‟, publicado Lucia que lhes relatou o acontecimento. O destaque
originalmente em 1918 em „Urupês‟, o jovem não é dado ao fato de que as testemunhas só sabiam
Eslebão desejava casar-se com Rosa, mas seu pai o do crime pelo relato da própria vítima, mas ao fato
advertiu que “A mãe de Rosa é falada. Laranjeira de serem “moças solteiras”, o que elas faziam ali
azeda não dá laranja lima” (LOBATO, 1957). testemunhando a favor de uma jovem considerada
Ainda na obra de Lobato (1957), outro prostituta? Seu testemunho também perde o valor
conto, „A colcha de retalhos‟, publicado também em por andarem na companhia de uma mulher
„Urupês‟, destaca que as mulheres do interior, da desonesta.
roça, deveriam ir à vila apenas três vezes durante a No processo encontramos ainda um
vida, “uma a batizar, outra a casar e outra a requerimento da defesa de José para que se ateste
enterrar”. O lamento da avó de Pingo, personagem que Lucia era “tida como gatuna” e apresenta uma
do conto é que ela foi para a cidade “não para casar, testemunha do fato para que se analise o
“procedimento moral de Lucia”. Diversos fatores
11
Processo crime – 03/09/1906 – Caixa 1905/1906. Casa podiam desabonar a concepção moral de uma jovem
da Cultura Emília Erichsen – Arquivo Público de Castro – e tornarem-se alegações dos advogados de defesa do
PR.
21
homem, a situação irregular da família, a liberdade outras localidades ou que trabalhavam próximos a
excessiva, se ela não era educada num ambiente de elas. Neste caso, parece que o acreditar na promessa
recato, se carecia de assistência materna, se vivia em de casamento não era uma ambição além do
habitação coletiva, se sua irmã não casou virgem ou possível, era uma expectativa de futuro diferente, ou
cometeu aborto, se tinha um irmão alcoólatra ou pais em outro lugar ou em outra casa.
separados. O depoimento de Mércia, menor de idade,
Nada há no processo que desabone as que trabalhava em serviços gerais, pois era órfã de
testemunhas da defesa, são homens que concordam mãe e seu pai muito pobre, destaca que
que a conduta de Lucia a torna desonesta. Mas o que
levou Lucia, mulher que vivia “quase livre”, para Ella offendida, se considerava noiva de
utilizar a expressão do defensor de José, a Manoel Gomes, em vista deste ter
apresentar-se diante de seu pai, se nem vivia mais na pedido a sua mão, que apesar as
casa deste, acusando alguém pelo seu defloramento, instancias de seo pae o noivo ia
fazendo com que o pai buscasse amparo em outros demorando na realisação do casamento,
homens, representantes da lei, solicitando reparação? dando ora um e outro pretesto, mas
Caufield (2000, p. 205) afirma que sempre prometendo a ella offendida que
se casava... que Ella offendida guardou
Moças da classe trabalhadora, ou mais segredo por dois ou três dias, mas
frequentemente seus pais ou sabendo de novos pretestos e
responsáveis, recorriam à Polícia e à adiamentos para a realisação do
Justiça para que intermediassem os casamento, contou a sua tia Carolina
conflitos que envolviam a perda da (Processo Crime – 26/05/1914 – Caixa
virgindade, geralmente com a esperança 1913/1914)
de que as autoridades forçassem os
defloradores a casar. O pai da jovem insistiu no casamento, prova
disto está no bilhete que o rapaz lhe enviou e foi
A esperança do casamento era para o pai a anexado ao processo afirmando que “para logo não
esperança de recuperar a dignidade perdida, para posso [...] tensiono me cazar tão logo sem fazer
Lucia talvez fosse a possibilidade de mudança de cazar o menos uma das minhas irmãs”.
vida, talvez fosse uma forma de desprender-se do O casamento é encarado aqui sob
estigma de desonrada por ter uma irmã considerada perspectivas diferentes. O pai anseia pelo casamento
prostituta, ou a chance de não ser mais a empregada para restauração da honra familiar, a jovem porque
doméstica, de ter uma casa, de ter honra. vê nele a possibilidade de mudança de vida, não é a
Praticamente todas as meninas defloradas honra que lhe preocupa, se o fosse não teria deixado
afirmam que foram iludidas por promessas de ocorrer o defloramento, parece mais provável que
casamento, e aí se inicia uma trajetória interessante, tenha entendido que a entrega do que tinha de mais
da promessa ao defloramento, do defloramento à importante possibilitaria um casamento, neste caso
confissão para a família e daí para o processo crime. com um rapaz de outra localidade que poderia tirá-la
Ao percorrer este caminho a jovem passa por uma da situação de empregada órfã para colocá-la na de
série de situações vexatórias: a família que a critica, esposa, com uma casa e família própria; e o jovem
a vizinhança que a envolve em comentários, a justiça encara o fato de que se ele casar antes de suas irmãs
que exige o corpo de delito e o arrolamento de deixaria as mesmas à mercê da desonra.
testemunhas, o interrogatório, toda uma exposição A honra masculina pautava-se no
que acaba, na maioria dos casos analisados, em cumprimento do dever, na palavra dada e mantida e
processos arquivados. na capacidade de prover e manter sua família. No
Para Caufield (2000), promotores e juízes bilhete Manoel não se nega a casar-se, não pode
eram propensos a defender meninas pobres, deixar de cumprir sua palavra, porém afirma que
especialmente as brancas, em processos por crime de antes deve proteger a honra de sua casa, de sua
defloramento, porém para a sociedade da época estas família, protegendo a honestidade de suas irmãs.
meninas pobres deveriam saber de antemão que O fato de Mercia afirmar que guardaria o
rapazes de uma classe social mais elevada, como os segredo se o casamento fosse realizado em breve
filhos dos patrões, não se casariam com elas. sugere o entendimento que ela tinha a respeito de
As meninas de Castro que aparecem nos sua sexualidade, o deixar deflorar-se poderia fazer
processos por crime de defloramento analisados não com que o jovem se comprometesse. Como isso não
procuraram o casamento com jovens muito mais aconteceu, a estratégia da menina muda, conta o que
ricos que elas, mas com rapazes que moravam em houve para que a família a auxilie na busca pelo

22
casamento e isso se deu primeiramente com as humilhação do julgamento, do exame de corpo
tentativas do pai que sem sucesso recorreu à justiça. delito, para ter seu processo arquivado, considerada
Balbina, de condição social idêntica a de improcedente a acusação.
Mércia, declara que “José Pedroso não empregou Grande parte dos processos por crime de
violência nem ameaças, porque prometteu casar-se defloramento tem este mesmo fim, meninas que
com Ella offendida”12. É interessante destacar aqui o buscam reparação e acabam extremamente expostas.
que as testemunhas afirmam a respeito da menina, as Mas ficam também expostos nestes processos, nos
três testemunhas ouvidas declaram que antes de relatos de testemunhas, vítimas, réus e discursos de
saberem que ela tinha dado à luz a uma criança fora advogados, costumes e práticas sociais, que nos
do casamento todos a consideravam uma “moça ajudam a compreender as relações de gênero na
honesta”, em outras palavras, a perda da virgindade sociedade brasileira do período.
acarreta a perda da honestidade.
O casamento era entendido tanto como Referências
mantenedor da honra quanto como possibilidade de
recuperá-la. A jovem que transgredisse as normas de ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas:
conduta moral podia redimir-se no casamento, desde Mulheres da Colônia: Condição Feminina nos
que dentro deste continuasse a seguir os preceitos Conventos e Recolhimentos do Sudeste do Brasil,
impostos a uma mulher honesta, honrada. Ao casar- 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília:
se a mulher passava da vigilância paterna para a do EDUNB, 1993.
esposo e sua sexualidade continuava vinculada a
uma série de padrões morais. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra:
Ainda assim, mesmo conscientes de que o Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro
casamento não era sinal de maior liberdade, parece (1918-1940). Campinas: Editora da UNICAMP,
que a possibilidade deste movia as jovens meninas 2000.
que aparecem nos processos crime de Castro o que
reforça a idéia de que para além de uma opção CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim:
romântica - o casamento pelo amor -, para além de o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
uma opção de pais ou irmãos que desejam preservar belle époque. 2ª Edição. Campinas, SP: Editora da
a honra de filhas ou irmãs, o casamento era encarado UNICAMP, 2001.
como uma estratégia de mobilidade social para as
jovens. FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A
criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ª Edição.
Algumas considerações São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001.
José Mazzini Galetto aparece como acusado
de tentativa de homicídio13 no ano seguinte da LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora
acusação do defloramento de Lúcia. Sem ter tido Urupês, 1957.
acesso ao processo até o momento, apenas à sua
ficha de catalogação no arquivo público, não se pode PRIORE, Mary Del. Ao Sul do Corpo: Condição
afirmar se o mesmo foi considerado culpado, se sua Feminina, Maternidades e Mentalidades no Brasil
honra foi posta em dúvida, se foi preso ou Colônia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio,
considerado inocente. Mas Lucia, que recorreu à 1995.
justiça para defender sua honra teve a mesma posta à
prova e a dúvida sobre ela acarreta em marcas PRIORE, Mary Del. Mulheres no Brasil Colonial.
difíceis de serem esquecidas. 2ª Edição. São Paulo: Contexto, 2003.
Acusada de andar na rua desacompanhada
ou em má companhia, de frequentar bailes de
carnaval, de ter uma irmã prostituída, de não morar
sob a proteção paterna por ter que trabalhar como
criada para sobreviver, de roubar... Passou por toda a

12
Processo Crime – 26/05/1911 – Caixa 1910/1911. Casa
da Cultura Emília Erichsen – Arquivo Público de Castro –
PR.
13
Processo Crime – 29/09/1907 – Caixa 1905/1906. Casa
da Cultura Emília Erichsen – Arquivo Público de Castro –
PR.
23
24
CLARA NUNES
MÃE DE UM
CANTO MESTIÇO
Jefferson William Gohl
UNB / FAFIUV
O presente trabalho pretende refletir sobre as
canções interpretadas por Clara Nunes no fim da
década de 1970 e inicio dos anos 1980 mostrando a
tensão existente entre as noções de mestiçagem que
estas canções expressavam no Brasil, e a perspectiva
de uma conexão com os fatores de gênero, neste
canto que se volta sobre a África na busca de laços
de afinidade ou afetivos. Tais elementos
significavam novas imagens da África que se
apresentavam naquele contexto e a presença da
mulher na canção popular. A metodologia utilizada
se pauta pela escolha do disco de 1976, “ Canto das
três raças” que representa um marco na carreira da
artista, e segue a partir daí capturando as referências
explícitas anteriores e posteriores a África e a
Angola e suas intersecções de gênero nos discos “
Forças da Natureza”, “Guerreira” e “ Clara
Esperança”. Entendendo que estas três obras
correspondem com a fase em que a artista tem seu
trabalho amadurecido e uma autonomia de escolha
de repertório. Nestes discos em que as canções de
Paulo Cesar Pinheiro, Mauro Duarte, Eduardo Gudin
e Chico Buarque compõe uma determinada
percepção do continente africano e das
possibilidades de pertença ou identificação de
gênero que a intérprete Clara Nunes encarna e faz
viver, a um público ouvinte alargado por meio de
seu canto.
Para Paul Gilroy (2001) há uma necessidade
de refletir sobre os contra-poderes que a
musicalidade das populações pós escravas traziam a
interpenetração cultural do Atlântico, existe uma luta
contra o essencialismo de se resumir a música negra
numa expressão “autêntica” da resistência,
simultaneamente Gilroy, indica outros lugares de
vivência da experiência musical negra, que se
ancoram na liberdade de tomar emprestado,
reconstruir e rearranjar fragmentos culturais tirados
de outros contextos negros ou não. Para ele mais do
que a raça, a noção de família e as relações de
gênero são determinantes para identificar a chave do
conflito entre modernização e a constituição de uma

25
cultura política no Atlântico, quando se trata de Mario de Andrade (1983) em seus estudos
abordar os componentes culturais que lhe dão base. para uma conferência14 proferida ainda em 1933, já
observava que não se encontrava uma tradição
Meu argumento aqui é que o caráter realmente pura (ou autêntica) no eixo Rio-Bahia,
desavergonhadamente híbrido dessas que permitisse resgatar os sentidos originais seja do
culturas do Atlântico negro uso africano, seja das pajelanças amazônicas.
constantemente confunde todo
entendimento simplista (essencialista Seria interessante determinar se a parte
ou anti essencialista) da relação entre africana da pagelança nortista é uma
identidade racial e não identidade ramificação do candomblé bahiano ou antes
racial, entre a autenticidade cultural uma influência da feitiçaria antilhana. Minha
popular e a tradição cultural pop. Aqui, opinião é precária, mas é certo que propendo
a idéia da comunidade racial como uma para a segunda hipótese. Cuba influenciou
família tem sido invocada e utilizada grandemente toda a costa Atlântica da
como meio para significar a conexão e América do Sul, no século dezenove
a continuidade experiencial, que é por principalmente, tendo como causa principal
toda parte refutada pelas realidades dessa influência as navegações
profanas da vida negra em meio aos intercontinentais.(ANDRADE, 1983 p.28)
detritos da desindustrialização. Desejo
indagar se a crescente centralidade do A coleta de Mario de Andrade dos cantos de
tropo da família no interior do discurso catimbó, remete aos mitos de Jurema e segundo o
político e acadêmico negro aponta para autor no catimbó a mulher tem posição subalterna,
o surgimento de uma modalidade ao contrário do que ocorre no candomblé bahiano ou
distinta e enfaticamente pós-nacional de na macumba carioca em que elas se avultam.
essencialismo racial. O apelo à família A coleta musical etnográfica que Mario de
deve ser entendido ao mesmo tempo Andrade realizou no interior do Brasil entre os anos
como sintoma e assinatura de uma 1927-40 teve uma equivalência atlântica em Angola
perspectiva neonacionalista, que é realizada em fins da década de 1950 e ganhou uma
mais bem entendida como um publicação em 1961 do material sonoro do povo
essencialismo flexível.(GILROY, 2001 Quioco e Luena e extratos menores dos povos
p.204) Baluba, Baquete e Bena Lulua. (FOLCLORE, 1967)
A música chamada de feitiçaria, ou melhor
Hermano Vianna (2004) afirma que a dizendo, relacionada às práticas mágicas é
música brasileira atravessou inúmeras vezes o cognominada Mahamba que normalmente é
Atlântico. Nesse contexto a idéia da mestiçagem e interpretado por solista com o acompanhamento
seus conteúdos foram valorados como positivos na percussional de tambores e guizos e vestido por
construção do ritmo brasileiro. Mas a mestiçagem coro. Como a sociedade Quioca possui fortes traços
brasileira, segundo Vianna, nunca foi um fenômeno matrilineares, a importância da mulheres nas
homogêneo. Aqueles que defendiam o mestiço como elocuções se situa na execução das mucandas
um símbolo nacional tiveram de escolher aquela femininas15, na Mahamba de cura as mulheres não
interpretação que melhor se enquadravam nos possuem uma significação maior a não ser pelo fato
projetos de criação de uma identidade nacional. de boa parte dos conteúdos se fixar sobre
(VIANNA, 2004, p.99) personagens femininos.
Mas a mestiçagem dos conteúdos não se As sonoridades Afro atlânticas, possuem
revelava homogênea e a música regional até 1930 uma nota rítmica que influência de maneira
disputava nos espaços das cidades com o samba, particular os desenvolvimentos locais dos temas do
seria aclamado como a “música nacional” por Camdomblé. Essa característica leva a uma pulsação
excelência, primeiro porque é mestiço como regular com movimentos corporais regulares. E
propugnava o projeto de Freyre; e segundo por que
era proscrito como representante das classes 14
Conferência na Associação Brasileira de Música lida na
subalternas e podia daí construir um mito que ia
Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, sobre a
contra a repressão da cultura popular afro-brasileira. música de “feitiçaria” ou folclórica no Brasil
O indefinido (mestiço) tornou-se a regra da 15
Mucandas são musicas rituais relacionadas a
definição. (VIANNA, 2004) circuncisões para os meninos, que na versão feminina se
chama Uculê cantadas só por mulheres, com coro e
palmas já que o tambor é somente tocado por homens e
eles não tem entrada na mucanda feminina.
26
segundo Ferreira essas apropriações das sua obra. Conforme Dias (2008) a confluência da
características centro Africanas podem ser “moderna” MPB, o abarcamento das variedades de
extrapoladas até as expressões afro-cubanas o que estilos musicais no encontro com a afrobrasilidade,
colocaria toda a América sob este formato de na redescoberta das tradições populares mineiras, o
apropriação (FERREIRA, 2010) Mas tal análise se contato com o nordeste do Brasil e a congregação de
centra na linguagem musical formal e não nos uma equipe experiente no campo da cultura popular
explica por que no Brasil o papel da intérprete do país estabeleceram parâmetros e atributos da
feminina, como foi o caso da Clara Nunes, é que carreira musical popular desta Clara “mestiça”.
pôde realizar plenamente as apropriações das Clara Nunes direcionou sua carreira para uma MPB
músicas e pulsos rítmicos de Candomblé com seus multifacetada, desenvolvendo-a dentro de um
temários equivalentes no âmbito da canção de conceito geral de mestiçagem brasileira.
consumo. A partir daí os dois lados do Atlântico
Frydberg (2010) afirma que existem estariam conectados num conjunto de referências
performances específicas de homens e de mulheres que não só respaldavam uma leitura interna da
para as apropriações no samba, no chorinho e no hibridação de estilos brasileiros, mas em tese se
fado que excluem certos comportamentos, roupas e apoiavam numa autenticidade maior respaldada pela
formas e elocução no canto. O lugar do canto e não noção de ida as origens do material sonoro advindo
o da instrumentação, é o mais recorrente na elocução da África.
das músicas de matriz negra. Como nunca houve No disco de 1971 intitulado “Clara
uma indumentária específica para a mulher no Nunes”(MOFB 3667) as referências a África
samba, como foi a do esterotipado malandro, a aconteceram por meio da canção “ Misticismo da
apropriação possível para as mulheres são as saias África ao Brasil” em que Angola era citada na letra
rodadas, que as identificam com as baianas, e do da música e a percussão repleta da elementos
ponto de vista sonoro e performático, a elocução se rítmicos do candomblé e que compostos com
faz entre as imposições de mão do fado e com a harmonias timbrísticas de metais ilustram o lugar
pulsação rítmica do samba. mítico de Angola e das divindades do Panteão
Em todo caso uma valorização de uma Africano. E também nas entoações da “Puxada de
matriz luso africana, que tende a homogeneizar as rede do Xaréu” com chamamentos a Iemanjá.
diferenças e sugere um valor positivo como o de
Freyre para a miscigenação. Ao contrário do que se Misticismo da África ao Brasil
pode identificar nos vários trabalhos que articulam a (Mario Costa e João Galvão)
noção de miscigenação a uma identificação de base
Africana que se manifestou nos trabalhos de Clara Eu venho de Angola
Nunes por meio dos elementos de cultos do Sou rei da magia
Candomblé e da Umbanda, a identificação evidente Minha terra é muito longe
da apropriação não se realiza a partir da trajetória de Meu gongá é na Bahia
Clara Nunes na vivência das religiões africanas.16 Agô ô ô ô
Segundo o biógrafo de Clara Nunes
Fernandes (2007) as divisões entre Umbanda e Puxada de rede do Xaréu (Maria
Candomblé, os conceitos relativos as propriedades Rosita Salgado Goes)
dos orixás bem como suas afiliações para Clara
Nunes, não eram compreendidas em termos Pescador dá presentes pra ela
racionalizantes. Ser filha de Ogum com Iansã era Iemanjá dele enamorou
algo vivido de forma intuitivamente e houveram A jangada volta sem ele
inversões entre a entrada do conteúdo das religiões E os olhos da morena marejou
afro brasileiras em sua arte e na sua vida
“espiritual”. Ou seja, nem sempre Clara Nunes Os temas religiosos se confrontam com estes
possuía uma vivência nas rodas de candomblé dos conteúdos afro-brasileiros, mas são reveladores do
temas por ela cantados em shows e que iriam sincretismo religioso interiorano brasileiro. Silva
inequivocamente parar nos discos. (2008) constrói a conceituação de mestiçagem, a
Em 1971, Clara Nunes faz uma viagem a partir dos próprios depoimentos da artista após o
África, e a partir daí teria se apropriado dos show Clara mestiça, que acabou resultando no disco
elementos de africanidade que estão presentes em “ Brasil mestiço”.
16
Ver o conjunto de trabalhos publicados por A própria cantora, em reportagens sobre o
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. O canto mestiço de show, explica por que “ mestiça”: E o show
Clara Nunes. São João del-Rei. MG: UFSJ,2008
27
sou eu – Clara mestiça - é a mistura de raças A carreira de Clara Nunes deve ser
da qual eu faço parte como brasileira. Em entendida nesta conjunção, em que ao mesmo tempo
outra reportagem diz: Mestiça, por que o em que ela própria popularizava, a herança africana,
samba é essencialmente mestiço. Nas duas as escolhas na composição de seus álbuns
falas de Clara Nunes, a cantora, além de discográficos voltava atrás de forma compósita uma
afirmar sua mestiçagem, mostra como o bricolagem com outros elementos do interior do
samba está presente nesta mestiçagem e na Brasil, de forma a significar a mestiçagem dos
formação desta cultura mestiça popular elementos puros de cada região como nas origens da
brasileira. Há uma ligação entre Clara Nunes formação do próprio Brasil. Uma perspectiva
samba e mestiçagem. (SILVA 2008, p. 94) Freyriana e alinhada com as antigas perspectivas das
elites paulistas se configurava na forma inequívoca
Para Silva (2008) Clara Nunes foi uma desta abordagem um forte sentimento de
espécie de síntese da mestiçagem do povo brasileiro, conformação a respeito da multiculturalidade do
onde o elemento mestiço é revestido de um caráter país. O conteúdo crítico de valorização dos grupos
religioso intenso, desde Carmem Miranda nela em negros entendidos como subalternos associados a
que a imagem da baiana teria sido uma espécie de idéia de resistência, encontravam na África um
mediadora cultural, ponte entre os diversos universo das origens e da autenticidade de uma
universos culturais do Rio de Janeiro. Ele utiliza o cultura.
conceito de mestiçagem da mesma forma que a No ano de 1973 no disco também intitulado
própria Clara significou, e com ela boa parte dos “ Clara Nunes” (SMOFB3767) as referências diretas
artistas e da intelectualidade daquele momento a África praticamente desaparecem para um
histórico. investimento sobre temas do nordeste, como o sertão
O contexto de fins dos anos 1960, apontava , o cariri, e os sambas canções amorosos.
para os elementos da contracultura e da participação A África referenciada por Clara Nunes se
de artistas, intelectuais e estudantes nas rodas de caracteriza por ser eventual e ao sabor dos
umbanda e candomblé, acontecia de forma a acontecimentos políticos. A África da
revalorizar os elementos africanos, contra a noção de descolonização oferecia um repertório de assuntos
sincretismo que associava os santos cristãos ao culto ligados as temáticas da contracultura, como as
dos orixás do candomblé. É o fim de um processo mulheres de Mocambique que apesar de lutarem
segundo Prandi (2006) de universalização das pela independência do país eram disciplinarizadas
religiões Afro-brasileiras iniciado pela umbanda, e em suas vivências e práticas mágicas e retratadas na
em transformação no sentido de que nos anos 1970 revista “Tempo”, pela Frente de Libertação de
estaria assimilada pela sociedade e conquistando Moçambique – FRELIMO. Lá a mesma mulher que
uma autonomia capaz de começar a expurgar os se embatia pelas lutas revolucionárias, se deparava
elementos da cristandade colonizadora. com os lugares tradicionais atribuídos a elas, seja no
A noção de “tradição” brasileira e os Lobolo (o casamento), quanto nos rituais de
conceitos recorrentes de mestiçagem que dariam passagem e no curandeirismo.(SANTANA, 2006)
lugar a de autenticidade das raízes africanas, A África começa a ser tomada como
respaldada pelas idéias das esquerdas politizadas que universo de referência e a retornar na produção
por meio de suas atuações no teatro, música e artes discográfica de Clara Nunes em 1974 no disco
em geral desenvolviam uma concepção de sociedade “Clara Nunes” (SMOFB 3835) em que as músicas
que implicava uma valorização do pobre, do negro remetem a uma Bahia tradicional e africana em que
do explorado e dos marginalizados em que favela, as roupas, seus temas e estética começam a dominar,
morro e nordeste, passavam a ser cantados ou inclusive na arte do disco que contém fotos do show
representados em um projeto cultural de recuperação em que as guias de santo estão no pescoço de Clara
das origens, que remetia muito diretamente a Bahia. sobre um vestido longo.
Prandi (2006) afirma que a popularização ocorrida No disco de 1976 “O canto da três raças”
nos anos 60-70 e as transformações dos centros de que teve produção artística de Paulo Cesar Pinheiro
candomblé em agências de serviços mágicos, a seleção das canções, que tinham parcerias de
acabava confundido com suas formas estéticas, que Nelson Cavaquinho e Guilherme Brito em “ Tenha
facilmente podiam ser reproduzidas no teatro, na paciência” e com Rubem Brandão e José Ribeiro em
escola de samba, na novela – os orixás como um “ Risos e lágrimas”, canções de Vinicius de Moraes
produto de consumo legítimo. Processo este que e Chico Buarque de Holanda, Mauro Duarte que é
ocorria juntamente com este processo de apresentado por Clara na canção que nomina o disco
africanização do candomblé. “ O canto das três raças” e “Lama”. Entraram

28
músicas também de Aldair Soares, Romildo, Bide, As sonoridades e timbres que foram
Marçal filho. selecionados começam o disco por atabaques que
O teor discursivo17 deste disco é de remetem as religiões afro, como pano de fundo para
apresentação de novos compositores do velho uma saga civilizacional, que se dá na faixa título
samba, cada música vem acompanhada no encarte analisada logo abaixo. Estes ritmos e cadências se
único de letra e texto de apresentação da música e repetem em “Ê fusue” mas no resultado final as
importância do autor no cenário da canção brasileira. canções do disco se dirigem a uma uniformidade
A África neste disco se encontra diluída e somente entre o samba de partido alto e o samba canção, que
se manifesta em momentos pontuais, quando o ao final apelam até a instrumentos minimalistas para
conteúdo formal da letra remete a ela numa o universo do samba como a flauta, composta com
composição sonora temática. declamações melancólicas em “ Ai quem me dera”.
É interessante constatar como as referências Outra canção é o “ Canto das três raças”.
a religiosidade se esvaziaram neste disco e o
conteúdo temático das letras se fixa em conteúdos da O canto das três raças (XSMOFB-3915)
história, no sertão e elementos passionais das
relações entre homens e mulheres. A única Ninguém ouviu
referência a religiosidade se situa numa fala Um soluçar de dor
recortada na canção “ Ê fusuê” onde se conta uma No canto do Brasil
história de Maria Macamba em que uma fala dos Um lamento triste
espaços do Candomblé é recomposta no refrão “ Ê Sempre ecoou
fusuê, parede de barro não vai me prender”. Desde que o índio guerreiro
Evidente fala de Pombas giras e exus que não se Foi pro cativeiro
conformam aos corpos tomados nos processos de E de lá cantou
possessão, e da materialidade terrena vividos nestes
espaços. Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Fusuê (Romildo/Tominho) No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Berimbau batia Fora a luta dos Inconfidentes
Cabaça gemia Pela quebra das correntes
Moeda corria Nada adiantou
Eu queria pular... E de guerra em paz
Ah! Ah! De paz em guerra
Eu queria pular... Todo o povo dessa terra
Ah! Ah! Quando pode cantar
Escrevi meu nome num fio de arame Canta de dor
E quem quer que me chame
Vai ter que gritar ô, ô, ô, ô, ô, ô
Eh Camará, Eh Camará ô, ô, ô, ô, ô, ô
Eh fuzuê ô, ô, ô, ô, ô, ô
Parede de barro ô, ô, ô, ô, ô, ô
Não vai me prender (4x)
Maria Macamba perdeu a caçamba E ecoa noite e dia
No cateretê É ensurdecedor
Sambou noite e dia Ai, mas que agonia
Que até parecia que ia morrer O canto do trabalhador
Nasceu no quilombo Esse canto que devia
Aprendeu levar tombo Ser um canto de alegria
No canjerê Soa apenas
Como um soluçar de dor

Como se pode ver nesta letra, mestiçagem e


17
Por teor discursivo me refiro aos textos introdutórios resistência dois conceitos presentes nos discos de
que acompanhavam cada canção, bem como ao texto forma discursiva e estética de maneira intrumental a
geral do realese do disco que foi reproduzido no encarte- compor um lugar contracultural de exercício de uma
capa, e como num meta texto constróem um lugar de política nas posturas que podiam ser entendidas
destaque para cada compositor.
29
como contestatórias no conteúdo, pois apelavam benguela?
para a referência do continente Africano, mas que na Será que tá no remelexo
resignificação interna poderiam trazer elementos de E abandonou meu peixe na tigela?
um Brasil arcaico. No canto enunciado, pois é o [...]
negro que entoa, associa-se as entoações dos navios Morena de Angola que leva o
negreiros e quilombos as lutas modernas do chocalho amarrado na canela
trabalhador. Morena, bichinha danada, minha
Aqueles que haviam se formado dentro do camarada do MPLA
arcabouço ideológico dos anos 60 e 70 como
radialista Adelzon Alves ou o compositor Paulo
Cesar Pinheiro e que foram decisivos na condução
da carreira de Clara Nunes, buscavam ainda um Em “ Clara – Esperança”(EMI 062 421168)
lugar para a expressão de um povo idealizado que vai retornando ao universo carioca do samba e do
bravamente resistia contra as elites e os poderosos. sertão nordestino até que vem um disco em que a
As referências a África se adensam nos África e a nação brasileira fariam uma espécie de
discos entre 1977 “ As forças da síntese sincrética no conteúdo referente das canções
natureza”,(XSMOFB3946) 1978 “ Guerreira” (EMI, escolhidas e compostas para o disco.
062 421096) em que o mundo das religiões de Clara Nunes gravou um disco em 1982 que
matriz africana ficou numa representação inclusive se intitulou “Nação”(EMI, 062 421236). Apesar de
na estética que reproduzia linhas e pontos da anteriormente a artista ter gravado o disco “O canto
Umbanda nos encartes, e em 1979 quando foi das três raças” (XSMOFB-3915), em que a
gravado “ Brasil mestiço” (EMI 062 421207) com nacionalidade é um vetor dominante, tendo em vista
o disco lançado em 1980 em que ficou gravado a a qualificação do “povo” tal como ele era percebido
música “Morena de Angola” de Chico Buarque que pelos compositores em uma relação de constituição
foi extremamente executada, e traz uma imagem de mestiça e que evocava os elementos compósitos
mulher de acordo com os parâmetros estéticos da dessa identidade que seria incorporada pela artista.
recorrente mulata (brasileira) nesta canção tipificada Cantigas e sambas receberam tratamentos de forma a
como angolana, com adornos, comportamentos e enfatizar os perfis originais das procedências de cada
“ginga” angolana. estilo dentro das canções.
Assim o “povo” voltava ao centro da cena
Morena de Angola (Chico Buarque) da música, mas de forma a aproximar os elementos
distintivos, não pelos procedimentos de integração
Morena de Angola formalista e de depuração que a bossa nova havia
Que leva o chocalho proposto, mas pela colagem dos signos regionais-
Amarrado na canela africanos-indígenas, por meio de dois vetores
Será que ela mexe o chocalho poderosos: Uma percussão de compasso alargado
Ou chocalho é que mexe com ela? que lembra as cadências das escolas de samba; e a
[...] elevação do canto da artista a oitavas maiores que o
Será que ela tá na cozinha encaminhamento de toda a melodia.
Guizando a galinha à cabidela? Soares (2002) analisou musicalmente a
Será que esqueceu da galinha canção “Nação” e identificou uma apropriação de
E ficou batucando na panela? elementos sonoros e temáticos presentes em
Será que no meio da mata “Aquarela do Brasil”, mas articulada as dimensões
Na moita, morena ainda chocalha? problemáticas que as imagens de Aquarela sugerem.
Será que ela não fica afoita Por meio dos evocativos nas introduções e
Pra dançar na chama da batalha? fechamentos. Por meio da letra de remete ao arco
Morena de Angola que leva Iris (aquarela) e sede dos rios que remete as fontes
O chocalho amarrado na canela murmurantes, em suma; está dialogando de forma
[...] dialética com seus temas e propondo respostas que
Será que quando vai pra cama não nega as tensões do presente, nem entre os
Morena se esquece dos chocalhos? sujeitos.
Será que namora fazendo bochincho Segundo Brügger (2008) de modo geral O
Com seus penduricalhos? Brasil mestiço de Clara é essencialmente popular,
[...] com suas músicas e suas próprias manifestações
Será que ela tá caprichando culturais, com seus aspectos naturais e um cotidiano
No peixe que eu trouxe de

30
plural. Idéia constante desde 1970 no trabalho de
Clara Nunes. Nação (1982, DISCO:062421236 LADO A,
Nessa canção composta por Aldir Blanc, FONOGRAMA: 61.665.185)
João Bosco e Paulo Emilio, gostaria de tentar uma
explicação diferente da que realizou Brügger,
embora complementar a esta. As imagens evocadas Dorival Caymmi falou pra Oxum:
que nominam a entidade Jêje dos Iorubás Com Silas estou em boa companhia.
incorporada pela umbanda que atende pelo nome de O céu abraça a terra
Oxum-Maré realmente são unidos em sua diferença Deságua o rio na Bahia
como ela sugere, mas não se limitam a esta
percepção. Brügger afirmou: Se entendermos que existem três invocações
durante todo o percurso da música, veremos que a
O verde amarelo da bandeira brasileira complexidade pluralista na qual foi construída a
são as cores de Oxu-maré, que é homem, canção opera numa ordem de hierarquias que são
durante metade do ano, e mulher, na circulares e se relacionam intimamente com uma
outra metade. Mas ele não sintetiza os dinâmica de polarização dos gêneros.
dois sexos. Pelo contrário, une-os em sua A primeira invocação a Oxum institui o
diferença; assim como ocorre ao arco- mundo e a hierarquia do campo musical sobre o
iris, que apresenta misturas ou zonas de espiritual, e os grandes movimentos da cultura de
intersecção entre suas cores, mas não as paternidade do samba e sua circulação – o deságuar
anula em suas especificidades: as sete do Rio-Bahia. O chamado de Jêje (candomblé
estão nele presentes. (BRÜGGER, 2008. nação) neste momento da canção inaugura um
p. 145) campo feminino de significações.

Com isso segundo Brügger, Clara opera uma Jê Je


fusão complexa ou integral que nega o sentido Minha sede é dos rios
concordante com as idéias da mestiçagem que A minha cor é o arco-iris
vinham desde o século XIX e que encontram em Minha fome é tanta
Gilberto Freyre sua associação positiva, de forma a Planta florimã da bandeira
abrandar o escravismo e fundar uma nação, A minha sina é verdiamarela
enfatizando a harmonia e não o conflito. Feito a bananeira
Observando-se somente os elementos formais da
letra reconhece-se que a interpretação é correta, mas Ouro cobre o espelho esmeralda
gostaria de propor outros elementos em No berço esplêndido
consideração para analisar esta canção. A floresta em calda
Começemos pela definição do eu poético: Manjedoura d‟alma
De forma objetiva nitidamente é estabelecida uma Labarágua sete quedas em chama
elocução em terceira pessoa. Esta definição do eu Cobra de ferro oxum-maré:
poético se faz presente quando da nominação do Homem e mulher na cama
sujeito da canção, por meio da “entidade musical”
Dorival Caymmi, que numa espécie de sentença- A segunda invocação é quando Oxum-maré
veredito, fala a Oxum “que com Silas se está em imageticamente como cobra de ferro equipara os
boa companhia”. Tal ato simbólico enunciado logo sexos, suas hierarquias e em tese neutraliza as
no princípio da canção particulariza a própria artista diferenças como sugeriu Brügger.
que não esta encarnando nenhum eu poético Jê Je
particular e sim a própria “Nação”. Tuas asas de pomba
Na canção também é realizada uma Presas nas costas
cosmogonia que entre céu e a terra, e uma Com mel e dendê
distribuição dos lugares da cultura nesta criação. O Aguentam por um fio
deságuar do Rio da Bahia ilustrado na canção, seria
uma contraprova da volta do samba as raízes Sofrem
baianas. Criação do mundo que por esta lógica se O bafio da fera
confunde com a constituição da nação brasileira e da O bombardeio de Caramuru
nação Africana Iorubá invocada por meio de seu A sanha de anhanguera
candomblé. A criação desta cosmogonia se pauta por
estas invocações. Jê Je

31
Tua boca do lixo não se limitam a esta parte, instaurando o sentido
Escarra o sangue cíclico proposto pela letra. O atos de violência e
De outra hemoptise natureza estão arranjadas de forma a sugerir que o
No canal do mangue movimento de destruição se dão pelos apetites, e não
ocultam mais no passado histórico as chagas
A segunda parte da canção que se segue violentas, como a escravidão e a ocupação territorial
após a segunda invocação inaugura um campo de que nos fundaram realmente enquanto nação. A
polarizações masculinas. Esta polarização se dá perspectiva deste eu poético que encarna a nação é
somente após a queda física da entidade Oxum-maré em última análise o que permite Clara retomar o
representada por meio de um Ícaro metafórico que povo como sujeito, que diferente das elocuções das
com suas mal arranjadas asas realiza também uma canções de protesto que falavam em nome do povo,
queda do idealismo e dos valores maiores presentes seja nas intersecções com a bossa nova realizadas
na metade inicial da canção.Valores e ideais que por Nara Leão, seja no aprendizado dos festivais,
poderiam levar alto as pretensões da sugerida nação- que como um laboratório de testes do nacional
entidade, mas que após determinados sofrimentos pretenderam representar um povo, jamais encarná-
inflingidos a canção sugere uma nação que se lo, ou ser por ele possuído, como Clara desejou.
deteriora em metáforas vicerais da sociedade. O A seleção do repertório presente neste disco
sofrimento a que é submetida a entidade-nação é “ Nação” apela ainda a boleros como “novo amor”
ilustrado por elementos como o bafio da terra, os de Chico Buarque, e existem inúmeros signos de
bombardeios de Caramuru e a sanha de Anhanguera. americanização que anteriormente foram vistos em
Elementos essencialmente masculinos e ligados a Carmem Miranda. Este disco que pelo seu título
uma atribuição de paternidade portuguesa. deveria ser uma proposta a brasilidade, mantém
arraigados formas de elocução saudosistas que
O uirapuru das cinzas chama: remetem sempre aos tempos do rádio ao exercício
Rebenta louça Oxum-maré do bel canto e uma dramatização que emprestaria
Dança em teu mar de lama alma e paixão às músicas compostas para “elas” as
interprétes femininas.
A terceira invocação se dá quando o Concordando com Paul Gilroy que vê no
uirapuru tal qual fênix invoca novamente Oxum- mundo Atlântico, recorrências de ambos os lados do
Marê, para dançar no mar de lama da nação-ego, oceano em que os traços culturais são perpassados
para recomeçar o ciclo que dependem da destruição entre pertenças que remetem a outras clivagens
para retornar sempre ao ponto onde de novo a como o gênero, a classe ou as etnicidades, a
“nação” é encarnada e possui todos os atributos que percepção da mestiçagem cultural aqui possível, é só
lhe são próprios. Estes atributos são seus conflitos, entendida no caso da música que ficou gravada por
seus pares de opostos e imagens com referências Clara Nunes, pela pertença de gênero, que se reforça
antigas reapropriadas, que funcionam como uma pela representação marcadamente feminina. A
metáfora ao amor carnal que se pode ter com a importância das mulheres dentro do universo do
pátria. Estas elocuções só funcionam totalmente ou candomblé no Brasil, mas não na África, e como
efetivamente, numa voz feminina como a de Clara intérprete no universo da canção. Esta pertença
Nunes, que possa polarizar dinamicamente a aliada a uma construção da imagem de nação que se
possessão (intérprete - mulher- nação) e sugerir harmoniza num canto único entre as religiões
identificações diferentes a cada gênero representado africanas e seus sons, nas festas do interior
que se comprazem na fruição da canção. brasileiro, e na toada de um samba vinculado a
Na primeira parte a canção Clara Nunes “tradição”.
encarna a nação feminina, na segunda ela a Esta “Nação” ideal em Clara Nunes, se
representa masculina, para ao fim da canção de encontra na imagem da “mãe” que chama a todas as
novo, se fixar sobre os elementos de instituição da raças e credos numa comunhão estetizada da canção,
cultura da suposta “nação”. que está de acordo com as tópicas de Gilberto
A sonoridade da canção e os movimentos Freyre, em uma atualização contracultural que nos
musicais que a acompanham, com orquestrações anos de 1970-80 o conceito de mestiçagem foi
pontuais do samba quase “puro” na primeira parte, resignificado pela intelectualidade como ato de
quando a “nação” é encarnada, as orquestrações que resistência, que se encontrava do outro lado do
remetem a “Aquarela do Brasil” seguindo a melodia Atlântico, como num espelho. Na Angola africana
nas definições imagéticas da segunda parte, até que um respaldo e lugar de legitimidade frente a um
oxum maré opere todo seu ciclo, construindo o Estado cada vez menos interferente na dinâmica da
sentido de oposição indicado por Brügger, mas que produção dos conteúdos culturais.

