Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
e Outros Contos
Rua Sylvio Rebelo, n.º 15
1000-282 Lisboa
Telef.: 21 847445 0
Fax: 21 84 70775
www.relogiodagua.pt
relogiodagua@relogiodagua.pt
Se não encontrar nas livrarias o livro que procura da R. A., pode recorrer ao sítio
www.relogiodagua.pt
O Diabo
e Outros Contos
Tradução e Notas de
Nina Guerra e Filipe Guerra
Clássicos
O DIABO
Eu , porém, vos digo que qualquer que atentar numa mulher, para a
cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.
S. Mateus, 5:28,29,30
Evguéni Irténev tinha uma brilhante carreira pela frente . Possuía todas
as condições para tal . Excelente educação em casa, brilhante fim de cur
so na Faculdade de Direito da Universidade de Petersburgo, relações ,
herdadas do pai recém-falecido , com a mais alta sociedade e , inclusiva
mente, um início de prestação de serviço público no Ministério , sob a
protecção do próprio ministro . Tinha também fortuna, grande , embora
duvidosa: o pai vivera no estrangeiro e , em Petersburgo , dava aos seis
mil rublos a cada filho - a Evguéni e a Andrei, o mais velho , que ser
via na cavalaria da guarda imperial - , e os próprios pais gastavam sem
pre muito dinheiro. No Verão , e apenas no Verão , o pai ia viver dois me
ses na herdade, mas não tratava dela, confiando tudo ao administrador
8 Lev Tolstói
\
No meio de tantas preocupações havia uma circunstância, aparente
mente menos importante , que atormentava muito Evguéni . Na sua ju
ventude , vivia como todos os outros homens solteiros , jovens e saudá
veis , ou seja, mantinha relações com mulheres de vários tipos . Não era
10 Lev Tolstói
Porém, tomar uma decisão é uma coisa, realizá-la é outra. Abordar di
rectamente uma mulher era impossível . Que mulher? Onde? Impunha-se
um intermediário , mas quem?
Um dia entrou em casa do guarda-florestal , antigo couteiro do seu pai .
Evguéni lrténev começou a conversar com ele , vieram à baila histórias
O Diabo e Outros Contos 11
- Então , quando?
- Pode ser já amanhã. Vou ao tabaco e passo por lá, e o senhor apa-
reça aqui à hora do almoço , ou então vá ter atrás da horta, ao pé dos ba
nhos . Não há lá ninguém, além de que , a essa hora, está toda a gente a
dormir.
- Está bem.
A caminho de casa, apoderou-se de Evguéni uma emoção terrível .
«Como será ela? O que pode ser uma camponesa? E se for um estafer
mo monstruoso, horrendo? Não , elas até são bonitas - dizia para si mes
mo , recordando as mulheres que lhe prendiam a atenção . - Mas o que
lhe vou dizer, como é que faço?»
Passou todo o dia num desassossego . No dia seguinte , pelo meio-dia,
passou por casa do guarda. Danila estava à porta e apontou-lhe com a
cabeça, significativamente , na direcção da floresta. O sangue afluiu ao
coração de Evguéni , sentiu-o bem, e meteu a caminho da horta. Não ha
via ninguém. Aproximou-se dos banhos - ninguém; entrou, saiu e , de
repente , ouviu o estalido de um ramo a partir-se, por trás do barranco .
Precipitou-se para l á , atravessou o barranco . A o fundo d a ribanceira ha
via urtigas , em que não reparou . Picou-se e, deixando cair a luneta do na
riz , subiu para a outra margem da barroca. Com um avental branco bor
dado , saia vermelha escura e lenço escarlate , lá estava ela de pé,
descalça, fresca, durinha, bonita, sorrindo com timidez .
- Há aqui uma vereda, podia contorná-la - disse ela. - Estou aqui
há muito . Há que tempos !
Aproximou-se dela e , olhando para trás , tocou-lhe .
Um quarto de hora depois despediram-se . Evguéni encontrou a lune
ta, passou por casa de Danila e, à pergunta «então, satisfeito?» , respon
deu dando-lhe um rublo . Voltou para casa.
Estava contente . Só no início se envergonhara. Depois passou-lhe a
vergonha, correu tudo bem. Primeiro que tudo , sentia-se agora aliviado,
calmo , enérgico . Quanto à mulher, nem chegou a vê-la bem. Recordava
-a como uma mulher limpa, fresca, nada feia e simples , sem requebras .
«A quem pertence? - pensava Evguéni . - Aos Petchnikov, como ele
disse? Mas quais? É que há duas farm1ias Petchnikov. Pelos vistos é no
ra do velho Mikhaila. Sim, de certeza, porque o filho dele está em Mos
covo . . . Hei-de perguntar ao Danila.»
A partir de então foi superado aquele inconveniente da sua vida na al
deia - a continência forçada. Já nada impedia o livre curso do pensa
mento ágil de Evguéni , podia dedicar-se livremente ao trabalho .
O Diabo e Outros Contos 13
Ora, o trabalho não se apresentava fácil: por vezes parecia-lhe que não
aguentava e que, afinal , seria necessário vender mesmo a herdade , que
todos os seus esforços iriam por água abaixo e que - o pior de tudo -
ficaria claro que se dera por vencido e não conseguira acabar a obra ini
ciada. Era este último ponto que mais o preocupava. Mal acabava de ta
par minimamente um buraco , abria-se logo outro, inesperado .
Entretanto , foram-se descobrindo cada vez mais dívidas do pai .
Tomava-se evidente que, nos últimos tempos da sua vida, o pai se endi
vidava por todo o lado, sem pensar duas vezes . Em Maio , aquando das
partilhas , Evguéni pensava que já estava ao corrente de tudo . Porém, em
meados do Verão, recebeu uma carta que , de chofre , o punha a par da dí
vida de doze mil rublos à viúva Essípova. Não existia letra, apenas uma
carta-promessa que , nas palavras do procurador, era possív�l contestar.
Mas nunca passaria pela cabeça de Evguéni furtar-se ao pagamento de
uma dívida real contraída pelo pai apenas porque era possível refutar um
documento . Bastava-lhe saber que a dívida era verdadeira.
- Mamã! Quem é esta Kaléria Vladimirovna Essípova? - perguntou
à mãe durante o almoço, refeição que, como de costume, tomavam juntos .
- Essípova? É uma educanda do avô . Porquê?
Evguéni falou à mãe da carta.
- Não sei como essa mulher não tem vergonha. O teu pai ajudou-a
muito, deu-lhe muito dinheiro .
- Mas devemos-lhe alguma coisa?
- Nem sei o que te hei-de dizer. . . Não , a dívida não existe , o teu pai ,
com a sua infinita bondade . . .
- Está bem, mas o pai considerava isto uma dívida ou não?
- Não sei dizer, não sei . Só sei que , já sem isto , tens problemas a
mais.
Evguéni via que Mária Pávlovna não queria opinar e como que o son
dava.
- Só posso concluir que é preciso pagar - disse o filho. - Amanhã
vou falar com ela e peço-lhe um adiamento .
� Ai , coitado , como tenho pena de ti . Mas , sabes? Assim é melhor.
Diz-lhe que tem de esperar - aconselhou Mária Pávlovna, visivelmen
te tranquilizada e orgulhosa com a decisão do filho .
A situação de Evguéni era ainda mais difícil porque a mãe , com quem
vivia, não entendia nada da situação. Toda a vida viveu à grande , estava
habituada a isso, de maneira que era incapaz de imaginar que, de um mo
mento para o outro, podiam ficar sem nada, que o filho podia ter de ven-
14 Lev Tolstói
der tudo e passar a sustentar a mãe com o vencimento do serviço (na si
tuação dele, não deveria ultrapassar os dois mil rublos) . Mária Pávlovna
não percebia que só era possível vencer o problema reduzindo todas as
despesas , e não compreendia que Evguéni pudesse ser tão poupado nas
coisas miúdas , nos gastos com jardineiros , cocheiros , criadagem, e até
mesa. Além disso , tal como a maioria das viúvas , ela tinha uma autênti
ca veneração pela memória do marido , de longe maior do que a adora
ção que lhe dedicava em vida, e não admitia a ideia de que ele fizera coi
sas sem préstimo ou que precisassem de ser alteradas .
Evguéni , com grande esforço , mantinha o jardim e a estufa com dois
jardineiros , e a cavalariça com dois cocheiros . Ora, Mária Pávlovna con
siderava ingenuamente que , pelo facto de não se queixar das refeições
preparadas pelo velho cozinheiro , nem de barafustar contra as alamedas
do jardim mal limpas , nem de reclamar contra a ausência de lacaios (ti
nham apenas um criado , rapazinho para todo o serviço) , considerava en
tão que fazia o possível como mãe que se sacrifica pelo filho . Quanto
àquela nova dívida - que para Evguéni era quase o golpe de misericór
dia que se abatera sobre os seus empreendimentos - , Mária Pávlovna
apenas distinguia nela um caso que demonstrava a nobreza de Evguéni .
Havia ainda outra razão que levava a mãe a não se preocupar muito com
a situação material de Evguéni: a sua convicção de que o filho arranjaria
um casamento brilhante que iria resolver tudo . Na verdade , existia mes
mo essa possibilidade de encontrar um partido brilhante: Mária Pávlov
na conhecia uma dúzia de fann1ias que ficariam felizes se , qualquer de
las , unissem a filha a Evguéni . E Mária Pávlovna queria efectivar esse
enlace o mais depressa possível .
Evguéni também sonhava com isso , mas de outra maneira, uma vez
que lhe repugnava a ideia de aproveitar o casamento como meio de me
lhorar a situação material . Observava as meninas que encontrava e co
nhecia, imaginava como seria estar casado com elas , mas não havia meio
de o destino lhe solucionar esse problema. Entretanto , contra todas as
suas expectativas , as relações com Stepanida continuavam e ganhavam
até foros de estabilidade . Para Evguéni , um homem sem a tendência pa
ra a depravação , era muito penoso fazer o que fazia, essa coisa secreta e ,
pelo que sentia, muito má, por isso não tinha paz de espírito . Logo após
O Diabo e Outros Contos 15
resta, ao lugar do costume . Stepanida não estava lá. Naquele sítio , até on
de alcançava a mão , estava tudo partido - o azereiro, a aveleira, até um
bordo jovem com o tronco da grossura de uma estaca. Adivinhava-se que
ela tinha esperado , se enervara e se irritara, e que também quisera deixar
-lhe aquelas lembranças por pirraça. Evguéni ainda ficou ali algum tem
po , depois foi a casa de Danila e pediu-lhe que marcasse encontro para o
dia seguinte . Ela apareceu e portou-se como sempre .
Assim se passou o Verão . Os encontros eram sempre na floresta e ape
nas uma vez, já no fim do Verão , numa barraca da eira, nas traseiras da
casa. Nem passava pela cabeça de Evguéni que aquele seu relaciona
mento pudesse ter qualquer importância para ele . Nem pensava nela.
Limitava-se a dar-lhe dinheiro . O que ele não sabia, nem suspeitava, era
que , na aldeia, já todos estavam ao corrente, tinham inveja de Stepanida
e que a famflia dela se aproveitava do seu dinheiro e a estimulava. As
sim, por influência do dinheiro e da participação dos familiares , em Ste
panida desapareceu por completo a noção do pecado . Como toda a gen
te lhe tinha inveja, pensava ela, o que estava a fazer só podia ser bom.
«Preciso disto para a saúde , mais nada - pensava Evguéni . - Diga
mos que é feio , e que toda a gente sabe, pelo menos alguns , embora nin
guém diga nada. Aquela mulher que a acompanha sabe , por isso já deve
ter espalhado a notícia. Mas o que posso fazer? Estou metido numa coi
sa muito má - pensava Evguéni - , mas não há remédio . O que vale é
que isto não vai durar muito .»
O que o embaraçava mais era o marido de Stepanida. A princípio, sem
saber porquê, imaginava o homem como um miserável sem préstimo , e
isso , em parte , servia-lhe de justificação . Mas , quando viu o marido , fi
cou pasmado . Era um sujeito galhardo , um janota, nada pior que Evgué
ni , ou talvez melhor. No encontro seguinte disse a Stepanida que tinha
visto o marido e ficara admirado com o homem donairoso que ele era.
- Não há outro como ele na aldeia - disse ela com orgulho .
Foi grande a surpresa de Evguéni . A partir de então tomou-se ainda
mais aflitivo pensar naquele marido . Um dia, passando por casa do Da-
nila, este disse-lhe no meio da conversa, de caras: .
- O Mikhaila há pouco perguntou-me: é verdade que a minha nora
se entende com o senhor? Respondi que não sabia. Mas sempre é melhor
com ele do que com um mujique qualquer, disse-lhe eu .
- E ele?
- Nada . . . Espera lá, disse ele , que se eu descubro dou uma sova a es-
sa cabra.
