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Edgar Allan Poe
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Edgar Allan Poe

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About this ebook

Edgar Allan Poe (1808-1849) nasceu em Boston, Estados Unidos, em 19 de Janeiro de 1809. Filho de atores de teatro, teve infância dificil e a tristeza sempre o acompanhou, ficou órfão de mãe e foi abandonado por seu pai. Contudo, se viu alvo da caridade de família rica que lhe ofereceu boa educação e acesso aos melhores professores. Consta que era uma criança inquieta, por vezes intratável e sua juventude foi entre tavernas, jogos, bebidas e prostitutas. Tinha interesse pela literatura da época e temáticas mais sombrias que evocavam mistérios e atmosferas noturnas. Tentou carreira militar, mas foi expulso por insubmissão, logo, nem mesmo a ajuda de custos do seu tutor ele recebia. Então, vendia seus escritos até que adquiriu expressividade suficiente para ser colocado como editor de uma revista de Richmond. Quando foi morar com sua tia que ficara viúva e tinha uma filha de nome Virgínia Clemm em 1836 acabou por casar-se a prima Virgínia, que contava apenas 13 anos. Poe passou inúmeros tropeços e adversidades ao longo da vida e sua única constância em todos os momentos eram as atividade literárias, atividade esta que o salvava e o ajudava a consolidar uma carreira e obter alguns prestígios. Mas ele era alcoolatra e sua alma agitada e sofrida parecia buscar a morte como uma paixão invencível. Allan Poe faleceu, em decorrência de bebidas alcoólicas, em uma taberna de Baltimore, no dia 07 de Outubro de 1849 deixando como legado a inspiração literária e obras que continuaram até aos dias atuais. Nestas obras reunidas, o leitor vai encontrar, entre outros, textos como: O Corvo O Gato Preto Os Assassinatos da Rua Morgue A Máscara da Morte Escarlate O Enterro Prematuro O Rei Peste O Escaravelho de Ouro Berenice
LanguagePortuguês
Release dateSep 22, 2022
Edgar Allan Poe
Author

Edgar Allan Poe

Dan Ariely is the James B. Duke Professor of Psychology and Behavioral Economics at Duke University. He is a founding member of the Center for Advanced Hindsight; a cocreator of the film documentary (Dis)Honesty: The Truth About Lies; and a three-time New York Times bestselling author. His books include Predictably Irrational, The Upside of Irrationality, The (Honest) Truth About Dishonesty, Irrationally Yours, Payoff, Dollars and Sense, and Amazing Decisions. His TED Talks have been viewed more than 27 million times. His work has been featured in the New York Times, the Wall Street Journal, the Washington Post, the Boston Globe, and elsewhere. He lives in North Carolina with his family.

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    Edgar Allan Poe - Edgar Allan Poe

    A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE

    Havia muito tempo que a Morte Escarlate devastava todo o país. Jamais uma peste fora tão letal e tão terrível. O sangue era a sua encarnação e o seu sinete: o vermelho e o horror do sangue. Começava com dores agudas, com um desvanecimento súbito, e logo os poros se punham a sangrar abundantemente. Sobrevinha, então, a decomposição. Manchas escarlates no corpo e, notadamente, no rosto da vítima, segregavam-na da humanidade e a afastavam de todo socorro e de toda compaixão. O contágio, o progresso e o fim da enfermidade consumiam apenas meia hora.

    Mas o Príncipe Próspero era feliz, intrépido e sagaz. Quando os seus domínios minguaram à metade de almas vivas, convocou um milhar de amigos fortes e de corações alegres, escolhidos entre os cavalheiros e damas da sua corte. E, com eles, formou um refúgio recôndito em uma de suas abadias fortificadas. Tratava-se de uma vasta e magnífica construção, criação dele mesmo, o Príncipe, conforme seu gosto excêntrico e majestoso. Rodeava a construção um muro espesso e elevado, guarnecido de portões de ferro. Uma vez transpostos os muros pelos cortesãos, estes se serviram de fornalha e de vigorosos martelos para soldar os ferrolhos. Deliberaram entrincheirar-se contra os súbitos impulsos ou os desesperos provenientes do exterior e lacrar todas as saídas aos frenesis do interior.