32
II Seminário nacional – Gênero e práticas culturais.
Discografia Cultura, leituras e representações. 2009
MOORMAN, Marissa. Dueling bands and good
Clara Nunes.MOFB. 3667. Odeon, 1971 girls: gender music and a nation in Luanda‟s
Clara Nunes.SMOFB3767. Odeon, 1973 Musseques. 1961-1974. In: MOORMAN, Marissa,
Clara Nunes.SMOFB3835. Odeon, 1974 Intonations: a social history of music and nation in
Clara Nunes. O canto das três raças . XSMOFB- Luanda, Angola, from 1945 to recent times. Ohio
3915. EMI, 1976 university press: Athens, 2008 a
Clara Nunes . As forças da natureza.XSMOFB3946. MOORMAN, Marissa. Putting on a pano and
EMI, 1977 dancing like Our Gradparents: Nation and Dress in
Clara Nunes .Guerrreira .062 421096. EMI, 1978 late colonial Luanda. In: MOORMAN, Marissa,
Clara Nunes .Esperança. 062 421168. EMI, 1979 Intonations: a social history of music and nation in
Clara Nunes .Brasil mestiço. 062 421207. EMI, Luanda, Angola, from 1945 to recent times. Ohio
1980 university press: Athens, 2008 b
Clara Nunes .Nação.062 421236. EMI, 1982 PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das
religiões Afro-Brasileiras: Sincretismo,
Bibliografia branqueamento, Africanização.In: CAROSO,
Carlos. BACELAR, Jeferson. Faces da Tradição
ANDRADE, Mario. Música de feitiçaria no Brasil. afro-brasileira, sincretismo, reafricanização, práticas
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia: Brasília: INL terapêuticas, etnobotânica e comida. 2ed Rio de
Fundação Nacional Pró-Memória, 1983 janeiro: Pallas; Salvador, BA: CEAO, 2006
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. O canto mestiço SANTANA, Jacimara Souza. Mulheres e Notícias:
de Clara Nunes. São João del-Rei. MG: UFSJ,2008 os discursos sobre as mulheres de Moçambique na
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: Estratégias revista Tempo (1975-1985), Universidade Federal
para entrar e sair da modernidade. São Paulo: da Bahia. [tese de mestrado] 2006
EDUSP, 2000 VIANNA, Hermano. O mistério do samba.Rio de
DIAS, Juliana Braz. Mornas e coladeiras de Cabo Janeiro: Jorge Zahar, Ed UFRJ, 2004
verde: versões musicais de uma nação. Universidade
de Brasília – UNB: Brasília[tese de doutorado em
antropologia], 2004
FERNANDES, Vagner.Clara Nunes: Guerreira da
Utopia.Rio de Janeiro: Ediouro, 2007
FERREIRA, Luis. La musica afrouruguaya de
tambores em La perspectiva cultural afro-atlântica.
Disponível em
<<http://WWW.unesco.org.uy/shs/fileadmin/templat
es/shs/archivos/anuario
2001/3- ferreira.pdf >>Acesso em 15 de julho de
2010 as 17:00 h
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço.São
Paulo: Companhia das letras, 2001
FOLCLORE musical de Angola. Diamang – Dundo
–Angola. Museu do Dundo: Lisboa, 1967. v.2
(coleção de fitas magnéticas e discos)
FRYDBERG, Marina Bay. Entre os instrumentistas
e as cantoras: o lugar no feminino e do masculino no
samba, no choro e no fado.
Florianópolis.Universidade Federal de Santa
Catarina –UFSC: Fazendo Genero 09, 2010
(comunicação oral)
GILROY, Paul. Atlântico negro: Modernidade e
dupla consciência. São Paulo: Ed 34; Rio de Janeiro:
UCAM, Centro de estudos afro asiáticos, 2001
LIMA, Daniel Torquato Fonseca de; SILVA,Paula
Maria Fernandes da. O canto às orixás: a presença
feminina da religiosidade afrobrasileira nas canções.

33
34
O IMPÉRIO INCA
NAS CRÔNICAS DE
GARCILASO DE LA
VEGA
(1609-1617)
Michel Kobelinski
UNESPAR18
Adelir de Farias Batista
UNESPAR19
A expansão da civilização inca no século XV foi
notável. Em menos de cem anos o Tawantinsuyo se
expandiu pelo Sul da Colômbia, Equador, Peru,
Bolívia e em parte do Chile e da Argentina,
formando o império mais extenso da América pré-
hispânica. Abrangia regiões distintas (suyos) entre
desertos, montanhosas e mesmo uma porção da
floresta amazônica. No início do século XVI os
espanhóis dominaram os Andes e se impressionaram
com aquela sociedade. Não se tratava apenas da
organização social, econômica, política e cultural,
mas também da arquitetura, astronomia, matemática,
metalurgia, escultura, sofisticados sistemas de
calçamentos, esgotos, aquedutos e irrigação.
Os relatos coloniais e os resquícios
arqueológicos evidenciam que os incas dominaram
outras culturas. Estas “miscelâneas” culturais
chamam a atenção dos historiadores, levando-os a
propor questões fundamentais sobre estes grupos.
Como construíram um império grandioso e
sofisticado? Como as composições culturais (antigas
e novas) emularam comportamentos? O que resultou
deste processo? Uma resposta possível pode ser
averiguada em um dos documentos mais
interessantes sobre os incas, que pela natureza e
especificidade se tornou clássico. Trata-se de
Comentários Reales (C.R.), publicado entre 1609 e
1617, respectivamente. Seu autor, Gómez Soárez de

18
Professor do Colegiado de História da Universidade
Estadual do Paraná (Unespar – Campus de União da
Vitória); Doutor em história pela Universidade Estadual
Paulista – UNESP/Assis- SP.
19
Aluno do quarto ano de graduação do Curso de História
da UNESPAR.
35
Figueroa (Figura 1), era filho de Garcilaso de la colônia que se apresentava como realidade possível
Vega y Vargas (nobre espanhol de Estremadura), à escrita. Pelo caráter pendular sofreu restrições da
que se casou com a princesa inca Chimpu Oclla coroa espanhola por se acreditar que poderia
(Isabel Soárez Oclla, neta de Atahualpa), durante a “inspirar revoluções regionais” (GUMBRECHT,
conquista espanhola. A educação no Peru e na 1998, p. 114)
Espanha o incentivou a pensar a sua condição e a Para alguns estudiosos pós-coloniais
das Américas. A convergência ao cristianismo, a provenientes do campo literário, interessados pelas
adoção do nome paterno e o trânsito entre estas duas vozes da resistência, construções híbridas como a de
culturas - a inca e a espanhola - possibilitou uma Goméz Suárez de Figueroa são vistas com reserva.
escrita que, apesar de ambígua, trazia lembranças A crítica é válida embora não justifique o abandono
esparsas de costumes, crenças e ritos da cultura inca. do autor em razão do tipo de leitura e incorporações
Seu maior problema é a imprecisão, uma vez que o que realizou. Apesar de considerar as identidades
sujeito narrador percebeu os conflitos decorrentes construídas para o Novo Mundo e de afirmar que o
das ambivalências inter e intraculturais e procurou se Inca e “Guaman Poma eram nativos educados nos
adaptar a elas construindo uma história híbrida. Andes que viveram a maior parte de suas vidas na
Nosso propósito neste texto é discutir as relações Espanha” (MINSTER, 2006, p. 288), valorizou-se
entre o império inca e a colonização espanhola a um em detrimento de outro. É preciso enfatizar que
partir do posicionamento deste autor diante do el Inca reivindicou uma escrita da história indígena e
processo de conexão histórica e cultural entre a reconheceu suas matrizes étnicas ao considerar-se
Europa e o Peru. O contato com este tipo de material meio índio, meio europeu. A formação e a
é uma rara oportunidade para entendermos as mestiçagem significavam para ele a oportunidade
percepções do autor para as relações de proximidade para criticar a limpeza de sangue pretendida pelos
e distanciamento na construção identitária dos incas espanhóis e defender “uma nobreza selvagem”
e de si mesmo, além de possibilitar uma (RABASA, 1994, p. 139-140).
compreensão do mundo renascentista. Os mitos radicados nos textos garcilasianos
não podiam tomar uma direção que não fosse a de
preservar as raízes culturais. E aí se estabelece um
pacto com os leitores pelo uso do depoimento
familiar como forma de dar credibilidade às
informações e consagrar idéias. As interrogações
dirigidas aos familiares foram fundamentais para
tocar o coração do leitor porque eram curiosas e
revolviam um passado mítico: “quem criou tudo?
Quem foi o primeiro inca? Que origem teve sua
linhagem? Com que gente e armas conquistaram este
grande império?” (C. R., 1723, 1/XL, p. 14). A
narrativa também foi reforçada pelo cronista Pedro
de Cieza, que também trazia à tona um lodo
memorial de origem: “[...] tendo piedade e
Figura 1 – F. G. Gamara, Garcilaso de la Vega; compaixão [...] enviou dos céus um filho e uma filha
Biblioteca de la Mezquita, Catedral de Córdoba, [...] para que doutrinassem no conhecimento do pai
Espanha. sol e o adorassem, tendo-o por seu deus”, seguindo
as “[...] leis de viver pela razão e civilidade” (C.R.
DESCENDESTES DA DINASTIA SOLAR 1723, 1/XL, p. 14). A origem do Tawantinsuyo está
ligada ao mito de Manco Cápac e de Mama Ocllo
Os volumes da crônica del Inca (1609 e (Figura 2/3). Estes deuses, representados pelo sol e
1617, volume póstumo) detalham a origem mítica pela lua, compartilhavam poder, sacralidade e
dos reis, sucessões dinásticas, idolatrias, leis, funções sociais, visando manter laços consangüíneos
governo, as conquistas da sociedade e a colonização, para formar uma sociedade e garantir-lhes
bem como os conflitos entre pizaristas e almagrinos continuidade através da fertilidade e da fecundidade
pela partilha do espólio da conquista, entre 1533 e da terra. “[...] Somente os incas tinham essa prática
1580. O texto é marcado pela escrita obscura, incomum de união entre irmãos e irmãs, já que
auxiliada constantemente pelas idéias e textos de cosmogonicamente inspirado na idéia de que o deus
cronistas, padres e parentes. É evidente a tentativa Sol e a deusa Lua, enquanto irmãos, também
de reconstituição de um passado marcado pela formavam um par conjugal” (OLIVEIRA, 2004,
transformação substancial nos modos de vida na p.19).

36
É possível entender que a chegada dos outros o ar por que lhes permitia viverem, outros o
espanhóis e a imagem referencial dos incas pareciam fogo que os acalentava e lhes permitia comer [...],
confirmar um retorno aos mitos, isto é, a encarnação outros a cordilheira de Serra Nevada, pela altura,
daquela divindade travestida na figura dos grandiosidade e seus rios; outros o milho que era o
conquistadores. Eles foram vistos como heróis alimento comum [...]” (C. R., 1723, X/1, p. 10). A
epônimos, reorganizadores da sociedade solar ao tendência da crônica garcilasiana foi a de amenizar a
repetirem “de maneira deliberada estes ou aqueles violência pela imagem positiva de uma honraria
atos praticados ab origine por deuses, heróis ou ancestral. Nas Américas as crenças autóctones eram
ancestrais” (ELIADE, 1992, p.13). variadas. As mais rústicas tinham como objeto de
adoração os fenômenos naturais e os corpos celestes,
e as mais sofisticadas possuíam templos, calendários
e sacerdotes, “algumas tornaram-se famosas entre os
espanhóis por incluírem elementos semelhantes aos
do Cristianismo, especialmente o batismo, a
confissão, o casamento e o símbolo da cruz”
(GIBSON, 1999, p. 284). As regras da dinastia
solar previam a devoção e solidariedade coletiva em
ações como as de lavrar a terra, cultivar plantas,
criar animais e organizar a sociedade, naquilo que os
reis incas denominaram Tawantinsuyo ou “[...] as
Figura 2/3 - Manco Cápac e Mama Huaco, quatro partes do céu: oriente, poente, norte e a parte
fundadores da dinastia solar. In: Felipe Guaman mediana [...] e no centro a cidade de Cuzco [...] que
Poma de Yala, Primer nueva corónica y buen significa umbigo [...] porque todo o Peru é longo e
gobierno, 1615, p.86;120, respectivamente. estreito como o corpo humano [...]” (C. R., 1723,
XI/1, p. 37). Na formação do Tawantinsuyo a
No imaginário inca os espanhóis vistos na organização de um séquito em torno da divindade
linha do horizonte marítimo pareciam ter descido do solar não excluía formas de veneração secundárias,
céu, e isto se confirmava com as armas divinas que pois aquelas sociedades eram animistas.
possuíam, tais como trovões (artilharia - hatun As crônicas Garcilasianas documentaram
yllapa) e relâmpagos (arcabuzes - yllapa), sendo bem os conflitos pré-existentes à dominação
inevitável se passarem por deuses solares. Os espanhola em razão de prélios familiares. Nelas
espanhóis, por sua vez os chamaram de incas, pois o podemos observar o ódio recalcado entre indivíduos
termo significava que eram filhos da divindade solar que emerge da percepção do autor e da própria
(C. R. 1722, 2/XL, p. 54). Mas Garcilaso de la realidade social dos incas. O ressentimento deve ser
Vega, influenciado por duas culturas mesclou o que entendido não apenas como um fenômeno histórico,
podia. Ele não só dedicou sua obra à Virgem Maria, mas também como manifestações inconscientes de
como também mencionou a oração de Frei Valverde, angústias suprimidas (KOBELINSKI, 2008, p. 16).
que evocava o livro sagrado de Gênesis e a linhagem Neste sentido, um dos exemplos mais marcantes
adâmica: “[...] Deus, no princípio do mundo criou o ocorreu em 1532 quando os espanhóis atingiram o
homem e lhe deu o espírito da vida, fazendo-nos sua centro de poder do império inca. Não enfrentaram
imagem e semelhança [...]; deste primeiro homem, a resistência significativa em seu caminho, mesmo
quem Deus chamou de Adão, descendem todos os diante de milhares de guerreiros. Apesar dos
homens [...] e dele tomamos no princípio, a origem estranhamentos manifestou-se o rancor entre os
de nossa natureza” (C. R., 1722, 2/XXII, p. 27). índios e Atahualpa: “[...] os índios disseram que o
Gómez Soárez de Figueroa unificou os mitos de deus sol vingou o traidor que matou seus filhos e
origem e historicizou o que até então ficava no destruiu o seu sangue e que tinha enviado os
campo do imaginário. E o argumento em torno da espanhóis para fazerem justiça [...] e que com sua
soberania divina dos incas era decorrente dos modos morte obedeceram aos espanhóis como a homens
de vida de outros povos; viviam “como feras e enviados pelo deus sol e não lhes resistiram [...]” (C.
animais brutos, sem religião, leis, casa ou cultivos” R., 1723, XXIII/1, p. 248). A cena de guerra na
(C. R., 1723, XV/1, p. 15). A articulação entre os Praça de Cajamarca onde armas de fogo, cavalos e
povos andinos se dava pela “iluminação” provinda cães provocaram pânico, a morte de seis mil índios,
dos representantes da divindade ou dinastia solar. A e o enforcamento seguido da incineração de
veneração ao Sol substituía a variedade de deuses Atahualpa caracteriza a violência, a ganância pelo
que os povos subjugados possuíam, como por ouro, e mesmo a deturpação dos ideais cristãos
exemplo, “[...] a terra, porque lhes dava frutos, (FAVRE, 2004, p. 87).

37
A adesão à sociedade dos vencedores, a p. 26) ao tratar do mito do eterno retorno caracteriza
substituição de antigas crenças por instituições o sagrado como uma estrutura da consciência
cristãs e a brutalidade da exploração colonial humana e, portanto calcada dentro de uma realidade
transformou a existência das populações americanas, cultural: “seja qual for o tipo de ritual, [...] ele se
a ponto de “[...] não podemos ignorar o outro desenvolve não só num espaço consagrado, [...] mas
aspecto dessa derrocada: a aculturação progressiva também num „tempo sagrado‟ [...], ou seja, quando o
dos nobres cristianizados no âmbito dos pueblos ritual foi celebrado pela primeira vez por um deus,
coloniais, em torno das igrejas e dos conventos e sob um ancestral, ou um herói”. E se os mitos permitiam
jugo de um clero cada vez mais numeroso diante de aos incas um constante retorno ao tempo
fiéis em vias de extinção” (GRUZINSKI, 2003, p. sacralizado, suas percepções de tempo e de espaço
219). O desfecho trágico de Atahualpa remonta o se chocaram com a dos europeus. É importante
passado mitológico, à memória e aos confrontos em lembrar que os conquistadores se contrapunham às
torno da soberania. Esta por sua vez se traduz na populações autóctones baseando-se numa tradição
realidade da violência e da tragédia, como a escrita, fundamentada na tradição religiosa e nas
denunciada por Bartolomé de Las Casas (1996, p. novas formas de comunicação advindas da imprensa
106) quando da primeira sentença de Athaualpa: e de mudanças jurídicas (GUMBRECHT, 1998,
“esse rei, tendo ouvido sua sentença, disse: por que p.112).
me queimais? Que foi que vos fiz? Não prometestes O colapso do tempo e da sociedade incaica foi
dar-me liberdade se vos desse ouro? Não vos dei mediado pelas ações dos seres e pelo conjunto de
mais do que havia prometido?”. E de fato a situações complexas. A proposição de Shalins
violência nas Américas, iniciada na porção insular (1990, p. 111) sobre poder político e soberania é
da América Central trazia junto consigo referenciais interessante e digna de nota, pois permite estabelecer
míticos: “uma ilha [...] que se chama Pugna, mui relações entre a contingência dos eventos e a
povoada e agradável, o Senhor com o povo recebeu recorrência às estruturas sociais, políticas e culturais.
os espanhóis como se fossem anjos descidos do céu O que se percebe nos contatos entre os incas e
[...], a recompensa que tiveram foi que os espanhóis espanhóis foi a combinação e recombinação de
passaram tudo a fio de espada e fizeram grande mitos e realidades que, apesar de distintas,
quantidade de escravos” (LAS CASAS, 1996, p. convergem estranhamente. A chegada dos espanhóis
107). E se o poder se voltou contra quem o (assim como a chegada de James Cook à polinésia,
promovia, não podemos negar a crueldade e as em 1778 - interpretado como o deus Lono da
diversas formas de dominação, violentas ou fertilidade) significava a metáfora da realidade
aparentemente brandas. As razões para a dominação mítica e a reestruturação no sistema de poder: “é um
dos incas era sua classificação como impuros, sem fato notavelmente comum que os grandes chefes e
preceitos e religião; o resultado foi o reis da sociedade política não fazem parte da
estabelecimento de uma nova forma de poder que população que governam. [...] trata-se de estranhos
substituía a divindade solar pela cristã. [...]”. Deste modo, a constatação da soberania
O mito primordial não foi erodido estrangeira e de poderes sobrenaturais dos
completamente das culturas andinas porque ainda governantes pode ser identificada entre as
subsistiam relatos memoriais e subjetivações populações da polinésia e dos Andes, cuja principal
profundas, além da materialização deste ideário nas característica era a uniformização dos
crônicas coloniais. Favre (2004), por exemplo, procedimentos.
evidencia a força descomunal deste centro As soberanias são transitórias porque
gravitacional enraizada no imaginário. Quando existem processos internos e externos de luta e
considerou o entronamento mítico de Manco Capaq dominação onde soberanos digladiam entre si, da
- durante a gênese dos incas no vale de Cuzco, mesma maneira que os demais estratos sociais. A
século XII – percebeu que a realidade se vinculava formação do Tawantinsuyo, por exemplo, se
às artificializações sociais. Havia uma tradição oral, consolidou no século XV com Capac Yupanqui,
pautada na realidade e também amalgamada na Inca Roca, Yahuar Huacac por meio de imposição
lenda que não podia ser ignorada. No século XVI tributária, religiosa e política sobre as mais diversas
elas estavam circunscritas a um controle mais eficaz culturas. A dominação externa ou usurpação política
dos sujeitos pela imprensa e pela burocracia. Isto é se assentava em soberanos incas que personificavam
significativo por vários motivos. Vejamos alguns a divindade solar e lunar. Porém, esta dominação
deles. não era completa; simultaneamente coexistiam a
Constata-se que a soberania divina foi manutenção dos costumes das populações
amplamente disseminada ao longo da história entre conquistadas junto com as cominações tributária,
várias populações ao redor do mundo. Eliade (1991, lingüística, política e religiosa.

38
Na colonização espanhola a dominação reduzida, seu lugar foi ocupado do lado espanhol por
religiosa procurou mudar as condutas politeístas e uma força ou ameaça de força suficiente para obter a
animistas das populações americanas ao destruir subordinação equivalente da parte dos índios”
templos, ídolos e sacrifícios, ao mesmo tempo em (GIBSON, 1999, p. 273).
que possibilitava, em teoria, uma cristianização não
violenta. Destarte, a divindade cristã significava um
acréscimo aos seus mitos, e mesmo a “crucificação”
não deixava de ser, na ótica ameríndia, uma forma
de rito sacrificial. O esforço missionário procurou
extirpar o paganismo e as classes sacerdotais, e
posteriormente concentrava-se na formação de
confrarias ameríndias e na catequização dos filhos
dos índios de alta classe, os quais seriam os futuros
líderes comunitários. Não obstante, prevaleceu o
sincretismo religioso, práticas pagãs veladas e um
indianismo que desconfiava dos interesses e da
sociedade implantada (GIBSON, 1999). Ao
identificarmos Garcilaso de la Vega como
personagem mestiça podemos pensar nas histórias
que conectam saberes, comportamentos, imposições
e resistências (SUBRAHMANYAM, 1997, p. 745). Figura 4 – H. G. del Perú, 1722; obra baseada em
depoimentos orais e fontes literárias.
ANTAGÔNISMOS E
COMPLEMENTARIEDADES A expansão do Tawantinsuyo (1438) na
Dinastia Hanan Cusco (Pachacútec) que se estendeu
No final dos anos noventa os estudos pelo altiplano através da “integração solidária” foi
hispano-americanos reavaliaram a dominação complexo e levou mais de noventa anos para
espanhola, questionando os pressupostos advindos estabelecer princípios comuns. Entre eles, os
da arqueologia, da história e da etnografia. Até então costumes, a língua, a religião, um poder centralizado
estes conhecimentos fragmentários e dispersos das e práticas autônomas. A fase expansionista resulta
populações latino-americanas reforçavam apenas o da aglutinação de culturas diferenciais e de espaços
aspecto negativo dos conquistadores (GIBSON, específicos de vivência de várias populações, que até
1999, p. 270-71). É evidente que existiam processos então estavam isoladas: “o grande papel dos Incas
de resistência diante da conquista, que eram mais consistiu em dominar, os reduzidos grupos tribais
relativas que absolutas. Várias populações possuidores de uma civilização material adiantada,
permaneceram „inalteradas‟, além do fato de a porém fechados em seus vales costeiros, como em
violência não ser exclusividade da cultura espanhola. compartimentos estanques” (LEVENE, 1964, p.
A gênese das distorções evidencia construções 117).
discursivas antagônicas, tanto para os espanhóis, Em termos políticos, a dominação espanhola
quanto para os indígenas em razão dos processos de permitiu a restituição de poderes às comunidades
composição e decomposição da cultura: “[...] uns subordinadas aos incas. Nas Américas, em geral, o
assumiram uma postura contrária e denegriram a controle espanhol se dava através da vila principal e
imagem desse povo, e outros procuraram a antiga estrutura de poder foi substituída pelos vice-
compreender e valorizar essas culturas” reis, corregidores e tenientes. Aliás, havia
(PORTUGAL, 2009, p. 45). combinações de poder, antes e durante a dominação
Considerando-se o tema em si, na espanhola. A indicação de governantes de fachada
perspectiva apontada anteriormente, os limites das para o Peru - Túpac Hualpa (1533), Manco Inca
antigas e das novas soberanias - e mesmo o controle (1535-1537), Inca de Vilcabamba (1537-1544),
social exercido sobre populações dominadas - Paullu Inca (1537-1549), Sayri Túpac Inca (1545-
estavam enraizadas não só nas relações de poder, 1558), entre outros - visava estabelecer vinculações
mas também na assimilação e refutação de valores políticas entre a vila principal (cabecera) e a vila
culturais. Considera-se o fato de que inicialmente as (pueblo): “[...] os pueblos menores que estavam
conquistas espanholas eram efetivas contra dentro da jurisdição de uma cabecera eram seus
“entidades unificadas” e inversas nas comunidades sujetos, deviam lealdade àquela cabecera e eram
menos organizadas. Nas regiões periféricas do governados por ela [...]” (GIBSON, 1999, p. 277).
império inca “a dominação não ocorreu ou foi muito A fragilidade destas soberanias nos faz
pensar nos contornos das formas de poder presentes
39
nas crônicas coloniais, nas redes de conexões entre a algumas vozes, também deixará de sê-la, pois a
Espanha e o Peru. E se Comentarios Reales identidade ou distinção de uma linguagem não se faz
constituiu-se de fontes literárias e, sobretudo de ao acaso, [...]”. Igualmente, o termo imperium,
fontes orais, nas quais o autor é seu principal tomado por Garcilaso dos clássicos da Antiguidade,
protagonista (Figura 4), destaque-se que ao longo ou mesmo por intermédio de outros interlocutores é
dela alguns termos parecem estar fora de lugar, além recorrente (aparece centenas de vezes) e se associa
daquelas idéias que foram reinventadas, como por aos conceitos de “poder soberano”, “ordem”,
exemplo, a inexistência da violência por parte dos “mando”, “autoridade”, “supremo poder”,
incas. Vários trechos do discurso del Inca “hegemonia”, “soberania” e “domínio”, bem como a
apresentam os termos vassalagem e república, os obediência dos dominados (FERREIRA, 1988, p.
quais implicam numa dominação lingüística imposta 571). Trata-se, portanto de hegemonias mescladas
à América hispânica. Sua aplicação era decorrente cujas nuances produzem o novo em várias
de um novo momento na vida européia. No contato dimensões e espaços relacionais, as quais permitem
com os leitores el Inca alertou para a necessidade de ao historiador reconsiderar o papel das personagens
se escrever sobre as repúblicas do Novo Mundo e, históricas nestes processos.
subjetivamente demonstrava o profundo desejo de As crônicas devem então ser analisadas com
adentrar o mundo das letras e prosperar cautela para que possamos identificar as
financeiramente. Esse desejo se iniciou com os “miscigenações” estabelecidas e sua densidade
estudos desde os primeiros anos na colônia até a sua dentro dos acontecimentos históricos. Veja-se, por
formação integral na metrópole. Por este motivo foi exemplo, a criação e a disseminação de animais
inevitavel a comparação entre o domínio incaico e o europeus na América espanhola, cuja inspiração foi
imperio romano: “[...] Cuzco, era outra Roma, tomada da colonização portuguesa. A atividade
naquele império”. Os traços de sua escrita que criatória (ovelhas, porcos, gado vacum e eqüino)
sulcam o “amor natural” pelo Peru constituiram o transformou o regime alimentar e incorporou hábitos
prelúdio de sua consagração, mas há neste caso a de manejo animal. Atividades estas bem assimiladas
intermediação dos laços afetivos que se mesclavam devido a uma tradição pastoral. Além disso, cavalos
com a racionalidade da cultura espanhola, que e vacas se disseminassem de tal modo que
limitava suas inserções, mas também o impelia a precisavam ser caçados, pois se tornaram selvagens.
valorizar aquilo que fugia a estes trâmites, as Conforme nos lembra Gruzinski sobre a mestiçagem
modulações linguísticas de seu povo (C. R., 1723, 1, nas Américas (2006, p. 299), se os índios acharam
p. v). os animais uma novidade, “os negros da África
Os sinais de alianças culturais e de ocidental, sobretudo os vindos da Senegâmbia,
subordinação intencional são claros se tomarmos o tinham grande experiência na criação de animais e
exemplo da visita de Viracocha às províncias do cavalaria; não é, portanto, surpreendente encontrar
“centrísuyo”: “[...] todo o reino de Tucma, suplica- uolofes, fulas e mandingas dentre os primeiros
te, haja por bem recebê-lo sob teu império, e vaqueros da Hispaniola”.
permitas que chamem teus vassalos, para gozarem El Inca cita inúmeras passagens sobre estas
teus benefícios e se digne a nos dar teu sangue real atividades. No entanto, prevalecem as metáforas
para tirar nossos costumes bárbaros e os privilégios cruzadas que formam o Tawantinsuyo,
que devemos de manter [...]” (C. R., 1723, XXV/1, principalmente as de cunho religioso. Na morte dos
p. 124). Em outro fato de semelhante natureza o soberanos Huascas e Ataualpa os índios “caíram
autor trata de uma sucessão real, e afirma que como ovelhas sem pastor” (C. R., 1722, XXXIX/2,
Pachakuti Inca Yupanque foi “[...] valoroso p. 52). A conquista do Chile por Gonzalo Pizarro
conquistador e grande republicano, inventor da (figura 5), Pedro de Valdívia, Francisco de Vilagra é
maior parte dos ritos e superstições de sua idolatria vista como uma conquista sobre populações dóceis
[...]” (C. R., 1723, XXVIII/1, p. 126). que mais parecem “ovelhas” (C. R., 1722, XL/2, p.
No dicionário de Larramendi (1745, p. 154) 134). Na batalha de Huarina, a mais mortífera do
as controversas colocações lingüísticas nos Peru, Gonçalo Pizarro, autonomeado rei do Peru,
permitem constatar que os termos acima referidos, auxiliado por Garcilaso de la Vega e pelas
oriundos do latim, envolvem uma complexa cadeia estratégias de Carvajal, venceu as tropas do
de conexões culturais entre as penínsulas Apenina e monarquista Diego Centeno, atropelando-as “como
Ibérica. Principalmente quando se discutia se fossem ovelhas” (C. R., 1722, XIX/2, p. 304).
profundamente as origens paleo-hispânicas da língua A pretensão de um feudo na colônia esbarrou no
basca: “[...] Em todas as línguas algumas vozes se novo conceito jurídico da encomienda, uma forma
perdem, enquanto se adquirem outras novas. Logo se de administração transitória que Pizarro não admitia,
uma língua não é a mesma de antes, porque faltam o que o levou a se rebelar. Durante o breve refúgio

40
de Pizarro em Cuzco, onde tinha prestígio, Gómez emotiva. É um período importante no qual seu
Suárez, que contava com apenas dez anos de idade, referencial de mundo partia da idéia de centralidade
admirava Pizarro, tendo-lhe certa intimidade da dinastia solar e do colonialismo espanhol. As
(GRUZINSKI, 2001, p. 573). Num episódio imagens que seus familiares tinham do reino se
anterior, durante o trajeto entre Cuzco e Quito para a mesclaram com as imagens que Garcilaso construía
manutenção de provisões, el Inca ressalta o uso do mundo inca e de si mesmo. E se Gómez Suárez
alimentar e militar dos animais: “levaram [...] cerca se inseriu nos “[...] artifícios psicológicos, de teor
de quatro mil cabeças de porcos, e as maiores catártico, acionados para atenuar o trauma da
ovelhas daquele império, que também ajudaram a conquista espanhola” (LANGER, 2010, p. 6),
levar parte da munição e carga” (C. R. 1722, 3/II, p. também percebeu a animosidade entre as dinastias
139). Não nos esqueçamos de que os homens incas: “[...] Vinham à minha mãe que residia em
mantiveram inúmeras formas de contato entre si, e Cuzco, sua pátria, quase toda semana, os poucos
ao fazerem-no, distribuíram grande variedade de parentes, que das crueldades e tiranias de Atauhalpa
animais e plantas. Como bem aponta Crosby (1993, [...] escaparam, e nestas visitas [...] tratavam da
p, 13), entre os “atos de imperialismo” das Novas origem de seus reinos, [...] da grandeza de seu
Europas estavam a disseminação de ervas, animais e império, façanhas e a vassalagem” (C. R., 1723,
doenças. Como pudermos ver até aqui existem XV/1, p.18).
emaranhados em torno das misturas culturais, além Entre 1560-1616, Gómes Suárez viu de
das relações entre os homens e a natureza, os quais perto as transformações que estavam em curso na
ainda devem ser melhor estudados. Espanha. A necessidade e a aspiração o levou a se
inserir rapidamente para valorizar as ligações
familiares com a nobreza paterna e (re)conquistar os
direitos de linhagem e herança. A vida de seu pai
também caracteriza o estado das determinações
pessoais, sociais e jurídicas. Diante da derrocada
pizarrista, em 1549, distanciou-se das reivindicações
de aristocratas e soldados da colônia para aceitar as
imposições burocráticas da metrópole, como a de
desposar Luisa Martel de los Ríos, em razão da
alegada indignidade da união com Isabel Suárez, a
qual se casou com o soldado Juan del Pedroche
(CHANG-RODRÍGUES, 2006, p. 16). Deste modo,
Garcilaso de la Vega deu continuidade à sua
carreira, foi nomeado corregidor de Cuzco (1554-
Figuras 5 – Pizarro e Almagro. In: Felipe Guaman 1555), e convocou seu filho para trabalhar como
Poma de Yala, Primer nueva corónica y buen escriturário, além de inexplicavelmente incluí-lo
gobierno, 1615, p. 44. como herdeiro.
Gomez Suárez seguiu as formalidades
UMA ESCRITA MESTIÇA jurídicas para se inserir nas redes de sociabilidades.
Em 1570, com a morte de seu tio, Alonso de Vargas,
Não há dúvida de que as letras influenciaram seu protetor que o acolhera em Montilla, pode
na descoberta das Américas ao produzir fenômenos reivindicar herança. Inicialmente tinha a soma de
culturais e históricos. A particularidade da escrita “[...]4 mil pesos em ouro e prata marcados, para que
garcilaciana se inscreve na revolução da imprensa e viajasse à Espanha para completar sua educação
no imaginário renascentista. Os sentidos obtusos junto da família paterna [...]” (CHANG-
ressignificados e as reconstruções articuladas dos RODRÍGUES, 2006, p. 16). Além de enriquecer -
mundos vivenciados só podem ser vislumbrados nas por volta de 1586 – participou da guerra contra os
relações entre o sujeito escrevente, o contexto mouriscos (Alpajurra), chegando ao posto de
histórico-literário e as estruturas sociais. capitão. Com o sucesso e o espólio familiar se
Gómez Suárez de Figueroa nasceu no estabeleceu em Córdoba, investiu em atividades
umbigo do mundo e por ali permeneceu pouco mais comerciais, na criação de cavalos, além de se tornar
de duas décadas (1539-1560). Certamente o clérigo. Nesta época construiu uma imagem pública
envolvimento com os parentes e as imagens vigorosa que se consagraria pela publicação de
remanescentes da soberania durante a conquista livros que valorizavam o exotismo dos incas. Estes
pizarista eram simbólica, política e cultural livros - Diálogos de Amor (tradução da obra de León
(LANGER, 2010; GUMBRECHET, 1998), além de Hebreo -1590), Relación de la descendencia de

41
Garci-Pérez de Vargas (1605), Relación de la Estas formas de controle subjetivas também
conquista de la Florida (1605), Comentarios Reales influenciaram a escritura das crônicas garcilasianas.
de los Incas (1609), Conquista del Peru (1613) e Elas são claras no Prólogo ao leitor: o rei é
História General del Perú (1617) – resultavam dos considerado o maior monarca da Terra, exalta-se a
contatos com o humanismo renascentista. história pátria e os preceitos cristãos, além da
Este direcionamento tem explicações capacidade do autor como único interprete da cultura
plausíveis, além daquelas apontadas anteriormente, inca, podendo assim dirimir as faltas dos demais
como a da reivindicação da indianidade, que por sua cronistas (C. R., 1723/1, p. X).
vez não significava a rejeição da cultura espanhola A descoberta de textos de Gomara com
(GRUZINSKI, 2001, p. 16). Mesmo porque a anotações de Garcilaso pelo historiador peruano
adoção do nome paterno e do aposto el Inca, após a Barrenecha (1940) despertou o interesse dos
morte de sua mãe, expressava uma tentativa de historiadores contemporâneos na medida em que
reconciliação de elementos dispares que Garcilaso possibilitava o entendimento de “um período
de la Vega buscava nos Diálogos de Amor. Ali, importante da formação intelectual do escritor e,
Léon Hebreo preconizava uma metafísica na qual a particularmente, os antecedentes e gênese de sua
união de Deus com os homens e o mundo dependia obra historiográfica” (RIVAROLA, 2002, p. 59). A
do esforço e da tenacidade dos sujeitos. O amor e a perspectiva paleográfico-linguística de Rivarola
ação auxiliaram Garcilaso de la Vega a resolver os perece acertada, pois lançou luzes sobre o modo
problemas relativos à mestiçagem, ao mesmo tempo como aquele autor costurou idéias distintas, embora
em que via a necessidade de promover a “união o problema principal seja identificar a autoria. Com
amorosa entre o Novo e o Velho Mundo” (Rovira & isto, constatou-se que havia processos de
Mataix, 2002, s.p.). Assim “[...] Gómez Suáres de transferências textuais entre autores; o exemplar de
Figueroa enfrentou os desafios desse mundo Gomara circulava entre os amigos Gonçalo Silvestre
altamente complexo com notável flexibilidade e com (dono da obra) e Garcilaso de la Vega, que em
instinto de autopreservação quase aterrador em suas encontros regulares discutiam e escreviam na
conseqüências” (GUMBRECHT, 1988, p. 123). referida obra (figura 6).
Por outro lado, a obra de Garcilaso de la
Vega também pode ser vista como uma reação às
teorias depreciativas do Vice-Rei do Peru, Don
Francisco de Toledo que, não só acoimava a tirania e
a barbárie (ritos sacrificiais, canibalismo e sodomia),
como também sugeria a destituição das pretensões
políticas de incas e curacas para o bem da Fazenda
Real: “nesse contexto, em que diversas autoridades
políticas e religiosas estavam engajadas em forjar
um imaginário sobre o status humano e Figura 6 – Anotações de Garcilaso na obra Historia
civilizacional do Novo Mundo, sobretudo dos povos general de las Indias (1555), de F. L. de Gomara;
andinos, surge a obra de Garcilaso, que não deixa de Biblioteca Nacional do Perú.
ser uma réplica às conclusões desonrosas do vice-rei
Toledo e dos seus cronistas” (LANGER, 2010, p. 7). As repercussões do pensamento de Garcilaso
Daí o combate à inferioridade moral e a foram percebidas pela renascença espanhola, tanto
desmistificação das atrocidades que os incas teriam que foi aclamado pelas “habilidades lingüísticas e
cometido. São posições ambíguas que se sua capacidade como historiador”. Principalmente
estabelecem entre o colaboracionismo e a crítica por pessoas proeminentes daquela sociedade, como
velada ao colonialismo. por exemplo, o jesuíta Juan de Pineda, inquisidor e
As influências da imprensa e da burocracia professor de estudos bíblicos e Bernardo de Aldrete
espanhola devem ser consideradas, pois que escreveu Del origen y principio de la lengua
influenciaram nas estruturas de sentidos dos textos. castellana o romance (1606). Este último usou
Os aspectos jurídicos da Idade Média foram postos Comentários Reales para esclarecer as origens e
de lado, dando lugar a uma escrita compacta que significado do termo Peru. Chang-Rodrígues (2006)
passava a representar os sujeitos na sua ausência; sugere que, por intermédio de Jerónimo de Oré
somente assim “[...] poderia surgir o projeto da (1554-1630) recebeu pápeis avulsos de Blas Valera,
coroa espanhola, fazer-se presente nas crônicas jesuíta de Chachapoyas, que teria escrito uma
através de sua burocracia – através de textos e não história do Peru, em latim, a qual teria embasado
necessariamente através da presença de um regente Comentarios Reales. De qualquer modo, Garcilaso
se sangue real” (GUMBRECHT, 1998, p. 132-133). de la Vega foi influenciado pelo mundo e soube

42
muito bem tirar proveito de tudo ao valorizar os GIBSON, Charles. As sociedades indígenas sob o
exotismos de seu povo. domínio espanhol. In: BETHEL, Leslie (org).
A representação que Garcilaso de la Vega História da América Latina Colonial. São Paulo:
construiu para o Tawantinsuyo derivou da Editora da Universidade de São Paulo; Brasília:
pluralidade, dos conflitos, mediações e regulações Fundação Alexandre de Gusmão, 1999, v. 2, p. 269-
da realidade vivida e imaginada que se apresentaram 307.
nas formas de ler e interpretar o mundo. O que era o GRUZINSKI, Serge. A Colonização do
império para el Inca? Um mundo ameno que Imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização
homogeneizava as diferenças. E se ele o no México espanhol. Séculos XVI – XVIII. São
uniformizava em seus escritos, não era o único a Paulo. Ed. Companhia das Letras, 2003.
fazê-lo. Antes e depois dele havia processos ________. Les mondes Mêlés de la monarchie
„civilizadores‟ que procuravam apagar as diferenças catholique et autres „connected histoiries‟. Annales.
e fazer prevalecer seus princípios. O cimento que Histoire, Sciences Sociales, Editions de
permitia unificar tudo isto era fruto de seu esforço l‟E.H.E.S.S, 2001, p. 85-117.
em mergulhar nas estruturas culturais que o ________. O pensamento mestiço. São Paulo:
absorveram. É no âmago da subjetividade do sujeito Companhia das Letras, 2001.
e das ações culturais que se encontram as respostas BERNARD, Carmem, GRUZINSKI, Serge.
para os sentidos que os homens dão à sua existência, História do Novo Mundo 2. São Paulo: Edusp,
ao seu modo de ser, ver e sentir. 2006.
O movimento renascentista, a cultura cristã, ________. História do Novo Mundo. São Paulo:
a difusão da imprensa, a burocracia colonialista, os Edusp, 2001.
mitos de origem e as soberanias eram representações GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos
que serviram como essência e matéria do corpus sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1998.
imperial que projetou para si e para a história. O HUBER, Siegfried. O Segredo dos Incas. Belo
resultado é a valorização pessoal e a difusão de Horizonte: Editora Itatiaia, 1964.
saberes. Desejava-se a preservação da identidade e GARCILASO DE LA VEGA, El Inca [1609].
da cultura, embora estas fossem devoradas pelas Comentarios Reales de los Incas. Lima: Universo,
sociedades e pelo tempo. Seus textos resultam, 1722.
portanto de mundos plurais, reorganizados e ________. Comentarios Reales de los Incas.
ressignificados por amenidades e resistências. E Madri, Oficina Real, 1723.
neste sentido, constatamos nossa incapacidade de KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e
povoar plenamente a essência da imaginação de um heresias: a construção do ufanismo e do
indivíduo e mesmo da pluralidade que ele ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo
representa. (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (Doutorado em
História), Universidade Estadual Paulista, Assis,
BIBLIOGRAFIA E FONTES 2008.
LANGER, Protasio Paulo. “Piores que bestas feras”:
BAUDIN, Louis. A Vida Quotidiana no Tempo Garcilaso de la Vega e o imaginário hispano-inca
dos Últimos Incas. Lisboa: Livros do Brasil, s. d. sobre os Guarani Chiriguano. Topoi, v. 11, n. 21,
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. América Pré- jul-dez., 2010, p. 5-22.
Colombiana. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. LARRAMENDI, Manuel. Diccionario trilingue del
CHANG-RODRÍGUES, Raquel (Org). castellano, bascuense y latin. Caracas: Bartolomè
Franqueando fronteras: Garcilaso de la Vega y La Riesgo y Montero, 1745, tomo 1.
Florida del Inca. Lima: Fondo Editorial de la LEVENE, Ricardo. História das Américas. Os
Pontificia Universidad Católica del Perú, 2006. Aborígenes da América do Sul. São Paulo. Editora
CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico. A Brasileira, 1964.
expansão biológica da Europa: 900-1900. São Paulo: MINSTER, Chistopher W. Literature and the
Companhia das Letras, 1993. other: political history, origins and the invention of
ELÍADE, M. Mito do eterno retorno: cosmo e the American in the early Spanish colonial period.
história. São Paulo: Mercuryo, 1992. The Ohio State University, 2006.
FAVRE, Henri. A Civilização Inca. Rio de Janeiro: NIETZCHE, F.W. Genealogia da moral. Uma
Ed. Jorge Zahar, 1967. polêmica. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.
FERREIRA, António Gomes. Diccionario de OLIVEIRA, Susane Rodrigues. Gênero, sacralidade
Latim-Portugues. Porto: Porto Editora, 1988, p. e poder: o mito das origens dos incas na obra de
571. Garcilaso de la Vega (1586). Brasília, UNB, Em
tempo de história, n.o 8, 2004, p. 1-26.