O Diabo e Outros Contos 17
Lisa era alta, delgada, comprida. Tudo nela era comprido: o rosto , o
nariz que não era saliente mas como que estendido de cima para baixo ,
os dedos , os pés . A sua tez era tema, de um branco amarelado , ligeira
mente tingida de cor; o cabelo comprido, loiro-escuro , macio e encara
colado, os olhos muito belos , límpidos e meigos , confiantes. Foram os
olhos , aliás , o que mais impressionou Evguéni . Quando pensava em Li
sa surgiam-lhe na imaginação aqueles olhos límpidos , meigos , confian
tes .
Era assim o aspecto físico de Lisa Ánnenskaia. Quanto ao espiritual ,
Evguéni não sabia nada, apenas via aqueles olhos . Uns olhos que pare
ciam dizer-lhe tudo o que ele tinha de saber. Ora, o sentido daqueles
olhos era o seguinte:
Desde os quinze anos , ainda no internato , Lisa apaixonava-se inces
santemente por todos os jovens atraentes que encontrava, e apenas fica
va animada e feliz quando se apaixonava. Quando saiu da escola conti
nuou a apaixonar-se por todos os homens jovens que encontrava e ,
evidentemente , mal conheceu Evguéni também s e enamorou dele . Era
aquele estado de paixão que dava aos olhos de Lisa a expressão que fas
cinou Evguéni .
Naquele mesmo Inverno já ela estava apaixonada por dois jovens , ao
mesmo tempo , e corava sempre que eles entravam em sua casa e também
quando alguém pronunciava os nomes deles na sua presença. Porém,
quando a mãe lhe insinuou que Evguéni lrténev tinha provavelmente in
tenções sérias , a sua paixão por ele aumentou de tal maneira que os ou
tros dois quase se lhe tomaram indiferentes; ora, quando lrténev come
çou a visitá-la, aparecendo nos bailes , nos serões , dançando com ela
mais do que com as outras , tudo indicando que desejava apenas saber se
Lisa gostava dele , a paixão da menina por lrténev tomou-se quase doen
tia, via-o em sonho e em vigília num quarto escuro , e todos os outros já
não existiam para ela. E quando ele a pediu em casamento e o compro
misso foi abençoado , quando se beijaram e se tomaram noivos , Lisa dei
xou de pensar fosse no que fosse que não ele , deixou de desejar fosse o
que fosse excepto estar com ele, para o amar e ser amada. Orgulhava-se
e enternecia-se , por ele e por ela própria, pelo amor recíproco , enlan
guescia de amor por ele. E ele também, quanto mais a conhecia mais a
amava. Nunca esperara que o amassem tanto , e isso intensificava ainda
mais o seu sentimento .
O Diabo e Outros Contos 19
«Sim, é ela, mas j á está tudo acabado, nem sequer tenho de olhar pa
ra ela. A criança talvez seja minha - passou-lhe pela cabeça. - Mas
não, não é, que disparate . Havia o marido , ela estava muitas vezes com
ele .» Evguéni nem queria fazer as contas . Precisou dela por razões de
saúde, e pagava-lhe, mais nada, não houve qualquer ligação entre eles a
não ser isso , e continua a não haver, não pode nem deve existir nada dis
so - assim decidira e assim seria. Não que estivesse a abafar a voz da
consciência, era a própria consciência que não lhe dizia nada. Assim, de
pois da conversa com a mãe e deste encontro , não voltou a recordá-la.
Também não tornou a vê-la. No dia de Todos os Santos , Evguéni casou
-se na vila e logo a seguir levou a jovem esposa para a aldeia.A casa es
tava bem arranjada, como é costume fazer-se para os recém-casados .
Mária Pávlovna queria sair de imediato , mas Evguéni e Lisa, principal
mente Lisa, convenceram-na a não o fazer, e a senhora ficou , mas
mudou-se para o anexo .
Assim começou para Evguéni uma vida nova.
Evguéni nunca mais a vira desde aquele dia em que a encontrara com
o bebé , porque Stepanida não ia trabalhar, tratava do filho , e Evguéni ra
ramente ia à aldeia.
Então , nessa manhã de véspera da Trindade , Evguéni levantou-se ce
do , um pouco depois das quatro , e foi para um arroteamento onde deve
riam espalhar fosforitos . Saiu de casa quando as mulheres-a-dias ainda
estavam fora, ocupadas a aquecer os caldeirões .
Evguéni voltou para o pequeno-almoço alegre e cheio de fome .
Apeou-se junto da cancela e entregou o cavalo ao jardineiro; fustigando
com o chicote as ervas altas e repetindo para si uma frase fortuita, como
nos acontece tantas vezes , dirigiu-se para a porta de casa. A frase que ele
repetia era: «Ü fosforito vai justificar» - mas justificar o quê e a quem,
isso não sabia nem queria pensar.
Estavam a bater um tapete no relvado . A mobília tinha sido toda tira
da para fora.
«Deuses do céu, que grandes limpezas a Lisa resolveu fazer. O fosfo
rito vai justificar. Ena, que dona de casa! Sim, uma linda dona de casa -
dizia Evguéni para si mesmo , imaginando-a vestida de roupão branco ,
com aquela cara radiante que lhe via sempre que olhava para ela. - Sim,
vou mudar de botas , porque senão o fosforito justifica, ou seja, vai chei
rar a estrume , e a linda dona de casa naquele estado . . . Qual estado? Pois ,
cresce dentro dela um menino, o novo Irténev - pensou . - Sim, o fos
forito justifica.» E , sorrindo para os seus pensamentos , ia empurrar com
a mão a porta do seu quarto . Mas não teve tempo de o fazer, porque a por
ta se abriu por si e Evguéni ia esbarrando com uma mulher que vinha de
encontro a si, com um balde na mão , as saias e as mangas bem arregaça
das , os pés descalços . Afastou-se para deixar passar a mulher, ela também
se afastou , ajeitando o lenço na cabeça com as costas da mão molhada.
- Vai , vai , eu não entro se estais a . . . - começou Evguéni mas , ao
reconhecê-la, calou-se .
Stepanida, sorrindo com os olhos , lançou-lhe um olhar. E , puxando a
saia para baixo, saiu pela porta.
«Que raio de coisa é esta? . . . O que é isto? . . . Não pode ser» , dizia Ev
guéni , carregando o sobrolho e sacudindo qualquer coisa como se fosse
uma mosca, descontente por ter reparado nela mas não conseguindo, ao
mesmo tempo, desviar os olhos do seu corpo a mexer-se num andar bam
boleante e enérgico com os pés descalços , dos seus braços , ombros , das
pregas bonitas da camisa e da saia vermelha arregaçada até muito acima
das barrigas das pernas brancas .
26 Lev Tolstói
10
passava nada. A hesitação fez com que Lisa pensasse: alguma coisa o
afligia, e muito; e isso era tão evidente para ela como uma mosca no lei
te , mas Evguéni calava-se .
11
- Vassíli Nikoláevitch !
- Sim, meu senhor!
- Preciso de falar consigo .
- Diga, meu senhor.
- Acabe primeiro o que estava a fazer.
- E não o traz porquê? - perguntou Vassíli Nikoláevitch ao vaqueiro.
- É muito pesado , Vassíli Nikoláevitch .
- De que se trata? - perguntou Evgüéni .
- Uma vaca pariu no meio do prado . Está bem, eu mando atrelar um
cavalo . Diz ao Nikolai que atrele a Careca , pode ser à carroça.
O vaqueiro saiu .
- Oiça - começou Evguéni , corando e sentindo que corava - , oiça
o que eu lhe quero dizer, Vassíli Nikoláevitch . Ouve aqui umas coisas ,
quando eu ainda era solteiro , uns pecadilhos . . . Não sei se ouviu falar . . .
Vassíli Nikoláevitch, com os olhos sorridentes e, pelos vistos , com pe
na do patrão , disse:
- Refere-se à Stepanida?
- Sim. Então . . . por favor, não lhe dê trabalho lá em casa. Tem de
compreender, é muito desagradável para mim . . .
- Mas acho que foi por ordem de Vânia, o escriturário .
- Então , por favor. . . Bem, como é , vão acabar de espalhar o sulfuri-
to que ainda falta? - perguntou Evguéni para esconder a atrapalhação .
- Vou agora mesmo para lá.
Assim acabou a conversa. Evguéni acalmou-se , com a esperança de
que tudo voltaria ao habitual do último ano , em que nunca a via. «Além
disso , Vassíli Nikoláevitch vai falar com o escriturário , este vai dizê-lo a
Stepanida, ela perceberá que eu não quero mais nada com ela» , pensava
Evguéni , satisfeito por ter conseguido ganhar coragem e dizer o que era
preciso a Vassíli Nikoláevitch , por mais que lhe custasse. «É melhor as
sim, é melhor do que a dúvida, a vergonha» . Arrepiava-se só de recordar
o crime no seu coração.
12
entre as mães . É verdade que custa muito , sobretudo a ele , com a sua
sensibilidade e nobreza, ouvir constantemente essas insinuações hostis e
de mau tom» , pensava Lisa.
Chegou o dia da Trindade . O tempo estava excelente , e as mulheres da
aldeia cumpriam a tradição de , no caminho da floresta aonde iam trançar
coroas , pararem ao pé da casa senhorial a cantar e a dançar. Mária Pá
vlovna e Varvara Alekséevna, todas ataviadas e com as sombrinhas nas
mãos , saíram a terreiro e aproximaram-se da roda das dançarinas . Com
elas saiu também o tio de Evguéni , um bêbado depravado e balofo que
passava todo o Verão em sua casa.
Como sempre , o centro da festa era o círculo colorido de raparigas e
mulheres jovens e , à volta delas , girando à sua volta como planetas e sa
télites, as rapariguinhas de mãos dadas , com os vestidinhos de chita no
va a farfalharem, e os garotos a correrem por todos os lados e a rirem-se
de tudo e de nada, e os rapazes adultos com as suas poddiovkasl azuis e
pretas , de bonés e camisas vermelhas , cuspindo sem parar sementes de
girassol , e os criados , e a gente de fora observando de longe a roda a bai
lar. As duas senhoras aproximaram-se da roda, e também Lisa, atrás de
las , de vestido azul e laço da mesma cor na cabeça, mangas largas don
de assomavam os seus braços compridos , brancos , de cotovelos
angulosos .
A Evguéni não apetecia sair, mas era ridículo esconder-se . Com o ci
garro nos dedos , desceu os degraus da entrada, trocou vénias com os ra
pazes e os mujiques , meteu conversa com um deles . As mulheres , entre
tanto , berravam a plenos pulmões a cantiga da dança, sapateavam e
batiam as palmas ao ritmo da dança.
- A senhora está a chamá-lo - disse um rapaz aproximando-se de
Evguéni que não ouvira a voz da mulher. Lisa convidava-o para assistir
à dança e indicava-lhe uma das dançarinas de que gostava mais. Era Ste
panida. Larga, enérgica, com as bochechas coradas , alegre, envergando
vestido amarelo , colete de veludo e lenço de seda. Pelos vistos , dançava
bem. Evguéni não quis ver nada.
- Sim , sim - dizia ele , tirando e pondo a luneta. - Sim, sim - re
petia. «Quer isto dizer que não posso livrar-me dela» , pensava.
Não olhava para ela porque temia o seu fascínio , por isso o pouco que
via dela, de relance , parecia-lhe ainda mais atraente . Percebeu também
- pelo olhar brilhante de Stepanida - que ela o via e estava cienté de
que ele a admirava. Evguéni ficou ali apenas o tempo necessário para
não parecer inconveniente e, vendo que Varvara Alekséevna a chamava
O Diabo e Outros Contos 31
13
«Meu Deus , meu Deus ! O que hei-de fazer? Estarei mesmo perdido?
- interrogava-se . - Já não será possível tomar medidas? Mas tenho de
fazer alguma coisa. Não penses nela - ordenava a si próprio . - Não
penses ! » Mas logo começava a pensar e a vê-la, e a imaginar a sombra
do ácer.
Lembrou-se ter lido em tempos uma coisa sobre um eremita: para ul
trapassar a tentação por uma mulher que tinha de curar impondo-lhe a
mão , pôs a outra sobre o braseiro e queimou os dedos . «Sim, antes quei
mar os dedos do que caminhar para a perdição .» Então , sozinho no quar
to , acendeu um fósforo e pôs o dedo sobre a chama. «Üra bem, pensa
agora nela - disse com ironia a si mesmo . Sentiu a dor, retirou o dedo
negro do fumo , deitou fora o fósforo e riu-se de si . - Que disparate . Não
é isto que é preciso fazer. É necessário tomar medidas para não a ver, ir
-me embora, ou fazer com que ela se vá embora. Sim, afastá-la daqui !
Dar dinheiro ao marido para que se mude para a cidade ou para outra al
deia. Mas iriam saber disso , iriam falar. Não interessa, sempre é melhor
do que este perigo . Sim, tenho de o fazer» , pensava, ao mesmo tempo
que não desviava os olhos dela. «Para onde foi?» , alarmou-se . Ela viu-o
à janela, de certeza, e agora, depois de lhe lançar um olhar, pega na mão
de uma mulher e vai para o jardim, abanando a mão . Evguéni , sem saber
porquê nem para quê , impelido apenas pelos seus pensamentos , foi para
o escritório .