    A abadia estava amplamente abastecida. Graças a tais cuidados, os cortesãos poderiam enfrentar o contágio. Que o exterior se arranjasse como pudesse. De sua feita, seria uma loucura afligir a alma com meditações sobre a peste. O príncipe havia fornido aquele refúgio com todos os meios prazerosos. Havia bufões, improvisadores, bailarinos, músicos, formosuras de todas as espécies. E havia, também, o vinho. Todas essas belas coisas havia no interior, além da segurança. Lá fora, disseminava-se a Morte Escarlate.

    Foi ao fim do quinto ou sexto dia em seu refúgio, enquanto a peste fazia grande estragos além das muralhas, que o Príncipe Próspero proporcionou aos convivas um baile de máscaras da mais insólita magnificência.

    Que quadro voluptuoso era o baile de máscaras! Permitam-me descrever os salões onde a o festim ocorreu. Havia uma série de sete salões imperiais. Em muitos palácios, esta série de salões forma amplas perspectivas, em linha reta quando as portas se descerram de par em par, de tal forma que a vista penetra até o fundo, sem qualquer obstáculo. Aqui, o caso era assaz diferente, como se era de esperar da parte daquele Duque e de sua inclinação pelo bizarro. Estavam as salas dispostas de forma tão irregular que a vista não poderia compreender senão um salão de cada vez. Ao término de um espaço de vinte ou trinta jardas, via-se uma brusca curva e, a cada esquina, o ambiente assumia um aspecto diferente. À direita e à esquerda, e ao meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica abria-se para um corredor fechado, que seguia a sinuosidade dos cômodos.

    Cada janela era guarnecida de vitrais cujas cores harmonizavam-se com a tonalidade dominante da decoração do salão para o qual se abria. O que ocupava a extremidade oeste, por exemplo, era decorado de azul e os vitrais eram de um azul vívido. O segundo dos salões era decorado e guarnecido de cor púrpura e os vitrais eram igualmente purpúreos. O terceiro era completamente verde e verdes eram também as janelas. O quarto, alaranjado, estava iluminado por uma janela de igual cor. O quinto era branco e o sexto, violeta. O sétimo era rigorosamente forrado por tapeçaria de veludo negro, que revestia o teto e as paredes, e que caía em pesadas rugas sobre um tapete do mesmo material e de mesma cor. Mas, neste salão, a cor dos vitrais não correspondia ao da decoração: os vitrais eram escarlates, de uma tonalidade intensa de sangue.

    Ora, em nenhuma daquelas salas se viam lâmpadas ou candelabros em meio à profusão de adornos em ouro, que se espalhavam em todos os cantos, ou se dependuravam ao teto. Não havia lâmpadas ou velas. Luz alguma dessa natureza emanava na sequência de salas. Porém, nos corredores que as envolviam, exatamente em frente de cada janela, elevava-se uma pesada trípode com um braseiro, a projetar seus raios através dos vitrais coloridos, iluminando deslumbrantemente a sala. Perfazia-se uma miríade de formas cambiantes e fantásticas. Mas, na sala voltada ao poente, na câmara negra, a claridade do braseiro, que se refletia sobre as negras tapeçarias, através dos vitrais sangrentos, era sobremodo sinistra e incidia sobre as faces dos imprudentes que ali entravam, conferindo-lhes um aspecto de tal forma estranho que muitos poucos dançarinos se sentiam com suficiente coragem para penetrar no recinto.

    Também nesse salão se erguia, amparado no muro oriental, um gigantesco carrilhão de ébano. Seu pêndulo oscilava com um tique-taque surdo, pesado, monótono; e quando os ponteiros dos minutos haviam percorrido todo o seu círculo, e a hora se completava, provinha dos pulmões de bronze um som claro, estrepitoso, profundo e extraordinariamente musical, mas de um timbre tão regular que, de hora em hora, os músicos da orquestra eram obrigados a interromper por alguns segundos a execução, para escutar a música das horas; e os dançarinos cessavam, à força, as suas evoluções. Uma momentânea perturbação grassava aquela multidão alegre e, enquanto soava o carrilhão, era possível notar que até os mais arrojados empalideciam e os de maior idade e reflexão passavam a mão à fronte, como se abandonados a uma meditação confusa ou a um devaneio. E, mal se dissipava o eco das horas, circulava no ambiente leves risadas. Os músicos olhavam uns aos outros e se riam dos próprios nervos e da própria loucura; e juravam, em voz baixa, que, da próxima vez em que soasse o carrilhão, não sentiriam o mesmo desconforto. Mas, no entanto, quando decorridos os sessenta minutos da hora desaparecida, que continha os três mil e seiscentos segundos; quando irrompia uma nova batida do relógio fatal, reproduzia-se o mesmo estremecimento, os mesmos calafrios e os mesmos devaneios febris.