43
OROZCO, Covarrubias; DE CASTALIA. Sebastian.
Tesoro de La Lengua Castellana o Española.
Madrid. 2ª Ed. 1995.
PORTUGAL, Ana Raquel. O ayllu andino nas
crônicas quinhentistas: um polígrafo na literatura
brasileira do século XIX (1885-1897). São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009.
RABASA, José. On writing back: alternative
historiography in La Florida de inca. IN:
CHANADY, Amaryll Beatrice. Latin America
identity and constructions of difference.
Minessota: University of Minnesota Press, 1994, p.
130-148.
RIVAROLA, José Luis. Para la genesis de los
Comentarios Reales. Edición y comentário de las
apostilas del inca Garcilaso (y otros) a la Historia
General de las Indias de F. López de Gómara.
Nueva Revista de Filologia Hispánica, jan.-jun.,
Distrito Federal, México, 2002, p. 59-139.
ROVIRA, José Carlos, MATAIX, Remedios. El
Inca Garcilaso de la Vega. Alicante, Fundación
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, Universidad
de Alicantes, 2002.
Disponível em
http://bib.cervantesvirtual.com/bib_autor/garcilaso/i
ndex.shtml
SAHLINS, M. Ilhas de história. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1990.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected
Histories: Notes towards a Reconfiguration of
Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies,
Vol. 31, No. 3, Special Issue: The Eurasian Context
of the Early Modern History of Mainland South East
Asia, 1400-1800, Jul., 1997, pp. 735-762.
ZAMORA, Margarita. Language, authority and
indigenous history in the Comentarios Reales de
los incas. Cambridge: University Press, 1988.

44
O PAPEL DAS
FIGURAS
FEMININAS NOS
ESCRITOS
GNÓSTICOS
SETIANOS
Carlos Almir Matias
Mestrando em História
Social da UEL
Bolsista CAPES
Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar as


figuras femininas presentes nos escritos gnósticos
setianos. Ao contrário da narrativa tradicional do
livro do Genesis que dá ênfase a figura do Deus
Criador, as narrativas setianas apresentam figuras
femininas que desempenham um papel fundamental
no processo de criação, tanto do mundo material,
quanto do mundo espiritual.
Segundo Pagels (1979), o Deus de Israel
não partilhava seu poder com nenhuma divindade
feminina, sempre sendo caracterizável em aspectos
masculinos, como rei, senhor, amo, juiz e pai. De
acordo com a autora:

A ausência de um simbolismo feminino


contrasta flagrantemente o judaísmo,
cristianismo e o islamismo com as
outras tradições religiosas do mundo,
seja as do Egito, da Babilônia, da
Grécia e de Roma, ou as da África, da
Índia e da América do Norte que são
ricas em simbologia feminina.
(PAGELS, 1979, p.76).

Ainda segundo Pagels (1979) vários textos


gnósticos indicam a influencia de antigas tradições
pagãs referentes à Grande Deusa, mas geralmente a
linguagem desses textos é especificamente cristã,
com elementos derivados do judaísmo, mas invés de

45
descreverem um Deus monista e masculino, muitos figuras nos mitos de criação do mundo espiritual, do
desses escritos contem a descrição de Deus como mundo material e da origem do homem.
uma díade, que contem elementos masculinos e
femininos.
Outra característica desses escritos é o de 1.0 A categoria setiano
se preocuparem em responder questões importantes
tais como, de onde viemos e para onde vamos, qual Segundo Chaves (2006, p.07) setiano é
a origem do mal, como este entrou em um mundo uma categoria moderna de análise que serve para
que deveria ser teoricamente perfeito, o que não designar alguns textos gnósticos que possuem uma
ocorre, por exemplo, nos escritos judaicos. teologia e cosmogonia próprias. Essa categoria leva
De acordo com Johnson (1995, p. 20) os em conta a existência de um sistema doutrinal
judeus apenas presumiam a pré existência de Deus preciso presente em alguns textos de Nag Hammadi,
onipotente, que age, mas nunca é descrito ou e não necessariamente a existência de uma
caracterizado, da sua própria natureza. O autor comunidade gnóstica setiana, o que não podemos
também destaca que a narrativa do Genesis é comprovar devido à falta de evidencias documentais.
totalmente diferente de qualquer outra cosmogonia Chaves (2006 a) chama a atenção para a
da Antiguidade, pois não se preocupa em descrever a ligação desses textos com o neo- platonismo e com a
origem de Deus ou a origem de um mundo espiritual apocalíptica, o que levou os especialistas a chama-
que em tese seria a sua morada e de seus anjos. los de apocalipses filosóficos, mas as tradições que
Essa simplificação abria a possibilidade mais nitidamente aparecem nesses textos são as
para as mais diversas explicações e especulações tradições judaicas e cristãs. Suas prováveis datas de
sobre a origem do mundo, pelo fato de que, segundo composição são o final do século II e inicio do
Johnson (2001, p. 24), não estava de todo claro onde século III, período que coincide com o neo-
exatamente Deus se encontrava com relação ao platonismo, e o local de composição possivelmente
homem, fosse no tempo ou no espaço. Satanás pode ser as academias filosóficas de Alexandria.
raramente aparecia, de modo que não podia ser o Ainda de acordo com Chaves (2006 a,
causador do pecado, e apenas alguns judeus p.03) a categoria setiana foi proposta por Hans-
aceitavam a explicação oriental de mundos gêmeos Martin na década de 70 para elencar uma seqüência
do bem e do mal em eterna batalha. Deus fazia de textos que davam grande importância ao
coisas: criou o mundo, no entanto não estava claro personagem bíblico Set. São classificados como
por que ele existia ou qual seriam as suas ambições setianos os seguintes textos: Apócrifo de João,
finais. Hipóstase de Arcontes, O Evangelho dos Egípcios, o
Como cristãos e judeus partilhavam da Apocalipse de Adão, as Três colunas de Set,
mesma idéia de criação do mundo, alguns grupos Zostrianos, Melquisedec, Norea, Marsanés,
sentiram a necessidade de explicar como que um Allogenes e Protenóia Trimorfica.
Deus Todo Poderoso deixou o mal e o infortúnio Todos esses textos têm a ocorrência da
entrarem no mundo. Segundo Ogrady (1994) nos figura de Set, que aparece como o primeiro ser de
primeiros séculos da era cristã, a existência de um uma raça escolhida, após o assassinato de Abel por
Deus benevolente, conhecido pela revelação ou, parte de seu irmão Caim. Outra característica
como no caso dos filósofos gregos, de um perfeito comum nos textos setianos é a presença de figuras
Principio Primordial, descoberto pela especulação femininas, tais como Sophia, criadora e
metafísica, representou o ponto de partida para todos alimentadora do mundo, uma mãe divina chamada
os sistemas cosmológicos. Barbelo, o primeiro pensamento da divindade
A partir desse Principio Primordial, foram suprema, e a Sophia inferior, responsável tanto pela
surgindo outras entidades que faziam parte do criação do mundo material, quanto pela encarnação
mundo espiritual, sempre em pares masculinos e de porções da essência da Mãe suprema nos corpos
femininos, até que um evento catastrófico no humanos; e a figura da Eva espiritual (Epinóia) que
pleroma deu origem ao mundo material. aparece no plano terrestre para alertar a humanidade
Para esta pesquisa, vamos investigar o (Adão) sobre a sua filiação em relação ao Primeiro
papel das figuras femininas presentes nos textos Pensamento divino. (CHAVES, 2006 a).
setianos Apócrifo de João e Hipóstase de arcontes,
escritos entre o final do século II e inicio do século 2.0 O erro de Sophia
III. Vamos nos ater as figuras femininas de Sophia e
de Enóia (epinóia ou Eva espiritual) presentes nos O tratado Apócrifo de João é uma
dois textos, analisando o papel de cada uma dessas importante obra do gnosticismo mitológico. Utiliza-
se da estrutura de uma revelação feita pelo Cristo

46
ressurreto a João, e oferece uma descrição clara e não ter chegado ao seu acordo, e
sobre a criação, a queda e a salvação da humanidade, tendo pensado sem o seu consentimento
a descrição mitológica está desenvolvida do Espírito e o conhecimento de sua
amplamente nos termos dos primeiros capítulos do aprovação, ela (ainda assim) gerou.
Genesis. (WISSE, 2009, p. 99). (Apócrifo de João, 2007, p.104).
Segundo Wisse (2009) esse tratado busca
responder duas questões básicas: Qual é a origem do De acordo com Ogrady (1994, p. 40) nos
mal? E como podemos escapar de um mundo mitos gnósticos, os eõns existiam em pares,
malévolo para nossa casa celestial? masculinos e femininos, princípios ativos e passivos.
O tratado Hipóstase de arcontes („‟ A O trigésimo eõn era Sophia, o desejo de sabedoria, e
realidade dos soberanos‟‟) é um tratado anônimo que por causa de seu erro, o nosso universo foi criado.
apresenta uma interpretação esotérica do Genesis 1- Ou seja, para os gnósticos, a queda ocorreu no
6, parcialmente na forma de discurso entre um anjo e mundo espiritual, o fato de Sophia ter quebrado essa
um interrogador. (BULLARD, A; LAYTON, harmonia de forças foi o que gerou a queda cósmica.
BENTLEY, 2007, p. 146). Ainda segundo os
autores, esse tratado ilustra um amplo sincretismo E por causa do seu poder invencível
helenístico, com as tradições judaicas e cristãs. Sua que lhe acompanha, o seu pensamento
provável data de composição é o século III, e sua não permaneceu em vão, e de dentro
proveniência provável pode ser o Egito devido à dela saiu algo que era imperfeito e
descrição do Soberano com cabeça de animal. diferente de sua própria aparência, por
ter criado algo sem cônjuge. E era
A Hipóstase de arcontes proclama, diferente da aparência de sua mãe,
como o próprio titulo indica, a realidade desde que tinha outra forma. (Apócrifo
dos soberanos arconticos: longe de ser de João, 2007, p.104).
mera ficção e poderes imaginários, os
arcontes são todos muito reais. Esses A narrativa segue mostrando o
soberanos existem de fato. Essa é uma arrependimento de Sophia pelo erro cometido.
realidade sinistra para os gnósticos
cristãos, que definem sua natureza E quando ela viu (as conseqüências) do
espiritual de forma oposta aquelas das seu desejo, transformou-se em forma de
autoridades soberanas e escravizadoras. serpente com rosto de leão. E seus
(BULLARD, R; LAYTON, B, 2007, p. olhos eram como faíscas de relâmpago
145). em chamas. Ela o levou para longe
dela, longe daquele lugar, para que
Ambos os tratados buscam responder as nenhum dos mortais pudessem ver o
seguintes questões: como que surgiu o mundo que ela havia criado em ignorância. E
material? Como surgiu o homem? E o que fazer ela o envolveu com uma nuvem
para voltar para o mundo espiritual? luminosa, colocando um trono no meio
A narrativa do apócrifo de João começa da nuvem para que ninguém pudesse
falando sobre a divindade mais elevada, que ver exceto o Espírito Santo, o qual é
segundo Wisse (2007) é definida em termos de um chamado de a mãe de todos os vivos. E
conceito abstrato grego de Perfeição, e que, a partir la chamou pelo nome Yaltabaoth.
desta, surgem uma série de seres iluminados, dentre (Apócrifo de João, 2007, p.104)
os quais Sophia, a responsável pela queda, quando
deseja criar algo a partir de si própria sem a Segundo Ogrady (1994) era normal nos
autorização do Grande Espírito ou de seu consorte. textos correntes da época, a personificação de
qualidades, como Sabedoria e Verdade, por
E a Sophia da Epinóia, sendo uma aeõn, exemplo. No mito, Sophia dá a luz a Ildabaoth,
concebeu-lhe de si um pensamento e a aquele que deu origem ao mundo material, também
concepção do Espírito Invisível e a conhecido como demiurgo. Os gnósticos quase
presciência. Desejava gerar uma sempre comparavam o Deus do Antigo Testamento
semelhança dela mesma sem o com Ildabaoth, considerando-o pai de toda a
consentimento do Espírito- ele não ignorância.
havia aprovado- sem um cônjuge e sem Para os gnósticos a divindade criadora do
a sua consideração. E apesar da pessoa mundo material era uma divindade muito baixa e
de sua masculinidade não ter aprovado, ignorante, por ter criado um mundo onde imperava a

47
dor e o sofrimento. A criação do mundo material 3.0 Epinóia: a auxiliar de Adão
teria sua origem num desastre cósmico, e a salvação
só viria para aqueles que aprenderem a escapar deste Após Adão ter sido jogado na região mais
mundo e de suas armadilhas materiais. (EHRMAN, baixa de toda a matéria, o Grande Espírito teve
2006, p. 85). piedade do poder da mãe e enviou uma auxiliar para
Esse caráter ignorante do deus criador Adão.
aparece em Apócrifo de João:
E enviou através do seu espírito
E o arrogante tomou o poder de sua benéfico e sua grande misericórdia, um
mãe. Ele era ignorante pensando que auxiliar para Adão, Epinóia luminosa
não existia outro, exceto sua mãe. E que saiu de dentro dele, a qual é
quando ele viu a multidão de anjos que chamada Vida. E ela atendeu a criatura
havia criado, então se exaltou sobre plena, labutando junto com ele,
eles. (Apócrifo de João, 2007, p.105). ajudando-o a restaurar a sua
integridade, ensinando-o sobre a
Em Hipóstase de Arcontes aparece que: descida da sua semente (e) instruído-o
sobre o caminho das alturas, (que é) o
O chefe deles é cego; [por causa de seu] mesmo caminho que ele desceu. E a
poder e de sua ignorância [e de sua] luminosa Epinóia estava oculta em
arrogância ele disse, com o seu [poder], Adão, para que os archons não
„‟Sou eu quem é Deus; não existe algo pudessem conhecê-la, contanto que a
[a parte de mim]‟‟. (Hipóstase de Epinóia pudessem servir como uma
Arcontes, 2007, p.145). forma para corrigir a imperfeição da
mãe. (Apócrifo de João, 2007, p. 108).
O tratado de Apócrifo de João segue
contando como que, Yaltabaoth, com a ajuda dos
anjos que ele criou, o ajudaram na criação do A missão de Enóia era a de auxiliar Adão
homem, moldado através da imagem perfeita do Pai, para que este descobrisse a sua verdadeira origem,
que estava espelhada na água. O homem passa a ou seja, o mundo espiritual. Os governantes
ganhar vida a partir do momento em que Yaltabaoth percebendo isso tentaram de todas as formas iludir
sopra a luz do poder de sua mãe nele. Após ele ter Adão e o colocaram no paraíso para que ele
soprado a luz divina no homem, o homem os esquecesse a sua verdadeira origem.
superou em inteligência e todos os outros poderes
que ajudaram Yaltabaoth na criação do homem E os archons o levaram, colocando-o no
ficaram com inveja. paraíso. E disseram a ele, „Alimente-se,
pois não tens o que fazer‟, desde que
O corpo se moveu e ganhou força, e era suas luxurias são amargas e seus
luminoso. E naquele momento o encantos depravados. E sua luxuria é a
restante dos poderes ficou com inveja, decepção e suas arvores são incrédulas
porque ele foi trazido a existência com e sua fruta é envenenada e sua
o auxilio de todos, e foram eles que promessa é a morte. E a arvore de sua
haviam dado seus poderes ao homem e vida eles a colocaram no meio do
sua inteligência era maior que aqueles paraíso. (Apócrifo de João, 2007, p.
que o haviam gerado, e maior que a do 109).
chefe archon. E quando reconheceram
que ele era iluminado e que podia Após Adão ter sido colocado no paraíso,
pensar melhor que eles, e que era livre foi aconselhado pelos archons a não comer da arvore
da perversidade, eles o pegaram e da vida, que na narrativa é a epinóia da luz que
jogaram na região mais baixa de toda a estava dentro de Adão.
matéria. (Apócrifo de João, 2007, Vale destacar que para os gnósticos, o ato
p.108). de se comer o fruto proibido, significava abrir a
mente para o conhecimento verdadeiro, ou seja, o
que na narrativa do Genesis é um ato de
desobediência a Deus, na visão gnóstica é um ato de
liberdade em relação ao deus criador do mundo

48
material para assim conhecer a verdadeira origem da expulsou do paraíso, apanhou a vida de Eva e lhe
alma. gerou dois filhos, um de nome Eloim e outro de
Em Hipóstase de arcontes aparece que, nome Yave. Segundo o relato, um tinha cara urso e
Epinóia ou o principio feminino apareceu na forma outro tinha cara de gato, um era justo e o outro era
de uma cobra, que também era um símbolo de injusto, que foram designados de Caim e Abel.
sabedoria para alguns gnósticos, principalmente para Os dois textos buscaram fazer uma
os ofitas. interpretação esotérica do relato do Genesis, em
ambos aparece à temática de que, o deus criador do
Então o principio feminino espiritual mundo material, no caso Yaltabaoth tentou de todas
veio [na] cobra, a instrutora; e ela as formas enganar o homem e lhe roubar as
ensinou [a eles], dizendo, „‟O que foi partículas da mãe divina Sophia, nos dois tratados
que ele [disse para] vós (pl)? Foi isto, aparecem a figura de Epinóia ou Eva espiritual para
„Tu deverás comer de cada árvore no alertar e ensinar o homem sobre a sua verdadeira
paraíso‟; porem [da arvore] do origem e sobre como retornar a sua verdadeira
reconhecimento do bem e do mal não morada. Os dois tratados apresentam as principais
deverás comer? A mulher carnal disse, idéias gnósticas, tais com, a luta entre o bem e o
„‟Ele não apenas disse „Não come‟, mal, o dualismo entre espírito e matéria, e a
como também disse „Não a toques; pois principal idéia, a busca pelo conhecimento (gnoses)
o dia em que vós (pl.) comerdes dela, que faria com que a alma voltasse ao mundo
com a morte percerás‟‟ E a cobra, a espiritual.
instrutora, disse, „‟Com a morte vós
(pl.) não devereis morrer; pois foi com Considerações finais
a inveja que ele disse isso a vós (pl.).
Ao contrário vossos (pl.) olhos devereis Esta investigação buscou refletir sobre o
abrir e vós (pl.) devereis a vir a ser papel das figuras femininas Sophia e Epinóia nos
como deuses, reconhecendo o mal e o escritos gnósticos setianos. Julgamos de extrema
bem‟‟. E o principio da instrução importância refletir sobre o papel dessas figuras na
feminina foi tirado da cobra e ela a cosmogonia gnóstica, pois essas cosmogonias vão
deixou para trás, meramente como uma fundamentar diversas práticas entre os grupos
coisa da terra. (Hipóstase de Arcontes, gnósticos, como por exemplo, a questão da
2007, p.147). sexualidade.

No texto aparece que, os archons tentam Agora até o momento, a relação sexual
de todas as formas dominar epinóia, numa constante permanece, por causa do chefe archon.
luta entre os poderes da luz e da escuridão pelas E ele plantou o desejo sexual nela que
partículas divinas do homem. Quando os archons pertence a Adão. E ele gerou através de
tentaram dominar epinóia, surgiu a criatura mulher relações sexuais as cópias dos corpos, e
de acordo com a semelhança de epinóia. os inspirou com seu espírito falso.

Os gnósticos acreditavam que as relações


E o chefe archon tentou desejou trazê-la sexuais serviam apenas como mais um artifício do
de sua costela. Porém a Epinóia não demiurgo para espalhar as centelhas divinas pelo
pode ser dominada. Apesar da mundo material.
escuridão persegui-la, não conseguiu De acordo com Ogrady (1994, p.45) em
alcançá-la. E acabou por trazer uma muitas seitas gnósticas, o casamento, ou a
parte de seu poder para fora dele. E consumação do casamento, era proibida, ou pelo
gerou uma outra criatura, na forma de menos proibida para aqueles que tivessem um
uma mulher de acordo com a compromisso espiritual mais profundo. O cerne
semelhança de Epinóia, que havia disso estava na concepção de que a matéria e o
aparecido para ele. (Apócrifo de João, corpo eram maus, que estes surgiram do erro de
2007, p. 109) Sophia.
Outra questão importante presente nessas
A partir desse momento, Adão passou a cosmogonias é a visão gnóstica do deus criador do
ter consciência sobre a sua verdadeira origem, pois mundo material como um deus arrogante e
Epinóia apareceu para ele e lhe mostrou a sua ignorante, isso é de extrema importância, pois se os
verdadeira origem. Yaltabaoth em vingança, os gnósticos não obedecem ao deus criador do mundo

49
material, eles não precisavam obedecer aos lideres Referencias bibliográficas
que igreja, que teoricamente, eram os representantes
desse deus. BULLARD, Roger A; LAYTON, Bentley. A
Pagels (1979) observa que, ao renunciar Hipóstase de arcontes. In: ROBINSON, James. A
ao demiurgo, o individuo necessariamente recusava Biblioteca de Nag Hammadi. A tradução completa
a autoridade do bispo que era o representante deste, das Escrituras Gnósticas. São Paulo: Madras, 2007.
ou seja, a gnose oferecia justificação teológica para CHAVES, Júlio César. Os apocalipses filosóficos
as pessoas se recusarem a obedecer aos bispos e aos setianos. VII Seminário de estudos de apocalíptica/ I
padres. Seminário Interno do projeto de estudos Judaicos-
Concordamos com Palgels (1979, p. 63) Helenisticos. UNB, 2006.
quando ela afirma que, se considerarmos apenas os __________________ O apocalipse de Adão:
argumentos religiosos e filosóficos das doutrinas apocalíptica ou gnose? Grupo Orácula, 2006.
gnósticas e ortodoxas, não conseguiremos entender o EHRMAN D. Bart. O cristianismo de ponta cabeça:
que esta por trás dos mitos e cosmogonias, tanto nos a visão alternativa do Evangelho de Judas. In: O
escritos gnósticos, como nos escritos ortodoxos, as Evangelho de Judas: do Códice Tchacos/ editado
se analisarmos esses mitos pelo viés social e por Rodolphe Kasser, Marwin Mayer e Gregor
político, veremos o por que a igreja combatia tanto Wust, com a colaboração de Francis Guaudard,
os grupos gnósticos. Ou seja, cada idéia religiosa ou tradução Ana Ban. São Paulo: Prestígio, 2006.
filosófica implicava necessariamente em práticas JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. São
sociais condizentes com essas idéias. Paulo: Imago, 2001.
O que aproxima as figuras de Sophia e ______________. História dos Judeus. São Paulo:
Epinóia (Eva espiritual) é o fato de ambas Imago, 1995.
combaterem o Deus criador do mundo material na O´GRADY, Joan. Heresias. São Paulo: Mercuryo,
luta pelas partículas de luz divina escondidas dentro 1994.
do corpo do homem. Apesar de seu erro, Sophia se PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. São
redime junto ao Deus supremo, e este se compadece Paulo: Cultrix, 1979.
do homem e lhe envia uma auxiliar, Epinóia que WISSE, Frederik. O apócrifo de João. In:
busca, ensinar ao homem a sua verdadeira origem, ROBINSON, James. A Biblioteca de Nag
mas para isso, ela tem que enfrentar o deus criador Hammadi. A tradução completa das Escrituras
do mundo material e seus aliados, os archons. Nessa Gnósticas. São Paulo: Madras, 2007.
luta, ela toma a forma de uma arvore, de uma
serpente, e por fim de sua imagem surge a Eva
carnal.
Apesar de Adão e Eva terem sido
amaldiçoados por Yaltabaoth, Epinóia teve êxito em
sua missão, pois ambos acabam por descobrir a sua
verdadeira origem.

E nossa irmã, Sophia, (é) ela quem


desceu em inocência para purificar sua
imperfeição. Por isso era chamada de
Vida, que a mãe dos vivos, pela
presciência da soberania do céu (...). E
por meio dela, eles tem o provado
conhecimento perfeito. Eu surgi na
forma de uma águia na arvore do
conhecimento que é Epinóia da
presciência da pura luz, para que eu
pudesse vos ensinar e vos acordar das
profundezes do sono. Sendo que ambos
estavam em estado cadente, eles
reconheceram a sua nudez. A Epinóia
apareceu a eles como uma luz e ela
despertou seus pensamentos. (Apócrifo
de João, 2007, p.110).

50
IDENTIDADE E
CIDADANIA DAS
CATADORAS DE
MATERIAIS
RECICLÁVEIS DE
UNIÃO DA
VITÓRIA
Itamara Cris Marchi
(UEPR - FAFIUV)
Orientadora: Dulceli de
Lourdes Tonet Estacheski
(UEPR - FAFIUV)
Introdução

Nos últimos tempos vem crescendo a


preocupação com o meio ambiente. A poluição das
águas, da terra do ar. Mas algo que muito chama a
atenção é a destruição da camada de ozônio.
Segundo dados do IBGE 20 a análise da qualidade do
ar se utiliza do consumo industrial de substâncias
destruidoras (clorofluorcarbonos - CFCs, brometo de
metila e halons) da camada de ozônio por um
determinado tempo em um certo terrritório. No ano
de 1997 os reagentes mais poluentes, como a
refrigeração e as espumas, correspondiam
respectivamente a 5522 (em toneladas ODP –
potencial de destruição de ozônio) e 4056 (toneladas
ODP), já no ano de 2000 esses números caíram para
5220 (toneladas ODP) a refrigeração, e as espumas
para 2640 (toneladas ODP). As estatísticas sobre a
concentração de poluentes no ar em áreas urbanas,
que expressam a qualidade do ar e fornecem uma
medida indireta da exposição da população à
poluição atmosférica, demonstram que entre os anos
de 1995 e 1999 a máxima concentração desses
poluentes só aumentou. Em 1995 a concentração de
poluentes na cidade de São Paulo, por exemplo, por

20
Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/servidor_arquivos_est/
51
gases poluidores, correspondia a: PTS 685 (ug/m³); no Paraná, 9,6% em Santa Catarina e 27,5% no
SO2 (1) 179 (ug/m³); NO2 [-] Ozônio 763 (ug/m³); estado do Rio Grande do Sul. Já os números que
CO 18,8 (medidos em parte por milhão); no ano de representam o lixo coletado de forma seletiva são
1999 correspondia: a PTS 416 (ug/m³); SO2 105 pequenos para estes estados, representavam 12,2%
(ug/m³); NO2 464 (ug/m³); Ozônio 335 (ug/m³); CO no Paraná, 3,2% em Santa Catarina e 8,0% no Rio
13,8 (medidos em parte por milhão). Grande do Sul.
Sabe-se que a camada de ozônio forma uma No mapa 01 podemos observar em quais
espécie de escudo protetor sobre a Terra, pois ela regiões do Brasil a coleta seletiva era praticada no
filtra os raios ultravioletas (UV) antes de chegarem ano de 2000. A maior concentração é na região Sul,
do Sol e causar danos à vida no planeta. A especificamente e como mostram os números, no
diminuição do ozônio aumenta a intensidade dos estado do Rio Grande do Sul.
raios UV-B, que segundo Cirino e Souza (2008), são
prejudiciais aos seres vivos do planeta, causam MAPA 01
queimaduras de pele e a superexposição câncer de
pele, podem causar também adversidades ao sistema
imunológico do Homem. Assim como podem alterar
a fotossíntese das plantas, e estas diminuírem suas
folhas, sementes e frutos.
Alguns dados são espantosos. Muito tem se
falado sobre o assunto. Muito pouco se tem feito.
Uma atitude que vem crescendo em nosso país que
propicia grandes ganhos ao meio ambiente, à
economia... É a coleta seletiva e a reciclagem.
A estratégia dos três R (reciclar, reutilizar,
reduzir), reúne interesses do poder público, de
empresas e da sociedade, além de tratar dos
princípios do desenvolvimento sustentável, é uma
atitude que traz benefícios ambientais, e
oportunidades de negócios, que geram emprego e
renda para muitas famílias através da coleta seletiva.
O lixo produzido por nós diariamente é uma questão
que muito tem chamado atenção, devido a: falta de
espaço para dispor o lixo e preservar a paisagem;
problemas de saúde e contaminação das águas e do
solo. A coleta seletiva vem em beneficio destas duas
questões além de propiciar a geração de renda
através de programas de coleta seletiva, reduzindo
gastos com limpeza urbana e investimentos em
aterros. Dentre as diversas maneiras que a coleta
De acordo com os dados do IBGE entre os seletiva é desenvolvida em nosso país uma que nos
anos de 1993 e 2000 a reciclagem de materiais, por chama a atenção e que se torna o foco deste trabalho
algumas empresas selecionadas, aumentou ano a é a atividade dos catadores de materiais recicláveis.
ano, com exceção do papel que oscilou no período Especificamente as mulheres catadoras do município
computado. Em 1993 a reciclagem de alumínio era de União da Vitória. Por que os catadores de
de 50%, do material utilizado, em 2000 esse número matérias recicláveis? E por que as mulheres em
aumentou para 78,2%, a reciclagem de papel era de específico dentro deste segmento? Primeiramente os
38,8% no ano de 1993 e em 2000 não há catadores porque são alvo do projeto “Os catadores
informações, já o reaproveitamento do vidro da margem esquerda: coleta, sobrevivência e
aumentou consideravelmente de 25,0% em 1993 identidade no Médio-Iguaçu no início do século
para 41,0% em 2000, as embalagens PET iniciaram XXI”, do qual fazemos parte, projeto este
o ano de 1994 ocupando 18,8% e em 2000 26,3%. desenvolvido pelo colegiado de História da
Atentos a região Sul os dados do IBGE do Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras
ano de 2000 demonstram que no Paraná 18,3% dos de União da Vitória. As mulheres em específico
municípios eram atendidos pela coleta seletiva, em porque os catadores de forma generalizada já foram
Santa Catarina eram 21,5% e no Rio Grande do Sul abordados em outros momentos, e devido às
29,6%. Seriam então 11% das residências atendidas experiências destas personagens que desempenham
os papéis de mãe, avó, dona-de-casa, esposa,
52
catadora e que podem nos propiciar um olhar As mulheres, o coração, a sensibilidade, os
peculiar sobre sua atividade. sentimentos” (PERROT, 1988, p. 177).
Formulamos, então, nossa questão de Para Scott (1992) a história das mulheres
pesquisa: Como se configura a cidadania das vem buscando incluir as mulheres na história,
mulheres catadoras de materiais recicláveis de União tornando-as objetos de estudo e sujeitos históricos.
da Vitória, no início do século XXI? Quais suas Tem questionado a inclusão das mulheres à idéia do
perspectivas? Seus anseios? Para tanto nos ser humano universal, atentos às várias ações e
utilizamos de referencial teórico e trabalho de campo experiências das mulheres desenvolvidas há tempos,
onde foram realizadas entrevistas com as catadoras “reivindicar a importância das mulheres na história
de União da Vitória. E os resultados desta pesquisa significa necessariamente ir contra as definições de
apresentamos no presente artigo. história e seus agentes já estabelecidos como
“verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões
Pensando a História das Mulheres, construindo a acuradas sobre o que aconteceu (ou teve
identidade e a cidadania importância) no passado.” (SCOTT, 1992, p. 77)
O estudo das mulheres sugere que se faça
O “ofício de historiador” é um ofício de uma alteração da história escrita até então, a partir
homens que escrevem a história no da investigação de como se estabeleceu o termo
masculino. Os campos que abordam são geral. A autora questiona como foi dada prioridade à
os da ação e do poder masculinos, escrita da história voltada às experiências dos
mesmo quando anexam novos homens opondo-se às experiências das mulheres,
territórios. Econômica, a história ignora deixando claro em muitos casos a hierarquia de
a mulher improdutiva. Social, ela muitos relatos históricos. “E, mais
privilegia as classes e negligencia os fundamentalmente, desafia tanto a competência de
sexos. Cultural ou “mental”, ela fala do qualquer reivindicação da história de fazer um relato
Homem em geral, tão assexuado quanto completo quanto à perfeição e a presença intrínseca
a Humanidade. Célebres – piedosas ou do objeto da história – o Homem universal”
escandalosas –, as mulheres alimentam (SCOTT, 1992, p. 78).
as crônicas da “pequena” história, A necessidade da história das mulheres
meras coadjuvantes da História andou de braços-dados com a emergência de uma
(PERROT, 1988, p. 185) identidade política da mulher. Para a autora pensar a
história das mulheres corresponde a um “estudo
A partir desta reflexão de Perrot (1988) dinâmico na política da produção do conhecimento”.
podemos perceber que por muito tempo o viés que E conceitua a palavra política em três sentidos:
conduziu a escrita da história se ateve aos assuntos primeiramente considera-a atividade desempenhada
masculinos, pouco se pensava na influência que as em governos, ou autoridades, envolvendo de forma
mulheres tinham sobre as decisões tomadas pelos apelativa a identidade coletiva, a mobilização de
homens, decisões estas que alteravam muitos rumos recursos, a avaliação estratégica e a manobra tática.
a serem seguidos. Segundo a autora o estudo da Em segundo lugar a palavra política usada para
história das mulheres se torna válido no momento designar relações de poder gerais e as estratégias
que se reavalia o poder destas, alcançando-se a para manter ou contestar tais relações. E num
superação do discurso opressivo, revolucionando o terceiro momento, com maior amplitude, diz
ponto de vista dominante, esclarecendo as ações respeito às maneiras que se reproduzem ou que se
femininas, sua presença, o desenvolvimento de seus desafiam determinada “ideologia”, as formas como
papéis na família, na sociedade. são elaboradas identidades individuais e coletivas
Para a autora a exclusão das mulheres não é que correspondem às relações entre indivíduos e
condizente com a Declaração dos direitos do coletividades e o mundo que as cerca, as quais são
homem, no qual consta a igualdade entre os vistas como normais, naturais ou auto-evidentes.
indivíduos, a autora questiona então “As mulheres Segundo Scott (1992) o mundo antagônico
não são “indivíduos”?”. Uma questão complicada, que envolve o homem e a mulher ocupou o foco da
onde a única justificativa foi tratar da diferença entre política e da história, proporcionando a mobilização
os sexos. Segundo Perrot (1988) no século XIX este política de forma mais significativa e disseminada,
tema retomou embasado nas pesquisas da medicina e assim como incluía o fato da “natureza essencial” do
da biologia, que traz a teoria naturalista da existência contraste homem X mulher. “A ambigüidade da
de duas “espécies” que tem qualidades e aptidões história das mulheres parecia estar resolvida por essa
distintas. “Aos homens, o cérebro [...], a oposição direta entre dois grupos de interesse
inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão.