Vassíli Nikoláevitch, de sobrecasaca festiva e cabelo untado de bri
lhantina, tomava chá na companhia da mulher e de uma convidada com
um lenço todo cheio de ornamentos .
- Podemos falar, Vassíli Nikoláevitch?
- Faça o favor. Já tomámos chá.
- Não , é melhor sairmos .
- Está bem. Deixe-me só pegar no boné . Tânia, cobre o sàmovar -
disse Vassíli Nikoláevitch ao sair, bem-disposto .
Evguéni tinha a impressão de que o homem estava bebido , mas não
importava, talvez fosse até preferível , achá-lo-ia mais receptivo à sua si
tuação .
- Vassíli Nikoláevitch , quero falar consigo do mesmo assunto - co
meçou Evguéni . - É a propósito daquela mulher.
- Mas porquê? Já dei ordens para que não a chamassem para traba
lhar lá em casa.
- Não é isso, estou a pensar noutra coisa e queria o seu conselho.
Não será possível mandá-los embora, à família toda?
O Diabo e Outros Contos 33
14
vara Alekséevna passou por ele com um ar tão acusador e sombrio que
Evguéni teve medo .
- Como está ela?
- Como? O senhor ainda pergunta? Está como o senhor desejava que
ela estivesse quando a obrigou a saltar os valados .
- Varvara Alekséevna ! - exclamou Evguéni . - Isto é insuportável .
Se a senhora quer martirizar as pessoas e envenenar-lhes a vida . . . -
Queria dizer-lhe «Vá para outro lado qualquer» , mas conteve-se . - Co
mo é possível não se sentir mal a dizer essas coisas?
- Agora já é tarde .
E , sacudindo triunfalmente a touca, Varvara Alekséevna passou pela
porta.
A queda, de facto , foi má. Torceu muito o pé , havia o perigo de mais
um aborto . Toda a gente sabia que não havia nada a fazer senão mantê
-la deitada e imóvel . Mesmo assim, resolveram chamar o médico .
«Estimadíssimo Nikolai Semiónovitch - escreveu-lhe Evguéni - , o
senhor tem sido sempre tão simpático para connosco que espero não re
cuse agora vir dar assistência à minha mulher. Ela . . . etc . , etc .» Depois
foi à cavalariça dar ordens respeitantes aos cavalos e à carruagem. Era
preciso preparar também cavalos para trazer o doutor e ainda outros pa
ra o levar. Quando a casa é modesta, isso não pode ser feito de ânimo le
ve , é necessário arranjar maneira de o fazer. Depois de tratar de tudo e
mandar o cocheíro buscar o médico , já passava das nove quando Evgué
ni voltou para casa. Lisa estava deitada e garantia que estava bem, que
não lhe doía nada; mas Varvara Alekséevna, sentada por trás do can
deeiro com um quebra-luz improvisado de pautas musicais para proteger
Lisa da luz, tricotava um grande cobertor vermelho com o ar de quem di
zia claramente: depois do que aconteceu , não há nem pode haver paz
nesta casa. Ora, aconteça o que acontecer, eu cumprirei o meu dever.
Evguéni sentia muito bem esse ambiente mas , para fingir que não re
parava, contava com animação e ar despreocupado como preparara os
cavalos e como a égua Kávuchka se portava muito bem atrelada ao lado
esquerdo .
- Sim, o treino dos cavalos num momento de aflição vai mesmo a
tempo . Não me admirava nada que também atirassem com o doutor pa
ra uma vala - observou Varvara Alekséevna, olhando para o seu traba
lho por baixo da luneta e pondo-o mais perto da luz .
- Era preciso preparar tudo para mandar a carruagem. Fiz o melhor
que pude .
36 Lev Tolstói
15
16
var o medicamento a uma mulher doente , à hora do almoço , por isso lhe
pedia que o fizesse .
Enquanto embrulhavam o medicamento , passaram-se uns cinco mi
nutos . Depois, quando saiu , não se atreveu a ir directamente para a ca
bana, podiam vê-lo de casa. Porém , mal entrou no espaço em que já não
era visível , deu meia-volta e dirigiu-se para a cabana . Já a via em ima
ginação , parada no meio da cabana, com o seu sorriso alegre; mas , à
primeira vista, Stepanida não estava, e nada indicava que estivesse .
«Não apareceu» , pensou ele , ou então nem sequer percebeu bem o que
eu lhe disse . Resmunguei-lhe aquelas palavras como que para mim, co
mo se tivesse medo que ela as ouvisse . «Üu talvez não quisesse? Por
que razão haveria eu de fantasiar que ela se atiraria de imediato ao meu
pescoço? Tem o marido; só o canalha de mim é que tem a mulher em
casa, uma mulher muito boa, e anda atrás de uma mulher alheia.» As
sim cogitava Evguéni , sentado na cabana de colmo , com um buraco em
cima por onde pingava a água. «Que felicidade se ela viesse ! Sozinhos
aqui , com esta chuva. Queria abraçá-la, só uma vez , e depois fosse o
que Deus quisesse . Ah , pois - passou-lhe de repente pela cabeça - ,
posso ver se ela esteve aqui pelas pegadas .» Examinou a vereda trilha
da e sem ervas até à cabana: via-se ainda a impressão de um pé descal
ço , e que escorregara. «Sim, esteve cá. Mas , agora, nada feito . Vou ter
com ela, onde quer que se encontre . Vou de noite .» Ainda se demorou
muito na cabana, saiu de lá extenuado e mortificado . Levou o medica
mento à enferma, voltou para casa, meteu-se no quarto e deitou-se até
à hora do almoço .
17
18
guéni foi à cidade arranjar dinheiro para a viagem, deu ordens sobre a
gestão da propriedade na sua ausência, tomou-se de novo um homem
animado e muito próximo da mulher, como que ressuscitou moralmente .
Assim, sem ter visto uma única vez Stepanida, partiu com a mulher pa
ra a Crimeia. O casal passou ali dois meses excelentes . As novas sensações
eram tantas que Evguéni como que apagou todo o passado da memória, ou
pelo menos assim lhe pareceu. Na Crimeia encontraram velhos conheci
dos , tomaram-se bons amigos deles , fizeram novos conhecimentos . A vi
da na Crimeia era uma festa permanente para Evguéni, além de edifican
te e útil . Ficaram amigos do antigo decano da nobreza da sua província,
um homem inteligente, liberal, que gostou de Evguéni, o elucidou e o con
verteu às suas ideias . Em finais de Agosto, Lisa deu à luz uma menina,
criança perfeitinha e saudável, e o parto, inesperadamente , foi muito fácil.
Os Irténev regressaram em Setembro a casa. Chegaram à herdade qua
tro pessoas: eles e a criança com a ama, porque Lisa não podia ama
mentar. Evguéni voltava livre dos horrores do passado , um homem novo
e feliz . Depois de sofrer tudo o que os maridos sofrem quando a mulher
está em trabalho de parto , começou a amar Lisa ainda mais . Quando pe
gava na bebezinha ao colo sentia qualquer coisa nova, engraçada, muito
agradável , como que titilante . Também surgiu na sua vida um elemento
novo , graças à amizade com Dumtchin (o antigo decano) , um interesse
novo , fora dos trabalhos na propriedade: a Administração Rural . Em par
te foi por ambição e, em parte , pela consciência do dever social que Ev
guéni se meteu nisso . Estava prevista uma reunião extraordinária para
Outubro em que ele devia ser eleito . Foi uma vez à cidade e outra vez a
casa de Dumtchin e ficou tudo resolvido .
Abandonaram-no definitivamente os tormentos da tentação e da luta
contra a tentação, quase não conseguia reconstituí-los na sua imagina
ção . Tudo aquilo lhe parecia uma espécie de ataque de loucura que o
atingira havia muito .
Sentia-se de tal maneira livre a esse respeito que não teve medo de fa
zer perguntas ao encarregado quando ficou a sós com ele . E, como o ho
mem estava ao corrente de tudo , também não se envergonhou de lhe per�
guntar:
- Diga-me , o Sídor Petchnikov continua fora?
- Sim, continua na cidade .
- E a mulher?
- Ora, frívola até mais não ! Agora anda metida com o Zinóvi . Com-
pletamente desencaminhada.
44 Lev Tolstói
19
20
prio, e então já não será necessário matar nenhuma delas .» Ficou apavo
rado porque sentia que era a única saída possível . «Tenho um revólver.
Serei capaz de me matar? Nunca pensei nisso , vai ser estranho.»
Voltou para o seu quarto e abriu o armário onde guardava o revólver.
Mal o abriu , entrou a mulher.
21
beça que a causa tivesse alguma coisa a ver com aquela confissão que
Evguéni lhe fizera dois meses antes .
Varvara Alekséevna afirmava que já previa aquilo, que sempre o pre
dissera, que era evidente, que bastava ouvi-lo discutir. Lisa e Mária Pá
vlovna não conseguiam perceber porque acontecera essa desgraça, mas
não acreditavam no que diziam os doutores: que Evguéni era doente men
tal . Não concordavam com isso , ambas , porque sabiam que ele era o mais
sensato dos homens , mais do que centenas de pessoas que elas conheciam.
Efectivamente, se Evguéni Irténev era doente mental , então todas as
pessoas são doentes mentais , e , entre esses dementes , os mais incontes
táveis são os que vêem os sinais de loucura nos outros e não reparam em
si próprios .
Isto aconteceu nos anos setenta, no dia a seguir ao invernoso São Ni
colau . Houve uma festa paroquial , e o estalajadeiro da aldeia, Vassíli An
dreitch Brekhunov, comerciante do segundo grau, não pôde ausentar-se
da igreja - era zelador - , e depois , em casa, teve de receber e servir o
almoço a parentes e amigos . Quando , finalmente , os últimos convidados
saíram, Vassíli Andreitch começou a preparar-se para ir contratar a com
pra de uma floresta com um proprietário rural vizinho , negócio que an
dava a combinar havia muito . Estava com pressa, não fossem os nego
ciantes da cidade ultrapassá-lo nessa compra lucrativa. O jovem senhor
pedia apenas dez mil rublos pela floresta, e isso porque Vassíli Andreitch
lhe oferecera sete mil (um terço do valor real da mata) . Talvez fosse pos
sível a Vassíli Andreitch conseguir um preço ainda mais baixo , uma vez
que a floresta se situava nas suas redondezas e estabelecera-se havia
muito uma regra entre todos os comerciantes rurais de acordo com a qual
nenhum negociante rural podia subir os preços na área de outro; Vassíli
Andreitch, no entanto, como soube que os compradores da cidade tam
bém se interessavam pela floresta de Goriátchkino , resolveu ir ajustar o
negócio o mais depressa possível . Assim, mal a festa terminou , tirou da
arca setecentos rublos do seu dinheiro , juntou-lhes dois mil e trezentos
do dinheiro da igreja, que guardava em casa, recontou os três mil rublos
com cuidado , meteu-os na carteira e ficou pronto para partir.
O jornaleiro Nikita, o único sóbrio de entre todos os trabalhadores de
Vassíli Andreitch , apressou-se a ir atrelar. Nikita não bebeu neste dia por
que era um bêbado e, desde a véspera do tempo da abstinência, em que
52 Lev Tolstói
los prazos , acertar contas , pagar multas . . . Nós fazemos tudo honesta
mente . Tu andas a servir para mim, eu não te deixo ficar mal .
Ao dizer isto, Vassíli Andreitch estava sinceramente convencido de
que era um benfeitor de Nikita; aliás , sabia falar de forma muito persua
siva e todas as pessoas dependentes do seu dinheiro, incluindo Nikita,
fortaleciam essa sua convicção de que não os enganava, antes lhes fazia
favores.
- Sim , eu percebo , Vassíli Andreitch, e sirvo-o com todas as minhas
forças , como se fosse o meu próprio pai , percebo muito bem - respon
dia Nikita, ciente , na verdade , de que Vassíli Andreitch o enganava mas
sentindo ao mesmo tempo que nem valia a pena esclarecer as contas com
ele enquanto não arranjasse outro lugar e conformando-se com o que lhe
davam.
Assim, ao receber a ordem para atrelar, Nikita executou-a com a pron
tidão e a alegria habituais , entrando no barracão com o seu passo enér
gico e leve , tirando do prego a cabeçada de correias e borla, pesada, e
com um freio em que matraqueavam os arozinhos de madeira, e dirigiu
-se para o estábulo onde estava, separado dos outros , o cavalo que Vas
síli Andreitch mandara atrelar.
- Então , tiveste saudades minhas , meu parvinho? - disse Nikita,
respondendo aos relinchos débeis de saudação com que o recebia o ca
valo meão, bem feito, com a garupa um pouco baixa, zaino , sozinho no
estábulo . - Xó , xó ! Espera lá, primeiro vou-te dar de beber - falava
com o cavalo como quem fala com gente, como se ele compreendesse a
fala humana, e , limpando-lhe com a aba do casaco os lombos gordos
com um sulco a todo o comprido , cobertos de pó, pôs o freio na cabeça
jovem e bonita do cavalo , libertou-lhe as orelhas e o topete , tirou-lhe o
cabresto e levou-o até ao poço.