    Apesar disto, a orgia continuava alegre e magnífica. O gosto do Duque era especialmente singular. Tinha a vista apurada para as cores e aos efeitos que estas produziam. Desdenhava dos gostos da moda. Seus planos eram temerários e selvagens e suas concepções brilhavam com um bárbaro esplendor. Alguns o julgavam louco. Mas os seus cortesãos sabiam que não. Todavia, era preciso vê-lo, tocá-lo, para assegurarem-se de que ele não estava de fato ensandecido.

    Para esse baile, havia o príncipe se ocupado, pessoalmente, da decoração do mobiliário das salas e foi o seu gosto pessoal que elegera o estilo das máscaras. Dúvidas não pode haver de que eram concepções grotescas. Tudo era deslumbrante e brilhante. Havia coisas chocantes, fantásticas, muito do que depois foi visto no Hernani. Havia figuras arabescas, com membros e adornos desconformes; fantasias delirantes como a loucura. Havia muito de belo, de licencioso, de bizarro; algo de terrível e não pouco do que produzia repugnância.

    Era como se uma miríade de sonhos deslizasse de um lado para o outro nas sete salas. E tais sonhos se contorciam em todos os sentidos, tomando a cor dos salões, fazendo com que a estranha música da orquestra parecesse o eco de seus próprios passos. Mas logo soava o relógio de ébano no salão dos veludos. Então, por um momento, tudo se detinha, tudo emudecia, salvo o ecoar do relógio. Tudo se congelava em suas posturas. Mas os ecos do carrilhão se desvaneceram – não duraram senão um momento –, e, mal se extinguiram, as gargalhadas, mal reprimidas, ecoavam por todos os cantos. E a música voltava a tocar, reavivando os sonhos; aqui e ali os dançarinos retomavam as evoluções, mais alegre do que nunca, refletindo a cor dos vitrais atrás dos quais fluíam os raios do braseiro.

    Porém, no salão do extremo ocidental, não havia máscara alguma que se atrevesse a penetrar, porque a noite declinava. Ali se descerrava uma luz de um escarlate profundo, através dos vitrais cor de sangue, e a escuridão das cortinas tingidas de negro era aterradora. E, para aqueles que punham os pés sobre os tapetes, brotava do relógio de ébano um clangor ainda mais pesado, mais solenemente enérgico do que o que chegava aos ouvidos dos mascarados que se divertiam nos salões mais distantes.

    Mas esses outros salões estavam repletos e o coração da vida ali febrilmente pulsava. E o baile continuava, chegava ao seu ápice, quando do carrilhão soou a meia-noite. Então, como já se disse, a música parou; os que dançavam detiveram-se em suas evoluções. E a angustiante imobilidade a tudo dominou. Agora, porém, o carrilhão bateria doze vezes. Desta vez, porque ecoou o mais longamente o carrilhão, inseriram-se nos pensamentos dos que se atiravam à diversão um maior volume de meditações. E talvez, por isso mesmo, muitos do que compunham a multidão, antes de se esgotarem os derradeiros ecos das últimas horas dadas, puderam perceber a presença de um mascarado que, até aquele instante, ninguém notara. E, tendo se espalhado, aos sussurros, a notícia daquela intrusão, insinuou-se na multidão um murmúrio indicativo de surpresa e desaprovação, que evoluiu para o terror, horror e repugnância.