53
separadamente constituídos e conflitantes‟ (SCOTT, coletivamente, pois individual não suportaria diante
1992, p. 84). de uma opressão. Tem por alicerce uma identidade
De acordo com Perrot (1988) o que se faz estruturada histórica, geográfica e biologicamente, o
necessário é a busca por mulheres em ação, que que facilita definir a essência dos limites a serem
inovam com suas práticas, cheias de vida, com transpostos. O terceiro tipo de construção de
identidade própria que criam a movimentação da identidade é aquela que produz sujeitos. “Sujeitos
história. São estas mulheres que buscamos não são indivíduos, mesmo considerando que são
desvendar em busca da configuração de sua constituídos atingem o significado holístico em sua
cidadania. experiência”. A construção da identidade aqui seria
Primeiramente para ser cidadão hoje o projeto de uma vida diferente, por vezes oprimida,
precisamos ter uma identidade definida, nossa porém crescente no que tange a “transformação da
principal característica para que dentre muitos sociedade como prolongamento desse projeto de
possamos ser reconhecidos. Reconhecimento este identidade” (CASTELLS, 2002, p 26).
que pode ser atravessado por estigmas criados pela Para Stuart Hall (2005) o que se configura é
sociedade e que condicionam os indivíduos à uma “crise de identidade”, entendida como parte do
exclusão. processo de mudança que desloca estruturas e pontos
Segundo Castells (2002) a identidade se centrais da sociedade moderna, atingindo pontos de
define como a fonte de significado e experiência de referência onde os indivíduos se ancoravam
um povo. “No que diz respeito a atores sociais, socialmente. O autor aceita a idéia de que as
entendo por identidade o processo de construção de identidades modernas estão sendo “descentradas”
significado com base em um atributo cultural, ou quer dizer deslocadas ou fragmentadas. A perda de
ainda um conjunto de atributos culturais inter- um “sentido de si” estável é vista como
relacionados, o (s) qual (is) prevalece (m) sobre deslocamento ou descentralização do sujeito. É um
outras fontes de significado” (CASTELLS, 2002, p. deslocamento duplo: descentração de si mesmo e de
22). Segundo o autor para cada indivíduo podem seu lugar no mundo social e cultural, isso é uma
existir identidades múltiplas, contudo essa gama de “crise de identidade” do sujeito. O autor questiona se
identidades pode causar conflitos sobre à auto- não é a própria modernidade que está se
representação e a ação social. Podem constituir transformando.
também significados únicos para seus atores, por Segundo Hall (2005) existe três concepções
eles formulados através de um processo de de identidade: a) o sujeito do Iluminismo; b) o
“individuação”. sujeito sociológico e c) o sujeito pós-moderno. O
Para o autor as identidades também podem sujeito do iluminismo era aquele sujeito centrado,
ser formadas de acordo com as instituições unificado que tinha por características consciência,
dominantes, assumindo essa condição quando e no razão e ação, “cujo „centro‟ consistia num núcleo
caso de os atores sociais as internalizarem, interior, que emergia pela primeira vez quando o
estabelecendo seu significado com base em tal sujeito nascia e com ele se desenvolvia”, ou seja, o
internalização. “Identidades organizam significados, núcleo do Eu era a identidade da pessoa. Formulação
enquanto papéis organizam funções” (CASTELLS, individualista, tanto do sujeito como de sua
2002, p. 23). Sociologicamente toda e qualquer identidade e também machista era a identidade dele,
identidade é construída. O ponto é a partir de quê, o sujeito para o Iluminismo era o masculino.
por quem e para quê isso acontece. No caso do sujeito sociológico a identidade
Para Castells (2002) cada um dos processos é formada a partir da „interação‟ entre o Eu e a
de estruturação de identidade conduz a um resultado sociedade. O sujeito possui um núcleo interior
diferente no que diz respeito à constituição da considerado o „eu real‟, contudo vai se modificando
sociedade. Segundo o autor existem três maneiras e na medida em que se estabelecem diálogos
origens de construção de identidades. contínuos com os mundos culturais „exteriores‟ e as
Primeiramente a identidade legitimadora identidades que esses mundos têm a oferecer. Nesta
origina uma sociedade civil, quer dizer, todo o concepção há um preenchimento entre o mundo
sistema de organizações e instituições, com pessoal e o mundo público. Há um ligamento do
indivíduos organizados e socialmente estruturados, sujeito com à estrutura.
mesmo que em alguns momentos haja conflitos que
“reproduzem a identidade que racionaliza as fontes O sujeito, previamente vivido como
de dominação estrutural”. O segundo tipo, talvez o tendo uma identidade unificada e
mais importante da construção da identidade atual, estável, está se tornando fragmentado;
corresponde à identidade que provoca resistência. composto não de uma única, mas de
Uma resistência que necessita ser organizada várias identidades, algumas vezes

54
contraditórias ou não-revolvidas. flexibilização dos direitos trabalhistas” (GOMES,
Correspondentemente, as identidades, CARLOTO, 2010, p. 17).
que compunham as paisagens sociais Para ambos os sexos houve impacto deste
“lá fora” e que asseguravam nossa processo, advindo de uma nova maneira de se
conformidade subjetiva com as organizar a divisão do trabalho. De uma maneira
“necessidades” objetivas da cultura, geral o trabalho foi sendo precarizado, mas para as
estão entrando em colapso, como mulheres este fato foi mais acentuado conduzindo-as
resultado de mudanças estruturais e para o trabalho informal, primeiramente de ordem
institucionais. O próprio processo de simbólica, no que diz respeito ao serviço doméstico
identificação, através do qual nos e reprodutivo, que seria o espaço “natural”, e num
projetamos em nossas identidades segundo momento o material, a desqualificação
culturais, tornou-se mais provisório, feminina diante da nova ordem vigente do acúmulo
variável e problemático. (HALL, 2005, excessivo que exigia a alta qualificação da força
p. 12-13) produtiva. Ou seja, o que restou para as mulheres
desempenharem correspondia ao setor de serviços e
Para o autor este processo é que produz o os trabalhos que poderiam ser desenvolvidos em
sujeito pós-moderno, entendido como ser que não casa, o que demonstrava a insegurança em relação à
possui identidade fixa, essencial ou permanente. força de trabalho da mulher.
Seria o que o autor chama de “celebração móvel”: Muitas são as influências que recebemos
uma identidade que se formou e transformou-se durante a nossa vida, durante o trabalho de entrevista
continuamente se analisada ao conjunto das formas com as catadoras de papel notamos que ao falarem
que a cerca, pelas quais é representada e de seus antigos serviços muitas relembram com
questionada. Com o passar do tempo, e com o passar entusiasmo, embora gostem do trabalho que
das coisas pelo sujeito, ele vai adquirindo diferentes desempenham no momento de catar materiais
identidades em diferentes momentos, o que não recicláveis, os serviços antigos estão sempre na
permite a unificação de uma em específico centrada memória demonstrando que diante das
no „Eu‟. Cada pessoa possui diversas identidades oportunidades da vida não tiveram muito que
que conduzem a caminhos variados, o que causa o escolher. Sobre o entusiasmo em falar do antigo
deslocamento de nossas identificações. Aqueles que serviço é muito significativa a fala de D. R.21, 70
sentem que tem uma identidade unificada desde o anos de idade.
nascimento até a morte, são porque elaboraram uma
estória sobre si que os conforta e dá segurança. “A Quando eu vim morar aqui nessa cidade
identidade plenamente unificada, completa, segura e eu tinha uma filha, eu criei uma filha
coerente é uma fantasia” (HALL, 2005, p. 12-13). sozinha... Seu Solano, que já é morto,
Isto porque estamos cercados por um mundo que que começou a Cremone que é na
apresenta pluralidade de caminhos, nos quais Visconde de Guarapuava... naquele
podemos nos identificar com variadas identidades tempo nem era essas máquinas
que podem nos afetar. modernas... era assim tipo fazer polenta
e a salmora era feita assim, graus de
Mulheres catadoras: Identidade e Cidadania na gelo e feito o picolé... depois mais tarde
prática a gente saiu e eu fui pra vários lugares:
Maravilha, Erval do Oeste, fui pra...
As mulheres começaram a desempenhar não me lembro mais o nome do lugar
diversos papéis na sociedade. Muito além do seu lar, quando veio essas máquinas modernas
sua relação com o mercado de trabalho, segundo eu ensinava o povo fazer sorvete é... a
Gomes; Carloto (2010) andou de mãos dadas com as gente sabe faze de tudo... aqui eu fazia
transformações econômicas, sociais e culturais, o manual e vendia, só que aqui não tem
que acarretou novas características na divisão sexual pra quem... meu sonho sempre foi ter
do trabalho e nas condições de vida de trabalhadores uma porta aberta, mas ele não queria (o
e trabalhadoras. Para as autoras as configurações do marido), sempre foi lavoura... mas hoje
mercado de trabalho dos anos 80 e 90, também eu não to com pouca idade, to com 70
contribuíram para que a pobreza entre as mulheres anos né.
aumentasse. “Àquelas inseridas no mercado de
trabalho, assim como os homens, também foram 21
No intuito de preservar a identidade das mulheres
pressionadas pelos rebatimentos da reestruturação catadoras de material reciclável de União da Vitória as
produtiva, como o desemprego, a terceirização e a identificaremos no texto apenas com as letras iniciais de
seus nomes.
55
centro da cidade e outras que moram em bairros
Segundo Arendt (1983) o labor, diz respeito, mais distantes, mas que diariamente coletam tanto
ou está ligado, ao processo biológico do corpo nas vizinhanças como no centro da cidade.
humano, onde o crescimento, o metabolismo e por O centro, a cidade, é mais visado devido ao
ventura o declínio, estão intimamente ligados com as grande estoque que as lojas colocam nas ruas todos
necessidades que o labor proporciona no desenrolar os dias, atendendo a demanda de consumidores
da vida, propiciam aos catadores a maior concentração de
materiais para coleta. “Por razões de sobrevivência,
a condição humana do labor é a própria centenas de indivíduos tornam-se catadores de papel
vida. O trabalho é a atividade e de outros recicláveis, passam a definir-se por um
correspondente ao artificialismo da estilo de vida citadino, que manifesta,
existência humana, existência esta não objetivamente, o caráter heterogêneo dos ambientes
necessariamente contida no eterno ciclo urbanos” (FREITAS, 2005, p. 52).
vital da espécie, e cuja mortalidade não As condições de trabalho das catadoras nos
é compensada por este último. O demonstram na prática o que teoricamente
trabalho produz um mundo “artificial” conhecemos por exclusão social. Segundo Fontes
de coisas, nitidamente diferente de (2005) exclusão no Brasil engloba populações que se
qualquer ambiente natural. Dentro de concentram fora do mercado formal de trabalho,
suas fronteiras habita cada vida grupos condicionados a segregação espacial, racial,
individual, embora esse mundo se de gênero, etária, econômica, social. Um grande
destine a sobreviver e a transcender número de pessoas não atendidas por políticas
todas as vidas individuais. A condição sociais ou pela justiça, dentre os quais podemos citar
humana do trabalho é a mundanidade. os portadores de deficiências físicas, de doenças e
(ARENDT, 1983, p. 15-16) seus estigmas, os desempregados, os catadores e
seus estigmas, enfim todos aqueles que não estavam
O trabalho das catadoras de papel constitui preparados para as transformações advindas do
uma das atividades mais mal retribuídas, contudo sistema industrial e os trabalhadores do mercado
desenvolvem a primeira etapa do processo de coleta informal.
seletiva, reaproveitam o que outros desprezaram Sobre o estigma das catadoras de papel na
para poder ganhar o seu sustento. Se analisarmos fala de I. podemos notar como elas se sentem,
todo o processo desde a coleta nas ruas até o embora na transcrição da fala não possamos
beneficiamento do papel nas grandes empresas de expressar os sentimentos, as palavras são
reciclagem, notamos que a atividade de catar papel é verdadeiras e ditas com emoção
responsável por uma cadeia de produção à qual os
catadores em geral, nem tem conhecimento, pois das A gente sempre leva desaforo, porque
caixas que acham nas ruas muitas transformam-se tem muita gente ingnorante na rua, tem
em artigos de luxo para serem vendidos em muita gente que ajuda né, ajuda até
boutiques, as quais os catadores não tem alcance recicla pra gente só pega ou dão. Tem
nem para apreciar na vitrina, ou seja, o seu serviço muita gente que até disaforam a gente
gera o sustento, com custos mais altos, de muitos muito na rua, a gente passa muita
outros indivíduos. Os testemunhos que obtivemos Z. humilhação. Até risada eles dão da
L. nos retratam o seguinte quando questionada se gente... maió humilhação, mas vai faze
esse trabalho foi por opção ou a única alternativa: o que né a gente precisa tem que.
“Nóis fumo porque nóis tava tudo desempregado,
daí o único serviço que tinha, o mais fácil e o A tradição tutelar configura a história
serviço pra quem não sabe lê e escreve não é fácil, brasileira, onde ao invés de se formarem cidadãos,
não tem, não dão... e tamo até agora nesse aí” sujeitos coletivos de direitos, transbordam direitos
“Pessoas vivendo em um mesmo território, voltados a proteção pelo Estado, onde se
na mesma cidade, percebem e vivenciam mundos ou intensificam práticas assistencialistas que não
realidades diferentes” (FREITAS, 2005, p. 52). permitem ao indivíduo desenvolver sua autonomia.
Segundo a autora sujeitos desiguais que vivem em Sobre isso Demo (1995) nos explica que
situação de carência, tanto por falta de
oportunidades como por falta de reconhecimento, Mesmo sendo direito democrático,
procuram meios para sobreviver na cidade, por assistência, frente à cidadania, conota
razões econômicas e sociais. A nossa experiência de mais distância do que aproximação,
trabalho englobou catadoras que moram próximo ao porque um dos objetivos da

56
emancipação é sempre livrar-se de Durante o trabalho de pesquisa notamos que
laços da dependência, em nome de um a atividade de catar papel se configurou na única
sujeito histórico autônoma e alternativa, na visão das entrevistadas, para quem
organizadamente competente (DEMO, não tem estudo, como nos reportou E. F. quando
1995, p. 95) questionada se gosta da atividade de coleta “Nóis já
acostumemo, serviço que, que nem nóis que não
A idéia de esperar por uma ajuda, de alguém temo estudo então... eu trabalho por dia, argum dia,
que faça algo em prol dos menos favorecidos é de daí eu escapo do papel vo trabaia nas casa, mas é um
tamanha disseminação, como podemos notar na fala dia por semana, é meio dia por semana que dize.. daí
de E. F. sobre a proibição dos cavalos andarem pelo ainda ajuda um poco mas não é muito”. E quando se
centro da cidade mencionou a importância de seu trabalho “É eu acho
importante porque o serviço pra quem não tem
Vai prejudica mais porque vai faze estudo pode cai nele né e quem tem estudo vai pro
muita família passa fome porque se eles serviço mais fácil”.
liberasse todo mundo ninguém passaria Outro fato que nos chamou atenção sobre o
fome, que ia junta papel que não tem processo de educação foi o momento que
emprego ou eles viesse né ajeita serviço questionamos se haviam sofrido algum tipo de
pras mulher que daí os home né viviam preconceito, a maioria das catadoras diz que elas
disso, viesse nas casas e dissesse: Oh propriamente não, mas com os filhos, na escola
em tar lugar tem serviço pra voceis, muito. Com exceção de Z. L. que nos contou o
nóis ia... nóis somo da roça nóis ia do seguinte
serviço que ponha, até varre rua, mas é
que ninguém vem atrais, nóis somo Ah eu tomei um monte bem no começo,
obrigado a faze isso não sei, agora não, faiz tempo, mais
bem no começo, uma veiz nóis ia indo
Segundo Demo (1995) a assistência social ali perto da Maco... ela vinha vindo na
configura-se como um direito básico “que, nossa direção quando ela viu que nóis
normalmente supõe a formação da consciência ia da de encontro com ela, ela disse
crítica e a capacidade de organização política para assim pra outra: vo passa pro outro lado
conquistá-lo” (DEMO, 1995, p. 99-100), contudo da rua porque eu tenho nojo dessa
aqueles que não conseguem elaborar tal consciência gente, disse bem assim. Nóis fiquemo
crítica e nem se organizar politicamente estão à ofendido né, nojo só porque nóis tava...
mercê da sobrevivência. só porque ela tava bem arrumada. Daí
O autor nos explica que a educação está eu falei, mas ela não sabe o dia dela
entre as políticas sociais clássicas, para muitos o amanhã, porque as veis a pessoa pode
principal fator para o desenvolvimento “pelo seu ta numa boa e pode vira de vereda, num
impacto matriarcal na cidadania e na economia” dia e fica numa pior
(DEMO, 1995, p. 112). Das políticas públicas é a
mais próxima da cidadania, desde que abrigue a Outras catadoras nos exemplificaram
qualidade necessária para elaborar competência. situações do dia-a-dia de seus filhos na escola,
vejamos a fala de D.R.:
A educação não oferece a cidadania
automaticamente [...] Para que tenha Na escola, na escola eles fazem muito
condições de plantar e sempre renovar a com as criança, essa aqui estuda ali no
competência, são imprescindíveis São Cristóvão, diz que a menina chama
condições concretas favoráveis e ela de lixera... quantas veiz fui lá na
articuladas, principalmente o bom escola por causa disso...a menina
funcionamento do sistema e a qualidade porque chama ela assim, ta certo que
dos professores (DEMO, 1995, p. 147). ela é filha de catador, mas não precisa
ta chamando de lixera, come comida do
Com a educação temos outras funções lixo... esses dias me atentei lá na escola,
importantes como o acesso a informação e à claro nóis comemo do lixo sim porque
comunicação, críticos e questionadores como nóis vendemo as caxa pra come... daí
suporte, a busca das identidades culturais e as eu falei pra professora: porque ser
políticas de direito de cidadão (segurança pública, assim a gente é humilde também, agora
justiça e direitos humanos). não é porque eu trabalho no papel a

57
minha criança vai pra aula e ficam primeiros passos no ambiente escolar. Muitos
jogando... que isso aquilo, aquele outro desistem de estudar como no caso de N.S.:
é pobretona, que ela adora cata papel só
que eu não dexo ela cata, ela não sai O meu piá já, no colégio, até co diretor
cata ela fica na casa, estuda de manhã dele mesmo ele brigo, daí saiu da aula
depois do meio dia fica na casa, que se por causa que a piasada chamavam ele
eu fizesse os gosto dela ela tava essa de catador de lixo, isso é coisa que se
gaiota cheia essas hora, ela adora cata. fala né, daí o diretor é contra ele e a
favor da piasada... daí ele pego e
Neste caso nota-se que os filhos dessas desistiu do colégio... ele vai faze quinze
trabalhadoras, em alguns momentos as auxiliam em anos mas não ta mais estudando
seus afazeres, embora não saiam diariamente para
catar, levam consigo o estigma dos pais. Com estes casos podemos notar que as
Neste outro caso temos o seguinte, com o conseqüências da não-cidadania, de que nos fala
depoimento de E. Freitas (2005), não se encontram apenas no aumento
da pobreza, mas também no desenrolar de trabalhos
No outro colégio que eles estudavam, precários, no desemprego, e com este exemplo que
um dia a menina chamo ele de lixero, nos contou N. S. percebemos o descaso do serviço
ele e o piá da vizinha, daí eles também público que não está atento ao desenvolvimento de
eram mal educado e disse: se nóis somo condições de vida digna, que parece não se importar
lixero e vocês são pidonxera, andam muito que pouco se importa com “a projeção das
pidindo nas casa, são isso são aquilo. E imagens da exclusão, encarnadas em indivíduos
quase deu uma increnca grande, que daí cujas existências parece não importarem a ninguém”
o pai da menina cerco eles né, daí a (FREITAS, 2005, p. 144).
diretora tinha me chamado lá. Eu falei A não-cidadania, de acordo com a autora, é
não eles são lixero mesmo porque na perceptível também na relação com os
verdade eles não são lixero porque o atravessadores, principalmente porque os catadores
que nóis trazemo não é lixo, lixo de forma geral sentem-se prejudicados no momento
ninguém compra, compra o reciclável. da venda, na questão da pesagem. Outro ponto é a
E eles chamaram de pidonxera, exploração dos atravessadores que se aproveitam do
mendigo porque voceis andam pidindo analfabetismo destes trabalhadores, fato este que é
que é pior... pidi eu acho que é feio, um dificultador para o desempenho de um direito, o
acho eu não sei, cada um faiz como qual não deve ser negado a nenhum indivíduo, de
qué, mas eu acharia se fosse eu faze acompanhar todo o processo de seu trabalho,
isso, acharia feio segundo Freitas (2005) mais uma expressão da não-
cidadania. Isto tudo podemos notar na fala de E. F.
Percebemos aqui, com estes dois exemplos,
que as catadoras em nenhum momento Ah eu largava do papel porque nóis
menosprezam seu trabalho, pelo contrário, estão trabaiemo porque não tem serviço... a
convictas de que sua dignidade deve ser preservada gente entrega um caminhão de
já que este é um trabalho que garante o sustento da reciclável a gente ganha cinqüenta
família como nos contou D. R. “Nóis tuda vida conto em quinze dia isso ai não vale a
trabaiemo na reciclage, eu criei meus filho, criei pena, sofre tanto né, amarra fardos de
meus filho na reciclage... criei as criança tudo no papel grande e tudo bem arrumadinho,
serviço da reciclage, naquele tempo não existia sem lixo nenhum no meio e ainda a
creche nada eu levava junto trabaia”. gente não ganha nada... pra fala a
Com estes exemplos de histórias de vida, verdade não sei se os papelero
podemos considerar que a educação é uma via de (atravessadores), se eles tira de nóis ou
mão-dupla no quesito cidadania, pois, enquanto ela o que que eles fazem porque o
deveria ser uma das maneiras que viabilizam a caminhão vai derramando papel e não
construção da noção de cidadania, o preconceito que da nada... é que ele (o marido) faiz
é desenvolvido dentro de diversas instituições da rolo... porque se for do papel a gente
sociedade, prejudica o crescimento educacional não faiz nada
destas crianças impossibilitando que elas tenham a
oportunidade de tomar conhecimento de que estão A fala desta catadora corresponde ao
construindo, elaborando sua cidadania, dando os questionamento referente a oportunidade de mudar

58
de emprego, mas nela podemos identificar também o A condição fundamental para o exercício da
processo da venda dos materiais recicláveis, o fato cidadania é autoconstrução do indivíduo sujeito, de
de trabalharem em outros serviços além da coleta, acordo com Freitas (2005)
nesta fala ela cita o marido, mas em um momento
anterior, que já citamos, ela fala que ela mesma A caridade assistencialista em excesso,
desempenha a atividade de diarista em alguns ou o paternalismo, inviabiliza a
momentos. Os catadores de União da Vitória construção de sujeitos coletivos, a partir
desempenham para complementar a renda da dos pobres. Se pobreza é questão de
família, além da coleta, atividades sazonais como o direitos e de conquista de cidadania, a
corte de erva-mate, o que eles denominam de combinação da repressão do poder
trabalho no mato, tanto homens como mulheres. Já público e com o excesso de tutela da
aos homens cabem também os serviços de pedreiro, filantropia privada constitui, em fins da
marceneiro, pintor, e às mulheres principalmente década de 80, um dos grandes desafios
empregadas domésticas e diaristas. colocado para a reconstituição da
Para Freitas (2005) “o uso do instrumento de identidade e para o movimento de luta
tração humana, o carrinho, deprecia a imagem deste por direitos, encampado pelos catadores
trabalhador e revela a intensidade de sua capacidade de papel. (FREITAS, 2005, p. 179)
de resistir à exclusão, na luta diária pela vida
(FREITAS, 2005, p. 218). As catadoras consideram Freitas (2005) realizou seu trabalho com os
também depreciativo mexer nas sacolas de lixo, catadores de Belo Horizonte que lutaram, na década
embora poucas pessoas separem o reciclável do de 80, pelo seu reconhecimento enquanto
orgânico, muitas reclamam quando as catadoras trabalhadores e consequentemente como cidadãos,
reviram o lixo, como nos contou E. “Não, teve gente contudo podemos notar que a mesma dificuldade
que reclamo e é falta de educação mesmo é abri as que os catadores de BH tinham para se compreender
sacola se a pessoa ponho... passa um, como fazem, enquanto cidadãos, as catadoras de União da Vitória
rasgam e dexam ali, isso eu nunca tive, mas eu também têm, e os fatos que prejudicavam a
nunca abro as sacola, se eu vejo que é só reciclável constituição do “Eu cidadão” lá, são os mesmos que
que não precisa abri eu trago se não fica”. Isso é afetam aqui, ou seja, se generalizam por toda a
claro também na fala de E. F. “o papel que nóis sociedade brasileira. O assistencialismo é um dos
vemo que vende o que não vende nóis já nem principais fatores como podemos notar na fala de I.
juntamo e pegamo o que ta separado também o lixo C.
que ta orgânico que não presta pra nóis meche nóis
não mechemo”. Sobre o veículo de trabalho N. S. Nas casas tem preconceito, sempre
considera importante trabalhar não importando com tem... vai meche no lixo eles xinga a
o que se trabalha “Quando não tamo co a gaiota nóis gente... mas se o prefeito não põem
tamo co a bicicleta, as veiz o meu piá acha na serviços pa nóis vai faze o que, o único
estrada e traiz... O importante é não faze vergonha, serviço é nóis sai pro mundo por ai
não sabe, roba, né e trabaia”. junta o que encontra... olha o que tem
Muitos são os casos de preconceito que as de gente catando papel, me Deus, de
catadoras nos contaram, como falamos bicicleta, de carroça, de carrinho.
anteriormente os principais acontecimentos se deram
com os filhos delas nas escolas. Contudo algumas
falas são significativas, pois nos fazem refletir sobre Segundo Freitas (2005) nos momentos de
nossas atitudes, como por exemplo o que nos fala E. tragédias, catástrofes não podemos desmerecer a
F. ação da assistência social, o que é preciso
compreender é que “se essas ações não
Tem gente que nem óia pra nossa cara, ultrapassarem os limites de uma doação que
porque ta cas mãos suja juntando lixo satisfaça, apenas imediatamente, as necessidades dos
né, e não é lixo que nem eles falam é pobres, servem para reforçar ainda mais o estigma
reciclável só que eles falam lixo né da pobreza dependente e a imagem do pobre como
lixero, daí muita gente fica com objeto de caridade assistencial” (FREITAS, 2005, p.
vergonha mas otros já não ligam pra 179).
essas coisa, tão falando tão fazendo mal
pra eles não pra nóis.

59
Considerações Finais lixo sabe, vai tudo assim no meio dos
orgânico, do papel higiênico, por que?
Entendemos por cidadania o conjunto de Se eles sabem que tem bastante
diretos respectivos aos direitos civis, sociais e coletador, quando eu vo nossa, encontro
políticos, Marchall (1967) citado por Freitas (2005) um em cada esquina, nossa tem
considera estes como três elementos acerca da bastante coletador, por causa que a vida
cidadania. O elemento civil é entendido pelo autor ta muito difícil, ta muito dificultoso pra
como o conjunto de direitos que correspondem à todo mundo... Por que as pessoa não
liberdade, seja ela liberdade individual, liberdade de separa o lixo?
ir e vir, liberdade de imprensa, direito à justiça e o
direito de estabelecer contrato. Diante da sociedade Para Fontes (2005) enquanto a cidadania vai
capitalista em que nos encontramos e da economia tornando possível a participação direta no exercício
de mercado atual, são estes direitos que incluem os do poder público, ao mesmo tempo proporciona a
indivíduos na sociedade e os tornam livres e iguais soberania popular constituindo um elemento
perante a lei. essencial da democracia. Lembrando que é
O elemento político é compreendido como o necessário unir os direitos políticos aos direitos
direito de poder participar no exercício do poder sociais, assinalando que os direitos políticos
público. proporcionam a organização para se conquistar os
direitos sociais.
O indivíduo, ao exercitar este poder, é
reconhecido como membro de um A participação se torna um meio
organismo investido de autoridade fundamental de institucionalizar
política ou como alguém que elege pelo relações mais diretas e flexíveis e
voto os membros de tal organismo. Ao transparentes que reconheçam os
cidadão, no exercício desse direito, é direitos dos cidadãos; assim como de
assegurada a liberdade de se organizar e reforçar laços de solidariedade num
lutar pela ocupação livre do espaço. contexto de pressão social e polarização
(FREITAS, 2005, p. 241) política na direção de uma cidadania
ativa que disponha dos instrumentos
Por fim o elemento social engloba tudo o para o questionamento permanente da
que está entre o mínimo de direito de bem-estar ordem estabelecida. (JACOBI, 1999, p.
econômico e segurança, ao direito de participação 38)
social, civilizadamente, de acordo com as normas
que prevalecem na sociedade. Precisamos conquistar nossos direitos, pois
Tomando por base os depoimentos das eles não irão bater em nossa porta. Notamos durante
catadoras entrevistadas percebemos que a falta de nosso trabalho que as catadoras não compreendem
participação da sociedade no seu trabalho é exatamente como se estabelecem os direitos que
constante, as falas sempre indicam que as pessoas proporcionam a cidadania, não compreendem para
não estão separando os materiais devidamente, como si, contudo para os filhos sempre desejam um futuro
podemos notar nesta fala de V. R. “Tem gente que melhor, onde tenham condições melhores de vida,
recicla, já deixa certo, tem gente que não, não liga embora não se desligando daquilo que seus pais
muito e a gente pra não perde o material a gente fazem o que serve de base do sustento da família e
leva, tem gente que não gosta... na verdade acho que do mundo de trabalho que até então eles tem
todo mundo deveria se conscientiza, o pessoal ta conhecimento, como podemos observar nesta fala de
reciclando vo ajuda né, vo faze a minha parte.” Z. L. “Ah eu até inquanto dé e ninguém impedi nóis
A consciência em relação ao meio ambiente eu vou coleta... pros meus filho não né eu quero que
e ainda sobre a questão anterior é bastante clara eles estudem e peguem um outro rumo né, desejo
nesta fala de Z. T. uma coisa milhor pra eles, mas é bom eles aprende
porque mais tarde a gente não se sabe o dia de
Eu gostaria que as pessoas se amanhã”. Muitas catadoras recebem o auxílio de
conscientizassem mais pra separa mais seus filhos na atividade de coleta e de triagem dos
o lixo porque muitas vezes esse lixo, materiais recicláveis, em alguns casos
como eu vejo ali no rio Iguaçu, muitos principalmente no momento de guiar a carroça, algo
litro boiando ali muita sujera, essa água que elas consideram difícil e que não gostam de
ali ta poluindo pra nóis mesmo, e tem fazer.
muita gente que não ta separando os

60
Embora não tenham muito claro o conceito Precisa, fazendo-se sujeito, fazer-se
de cidadania as catadoras gostam de sua atividade, oportunidade. (DEMO, 1995, p. 134).
recebem ajuda e ajudam os demais
Atitude de buscar pelo sustento de suas
Pra mim qualquer trabalho é trabalho, famílias é o que não falta às catadoras, mas elas
como a gente foi mais nova era de precisam compreender-se, enquanto trabalhadoras,
balcão da sociedade... mas tem muita como oportunidade de fazer-se sujeito, precisam
gente que tem vergonha, ai de ir catar, a compreender o que já está se configurando, uma
gente ganha muita coisa desde roupa, sociedade onde as chances de entrar no mercado de
desde tudo inclusive eu do pros outros trabalho diminuem progressivamente, devido à
porque aqui nóis somos só em três... exigência de qualificação, que abriga também
então ajuda em alimento, roupa... é trabalhadores do mercado informal, como é o caso
muito gratificante. D. R. delas, que estão constituindo um cenário de
vivências múltiplas e conquistas nos âmbitos
Assinalamos aqui que a ajuda a qual a econômico e social.
catadora se refere não é ajuda de assistência social,
são pessoas da comunidade que doam roupas, REFERÊNCIAS:
calçados e alimentos. Podemos constatar que o dia-
a-dia das catadoras de papel de União da Vitória AQUINO, Julio Groppa. A desordem na relação
consiste em atividades do lar, de coleta, triagem e professor-aluno: indisciplina, moralidade e
venda de materiais recicláveis. A atividade de coleta conhecimento. In: AQUINO, Julio Groppa (org.).
compreende cerca de cinco horas por dia e varia Indisciplina na Escola: Alternativas teóricas e
entre quatro e cinco dias por semana. Ou seja, práticas. São Paulo: Summus, 1996.
programam o seu horário de trabalho e sentem-se ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de
bem por não ter ninguém regulando o seu serviço. Janeiro: Forense – Universitária, 1983 (pags. 15-78)
O mais perceptível na elaboração da CARLOTO, Cássia Maria; GOMES, Anne Grace.
cidadania das catadoras é que elas não têm Grupos de geração de renda para mulheres: reforço
conhecimento de como entenderem-se enquanto ou ruptura com a divisão sexual do trabalho? Anais
cidadãs participantes da sociedade, os vínculos de do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e
ligação com o poder público sempre estão ligados ao Políticas Públicas. ISSN 2177-8248 Universidade
assistencialismo. Falta abertura ao diálogo, à Estadual de Londrina, 24 e 25 de junho de 2010. GT
comunicação e à escuta entre estes dois segmentos 7. Gênero e Trabalho – Coord. Anne Grace Gomes.
para que as catadoras obtenham condições para CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio
conhecerem e exercerem seus direitos civis, sociais e de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
políticos. O primeiro e principal ponto que viabiliza CIRINO, Marcelo Maia; SOUZA, Aguinaldo
este processo é a educação. Robinson de. O discurso de alunos do ensino médio
Segundo Aquino (1996) “o acesso pleno à a respeito da "camada de ozônio". Ciência &
educação é, sem dúvida, o passaporte mais seguro da Educação. (Bauru). 14 n.1 Bauru, 2008. Disponível
cidadania, para além de uma sobrevivência mínima, em:
à mercê do destino, da fatalidade enfim” (AQUINO, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&p
1996, p. 48). Para este autor aqueles que se id=S1516-73132008000100008&lng=pt&nrm=iso.
encontram a margem da escolarização não dispõem Acessado em 06/06/10.
das condições mínimas para se entenderem como DEMO, Pedro. Cidadania tutelada e cidadania
cidadãos. A elaboração da cidadania se dá no assistida. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.
momento em que cada um toma conhecimento do FONTES, Virginia. Reflexões im-pertinentes:
seu “Eu”, ou seja, quando se compreende como História e capitalismo contemporâneo. Rio de
sujeito ativo e participante da sociedade. Janeiro: Bom Texto, 2005.
FREITAS, Maria Vany de Oliveira. Entre ruas,
Com base na consciência crítica, que lembranças e palavras: A trajetória dos catadores
busca compreender as razões da de papel em Belo Horizonte. Belo Horizonte:
exclusão e sua condição de injustiça, o Editora PUC Minas, 2005.
sujeito histórico cai em si uma segunda HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
vez, descobrindo que, para fazer modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2005.
oportunidade, ele é a peça-chave, IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatíticas.
porque ele é a alma da oportunidade. Indicadores de Desenvolvimento Sustentável –
Brasil 2002. (Disponível em:

61
http://www.ibge.gov.br/servidor_arquivos_est/.
Acessado em 06/06/10.
JACOBI, Pedro. Poder Local, políticas sociais e
sustentabilidade. Saúde e Sociedade 8(1): 31-48,
1999. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&p
id=S0104-12901999000100004. Acessado em
06/06/10.
PERROT, Michele. Os excluídos da história:
operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In. BURKE,
Peter (org.) A escrita da História: Novas
perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992.

62
NA TEIA DA VIDA:
CRIMINALIDADE
E ACESSO À
JUSTIÇA POR
ESCRAVAS E
FORRAS NAS
MINAS
SETECENTISTAS
Kelly Cristina B. Viana
Doutoranda em História
pela Universidade de
Brasília – UNB
Bolsista CNPQ
Orientadora: Drª Tereza
Cristina Kirschner

O ofício do historiador é um ofício de


homens que escrevem a história no
masculino. Célebres - piedosas ou
escandalosas - , as mulheres alimentam
as crônicas da “pequena história”,
meras coadjuvantes da História
(PERROT, 1988:185).

Nas últimas décadas no Brasil tem ocorrido


várias conquistas, no que se refere à historiografia,
conquistas que vão muito além de escolhas e
caminhos teóricos. A historiografia referente às
questões de gênero foi uma das que mais contribuiu
nestas mudanças nas maneiras de pensar a História e
o papel do historiador. As trilhas e os personagens
destas questões foram muitos, e nem sempre
convergentes entre si.
No início dos anos 80 surgiram
pesquisadores que mostraram a necessidade de se
criar uma nova forma de tratamento para os estudos
relativos às mulheres, sem que fossem centrados de
63
maneira exclusiva sobre elas. Assim, nesta dominantes, sendo que os envolvidos não serão
perspectiva, elaborou-se uma nova metodologia – a julgados nem tanto pelo ato criminoso em si, mas
categoria de gênero22 - buscando-se a utilização de pela adequação de seu comportamento às regras de
formulações mais teóricas e abrangentes que inclua a conduta moral consideradas legitimas. Emerge daí
história dos homens e das mulheres em suas uma imagem assimétrica da relação homem/mulher,
múltiplas conexões, hierarquias e relações de poder. reafirmando-se através da pesquisa a contribuição do
A partir desse momento, surgiu então uma judiciário para a manutenção dos valores
história das mulheres articulada com a categoria dominantes, assim como de manutenção e
gênero. Para que possamos entender melhor a perpetuação da desigualdade entre homens e
história de gênero, convém lembrarmos a explicação mulheres nas sociedades.
dada por Leila Mezan Algranti a questão Maria Odila Leite da Silva Dias em seu
estudo “Quotidiano e poder em São Paulo no século
(...) consiste em trabalhos que embora XIX” (DIAS,1995), a historiadora se propôs,
não tenham a intenção de trabalhar exatamente, penetrar na dura labuta das mulheres
especificamente com as mulheres ou de pobres (livres, forras e escravas). A autora
transformá-las em seu objeto demonstrou também através de metodologia
primordial, levam em conta as específica, a forma como os historiadores podem
experiências e as relações de gênero, buscar os personagens iletrados e alijados do poder
considerando que homens e mulheres nos mais diversos tipos de fontes oficiais, pois estes
vivenciam situações de forma documentos deixam entrever a participação dos
diferente.(ALGRANTI, LPH) grupos dominados na sociedade mesmo que por
meio de terceiros. Assim, Maria Odila mostrou o
Assim sendo, ao lado das noções de raça e caminho das pedras a muitos pesquisadores
classe, a noção de gênero contribuiu para a expansão comprometidos com o estudo dos grupos
dos interesses da nova historiografia por uma dominados, demonstrando que fontes oficiais, como
história que incluísse o discurso dos “excluídos”. é o caso dos processos judiciais, possuem frestas por
Nos caminhos desta renovada perspectiva onde o pesquisador pode resgatar personagens antes
historiográfica houve a produção de ênfases, ignorados pela historiografia. É por uma destas
esquecimentos e escolhas. Há algumas décadas os frestas que pretendemos explorar as relações entre
historiadores têm examinado a atuação das mulheres essas mulheres, sobretudos cativas e forras, e a
em diversos contextos. As novas pesquisas justiça na capitania mineira.
realizadas a partir da perspectiva dos estudos de Outros trabalhos surgiram enfocando as
gênero, têm acompanhado o movimento observados mulheres do povo em vários períodos da história do
em outros países e rompidos com a imagem Brasil. A exemplo de Maria Odila, a historiadora
monolítica de uma mulher apenas subjugada ao pai Rachel Soihet também busca retratar o cotidiano das
ou ao marido. Guiados por estes estudos que buscam mulheres, porém o faz para o Rio de Janeiro do
retratar os grupos socialmente “excluídos” da início do período Republicano, em sua obra
narrativa histórica, os pesquisadores têm buscado “Condição feminina e formas de violência –
novas formas de aproximação com o cotidiano mulheres e ordem urbana” (SOIETH, 1989) a
destas mulheres. autora se baseia em processos criminais como sua
Entretanto, poucos são os trabalhos que principal fonte de pesquisa, e busca através destes
investigam as relações entre gênero, violência e documentos reconstruir os conflitos diários das
acesso a justiça. Um estudo pioneiro neste sentido é mulheres pobres cariocas, mostrando que a justiça, o
a abordagem da antropóloga Mariza Corrêa, “Morte aparelho judiciário e a força policial se constituíam
em família: representações jurídicas de papéis em eficientes recursos do sistema vigente para
sexuais” (CORRÊA,1983), na qual demonstra que o disciplinar, controlar e estabelecer normas sobre as
que esta em defesa em cada julgamento é um mulheres da classe trabalhadora, levando-as a
sistema de valores visto como universal e absoluto. assumir as posturas desejadas. Ressalta ainda, com
Os julgamentos vêm reafirmar as normas excelente ineditismo, que tais mulheres não se
constituíam apenas em objeto de dominação: as
22 mulheres das camadas populares também usaram de
Segundo Joan Scott, a categoria de gênero foi criada na
década de 1980, para que os estudos feministas violência para defender seus direitos ou por uma
ganhassem legitimidade acadêmica. O “gênero”, questão de sobrevivência. Assim a autora também
diferentemente da história feminista, inclui as mulheres coloca, mesmo que paralelamente, a discussão a
sem as especificar. SCOTT, Joan. Gênero: uma mulher enquanto criminosa.
categoria útil de análise histórica. Recife: SOS corpo,
1991.
64
Analisando também as mulheres da classe perseverantes, buscando o Tribunal também para
trabalhadora, Margareth Rago em sua obra “Do garantir direitos e conquistas. Porém a autora centra
cabaré ao lar”(RAGO, 1985) trabalha numa sua análise na documentação da Justiça Eclesiástica
perspectiva da história social, ou como ela mesma e não enfoca os crimes julgados pela justiça civil,
diz, seu tema central é a "cultura operária e deixando de fora de sua análise um aspecto
disciplina industrial". A autora trabalha com a importante para o entendimento das relações
cultura operária no desenvolvimento de seu tema, femininas do cotidiano urbano das Minas Gerais
abarcando as mulheres entre as classes sociais, setecentistas.
falando sobre domesticação da classe operária e Isto posto, percebemos que as pesquisas das
sobre a redefinição dos papéis familiares atribuídos últimas décadas, têm permitido demonstrar que a
principalmente à mulher. Nesta obra o tema da sociedade escravista colonial era formada por
violência é abordado de forma tangencial, onde a agentes sociais múltiplos, dentre eles, a mulher
mulher esta sujeita a violência, sobretudo no espaço escrava e forra. As evidências encontradas na
privado, no cotidiano do lar. documentação mostram que estas adquiriram uma
No que se refere a temática das mulheres na certa autonomia para gerir suas vidas, ainda que esta
sociedade mineira colonial, os trabalhos procuram autonomia fosse pequena e ameaçada pelas
resgatá-las sobretudo, a partir do cotidiano do características inerentes à instituição da escravidão.
trabalho no espaço da economia urbana mineradora. A compreensão da vivência cativa vem
A obra “O avesso da memória” (FIGUEIREDO, sendo pesquisada através de vários recortes e
1993) de Luciano Fiqueiredo é referência obrigatória temáticas. Um deles diz respeito aos mecanismos de
para uma maior compreensão do universo do apelos judiciais encabeçados por escravos, pelos
trabalho feminino nas Minas Gerais escravista. O quais eles reivindicavam a liberdade e outros direitos
autor destaca a grande presença de negras escravas e na justiça.
forras trabalhando no pequeno comércio de A análise das fontes nos mostra que muitas
abastecimento da capitania. Em sua análise aborda escravas e forras eram hábeis conhecedoras dos
também a questão da prostituição e da vida familiar caminhos que davam acesso a justiça. Algumas
destas mulheres, enquanto a violência é apenas pareciam conhecer esta estrutura muito melhor que
pontualmente abordada dentro deste contexto. seus próprios senhores. Tal capacidade parece ter se
A exemplo de Luciano Figueiredo, outros desenvolvido mais nas vilas com maior
autores, como Eduardo França Paiva, em “escravos concentração urbana, uma vez que, os contatos entre
e libertos nas Minas Gerais do século XVIII” as pessoas eram mais constantes e havia uma maior
(PAIVA, 1995), também examinam as relações dinâmica nas práticas sociais.
cotidianas na capitania de Minas Gerais. O que há de Quando se pretende estudas as relações
particular na abordagem de Paiva é que o autor estabelecidas entre as escravas e o aparelho
analisa as estratégias de resistência dos escravos judiciário da capitania uma das primeiras que se
através da análise dos testamentos de seus senhores. apresentam é qual a condição jurídica do escravo na
O autor observou que as mulheres, mais do que os legislação? Segundo Arno e Maria José Wehling
homens, parecem ter apreendido e manejado melhor (WEHLING, 2004: 479-499), a legislação
os mecanismos de defesa existentes ao seu dispor na portuguesa apresenta, tanto para Portugal quanto
sociedade escravista. para suas colônias, um caráter ambíguo em relação à
Percebemos, entretanto, que a maioria dos escravidão. A legislação portuguesa entendia o
estudos enfoca o papel da mulher das camadas escravo como res, ou seja, como coisa. O escravo
“desclassificadas” da sociedade colonial, mas não era considerado uma propriedade pela lei, estando
centram suas análises no tema da violência ou da subordinado ao poder do senhor e equiparado às
relação destas mulheres com a justiça. Uma ressalva coisas, constituindo-se em objeto de propriedade,
deve ser feita ao trabalho de Marilda Santana da não tendo personalidade, privado de toda capacidade
Silva, pois a historiadora em sua obra “Dignidade e civil. Para a lei penal, o escravo, sujeito ou agente do
Transgressão: mulheres no tribunal Eclesiástico em delito, era considerado pessoa e não coisa. Dessa
Minas Gerais” (SILVA, 2001) busca recuperar as maneira, responderia diretamente pelos delitos que
relações entre as mulheres mineiras na colônia e o viesse a cometer (REIS JÚNIOR, 2008).
Tribunal Eclesiástico, enfocando que tipo de delitos Ainda segundo os autores, a legislação
o tribunal julgava, e como eram punidas pela Igreja portuguesa aceitava a participação do escravo em
a autora mostra inda que ao se relacionarem com o uma lide, desde que representado por alguém que
Juízo Eclesiástico, além de transgressoras – julgadas tivesse uma condição diferente da dele, ou seja,
por infrações às convenções e às leis que regiam fosse livre. Desta forma, parece-nos claro supor que
essa sociedade – eram também orgulhosas e pelo menos de acordo com a legislação o cativo era