O 'Zaino, depois de sair com cuidado do estábulo por causa da cama
da alta de estrume que cobria o chão , saracoteou-se e escouceou , fingin
do que queria acertar com a pata traseira em Nikita que troteava atrás de
le a caminho do poço .
- Brinca, brinca, seu traquinas ! - repetia Nikita que conhecia bem
o cuidado com que o 'Zaino levantava a pata traseira e apenas lhe tocava
ao de leve no casaco de pele de ovelha; Nikita adorava aquele hábito do
cavalo .
Depois de se saciar com água gelada, o cavalo suspirou , mexeu os bei
ços duros e molhados donde caíam gotas transparentes para a selha e
imobilizou-se , como que pensativo; depois , bruscamente , bufou alto.
54 Lev Tolstói
- Já sei , já sei , se não queres mais não bebas , é contigo; mas escusas
de pedir. - Nikita explicou ao 'Zaino, muito séria e ponderadamente , o
seu procedimento; e , dando puxões à rédea do cavalo alegre e jovem que
batia com os cascos sonoros no chão , voltou em passo de corrida para o
barracão .
Não se via nenhum dos moços que trabalhavam ali , apenas um ho
mem de fora, marido da cozinheira, que viera à festa.
- Amigo, vai lá perguntar, se fazes favor - disse-lhe Nikita. - Que
trenó é que eu atrelo , o grande ou o pequenito?
O marido da cozinheira entrou na casa, de fundamentos altos e telha
do coberto de ferro , e voltou rapidamente com a resposta: atrelar o trenó
pequeno . Nikita, entretanto, já tinha posto a coelheira, o cilhão com re
bites e , levando numa mão o arco leve e pintado , conduzia com a outra
mão o cavalo para o sítio onde estavam os dois trenós , junto do barracão .
- O pequenito, está bem, seja o pequenito - disse ele e meteu entre
os varais o inteligente animal que não deixava de fingir que queria mordê
-lo; depois , com a ajuda do marido da cozinheira, começou a atrelar.
Quando estava tudo pronto e faltava apenas a brida, Nikita mandou o
marido da cozinheira buscar palha ao barracão e a serapilheira ao celeiro .
- Assim está bem. Vê lá, não te abolses ! - dizia Nikita, aplainando
na carroça a palha de aveia acabada de malhar que lhe trouxera o homem
da cozinheira. Agora vamos pôr a esteira e, por cima, a serapilheira. -
Assim está bem, até dá gosto um homem sentar-se aqui - ia dizendo Ni
kita enquanto ajeitava a serapilheira a toda a volta do assento .
- Obrigado , querido amigo - disse Nikita ao marido da cozinheira
- , isto a dois dá um jeitão . - E, desenlaçando a brida de couro com o
anel na extremidade , Nikita sentou-se na boleia e tangeu o bom do ca
valo , ansioso por andar, metendo-o pelo estrume gelado do quintal até ao
portão .
- Ti Nikita, ó tio , tio ! - gritou nas suas costas a voz fininha de um
garoto de sete anos que chegava apressadamente ao quintal artilhado
com a sua peliça preta e curta, o gorro quente e umas botas de feltro
brancas a estrear. - Deixa-me sentar aí - pediu , abotoando a peliça.
- Está bem, anda cá, salta para cá, meu pombinho - disse Nikita e,
parando o cavalo , sentou no trenó o filho do patrão, pálido e magrinho ,
com a carita a irradiar alegria; depois , fez sair o trenó para a rua.
Passava das duas , o frio chegava aos dez graus negativos , o céu esta
va escuro , soprava um vento cortante. Uma nuvem baixa e negra tapava
metade do céu . O quintal era abrigado e calmo , mas na rua o vento fazia-
O Diabo e Outros Contos 55
- Está bem, já que a velha assim quer. Mas vai vestir então um casa
co mais quente - observou Vassíli Andreitch, voltando a sorrir e pis
cando o olho para o eterno casaquinho de Nikita, roto nos sovacos e nas
costas , de abas esfarrapadas , seboso e coçado , que tinha passado por tu
do na sua longa vida.
- Eh , querido amigo , sai para fora, tem mão no. cavalo ! - gritou Ni
kita para o marido da cozinheira.
- Eu é que seguro nele , eu ! - exclamou o miúdo com a sua voz fi
ninha, tirando dos bolsos as mãozinhas vermelhas e agarrando-se às ré
deas de couro frias .
- Mas não demores muito à procura do teu agasalho de gala, depres
sa! - gritou Vassíli Andreitch a Nikita em tom de gozo .
- É um instante , Vassíli Andreitch ! - respondeu Nikita e , nas suas
botas velhas cambadas para dentro e reforçadas com solas de feltro, cor
reu através do quintal para a isbá dos criados .
- Eh , Arínuchka, tira-me o cafetã de cima do fogão , vou com o pa
trão ! - pediu Nikita, entrando e tirando a faixa do prego .
A cozinheira, que já acordara da sesta depois do almoço e estava ago
ra a aquecer o samovar para o marido , recebeu Nikita com alegria e, con
tagiada pela azáfama dele , atarefava-se também de um lado para o outro .
Pegou no cafetã de pano fraquinho e muito usado que estava a secar ao
fogão e começou a sacudi-lo e a alisá-lo energicamente .
- Agora ficas mais à vontade com o teu homem -'---- disse Nikita à co
zinheira, uma vez que tinha o hábito de , por benevolente delicadeza, di
zer sempre alguma coisa simpática à pessoa com quem, por acaso , fica
va a sós .
Depois , cingindo-se com a faixa estreitinha, de fios embaraçados , en
colheu a barriga magra e apertou bem o casaco .
- Assim é que é - disse, dirigindo-se à faixa e não à cozinheira, e
enfiando as pontas na cintura. - Assim não te desatas ! - e , levantando
e baixando os ombros para que os braços se movessem livremente, en
fiou o cafetã por cima do casaco, voltou a dar aos braços e a retesar as
costas , para dar folga aos movimentos , bateu com as mãos por baixo dos
sovacos e tirou as luvas da prateleira. - Assim é que é .
- Havias de calçar outras botas , Nikita, essas estão todas esburaca-
das - observou a cozinheira.
Nikita parou , bateu na testa.
- Pois havia . . . Mas não faz mal , o caminho é curto !
E correu para fora.
O Diabo e Outros Contos 57
- Não vais ter frio , Nik:ita? - perguntou a patroa quando ele se apro
ximou do trenó .
- Qual frio , quentinho - respondeu Nikita ajeitando a palha por ci
ma dos pés e guardando por baixo o chicote, inútil para um cavalo da
quela categoria.
Vassíli Andreitch já se acomodara no trenó, ocupando com as costas
agasalhadas por duas peliças quase toda a parte traseira do trenó , de es
paldar curvo, e logo a seguir, pegando na rédea, tangeu o cavalo . Nikita
saltou para o trenó já em movimento , sentou-se à frente , do lado esquer
do, e estendeu um pé para fora.
tarem por uma coisa de nada, e, sem qualquer pausa, chamou à razão o
cachorro enquanto atava o 'Zaino.
- Assim está bem - disse, sacudindo às palmadas a neve da roupa.
- Irra , que refilão ! - acrescentou , dirigindo-se ao cão . - Deixa!
Deixa-te disso, parvinho . Preocupas-te em vão . Nós não somos ladrões ,
somos gente d e bem . . .
- Existem três conselheiros domésticos , como reza o Paulson3 -
disse o rapaz, enquanto , com o braço possante , arrastava o trenó para de
baixo do alpendre .
- Como assim, conselheiros? - perguntou Nikita.
- Então , é o que vem escrito no Paulson: o ladrão ronda a casa, o cão
ladra, é para ter cuidado . Se o galo canta, toca a levantar. Se o gato lava
o focinho, significa que vai chegar uma visita querida, então prepara-te
para a receberes - disse o rapaz sorrindo .
Petrukha era alfabetizado , sabia quase de cor o único livro que tinha,
o de Paulson, e gostava de citar as máximas adequadas a cada ocasião ,
principalmente se estava bebido , como hoje.
- É verdade - confirmou Nikita.
- Está com frio , tiozinho?
- Um bocado - respondeu Nikita. E, atravessando o quintal , foram
para a isbá.
A casa onde Vassíli Andreitch foi recebido era uma das mais ricas
da aldeia. A família possuía cinco lotes de lavoura, e ainda arrendava
outros . Havia seis cavalos , três vacas , dois vitelos , vinte ovelhas . Era
uma família de vinte e dois membros : quatro filhos casados , seis netos
(um deles já casado , o Petrukha, precisamente) , dois bisnetos , três ór
fãos e quatro noras com filhos . Era uma das raras casas em que ainda
não se haviam feito as partilhas ; mas já começara o surdo e sub
-reptício trabalho da discórdia, despoletado , como era costume , pelas
mulheres , e que em breve deveria levar inevitavelmente às partilhas .
Dois filhos viviam em Moscovo , eram aguadeiros , um servia na tropa.
De momento estavam em casa o velho , a velha , o segundo filho e o fi
lho mais velho , vindo de Moscovo para as festas , e todas as mulheres
e crianças ; além dos familiares , havia dois convidados : um compadre
e um vizinho .
68 Lev Tolstói
Nikita não disse nada, apenas abanou a cabeça e, deitando com cuida
do o chá no pires , começou a aquecer no vapor os dedos inchados do tra
balho . Depois , trincando um torrão minúsculo de açúcar, fez uma vénia
aos donos da casa e disse:
- À vossa saúde - e sorveu o líquido retemperador.
- Se alguém nos acompanhasse até ao cruzamento . . . - disse Vassí-
li Andreitch .
- Porque não? Pode ser - disse o filho mais velho . - O Petrukha
atrela e vai convosco .
- Vai lá então , meu amigo , vai atrelar. Fico-te muito agradecido.
- Ora essa, pombinho - disse a carinhosa velha. - É um prazer
ajudar-vos .
- Petrukha, vai atrelar a égua - mandou o filho mais velho .
- É para já - disse Petrukha com um grande sorriso. Arrancou o
chapéu do prego e correu para fora.
Enquanto atrelavam a égua, a conversa da família voltou ao ponto em
que tinha sido interrompida com a chegada de Vassíli Andreitch . O ve
lho queixava-se ao vizinho , regedor da aldeia, de um filho , o terceiro,
que não lhe tinha mandado nada para as festas , só um lenço francês pa
ra a mulher.
- Estes jovens , já não se pode com eles - dizia o velho .
- É bem verdade - anuiu o compadre - , não há nada a fazer com
eles . Ficaram todos inteligentes . Olha o Diómotchkin: partiu o braço ao
pai . Foi também por ser inteligente de mais , é de supor.
Nikita escutava, olhava para as caras deles e , provavelmente , também
gostaria de tomar parte na conversa, mas estava muito concentrado no
chá e apenas acenava aprovadoramente com a cabeça. Bebia copo atrás
de copo e sentia cada vez mais calor, cada vez mais prazer. A conversa
era demorada, o tema era sempre o mesmo: o mal das partilhas - e, pe
los vistos , não era uma conversa abstracta mas incidia sobre as partilhas
concretas naquela casa, exigidas pelo segundo filho , sentado ali à mesa
num silêncio carrancudo . Era sem dúvida um ponto doloroso e que inte
ressava a toda a família, mas , por conveniência, não se discutia aberta
mente essa questão familiar na presença de estranhos . Por fim o velho
não aguentou e , com as lágrimas nos olhos , começou a dizer que não dei
xaria repartir a casa enquanto fosse vivo , que a casa estava bem, graças
a Deus , mas logo que houvesse partilhas ficariam todos na miséria.
- Como os Matvéev - disse o vizinho . - Era uma casa boa, como
deve ser, fizeram as partilhas e agora ninguém tem nada.
O Diabo e Outros Contos 71
na insistir. «Se calhar tenho medo por ser velho , mas eles vão conseguir
- pensava. - Além disso , assim podemos deitar-nos a horas , sem mais
preocupaç ões .»
Quanto a Petrukha, não pensava no perigo: conhecia perfeitamente o ca
minho e o resto do terreno, além disso os versos sobre a neve que gira em
torvelinho animavam-no porque exprimiam com exactidão o que estava a
passar-se na rua. Ora, no tocante a Nikita, não lhe apetecia mesmo nada
meter-se à estrada, mas havia muito que já estava habituado a não ter von
tade própria e a servir somente os outros . Por isso ninguém tentava detê-los.
Vassíli Andreitch , com as suas duas peliças , estava bem quentinho , so
bretudo depois de se ter esforçado naquele monte de neve; mesmo assim,
foi percorrido por calafrios nas costas quando percebeu que era necessá
rio passar a noite no local . Para se acalmar, sentou-se no trenó e pôs-se
a procurar os cigarros e os fósforos .