    Numa multidão fantasmagórica como a que descrevi, era necessário, sem dúvidas, que fosse a aparição absolutamente extraordinária para ensejar tal sensação. A licenciosidade carnavalesca daquela noite era, realmente, quase sem limites. Mas a personagem em questão havia transcendido à extravagância de um Herodes e ultrapassado os amplos limites do decoro que o Príncipe estabelecera. Há nos mais temerários corações cordas que não se deixam tocar sem emoções. Até entre os depravados, para quem a vida e a morte são igualmente um brinquedo, há coisas com as quais não se pode brincar. Os convivas pareciam sentir, profundamente, a inconveniência dos trajes e da conduta do estranho. Era ele alto e delgado. Estava envolto com uma mortalha funerária da cabeça aos pés. A máscara, que lhe ocultava as faces, reproduzia fielmente o semblante de um rígido cadáver, que um exame apurado teria dificuldades em perceber o engano. Ora, aquela frenética multidão bem poderia tolerar, e mesmo aprovar, aquela desagradável figura, acaso o mascarado não tivesse adotado a representação da Morte Escarlate. Suas roupas estavam enodoadas de sangue e a sua ampla testa, assim como as suas feições, salpicadas do horror escarlate.

    Quando os olhos do Príncipe Próspero focaram a espectral figura – que,com solenes e enfáticos movimentos, feitos para melhor representar o seu papel, evoluía aqui e ali entre os dançarinos –, caiu numa violenta comoção e estremecimento, tomado pelo terror e pela repugnância. E, segundos depois, sua fronte turvou-se de ira:

    — Quem se atreve — perguntou com rouca voz aos cortesãos que o rodeavam -, quem ousa a nos insultar com esta ironia blasfema? Segurem-no e desmascarem-no, para que saibamos a quem iremos enforcar, nos altos das ameias, ao amanhecer!

    Encontrava-se o Príncipe Próspero, ao pronunciar estas palavras, no salão oriental, ou câmara azul, e a voz do Príncipe Próspero ressonou potente e clara pelos sete salões, pois o Príncipe era um homem impetuoso e forte, e a música havia cessado a um gesto de sua mão. Estes fatos ocorriam no salão oriental, sendo o Príncipe ladeado por um grupo de pálidos cortesãos. No início, enquanto falava o Príncipe, o grupo se movimentou, levemente, na direção do intruso, que esteve, por um momento, quase ao alcance de suas mãos, mas que agora, com passos firmes e majestosos, se acercava cada vez mais do Príncipe. Mas, em razão do indefinível terror que a audácia do mascarado havia inspirado em todos aqueles que ali se reuniam, ninguém estendeu a mão para agarrá-lo, mesmo quando, sem qualquer obstáculo, passou a dois passos da pessoa do Príncipe. E tanto que a mesma assembleia, como que obediente a um só movimento, recuou do centro do salão às paredes. O mascarado seguiu, sem interrupção, o seu caminho, com os mesmos passos solenes e bem medidos, com os quais, desde o início, se distinguira, passando da sala azul à púrpura; da sala verde à alaranjada; e desta à branca; e da branca à violeta, sem que houvesse quem o detivesse.

    Então o Príncipe Próspero, tomado de ira e de vergonha pela covardia momentânea, precipitou-se através das seis salas, sem que ninguém o seguisse, porque um temor mortal se apoderara de todos os convivas. Brandiu um punhal e se aproximou a uma distância de três ou quatro passos do fantasma que se retirava, quando este último, ao aproximar-se da sala de veludo, voltou-se bruscamente, afrontando aquele que o perseguia.

    Ecoou um grito agudo e o punhal caiu, como um relâmpago, sobre o tapete fúnebre, onde o Príncipe o Príncipe Próspero tombou morto, instantaneamente. Então, invocando a frenética coragem do desespero, a multidão de mascarados precipitou-se à sala negra, e, agarrando-se ao desconhecido, que se mantinha imóvel e ereto como uma grande estátua à sombra do carrilhão, viu-se presa de um terror inominável, ao perceber que não havia forma tangível alguma sob a mortalha e sob a máscara cadavérica. Todos reconheceram, então, que ali estava presente a Morte Escarlate. Ela se insinuara como um ladrão noturno.

    E todos os convivas tombaram, um a um, nos salões das orgias, manchados de sangue, morrendo na mesma postura desesperada em que desabaram.