65
incapaz de se auto-representar nos tribunais, seu serviço em que lhe deve pagar a três
necessitando, portanto, de assistência, que em alguns coartos por semana...23
casos podia chegar a ser de um advogado.
Entretanto, de acordo com Arno e Maria José A ação movida por Anna crioula contra
Wehling, encontra-se entre a documentação do Jerônimo Francisco Ribeiro, que após a morte de
tribunal da relação, um pequeno número de casos em Antônio Ferreira Coelho, passou a ser o procurador
que os escravos aparecem em juízo como de seu testamento, e como vemos pela ação movida
suplicantes, sem a representação de alguém que não respeitou a coartação estabelecida por Antônio e
fosse livre.(WHELING, 1999) voltou a reduzir Anna crioula ao cativeiro,
Entretanto, analisando a documentação impossibilitando que ela recebesse seus jornais, além
judicial da capitania de Minas Gerais, da segunda de desejar voltar a sua condição anterior de escrava
metade do século XVIII e primeira metade do século coartada, Anna ainda deseja ter seu prejuízo pelo
XIX, encontramos evidências de que na grande tempo que trabalhou injustamente pago por
maioria das ações judiciais encaminhadas a Jerônimo Ribeiro. Outro ponto que chama a atenção
Secretária de Governo da Capitania eram os próprias na ação de Anna é o fato desta ação judicial estar
escravas e forras que se faziam representar. baseada num direito costumeiro, como era o caso da
Percebemos também que apesar da cativa ou forra coartação. O costume foi aqui adotado como fonte
pedir auxílio a alguém alfabetizado para que supletiva do direito, portanto, era mais uma
redigisse o requerimento que devia ser encaminhado referência jurídica, com suas particularidades, em
à justiça, esta pessoa não aparece depois assumindo meio a várias outras. Os cativos parecem ter
qualquer responsabilidade judicial sob estas entendido bem a força dos costumes e passaram a
mulheres. Mesmo nos casos em que as próprias sustentar seus pedidos sobre eles a fim de ter seus
escravas ou forras acionavam seus senhores na direitos respeitados.
justiça não se percebe a presença de um curador para Outro caso de forra injustamente
zelar pelos interesses das cativas. Assim, fica claro, tomada como cativa ocorreu em Mariana, no ano de
que embora na lei fosse necessário um representante 1772. A crioula Isabel Pereira move uma ação
legal essa não era uma prática constante nos contra o reverendo cônego Francisco Ribeiro da
tribunais mineiros, o que possivelmente foi um fator Silva
facilitador para estas mulheres evocarem a justiça.
No intuito de demonstrar esse acesso destas Ilustríssimo e excelentíssimo senhor
mulheres cativas ou forras à justiça, analisaremos a Isabel Pereira crioula forra Jurama (sic)
seguir a ação movida por Anna crioula, escrava de Josefa da Trindade também crioula,
Antônio Ferreira Coelho escravos que foram do defunto Manoel
Pereira Mello, e por na morte forrar no
Diz Anna crioula que sendo escrava de mesmo testamento com que faleceu
Antonio Ferreira Coelho morador que como fazem certo por certidão verbal
foi no sertão do Corimatahi este a do mesmo testamento se acha
coartou a suplicante no preço de oitenta cabalmente provado pelas testemunhas
mil reis com a declaração que consta da que Vossa Excelência foi servido
copia do corte incluso reconhecido em mandar-me tirar por sumário e da
publica forma e como Jerônimo mesma sorte tem o Reverendo Cônego
Francisco Ribeiro conduziu a suplicante Francisco Ribeiro da Silva retido em
para sua casa aonde se acha trabalhando seu poder a título de cativa bastantes
para o dito Ribeiro como escrava anos tratando-a sempre como tal,
privando por este modo a suplicante de metida em ferros, açoitada e castigada
toda a sua agência para com ela sendo executora de tudo uma chamada
satisfazer a condição exposta no mesmo D. Quitéria intitulada sua sobrinha não
papel de Areto(sic) e assim se vale a obstante ter lhe mostrado ao dito
esta miserável pobre da piedade de V. Cônego os meios por onde tinha
Ex.ª para não ter quem por ela seja
mandante a quem V. Ex.ª vir demais
pureza pague o suplicado a suplicante 23
APM/SG-DNE ,Cx 16- Doc 10, 23/03/1786. Apud:
todo o tempo em que a tem retido de GONÇALVES. Jener, Cristiano. Justiça e direitos
baixo do seu domínio trabalhando no costumeiros: apelos judiciais de escravos, forros e
livres em Minas Gerais (1716-1815). Belo Horizonte.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH,
2006. Dissertação de Mestrado. (mimeo) p. 94.
66
adquirido a sua liberdade, os quais lhe arruaças pela rua, sendo mulher
atropelava e não eram atendidos(...)24 violenta e de má índole. 25

Após a inquirição das testemunhas fica A querela de Anna Roza nos oferece, ainda,
provado tanto a liberdade de Isabel quanto os maus indício de como uma comunidade colonial conhecia
tratos a esta realizados pelo Cônego e sua sobrinha e grande parte de seus moradores e sabia identificá-
governador das Minas D. Jose Luis de Menezes, los, particularmente, neste caso, se tratando de uma
manda que seja restituída a liberdade a cativa. O “mulher de índole violenta”. Bem como relata o
documento nos mostra a fragilidade da liberdade caráter das relações sociais estabelecidas pelos
conquistada por estes escravos em Minas, pois sujeitos históricos que se envolveram em cenas
apesar de ser de conhecimento público na vila que cotidianas como a descrita, seja por seus ofícios, seja
Isabel era forra e mesmo tendo como prová-lo por suas relações particulares ou mesmo superficiais
através do testamento de seu ex-senhor, Isabel com os querelantes e querelados. Esta fonte descreve
passou anos sendo mantida como cativa e castigada o dinâmico universo urbano marcado pela violência,
como tal. Isabel entra em juízo para requerer sua na qual a opinião pública era considerada pelas
liberdade. A atitude de Isabel mostra uma postura, autoridades judiciárias quando algum fato ocorrido
mais comum do que se imagina, dos escravos diante com seus habitantes tornava-se “público e notório”.
de tal situação, procurando o cumprimento de seus Revela também outra faceta da sociedade na qual as
direitos através da via legal, recorrendo à justiça. mulheres, em vez de se comportarem de maneira
Entretanto, não apenas para recorrer passiva e recatada, envolviam-se em conflitos
sobre seus direitos forras e cativas chegam ao violentos como maneira de resolver as questões do
aparelho judicial, muitas são denunciadas por crimes seu dia-a-dia.
que cometeram e são levadas a justiça para serem Na querela movida por Anna Roza dos
punidas pelos mesmos. Exemplar neste sentido é a Santos a agressora Angelica Mendez comete o crime
querela movida em 1814 contra a forra Angélica de caso pensado, mostrando que a rixa entre as duas
Mendez, moradora na vila de Nossa Senhora da era na verdade um conflito antigo que resulta num
Conceição do Sabará, a forra é acusada de agredir desfecho violento. A querela retrata também apesar
Anna Rosa dos Santos de Angelica Mendez tendo recorrido a violência para
resolver um conflito antigo, o fato de esta violência
Lourença dos Anjos, crioula forra ter ido parar na justiça e não ter sido simplesmente
moradora nesta Villa Real de Nossa vingada por parte de Anna Roza, mostra que a
Senhora da Conceição de Sabará justiça era vista como mediadora dos conflitos
Comarca do Rio das Velhas, que vive urbanos.
de fiar seus algodões (...) E perguntada A justiça era entendida também como uma
ela testemunha pelo conteúdo no auto local para uma possível reparação da frente a uma
da querela da querelante Anna Roza dos ultraje sofrido, e como estar envolvida em uma ação
Santos disse por saber ser público e judicial podia manchar a honra dos acusados.
notório na dita Vila que no dia seis do Exemplo disso é a querela movida em vinte e sete de
corrente mês de dezembro de mil janeiro de 1816, por Maria Izabel de Sampaio contra
oitocentos e quatorze que indo a Maria Felisberta, ambas moradoras na Vila de Nossa
querelante a recolher-se para sua casa Senhora da Conceição do Sabará.
pelas oito horas da noite antes de
chegar a Igreja do Carmo saiu ao seu Diz Maria Izabel de Sampaio moradora
encontro a forra Angélica Mendez na rua da Lagoa desta Vila que vindo
moradora a Igreja do Carmo digo ela de sua casa para a Igreja do Carmo,
moradora nesta Vila, e com outro que a ao terço senão sete para oito horas
dita testemunha não conhece, de pouco mais os menos da noite e
propósito e caso pensado esperaram a chegando a dita Igreja lhe saiu ao
querelante e lhe deram encontro uma forra de nome Maria
desapiedadamente imensas porretadas Felizberta também moradora nesta Vila,
(...) disse mais que a dita suplicada é de modo próprio e caso pensado,
useira e vezeira (sic) em brigas e avançou-se a suplicante, e lhe foi dando
logo inúmeras pancadas com um

25
IPHAN – Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livro
24
AHU – caixa 103.doc. 05. de Sumário de Testemunhas. 1812. Folhas: 62v/64v.
67
porrete(...)que quase a matou tendo A entrada de escravas e forras na justiça,
feito tal delito pelo fato de haver a desafiando a autoridade de seus proprietários,
suplicada se envolvido com o marido demonstra que a lei não servia unicamente para
da suplicante e por ciúmes e maldade ratificar os interesses dos grupos mais poderosos. O
há queria morta(...) e cujos desatinos é exercício da justiça, em tempos coloniais, permitia
a suplicada useira e vezeira(sic) e muito explorar as menores possibilidades, redundando
inimiga da paz, e inquietadora do muitas vezes em vitórias.
sossego público tanto assim que sendo
casada há anos, não existe em Referências bibliográficas:
companhia do marido de cuja
companhia se ausentou e veio para esta ALGRANTI, Leila Mezan. “Mulheres e Escravos”:
Vila aonde vive escandalosamente com entrevista concedida a Renato Pinto Venâncio In:
os procedimentos referidos e porque o LPH
caso é de Querela26. CORRÊA, Marisa. Morte em família:
representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de
Na querela acima citada inúmeros Janeiro: Graal, 1983.
procedimentos e comportamentos das mulheres em DIAS. Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder
Minas Gerais no passado colonial podem ser em São Paulo no século XIX. São Paulo:
levantados. Em primeiro lugar a querela é movida Brasiliense, 1995.
como resposta a um ato violento da forra Maria FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória:
Felizberta, a suplicante buscou também a justiça cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais
como forma de reparação, no decorrer da querela a no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio,
suplicante pede que a sentença seja afixada nos 1993.
locais públicos da Vila, como forma de manchar GONÇALVES. Jener, Cristiano. Justiça e direitos
permanentemente a honra de Maria Felizberta, isso costumeiros: apelos judiciais de escravos, forros e
pode também ser percebido nos argumentos da livres em Minas Gerais (1716-1815). Belo
autora que tentam desqualificar o comportamento de Horizonte. Faculdade de Filosofia e Ciências
Felizberta. Assim, muito mais que um local para Humanas FAFICH, 2006. Dissertação de Mestrado.
resolver conflitos diários à justiça era entendida (mimeo)
também como espaço de preservação ou perda da PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas
honra. Minas Gerais do século XVIII: estratégias de
As devassas e querelas anteriormente resistências através dos testamentos. São Paulo:
analisadas ao transferirem para a justiça a solução Annablume, 1995.
das contendas presentes no cotidiano das vilas PERROT, Michele. Os excluídos da História:
mineiras, não apenas publicizaram os conflitos e operários, mulheres e prisionerios. Rio de Janeiro:
demandas tidos como privados, como acabaram por Paz e Terra, 1988. p. 185.
contribuir para o crescimento da esfera pública, pois RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: uma
solicitavam a atuação do “Estado” e de seu aparato utopia da cidade disciplinar – Brasil 1890/1930.
jurídico e certamente evidenciaram a necessidade de Rio de Janieiro: Paz e Terra, 1985.
regulamentação das relações privadas civis. SILVA, Marilda Santana da. Dignidade e
Ainda que sob uma condição jurídica transgressão: mulheres no tribunal eclesiástico
adversa, indivíduos definidos como propriedade em Minas Gerais (1748-1830). Campinas: Ed. Da
privada, instrumentum vocale, instrumentos de Unicamp, 2001.
trabalho falantes, um grau apenas acima dos bois, SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de
muitas escravas e forras recorreram à justiça quando violência – mulheres e ordem urbana (1980 –
se sentiam vítimas dos mais variados tipos de abuso 1920). Rio de Janeiro: Forense, 1989.
e violência. Para tanto utilizaram instrumentos WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. O
disponíveis nas leis para fazer valer seus interesses, Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-
e também valiam-se dos mais diversos elementos 1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. pp. 479-499.
acumulados ao longo da sua vida em liberdade,
fossem eles padrinhos poderosos, fosse uma índole
ilibada, ou fossem elementos de status adquiridos
entre os membros da sua comunidade.

26
IPHAN – Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livro
de Autos de Querela. Ano: 1808. Folhas: 70v/71v.
68
TEORIAS RACIAIS
E CONFLITOS
ÉTNICOS: NEGROS
E IMIGRANTES NO
OESTE DE SÃO
PAULO
Zuleide Maria Matulle
(FAFIUV)
Ilton César Martins
Prof.º Orientador (FAFIUV)

Nos dias atuais operam-se práticas de


discriminação racial nas diversas instâncias da
sociedade, uma vez que o relacionamento entre as
pessoas esbarra na cor da pele. Herdeiros de um
passado histórico que se presentifica no corpo da
sociedade, os negros, população que sempre foi
marginalizada desde a chegada imperativa de seus
antepassados, isto é, africanos escravizados, vivem
cotidianamente, a experiência de que sua aparência e
estigma social põem em risco sua integridade.
Investigando o processo, nos deparamos
com o binômio escravidão/imigração, que marcou o
Brasil em diferentes aspectos no século XIX.
Através de uma historiografia específica,
percebemos, que a substituição do trabalho escravo
para o livre foi fortemente influenciada pela ideia de
raça, pois as elites dirigentes, principalmente de São
Paulo, demonstravam nítida preocupação em relação
à necessidade do branqueamento da população.
Objetivando contribuir com os debates que vem
ocorrendo no meio científico, julgamos pertinente
analisar a questão racial apresentada pela elite
econômica/intelectual, e verificar como esse
argumento, permitiu a ocorrência de conflitos
étnicos entre negros e imigrantes no ambiente da
cafeicultura paulista, no período de 1888 a 1930.
São Paulo, a partir de 1850, entra em nova
fase e começa a conhecer a riqueza, proporcionada
pelo “ouro verde”, convertendo-se na província
mais rica do país. Importante salientar que à base
desse fortalecimento encontram-se significativas

69
transformações, como por exemplo, a promulgação Dentre essas, a principal teoria
da Lei Eusébio de Queiroz em 1850, que proibiu o disseminada no Brasil foi o darwinismo social. Os
tráfico de escravos para o Brasil, instaurando uma adeptos dessa teoria defendiam a tese de que os
atmosfera de preocupação em relação à aquisição de homens haviam se originado de diferentes fontes.
mão-de-obra; a implantação da Lei de Terras, no Conforme Schwarcz (1993, p. 101), as hierarquias
mesmo ano, que correspondeu à agregação de valor raciais seriam imutáveis e o comportamento dos
comercial a terra, gerando efeitos de longa duração homens era uma determinação da sua raça. Para os
para a propriedade fundiária e o povoamento do partidários dessa corrente de pensamento, a raça era
país; o ingresso de imigrantes que reflete a entrada o fator determinante. As diferenças humanas eram
de novos trabalhadores – abertos a novas ideias naturalizadas e três raças eram consideradas as
políticas; a implantação de políticas públicas, e principais: “[...] a raça branca, superior, e as raças
ainda, o fortalecimento de uma nova classe de negra e amarela, que eram supostamente inferiores”.
agricultores, no oeste paulista, que se tornaram a Tal crença orientou um ideal de sociedade que não
elite política do país. só discriminava como ajudava a marginalizar o
Nesse contexto, é imprescindível verificar negro.
quais são as características dessa nova classe de Vale ressaltar, que nessa campanha de
agricultores, que surge nessa conjuntura de exaltação e controle político, as teorias de cunho
transformações, que se iniciou em 1850, aqui racial, que geravam discussões na Europa, foram
definida como elite econômica/intelectual, e quais consumidas pela elite, e, por conseguinte, pelos
foram as teorias raciais que permearam a política demais, “[...] via de regra sem nenhum espírito
imigratória que o Brasil desenvolveu. crítico, os brasileiros em meados do século estavam
Sobre essa nova classe de agricultores, mal preparados para discutir as últimas doutrinas
Schwarcz (1993), apresenta esses personagens como européias” (COSTA, 1967 citado por SCHWARCZ,
“homens de sciencia”, que no final do século XIX, 1993, p. 16).
tomaram para si a tarefa de abrigar uma ciência e Conclui-se então, que em meados do
liderar o destino da nação. Esses indivíduos são século XIX, a elite paulista, concentrada em seus
como define Gramsci intelectuais orgânicos, uma interesses e despreparada, no que se refere as
vez que dominavam o campo econômico e, por doutrinas que na Europa estavam em ebulição, se
conseguinte o intelectual, e tinham como principal fundamentou em pressupostos raciais na construção
interesse proteger a grande propriedade. de um parâmetro socialmente discriminatório,
Vale lembrar que até 1870, a ciência era impondo as raças supostamente inferiores,
feita por estrangeiros. A partir dessa data, surgiram principalmente a negra, um lugar secundário na
museus etnográficos e científicos e os Institutos sociedade.
Históricos e Geográficos chamados de “guardiões É relevante lembrar ao leitor, que a força
da história nacional”, como o caso do IHGSP – que alimentou a economia brasileira até a década de
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo criado 80, do século XIX, foi o braço do escravo. Depois de
em novembro de 1894. Nesse instituto, o perfil dos proporcionar muitos lucros, o escravismo 27, essa
associados tomava por base muito mais os instituição tão enraizada na sociedade brasileira,
determinantes sociais e econômicos, do que a findou em 13 de maio de 1888, e o que se percebe
intelectualidade, pois neste período São Paulo nos debates historiográficos é a ausência de políticas
representava, pela expansão do café, o estado mais de inserção social do ex-escravo, talvez, o mais
rico do país. Assim, concentrados nos interesses importante agente econômico até então.
econômicos e em exaltar a importância de São Paulo Classificados como racialmente inferiores, os
na história nacional, podemos dizer que, o IHGSP, negros, ficaram à margem do mercado de trabalho
tinha como função primordial, a legitimação do livre.
poder bem como a consagração da elite local. Investigando esse processo, há pontos que
Preocupados com a substituição do inevitavelmente nos intrigam: por que os ex-
trabalho escravo para o livre e com o branqueamento escravos ficaram à margem do mercado de trabalho
da população, os pressupostos raciais ganharam livre em São Paulo após a abolição? Quais as causas
espaço na pauta dos homens políticos de São Paulo. de sua marginalização? Quais as estratégias
As reflexões de Schwarcz (1993) indicam que as desenvolvidas por esses indivíduos para vivência em
teorias que nortearam, a partir de 1870, a maior parte
dos intelectuais brasileiros em suas análises sobre o 27
Entende-se por escravismo, sistemas econômicos
Brasil, foram o determinismo geográfico, o movimentados através do trabalho forçado de escravos.
evolucionismo social e o darwinismo social. Atualmente o escravismo não existe, mas a escravidão
sim.

70
liberdade? Explorando brevemente a questão da Azevedo (1987, p. 166), a qual conclui que a
marginalização do negro, Santos (1997, p. 34), nos marginalização do negro não está desvinculada da
esclarece que há duas correntes de pensamento para política de imigração européia abraçada pelos
explicar esse processo. A primeira, chamada estados brasileiros, sob a influência do racismo
“herança da escravidão”, insere-se na incapacidade europeu, visto que “[...] havia a necessidade de
do ex-agente do trabalho escravo frente ao trabalho formar uma determinada população ou de substituir
livre, ou seja, o ex-escravo não conseguia competir a que existia por outras consideradas racialmente
com a mão-de-obra imigrante. É evidente que essa superiores”.
perspectiva não pode explicar a marginalização do A discriminação dirigida pelas elites contra
negro, pois houve regiões onde o número de os negros fundamentava-se na crença de que o atraso
imigrantes não foi suficiente para preencher as vagas do país era fruto da raça negra, supostamente
de trabalho, e no nordeste, por exemplo, onde não inferior, e integrava-se harmonicamente, à crença de
houve imigração vê-se um cenário “[...] em que os que a saída para o Brasil estaria na raça branca,
negros ficam concentrados na base da hierarquia considerada superior. Nesse processo, os negros
ocupacional (HASENBALG, 1992 citado por foram mantidos marginalizados pela ideia de
SANTOS, 1997, p. 68). inferioridade.
Sendo assim, nosso interesse recai na Considera-se oportuno, agora, inserir na
segunda corrente explicativa apresentada pelo autor, referida discussão o modelo teórico que a norteia.
a que enfatiza o racismo, pois segundo Santos (1997, Trata-se da teoria das estruturas sociais desenvolvida
p. 56) o “[...] racismo foi uma das principais causas por Bourdieu (2003). Para explicar a sociedade e os
da marginalização do negro em São Paulo, após a fenômenos que nela ocorre, o autor, formulou o
abolição, e ainda é uma das principais causas da conceito de habitus, isto é, “[...] produto de uma
subordinação social do negro no Brasil de hoje”. aquisição histórica que permite a apropriação do
Marginalizado, porém ativo na sociedade, adquirido histórico”. Nesse raciocínio, o habitus
os negros desenvolveram estratégias de luta pela corresponde às estruturas estruturadas, as quais são
inserção social e superação do racismo na sociedade responsáveis por levar o sujeito a agir de
brasileira. Na análise de Domingues (2007, p. 101) determinada forma.
visualizamos, por exemplo, o movimento negro, o Portanto, foi nossa intenção nessas
surgimento de inúmeros “blocos” de manifestações, observações apresentar o contexto, principalmente
como, o Clube 28 de Setembro (1897), o Club 13 de de São Paulo, pautado pelos princípios raciais, isto é,
Maio dos Homens Pretos (1902), o Centro Literário o habitus, que na teoria de Bourdieu (2003) surge
dos Homens de Cor (1903), a Sociedade como ocasionador das estruturas estruturantes, neste
Propugnadora 13 de Maio (1906), o Dramático e caso, aquilo que dará origem aos conflitos étnicos
Recreativo Kosmos (1908), o Centro Cultural entre negros e imigrantes no período de 1888 a
Henrique Dias (1908), a Sociedade União Cívica 1930, no oeste de São Paulo.
dos Homens de Cor (1915) e a Associação Protetora É extremamente complexo determinar, o
dos Brasileiros Pretos (1917). Outro dispositivo quanto, negros e imigrantes vivenciaram os
adotado foi a “imprensa negra”, jornais publicados determinantes raciais no Brasil, pois falta diálogo
por negros com o objetivo de tratar de suas questões. científico entre a escravidão e a imigração em São
Em São Paulo, o primeiro desses jornais foi A Pátria Paulo. Por isso, faremos uso dos dados apresentados
que entrou em circulação em 1899, tendo como por Monsma (2004), sobre a cidade de São Carlos
subtítulo Órgão dos Homens de Cor, todos, no oeste paulista, região produtora de café. No
aparelhos estratégicos desenvolvidos por esses quadro abaixo podemos observar os números
indivíduos para a vivência na liberdade. referentes à sua população nos anos 1886 e 1907, no
Tais manifestações refletem a luta dos qual, vê-se nitidamente o crescimento da população
negros na perspectiva de resolver seus problemas, imigrante em detrimento a população ex-escrava
aqueles, provenientes dos preconceitos e das após a abolição.
discriminações raciais, que os marginalizaram na
sociedade. Reafirma-se o quadro político
desenvolvido pela elite econômica/intelectual de São
Paulo, que implantando políticas baseadas no
racismo científico, lançou o Brasil numa empreitada,
cujo objetivo, girava em torno da substituição da
mão-de-obra escrava para a livre e também do
branqueamento da população. Com o objetivo de
reforçar essa ideia, nos utilizamos da análise de

71
POPULAÇÃO DE SÃO CARLOS (1886-1907)28 preferindo deslocar-se para outras regiões”, pois
para o ex-cativo a liberdade significava, antes de
Ano 1886 1907 tudo, o direito de deslocar-se livremente, o direito a
Grupo % Númer % Númer mobilidade.
o o
Pretos
29
24,8 3.993 9,9 3.815 Falar sobre a mobilidade do ex-cativo em
Mestiços
30
12,2 1.957 2,6 1.000 São Paulo é essencial para compreender o cenário da
Caboclos 18,0 2.906 ---
31
-----
região. Rios e Mattos (2004, p. 179), revelam que no
Brancos 32,3 5.209 48,1 18.579 Vale do Paraíba, grande parte dos escravos
Brasileiros permaneciam ligados por amplas redes de
Italianos 6,5 1.050 29,3 11.316 consangüinidade, de por vezes, até três gerações em
Portugueses 2,9 464 4,3 1.644 uma mesma fazenda. Estes eram escravos
Espanhóis 0,7 117 4,3 1.662 provenientes do tráfico interno, parte dos quais
Alemães 2,3 371 0,5 2010 foram adquiridos juntamente com suas famílias, e
Outros imigrantes 0,2 37 1.1 415 encontraram nas novas fazendas oportunidades
Total 99,9 16.104 100,1 38.641
32 33 maiores, de formar família e afinidades entre os
escravos já residentes “[...] do que encontraria seus
Nota-se que em 1886 a população da conterrâneos vendidos para as novas fazendas que se
cidade de São Carlos somava 16.104 habitantes, abriam nas áreas de expansão do café, como o
destes, 55% eram negros, mestiços e caboclos. chamado “oeste novo”, na província de São Paulo”.
Havia, neste mesmo ano, 12.6% de estrangeiros no Nota-se dessa passagem que nas fazendas
município. Como conseqüência da abolição e da mais antigas, em geral, as relações eram bem mais
expansão do café, a população da cidade de São “equilibradas” que nas fazendas novas do oeste de
Carlos cresceu, e em 1907, somava 38.641 São Paulo. Provavelmente, em São Carlos, que fica
habitantes. Entretanto, em 1907 a população negra na mesma região, os libertos se utilizaram de uma
diminuiu drasticamente restando apenas 12.5%, mobilidade maior. Isso explica, em parte, a
enquanto o número de estrangeiros aumentou para diminuição da população ex-cativa e o aumento da
39.5%. Pelos cálculos apresentados, é nítido o população imigrante na região. Todavia, a população
predomínio de imigrantes na região de São Carlos, e ex-escrava diminuiu, mas não desapareceu
somando a categoria de “brancos brasileiros” temos completamente e na região de São Carlos imigrantes
87.6%, ou seja, a proporção de brancos aumentou e ex-escravos, ainda que em número pequeno,
drasticamente pressionando, quantitativamente, a passaram a viver lado a lado.
população negra. Nesta ordem de ideias, torna-se pertinente
Como podemos explicar a redução drástica apresentar, qual a nacionalidade de imigrantes que
da população negra em São Carlos após a abolição estamos nos referindo neste texto. Fomos buscar
tendo em vista os números supracitados? Viotti da suporte em Alvim (1999, p. 395) e verificamos que
Costa (1998, p. 508) comenta que muitas fazendas de todas as nacionalidades que entre 1870 e 1920, se
viram-se definitivamente arruinadas com a abolição, dirigiram para o estado de São Paulo, “[...] a italiana,
e em outras, os libertos recusaram-se a continuar o com cerca de um milhão de indivíduos, representou
trabalho, “[...] limitando-se quando muito a fazer a 40% da soma de imigrantes, num total de 2,5
colheita daquele ano. Recusavam mesmo os altos milhões”. Vale advertir, ainda, que do total de
salários que lhes eram às vezes oferecidos, italianos que se dirigiram para o Brasil, cerca de 1,4
milhões, no mesmo momento, 70% tiveram São
Paulo como destino.
28
MONSMA, Karl. Conflito Simbólico e Violência Ainda segundo Alvim (1999, p. 396), em
Interétnica: europeus e negros no oeste de São Paulo, São Paulo, o período que vai de 1870 até
1888 – 1914. In: VII Encontro Estadual de História. praticamente 1890, é marcado pela entrada de
Pelotas, jul. 2004. Disponível em: famílias que na Itália, haviam sido meeiros,
http://www.ufpel.edu.br/ich/ndh/downloads/historia_em_r arrendatários e mesmo pequenos proprietários,
evista_karl_monsma.pdf Acesso em 16.09.2010 sendo que essa configuração predominou nos
29
Manteve-se o termo apresentado na fonte. Inclui um cafezais paulistanos. Após 1890, passou a
pequeno número de escravos e libertos nascidos na
predominar pessoas do campo “[...] miseráveis, sem
África.
30
Pardo (1886) e mulato (1907). qualquer bem que lhes pudesse facilitar a vida no
31
O censo de 1907 não inclui a categoria “cabocla”. Os novo país”. Percebe-se, portanto, que foi a
integrantes deste grupo provavelmente foram nacionalidade italiana que passou a viver lado a lado
classificados como brancos ou mulatos. com ex-cativos, tratando-se de trabalhadores braçais
32
Não soma exatamente 100 devido ao arredondamento.
33
Não soma exatamente 100 devido ao arredondamento.
72
pobres que tinham como único capital a força de anteriormente a estrutura estruturada, ou seja, aquilo
trabalho. que leva o individuo a agir de determinada forma, a
Sobre contato interétnico, Monsma (2004), partir dos interesses de uma elite
analisando inquéritos policiais e processos criminais econômica/intelectual que através de uma política
decorrentes de conflitos entre imigrantes e negros no dupla, fortemente influenciada pela ideia de raça,
oeste de São Paulo, fornece subsídios para que visando à substituição da mão-de-obra escrava para
possamos mapear as relações de grupo. Tomando o a livre e o branqueamento da população, tendo como
ano de 1895, como norte, deparamo-nos com o modelo civilizatório a cultura européia em
conflito entre Anastácio Cosme, pedreiro, negro de detrimento do negro, o qual ficou estigmatizado pela
21 anos, que trabalhava construindo uma calçada na inferioridade racial e a margem da sociedade.
cidade de São Carlos e dois mascates italianos que Em relação à estrutura estruturante,
tentaram passar justamente pelas pedras recém observamos que quando o mascate italiano diz a
assentadas, provocando conflito que resultou na Anastácio que ele “não era christão e sim negro
morte de um dos mascates. No processo criminal34 burro” se mostra impregnado de ideias racistas. O
analisado pelo autor, consta que Anastácio declarou imigrante italiano pode não entender cientificamente
ao delegado: as teorias raciais que circulavam em São Paulo, até
porque se tratava de uma elite branca que escrevia e
[...] vendo que [os mascates] querião debatia sobre a inferioridade racial do negro para
passar pelo lugar do serviço, disse ao uma elite branca.
primeiro que agora sabe chamar-se Entretanto, é saliente que esses imigrantes
Jorge Muzzi que não passasse por ali italianos adentraram o cenário político da Primeira
porque as pedras não estavam bem República, que tinha por necessidade resolver
assentadas e podião deslocar-se questões centrais como raça e formação de uma
causando-lhe assim prejuiso. O italiano nação. Certamente, imigrantes que vieram substituir
sahio para o meio da rua, virou-se para o trabalho dos escravos, e ao mesmo tempo,
elle interrogado e perguntou-lhe se era membros da “raça superior”, “[...] percebiam as
Juiz de Direito. Respondeu-lhe o atitudes contraditórias das elites locais, podiam
interrogado que não era Juiz de Direito, observar como brasileiros brancos tratavam seus
mas que elle não passasse porque compatriotas pretos e mulatos, e logo aprenderam a
desmancharia o serviço. O italiano importância de manter as distinções de cor”
disse então que o interrogado não era (MONSMA, 2004, p. 14).
christão e sim negro burro que se o Com o objetivo de reforçar essa ideia nos
serviço fosse desmanchado elle que o utilizamos novamente de Monsma (2004, p. 06)
fizesse de novo como sua obrigação e quando destaca que os imigrantes se sentiam
que passaria pelo lugar não tendo medo ameaçados pelos negros ou mais precisamente, “[...]
de cem homens como o interrogado. pela possibilidade de serem tratados como negros -
Em seguida ameaçou o interrogado com em grande parte porque, fora das elites, não havia
um metro que trazia na mão e começou segregação ocupacional”. Imigrantes sentiam na pele
a descer os bahús que trasia. Quando o que significava ser imigrante no Brasil, ou seja,
elle acabou de descarregar-se, o experimentaram o abandono e o descaso das
interrogado deu-lhe uma pancada com a autoridades para com a imigração, e neste contexto,
régua de que se servia, o italiano cahio, ser membro da “raça superior” correspondia a um
virou um pouco e ficou na posição de distintivo social.
quem se achava sentado e dessa posição Ademais, é conveniente ressaltar que em
não sahio (MONSMA, 2004, p. 16). muitos casos negros e estrangeiros desempenhavam
as mesmas funções, desenvolvendo atividades com
Diante do exposto, observa-se que o níveis parecidos de renda e respeitabilidade. Nessas
conflito que causou a morte de um dos mascates circunstâncias, “[...] e levando em consideração a
através de golpe desferido por Anastácio, dispersão dos negros por todo o município, um
trabalhador negro, se trata de forma abrangente, da imigrante facilmente encontraria negros com
estrutura estruturante, isto é, resultado daquilo que posições de classe iguais ou superiores à dele”
Bourdieu (2003) define por estrutura estruturada. (MONSMA, 2004, p. 13). A declaração de
Nesse caso, retomando a discussão, definimos Anastácio é uma prova disso, uma vez que
Anastácio possuía um animal de carga, ferramentas
e trabalho. Já os mascates traziam suas mercadorias
34
Este Processo Criminal utilizado pelo autor encontra-se nas costas.
na Fundação Pró-Memória de São Carlos - No. 37, 1895.
73
Sobre as relações estabelecidas entre como a bala não acertasse em seguida
negros e imigrantes nas fazendas de café de São Bragado desfechou segundo tiro que
Paulo, algo interessante pode ser destacado. attingiu a perna esquerda do declarante,
Conforme Alvim (1998, p.272-274) foi com os que o declarante sentindo-se ferido e
negros e caboclos que os recém-chegados cahindo disse a Bragado que elle era
aprenderam “[...] a técnica da queimada, cujo efeito, um malvado em atirar contra o
sem dúvida, era por um lado devastador, mas por declarante que apenas viera lhe dar
outro consistia na única forma de preparar o solo conselhos (MONSMA, 2004, p. 02)35
para o plantio”. Na construção de suas moradias
“[...] eram os negros que auxiliavam os imigrantes, Evidenciamos assim, a existência de
pois não conhecendo as madeiras nacionais, muitas conflitos entre imigrantes de nacionalidades
vezes as empregavam verdes ou impróprias para diferentes, neste caso entre um português e dois
construção, o que provocava a queda da casa”. colonos italianos. Todavia a declaração acima
Com base nessas informações, podemos fornece subsídios que compõem, em parte, um
notar que muitos imigrantes precisavam e utilizavam quadro racial, pois Ângelo Antonio dos Santos, a
dos conhecimentos dos negros e caboclos para se pessoa que levou o tiro disparado por João Bragado,
adaptar ao novo país. Entretanto, essa ajuda não os era um sexagenário negro.
impedia de ver o negro como inferior. Mesmo É preciso considerar que o resultado do
sofrendo preconceito por parte da elite brasileira, conflito, ou seja, o ferimento de Ângelo Antonio dos
que via os imigrantes como “[...] sujos, mendigos Santos poderia ter sido acidental, tendo em vista
que vieram procurar comida no Brasil, eles não tensão do momento. Porém, observando o conflito
tinham para com os brasileiros menos aquinhoados inserido no cenário político e racial que expomos, o
uma relação de igualdade, pelo contrário, sempre se tiro disparado contra o sexagenário negro poderia
julgaram superiores” (ALVIM, 1998, p. 272). estar carregado, daquilo que podemos chamar de
No que concerne aos conflitos não demonstração de superioridade racial do branco
podemos deixar de mencionar que havia também sobre o negro, uma vez que João Bragado poderia
ocorrência de atritos entre imigrantes da mesma não ter aceitado o direito do negro velho de interferir
nacionalidade e entre imigrantes de nacionalidades na sua briga com os italianos e dar-lhe conselhos.
diferentes. No estudo de Alvim (1998, p. 269) Enfim, é possível afirmar que a “estrutura
imigrantes alemães originários no Norte não se estruturada” ditada, em parte, pela elite
davam com alemães do Sul, “[...] e os dois não econômica/intelectual e política de São Paulo, que
aceitavam os poloneses. Italianos setentrionais e tomou para si a empreitada da formação de uma
meridionais viam-se com estranheza e mesmo nação tendo como modelo civilizatório a cultura
desprezo; ambos, no entanto, não gostavam dos européia, através das discussões raciais que ocorriam
japoneses”, pois diferentes ideias, projetos e na Europa e que chegavam ao Brasil sem crítica,
interesses permeavam cada individuo. foram determinantes para a marginalização dos
Algo próximo disso pode ser observado negros após abolição. Esse habitus determinou a
num relato do último dia do carnaval do ano 1902 ocorrência de conflitos no cotidiano de negros e
em São Carlos. João Antonio dos Santos, de alcunha imigrantes em São Paulo, isto é a “estrutura
João Bragado, um jovem trabalhador rural estruturante” uma vez que os negros buscavam
português, visitava a Fazenda Santa Evangelina e afirmar a igualdade e imigrantes defendiam sua
neste local se envolveu em uma briga com colonos superioridade em contato étnico, por vezes,
italianos. A declaração sobre o ocorrido é fornecida explosivo.
por um morador da fazenda, Ângelo Antonio dos
Santos, um terceiro elemento, que estava: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