Nikita, entretanto , desatrelava o cavalo . Desprendeu o ventrilho, o ci
lhão , tirou a rédea e o arco , sempre a falar com o Z,a,ino , animando-o .
- Sai , sai - dizia, tirando-o dos varais . - Ficas aqui amarrado .
Tiro-te o freio, dou-te penso - assim falava com ele , fazendo o que es
tava a dizer. - Vais petiscando, entreténs-te .
Mas os discursos de Nikita, pelos vistos , não acalmavam o ·Z,a,ino. Es
tava inquieto, mexia as patas , encostava-se muito ao trenó , pondo-se de
garupa para o vento , e esfregava a cabeça contra a manga de Nikita.
Era como se o Z,a,ino não quisesse cometer a indelicadeza de recusar
a palha que Nikita lhe metia debaixo do focinho , por isso abocanhou
bruscamente um pouco , mas logo a largou , e o vento depressa a espa
lhou , a levou e a cobriu de neve .
- Agora vamos fazer uma marca - disse Nikita, e virou o trenó de
frente para o vento e, atando os varais com o tirante , levantou-os e
puxou-os para a parte dianteira do trenó . - Assim, se a neve nos cobrir,
há-de haver boa gente que vai ver os varais e desenterrar-nos - disse
Nikita, batendo com as luvas e calçando-as . - Foi o que nos ensinaram
os velhos .
Vassíli Andreitch , entretanto , desatando a faixa e cobrindo-se com as
abas da peliça, riçava os fósforos de enxofre na caixinha de aço , uns atrás
dos outros , mas as mãos tremiam-lhe , os fósforos não ardiam ou eram
apagados pelo vento no momento em que os aproximava do cigarro . Por
fim houve um que se acendeu e , por momentos , alumiou-lhe o pêlo da
peliça, a mão com o cachucho de ouro no dedo anelar dobrado e a palha
de aveia a espreitar da serapilheira coberta de neve; o cigarro acendeu
-se. Deu duas fumaças ávidas , engoliu o fumo , soltou-o através do bigo
de, quis continuar a fumar mas o vento arrancou-lhe o cigarro dos dedos
e levou-o na mesma direcção da palha.
Mesmo assim, aquelas poucas fumaças animaram Vassíli Andreitch .
- Muito bem, passamos aqui a noite e acabou-se ! - disse com ar re
soluto . - Mas espera lá, ainda vou fazer uma bandeira - disse ele pe
gando no lenço que tinha atirado para dentro do trenó depois de o tirar
78 Lev Tolstói
las . Mas logo percebeu clara e indubitavelmente que tudo isso - o íco
ne, o caixilho, as velas , o sacerdote , a liturgia - era muito importante e
necessário lá, na igreja, mas que no meio da neve não o podia ajudar, que
entre as velas e a liturgia e a sua desastrosa situação actual não havia
nem podia haver qualquer ligação . «Não desanimar - pensou - , é pre
ciso seguir as pegadas do cavalo , antes de a neve as cobrir completa
mente - passou-lhe pela cabeça. - O cavalo vai mostrar-me o cami
nho , e se calhar até vou conseguir apanhá-lo . E nada de pressas , porque
se me precipito , a desgraça ainda é pior.» Apesar da sua intenção de ir
com calma, Vassíli Andreitch desatou a correr em frente com precipita
ção , caindo e levantando-se vezes sem conta. As pegadas do cavalo iam
-se tornando quase imperceptíveis nos sítios onde a neve não era tão al
ta. «Estou tramado - pensou Vassíli Andreitch - , se perco as pegadas
e não apanho o cavalo .» No mesmo instante , olhando em frente , viu uma
coisa negra. Era o Zaino, e não só o Zaino mas também o trenó e os va
rais com o lenço pendurado . O cavalo , com a retranca e a serapilheira
descaídas para o lado , não estava no antigo lugar mas mais perto dos va
rais e abanava a cabeça puxada para baixo pela rédea que pisava. Afinal ,
Vassíli Andreitch atolara-se na mesma depressão em que se tinha enter
rado da outra vez , ainda com Nikita, quando o cavalo o levara para trás ,
até ao trenó; e tinha-se apeado , afinal , a não mais de cinquenta passos do
sítio em que estava o trenó .
prar o grão trazido pelos mujiques , e dispôs-se a agir. O seu primeiro tra
balho deveria ser libertar a pata do cavalo, o que fez, e , soltando a rédea,
voltou a prender o lii ino ao grampo de ferro da parte dianteira do trenó
e , quando foi para trás do cavalo pôr em ordem a retranca, o cilhão e a
serapilheira, notou qualquer coisa a mexer-se dentro do trenó e , logo a
seguir, viu a cabeça de Nikita a surgir do monte de neve que o cobria.
· Nikita, com um esforço sobre-humano - porque já estava certamente a
regelar - , soergueu-se e sentou-se, abanando a mão diante do nariz de
maneira estranha, como que a afugentar as moscas . Agitava a mão e di
zia qualquer coisa (pareceu a Vassíli Andreitch que Nikita chamava por
ele) . Vassíli Andreitch largou a serapilheira, sem a ter ajeitado no lombo
do cavalo, e aproximou-se do trenó .
- O quê? - perguntou . - O que estás a dizer?
- Estou a mor. . . morrer, é isso - balbuciou Nikita com grande difi-
culdade . - O que eu tenho a receber. . . dá-o ao meu filho . Ou à minha
.
mulher. . . tanto faz .
- O que é que tu tens , estás com frio? - perguntou Vassíli Andreitch .
- Sinto que chegou . . . a minha hora . . . perdoa-me por amor de Cris-
to . . . - respondeu Nikita em voz chorosa e a agitar a mão em frente da
cara como se sacudisse as moscas .
Vassíli Andreitch ficou meio minuto petrificado , em silêncio; de re
pente , num gesto tão resoluto como os que fazia no momento de concluir
um negócio , recuou um passo , arregaçou as mangas da peliça e, com am
bas as mãos , começou a tirar a neve de cima de Nikita e do trenó . Feito
isso , Vassíli Andreitch desatou apressadamente a faixa, abriu a peliça,
empurrou Nikita e deitou-se em cima dele , cobrindo-o não só com a pe
liça mas com todo o seu corpo ainda esquentado . Enfiou as abas da pe
liça por baixo de Nikita, prendeu a bainha com os joelhos e ficou assim,
deitado de bruços , de cabeça encostada contra a dianteira do trenó , dei
xando de ouvir os movimentos do cavalo e os assobios da nevasca, es
cutando apenas a respiração de Nikita. Este deixou-se ficar muito tempo
imóvel, depois suspirou alto e mexeu-se .
- Assim está bem, e tu: ai que eu morro , ai que eu morro . Fica quie
to, aquece-te, e nós então , é assim . . . - Começou a dizer Vassíli An
dreitch .
Mas , para seu grande espanto , não foi capaz de continuar o discurso
porque os seus olhos se marejaram de lágrimas e o queixo lhe começou
a tremer. Deixou de falar, apenas engolia o que lhe apertava a garganta.
«Apanhei medo de mais, enfraqueci» , pensava. Aquela fraqueza de Vas-
90 Lev Tolstói
síli Andreitch, porém, não lhe desagradava, enchia-o até de uma alegria
muito especial que nunca antes sentira.
«Nós , então , é assim» , dizia para si mesmo , sentindo dentro dele uma
ternura inédita, solene . Esteve deitado assim muito tempo , limpando os
olhos com o pêlo do casaco e entalando debaixo dos joelhos a bainha que
o vento não parava de levantar.
Teve então um desejo muito forte de contar a alguém o seu estado de
alegria.
- Nikita - chamou-o .
- Estou bem, estou quentinho - respondeu este de baixo .
- Pois é , amigo , também já pensava que era o meu fim. Morrias tu,
morria eu . . .
E de novo lhe tremeu o queixo e se lhe encheram de lágrimas os olhos ,
e não conseguiu falar mais.
«Não faz mal - pensou . - Eu próprio sei tudo de mim, sei o que
sei .»
E deixou-se ficar assim muito tempo, calado .
Por baixo aquecia-o o calor de Nikita, por cima o da peliça; só as
mãos , com que segurava a peliça dos lados , e as pernas , que o vento in
sistia em descobrir afastando as abas , começavam a esfriar. Sobretudo a
mão direita, a que não tinha luva. Mas não pensava nas pernas nem nas
mãos , só pensava em aquecer o mujique por baixo dele .
Olhou várias vezes para o cavalo e viu-lhe o dorso descoberto , a sera
pilheira e a retranca tinham caído para a neve; devia levantar-se e ir aga
salhar o cavalo , mas não tinha coragem de abandonar Nikita por um mi
nuto que fosse nem de interromper o estado de alegria em que se
encontrava. Já não sentia medo nenhum.
«Apanhei-te , já não foges» , dizia para si mesmo, com a mesma gaba
rolice que usava para falar das suas compras e vendas , querendo signifi
car que ia salvar o mujique do frio .
Ficou assim deitado uma hora, duas horas , três horas , mas não sentia
o tempo a passar. Primeiro correram-lhe pela imaginação as sensações ,
tremendo-lhe diante dos olhos , as impressões da nevasca, dos varais, do
cavalo sob o arco, de Nikita debaixo dele; depois começaram a misturar
-se as lembranças da festa, da mulher, do chefe da polícia, da caixa de
velas , e de novo Nikita, debaixo dessa caixa; a seguir visualizou os mu
jiques a venderem e a comprarem, e as paredes brancas , e as casas com
telhados de ferro , sob os quais estava deitado Nikita; depois tudo se con
fundiu , umas coisas penetravam nas outras , como as cores do arco-íris
O Diabo e Outros Contos 91
E Vassíli Andreitch já não via, nem ouvia, nem sentia mais nada nes
te mundo .
A toda a volta voavam as mesmas nuvens de neve . Rodopiavam os
mesmos turbilhões de neve , cobrindo a peliça de Vassíli Andreitch mor
to , cobrindo o 'Zaino sacudido pelos tremores , cobrindo o trenó quase en
terrado na neve e, no fundo dele , o Nikita aquecido , debaixo do seu pa
trão morto .
10
Bom, morte há só uma, e ninguém lhe escapa. Mas que seja depressa . . » .
olhares para o belo gigante que lhe falava com grande ternura e punha
muito cuidado em cada gesto , receando insultar, profanar a pureza ange
lical da sua noiva. Kassátski pertencia àquele tipo de homens dos anos
quarenta, hoje em dia inexistentes , que não condenavam para si próprios
- e até aceitavam conscientemente - as relações sexuais impuras , mas
exigiam uma pureza ideal e celestial à esposa e reconheciam em todas as
meninas do seu círculo essa mesma pureza, tomando para com elas a ati
tude correspondente.
Esse ponto de vista, ao permitir a devassidão masculina, era sem dúvi
da errado e nocivo; por outro lado , no respeitante às mulheres , enquanto
visão claramente oposta ao dos jovens actuais que vêem em cada mulher
ou rapariga uma fêmea à procura de macho , entendo que era útil . As ra
parigas , vendo essa divinização de que eram alvos , tentavam,. na medida
do possível , ser deusas . Kassátski , como também era adepto deste ponto
de vista, encarava a sua noiva de acordo com ele. Naquele dia sentia-se
especialmente enamorado e sem qualquer impulso sensual em relação à
noiva, pelo contrário, olhava para ela como para algo inacessível .
O corpulento rapazão ergueu-se então diante dela, apoiando-se no sa
bre com as duas mãos , e disse:
- Só agora conheço a enorme felicidade que um homem pode expe
rimentar. E é a menina, és tu - disse , sorrindo com timidez - , que me
proporciona essa felicidade .
Naquela fase ainda não se acostumara ao «tu» e , olhando para a noi
va de baixo para cima no sentido moral , tinha medo de conspurcar aque
le anjo com o «tu» .
- Foi graças a . . . ti que fiquei a conhecer-me melhor; e concluí que
era melhor do que pensava.
- Sei isso há muito . Foi por isso que comecei a amá-lo .
Um rouxinol trinou perto deles , a brisa fazia bulir ao de leve a folha
gem fresca.
Kassátski pegou na mão dela e beijou-lha, as lágrimas marejaram-lhe
os olhos . Ela percebeu que Kassátski estava a agradecer-lhe por ela ter
dito que o amava. Ele deu alguns passos , calado , depois aproximou-se do
banco , sentou-se .
- A menina sabe, enfim, tu sabes . . . bom, não interessa . . . que eu não
agi desinteressadamente quando me aproximei de ti , o meu fito era esta
belecer relações na alta sociedade , mas depois , quando te conheci . . . isso
tomou-se tão fútil para mim. Não ficas zangada comigo por causa disso?
Ela não respondeu , apenas lhe tocou na mão .
1 00 Lev Tolstói
campo a vaidade , essa mesma que tanto lhe repugnava nos outros mon
ges . Foi enviado para um mosteiro próximo da capital . Tentou recusar,
mas o stárets ordenou-lhe que aceitasse a nomeação . Anuiu , despediu-se
do stárets e mudou-se para o novo mosteiro .