    E a vida do relógio de ébano se extinguiu com a do último daqueles seres licenciosos. E murcharam as chamas dos braseiros. E as Trevas, e a Ruína e a Morte Escarlate deitaram sobre tudo o seu ilimitado domínio.

    O ENTERRO PREMATURO

    Há certos temas que despertam totalmente o nosso interesse, mas que também são demasiado terríveis para servir aos propósitos da verdadeira ficção. O romancista simplório deve abster-se deles se não deseja ofender ou provocar nojo. Eles são trabalhados com justeza apenas quando o rigor e a excelência da verdade os santificam e sustentam. Nós nos impressionamos, por exemplo, com os exemplos mais intensos de dores prazerosas sobre os relatos sobre a Batalha de Berezina, sobre o Terremoto em Lisboa, sobre a Peste em Londres, sobre o Massacre de São Bartolomeu ou sobre o sufocamento de cento e vinte e três prisioneiros no Buraco Negro de Calcutá. Porém, entre esses relatos, é o fato – é a realidade – é a história que nos impressiona. Fossem meras fábulas, apenas olharíamos para eles cheios de repugnância.

    Acabo de mencionar algumas das mais famosas e impressionantes catástrofes de que se tem notícia; porém, é a sua dimensão, não menos que seu caráter, que impressiona tão intensamente a imaginação. Preciso lembrar ao leitor que, entre o longo e insólito catálogo das misérias humanas, eu poderia citar muitos exemplos repletos de um sofrimento mais profundo do que quaisquer desses grandes desastres coletivos. A verdadeira desgraça, de fato – a angústia mais fatal – é individual, e não pública. Os mais assustadores extremos da agonia são suportados pelo homem em sua solidão, e nunca pela multidão – por isso agradeçamos a um misericordioso Deus!

    Ser enterrado vivo é, sem dúvidas, o maior horror que pode acontecer a um mero mortal. Qualquer um que raciocine não pode negar que isso acontece com muita, muita frequência. As fronteiras que separam a Vida e a Morte são, na melhor das hipóteses, obscuras e vagas. Quem ousaria dizer onde termina uma e onde começa a outra? Sabemos que existem doenças em que ocorre total suspensão de sinais vitais aparentes e também que, nesses casos, essas suspensões são interrupções propriamente ditas. São pausas temporárias de um mecanismo incompreensível. Passado certo tempo, misteriosas e invisíveis leis, mais uma vez, fazem mover as mágicas rodas e engrenagens. O cordão prateado não fora perdido para sempre, e nem o globo de ouro fora para sempre rompido. Mas onde, nesse momento, se encontrava a alma?

    De qualquer maneira, além da conclusão inevitável, a priori, de que tais causas produzam tais efeitos – que as conhecidas ocorrências desses casos de suspensão dos sinais vitais causaram, vez ou outra, sepultamentos precipitados –, além dessa óbvia conclusão, temos depoimentos médicos e de pessoas comuns que comprovam um vasto número desse tipo de sepultamento. Posso recorrer prontamente, se necessário, a uma centena de casos confirmados. Um caso de caráter notável, e cujas circunstâncias ainda devem estar frescas na memória de alguns dos meus leitores, ocorreu há não muito tempo, nas cercanias da cidade de Baltimore, onde gerou uma dolorosa, intensa e ampla comoção. A esposa de um dos mais respeitáveis cidadãos – um advogado em evidência e membro do Congresso – contraiu uma doença repentina e desconhecida, que espantou e desafiou o conhecimento de seus médicos. Depois de muito sofrimento, ela faleceu – ou acreditou-se nisto. Ninguém suspeitou, de fato, ou teve motivos para suspeitar, que ela não estivesse verdadeiramente morta. Ela apresentara todos os aspectos comuns de falecimento. Seu rosto tinha a expressão aflita e contornos encovados. Os lábios, a palidez marmórea. Os olhos estavam sem brilho. Não havia nenhum calor. Nem pulsação. O corpo foi velado durante três dias, tempo em que adquiriu uma rigidez pétrea. O funeral teve de ocorrer às pressas, no fim das contas, devido ao rápido avanço do que pensavam ser o estado de decomposição.