[...] divertindo-se com os colonos Nesse ponto é importante evidenciar que a


quando foi avisado da briga. realidade dos fatos se apresenta sempre
Conhecendo João Antonio, se dirigiu infinitamente maior que a nossa capacidade de
para o local onde este se achava com o análise. Deparou-se com a complexidade de explorar
fim de aconselhá-lo a retirar-se, e a esse binômio, pela falta de diálogo científico entre a
certa distancia, o declarante disse a situação dos libertos e a dos imigrantes no que
Bragado, se elle estava louco e não concerne às relações interétnicas. Muitas questões
sabia que podia ficar criminoso, que
ditas estas palavras Bragado deu um
35
tiro de garrucha contra o declarante e Este Processo Criminal utilizado pelo autor encontra-se
na Fundação Pró-Memória de São Carlos – Nº. 165, 1904.
74
ficaram sem respostas ou equivocadas, necessitando REFERÊNCIAS
estudos futuros. Uma explicação para isso pode ser
encontrada em forma de crítica em Rios e Mattos ALVIM, Zuleika M. Forcione. O Brasil Italiano
(2004), ambas explicam que a dificuldade de se (1880-1920). In: FAUSTO, Boris. Fazer a
compreender essas questões é exatamente porque se América. Editora Universidade de São Paulo. 1999.
passou muito tempo discutindo as visões das elites a ______. Imigrantes: a vida privada dos pobres do
respeito do negro, e não a dos negros. campo. In: NOVAIS, Fernando. História da Vida
Do pouco que pudemos explorar, Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das
verificamos que a política imigratória paulista, além Letras, 1998.
de ter o objetivo evidente de formação de um AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra,
mercado de trabalho livre, exerceu a finalidade de medo branco: o negro no imaginário das elites –
embranquecer sua população bem como a brasileira. século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Foi possível verificar que o modo discriminatório e BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de
racista das elites administrantes brasileiras, Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003.
proporcionou a marginalização dos negros após a COSTA, Emilia Viotti. Da Senzala a Colônia. São
abolição. O fenômeno da imigração em massa de Paulo: Editora Unesp, 1998.
europeus para o Brasil, atendeu a finalidade de uma DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro
política esquematizada para o branqueamento. Brasileiro: alguns apontamentos históricos. In:
O escravismo, tão enraizado na sociedade Revista Afro-Ásia, n.º 23, p. 100-122, 2007.
brasileira, findou em 13 de maio de 1888, a partir Disponível em:
dessa data o negro se encontrava liberto do cativeiro, http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf
estava livre fisicamente, mas refém de uma Acesso em: 03/11/2010
configuração social que lhe impunha restrições. A MONSMA. Karl. Conflito Simbólico e Violência
inferioridade do negro, legitimada cientifica e Interétnica: europeus e negros no oeste paulista,
politicamente num período crucial para o Brasil, 1888-1914. In: VII Encontro Estadual de História,
resultou num país racista, uma vez que hoje, a cor da RS, julho de 2004.
pele ainda é um fator de discriminação entre os Disponível em:
sujeitos. Percebe-se que o negro, não aceita sua http://www.ufpel.edu.br/ich/ndh/downloads/historia
identidade, não aceita quem é. Essa atitude é fruto _em_revista_karl_monsma.pdf Acesso em
do processo histórico que negros passaram. Como 16.09.2010
reverter isso? É a nossa próxima questão. RIOS, Ana Maria; MATTOS. Hebe Maria. O pós-
abolição como problema histórico: balanços e
perspectivas. In: TOPOI, v. 5, n.º 8, p. 170-198,
jan./jun. 2004. Disponível em:
http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Top
oi08/topoi8a5.pdf Acesso em: 03/11/2010
SANTOS, Sales Augusto dos. A Formação do
mercado de trabalho livre em São Paulo: tensões
raciais e marginalização social. Dissertação
Mestrado em Sociologia. Universidade de Brasília
Disponível em:
http://www.tst.gov.br/Ssedoc/PaginadaBiblioteca/tes
es/salesmestrado.pdf
Acesso em 03/11/2010
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das
raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

75
76
TOMÁS DE
AQUINO E O
CONHECIMENTO
NOS SÉCULOS XII
E XIII
Sônia Brzozowski -
Universidade Federal do
ABC- UFABC
Orientadora: Profª. Drª
Márcia Helena Alvim -
Universidade Federal do
ABC - UFABC
O presente trabalho realiza uma análise
sobre estudos voltados para o conhecimento a partir
de Tomás de Aquino, inicialmente propõe-se uma
contextualização do período Medieval ensino e
religiosidade, e em seguida apresento a análise de
algumas obras que dedicaram ao assunto. Dentre
aqueles que se ocupam dos estudos desenvolvidos
durante a Idade Média é comum a preocupação em
esclarecer que tal período é erroneamente chamado
de “Idade das Trevas”, pois nele houve de fato
grandes e relevantes produções intelectuais em
diversos campos do conhecimento humano.
É de conhecimento que o monopólio da
Igreja na Europa Ocidental quanto às ferramentas de
construção e difusão de conhecimento, confinadas
nos isolados mosteiros, fez com que a efervescente
produção ocorrida na antiguidade grega ficasse
restrita aos homens da igreja, o que não ocorreu em
outras regiões, como exemplo na Ásia, a instituição
religiosa também se fortaleceu diante da sociedade
medieval a partir do processo de ruralização.
Carente de modelos filosóficos e científicos
na perspectiva bíblica e eclesial, a Igreja precisou
buscar na antiguidade pagã bases de
desenvolvimento do seu sustentáculo intelectual.
Um primeiro grande expoente deste processo foi
Agostinho Hipona e a sua cristianização de Platão,
dentro da perspectiva da Patrística, e depois Tomás
de Aquino no escopo da Escolástica, que buscou na

77
solidez racional de Aristóteles 36 a justificativa da  Uma análise geral proposta da Teoria do
existência de Deus, buscando conciliar e conceituar Conhecimento de Tomás de Aquino,
razão e fé. finalizando assim o raciocínio
A retomada do aristotelismo ocorreu de compreensivo do objeto/título deste
forma intensa na época de Tomás de Aquino, devido trabalho.
à recuperação de várias de suas obras decorrentes do
trabalho dos árabes e de europeus cristãos que com O roteiro mencionado anteriormente se apresenta
tais obras passaram a ter contato mais intenso e estruturado a partir de análise realizada nas obras de
completo. Assim, o que se propõe neste trabalho é Hooykaas38 e Camenietzki 39 que trabalham a
uma oferta de análise do conceito de contexto histórico do desenvolvimento do ensino, e
“conhecimento” e, por conseguinte, de “ciência” na apresentam um panorama da História da Ciência de
perspectiva aristotélico-tomista o qual, apesar de forma sintética e objetiva, nas quais aparecem uma
nunca absolutamente esquecido e, de certo modo, conceituação básica dos principais autores e teorias
reconhecido como relevante para o desenvolvimento que serão tratadas neste trabalho. Outro comentador
do conhecimento científico, nunca teve lugar importante é Jacques Le Goff40 propõe um panorama
privilegiado pela comunidade científica nos estudos. da época tomista com o aristotelismo e averroismo
Para que haja a compreensão plena do em que o problema do “conhecimento” na Idade
significado de “conhecimento” e mais tarde de Média, especialmente a partir do período escolástico
“ciência” no pensamento de Tomás de Aquino, é girou em torno da contraposição e busca da
preciso considerar o seguinte itinerário: conciliação entre a fé e a razão.
Le Goff evidencia a freqüente busca dos
 Apontar e definir os conceitos mais medievais por um equilíbrio entre fé e razão
fundamentais necessários à base de encontrou no pensamento de Aristóteles o epicentro
compreensão da Teoria do Conhecimento de seu debate. Não somente as bases da Lógica
Tomista e das concepções na época de seu Aristotélica, mas também a sua Física e a sua
desenvolvimento, precisamente as Metafísica acabam por vir à tona pelos
concepções cosmológicas de Aristóteles e contemporâneos de Tomás de Aquino,
da Bíblia, seja no Antigo e no Novo especialmente na vertente árabe, particularmente
Testamento. Isso se faz necessário com Averróis41. A vertente árabe em seus estudos
porque o objeto cognoscível em debate na operava sem a necessidade de vincular a produção
Teoria do Conhecimento Tomista é intelectual aos dogmas cristãos. Porém, a vertente
justamente o mundo sensível; assim, árabe, bem se sabe, vem de uma forte influência
torna-se necessário entender os teológica do islamismo, portanto, não é difícil
fundamentos que garantirão a mescla deduzir que mesmo estes, apesar de independentes
entre o cristianismo e as concepções dos dogmas cristãos, não escaparam do teologismo
aristotélicas. reinante na cultura daqueles tempos.
 Valores e costumes determinantes no Assim, a solução desta vertente foi
processo de construção de justamente a Doutrina da Dupla Verdade: a Verdade
conhecimento37 e produção intelectual Revelada e a Verdade Racional. Além do que, o
durante a época do desenvolvimento das cenário de disputas intelectuais era intensamente
ideias tomistas, isso oferecerá um quadro conturbado. Não somente se tinha uma leitura de
histórico das influências sobre o processo Aristóteles partindo de Tomás de Aquino e Santo
de construção científica proposta por
Tomás de Aquino. 38
R.Hooykaas professor de História da Ciência da
 O detalhamento esquemático do conceito Universidade de Ultrecht, na Holanda e dono de um vasto
de “conhecimento” e “ciência” na Teoria conhecimento da história da filosofia, religião, da ciência
do Conhecimento de Tomás de Aquino. e da tecnologia.
39
Carlos Ziller Camenietzki – renomado físico, filósofo e
historiador, se dedicou ao estudo de um momento de
36
O pensamento aristotélico foi banido pela Cúria grande tensão nas discussões sobre as relações entre a fé
Romana em 1210, pois se considerava uma ameaça a religiosa, particularmente cristã, e o desenvolvimento do
instituição religiosa, em 1259 a Ordem Dominicana conhecimento cientifico.
40
conquistou o direito de Alberto Magno e Tomás de Jacques Le Goff- historiador francês, especialista no
Aquino terem acesso aos documentos particulares de período medieval considerado responsável pela
Aristóteles. “reinvenção da Idade Média”.
41
Averrróis o mais importante pensador muçulmano, após
37
Entenda-se aqui „conhecimento‟ como aquele proposto Avicena, que exerceu influência na escolástica cristã
pelo senso-comum. medieval com estudos aristotélicos.
78
Alberto Magno, como também a dos platônico- aplicada ao conhecimento empírico43. Tais
agostinistas, dos árabes e outras, destacando que os definições praticamente não se alteraram ao longo da
comentários sobre os escritos aristotélicos, seguiam obra de Aquino, versando sobre o processo de
caminhos de acordo com os interesses daquele abstração da matéria sensível. Destas Ciências
grupo, como exemplo o caso dos comentários Intermediárias, Tomás obteve base de elaboração da
averroístas que foram duramente criticados pelos explicação sobre a subalternação44 das ciências.
católicos, considerados infiéis ao pensamento Assim, há um duplo modo de uma ciência
aristotélico. conter outra ciência, o sujeito de uma ciência pode
Santo Alberto Magno abordou a oposição estar contido no escopo do sujeito de outra ciência,
parcial de Aristóteles a Platão. No tocante ao por exemplo, se há uma ciência da natureza, a
aristotelismo, os tomistas e averroístas não entrariam zoologia está contida em seu escopo porque seu
em acordo. Aristóteles então passa a ser chamado de objeto, os animais, compõe o corpo da natureza; o
“O Filósofo”, e os averroístas passam a discordar outro modo seria como no caso de uma ciência
veementemente dos tomistas quanto à concepção de superior determina os porquês, enquanto a inferior
Deus como causa eficiente, situando-o como causa só determina os “quês”, e temos o exemplo da
final, isso sem ignorar a doutrina da dupla verdade, música subalternada à aritmética.
além do que, a Doutrina da Eternidade do mundo Com isso Tomás de Aquino procurou
dos averroístas era veementemente oposta à doutrina estabelecer uma Doutrina de Especificação das
da Criação Divina. Ciências, na medida em que conferia unidade interna
Tanto Averróis como Tomás de Aquino ao sujeito e seus princípios. Ausentes os princípios
chegaram a ser arrolados em maior ou menor grau assim, vinculados, torna-se impossível estabelecer
em acusações de heresia, como podemos constatar aquilo que é fundamental ao conhecimento
no caso de 1277, quando os bispos de Paris e científico: as demonstrações, que perderiam sua
Cantuária condenaram o aristotelismo. A dupla validade, carentes dos princípios necessários e
condenação, por sua vez, veio a provocar divisões próprios na perspectiva aristotélica, e Aquino se
no seio das autoridades eclesiásticas e teológicas, dedica a um aprofundado estudo sobre os Segundos
como o teólogo Godefroy de Fontaines que lançou Analíticos45, aprimorando a relação que Aristóteles
severa crítica às objeções ao aristotelismo tomista- estabelece entre o que em sua epistemologia é
averroísta. definido como ciência superior e ciências subalterna.
Assim sendo, Le Goff torna-se um autor
fundamental neste trabalho na medida em que Compete a outra ciência, a saber, a
proporciona a compreensão das querelas e das inferior, saber o próprio quê apenas; de
especulações em voga no quadro sócio-histórico- fato, o gênero sujeito da ciência inferior
cultural no qual Tomás de Aquino desenvolveu as é distinto do gênero sujeito da ciência
suas idéias, esta leitura permite também uma superior, da qual são tomados os
reflexão em torno do conceito de intelectual e suas princípios. Mas, saber por que compete
ações na sociedade medieval no processo de à ciência superior, à qual competem por
desenvolvimento das diversas áreas do si estas propriedades. Com efeito, como
conhecimento . O estudioso Carlos Arthur do a propriedade inere ao sujeito por causa
Nascimento42 contribui para esse trabalho com a do termo médio, considerará o porquê
conceituação e estrutura da “ciência” em Tomás de aquela ciência à qual pertence o termo
Aquino. Na obra De Tomás de Aquino a Galileu médio, ao qual compete por si à
(1998), Nascimento faz comentários pertinentes a propriedade que é demonstrada. Se,
aquilo o que Tomás definia e hierarquizava como porém, o sujeito pertencer a outra
conhecimento, Nascimento classifica como ciência, não competirá a esta ciência o
“Ciências Intermediárias” ou em latim de Sciencia
Media. 43
Numa observação global, estas Ciências Tomás de Aquino apresenta uma tripla formulação das
Intermediárias implicam no uso da matemática ciências intermediárias: os princípios matemáticos que se
aplicam às coisas naturais; ciências puramente
matemáticas que se aplicam às coisas sensíveis; princípios
42
Carlos Arthur do Nascimento é graduado em Filosofia matemáticos que se aplicam às coisas materiais.
(1955 -1957) e em Teologia (1958 – 1961) pelo Studium (Nascimento, 1998, p. 20).
44
Generale da Província Dominicana Santo Tomás de Subalternação é o ato ou efeito de subalternar,
Aquino do Brasil, doutor pelo Instituto de Estudos dependência ou subordinação.
Medievais da Universidade de Montreal no Canadá,
45
reconhecido no Brasil como grande estudioso das obras Na obra Segundos Analíticos Aristóteles procura
de Santo Tomás de Aquino. delimitar em que consiste o conhecimento científico.
79
porquê, mas apenas o quê; nem a tal mais sólidos pelo tomismo. As ciências subalternas
sujeito compete por si a propriedade participam tanto da certeza última proporcionada
demonstrada dele, mas por um termo pela abstração matemática (os porquês) como das
médio estranho. Se, porém, o termo constatações empíricas pertinentes à materialidade
médio e o sujeito pertencerem à mesma dos objetos científicos (os quês), ou seja, constituem
ciência, então competirá a esta ciência na concepção silogística o termo médio.
saber que e porque. As Ciências Intermediárias, portanto, não
(NASCIMENTO, 1998, P.60) podem estabelecer demonstrações completas por si
próprias; as demonstrações, portanto, são mais
Esta passagem que, de certa forma, resume a matemáticas que físicas, sem, no entanto, desligar-se
condição silogística da subalternalidade das ciências totalmente do que advém do contato empírico com o
na leitura que Tomás realiza sobre Aristóteles tem-se objeto físico, definindo assim a base da especulação
então explicitada a forma como as matemáticas científica em Tomás de Aquino, a contribuição
puras são tomadas como ciência superior em relação teórica de Nascimento para este trabalho é
às ciências intermediárias, como a física ou a imprescindível um dos pontos-chave para a
música. compreensão dos objetivos destes estudos.
Ainda, Nascimento procura determinar a Realiza-se uma análise sobre o período
concepção de ciência de Tomás de Aquino, histórico de Tomás de Aquino e definição que
respeitando acima de tudo a correspondência de tal atribuiu ao “conhecimento” e como relacionou fé e
concepção com o aristotelismo, uma ciência superior razão, destacando:
que prima pela abstração em seu mais alto nível e,
portanto, uma intangível ferramenta na definição de  Sua contribuição para o
certezas – em outras palavras, a matemática pura, a desenvolvimento das diversas áreas do
qual fornecerá os princípios aplicáveis às ciências conhecimento, (biologia, lógica, entre
intermediárias (ou subalternas), exemplificadas na outras) e na divulgação das teorias
zoologia, botânica, física, medicina, música e outras aristotélicas;
conforme as concepções de campos de  Observar a relação entre fé e razão
conhecimento da época na qual foram desenvolvidas proposta por Tomás de Aquino;
tais teorias, ciências estas que seriam então  Contribuição para a comunidade
consideradas não puras em função da sua acadêmica de conceitos raramente
aplicabilidade pelo conhecimento de objetos não explorados no pensamento brasileiro
abstratos, mas concretos, e podemos perceber aqui contemporâneo, a partir de uma releitura
como está ficando clara aqui a influência de Platão. do tomismo e a reconstrução do
Assim sendo, é importante considerar os significado do conhecimento na
limites e escopos de cada campo da ciência, ou perspectiva medieval, buscando superar
ciências, dentro da epistemologia tomista. Em suas preconceitos e concepções equivocadas
próprias palavras: acerca de um período que trouxe ricas
contribuições à cultura ocidental, bem
Aquele que possui a ciência como vivenciou uma grande interatividade
subalternada não alcança perfeitamente ocidente-oriente.
a noção de saber, senão na medida em  O trabalho tem como eixo central o
que seu conhecimento está de um certo Livro I da Summa contra Gentiles: Quod
modo em continuidade com o sit officium sapientis escrito entre os anos
conhecimento daquele que possui a de 1255 e 1264, em outras palavras “Qual
ciência subalternante; no entanto, não o Ofício do Sábio”, pois aqui Tomás
se diz que aquele que é dotado da aponta que o sábio é aquele que tem papel
ciência subalternada tem ciência do que capital na busca e constituição do
ele supõe, mas das conclusões que são “conhecimento”. Ao longo de todo Livro I,
concluídas necessariamente dos Tomás explicita esse assunto e atrela o
princípios. “sábio” a ideia de “Deus” e como essa
(NASCIMENTO, 1998, P.60) associação é capaz de atingir o “verdadeiro
conhecimento”.
As concepções hierárquicas conforme as  Desta forma, espera-se com esse trabalho
finalidades das ciências também são perceptíveis contribuir com a comunidade acadêmica e
aqui, e ressalta-se que são uma característica com o desenvolvimento do pensamento
fundamental do aristotelismo levada a termos ainda científico brasileiro, tão carente de

80
investidas positivas neste sentido. ÉTIENNE, Gilson. Deus e a Filosofia. Trad. Aída
Macedo. Lisboa: Edições70, 2002.
A partir destes estudos existe a possibilidade FAITANIN, P. O Ofício do Sábio: o modo de
de uma releitura em torno do desenvolvimento do estudar e ensinar, segundo Santo Tomás de Aquino.
conhecimento nas suas mais diversas áreas, Cadernos da Aquinate, n° 3. Niterói: Instituto
permitindo o reconhecimento da existência de uma Aquinate, 2008.
hierarquização das ciências, conforme proposto por FERREIRA, Anselmo. O conceito de Ciência em
Aquino. Outra hipótese significativa é abordar a Tomás de Aquino: uma apresentação da Expositio
possível existência de uma proximidade libri posteriorium (comentário Segundos Analíticos).
(cumplicidade) entre razão e fé, não com o intuito de Campinas, 2008.
desconstruir paradigmas, mas de contribuir na GARDEIL, H. D. Iniciação à Filosofia de São
construção de um novo olhar sobre o Tomás de Aquino II cosmologia. Trad. Wanda de
desenvolvimento de conhecimento a partir do Figueiredo. Livraria Duas Cidades. São Paulo, 1967.
período medieval e a influência e contribuição HOOYKASS, R. A religião e o desenvolvimento
religiosa, católica. Torna-se possível também uma da ciência na Idade Moderna.Editora Universidade
análise de algumas traduções de obras aristotélicas, de Brasília,1988.
feitas por vários intelectuais, com diferentes LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade
interesses, e a destacar a importância de Tomás de Média. 3ªa edição – Rio de Janeiro: José Olympio,
Aquino para a divulgação das idéias de Aristóteles 2010.
para a comunidade científica, lembrando que dirigiu NASCIMENTO, Carlos Arthur. De Tomás de
severas críticas às traduções feitas por Averróis, Aquino a Galileu.2ª edição.Campinas -
considerando-as infiéis e até mesmo ofensivas 46 aos Unicamp/IFCH,1998.
ensinamentos de Aristóteles, e que a igreja o RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência II:
considerava apto a função de realizar os comentários Oriente Médio e Idade Média. Rio de Janeiro, Jorge
sobre as obras e “corrigir” os possíveis erros em Zahar Ed., 2001.
relação aos ensinamentos religiosos cometidos por STRATHERN, Paul. São Tomás de Aquino. Trad.
Aristóteles. Apresenta-se a idéia de conhecimento Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
atrelado a verdade, desde que seja ela permissiva por 1999.
Deus segundo Tomás de Aquino.

Bibliografia

Fonte documental
AQUINO, Tomás de. Suma contra los gentiles.
Libro I “El oficio del sábio” Trad.Carlos Ignácio
González. México: Editorial Porrúa, 6ªEdição 2010.

Bibliografia citada e comentada


AQUINO, Tomás de. Súmula Contra os Gentios.
Trad. Luiz João Baraúna. Editor Victor Civita, São
Paulo, 1973.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou Ofício de
Historiador. Trad. André Telles, Ed. Jorge Zahar,
Rio de Janeiro, 2001
CAMENIETZKI, Carlos Ziller. A Cruz e a Luneta:
ciência e religião na Europa Moderna. Acces. Rio de
Janeiro, 2000.
COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino: a
razão a serviço da fé. – São Paulo: Moderna, 1993.
Coleção Logos. P.49-51.
_____________________ Averróis: o aristotelismo
radical. – São Paulo: Moderna, 1994. Coleção
Logos.

46
Conforme consta na introdução do livro “Suma Contra
os Gentios”.
81
82
A
REPRESENTAÇÃO
FEMININA
ATRAVÉS DA
REVISTA CARETA
ENTRE OS ANOS
DE 1920 E 1930
Sheila Regina Bernardin
(UEPR-FAFIUV)
Orientador:
Jefferson Willian Gohl
Os anos que se seguem entre 1920 e 1930
são marcados por grandes acontecimentos no
mundo. Conhecido como o período “entre guerras”,
marcado também pela consolidação dos Estados
Unidos enquanto potência mundial, a chamada
“American Way Of Life”, ou seja, o modo
americano de viver que passa a ser cada vez mais
intenso, que foi freado em 1929 pela quebra da
Bolsa de Valores de Nova York repercutindo no
mundo inteiro.
O Brasil neste momento vivia uma forte
influencia vinda da França, a Belle Époque. Fator
que influenciou na modernização das principais
cidades do país, como o Rio de Janeiro, pois era
necessário passar uma boa impressão aos visitantes
do nosso país. A influência francesa foi seguida de
várias mudanças e algumas revoltas, como a Revolta
da Vacina que ocorreu em novembro de 1904. A
cidade passa a ser reformulada, os cortiços, onde
pessoas moravam empilhadas e no centro da cidade
são destruídos pelo governo de Pereira Passos
prefeito da cidade do Rio de Janeiro. A cidade do
Rio passa a tomar forma, obtendo assim um grande
centro, com largas avenidas, os bairros habitacionais
daqueles que possuíam melhores condições de vida
são postos perto do grande centro, e como solução
para esconder a população pobre foram dispostos
nos morros, retirados do centro, o que pouco
resolveu, pois em menos tempo que se possa

83
imaginar as chamadas “favelas” já poderiam ser de termos que foram tomados como
avistados dos lugares mais nobres da cidade. auto-evidentes, historicizando-os. A
(CHALHOUB, 1996) história não é mais a respeito do que
O ano de 1922 ficou marcado pela Semana aconteceu a homens e mulheres e como
de Arte Moderna, movimento que renovou o eles reagiram a isso, mas sim a respeito
ambiente artístico e cultural da cidade de São Paulo, de como os significados subjetivos e
buscando mostrar que o Brasil também possuía a sua coletivos de homens e mulheres, como
própria arte. categorias de identidades foram
É neste contexto que a modernidade adentra construídos. (SIQUEIRA, 2008. p.116)
cada vez mais a vida das pessoas. A partir daqui
vamos buscar compreender como a mulher era vista Hoje em dia as discussões a respeito da
pela imprensa da época e para isto vamos nos história das mulheres ganharam um vasto campo de
utilizar do Periódico Revista Careta que veiculou produção. Além das revistas, periódicos, livros,
durante a primeira metade do Século XX e trazia ao monografias são pautadas nas lutas, no papel das
seu público diferentes formas de leitura, nas suas mulheres de todo o mundo. Quando citamos revistas,
páginas haviam noticias que englobavam disputas e podemos dar ênfase para a Revista Estudos
estratégias políticas através do humor, das charges, feministas. Ela nos traz em suas várias edições e
até reportagens que exaltavam a vida social, aonde artigos, discussões de variadas maneiras a respeito
as mulheres estavam sempre em evidência. das mulheres, escritos por autores como Joana Maria
Pedro, Rachel Soihet entre outros. A revista possui
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE uma visão mais abrangente do tema, porque ela foi
GÊNERO fundada em 1992. Há outro exemplo de revista que
se chama Revista a Mensageira (KAMITA,2004.
Antes de discutirmos sobre a imprensa e a P.164-168), qual foi publicada dos anos de 1897 até
relação dela com as mulheres iremos abordar alguns 1900. Nesta época tentava-se levar informações
aspectos sobre gênero, e o papel das mulheres na relativas para as mulheres não assuntos ligados à
história, pois julgamos ser primordial o cozinha, a casa ou aos filhos, mas sim repassar
conhecimento destas questões para que haja uma questões vinculadas a emancipação da mulher.
melhor compreensão do texto. De certa maneira podemos dizer que se a
Para Joan Scott (SIQUEIRA, 2008. P.110- posição feminina na sociedade de hoje está
117) gênero pode ser caracterizado como as relações totalmente diferente da década em que a Mensageira
entre os sexos que se dão nos aspectos ligados as era publicada é porque existiram mulheres com
características sociais, culturais, políticas, pensamentos diferentes que lutaram, acreditaram no
psicológicas, judiciais e econômicas, não são potencial feminino e criticaram fatores de seus
suficientes, já que vê as relações construídas de interesses.
maneira desigual, favorecendo sempre o lado Porém, nem sempre as coisas andaram desta
masculino. Aponta ainda que o gênero é dividido em forma. Enquanto os homens estavam nas fábricas,
duas partes e em várias sub partes que são ligadas nas ruas, nos bares ou então em seus respectivos
entre si , mas precisam ser separadas para serem serviços, o que restava para as mulheres era fazer o
analisadas. Scott afirma que ele é um elemento que serviço de casa e cuidar das crianças. Sendo assim
constrói as relações sociais, o qual é pautado nas uma vida social muito restrita, limitando-se a rua
diferenças entre masculino e feminino, que se onde residia. Um dos únicos lugares que podemos
constituem nas relações de poder. Não sendo apenas afirmar que as mulheres freqüentavam de uma
nas relações de poder, mas também no saber das maneira mais livre eram os bailes aonde iam para
diferenças sexuais. Para examinar gênero dentro de encontrar um marido na esperança de construir uma
um fenômeno histórico podemos utilizar nos da família.
seguinte passagem: Depois que casavam-se as mulheres passavam a
ser reconhecidas perante a sociedade como mães e
Examinar gênero concretamente, donas de casa. Além de tudo precisavam executar a
contextualmente e de considerá-lo um árdua tarefa de ao final do mês administrar o salário
fenômeno histórico, produzido, do marido. Tarefa esta que deveria ser muito bem
reproduzido e transformado em realizada para que nada faltasse em casa, para os
diferentes situações ao longo do tempo. filhos e o marido. Caso contrário, ela iria sentir-se
Esta é ao mesmo tempo uma postura culpada por não poder dar o melhor a sua família.
familiar e nova de pensar sobre a Mesmo que muitos vissem as mulheres desta
história. Pois questiona a confiabilidade maneira, Michelle Perrot (1988 , p. 167-231)

84
descreveu as mulheres em seu livro “Os Excluídos Junto com a Nova História começam a
da História” como um adorno. Alguém que enfeita tomar forma as manifestações de cunho feminino,
as cidades é considerada como fonte de inspiração que já estavam ocorrendo como já foi citado no
para muitos e até mesmo para um novo estilo de século XIX. O maior destaque pode ser dado ao
arte, a chamada Art Noveau. Mas pode ser movimento feminista, o qual a partir das suas
caracterizada ainda, como alguém que demorou manifestações queria mostrar para as sociedades que
muito para ganhar este reconhecimento perante a as mulheres eram excluídas, que suas reivindicações,
sociedade. lutas e direitos deveriam ser analisados, vistos de
Os séculos XIX e XX foram relatados pela uma outra maneira e não deixados de lado. Os
história apenas pelo ângulo político, fatos que impactos gerados por estes movimentos mudaram
estavam interligados as esferas de domínio público, muitos fatores na sociedade, obtendo resultados
pois nesta época a maneira de se escrever a história negativos e positivos. Dos resultados positivos
era baseada no método positivista. Mas, é na década podemos destacar que a sociedade conseguiu
de 1920 com o nascimento do movimento dos ampliar a visão sobre as mulheres nos espaços
Annales, que há uma renovação. Essa escola sociais, na política, na cultura, nas cidades e no
contribuiu para que as mulheres fizessem parte da campo.
história, já que visava-se a diversidade, fazendo De acordo com Joana Maria Pedro e Rachel
desta forma uma história completa, na qual todos Soihet (2007, p.281-300) após construída a história
pudessem ser agentes. das mulheres, um ponto precisou ser desmistificado,
Com a mudança e a inserção da história das a idéia da mulher se apresentar como um ser
mulheres, o cotidiano passou a ser a principal universal, já que era caracterizada como alguém de
maneira para que a história delas fosse redigida. forte influência perante os acontecimentos e neste
Sendo que foi a história social que mais se caso até o social, a vida pública.
preocupou com as identidades coletivas, levando as Com a imposição das mulheres na história,
mulheres a condições de objetos de estudo e agentes criou-se uma situação de ambigüidades, a sua
da história. complementação em uma história que já existia e era
conhecida por todos, sugeria uma idéia de caráter
Nesse particular, destaca-se o vulto inacabado, pois a história era entendida como
assumido pela história social, na qual se verdadeira.
engajam correntes revisionistas A concepção de homem versus mulher
marxistas, cuja preocupação índice implicou uma mobilização política importante e
sobre as identidades coletivas de uma disseminada, que gerava variadas demonstrações
ampla variedade de grupos sociais, até que afirmavam a impossibilidade de se pensar numa
então excluídos do interesse da história: identidade em comum. Desta maneira tivemos a
operários, camponeses, escravos, fragmentação da idéia universal da mulher tanto no
pessoas comuns. Pluralizam-se os que se refere a classe, a raça, a etnia, geração ou
objetos de investigação histórica, e, sexualidade, ocorrendo assim a percepção da
nesse bojo, as mulheres são alcançadas existência de múltiplas identidades.
a condição de objeto e sujeito da A representação de mulher na revista e sua
história. A preocupação com a corrente identidade, possível a partir da moda que ela
neomarxista com a inter-relação entre o personifica, faz com que haja uma distinção ao
micro e contexto global permite a mundo masculino, fazendo com que ela comece a
abordagem do cotidiano, dos papéis ganhar um espaço diferenciado perante a sociedade.
informais e das mediações sociais – No Brasil podemos considerar que a
elementos fundamentais na apreensão pioneira a escrever sobre as mulheres foi Maria
das vivencias desses grupos, de suas Odila Leite da Silva Dias (PEDRO E SOIHET,
formas de luta e de resistência. 2007, p.281-300). O seu livro “Quotidiano e Poder”
Ignorados num enfoque marcado pelo é fonte de inspiração para as novas gerações de
caráter totalizante, tornam-se historiadores e historiadoras que voltam os seus
perceptíveis numa análise que capte o trabalhos para as mulheres e as relações de gênero,
significado de sutilizas, possibilitando o porém isto não significa que ela é a única a trabalhar
desvendamento de processos de outra com o assunto.
forma invisíveis. (PEDRO E SOIHET, No que se refere a historiografia, a visão é
2007) pautada na idéia de ver as transformações como um
chamado para voltar-se as partes consideradas
invisíveis, ou seja, as mulheres que como os homens

85
fazem parte das estruturas sociais de um lugar. Aqui carreira. Sabonete a condizer com as
vemos a assimetria se valer, onde não é possível cores da sua casa de banho. (COTT,
explicar apenas o homem ou a mulher de uma 1996, p.110)
maneira isolada. Esta assimetria pode ser vista nas
revistas do Brasil no início do século, como por Para que ocorresse a incorporação do mundo
exemplo a Revista Careta. Publicada entre os anos e das idéias feministas, era necessária a aceitação
de 1908 até 1960, trouxe noticias, charges com a por parte dos homens. Isto causou várias rupturas e
presença feminina. Na edição de número 1131 de desestabilidades, já que a mentalidade masculina
fevereiro de 1930 temos páginas voltadas ao cinema, deveria ser repensada. Quando se consegue fazer
ali pode-se perceber o papel da mulher em cenas que esta incorporação, nasce outro problema, a maneira
para a época podemos considerar de forte apelo com que elas agiam, expondo a possibilidade de
passional por conterem abraços e beijos. Nesta voltar as mesma condições de antes, a relação ligada
mesma edição, podemos constatar várias aparições entre poder-saber pelo fato de saber que o modo
de mulheres no cotidiano, seja em propagandas de feminista de pensar rompe com os modelos
lojas que anunciam as novas tendências vindas de hierárquicos de funcionamento da ciência.
lugares como Paris, ou então nas páginas que trazem A construção do pensamento feminino é
fotografias de mulheres passeando com modelos uma marca emancipatória e libertária, onde
mais curtos, mostrando as pernas e os cabelos pretende-se construir uma identidade cultural
curtos. Outras fotografias que podemos citar aqui feminina, da evidencia de sua subjetividade.
são as fotos na praia de Copacabana que nos passam E sendo assim a proposta teórica estava
imagens de homens e mulheres freqüentando o pautada em tentar igualar homens e mulheres. Para
mesmo espaço. Sendo que as mulheres agora usam questionar, ela fundamentou-se no pós-
modelos de banho mais curtos e justos, com toda a estruturalismo, o qual se preocupavam com o
sociedade as olhando. significado da variedade e da natureza. Como
Como para analisar as mulheres, precisamos conclusão, define gênero como uma organização
analisar também os contextos sociais, podemos aqui social da diferença sexual, não colocando diferenças
falar sobre o papel da mulher, como ela estava fixas ou naturais entre homens e mulheres, mas um
inserida nos anos 20 no contexto social e cultural. saber. (PEDRO E SOIHET, 2007, p.281-300)
Os anos 20 (COTT, 1996, p. 94-113) podem ser
considerados como uma nova era, onde há várias
mudanças, dentre as quais estão a produção de A IMPRENSA NO SÉCULO XX
massa e o consumo. Porém as tecnologias como o
automóvel, a vida mais fácil das mulheres, o A imprensa nacional passou pelo movimento
telefone e até mesmo os impressos não chegam a de modernização, na passagem do século XIX para o
todos. É o caso das mulheres negras, que continuam XX, com transformações nas técnicas de impressão
a trabalhar nas plantações de tabaco, vivendo em e edição, renovação do parque gráfico e um maior
condições precárias. consumo de papel (Gaskell,1992). Esta renovação
A partir do momento que a mulher sabe o ocasionada na imprensa nacional faz com que a
que acontece dentro do casamento, na vida conjugal ilustração ganhe espaço nos periódicos, e é isto que
e principalmente quando elementos da sexualidade Tânia de Luca (2005) acredita que impulsionou a
se tornaram mais evidentes ganhando espaço até no circulação dos periódicos, pois eles chamavam a
cinema a concepção do casamento mudou. atenção avançando lentamente o mercado.
O setor publicitário da época formulou Podemos discutir aqui um pouco sobre o
métodos de venda próprios para as mulheres, luxo. Este elemento se fazia e se faz presente até
mostrando a elas produtos que eram úteis para as hoje nos meios de comunicação, pois é através de
suas vidas modernas e o que possibilitou que esta sua propaganda que desejamos o supérfluo, aquilo
maneira de publicidade tivesse sucesso foram as que não necessitamos, mas desejamos. O luxo
novas técnicas gráficas e fotográficas. A mulher acabou por quebrar as fronteiras que separavam as
desta época poderia ser caracterizada como: classes econômicas. Já não era mais possível realizar
uma análise da economia a partir dele, como era
anteriormente realizado. Mas ele só é eliminado
A mulher de hoje obtém tudo o que totalmente como item para esta análise a partir da
quer. O voto. Finos forros de seda para Revolução Industrial. Toda esta relação é porque
substituir volumosos saiotes. Objectos mesmo que os salários continuassem os mesmos,
de vidros em safira azul ou em âmbar ricos e pobres passaram a consumir de forma igual.
resplandecente. O direito a uma Por esta demanda, temos a multiplicação das

86
mercadorias seguidas da idéia de ter um luxo Outro material que encontramos nas edições
honesto e um luxo abusivo, ou então, o que é da Revista Careta e que nos ajudam a compreender
necessário e o que é supérfluo.(ORTIZ, 1998) melhor como a imprensa retratava a mulher neste
As revistas, um dos principais meios de período são as charges. Elas são utilizadas pela
comunicação, levam as pessoas a quererem o luxo. revista para satirizarem, questionarem a situação da
Ortiz nos traz um exemplo de “La Mode” de 1839 sociedade na época, como exemplo disto podemos
na qual há uma separação entre o luxo e a pobreza. analisar algumas delas:
Constata-se então que ela é totalmente voltada para
as classes dominantes, trazendo tudo a respeito do
confortável e do luxuoso. Nestas revistas o que se
enfocava era a vida pariense, mostrando costumes,
vitrines que deixava as mulheres deslumbradas,
aguçando não a necessidade, mas o querer, o desejo
e a ambição.
Quando a imprensa consegue perceber isto,
passa a estimular o público a possuir bens,
anunciando aparelhos eletrodomésticos que
facilitavam a vida das mulheres. A ilustração destes
produtos como o aspirador de pó, máquinas de lavar
roupa, ferro elétrico passaram a ser associados a
figura de mulheres modernas e elegantes que mesmo
com todas as tarefas do lar para serem realizadas
poderiam ainda utilizar salto e maquiagem. Esta charge foi retirada da edição de número
Porém é possível perceber que esta ligação 821, do dia 15 de março de 1924, através dela
entre produtos domésticos e a facilidade que lhes podemos trabalhar com a nova maneira de cortar os
proporcionam a vida das mulheres começam a sair cabelos que as mulheres adotaram.
de cena, pois ao analisar a Revista Careta a partir de Como podemos perceber o novo estilo
1920 o que visualizamos é sem dúvida uma deixou as mulheres com aspecto masculino, aonde
propaganda que enfoca a beleza, a moda, o luxo, as tosquiar os cabelos, segundo Michelle Perrot (2007)
últimas tendências do mundo e principalmente a era um sinal de modernidade. Não apenas os cabelos
vida social em que as mulheres fazem parte cada vez se tornaram assuntos para a criação de charges, mas,
mais. Isto fica em evidência através da propaganda os decotes, as roupas mais leves que também
retirada da Revista Careta, do dia 03 de janeiro de passaram a ser símbolos da modernidade também
1920, edição de número 602. foram alvos. Para representar melhor podemos
utilizar a charge da edição do dia 19 de dezembro de
1925, numero 913.

Através da análise da Revista Careta


podemos perceber uma ambigüidade. Esta questão
pode ser vista por fatores como: ao mesmo tempo
em que a revista trata de coisas modernas, Durante a leitura do texto que acompanha a
tendências de outras partes do mundo, mostrando o charge fica claro que a vantagem que os homens
que deve ser feito para ser moderno, ainda existe encontraram no que diz respeito a maneira das
uma preocupação muito grande em preservar o mulheres se vestir esta relacionada com a exposição
tradicional, o pudor, a honra feminina que é mediada do corpo, aonde é possivel visualizar “melhor” as
através do comportamento e da forma de se vestir. condições físicas da mulher. Seguindo esta lógica,

87
em outra edição do ano de 1922 temos na capa da REFERÊNCIAS:
Revista Careta uma charge abordando o mesmo
assunto mostrando que cada vez mais as mulheres CHALHOUB, Sidnei. CIDADE FEBRIL: cortiços e
usam roupas mais curtas, decotes cada vez maiores, epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia
deixam o corpo à mostra e frequentam todos os das Letras, 1996.
espaços da sociedade que lhes é cabível sem se COTT, Nancy F.. "A mulher moderna: O estilo
preocuaparem com olhares ou comentários. americano dos anos vinte". ... "Mulheres imagens e
representações". in: História das mulheres no
Ocidente. ... O século XX. Porto/ São Paulo. Edições
Afrontamentos/ EBRADIL, 1996.P. 94-113
GASKELL, Ivan, História das imagens. IN:
BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
KAMITA, Rosana C. Revista “A Mensageira”:
Alvorecer de uma Nova Era?. IN: Estudos
Feministas, Florianópolis, 12(N.E): 264, setembro-
dezembro/2004. pág.164-168
Luca, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio
dos periódicos. IN: Fontes Históricas.p.134-136. São
Paulo: Contexto, 2005
Ortiz, Renato, Cultura e modernidade: A França no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1998
PEDRO,Joana M SOIHET, Rachel. A Emergência
da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações
de Gênero. IN: Revista Brasileira de História. São
Paulo. V-27. nº54, p.281-300 - 2007
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História:
operários, mulheres e prisioneiros. Michelle Perrot;
tradução Denise Bottmann.- Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988. pág 167-231.
PERROT. Michelle. O Corpo. IN: Minha História
das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Revista Careta, edição de número 602 do dia 03 de
janeiro de 1920.
A partir do que abordamos nestas páginas Revista Careta edição de numero 713 do dia 18 de
podemos afirmar que durante os anos de 1920 e fevereiro de 1922.
1930, onde buscamos compreender a maneira que a Revista Careta edição de número 821 do dia 15 de
mulher era representada pelos veículos de março de 1924.
comunicação, neste caso, o periódico Revista Careta Revista careta edição de número 913 do dia 19 de
foi possível identificar claramente que havia ainda dezembro de 1925.
uma resistência por parte masculina para que as Revista Careta edição de número 1131 de fevereiro
mulheres fizessem parte da sociedade tal como hoje. de 1930.
É possível ressaltar também que este foi um período SIQUEIRA, Tatiana Lima. Joan Scott e o papel da
em que as mulheres passaram a representar uma história na construção das relações de gênero. IN:
nova forma de ser, ou seja, a modernidade expressa Revista Ártemis Vol.8, jun 2008, p.110-117.
principalmente no corpo fez com que ocorresse uma
ambigüidade, pois de um lado haviam propagandas
que incentivavam este novo estilo, estimulando as
mulheres a comprarem e a estarem na moda como
expressa a propaganda exposta nas páginas
anteriores, porém, de outro lado as charges também
expostas em páginas anteriores nos levam a crer que
havia uma preocupação com o pudor, proteger a
mulher principalmente nos lugares públicos como
se a figura feminina fosse tão frágil que precisasse
cobrir o seu corpo como uma forma de proteção.