Essa mudança para o mosteiro da capital foi um acontecimento im
portante na vida de Sérgui . As tentações eram de todo o género , o que
absorvia todas as forças de Sérgui .
No mosteiro anterior a tentação feminina pouco o atormentava, mas ,
no novo , o desejo erguia-se com uma força impressionante e chegou a
adquirir contornos definidos . Havia uma senhora conhecida pela sua má
conduta que começou a aproximar-se de Sérgui . Meteu conversa com
ele , pedindo-lhe que a visitasse . Sérgui , severo , recusou , mas o desejo
real que sentiu deixou-o apavorado . Assustou-se tanto que escreveu ao
stárets; mais ainda: para refrear o impulso , chamou o seu jovem noviço
e, vencendo a vergonha, confessou-lhe a sua fraqueza e pediu-lhe que o
vigiasse, que não o deixasse ir a lado nenhum a não ser aos ofícios divi
nos ou aos trabalhos .
Havia outra grande tentação: o superior do novo mosteiro era um ho
mem de sociedade , esperto , que aproveitava a Igreja para fazer carreira.
Despertava grande antipatia em Sérgui . Por mais que lutasse consigo
próprio , não conseguia ultrapassar essa antipatia. Resignava-se, mas , do
fundo do coração , não deixava de censurar o superior. Este mau senti
mento , por fim, irrompeu à luz do dia.
Aconteceu já no segundo ano da sua vida no novo mosteiro . Foi as
sim: no Dia do Manto da Virgem, o ofício noctumo era na igreja grande .
Havia muita gente vinda de fora. Oficiava o próprio superior. O padre
Sérgui estava no seu lugar habitual e rezava, ou seja, debatia-se na luta
costumeira que travava durante os ofícios , sobretudo na igreja grande
(quando não era ele a oficiar) . Irritavam-no os fiéis , os fidalgos , sobre
tudo as senhoras - era essa a sua luta. Fazia por não os ver, por não re
parar em nada do que se passava à sua volta - não ver como os solda
dos lhes abriam caminho , empurrando o povo , como as senhoras
mostravam umas às outras os monges - muitas vezes a ele próprio e
também a um conhecido monge bonitão . Tentava não ver nada, pondo
uma espécie de antolhos à sua atenção , além do brilho das velas junto da
iconóstase , do ícone e dos clérigos; não ouvir nada além das palavras das
orações , ditas e cantadas , e não experimentar qualquer sentimento além
da abnegação e da consciência do dever cumprido que a repetição contí
nua das rezas lhe dava sempre .
O Diabo e Outros Contos 105
que não sentia nada, mas de repente - ainda sem perceber se lhe doía
muito - franziu a cara e retirou a mão , abanando-a. «Não , não posso
fazê-lo .»
- Por amor de Deus ! Oh , venha cá! Estou a morrer, oh !
« Então , lanço-me na perdição? Não , isso não .»
- Já vou , um momento - disse ele e, abrindo a sua porta, passou a
seu lado sem olhar para ela pela porta da antecâmara, onde costumava
rachar a lenha, encontrou às apalpadelas o cepo para cortar as achas e o
machado , encostado à parede .
- Um momento - disse ele . Pegou no machado com a mão direita,
colocou o dedo indicador da esquerda no cepo, levantou o machado e
abateu-o abaixo da segunda articulação . O dedo decepado soltou-se mais
facilmente do que sucedia com os ramos da mesma grossura,. rolou até à
borda do cepo e caiu no chão .
Sérgui ouviu o som antes de sentir a dor, mas antes de se surpreender
com a ausência da dor, sentiu-a, dilacerante , e também o calor do sangue
a jorrar. Apertou logo o coto do dedo com a aba da sotaina e, premindo
-o contra a anca, voltou a entrar no quarto e , parando em frente da mu
lher, perguntou baixinho , com os olhos no chão:
- O que deseja?
Ela olhou para a cara muito pálida de Sérgui , com a face esquerda a
tremer, e sentiu vergonha de repente . Saltou do catre , pegou na peliça e
embrulhou-se nela.
- Pois , estava cheia de dores . . . apanhei frio . . . eu . . . Padre Sérgui . . .
eu . . .
Ele ergueu os olhos que irradiavam uma luz serena e bendita, e disse:
- Minha irmã amada, porque querias levar a tua alma imortal à per
dição? As tentações entram no mundo , mas ai daquele por quem elas en
tram . . . Reza a Deus para que nos perdoe .
Ela ouvia e olhava para ele . De repente ouviu pingos . Viu que lhe go
tejava sangue da mão , através da sotaina.
- O que fez à mão? - Lembrou-se do som que ouvira e, pegando na
lamparina, correu para a antecâmara e viu no chão o dedo decepado. Vol
tou , mais pálida ainda do que ele , tentou falar-lhe , mas ele saiu lenta
mente para o cubículo e trancou a porta.
- Perdoe-me - disse ela. - Como posso redimir o meu pecado?
- Vai-te embora.
- Deixe-me fazer-lhe uma ligadura.
- Vai-te embora daqui .
1 16 Lev Tolstói
esvoaçou e fugiu . O padre Sérgui lia uma oração que falava em abdicar
do mundo , e fazia-o o mais rapidamente que podia para mandar chamar
o comerciante e a filha doente: ela interessava-o . E o seu interesse pro
vinha de ela ser uma pessoa nova, diferente, uma variação , e também
porque tanto a rapariga como o pai o consideravam um santo a quem
Deus ouvia. Sérgui, embora o negasse , no fundo da alma também se via
santo .
Muitas vezes espantava-se , não compreendia a razão por que lhe ca
lhara, a ele , Stepan Kassátski , ser um homem tão bem-aventurado, um
autêntico milagreiro; e não tinha a mínima dúvida acerca disso: não po
dia deixar de acreditar nos milagres que operara e que ele próprio verifi
cara, desde o rapaz de catorze anos doente até à velhota que recuperara
a visão quando ele intercedera por ela nas suas orações .
Por mais estranho que parecesse, era verdade . Portanto, a filha do co
merciante interessava-lhe porque era uma pessoa nova, porque tinha fé
nele e , ainda, porque queria confirmar com ela a sua força curadora e a
sua glória. «Viajam milhares de verstás para me verem, escrevem sobre
mim nos jornais , o próprio imperador está ao corrente , toda a Europa ou
viu falar de mim , a própria Europa descrente» , pensava o padre Sérgui .
De repente teve vergonha daquela sua vaidade , voltou às orações . «Meu
Deus , Rei do Céu , consolador, alma da verdade , vinde e entrai em nós ,
purificai-nos de toda a imundície , salvai as nossas almas . Purifica-me da
conspurcação da glória humana que me domina» , repetia, recordando ao
mesmo tempo as vezes , inúmeras , em que tinha orado assim inutilmen
te: as suas orações faziam milagres para os outros , não para si próprio; a
vontade divina não o libertava da sua paixão miserável .
Recordou as suas rezas nos primeiros tempos de retiro , quando im
plorava a Deus a pureza, a humildade e o amor. Naquele tempo , pare
cia-lhe que Deus ouvia as suas preces , sentia-se puro ao ponto de de
cepar um dedo para não cair em tentação , e levantou o coto do dedo ,
com a pele enrugada, e beijou-o; naquele tempo , ao sentir uma repug
nância constante pelo pecado , sentia-se humilde de verdade , e acredita
va que havia amor dentro dele , e recordou com que ternura recebera,
uma ocasião , um velho soldado bêbado que lhe exigia dinheiro . . . E
evocou também a visita daquela mulher. Mas agora? Interrogou-se:
amava alguém, amava Sófia Ivánovna, o padre Serapion? Alimentava o
sentimento do amor por toda aquela gente que o visitava, pelo jovem
cientista com quem tivera uma conversa didáctica, cuidando apenas em
exibir-lhe o seu intelecto e em mostrar que estava à altura dele no to-
O Diabo e Outros Contos 1 25
gindo que era para Deus, mas ela vive para Deus imaginando que vive
para as pessoas . . . Sim, uma boa acção , uma chávena de água oferecida
sem pensar na recompensa é mais preciosa do que toda a minha benefi
cência para com as pessoas . Mas , em parte, não terá havido sempre em
mim o desejo sincero de servir a Deus? - perguntou a si próprio e res
pondeu: - Sim, mas tudo isso estava conspurcado , coberto com a lama
da glória mundana. Pois é , não há Deus para quem viveu como eu , em
prol da glória mundana. Vou procurar Deus.»
E foi de aldeia em aldeia - como já fazia antes de chegar à casa de
Páchenka - , ora se juntando , ora se separando dos peregrinos e pere
grinas , esmolando o pão e a pernoita por amor de Cristo . Por vezes era
insultado por uma dona de casa maldosa, ou por um mujique bêbado ,
mas na maioria dos casos davam-lhe de comer e beber, e até alguma coi
sa de reserva para o caminho . O seu ar de fidalgo despertava a simpatia
de algumas pessoas . Outros , pelo contrário , regozijavam-se por verem
um senhor que caíra na miséria. A humildade de Sérgui , porém, vencia
toda a gente .
Muitas vezes , ao encontrar numa casa um Evangelho , lia-o em voz al
ta e as pessoas comoviam-se e espantavam-se , como se estivessem a ou
vir uma coisa nova e , ao mesmo tempo , familiar.
Quando servia as pessoas com um conselho , com um serviço de ho
mem culto , ou apaziguando os desavindos , não esperava pela gratidão
que lhe votassem, virava as costas e ia-se embora de imediato . E , a pou
co e pouco , Deus começou a revelar-se nele .
Uma ocasião caminhava na companhia de duas velhas e de um solda
do . Um senhor e uma senhora, viajando num charabã atrelado a um be
lo trotador, e outro senhor e uma menina montados nos cavalos ,
mandaram-nos parar. Nos cavalos iam o pai e a filha, e a mãe ia no cha
rabã com um francês , por certo um viajante.
Mandaram parar os caminhantes para mostrarem ao francês les pele
rins10 que , seguindo a superstição própria do povo russo , caminhavam
de um lugar para outro em vez de trabalharem.
Falavam em francês , pensando que nenhum dos peregrinos os com
preendia.
- Demandez-leur - disse o francês - s 'ils sont bien surs de ce que
leur pelerinage est agréable à Dieu l l .
Perguntaram-lhes . As velhas responderam:
- Será como Deus o aceitar. Com os pés vamos , prouvera que com o
coração também .
O Diabo e Outros Contos 1 35
sem despir a farda, fui para o vestíbulo , pé ante pé, pus o capote, abri a
porta e saí para a rua.
O baile acabara às quatro; gastei duas horas a chegar a casa, contando
com o tempo que passei no quarto , de maneira que , quando saí à rua, já
amanhecera. Era uma manhã típica da época do Entrudo: nevoeiro , neve
saturada de água a derreter-se nos caminhos , todos os telhados a pingar.
Naquele tempo, os B . . . viviam na periferia da cidade , junto a um cam
po grande onde , numa ponta, era o internato das meninas e, na outra, um
espaço para passeios . Depois de sair de casa percorri a nossa ruela de
serta e entrei na rua grande onde já se viam transeuntes e cavalos de car
ga puxando trenós que já arranhavam a calçada por baixo da neve . Os ca
valos , sob os seus arcos lustrosos , balançando a compasso as cabeças
molhadas , e os cocheiros , protegendo-se com esteiras e chapinhando ao
lado das carroças com as botifarras enormes - tudo aquilo era muito
simpático e significativo para mim .
Desemboquei no campo e , perto da casa deles , na zona dos passeios ,
vi qualquer coisa grande e escura donde jorravam os sons de flauta e
tambor. Também na minha alma tudo tocava e cantava, mas era mais a
melodia da mazurca. Ora, aquela música era outra, rude , feia.
«0 que será?» , pensei , e meti a direito pelo campo, seguindo o cami
nho aberto pelos carros , todo escorregadio , na direcção dos sons . Depois
de ter andado uns cem passos, comecei a distinguir na neblina os vultos
escuros das pessoas , muitos . Eram soldados , pelos vistos . «Devem andar
em exercícios militares» , pensei , e fui atrás de um ferreiro de casaco de
pele seboso e avental , transportando qualquer coisa, e aproximei-me do
ajuntamento . Os soldados de fardamento preto estavam alinhados em
duas filas , frente a frente , com as espingardas em descanso, e não se me
xiam . Por trás deles estavam os tambores e um flautista que repetiam
sem parar a mesma música esganiçada, desagradável .
- O que estão a fazer? - perguntei ao ferreiro que parara a meu
lado .
- Castigam um tártaro que andou fugido - disse o ferreiro, num tom
descontente , olhando para o extremo , bastante longínquo , das filas .