    A senhora foi colocada na cripta da família, que, ao longo dos três anos seguintes, ficou intocada. Depois desse período, a cripta foi reaberta para receber um esquife – que horror! Que terrível choque aguardava o marido, quando, pessoalmente, abriu a porta. À medida que as portas se moviam, um objeto envolto em um tecido branco despencou em seus braços. Era o esqueleto de sua mulher, enrolado no que ainda restava de sua mortalha.

    Uma investigação cuidadosa confirmou que ela despertara depois de dois dias de seu sepultamento – que seus movimentos desesperados dentro do caixão fizeram-no cair de uma prateleira, ou estante, para o assoalho, e ele se quebrou o suficiente para permitir a sua libertação. Uma lamparina que havia sido esquecida cheia de óleo dentro da sepultura foi encontrada seca; deve ter esvaziado pela evaporação. No mais alto dos degraus que conduziam ao fundo da pavorosa tumba havia um grande pedaço do caixão com o qual, parece, ela havia se empenhado em chamar atenção, golpeando a porta de ferro. Nesse momento, ela provavelmente desmaiou, ou morreu, de profundo terror; e quando caiu sua mortalha ficou presa em algum ornamento de ferro apontado para dentro. Assim ela ficou, e assim, em pé, apodreceu.

    Em 1810 aconteceu na França um caso de enterro prematuro em circunstâncias tão extremas que confirmam a expressão de que a verdade é, sem dúvidas, mais estranha que a ficção. A heroína de nossa história é Mlle. Victorine Lafourcade, jovem de família ilustre e abastada e de grande beleza. Entre seus inúmeros pretendentes estava Julien Bossuet, um pobre literato, ou jornalista, de Paris. Seus talentos e afabilidade atraíram o olhar da herdeira, por quem, parece, foi realmente amado; mas no fim das contas o berço de ouro falou mais alto e ela se casou com um tal M. Renelle, banqueiro e diplomata em ascensão. Porém, passado o casamento o cavalheiro a negligenciou, e era ainda mais certo que ele a maltratava. Depois de alguns anos miseráveis, ela faleceu – pelo menos sua aparência era muito semelhante à morte para enganar qualquer um que a visse. Foi enterrada não em uma cripta, mas em um túmulo comum no vilarejo em que nascera. Tomado pelo desespero e ainda contaminado pela memória de um vínculo profundo, o amante viaja da capital à remota província onde se encontra o vilarejo com o romântico propósito de desenterrar o cadáver e pegar para si um punhado de seus exuberantes cachos. Ele chega ao túmulo. À meia-noite, desenterra o caixão, abre-o e, enquanto está cortando o cabelo, é flagrado pelos olhos abertos de sua amada. Na verdade, a jovem havia sido enterrada viva. A vitalidade ainda não sumira de todo; e, graças ao contato com seu amado, ela despertara da letargia confundida com a morte.

    Ele a conduziu freneticamente para seu alojamento no vilarejo. Empregou poderosos restaurativos, indicados por seus conhecimentos médicos, que não eram poucos. Enfim, ela sobreviveu. Ela reconheceu seu salvador. Ela ficou com ele até, devagar, recuperar totalmente a saúde. Seu coração feminino já não estava inflexível, e aquela última lição de amor foi suficiente para amansá-lo. Ela ofereceu o seu amor a Bossuet. Ela não retornou para o marido, mas, mantendo em segredo a sua ressurreição, fugiu com o amado para a América. Vinte anos mais tarde, os dois voltaram à França, acreditando que o tempo havia mudado a aparência da mulher tão intensamente que seus amigos não seriam capazes de reconhecê-la. Estavam errados, entretanto, pois à primeira vista Monsieur Renelle reconheceu e reivindicou a sua esposa. Ela negou a reivindicação do marido e os tribunais apoiaram-na em sua resistência, determinando que circunstâncias tão peculiares, além do longo intervalo de tempo, extinguiram, não somente por justiça, mas também por questões legais, a autoridade do marido.

    O Diário de Cirurgia de Lepzig – um periódico de grande prestígio e mérito, que algumas editoras americanas fariam bem em traduzir e republicar, possui, em um número recente, um evento infeliz com o personagem em questão.