88
MULHERES NO
BRASIL COLÔNIA
Jaquelline Maria Cardoso
(PG-História - FAFIUV)
Dulceli Tonet Estacheski
( Mrs UEPR - FAFIUV)

INTRODUÇÃO

Numa época em que atos e palavras


poderiam condenar à morte facilmente, encontramos
leituras que trazem à tona a importância das
mulheres na sociedade no Brasil Colônia, notamos
nas entrelinhas das narrativas, já que nesse momento
a sociedade era patriarcal e que as pessoas, num
modo geral, eram vistas como um mistério e uma
mistura de culpa de Deus e do diabo. (SOUZA,
1986, p.78)
Aproveitamos o momento em que é citado o
corpo humano como um „alojamento‟ de forças do
bem e do mal, e exploramos o pensamento de Laura
de Mello e Souza (1986), em consideração às
colocações que eram feitas às mulheres:

Num cenário em que a doença e a culpa


se misturavam, o corpo feminino era
visto, tanto por pregadores da Igreja
católica quanto por médicos, como um
palco nebuloso e obscuro no qual Deus
e o diabo se degladiavam. Qualquer
doença, qualquer mazela que atacasse
uma mulher, era interpretada como
indício da ira celestial contra pecados
cometidos, ou então era diagnosticada
como sinal demoníaco ou feitiço
diabólico. Esse imaginário, que tornava
o corpo um extrato do céu ou do
inferno, constituía um saber que
orientava a medicina e supria
provisoriamente as lacunas de seus
conhecimentos (MELLO E SOUZA,
1986, p.78).

Com isso, inicialmente podemos notar as


condições que eram dadas às mulheres na época
colonial, a forma como o imaginário era abordado,
fazendo as ver como um acúmulo de coisas ruins
que poderiam existir, e ao mesmo tempo

89
despertando a curiosidade em entender o ou às vezes nem aconteciam, e, para livrar a culpa,
funcionamento dos órgãos sexuais femininos; Então, os pais das jovens as mandavam para os conventos,
a Igreja interfere, julgando como práticas heréticas achando assim que estariam salvas do mundo do
todas as formas de estudos nessa área, durante os sexo e ainda estariam mais próximas de Deus, ledo
séculos XVI e XVII. engano, pois eram nos conventos onde aconteciam
Porém, ao mesmo tempo em que as diversas situações envolvendo encontros sexuais e
mulheres eram acusadas e culpadas pelo simples fato práticas de homossexualismo.
de sua natureza ser feminina, ainda passavam por O conceito „etnodemonologia‟ é atribuído
situações em que eram abusadas sexualmente em por Laura de Mello em razão de que nesse momento
confessionários pelos próprios padres. os conquistadores vêem nos habitantes da Colônia a
Segundo Delumeau (2009), os padres presença do demônio, isso devido à suas práticas
convenciam com seus discursos, que eram lidos por religiosas diferentes, que até então fluíam
milhares de confessores, de que todo o mal físico era normalmente até que a Igreja intervém e tenta
de ordem moral, e se no cotidiano da vida extirpá-las.
aconteciam desgraças significava que o diabo e seus Esses são exemplos de abordagens que se
agentes eram quem causavam a iniqüidade e a pretende desenvolver nesta pesquisa, embasados em
malvadeza que ameaçava a paz terrena, e um de seus autores como Ronaldo Vainfas, Laura de Mello e
agentes principal eram as mulheres, e que: Souza, Jean Delumeau, Mary Del Priore, entre
outros pesquisadores que se dedicam a desvendar os
No inconsciente do homem, a mulher acontecimentos da História do Brasil no período
desperta a inquietude, não só porque ela colonial.
é juiz de sua sexualidade, mas também A chave de nossa pesquisa está em
porque ele a imagina de bom grado relacionar a mulher e as práticas religiosas da época,
insaciável, comparável a um fogo que é ou seja: Por que as mulheres do período colonial
preciso alimentar incessantemente, eram tão difamadas pela Igreja católica?
devoradora como o louva-a-deus
(DELUMEAU, 2009, p.467). 1. Mulher nos parâmetros cristãos

Conforme Del Priore (2006), a sociedade do Para entender as mulheres no Brasil Colônia,
Brasil Colônia estava sabendo das exigências da precisamos olhar pelo viés religioso, pois muito se
igreja, e esta fazia distinções em relação às classes observa que a religião impôs de maneira assídua a
sociais e ao sexo, e em relação às mulheres havia moral no contexto desse período. Mas,
uma exigência ainda maior em relação ao seu resumidamente, como, por que e para que isso
comportamento, que era regido pelas normas de aconteceu?
conduta, as quais eram reforçadas pelo fato de É importante, inicialmente entender as
estarem numa sociedade patriarcalista, e pelo fato de mulheres dentro da historiografia, para que esclareça
serem portadoras de muitos mistérios que envolviam a idéia de abordagem ao gênero feminino. Para isso,
as mulheres, como a fertilidade e o sangramento, Mary Del Priore (1992) envolve-se numa
que era incompreensível pelo homem comum e perspectiva historiográfica das mulheres e com isso
eclesiástico, e devido ao fato delas serem se atém que o território do feminino é um lugar
consideradas agentes do diabo, a ação inquisitória sereno e que a mulher completa as práticas sociais e
associava as mulheres ao mal, perseguindo-a pelo possui poder, mesmo que, poderes informais.
pecado da feitiçaria. Nota-se que existiu certo grau de resistência
A Igreja da época colonial as acusava de ser no estudo do gênero feminino, pois por muito tempo
uma espécie de publicidade do demônio, já que às mulheres foram deixadas de fora dos focos de
andavam com roupas provocantes, exibindo os pés e estudo, e isso fez com que as pesquisas que
os seios. começaram com a abordagem ao gênero pendessem
Ainda envoltos em leituras históricas, mas para uma prática feminista.
que, em certos momentos se tornam deliciosas Sobre o período colonial, podemos notar que
narrativas romanceadas dos acontecimentos do as mulheres que eram trazidas ao Brasil eram
Brasil colônia, descobrimos um „toque‟ a mais sobre aquelas, que de certo modo, herdavam
a história das mulheres dessa época, que seria o características da metrópole e da Europa Ocidental,
início da vida sexual aproximadamente entre os 7 e, que nesse mesmo contexto, o cristianismo estava
no máximo 15 anos de idade, esse acontecimento sofrendo mudanças e adaptações às quais se
levava ao interesse sexual das jovens ainda muito refletiam na colônia fazendo com que a população
cedo, mas às vezes os casamentos destas demoravam aumentasse sua devoção pessoal.

90
As mulheres foram estereotipadas pelos pregadores e confessores os seus mais
homens e pela Igreja que através disso, implantaram eloqüentes porta-vozes. Elementos para
sua dominação através de discursos sobre ética e esse discurso normatilizador já se
moral. A superioridade do homem foi pouco a pouco encontravam impregnados na
se tornando mais forte com os discursos da Igreja, mentalidade popular portuguesa – e
discursos esses, que condenavam de um modo geral, mesmo européia -, como será mostrado,
grande parte dos costumes das mulheres, como por cabendo à Igreja metropolitana adaptar
exemplo, o uso de adornos em seus corpos, a valores conhecidos das populações
exibição dos seios, a falta de tecido em suas femininas, para um discurso com
vestimentas, ou seja, a Igreja estava condenando a conteúdo e atividade religiosa exercida
tradição e os costumes do povo local. (DEL na Colônia, dando especial sabor
PRIORE, 1992, p.15-16) normativo aos sermões dominicais, as
É importante notar que a religiosidade palavras ditas pelo padre no
católica estava inserindo as mulheres em seus confessionário, as regras das confrarias
padrões utópicos de sociedades ideais, recolhendo-as e irmandades, aos „causos‟
em seus conventos, as inserindo em uma vida moralizantes, aos contos populares, aos
espiritual que se diferenciava de todos os costumes critérios com que se julgavam os
até então preservados e fazendo, através do infratores das normas por meio da
envolvimento mental e social, com que elas se „murmuração‟ e da maledicência (DEL
sentissem submissas aos homens, valorizando cada PRIORE, 1993 p.26).
vez mais conceitos como honra e virtude.
Dentre tantas ações que a Igreja buscava Segundo Gaspari (2005):
combater ao que diz respeito aos costumes e modos
das mulheres agirem, destaca-se a maternidade como Os estereótipos que se criaram em torno
um tabu que foi sendo pouco a pouco estimulado da mulher sobre sua condição feminina
pela Igreja que apoiava a multiplicação das provocaram a segregação social e
gerações. A Igreja condenava a prática sexual com política a que as mulheres foram
fins meramente prazerosos, mas apoiava a família e historicamente conduzidas, porque no
o seu aumento. Nesse contexto, os padres jesuítas imaginário masculino a percepção que
condenavam as mulheres que, na visão deles, se tinha era as fraquezas, a sua
estavam forçando abortos. Foram criadas leis e leviandade, um ser diabólico, enfim um
mitos durante o século XVII, para que se evitassem “mal necessário” à vida do homem, no
as práticas de aborto, a mulher poderia ser qual como ser superior e racional
condenada até 23 anos de penitências pela ação deveria ser capaz de controlá-la e não
contra o feto, pois a Igreja estava preocupada com a de seduzir pelos seus encantos
culpa das mulheres, incentivando-as a se maléficos (GASPARI, 2005, p.35).
confessarem constantemente.
Basicamente as mulheres no Brasil colônia, Del Priore (1995) afirma que, no processo de
assim como a sociedade de um modo geral, estavam colonização, as mulheres não foram educadas, mas
envolvidas em normas do concílio tridentino, e as sim adestradas por meio de dois instrumentos de
necessidades passaram a ser adaptadas conforme ação: primeiro pelos padrões ideais de
ditava o concílio. Entretanto, as mulheres passaram comportamento, importados da metrópole com
principalmente a desenvolver práticas que as discursos normativos que a igreja se encarregava de
confinavam dentro da casa, incentivando-as anunciar, nos sermões dominicais, nas confissões e
essencialmente para serem mães, e o „treinamento‟ nos contos populares, construindo assim uma
se dava iprincipalmente nas práticas do lar, mesmo mentalidade impregnada por esses discursos; o
que o processo de adestramento como cita Mary Del segundo instrumento usado foi à domesticação da
Priore (1993), já iniciasse anteriormente. mulher com discursos normativos dos médicos, eles
davam caução ao religioso, confirmando
O processo de adestramento pelo qual cientificamente que a função das mulheres era a
passavam as mulheres coloniais foi procriação.
acionado por meio de dois musculosos Segundo Algranti, (1993), a honra e a virtude
instrumentos de ação. O primeiro, um são os termos que expressam o comportamento
discurso sobre padrões ideais de feminino em relação à conduta sexual, e era preciso
comportamento, importando da defendê-la para manter a reputação e pertencer à boa
Metrópole, teve nos moralistas, sociedade. E é no matrimônio que a mulher é

91
colocada no confinamento, como forma de cumprir a religiosa, e com isso acabavam atraindo cada vez
ordem divina da multiplicação da espécie. mais mulheres ao confinamento.
A Igreja não implantou esse sistema de
Pelas leis do Concilio de Trento em preservação da conduta feminina no Brasil colonial,
vigor nos países católicos, aquela que ou seja, não permitiu a criação de novos conventos e
se entregasse a um homem sem ser adotou outra maneira de submeter às mulheres: a
casada ou fosse adúltera não era apenas obrigatoriedade da vida familiar. Essa opção que a
uma mulher desonrada aos olhos da Igreja fez, tinha como objetivo principal aumentar a
sociedade, mas antes de tudo, uma população da colônia, e ainda inserir na mentalidade
pecadora, e sobre ela deveria recair o das mulheres a total obediência e submissão aos
maior dos castigos, o castigo divino homens – seus maridos – contentando-os em todos
(ALGRANTI, 1993, p.115). os sentidos, principalmente na sua casa servindo
como escravas doméstica e sexuais.
Conforme afirma Algranti (1993), a honra É importante ressaltar que existiam vários
das mulheres na Colônia não dependia de seu status, tabus em torno da gravidez. Assim como era tão
mas sim do seu comportamento seguido pelas regras incentivada pela Igreja quando o matrimônio era
de controle, ou seja, a relação que estabelecia com abençoado pela instituição, mas existiam casos em
sua sexualidade. E a honra das mulheres era também que as mulheres mesmo casadas, não conseguiam
a honra da família, e caso ela desonrasse seu marido engravidar, o que para a Igreja era visto como uma
e sua família, deveria ser punida, ela precisava viver maldição, assim como as dores do parto que eram
reclusa no interior do seu lar, ocupada com afazeres interpretadas como uma redenção aos pecados (DEL
domésticos, distante dos espaços públicos. PRIORE, 1993, p. 29- 31).
A esposa deveria governar a casa, sem Dentro do discurso social as mulheres eram
muitos contatos ou intimidade, mesmo com aqueles divididas ainda em: mulheres com honra, mulheres
que viviam sob o mesmo teto. As saídas das sem honra e mulheres desonradas; fazendo com que
mulheres eram restritas, somente para ir a igreja se a sexualidade moldasse a valorização atribuída a
confessar e a algumas festas, mas sem muitos elas:
adornos e modismo, e muito menos sorrisos. As
novidades do mundo exterior lhe eram proibidas, Disciplinador da sexualidade dos
pois os livros, que eram a fonte das informações, indivíduos, o casamento trouxe consigo
também lhes eram vedados. normas sobre a prática sexual que, uma
Segundo Leal (2004) a restrição do espaço vez não cumpridas, acarretariam o
feminino é um traço básico das sociedades pecado. Assim, pelas leis do Concílio
patriarcais e é preciso que as mulheres reconheçam o de Trento em vigor nos países católicos,
poder do homem e o seu lugar na sociedade em que aquela que se entregasse a um homem
vive. Os homens procuraram restringir, de modo sem ser casada ou fosse adúltera não
mais autoritário possível, a liberdade de suas esposas era apenas uma mulher desonrada aos
e filhas, que eles viam como suas propriedades, e à olhos da sociedade, mas antes de tudo
mulher não era permitido nem mesmo sair de casa. uma pecadora, e sobre ela deveria recair
Com isso, a idéia seria implantar na o maior dos castigos, o castigo divino.
mentalidade das mulheres uma educação forçada, [...] Toda mulher não-virtuosa será uma
usando o discurso da Igreja para „amedontrar‟, mulher desonrada. Do que se conclui
buscando com isso evitar o desvio da ordem. que a honra feminina não dependia do
No contexto da religiosidade, as mulheres status que ela detivesse na sociedade,
desde o início do cristianismo, foram convidadas mas sim da relação que estabelecia com
para entregar sua vida à Cristo e dedicar-se a Deus, a sua sexualidade (ALGRANTI, 1993,
isso seria uma vida na perfeição e eram admiradas p.115).
socialmente pelo fato de seguirem o bom caminho.
A ampliação dos conventos criava espaço para mais O interessante é observar que as mulheres já
mulheres seguirem Cristo, porém os motivos que as eram pré-julgadas pela própria natureza feminina,
faziam tomarem essa decisão eram os mais variados pois mesmo que as diferenças sociais existissem,
possíveis, já que acima de tudo, o convento seria um muitas vezes eram ainda mais excluídas por suas
local de preservação da virtude feminina no classes, interessante que algumas vezes mulheres de
entendimento da sociedade. No Brasil colônia, as classes sociais diferentes se uniam para conversar
visões e premonições, eram os fatores principais que sobre seus sofrimentos e situações, já que estavam
incentivavam as mulheres a seguirem uma vida

92
todas „condenadas‟ a sofrerem as conseqüências por queriam ou não podiam perder a honra
terem nascido mulher. de virgens (VAINFAS, 1997, p.140).

2 As diversas práticas religiosas Os atos de homossexualismo entre as


mulheres eram poucas vezes descobertos, mas
As divisões de classes estavam claramente quando o eram, a Igreja através dos Tribunais
expostas, assim como o desejo da Igreja de que Inquisitoriais condenavam cruelmente essas
todas as mulheres – dessa vez independente da mulheres as fazendo queimar até virar pó. Porém,
classe – se casassem com a benção do padre. Com como não existia nenhuma lei específica
essas condições, os homens procuravam as mulheres condenando essas práticas, os religiosos as
para se casarem, mas algumas vezes sentiam-se enquadravam no crime de molice, ou seja,
ameaçados com a idéia da traição, que era muito masturbação (ARAÚJO, 1986 p.67, in: DEL
presente nesse período, principalmente quando iam PRIORE, 1992, p.33).
viajar e passar longos períodos fora. A fama que se
criou a respeito das mulheres portuguesas no Brasil
Colônia foi negativa, pois ficaram conhecidas como 3. Práticas não cristãs
mulheres fáceis, e os perigos dessas difamações
estavam na possibilidade do marido ou irmão Observando as diferentes características que
cometer assassinato, tanto a elas como aos homens as mulheres da Colônia possuíam, nota-se as
que se aproveitassem das circunstâncias (VAINFAS, diferentes situações em que se encontravam, como
1989, p.139). por exemplo, as mulheres nos conventos e suas
Os conventos do Brasil, muitas vezes foram diversas atitudes e interesses, a escravas com suas
cenários de namoros entre freiras e padres, uma obrigações, as indígenas com seus costumes, enfim,
escola de ensinamentos religiosos assim como local o que vale ressaltar é que são muitos os aspectos que
de total desfruto da liberdade. As práticas de se diferem e ao mesmo tempo se aproximam pelo
namoros nos conventos, não se davam somente em fato de que fazendo parte de um mesmo cenário
torno dos padres e freiras, mas existiam também muitas vezes os costumes se mesclam e se adaptam
situações de lesbianismo, e não era fora do comum o conforme as situações muitas vezes de formas
acontecimento dessas práticas (VAINFAS, 1989, imperceptíveis, principalmente no caso das
p.140). mulheres, pois elas já faziam parte de uma realidade
Através de um exemplo comentado por de exclusão, independente de sua classe social, elas
Ronaldo Vainfas (1989), ficam claras as situações se tornavam sempre vítimas de recriminações.
em que as mulheres procuravam e até mesmo A mesma realidade dos conventos onde as
preferiam um relacionamento com outras mulheres: práticas eram mascaradas, encontra-se em outros
espaços, as mulheres em geral praticando rituais,
Mas a grande fanchona da Bahia, se magias para obterem sucessos em seus desejos, que
assim podemos chamá-la, foi a tal de em maioria eram relacionados a amores secretos.
Felipa de Souza, amante da ousada Fica clara a proibição por parte da Coroa de
Paula de Siqueira. Felipa era mulher qualquer manifestação de bruxaria – que assim
simples, que “ganhava a vida pela chamavam as práticas religiosas não católicas – e
agulha”, fora viúva de um pedreiro e mesmo correndo todos os perigos impostos se
vivia casada com um modesto lavrador. arriscavam para que, através dos encantamentos
Apesar de duas vezes casada, adorava conseguissem a realização de suas vontades.
mulheres e sempre as procurava,
conforme dizia, “pelo grande amor e O universo mágico em que viviam as
afeição carnal que sentia” quando as mulheres solidarizava-as, irmanava-as
via. E, com efeito, não perdia para alem das hierarquias sociais,
oportunidade alguma de cortejar, conferindo-lhes ainda um poder
agarrar e deitar com todas que lhe valorizado e respeitado socialmente.
atravessavam o caminho. [...] O Mas as mulheres do passado longe
universo feminino da Colônia também estiveram de qualquer “consciência
incluía, portanto, o nefando. Praticam- grupal”, mesmo que a linguagem dos
no as mocinhas em meio aos risos e às filtros e das orações nos indiquem o
brincadeiras infantis, bem como as contrário, isto é, um desejo geral de
raparigas cheias de desejo, mas que não serem amadas e valorizadas pelos
homens. Por mais que se unissem

93
senhoras e escravas na consecução de Considerações finais
algum romance, por mais que
trocassem segredos e métodos no Já foi dito que no Brasil Colônia não eram
campo do amor, bastava um ciúme, um constantes as visitas dos inquisidores, porém, o
simples deslize da escrava, para o afeto medo se espalhava facilmente entre todos, e é nesse
“mudar-se em ódio” e a negra momento que se cruzam situações vistas até então.
confidente acabar torturada pela ama Ou seja, a Igreja com suas práticas heréticas muitas
impiedosa (VAINFAS, 1997, p.143). vezes encobertas e outros momento em que a própria
Igreja acabava condenando outros exemplos de
Dentro deste contexto, se encontram os mais religiosidades e costumes, o que denominavam por
diversos exemplos de feitiços, até mesmo com bruxaria.
objetivo de conseguir uma boa convivência com o No Brasil não houve um tribunal
marido, mas as práticas mágicas não giravam apenas inquisitorial fixo como existiram na Espanha e em
em torno dos relacionamentos amorosos. Sabe-se Portugal, porém a Colônia não deixou de participar
que o corpo das mulheres, era visto como uma desse momento, pois se subordinou ao Tribunal de
grande incógnita, onde habitavam forças ocultas, Lisboa. Os olhos inquisitoriais estavam atentos a
tanto do bem como do mal. Era o corpo feminino Colônia, fazendo com que em três momentos os
visto então como um enigma, muitas vezes inquisidores viessem para cá farejar as situações ou
subestimado, com isso, as mulheres não se sentiam a então colocar nas mãos dos bispos que aqui estavam
vontade em procurar ajuda com médicos ou muitas às responsabilidades de ouvir delatores e condenar
vezes não conseguiam acesso, o que as levava a as pessoas. Basicamente cerca de 50 pessoas da
terem de buscar auxílio com outras mulheres, mais Colônia eram julgadas pelo Tribunal por ano
experientes e de sua confiança, onde buscavam as (MELLO E SOUZA, 1993).
curas (DEL PRIORE, 2006). Por um viés historiográfico, o estudo a
Outro exemplo bastante válido em relação à respeito da sexualidade e dos casos de magia
magia praticada no Brasil Colônia diz respeito desenvolvidos no Brasil Colônia são possíveis hoje
principalmente à classe escrava, pois muitas vezes em dia, graças aos relatos dos delatores que, através
procuravam através de feitiços e rezas bloquear a ira do medo de se tornarem vítimas dos Tribunais,
senhorial com os seus castigos, assim como relatavam tudo o que conheciam a respeito de seus
buscavam com a magia realizar o contra-feitiço, que vizinhos, conhecidos, parentes e como tudo era
era rogado para fazer voltar para a pessoa que arquivado, existem as possibilidades mais diversas
praticou. Essas práticas mágicas não se distinguiam de estudo nessas e em outras áreas (VAINFAS,
em boas ou ruins, faziam parte de um mesmo grupo, 1997, p. 152.).
a única diferença eram os resultados, em que cada A respeito das práticas nos conventos, vale
pessoa buscava uma finalidade diversificada. A ressaltar os motivos para que muitas famílias
adivinhação também foi uma prática muito usada optassem por internar suas filhas era basicamente
pela sociedade escrava feita através de rituais com o intuito de proteger a honra das moças e das
procuravam saber quem eram os culpados dos mais famílias, pois seguir uma vida de religiosa seria uma
diversos acontecimentos. grande forma de preservar o corpo e a alma. Mas, ao
Tratando do contexto que relata os tipos de contrário do que seus familiares muitas vezes
práticas de magias na Colônia, não se pode idealizavam, as moças acabavam tornando os
esquecer-se das práticas desempenhadas por tribos conventos, casas de práticas sexuais, através de seus
indígenas, que neste momento eram bastante envolvimentos com padres, bispos e até entre elas
numerosas. Segundo alguns relatos franceses citados mesmas.
por Laura de Mello e Souza (1993, p.166-1690), os Em grande parte essas práticas em
sabás eram freqüentes nas tribos e as mulheres conventos foram encobertas ou despercebidas, mas
muitas vezes se reuniam em tendas separadas dos quando o Tribunal do Santo Ofício tomava
homens e dançavam emitindo sons incansavelmente conhecimentos dessas situações, derramavam a “ira
por longos períodos de tempo, assim como algumas de Deus” sobre essas mulheres, através de torturas
espumavam pela boca ou desmaiavam, o que para os ou até mesmo a morte (MELLO E SOUZA, 1993).
franceses era puramente sinal do demônio em seus Ao que diz respeito às outras práticas
corpos. religiosas na Colônia, os motivos que giravam em
São diversas as situações em que aparecem torno desses encantamentos e feitiços eram os mais
cenas de bruxaria, assim como eram comuns cenas variados, assim como eram diversificados os modos
de exorcismo perante as situações em que os padres de como eram desenvolvidas as técnicas. Laura de
encontravam feitiços. Mello e Souza (1986), destaca a ausência dos

94
maridos que viajavam procurando novas terras a
trabalho, e com isso as mulheres sentiam-se
abandonadas e sozinhas, então as práticas de magia
nestes casos, se tornavam aliadas das mulheres para
encurtar as distâncias, pois elas acreditavam receber
mensagens com notícias de seus esposos. A presença
do demônio na Colônia passou a existir juntamente
com os colonizadores, assim como os sabás
diabólicos só existiam nos pensamentos europeus
cristãos, que demonizavam as práticas religiosas dos
negros e índios (MELO E SOUZA, 1986, p.186-
202).
Os meios utilizados pelas mulheres para
realizarem práticas consideradas mágicas eram os
mais diversos possíveis, pode-se dizer que em certo
momento da História colonial toda forma que se
diferenciava das imposições cristãs era vista como
diabólica o que por conseqüência prejudicava todas
as mulheres que desenvolviam seus costumes.

REFERÊNCIAS:

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas:


Mulheres da Colônia: Condição feminina nos
conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil,
1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília:
Edunb, 1993.
DEL PRIORE, Mary. A Mulher na História do
Brasil. 3. Ed. São Paulo: Contexto,1992.
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: Condição
feminina, maternidades e mentalidades no Brasil
Colônia. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no
Brasil. 8. Ed. São Paulo: Contexto,2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente
1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Cia das
letras,
GASPARI, Leni Trentim. Imagens femininas nas
“Gêmeas do Iguaçu” nos anos 40 e 50. União da
Vitória: Kaingangue, 2005
LEAL, José Carlos. A maldição da mulher de Eva
aos dias de hoje. São Paulo: DLP, 2004.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de
Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico:
demonologia e colonização:
Séculos XVI -XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de
Janeiro: Editora Campus, 1989.

95
96
HISTÓRIA E
GÊNERO:
CONCEPÇÕES DA
HISTÓRIA DAS
MULHERES
Sandra M. Burginski
(PG História - FAFIUV)
Orientadora: Dulceli Tonet
Estacheski (FAFIUV)

A história das mulheres é um campo de


estudos que, com o passar dos anos, vem sendo
abordado e pesquisado em todos os âmbitos da
história, ou seja, a discussão a respeito da história
das mulheres ganhou um vasto campo de produção
aonde até revistas, periódicos, livros, monografias
são pautadas nas lutas, no papel das mulheres de
todo o mundo.
Desse modo, as habilidades e
características femininas começam a ser valorizadas
pela sociedade, deixando a mulher, aos poucos de
ser uma mera coadjuvante em determinados
segmentos sociais e profissionais.
Assim, por meio da história das mulheres
os especialistas passaram a delinear diversos
processos de transformações da própria imagem da
mulher. Com efeito, esse se tornou um campo
promissor de estudos, propondo, ademais, um
alargamento dos limites do saber histórico, e que se
processa até os dias atuais. É importante salientar
ainda, que Isso tudo teve, a partir do feminismo, um
reforço ideológico muito grande, pois, nessa
perspectiva, o feminismo surgiu para reivindicar
mais direitos para as mulheres, buscando uma maior
visibilidade e lutando por um fortalecimento da
identidade da mulher.
Mas nem sempre foi assim. Pelo contrário,
durante muito tempo as mulheres, e a escrita de sua
história, foi um tema opaco e sem sentido,
particularmente, para pesquisadores do sexo
masculino. Tanto nas fontes, quanto nas pesquisas, o
que se via era o silêncio, delas e sobre elas, que se
prolongava ainda mais com a escassez de

97
documentos, os quais, quase sempre, não A Terceira Geração dos Annales teve
demonstravam a sua presença. início no ano de 1968, como destaca Burke (1992), e
Com o surgimento da história das mulheres, no ano seguinte isso continuou com Andre
universo feminino começa a conquistar um espaço Burguière e Jacques Revel, que começaram a
cada vez maior dentro da sociedade, e com o trabalhar na administração dos Annales, após alguns
aparecimento do feminismo as mulheres começam a anos Braudel se aposentou e então Jacques Le Goff
alcançar aos poucos seus objetivos, ao passo que, ocupou o cargo da presidência da VI Seção47.
tornam-se não apenas objeto, mas sujeitos de A partir da chamada Terceira Geração,
estudos históricos. houve grandes mudanças intelectuais. Teve uma
Pelo viés dos estudos sobre o feminismo e a abertura para novas idéias e uma inclusão de novas
história das mulheres, surge um casamento bastante temáticas. E como não havia mais um domínio de
promissor: história do gênero. Os estudos sobre o uma única temática, a História começou a escrever
gênero no seu início foi utilizado para analisar as sobre diversos temas, e por isso muitos
diferenças entre os sexos, mas que, aos poucos comentadores como Michel Vovelle, François Dosse
conseguiram colocar a mulher como um ser entre outros falavam já em uma fragmentação da
importante e respeitado dentro da sociedade. Assim, história.
na alternância característica desses campos de Com a mudança e a inserção da história
abordagem, onde em certos momentos as mulheres das mulheres o cotidiano passou a ser a principal
eram descriminadas, a partir destes movimentos maneira para que a esta fosse redigida, então
intelectuais, pode-se dizer que a mulher conseguiu podemos dizer que era realizada através da história
um espaço dentro da sociedade nos mais variados social que é outro campo da História, qual se
aspectos. preocupou com as identidades coletivas levando as
A história do gênero apresenta, ao ser mulheres a condições de objetos e agentes.
analisada de maneira mais cuidadosa, sua
importância para os estudos da história das Nesse particular, destaca-se o vulto
mulheres. De fato, quando surge esse novo campo assumido pela história social, na qual se
de abordagens, tenta-se mostrar tanto os homens engajam correntes revisionistas
como as mulheres em suas diferenças semelhanças e marxistas, cuja preocupação incide
também em suas individualidades. sobre as identidades coletivas de uma
Nesse sentido também pode ser ampla variedade de grupos sociais, até
destacado que a história das mulheres a cada período então excluídos do interesse da história:
que passa, vai ganhando um espaço maior dentro da operários, camponeses, escravos,
sociedade, vai mostrando a força que possuí, e ganha pessoas comuns. Pluralizam-se os
mais poder ainda quando surge também a história do objetos de investigação histórica, e,
gênero e a história feminista. nesse bojo, as mulheres são alçadas à
Com o início da Terceira Geração dos condição de objeto e sujeito da história.
Annales é que as “mulheres” conseguiram um lugar A preocupação da corrente neomarxista
para elaborar seus trabalhos e através desses com a inter-relação entre o micro e o
começaram a ter um espaço e um destaque melhor contexto global permite a abordagem
na visão da sociedade, como a Christiane klapisch, do cotidiano, dos papéis informais e das
que trabalhou sobre a história da família na Toscana mediações sociais – elementos
durante a Idade Média e o Renascimento; Arlette fundamentais na apreensão das
Farge, que estudou o mundo social das ruas de Paris vivências desses grupos, de suas formas
no século XVIII; Mona Ozouf que fez um estudo de luta e de resistência. Ignorados num
muito importante e conhecido sobre os festivais enfoque marcado pelo caráter
durante a Revolução Francesa e também Michele totalizante, tornam-se perceptíveis
Perrot que fez um trabalho sobre a história da numa análise que capte o significado de
mulher e a história do trabalho. sutilezas, possibilitando o
E com essa geração dos Annales, pode-se desvendamento de processos de outra
afirmar que a história das mulheres, não se destacou forma invisíveis. (PEDRO E SOIHET,
apenas na França, mas também em países como 2007, p. 281-300).
Estados Unidos, Grã-Bretanha, Holanda, Alemanha
e na Itália. Aonde se iniciaram pesquisas sobre as 47
Le Goff foi presidente da VI seção Écolé Pratique des
mulheres e onde nesse período pode ser destacado Hautes Etudes, que foi transformada partir de 1975 na
que essas ganham mais oportunidade de mostrar os E.H.E.S. S, École de Hautes Études en Sciences Sociales,
seus trabalhos e a competência que possuíam ficando na presidência do ano de 1972 a 1977, quando é
substituído por François Furet.
98
Segundo Tétart (2000) pode-se destacar que 1960 é que começa a surgir um novo campo da
o Movimento dos Annales deu um grande impulso História, ou seja, o estudo sobre as mulheres.
na história feminina, mas podemos considerar que a Mesmo que por muitas vezes ligado as idéias
década de 1960 foi decisiva para que as mulheres feministas, misturado a história do cotidiano e da
alcançassem seu lugar na sociedade, pois é nesta família e a demografia histórica, pode-se destacar
época que nasce a Nova História, a qual se que este campo foi se aprimorando aos poucos
identificou com os Annales. dessas áreas e apresentando um campo de estudo
A Nova História contribuiu com fontes, independente.
mesmo que seu interesse fosse voltado para a E assim junto com a Nova História as
história imediata, política e pelos acontecimentos manifestações de cunho feminino que já estavam
medievalistas e modernistas. ocorrendo no século XIX começam a tomar forma o
A história das mulheres segundo Scott movimento feminista tem grande destaque, pois, a
(1992), apareceu como um campo definível, partir de suas manifestações queria mostrar para as
principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Embora sociedades que as mulheres eram excluídas, que suas
ofereça enormes diferenças nos recursos para ela reivindicações, lutas e direitos deveriam ser
colocados, em sua representação e em seu lugar no analisados, vistos de uma outra maneira e não
currículo, na posição a ela concebida pelas deixados de lado. Os impactos gerados por estes
universidades e pelas associações disciplinares movimentos mudaram muitos fatores na sociedade.
mostra que esta história é uma prática estabelecida Obtendo resultados positivos. Os resultados
em muitas partes do mundo. positivos podem destacar que eles conseguiram
Nos Estados Unidos, por exemplo, a ampliar a visibilidade das mulheres nos espaços
história das mulheres nesse período, diferentemente sociais, na política, na cultura, nas cidades e nos
de alguns países, ainda não tinha conseguido um campos.
destaque maior. Neste país conseguiu atingir uma De acordo com Joana Maria Pedro e
presença visível enorme, onde tinha forte influencia Rachel Soihet (2007), após construída a história das
na academia de história. E segundo Scott (1992), mulheres um ponto precisou ser desmitificado,
essa presença feminina pode ser encontrada em excluindo a idéia da mulher se apresentar como um
relatos de artigos, livros, e na auto-identificação dos ser universal, já que era caracterizada como alguém
historiadores, que demonstra uma enorme de forte influência perante os acontecimentos e neste
importância da história das mulheres. caso até o social, a vida pública.
Scott (1992), afirma ainda que a história das
Utilizo o termo “movimento”, mulheres tem uma força política potencialmente
deliberadamente, para distinguir o crítica, uma força que desafia e desestabiliza as
fenômeno atual dos esforços premissas disciplinares estabelecidas,
anteriormente disseminados por alguns principalmente, porque este tipo de história
indivíduos para escrever no passado questiona a prioridade relativa dada à “história do
sobre as mulheres, para sugerir algo da homem”, em oposição à “história da mulher” e
qualidade dinâmica envolvida nos desafia a competência de qualquer reivindicação da
intercâmbios no nível nacional e nos história de fazer um relato completo quanto à
interdisciplinares pelos historiadores perfeição e à presença intrínseca do objeto desta
das mulheres, e ainda, para evocar as ciência – o Homem Universal.
associações com a política. (SCOTT, Dessa forma, avaliando a importância da
1992, p. 64). história das mulheres, não desprezando, mas
também não supervalorizando este estudo, a
Assim, a autora faz uma conexão entre a historiadora, faz um balanço dos avanços que ela
história das mulheres e a política, onde relata que possibilitou, sem perder de vista seus limites, pois,
essa é ao mesmo tempo é obvia e difícil. A autora seu “desafio subversivo” ficou aparentemente
destaca que a partir dos anos 1960, quando os contido em uma esfera separada que ela mesma
movimentos feministas começaram a reivindicar criou. Sente-se a necessidade de ir adiante, e
uma história aonde estabelecesse elas como urgência em discutir questões mais profundas, Scott
heroínas, também onde queriam um lugar de (1992) chama atenção que somente seguindo pelo
destaque nas suas atuações e por fim explicações caminho que a “história das mulheres” havia aberto
sobre a opressão e a inspiração que elas tiveram para não seria suficiente.
partir para uma renovação. Portanto, é na busca em aprofundar
De acordo com Hot (2007), que só a partir discussões e analisar de modo mais rigoroso o
do movimento feminista, que aparece na década de processo de como se dá e porque se reproduz a

99
invisibilidade da mulher no processo de produção do tem como maior objetivo incluir as mulheres como
conhecimento histórico, que surge o conceito de objetos de estudo e sujeitos da história.
gênero como categoria útil de análise (SCOTT, Segundo Scott (1992, p.75):
1992).
Com a imposição das mulheres na historia A emergência da história das mulheres
criou-se uma situação de ambigüidades, porque a como um campo de estudo acompanhou
sua complementação em uma história que já existia as campanhas feministas para a
e era conhecida por todos sugeria uma idéia de melhoria das condições profissionais e
caráter inacabado, pois a História era entendida envolveu a expansão dos limites da
como verdadeira. história. Mas esta não foi uma operação
É especialmente a partir da emergência do direta ou linear, não foi simplesmente
conceito de gênero que os sujeitos passaram a ser uma questão de adicionar algo que
pensados e abordados de forma multifacetada, ou estava anteriormente faltando. Em vez
seja, como constituídos não apenas pelo gênero, mas disso, há uma incomoda ambigüidade
também pela raça, etnia, classe e sexualidade. E, inerente ao projeto da história das
neste sentido, o poder deixa de ser compreendido mulheres, pois ela é ao mesmo tempo
como um movimento hierárquico linear, um suplemento inócuo a história
centralizado ou de direção unificada. São essas estabelecida e um deslocamento radical
marcas sociais que, ao combinarem-se de maneira dessa história.
complexa e peculiar, barram a concepção
simplificadora do homem dominante versus a Ainda a autora destaca nesse processo, o
mulher dominada. Desse modo, o conceito de gênero feminismo assumiu e criou uma identidade coletiva
investe, de maneira enfática, contra a lógica das mulheres, indivíduos do sexo feminino com um
essencialista que concebe mulher e homem de interesse compartilhado no fim da dependência, da
maneira universal e trans-histórica. invencibilidade e da fraqueza, criando igualdade e
ganhando um controle sobre seus corpos e sobre
[...] A fragmentação de uma idéia suas vidas.
universal de 'mulheres' por classe, raça, O feminismo apareceu para reivindicar
etnia, geração e sexualidade associava- mais recursos para as mulheres, tentando deixar de
se a diferenças políticas sérias no seio lado a desigualdade o preconceito existente sobre
do movimento feminista. Assim, de elas, em uma luta pela visibilidade do ser feminino,
uma postura inicial em que se por uma conquista e ampliação dos seus direitos
acreditava na possível identidade única específicos e também pelo fortalecimento da
entre as mulheres, passou-se a outra, identidade da mulher.
em que se firmou a certeza na Mesmo que o movimento feminista tenha
existência de múltiplas identidades. sido de extrema importância para o estudo sobre
(PEDRO E SOIHET, 2007, p. 287). mulheres e para várias historiadoras, segundo Hot
(2007) esta se mostrou frágil e insuficiente para a
Do momento em que elas conseguem se construção de uma “verdadeira” história das
situar na idéia de serem reconhecidas no gênero mulheres.
mulher ocorre um fator que as leva a quererem que Pode-se destacar que os pontos criticados
outra divisão dentro desta categoria acontecesse, sobre a visão feminista, é que a história foi escrita
pois apesar de mulheres poderiam enquadra-se nas sob o prisma masculino, ou seja, que as mulheres
categorias de mães, esposas, donas de casa e até estavam privilegiando a sua própria opressão e
empregadas. vitimização, aonde tinham como dever elevar a
De acordo com Scott (1992) a história das mulher, mas acabavam desconsiderando-se como
mulheres embora permaneça ligada à exibição do um agente histórico, e considerando mais uma vez o
feminismo, não desapareceu, seja como uma homem como tal.
presença na academia ou na sociedade em geral, A história das mulheres aparece
ainda que os termos de sua organização e de sua questionando, segundo Hot (2007), a alegada
existência tenham mudado. universalidade da história, enquanto produção de
A história das mulheres é considerada um conhecimento, ou seja, problematizando a intenção
campo de estudo, mesmo não sendo direta ou linear, de vários historiadores e suas respectivas vertentes,
mas possui uma expansão lenta dos limites da de produzirem uma história das civilizações. Pode-se
história aonde se processa ate os dias atuais. Onde destacar que essa não foi feita, até que a história das
mulheres surge, pretendendo que essa parcialidade