Pus-me também a olhar para lá e vi , entre as filas , uma coisa pavoro
sa que se aproximava. A coisa era um homem nu até à cintura, amarrado
às espingardas dos dois soldados que o levavam . Ao lado ia um militar
alto de capote e boné em que reconheci algo de familiar. A vítima do cas
tigo , contorcendo o corpo todo e chapinhando pela neve derretida sob os
golpes que choviam em cima dele de ambos os lados , aproximava-se de
1 44 Lev Tolstói
mim , ora caindo para trás , e então os sargentos que o levavam empurra
vam-no para a frente , ora tombando para a frente , sendo empurrado pa
ra trás pelos sargentos . Ao rés dele , sem se deixar atrasar, marchava em
passo firme e sacudido o militar alto . Era o pai de Várenka, com a sua
cara rubicunda e o bigode e as suíças brancos .
A cada golpe , o castigado como que se espantava e virava a cara tor
cida de sofrimento para o lado donde choviam as pancadas e , arrega
nhando os dentes , repetia umas palavras quaisquer, sempre as mesmas .
Só quando já estava muito perto distingui as suas palavras . Não falava,
soluçava: «Amigos, piedade . Amigos , piedade .» Mas os amigos não ti
nham piedade e, quando a procissão chegou ao sítio onde eu estava, vi
um soldado a dar um passo resoluto em frente e ouvi o assobio do pau
que ele descarregou com força nas costas do homem. O tártaro tropeçou
para a frente , mas os sargentos logo o mantiveram direito e uma paulada
igual atingiu-o do outro lado , e mais uma deste , e mais outra do outro .
O coronel acompanhava o castigado e olhava ora para o chão , ora para o
desgraçado , inspirando o ar pelo nariz e , de bochechas inchadas ,
expirando-o lentamente pelos lábios em tubo . Quando passaram ao meu
lado vi de relance, através da fila, as costas do castigado: era uma coisa
tão multicolorida, molhada, escarlate e antinatural que não acreditei que
fossem de um corpo humano .
- Oh , meu Deus - murmurou o ferreiro .
Afastaram-se . As pancadas continuaram a chover de ambos os lados
sobre o homem que tropeçava e se contorcia, e ao mesmo compasso to
cavam os tambores e silvava a flauta, e com o mesmo passo firme avan
çava a figura alta e esbelta do coronel ao lado do homem espancado . De
repente o coronel parou , depois aproximou-se rapidamente de um dos
soldados .
- Isso são carícias? - ouviu a sua voz irada. - Carícias? Anda lá,
que eu dou-te as carícias !
E , com a mão forte na luva de camurça, esmurrou a cara do soldado
baixinho e fraco , assustado, porque este não batera com a força sufi
ciente nas costas vermelhas do tártaro .
- Trazei Spiessruten 1 9 novos ! - gritou , lançando um olhar para trás ,
e viu-me . Fingindo que não me reconhecera, carregou o sobrolho seve
ramente , com raiva, e virou-me logo as costas . Senti tanta vergonha que ,
não sabendo para onde olhar, baixei os olhos como se tivesse sido apa
nhado a cometer qualquer coisa ignóbil , e apressei-me a voltar para ca
sa. Soavam-me nos ouvidos , durante todo o caminho , ora os sons dos
O Diabo e Outros Contos 1 45
chorava, sem lamentar aquele tempo todo que poderia ter aproveitado
melhor (mas , se lhe devolvessem esse tempo , não tinha a certeza de que
o aproveitaria melhor) , chorava tão-só porque esse tempo nunca mais
voltaria. As recordações surgiam por si , e o violino de Albert dizia sem
pre a mesma coisa: «Para ti já passou , de uma vez por todas , o tempo da
força, do amor e da felicidade , passou e nunca mais voltará. Chora-o , es
gota as tuas lágrimas , morre chorando esse tempo - é a única e melhor
felicidade que te resta.»
No final da última variação , o rosto de Albert enrubesceu , os seus
olhos ardiam e não se apagavam, gotas de suor corriam-lhe, grossas , pe
la cara. Incharam-lhe as veias da testa, todo o seu corpo se agitava mais
e mais, os lábios pálidos já não se fechavam, e toda a sua figura expri
mia uma enlevada avidez de prazer.
Abanando o corpo com força e sacudindo o cabelo , Albert baixou o
violino e olhou para a assistência com um sorriso de orgulho majestoso
e de felicidade . Depois curvou as costas , baixou a cabeça, cerrou os lá
bios e, como que envergonhado , lançando olhares tímidos e tropeçando ,
saiu para outra sala.
dessas parvoíces nem acredito nelas , mas tive medo do que se passava
na minha cabeça - disse , sorrindo com amabilidade e tocando na testa
com a mão - , tive medo pela minha pobre mente , parecia-me que tinha
havido uma mudança qualquer na minha cabeça. Ou talvez não fosse na
da? O que acha?
Ficaram uns minutos sem falar.
- Und wenn die Wolken sie verhüllen, / Die Sonne bleibt doch ewig
klar - cantou Albert com um sorriso sereno . - Não é verdade? - E
continuou a cantar: - /eh auch habe gelebt und genossen20 . - Depois
disse: - Ah ! O velho Petrov explicá-lo-ia muito bem.
Deléssov, silencioso e aterrorizado , observava a cara comovida e pá
lida do seu interlocutor.
- Conhece a valsa «Juristen»? - exclamou de repente Albert e, sem
esperar pela resposta, saltou do lugar, pegou no violino e pôs-se a tocar
a valsa alegre . Esquecido de tudo e , imaginando pelos vistos que estava
a tocar com toda a orquestra, Albert sorria, baloiçava-se , mexia os pés e
tocava excelentemente .
- Eh , chega de divertimento ! - disse quando acabou e levantando o
violino . - Vou-me embora - disse , depois de se ter sentado um pouco
a descansar. - O senhor não vem?
- Aonde? - não percebeu Deléssov.
- Vamos outra vez a casa de Anna Ivánovna; aquilo lá é divertido:
barulho , muita gente , música.
Deléssov, num primeiro momento , quase disse que sim, mas caiu em
si e começou a persuadir Albert a não sair nessa noite .
- Só por um bocado .
- Oiça, não vá, a sério .
Albert suspirou e largou o violino .
- Acha que devo ficar em casa?
Olhou mais uma vez para a mesa Uá não havia vinho) , deu as boas
-noites e saiu .
Deléssov tocou a campainha.
- Vê lá, não deixes o senhor Albert ir a lado nenhum sem a minha
autorização - disse a Zakhar.
O Diabo e Outros Contos 1 63
Depois, fosse o que fosse que Deléssov lhe sugerisse - ir dar um pas
seio , ir à noite ao teatro - , Albert limitava-se a fazer vénias submissas
e a calar-se . Deléssov saiu , fez várias visitas , almoçou em casa de ami
gos e , antes de ir ao teatro , passou por casa para mudar de roupa e ver
como estava o músico . Albert, no vestíbulo escuro , com a cabeça entre
as mãos, olhava para o fogão aceso . Estava vestido com asseio , pentea
do , lavado , mas com os olhos baços , mortiços , e todo ele era a imagem
da fraqueza, da fadiga - ainda mais do que de manhã.
- Então , senhor Albert, almoçou? - perguntou-lhe Deléssov.
Albert fez que sim com a cabeça, olhou para Deléssov e baixou logo
os olhos assustados .
Deléssov sentiu-se embaraçado .
- Hoje falei de si ao director - disse, baixando também os olhos . -
Terá o prazer de lhe dar um lugar se o senhor se submeter a uma audi
ção .
- Obrigado , mas não posso tocar - respondeu Albert como que pa
ra si próprio e saiu logo para o seu quarto , fechando a porta com um cui
dado exagerado .
Uns minutos depois a maçaneta da porta girou devagarinho e Albert
saiu com o violino . Lançando para Deléssov um olhar rápido e maldoso ,
pousou o violino na cadeira e voltou a desaparecer.
Deléssov encolheu os ombros e sorriu .
«Ü que posso fazer mais? Que culpa tenho eu?» , pensou .
- Então , como está o músico? - perguntou a Zakhar logo que vol
tou para casa, já de noite .
- Está mal ! - foi a resposta curta de Zakhar. - Suspira; tosse , não
fala (só para pedir vodca, cinco vezes) . Já lhe dei um copinho . Senão ,
Deus nos livre , até podemos dar cabo do homem, Dmítri Ivánovitch .
Ainda lhe acontece como ao feitor . . .
- E não toca o violino?
- Nem pega nele . Levei-lho duas vezes . . . e ele trazia-o de volta -
respondeu Zakhar, sorridente . - Então , sempre lhe proíbe a vodca?
- Não lhe dês vodca nenhuma, vamos esperar mais um dia, logo se
vê . E agora, o que é que ele está a fazer?
- Trancou-se na sala de estar.
Deléssov foi ao seu gabinete e escolheu vários livros em francês e um
Novo Testamento em alemão .
- Amanhã põe isto no quarto dele e , vê lá, não o deixes sair - disse
a Zakhar.
O Diabo e Outros Contos 1 65
No dia seguinte , Zakhar relatou ao patrão que o músico não tinha dor
mido toda a noite , que deambulara pela casa, fora ao bufete e tentara
abrir a porta do aparador. Mas , por precaução , estava tudo fechado à cha
ve . Zakhar contou que, fingindo-se adormecido , ouviu Albert a murmu
rar para si próprio no escuro e a agitar as mãos .
A cada dia que passava, o músico tomava-se mais sombrio e tacitur
no . Parecia ter medo de Deléssov, via-se-lhe na cara um terror doentio
quando os seus olhos se cruzavam. Não tocava nos livros nem no violi
no, não respondia às perguntas que lhe faziam.
No terceiro dia de hospedagem do músico , Deléssov voltou para casa
muito tarde, cansado e aflito . Passara o dia a correr, tentando resolver um
assunto que lhe parecia muito simples e fácil mas , como acontece tantas
vezes , não avançou nada, apesar de todos os seus esforços . Ainda por ci
ma, passara pelo clube e perdera ao whist. Estava mal-humorado .
- Deixa-o, não lhe ligues ! - respondeu a Zakhar que lhe explicava
a triste situação de Albert. - Amanhã vou encostá-lo à parede de uma
vez por todas: quer ou não quer ficar comigo e seguir os meus conselhos?
Se ele não quiser, não insisto. Parece que fiz tudo o que era possível .
«Depois disto , será que vale a pena ajudar as pessoas? - pensava ele .
- Incomodo-me com ele , tenho cá em casa esta criatura porca, nem pos
so receber as pessoas durante a manhã, ando a pedir por ele , e ele olha
para mim como se eu fosse um facínora qualquer que , por prazer, o fe
chou numa jaula. Mas o pior é que não quer fazer o mínimo esforço por
ele próprio. São todos assim (este «todos» dizia respeito às pessoas em
geral e , sobretudo , àquelas com quem acabara de tratar do seu assunto) .
O que se passa com ele agora? Em que anda a cismar, o que o entriste
ce? Tem saudades da depravação a que o arranquei? Da humilhação em
que se encontrava? Da miséria donde o tirei? Pelos vistos caiu tão baixo
que lhe custa olhar para uma vida honesta.»
«Está bem, foi um acto infantil - concluiu Deléssov. - Como é que
posso tomar conta de alguém e reeducá-lo quando mal consigo fazê-lo
comigo próprio?» Ainda quis deixá-lo partir imediatamente, mas pensou
melhor e resolveu adiar isso para o dia seguinte .
Em plena noite , Deléssov foi acordado bruscamente pelo barulho de
uma mesa a cair no vestíbulo , de vozes e de pés a bater. Acendeu a vela
e, surpreendido , pôs-se à escuta.
- Vou já dizer a Deléssov - avisava Zakhar. Depois ouviu a voz de
Albert, exaltada, a sibilar qualquer coisa desconexa. Deléssov saltou da
cama e , com a vela na mão, correu para o vestíbulo . Zakhar, em trajo de
1 66 Lev Tolstói
Sim, na rua estava muito frio, mas Albert, esquentado pelo álcool e pe
la discussão , não o sentia.
Mal saiu olhou para trás e esfregou as mãos , contentíssimo da vida. A
rua estendia-se , deserta, mas a longa fila de lampiões ainda luzia com os
seus fogos vermelhos; o céu estava limpo e estrelado . «Üra toma ! » , dis
se ele dirigindo-se à janela iluminada da casa de Deléssov e, depois de
agasalhar as mãos nos bolsos das calças , avançou pela rua fora, para a
direita, num passo pesado e incerto . Sentia um peso enorme nas pernas
e no estômago , na cabeça fervia-lhe um barulho qualquer, uma força in
visível lançava-o de um lado para o outro , mas continuava sempre na di
recção da casa de Anna lvánovna. Pela mente vagueavam-lhe pensa
mentos estranhos e incoerentes . Ora recordava a última discussão com
Zakhar, ora o mar e a sua primeira chegada à Rússia (sabe-se lá porquê) ,
ora uma noite feliz passada com um amigo na lojeca que acabava de ver
na rua em que seguia; ora, de repente , começava a soar-lhe na imagina
ção uma melodia familiar e, então , evocava o objecto do seu amor e a
noite terrível passada no teatro . E, apesar da incoerência, todas essas re
cordações lhe surgiam tão vivas que , fechando os olhos, não sabia o que
era mais real: se o que estava a fazer, se o que estava a pensar. Não se
dava conta nem sentia como mexia os pés , nem como , cambaleando , es
barrava contra a parede , nem como entrava em mais uma rua. Apenas ti
nha consciência e sentia as imagens que , bizarras , surgiam na sua cabe
ça, alternando-se e emaranhando-se .