    Um oficial da artilharia, homem de imensa estatura e saúde exemplar, foi arremessado do dorso de um cavalo indomável, levando bem na cabeça um coice que o fez perder imediatamente os sentidos; seu crânio foi levemente fraturado, mas não foi observado nenhum dano preocupante. A trepanação foi cumprida com sucesso. Ele passou por uma sangria e várias outras tentativas de aliviar a dor foram empregadas. No entanto, gradualmente, ele caiu num estado de estupor mais e mais profundo, até que o consideraram morto.

    O dia estava quente, e ele foi enterrado com uma pressa desumana em um cemitério público. Seu funeral ocorreu em uma quinta-feira. No domingo seguinte, como sempre, o cemitério estava repleto de visitantes, e perto do meio-dia começou um intenso burburinho, quando um agricultor declarou que, enquanto estava sentado sobre a cova do oficial, sentiu claramente um movimento na terra, como se fosse causado por alguém se debatendo lá embaixo. Inicialmente, deram pouca atenção à afirmação do homem, mas o terror de sua expressão e a obstinação com que repetia a história finalmente surtiram efeito na multidão. Pás foram rapidamente distribuídas e a cova, que estava vergonhosamente rasa, em poucos instantes estava aberta, deixando à mostra a cabeça de seu ocupante. Naquele momento ele parecia morto, mas estava quase sentado em seu caixão, cuja tampa conseguira erguer parcialmente com sua furiosa luta.

    Ele foi imediatamente carregado até o hospital mais próximo, e ali foi declarado ainda vivo, mesmo que num estado de asfixia. Depois de algumas horas ele voltou à vida, reconheceu pessoas próximas e, em frases entrecortadas, falou sobre sua agonia.

    A partir de seu relato, ficou claro que ele deve ter tido consciência de sua vida durante mais de uma hora, enquanto estava enterrado, antes de perder os sentidos. A sepultura fora preenchida com desleixo e com uma terra excessivamente porosa; assim o ar podia passar. Ele ouviu os passos da multidão acima de sua cabeça e empenhou-se em ser ouvido também. Foi o tumulto no cemitério, disse ele, que aparentemente o acordou do sono profundo, mas, assim que ele despertou, entendeu totalmente o horror de sua condição.

    Consta nos registros que esse paciente passava bem e parecia estar a caminho da plena recuperação, mas acabou vítima das charlatanices dos experimentos médicos. A pilha galvânica lhe foi aplicada e ele expirou de repente em um desses paroxismos estáticos que ela induz.

    A lembrança da pilha galvânica, por sua vez, traz à minha memória um caso conhecido e extraordinário, em que sua ação se provou eficaz no reestabelecimento da animação de um jovem advogado em Londres que fora enterrado por dois dias. O fato ocorreu em 1831, e, na ocasião, a sensação profunda era de que não se falava em outra coisa.

    O paciente, Mr. Edward Stapleton, morrera aparentemente de febre de tifo, acompanhada por alguns sintomas anômalos que despertaram a curiosidade de seus médicos. Com sua morte aparente foi pedida a seus amigos a permissão para uma autópsia, mas o pedido foi negado. Nesses casos de recusa, normalmente os médicos desenterram o corpo e dissecam-no nas horas vagas, em segredo. O acordo foi facilmente fechado com um desses ladrões de cadáveres que se proliferam em Londres, e na terceira noite após o funeral o suposto cadáver foi desenterrado de uma cova com oito pés de profundidade e levado a uma câmara secreta de um hospital secreto.

    Foi feita uma extensa incisão no abdome, quando a aparência fresca e vigorosa do sujeito sugeriu uma aplicação da bateria. Um experimento levou a outro, e efeitos habituais foram observados sem quaisquer características particulares, exceto uma ou duas ocasiões em que um grau de vivacidade mais forte que o normal foi observado durante as convulsões.