100
de uma história masculina seja revista. O mais Examinar gênero concretamente,
complicado, de acordo com a autora, foi mostrar aos contextualmente e de considerá-lo um
críticos desta, onde cujos argumentos consistiam em fenômeno histórico, produzido,
dizer que o estudo feminista era parcial e ideológica, reproduzido e transformado em
mas surgiu com o objetivo inserir novos sujeitos nas diferentes situações ao longo do tempo.
discussões e analises histórica. Esta é ao mesmo tempo uma postura
familiar e nova de pensar sobre a
Uma das soluções encontradas para que história. Pois questiona a confiabilidade
esse “quase” desequilíbrio da história, de termos que foram tomados como
em que homens e mulheres disputavam auto-evidentes, historicizando-os. A
o saber histórico (embora, as mulheres história não é mais a respeito do que
com uma consciência de noção excluir aconteceu a homens e mulheres e como
os homens da história), foi adotar o eles reagiram a isso, mas sim a respeito
conceito de gênero, que emerge na de como os significados subjetivos e
década de 1980, e passa a ser usado coletivos de homens e mulheres, como
para definir “as relações sociais entre os categorias de identidades foram
sexos”. Considerado um termo mais construídos.
neutro, o gênero busca trazer maior
cientificidade ao trabalho do historiador Na verdade, o termo “mulheres”, segundo
na academia. (HOT, 2007, p. 5). Scott (1992), dificilmente poderia ser usado sem
modificação: mulheres de cor, mulheres judias,
Esta nova categoria de análise trouxe mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras pobres,
consigo novas propostas para se escrever uma mães solteiras, essas foram algumas categorias
história mais imparcial e menos segregadora, introduzidas. Onde todas desafiavam a superioridade
considerando homens e mulheres, em suas heterossexual da classe média branca do termo
diferenças, semelhanças e, principalmente, nas mulheres, argumentando que as diferenças
individualidades dos seres humanos. essenciais da experiência tornaram dificílimo
Scott (1992) destaca que parte da história reivindicar uma identidade isolada.
das mulheres buscava explicar à semelhança da
atuação das mulheres e dos homens, e que em parte A maior parte da história das mulheres
destacava a diferença desta, ambas as abordagens tem buscado de alguma forma incluir as
consideravam as mulheres como uma categoria mulheres como objetos de estudos,
social fixa, uma entidade separada, um fenômeno sujeitos da história. Tem tomado como
conhecido, eram pessoas biologicamente femininas axiomática a idéia de que o ser humano
que se moviam dentro e fora de contextos e papéis universal poderia incluir as mulheres e
diferentes, cuja experiência mudava, mas cuja proporcionar evidencia e interpretação
essência como mulher não se alterava. sobre as varias ações e experiências das
Primeiramente, a categoria de “gênero” foi mulheres no passado (SCOTT, 1992, p.
usada para analisar as diferenças entre sexos, e em 77).
seguida se abre a questão das diferenças dentro da
diferença. Nos Estados Unidos, esse termo foi E como Scott (1992, p.87), destaca que
extraído da gramática com suas implicações sobre também ressaltaram o aspecto relacionado do
convenções, como também dos estudos de gênero:
sociologia dos papéis sociais designados às mulheres
e aos homens. Ainda que usos sociológicos de Não se pode conceber mulheres, exceto
gênero possam incorporar tônicas funcionalistas, as se elas forem definidas em relação aos
feministas escolherem enfatizar as conotações homens, nem homens, exceto quando
sociais de gênero em contraste com as conotações eles forem diferenciados das mulheres.
físicas de sexo Além disso, uma vez que o gênero foi
E assim pode se destacar que gênero é definido como relativo aos contextos
constituído por relações sociais baseadas nas social e cultural, foi possível pensar em
diferenças percebidas entre os sexos, que por sua termos diferentes sistemas de gênero e
vez, se constituem no interior de relações de poder. nas relações daqueles com outras
De acordo com Siqueira (2008, p. 116) que categorias como raça, classe ou etnia,
cita Scott analisa: assim como levar em conta a mudança

101
Trabalhar com o que a história das mulheres naturalmente a cultura e a linguagem se feminizem.
representa para a historiografia implica várias Com esta inserção do feminismo em aspectos
discussões, visões e opiniões, aonde há autores que ligados a espaços públicos e espaços de saber nasce
se preocuparam em entender como seria uma um diferencial, um aporte feminino que rompe o
historia redigida das e pelas as mulheres. O ponto enquadramento já existente porque esses campos são
que eles queriam ver é a visão que as mulheres reformulados, questões são revistas, novas questões
teriam sobre o tema. são incluídas.
E com a finalidade de discutir esses pontos Pode-se destacar que as discussões são
Rago (1998), cita Michelle Perrot que se preocupou várias dentro deste assunto, como por exemplo,
em discutir se havia possibilidade de fazer uma Pedro e Soihet (2007), mostram a busca por
história das mulheres. E assim segundo Perrot as formulações teóricas que é defendida Por Joan Scott
mulheres seriam imparciais, ou seja, a opinião delas e é contraposta por Maria Odila Leite da Silva,
seria a mesma que a dos homens. A sua resposta aonde ela afirma que a partir dessas formulações
poderia ser explicada pelo fato de que existe o olhar teóricas iriam ocorrer substituições dentro do
feminino, um olhar especifico, isto porque as sistema cultural.
mulheres são mais atentas aos detalhes, mais O que Scott defendia segundo Pedro e
voltadas para as manifestações do dia a dia e por Soihet (2007, p. 289), pode ser explicado pela
isso que há uma diferença entre os homens e as seguinte citação:
mulheres.
De acordo com Rago (1998) podemos Scott argumentava que, no seu uso
perceber que o que se pretende através das criticas descritivo, o gênero é apenas um
feministas são em primeiro lugar a participação das conceito associado ao estudo das coisas
mulheres na critica social, cultural, teórica e em relativas às mulheres, mas não tem a
segundo lugar com relação a primeira pretende força de análise suficiente para
trazer uma nova maneira de conceber a produção do interrogar e mudar os paradigmas
conhecimento que o projeto feminista poderia históricos existentes. Ressalta, também,
oferecer. a defasagem entre a alta qualidade dos
E assim este projeto ofereceu discussões trabalhos da história das mulheres e seu
ligadas ao caráter, particularistas, ideológico, racista estatuto, que permanece marginal em
afirmando que o pensamento acabou por deixar de relação ao conjunto da disciplina – o
lado pontos variados de exploração na sociedade. O que poderia ser aquilatado pelos
pensamento propunha ainda que a história deveria manuais, programas universitários e
ser realizada tomando como ponto de partida o monografias.
sujeito dentro de seus aspectos culturais, então ao
escrever sobre as mulheres elas deveriam ser E assim pode-se entender que a proposta
tratadas como identidades firmadas nos contextos estava pautada em tentar igualar homens e mulheres,
sociais e culturais. modificar as desigualdades e para questionar ela
Mas para que ocorresse a incorporação do fundamentou-se no pós-estruturalismo, os quais se
mundo e das idéias feministas era necessária a preocupavam com o significado da variedade e da
aceitação por parte dos homens o que causou várias natureza. E como conclusão define gênero como
rupturas e desestabilidades, já que as mentalidades, uma organização social da diferença sexual, não
os pensamentos masculinos deveriam ser colocando diferenças fixas ou naturais entre homens
repensados. Quando se consegue fazer esta e mulheres, mas um saber que estabelece
incorporação, nasce outro problema que remete-se as significados para as diferenças corporais.
mulheres, a maneira com que elas agiam, expondo a E através disso podemos destacar que as
possibilidade de repor a mesma maneira de antes, a mulheres conseguiram ganhar espaço dentro da
relação ligada entre poder-saber pelo fato de saber sociedade graças aos movimentos feministas, a
que o modo feminista de pensar rompe com os história das mulheres e o gênero. Através destes a
modelos hierárquicos de funcionamento da ciência. figura feminina consegue a cada dia que passa a
A construção da produção feminina pode ser mostrar a capacidade que possui e que por muito
uma marca emancipadora, libertaria aonde se tempo foi deixada de lado por uma descriminação.
pretende construir uma identidade cultural feminina,
da subjetividade feminina que estava evidenciada no
mesmo tempo em que as mulheres entram de vez no
mercado de trabalho e muitas vezes realizando o
serviço masculino e desta forma fazendo com que

102
REFERÊNCIAS

Burke, P. A Escola dos Annales, 1929-1989 - A


revolução francesa da historiografia. São Paulo,
UNESP, 1992.

HOT, A. D. . História das mulheres e gênero: uma


discussão historiográfica. In: Seminário Nacional
de História da Historiografia: historiografia
brasileira e modernidade, 2007, Mariana. Seminário
Nacional de História da Historiografia: historiografia
brasileira e modernidade. Mariana: UFOP, 2007. V.
1.

PEDRO, Joana, M SOIHET, Rachel. A emergência


da pesquisa da História das Mulheres e das
relações de Gênero. IN: Revista Brasileira de
História. São Paulo. V-27. Nº 54, p.281-300-2007.

PERROT, Michelle. Os Excluídos da História:


operários, mulheres e prisioneiro. Michelle Perrot;
Tradução Denise Bottmann- Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.

RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista,


Gênero e História. In: PEDRO, Joana; GROSSI,
Mirriam (orgs.) MASCULINO, FEMININO,
PLURAL. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. p.
01-17.

SCOTT, J. In: BURKE, P. (org.). A Escrita da


História: novas perspectivas. Editora da
Universidade Estadual paulista. São Paulo, 1992.

SIQUEIRA, L. Tatiana. Joan Scott e o papel da


História na construção das relações de Gênero.
Revista Ártemis, vol. 8, jun. 2008, p. 110-117.

TÉTART, Philippe. A Pequena História dos


Historiadores. EDUSC. São Paulo, 2000.

103
104
CONTESTADO:
FICÇÃO E
REALIDADE SOB
A VISÃO DE
GÊNERO
Bruna Letícia Colita
PG His FAFIUV
A guerra do Contestado, que ocorreu no Sul
do Brasil entre 1912- 1916 deixou inúmeros
vestígios em suas passagens, e hoje, nós,
historiadores somos os curiosos que buscam
encaixar as lacunas dessa rica e trágica passagem de
nossa História para montar esse “quebra-cabeça” e
entender melhor nossas raízes.
Dificilmente encontramos obras que
apresentem a mulher cunhada nesse contexto de
disputa socioeconômica e geográfica como a figura
ativa de liderança de algo tido como um movimento
sangrento e ousado. Nossa proposta é apresentar
alguns casos em que as mulheres aparecem como
líderes em momentos importantes desse confronto.
Ainda, inicialmente é necessário um enfoque
ao estudo do gênero feminino, para que os leitores
possam compreender a importância do tema na
academia nos dias de hoje, sendo assim
completamente descartada a hipótese de feminismo
radical, ou de qualquer outro mal entendido que
possa ainda ocorrer nos dias atuais.
Podemos ressaltar segundo Margareth Rago
(1996, p. 2), a partir dos anos setenta as mulheres
com seus movimentos feministas acabaram de
algum modo chamando a atenção da sociedade e
com isso conquistando um espaço mais glorioso
dentro dela e que vem sendo melhorado a cada dia
que passa, pois os valores de igualdade vem sendo
aprimorados e desmistificando a idéia de mulheres
machistas e mal amadas, que buscam seus direitos
por não estarem satisfeitas e questionarem o que é
oferecido.
É interessante como o feminismo muitas
vezes é confundido com o estudo de gênero, mas
precisamos esclarecer que não tratam da mesma
intenção. O feminismo, segundo Linda Nicholson (
2000, p. 13- 15), está mais direcionado em chamar a
atenção para as diferenças sexuais das pessoas,
105
enquanto o estudo de gênero busca entender essas Ao decorrer da História essas „marcas‟ que
diferenças e aplicar um olhar mais atento a distinguiam homens e mulheres através do corpo
importância das mulheres na sociedade e nas mais físico e seus pecados, passaram a serem adaptadas.
diversas situações em que a sociedade possa estar No século XVIII, as reflexões se iniciaram e
vivendo. buscavam uma substituição para justificar a mulher
Vale lembrar que o estudo do gênero como inferior ao homem. Então, o movimento
feminino nas passagens da Guerra do Contestado feminista que ocorreu no século XIX, na década de
não busca colocar a mulher como mais ou menos setenta trouxe consigo um propósito revolucionário
importante dentro deste movimento histórico, mas para dar um basta na mentalidade machista em que
sim voltar os olhares para essas personagens muitas mulheres e homens teriam suas diferenças ditadas
vezes despercebidas dentro do contexto bélico. por órgãos sexuais e principalmente que as mulheres
Há uma série de discussões que trazem deveriam ser tratadas como meros objetos de
explicações sobre a desvalorização da mulher dentro reprodução (Nicholson, 2000, p. 24-25).
da História de um modo geral. Nicholson (2000), O discurso feminista conseguiu abrir espaço
discute sobre a idéia de que durante a antiguidade os para as mulheres, mas também, foi um discurso que
valores físicos eram muito importantes, e sendo apresentou uma espécie de „ditadura‟, impondo que
assim, os homens da época acreditavam que as as vontades de todas as mulheres fossem as mesmas,
diferenças entre os corpos femininos e masculinos que todas estariam lutando pelos mesmos objetivos,
ditavam a capacidade de liderar, principalmente em um discurso conservador, generalizado e de certa
relação a menstruação das mulheres, os homens forma autoritário (Nicholson, 2000, p. 37-38).
eram mais capacitados para comandarem toda e Com o discurso radical da Igreja medieval
qualquer manifestação ou organização, e com isso as colocando a mulher com o dever de ser mãe – acima
mulheres, consideradas frágeis e sensíveis ficavam de tudo; com o início da mudança de pensamento em
destinadas a subordinação. relação às mulheres do século XIX e com o
Durante séculos a velha História de Gênesis, radicalismo feminino do século XX, encontramos no
citada na bíblia sagrada também serviu como estudo do gênero atual, um meio termo, que busca
discurso para justificar a inferioridade da mulher ao apresentar a importância do feminino na
homem, e ao mesmo tempo em que eram historiografia sem desmerecer qualquer outra esfera
subordinadas aos homens carregavam consigo o social:
fardo de pecadoras filhas de Eva, como se todas as
mulheres estivessem condenadas pelo mesmo Gênero é tipicamente pensado como
pecado, uma mancha que serviria para estereotipar o referencia a personalidade e
sexo feminino ao longo dos anos. Porém, a História comportamento, não ao corpo, “gênero”
logo trouxe outro modelo de mulher representada e “sexo” são, portanto, compreendidos
pelo sagrado: Maria! Mãe, virgem e obediente, com como distintos. De outro lado, “gênero”
isso as mulheres tinham a oportunidade de seguir o tem sido cada vez mais usado como
modelo puro da virgindade e continuar obedecendo construção social que tenha a ver com a
aos homens para chegarem à glória eterna; “Eva era distinção masculino/feminino,
aquilo que as mulheres eram por natureza, Maria era incluindo as construções que separam
aquilo que as mulheres deveriam ser por opção” corpos “femininos” de corpos
(LIMA; TEIXEIRA, 2008, p. 113-115). “masculinos” (NICHOLSON, 2000, p.
A Igreja apresentou esses dois modelos para 9).
serem comparados às mulheres: Eva pecadora e
Maria Santa, mas isso praticamente condenava as É importante ressaltar que ainda hoje
mulheres que porventura tivessem cometido um existem muitas controvérsias que misturam palavras
deslize pequeno, ou seja, ou é pecadora ou é santa; e seus significados com simbolismos, modo
caso contrário estaria tudo perdido. Em meio a esse figurado, que essas mesmas palavras podem
paradoxo, surgiu à necessidade de uma terceira significar, como por exemplo, a própria palavra
figura que trouxesse consigo a esperança do perdão, mulher, que pode tanto se referir a uma só pessoa
eis que o movimento Iluminista traz à tona a figura quanto a um grupo de mulheres que buscam seus
de Maria Madalena, que foi perdoada por Jesus direitos através de protestos e reivindicações. Os
Cristo, ex- pecadora, uma nova expectativa para as conceitos se aprimoram com o desenvolvimento dos
mulheres da época, um discurso entrelinhas que estudos.
chamava as pecadoras para uma nova vida de Com essa breve introdução encaminhamos
subordinação masculina que traria o perdão divino nossa pesquisa para o papel da mulher na Guerra do
(LIMA; TEIXEIRA, 2008, p.115). Contestado.

106
e que de certo modo permanecem enraizadas em
A Presença do feminino nas passagens do nossa cultura:
Contestado

As mulheres do Contestado são citadas em O espaço do Contestado tinha pouca


passagens de alguns livros, porém, nenhuma obra proximidade com o catolicismo
acadêmica foi direcionada ao papel feminino da ortodoxo, somente na primeira década
época, este estudo busca apresentar algumas do século XIX, os freis franciscanos
personagens importantes durante o movimento do trazem e intensificam a pastoral do
Contestado, mas como é uma pesquisa inicial, não se catolicismo romano [...] Podemos
atém a nenhuma das personagens profundamente, perceber que o catolicismo popular
como era merecido, por hora faremos uma breve diferenciava-se do catolicismo romano.
discussão sobre as personalidades. O primeiro valorizava as festas, às
Uma das mulheres populares mais devoções aos santos, comida, bebida as
conhecidas da época do Contestado foi Chica crendices mágicas de videntes, o
Pelega, uma bela e brava heroína que defendeu com catolicismo oficial valorizava os
todas as suas forças seu povo e seus princípios, esta sacramentos. A religiosidade do leigo
personagem é citada em um romance de se externava em soluções imediatas
Vasconcellos (2008). para as inquietudes vividas. Para os
O autor é um jornalista que recolheu sertanejos, o catolicismo oficial era de
fragmentos da História do Contestado, contados difícil compreensão com sermões
vezes através do “boca-a-boca” ou então de escritos muito acadêmicos e uma pastoral que
conservados, escreveu uma tragédia heróica que em sempre convergia os sacramentos
forma de romance traz a personagem e também uma (TONON, 2010, p. 158-159).
descrição da época do Contestado. Francisca
Roberta, conhecida como Chica Pelega é
apresentada como filha de Zico e Chiquinha, casal Com isso, podemos compreender as práticas
esse que não poderia ter filhos, e mesmo assim de cura aos animais, desenvolvidas por Chica
Chiquinha engravidou, esse acontecimento é Pelega. Ela cresceu em um ambiente que praticava
atribuído como um dos milagres do Monge, as trocas de experiências em curas através de ervas
personagem este também extremamente importante medicinais disponíveis e aplicou seu conhecimento
na História do Contestado. quando foi necessário, mas conforme o autor cita em
O nascimento da personagem é narrado pelo sua obra, as misturas que Chica fazia com as ervas
autor com precisos detalhes, no campo, em meio à não eram comuns, e ela dizia que apenas sabia, não
roça em que seus pais trabalhavam, foi criada com tendo nenhum modelo que tenha seguido. E isso era
muito amor e dedicação. Descrita como uma menina considerado por todos mais um mistério do Monge
dócil e misteriosa, Chica Pelega possuía um dom: o aplicado em Chica (p.59).
socorro aos animais. Como cita Mary Del Priore Algumas passagens do romance sobre Chica
(1992), envolve-se numa perspectiva historiográfica Pelega mostram claramente exemplos da boa
da mulher e com isso se atém que o território do conduta feminina cobiçada pelos homens e
feminino é um lugar sereno e que a mulher completa trabalhada pela historiografia que trata do gênero:
as práticas sociais e possui poder, mesmo que,
poderes informais.
No livro de Vasconcellos (2008), existem Ele sonhava, para a filha, toda a
diversas passagens que contam histórias em que felicidade do mundo, e daria tudo de
Chica se encarregava de salvar os animais com seu para concretizar esse sonho.
dificuldades de sobreviverem, seja em casos como Estimava demais aquela menina,
partos atravessados de vacas, ou pintos condenados sempre sorridente e alegre como era a
a morte em que ela misteriosamente, ainda moça mãe. Merecia, pela pessoa que era tudo
consegue salvar os animais. (p. 31-45). que havia de bom. Prestativa, como a
Seus pais atribuíam esse dom ao Monge do mãe, desconhecia a preguiça. Zinho
Contestado, que antes de desaparecer havia visitado agradecia a Deus pela família que lhe
a família e feito fortes orações, milagrosas, segundo dera. A Deus e também ao monge João
eles. Chica também curava os animais preparando Maria. Considerava-se ele um homem
poções e chás com ervas naturais, e essa prática era de boa sorte, generosamente
muito comum por populares da época do contestado aquinhoado até pela escolha do futuro

107
genro, sendo este um jovem de bons bravura e também por sofrer a injustiça com sua
modos, guapo e trabalhador, caindo-lhe família, foi glorificada mas ficou de certa forma
inteiramente no gosto amargurada pela vida, não comemorando nenhuma
(VASCONCELLOS, 2008, p.65-66). de suas vitórias. Sua missão era cuidar dos doentes e
os feridos nas batalhas. Com o destaque da vitória
A passagem do livro não traz nenhuma dos sertanejos em algumas batalhas, o governo
maldade, mas como este estudo busca entender o passou a tratá-los como jagunços, e sentiram-se, de
estudo do gênero encontramos nesse momento um certa forma, ameaçados por esse povo simples e mal
exemplo de como uma moça deveria se portar armado.
perante a sociedade e traz a mãe como principal O fim do romance traz consigo um novo
exemplo, modelo, a ser seguido. Refletimos essa exemplo de como as mulheres eram mais
passagem como um exemplo de que todos os sentimentalistas, na visão do autor, pois Chica
membros da sociedade deveriam ter uma boa Pelega abriu mão de uma continuidade de vingança
conduta, mas as mulheres para serem bem vistas, contra as tropas para cuidar de sua velha e solitária
teriam essas características como uma obrigação. mãe. Ali mesmo ela veio a falecer, quando os
O romance traz consigo uma passagem soldados voltaram a atacar.
muito triste, na qual as terras da família e dos Outra personagem que é destacada nesse
vizinhos são tomadas em assalto pelos soldados que momento do Contestado é Maria Rosa, conhecida
buscavam a bela Chica Pelega que havia como virgem vidente que foi líder de um reduto que
anteriormente sido vista pelo capitão Palhares, mas abrigava os sertanejos. Aparece no romance também
ela e sua mãe não estavam em casa no momento e um terceiro caso que se diferencia das até então
somente seu pai havia sido encontrado e morto, e líderes, Rita é enclausurada por um chefe militar,
então nesse momento é que a Chica Pelega passa a ainda muito moça, sozinha e com medo é
liderar um grupo de desapropriados, tristes e apresentada como vítima sem opção de escolha, até
revoltados (VASCONCELLOS, 2008, p. 67- 79). que um belo dia foi salva por corajosos guerrilheiros
A saga de Chica Pelega continua e ela logo sertanejos.
vira acompanhante do novo monge do Contestado, De fato existiram muitas outras personagens
que surgiu anos após o desaparecimento de João importantes na Guerra do Contestado, mas esses
Maria, este agora era José Maria e foi considerada poucos exemplos podem dar idéia de como as
pelos sertanejos a reencarnação do antigo monge. mulheres eram respeitadas e ouvidas por esse povo.
José Maria pregava enquanto Chica curava e tratava
dos enfermos com seu dom e isso fazia a CONSIDERAÇÕES FINAIS
comunidade mística aumentar.
O que acontece na história de Chica Pelega é Estudar gênero nos dias de hoje é algo mais
uma trágica passagem da História do Contestado em do que apenas destacar a mulher dentro da
que revolta e sentimento de vingança surgem no sociedade: é também entender como essa sociedade
peito de quem perdeu entes queridos, incapaz de enxergava a mulher. Como fazer esse exercício na
substituir o vazio que ali se alojou. Na mesma prática de historiadores? Essa pergunta é o que
passagem Vasconcellos cita a batalha do Irani, na motivou essa pesquisa inicial.
qual o monge José Maria vem a falecer, mas que os Procuramos um método de refletir a
sertanejos vencem o confronto. Mesmo morto o “realidade” da época através de conceitos atuais,
monge não perdeu a credibilidade, pois os fiéis como por exemplo, a mulher sendo rotulada por uma
tinham a certeza de que ele ressuscitaria e que os sociedade, ou seja, como ela deveria se comportar?
acompanhava o tempo todo (2008, p.110 -113). O que se esperava de uma esposa, filha,
Eis que no romance surge outra figura companheira? Essas perguntas são respondidas pela
feminina importante para o grupo de fanáticos teoria, conforme vimos no início de nosso trabalho,
seguidores: Teodora, que dizia segundo porém são relacionadas na prática conforme os
Vasconcellos (2008), ter visões em que o monge exemplos citados durante nosso estudo.
falecido apareceria e indicava os rumos a serem Chica Pelega, como dito anteriormente, se
seguidos, e nesse momento as mulheres são trata de um romance, uma ficção, porém o autor é
valorizadas e respeitadas, porque enquanto seguem um jornalista admirador e um leitor da Guerra do
Chica Pelega, os homens também acreditam nas Contestado, então podemos tratar essa obra como
visões de uma virgem e inocente menina. um retrato dessa época, pois traz não somente a
O romance apresenta uma versão dramática figura feminina, mas também apresenta um
da história de uma heroína que liderou bravamente panorama geral das injustiças e falsas esperanças
um grupo de excluídos, ela ficou famosa por sua plantadas e sofridas pelos sertanejos. E também:

108
O romance como análise de prática serão fundamentais em todos os momentos de nossas
narrativa, com o uso cada vez mais vidas e histórias.
freqüente da lingüística, propicia uma
reflexão histórica. A literatura moderna REFERÊNCIAS:
não enfoca unicamente os gêneros
literários, mas uma teoria geral da DEL PRIORE, Mary. A Mulher na História do
literatura, superando os estudos Brasil. 3.ed. São Paulo: Contexto,1992.
fragmentários. O romance quando se
lança a um tema histórico, requer do LIMA, Raquel dos Santos Souza ; TEIXEIRA, Igor
autor um conhecimento necessário Salomão. Ser mãe: o amor materno no discurso
sobre o contexto cultural, econômico e católico do século XIX. Horizonte. Belo Horizonte.
político no qual estão vinculados os V.6/n.12.2008.
sujeitos, ou personagens e o
acontecimento.[...] Cabe um olhar NICHOLSON, Linda. Interpretando o Gênero. In:
interpretativo das narrativas romanescas Estudos Feminitas, ano 08, 2 semestre, 2000.
que através da linguagem trazem ate
nós uma representação de uma suposta RAGO, Margareth. Adeus ao feminismo?
realidade histórica (TONON, 2010, p. Feminismo e (pós) modernidade no Brasil. Cadernos
68-69). AEL, n. 3/4, 1995, 1996.

SCOTT, Joan Gênero: uma categoria útil de


Através do exemplo de um dos maiores análise histórica. Educação e realidade/ Porto
estudiosos do Contestado - Professor Doutor Eloy Alegre, vol.16, n.2, 1990.
Tonon, buscamos analisar o romance de
Vasconcellos com o intuito de através da ficção TONON, Eloy. Os Monges do Contestado:
enxergar uma possível realidade da época, já que em Permanências, predições e rituais no imaginário.
outros momentos como em outros escritos por Fundação Araucária. Paraná, 2010.
diversos autores a figura de Chica Pelega também é
lembrada. VASCONCELLOS, S. A. de. Chica Pelega:
Assim como se refletíssemos a história Tragédia heróica. Editora Insulpar. Florianópolis,
desse povo, que perdeu tudo, perdas muitas vezes 2008.
irreversíveis como a de Chica: seu pai e seu noivo; o
que mais eles temiam e respeitavam? Se não a fé em
um Monge que os consolava e os esperançava e uma
mulher que estava disposta e com sede de vingança?
Faço minhas as sabias palavras de Tonon:

O passado é um espelho que tem vida e


a história é uma reflexão sobre o
mesmo articulada com as experiências
que estão sendo vividas. O romancista
produz cultura através da riqueza da
linguagem, com fantasias, metáforas ou
narrando experiências vividas que
contagiaram e continuam contagiando.
A literatura é um campo fértil, uma
fonte inesgotável de tradução de
significados ao navegar nos labirintos
da imaginação e ler o mundo nas mais
amplas representações (TONON, 2010,
p. 80).

A esperança e a fé popular estão enraizadas


em nossa cultura, basta que seja necessário, e ela se
manifesta. E as mulheres - elas foram, são e sempre

109
110
“Uma mulher de
Carne e osso”: A
Condessa de
Barral por Mary
Del Priore.
Entrevistadora:
Michelle Ferreira Maia48
Universidade Federal de
Grande Dourados.
Apresentação: “Luísa Margarida Portugal e
Barros, nascida em salvador no dia 13 de abril de
1816, filha de Dona Maria do Carmo Portugal e
Barros e de Domingos Borges de Barros”, foi objeto
de estudo da Historiadora Mary Del Priore, pesquisa
que culminou na publicação do livro A Condessa de
Barral. A paixão do Imperador. Um estudo
possibilitado pela analise documental de
correspondências trocadas entre a Condessa de
Barral e o imperador do Brasil D. Pedro II, e dos
diários da Condessa. A autora entrelaça as
particularidades do romance ao contexto social,
político e econômico do Brasil do século XIX. A
entrevista com a historiadora Mary Del Priore foi
gentilmente concedida no dia 21 de Maio de 2011.
Busquei perceber as divergências da educação
feminina rendida a Luísa em relação às mulheres no
mesmo espaço e período, além disso, discuto a
posição da autora sobre sua concepção sobre gênero,
pesquisa histórica, biografias, fontes.

Pergunta 01- Quando surgiu seu interesse em


escrever sobre a Condessa de Barral?

Mary Del Priore: Quando achei seu diário inédito no


arquivo do IHGB. Estou sempre nos arquivos,
pesquisando, e isso me dá a chance de encontrar
documentos muito interessantes.

48
Doutoranda em História pela Universidade Federal da
Grande Dourados, Mato Grosso do Sul, bolsista da
CAPES. Orientadora Profª. Drª. Graciela Chamorro.

111
Pergunta 02- Condessa de Barral. A Paixão do do imperador com Luisa, resignava-se ao silêncio;
Imperador não é seu primeiro trabalho que trata da além disso, a terceira imagem, a da princesa Isabel
questão feminina na História do Brasil. Qual sua que após casada busca, na maternidade, o fruto da
opinião sobre os estudos de gênero, e em que continuação da monarquia. Luisa, ao contrário,
medida esses estudos estão conectados com sua obra punha-se como uma senhora dona de seu destino, em
sobre a Condessa de Barral? busca de saciar seus desejos, sonhos. Sendo também,
uma mulher ativa politicamente. Como compreender
Mary Del Priore: Acho que esse conceito nasceu das essas experiências femininas tão diversificadas em
lutas feministas dos anos 80. Nunca trabalhei com um mesmo espaço e período?
ele. Em meus livros trabalho com atores históricos
nas suas relações com demais atores fazendo deles Mary Del Priore: Essa a riqueza da história: a de
uma janela para determinado momento histórico. apontar complexidades. Cada caso é um caso. E
neste exemplo, casos modelados pela educação que
Pergunta 03- Como podemos compreender a as mulheres recebiam além da visão de mundo com
ausência de trabalhos sobre a Condessa de Barral na a qual conviviam. Não será diferente com as filhas
historiografia brasileira durante tanto tempo? de D. Pedro II que apesar de educadas por Luíza de
Sabendo que o romance da Condessa e do Imperador Barral, tinham como único sonho ser mães e donas-
D. Pedro II repercutiu nas intrigas e na imprensa de-casa. Quantas vezes Luíza não escreveu a Isabel,
carioca do século XIX. pedindo-lhe que abolisse a escravidão?! Assunto
pelo qual ela só se interessará a partir de 1884,
Mary Del Priore: Há pouco interesse sobre os depois de uma visita ao Sul.
estudos da vida da elite. A busca de documentação
também pode ser um obstáculo. Afinal, nosso Pergunta 06- Seu estudo foi pautado pelas
trabalho repousa sobre documentos. Quando são correspondências particulares trocadas entre Luisa e
difíceis de encontrar, dificultam a pesquisa. o Imperador durante os trinta e quatro anos de
paixão, assim como os diários da própria Condessa.
Pergunta 04- No decorrer do livro, você assegura Compartilhe o achado dessa documentação, por
que Luísa “ignorou regras, teve uma educação favor. Como as descobriu e teve acesso a elas? O
privilegiada e Bicultural” (p.233). Pensando no que você acha da utilização destas fontes para as
contexto da educação feminina no Brasil do século pesquisas recentes?
XIX, podemos dizer que Luisa teve a sorte de ter
nascido em um seio familiar como o de Domingos Mary Del Priore: Estavam debaixo do nariz de
Borges menos conservador? Ou esse padrão pode ser todos, tanto no IHGB quanto no Museu Imperial.
observado em outras mulheres da elite no mesmo Achei-as, pesquisando sobre outro personagem que
período? muito me interessa, o Comendador Breves. Por isso
digo: o Arquivo é o melhor amigo do historiador.
Mary Del Priore: Quando Maria Graham vem ao Ninguém consegue fazer boa história lendo só o
Brasil, diferentemente dos viajantes do sexo livro dos outros. É preciso freqüentar e conhecer
masculino, ela observa boas bibliotecas nos arquivos.
engenhos que percorre e encontra-se com mulheres
que falavam inglês e francês. Não podemos Pergunta 07- Uma curiosidade: havia cartas
generalizar e estudar caso a caso. Há muito o que específicas que teciam comentários sobre os
fazer para termos uma ampla visão dos "saberes" das encontros íntimos do Imperador e da Condessa em
brasileiras na primeira metade do Dezenove. Figuras Petrópolis?
importantes como Nísia Floresta aparecem, na
mesma época, demonstrando que o interesse pelas Mary Del Priore: Não, mas indícios fortes de que
letras, a filosofia e a educação já existia. Não se sabe ambos queimavam tais cartas. Sobretudo Luísa, que,
ainda "em quantas" e "onde". depois de acometida por uma febre de
arrependimento religioso, destruiu a parte mais
Pergunta 05- A trajetória da Condessa de Barral comprometedora de sua correspondência. Ela o diz
nos permite vislumbrar o contraste entre ela e outras claramente nas cartas que sobraram.
mulheres, principalmente se comparada a realeza
brasileira dos Bragança: primeiro, aos modos da Pergunta 08- Os seus leitores, digo isso, porque sou
Princesa Francisca ou Chicá, irmã de D. Pedro II; uma assídua leitora de seus livros, foram agraciados
segundo, a própria imagem da Imperatriz Teresa com as séries de Biografias que você tem escrito,
Cristina, a qual consciente da traição e afabilidade pois nos “traz alegria no conhecimento”, frase de

112
Voltaire sempre mencionada por você. Entretanto, que gosto, com o apoio de meus filhos e marido, foi
tenho percebido que, nos departamentos de Pós- melhor ainda!
Graduação em História, a Biografia é um estudo Pergunta 12- Qual é, no seu entender, a relação
pouco presente. Em sua opinião, a que se deve essa entre os historiadores e os romancistas aqui no
ausência? Que recomendação ofereceria aos que Brasil?
pretendem enveredar por esse caminho?
Mary Del Priore: No passado, o romance histórico
Mary Del Priore: Minha recomendação é "façam o foi uma febre: José de Alencar é um bom exemplo.
que lhes dá prazer. Tenham coragem". Há milhares Ele conhecia profundamente história e usou
de pessoas que se interessam por esse tipo de documentos para descrever as situações de suas
historiografia, baseada nas biografias e com obras. Hoje, há algum amadorismo e - isso é grava -
linguagem agradável e fácil. Há muito tempo a falta de conhecimentos básicos. Os livros acabam
universidade deixou de ser o único juiz sobre o que parecendo novela da Globo, sem nenhuma
seja "história". A opinião pública também tem sua preocupação com o pano de fundo. Na Europa e
influência (veja, são 4 livros de história na lista dos América, o gênero é muito difundido e tem milhares
mais vendidos e todos de fora da academia). O de leitores. Mas é sempre bom lembrar: não faço
monopólio quanto a definição do que seja a romance histórico. Tudo o que menciono em meus
produção historiográfica não é mais da Academia - livros tem respaldo na documentação. Uso, apenas,
como foi durante um século, desde que os uma linguagem mais poética, coisa que sempre fiz
positivistas quiseram transformá-la em ciência - mas com gosto. Acho que escrever bem, como dizia
do público leitor. Georges Duby, devia ser obrigação. Não
exceção. Em "Ao sul do corpo", tese de doutorado,
Pergunta 09- Como você tem visto o cenário dos por exemplo, tive críticas por não usar "linguagem
estudos que enfocam as personalidades femininas na acadêmica". Mas nunca desisti de escrever a meu
História? Essas pesquisas podem ser compreendidas modo.
como uma retomada de estudos de gênero?
Pergunta 13- Como você se definiria para o público
Mary Del Priore: Francamente, não vejo relação acadêmico, leigo e também para os seus críticos
entre as biografias como as que faço e as
preocupações de Lynn Hunt, por exemplo. Os Mary Del Priore: Como uma historiadora que ama e
estudos de gênero no Brasil ficaram circunscritos à tem compromisso com o que faz.
Universidade e seus grupos. Em todo o
departamento, há sempre alguém a frente de uma
equipe de pesquisadores, com bolsas, para exercitar
tais conceitos. É normal. Assim funciona a nossa
universidade: com linhas de pesquisa cada vez mais
afuniladas. Os franceses chama isso de "história do
pequeno jardim": cada qual cuidando do seu.

Pergunta 10- Como definiria o papel do historiador


na contemporaneidade?

Mary Del Priore: Ele não cabe numa definição


única. Mas acho que seu papel, numa sociedade sem
memória, é divulgar, difundir e fazer com que os
cidadãos comuns se interessem pelo seu passado.
Vejam-no como um aliado para a compreensão de
sua inserção no mundo.

Pergunta 11- Em sua trajetória como historiadora


quais escolhas teriam sido as cruciais?

Mary Del Priore: Dois momentos: entrar e sair da


Universidade. Aprendi muito com meus alunos e
com o batente acadêmico e tenho grande carinho
pelos anos em que lecionei. Mas poder sair e fazer o

113
114
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO TEORIAS RACIAIS E CONFLITOS ÉTNICOS:
7 NEGROS E IMIGRANTES NO
OESTE DE SÃO PAULO
PRESENÇA FEMININA NO ESPAÇO Zuleide Maria Matulle
PÚBLICO: MULHERES FERROVIÁRIAS NAS 69
“GÊMEAS DO IGUAÇU”
Leni Trentim Gaspari TOMÁS DE AQUINO E O CONHECIMENTO
9 NOS SÉCULOS XII E XIII
Sônia Brzozowski
MULHERES HONESTAS NÃO VÃO AO BAILE 77
DE CARNAVAL:
HONRA MASCULINA E MORALIDADE A REPRESENTAÇÃO FEMININA ATRAVÉS
FEMININA NO FINAL DO SÉCULO XIX E DA REVISTA CARETA ENTRE OS ANOS DE
INÍCIO DO SÉCULO XX 1920 E 1930
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski Sheila Regina Bernardin
17 83

CLARA NUNES MÃE DE UM CANTO MULHERES NO BRASIL COLÔNIA


MESTIÇO Jaquelline Maria Cardoso
Jefferson William Gohl 89
25
HISTÓRIA E GÊNERO: CONCEPÇÕES DA
O IMPÉRIO INCA NAS CRÔNICAS DE HISTÓRIA DAS MULHERES
GARCILASO DE LA VEGA Sandra M. Burginski
(1609-1617) 97
Michel Kobelinski
Adelir de Farias Batista CONTESTADO: FICÇÃO E REALIDADE SOB
35 A VISÃO DE GÊNERO
Bruna Letícia Colita
O PAPEL DAS FIGURAS FEMININAS NOS 105
ESCRITOS GNÓSTICOS SETIANOS
Carlos Almir Matias “UMA MULHER DE CARNE E OSSO”: A
45 CONDESSA DE BARRAL POR MARY DEL
PRIORE
IDENTIDADE E CIDADANIA DAS Entrevistadora:
CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS Michelle Ferreira Maia
DE UNIÃO DA VITÓRIA 111
Itamara Cris Marchi
51

NA TEIA DA VIDA: CRIMINALIDADE E


ACESSO À JUSTIÇA POR ESCRAVAS E
FORRAS NAS MINAS SETECENTISTAS
Kelly Cristina B. Viana
63

115
REALIZAÇÃO

116

Você também pode gostar