Na Rua Málaia Morskaia, Albert tropeçou e caiu . Quando recuperou
por um instante os sentidos , viu à sua frente um edifício enorme e mag
nífico , e foi para lá. No céu não se viam estrelas nem a aurora, nem a lua,
não havia lampiões , mas todos os objectos se delineavam com nitidez .
Nas janelas do edifício que se erguia ao fim da rua brilhavam luzes , mas
balançavam como reflexos . O edifício aproximava-se e crescia, cada vez
mais nítido aos olhos de Albert. Mal Albert entrou pela porta larga, as lu
zes desapareceram . Lá dentro , a escuridão . Passos solitários ecoavam,
1 68 Lev Tolstói
era de modelo estranho , todo em vidro , e, para que emitisse som, tinha
de se agarrar com as duas mãos e abraçar-se lentamente contra o peito .
Os sons do instrumento eram de uma doçura e encanto que Albert jamais
tinha ouvido . Quanto mais apertava o violino ao peito , mais deleitado se
sentia. Quanto mais alto soava o violino, mais depressa se dissipavam as
sombras e mais se iluminavam as paredes com uma -luz transparente. Ao
mesmo tempo , era preciso manipular o violino com muito cuidado para
não se partir. Albert tocava aquele instrumento de vidro com muito cui
dado e muita perícia. Tocava peças de música que ninguém no mundo
ouviria alguma vez mais . Assim o sentia. Já começava a cansar-se quan
do foi distraído por outro som, distante , surdo . Era o sino que falava:
«Sim - dizia o sino, badalando algures ao longe , nas alturas - , parece
-lhes miserável , desprezam-no, mas é o melhor e mais feliz ! Ninguém
mais tocará alguma vez este instrumento .»
De súbito , estas palavras familiares pareceram tão inteligentes a Al
bert, tão novas e justas que deixou de tocar e, tentando manter-se imó
vel , ergueu as mãos e os olhos ao céu . Sentia-se belo e feliz. Apesar de
não haver ninguém na sala, Albert endireitou o busto e , com a cabeça or
gulhosamente levantada, tomou uma postura que o realçasse em cima do
estrado . De repente , uma mão tocou-lhe ao de leve no ombro; virou e viu
na penumbra uma mulher. Olhava com tristeza para ele , abanava negati
vamente a cabeça. Albert percebeu que era mau o que estava a fazer e
sentiu vergonha. «Para onde vou , então?» , perguntou à mulher. Ela vol
tou a pousar nele um olhar longo e perscrutador, e inclinou a cabeça com
tristeza. Era ela, a mesma que amava, e o vestido era o mesmo , e no pes
coço cheio e branco tinha um fio de pérolas , e os braços magníficos es
tavam nus até acima do cotovelo . Pegou-lhe na mão e levou-o para fora
da sala. «A saída é do outro lado» , disse Albert, mas a senhora, sem res
ponder, sorriu e fê-lo sair da sala. À saída, Albert viu a lua e a água. Mas
a água não estava em baixo, como é normal , e o círculo branco da lua
não estava em cima, como sempre se viu . A lua e a água estavam juntas
e por todo o lado - em cima, em baixo, dos lados , à volta deles . Albert
e a senhora atiraram-se à água e à lua, e ele percebeu que agora já podia
abraçar aquela que amava mais do que tudo no mundo; abraçou-a e sen
tiu uma felicidade insuportável . «Não será um sonho?» , perguntou a si
mesmo . Mas não ! Era a realidade , era mais do que a realidade , era tam
bém recordação . Sentia que estava a passar a felicidade inexprimível que
o deleitava e que nunca mais voltaria. «Porque estou a chorar?» , per
guntou à senhora. Ela olhou para ele em silêncio , tristemente . Albert
O Diabo e Outros Contos 171
compreendeu o que ela queria significar com aquilo . «Mas como pode
ser? Estou vivo» , disse ele . Ela não respondia, olhava em frente com
uma fixidez imóvel . «É terrível ! Como explicar-lhe que estou vivo?» ,
pensava Albert com pavor. «Estou vivo, santo Deus , tente compreen
der» , sussurrava ele .
«É o melhor e o mais feliz» , dizia a voz. Mas alguma coisa oprimia
Albert cada vez mais . Era a lua e a água, eram os abraços e as lágrimas
da mulher? Não sabia, só tinha a sensação de que era incapaz de expri
mir tudo o que era preciso , e que em breve tudo acabaria.
Dois convidados que saíam da casa de Anna Ivánovna tropeçaram em
Albert estendido junto à porta. Um deles voltou para dentro e chamou a
dona da casa.
- É uma crueldade - disse-lhe o homem - , a senhora poderia matá-
-lo ao expô-lo assim ao frio .
- Ah , este Albert - respondeu Anna Ivánovna - , onde ele s e veio
pôr! Ánnuchka ! Deite-o no quarto - ordenou à criada.
- Estou vivo , para que querem enterrar-me? - murmurava Albert
enquanto o transportavam, inconsciente , para dentro de casa.
TRÊS MORTES
Outono . Rolavam pela estrada duas carruagens , ao trote rápido dos ca
valos . No coche da frente iam duas mulheres , a senhora, magra e pálida,
e a criada, de bochechas lustrosas e coradas . A criada, com a mão verme
lha que a luva rota deixava ver, ajeitava compulsivamente o cabelo curto
e seco que lhe queria fugir do chapéu deslavado. O peito alto , coberto
com um xaile ornamentado , respirava saúde , os olhos negros e ágeis ora
observavam os campos , ora fitavam com timidez a patroa, ora percorriam
com preocupação os cantos do coche . Diante do nariz da criada oscilava
na rede o chapeuzinho da senhora, ao colo levava um cachorro , sentava
-se com os joelhos alteados porque tinham acondicionado umas caixas no
chão da carruagem, mesmo por baixo dos seus pés que tamborilavam li
geiramente ao ritmo do estremecimento das molas e do tilintar dos vidros .
A senhora, com as mãos juntas nos joelhos e os olhos fechados , ba
lançava um pouco sobre as almofadas metidas atrás das costas e , fran
zindo a cara, tossicava sem barulho . Cobria-lhe a cabeça uma touca de
noite branca, rodeava-lhe o pescoço suave e pálido um lencinho azul ce
leste . Uma risca direita, desaparecendo por baixo da touca, dividia-lhe ao
meio o cabelo louro-escuro , muito liso e coberto de pomada, e havia al
go de seco e mortiço na brancura do couro cabeludo que aquela risca lar
ga deixava ver. Uma pele flácida, levemente amarelada, cobria-lhe o ros
to de traços finos e bonitos . Manchas vermelhas espalhavam-se-lhe pelas
faces e pelas maçãs-do-rosto . Os seus lábios eram secos e inquietos , as
pestanas ralas e espetadas , e o pano do casaco de viagem formava pre
gas direitas sobre o peito cavado . Apesar dos olhos fechados , o rosto da
senhora mostrava cansaço , irritação e sofrimento prolongado.
1 74 Lev Tolstói
dos . Como é que és capaz , se estavas nas últimas? Não , disse ele , já es
tou melhor, e levantou o machado de tal jeito que eu fiquei apavorada.
Gritei e acordei . . . Será que o homem morreu? Tio Fiódor, ó tio !
Fiódor não respondia.
- À s tantas finou-se. Temos de ir ver - disse um dos cocheiros que
já tinha acordado .
A mão esquelética coberta de pêlos ruivos pendia do catre, fria e branca.
- Parece que morreu, vou avisar o chefe - disse o cocheiro.
Não havia ali parentes de Fiódor, ele era de outra terra. No dia se
guinte enterraram-no no cemitério novo, por trás do bosque, e Nastássia,
durante vários dias , andou a contar a toda a gente o seu sonho e a dizer
que tinha sido a primeira a lembrar-se de ir ver como estava o tio Fiódor.
ra e fechou os olhos .
O doutor aproximou-se e pegou-lhe na mão . O pulso estava cada vez
mais fraco . O médico lançou um olhar ao marido . A doente captou esse
olhar e, assustada, virou a cabeça. A prima voltou-se de costas para cho
rar.
- Não chores , não te atormentes , a ti e a mim - disse a. doente - ,
isso tira-me a última tranquilidade.
- És um anj o ! - disse a prima beijando-lhe a mão .
- Não, beija-me aqui , a mão só se beija aos mortos . Meu Deus , meu
Deus !
Na mesma noite a doente já era um corpo , metido no caixão e coloca
do na sala da casa. No grande salão , com todas as portas fechadas , ape
nas se encontrava o salmista a ler os salmos de David com uma voz ca
denciada, nasal . A luz forte dos círios derramava-se dos altos castiçais de
prata para a testa branca da defunta, para as suas pesadas mãos cor de ce
ra e para as pregas petrificadas da mortalha que se alteava assustadora
mente nos joelhos e nos dedos dos pés . O salmista lia com cadência me
cânica, sem perceber o que lia, e era estranho como as palavras dele
soavam e logo esmoreciam na sala silenciosa. De vez em quando chega
vam de um longínquo quarto as vozes e o bater de pés das crianças .
«Escondes o teu rosto , e ficam perturbados - rezava o Livro de Sal
mos - : se lhes tiras a respiração , morrem e voltam para o seu pó . En
vias o teu Espírito , e são criados , e assim renovas a face da terra. A gló
ria do Senhor durará para sempre .»
O rosto da defunta era rigoroso , calmo e majestoso . Nada se movia na
fronte límpida e fria nem nos lábios cerrados com finneza. Toda ela era
atenção. Compreenderá ela, pelo menos agora, o significado destas gran
des palavras?
1 84 Lev Tolstói
Um mês mais tarde era erguida uma capela de pedra sobre o túmulo
da falecida. Na campa do cocheiro ainda não havia lápide, apenas as er
vas verde-claras brotavam em cima do montinho de terra que era o úni
co sinal da existência acabada do homem.
- Será um pecado, Serioga - disse uma ocasião a cozinheira - se
não comprares a lápide para a campa do Fiódor. Há pouco dizias: é In
verno , é Inverno . . . mas agora já não é, porque não cumpres a tua pala
vra? Eu estava lá, ouvi . Ele já te apareceu uma vez, pediu-te; se não cum
prires , ele volta e esgana-te .
- Não digo que não - respondeu Serioga - , hei-de comprar uma
laje de rublo e meio , como disse e está dito . Não me esqueci , mas é pre
ciso trazê-la. Mal apareça um serviço para a cidade, vou e compro-a.
- Ao menos podias pôr lá uma cruz - disse um velho cocheiro - ,
senão , digo-te já, está mal feito . Não te esqueças que andas com as bo
tas dele .
- Onde é que arranjo a cruz? Pego num madeiro e talho-a?
- Não digas disparates . De um madeiro não , mas pega num macha-
do e vai ao bosque . Corta um freixo , digamos . Pronto , já tens uma cruz.
Vai cedo , senão ainda tens de pagar para a vodca ao guarda florestal . Es
se também, por cada merdinha, bota cá vodca. Isso pode ser? Olha que
eu , há dias , parti um varal , fui lá cortar outro, lindo , e ninguém me dis
se nada.
De manhã cedinho , ao romper de alva, Serioga pegou no machado e
foi ao bosque .
Estava tudo amortalhado no manto frio e baço do orvalho ainda não
alumiado pelo sol . O levante aclarava-se imperceptivelmente, a sua luz
fraquinha reflectia-se no firmamento tapado por nuvens finas . Em baixo
nem uma ervinha bulia, em cima, na copa da árvore , as folhas também
estavam paradas , nem o mais pequeno rumorejo quebrava o silêncio do
bosque . De repente, levantou-se um som estranho e hostil à natureza e
parou na orla do bosque . Soou de novo e começou a repetir-se ritmada
mente por baixo do tronco de uma das árvores imóveis . Uma das copas
tremeu , e era insólito: as folhas suculentas sussurravam, e um pisco-de
-peito-ruivo pousado num dos ramos esvoaçou, assobiou duas vezes e ,
sacudindo o rabo , mudou-se para outra árvore .
As machadadas na base do tronco soavam cada vez mais surdas , pro
jectando lascas brancas e cheias de seiva para cima das ervas orvalhadas .
O Diabo e Outros Contos 1 85
O Diabo 7
O Patrão e o Moço de Estrebaria 51
O Padre Sérgui 95
Depois do Baile 1 37
Albert 1 47
Três Mortes 173
Notas 1 87
ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA:
Anna Karénina
A Sonata de Kreutzer