    As horas passaram. O sol estava prestes a se por; mais ainda assim era recomendado, no fim das contas, prosseguir de uma vez com a dissecação. No entanto, um estudante tinha um desejo particular de testar a própria teoria, e insistiu para que, antes, aplicassem a pilha em um dos músculos peitorais. Foi feito um corte rudimentar, e um fio elétrico foi rapidamente colocado em contato quando o paciente, com um movimento convulsivo brusco, mas silencioso, levantou-se da mesa, parou no meio da sala, olhou para si mesmo por alguns segundos sem compreender e, então, falou. O que ele disse foi inteligível, mas palavras foram proferidas; era possível distinguir as sílabas. Depois de falar, caiu pesadamente no chão.

    Por alguns instantes todos ficaram paralisados de terror, mas a urgência do caso logo restabeleceu suas consciências. Foi observado que Mr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Depois da inalação de éter ele se reanimou, recuperou a saúde e voltou ao convívio dos amigos – para quem, de qualquer maneira, o conhecimento sobre a ressuscitação foi ocultado, até que uma recaída não trouxesse mais receios. A surpresa deles – seu espanto arrebatador – era de se imaginar.

    A peculiaridade mais excitante desse incidente, não obstante, está relacionada com as próprias declarações de Mr. S. Ele afirma que em nenhum momento estava completamente insensível – que, pesada e confusamente, ele estava consciente de tudo o que acontecera com ele, do momento em que fora declarado morto pelos médicos até o seu desmaio, no chão do hospital. Estou vivo foram as incompreensíveis palavras que, após reconhecer a sala de dissecção, ele empenhou todas as forças para pronunciar.

    Seria fácil multiplicar histórias como essa – mas paro por aqui –, porém, na realidade, isso não é necessário para concordarmos com o fato de que enterros prematuros acontecem.

    Quando refletimos sobre o quão raramente, de acordo com a natureza do caso, temos a oportunidade de detectá-los, devemos admitir que talvez ocorram com muita frequência sem o nosso conhecimento. Raramente, na verdade, um cemitério é invadido, por qualquer razão, em qualquer extensão, sem que esqueletos sejam encontrados em posições que sugerem a mais assustadora suspeita.

    Suspeita realmente assustadora – e mais assustador o destino! Pode-se declarar, sem hesitações, que nenhum acontecimento seja tão terrivelmente preciso a inspirar a suprema angústia do corpo e da mente quanto o enterro antes da morte. A insuportável opressão dos pulmões – o vapor sufocante da terra úmida – a mortalha grudando no corpo – as paredes rígidas da estreita casa – a escuridão da noite absoluta – o silêncio como um oceano que esmaga – a invisível mas palpável presença do verme vitorioso – tudo isso, com pensamentos no ar e na grama acima, com a lembrança de amigos queridos que correriam em nosso socorro se soubessem de nossa situação, e com a consciência de que eles nunca serão informados sobre esse destino – que nossa porção menos esperançosa é a da morte real – essas considerações, digo, conduzem ao coração que ainda palpita um grau de espanto e intolerável terror diante do qual a mais ousada imaginação se recolhe. Não sabemos de nada que possa ser tão aflitivo sobre a Terra – não podemos sonhar com nada tão horrendo nos domínios do mais profundo inferno. E deste modo todas as histórias sobre o assunto despertam profundo interesse; um interesse, no entanto, que, entre o sagrado respeito do tema em si, depende muito própria e particularmente de nossa convicção da veracidade da narração. O que tenho a contar, agora, diz respeito ao meu próprio conhecimento – à minha experiência positiva e pessoal.

    Durante muitos anos fui submetido a ataques de um distúrbio singular que os médicos denominaram catalepsia, na falta de um termo mais definitivo. Apesar de as tendências e causas imediatas, e até mesmo o diagnóstico final da doença, ainda serem um mistério, seu caráter óbvio e evidente é suficientemente compreendido. Suas variações parecem ser principalmente nos graus. Às vezes o paciente permanece deitado, por apenas um dia ou até um período mais curto, em uma espécie de letargia excessiva. Ele fica sem sentidos e aparentemente não se move; mas a pulsação do coração ainda é levemente perceptível; restam alguns vestígios de temperatura; uma cor pálida persiste nas maçãs do rosto; e, ao se colocar um espelho sobre os lábios, podemos detectar uma apática, parcial e vacilante ação dos pulmões. Então novamente o transe pode durar semanas – até mesmo meses; enquanto a mais rigorosa avaliação e os

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