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RESENHA O MUNDO DA PÓLIS – ERIC VOEGELIN

por Mariano Henrique Rodrigues

INTRODUÇÃO

Escrever sobre uma obra de Eric Voegelin nunca é uma tarefa fácil, principalmente
quando se trata de uma obra densa e tão rica de análises como as pertencentes à segunda
e terceira fase de estudos em que se dedicou. Após resenhar sobre uma obra com caráter
mais político (ver Hist. Das Ideias politicas IV), a seguinte obra dá um salto considerável
de dificuldade, devido à ampliação do horizonte de consciência que Voegelin teve e
passou a abarcar. O Mundo da Pólis, 2º volume da magnum opus Ordem e História, possui
um enfoque mais meditativo que vai marcar as obras posteriores do autor.

Não é possível resenhar esse volume sem antes falar do propósito do autor.
Anteriormente Voegelin buscou na história das idéias uma forma de entender a crise
civilizacional do Ocidente; porém, ele percebe que falar de ‘história das idéias’ já é
propriamente um erro: o que se deve fazer, ele entende posteriormente, não é traçar uma
história das ideias, mas das experiências engendradoras que possibilitaram o surgimento
destas ideias. Podemos ver um vislumbre disso em sua coleção anterior, mas ela toma
uma nova face quando Voegelin traça uma busca destas experiências em dois pólos que,
segundo ele, constituem os dois polos pelos quais o Ser se revela aos homens: a revelação
pneumática ou espiritual, observada pelos profetas e patriarcas em Israel, e a revelação
noética, feita aos gregos, que é a qual vamos nos ocupar nesta resenha. A revelação
noética foi a forma encontrada pelos gregos de comunicar suas experiências com o
Absoluto que permitiram ‘ordenarem’ seu interior e tornarem-nos paradigmas espirituais.

“Uma vez que o homem só pode experimentar o Ser divino no movimento de


sua alma, é na estrutura da psique ordenada que ele buscará o paradigma de uma
ordem social apropriadamente constituída. Voegelin chama esse momento de "salto
no ser". Esse evento é o eixo de sua filosofia da história, e ocorre de dois modos
distintos, independentes e paralelos: na forma da revelação no caso de Israel; na
forma da filosofia no caso da Hélade. O presente volume ocupa-se do último. Mais
exatamente, trata do longo e complexo processo pelo qual a mente grega passou de
sua própria variante do mito cosmológico para a magistral evocação platônica do
efeito ordenador da experiência da ordem na forma da filosofia, que Voegelin
discute no próximo volume.” (Athanasios Moulakis)

Para ele, a história é a um processo rumo a níveis mais elevados de verdade e as


rupturas espirituais que criam os estágios desse processo são efetuadas por personalidades
privilegiadas que não são meramente exemplares, mas que têm o dever de comunicar
aquilo que apreendem, assim como os outros têm obrigação de ouvir. Esses são os
‘pioneiros espirituais’. Ele recebe e articula a mensagem da verdade diferenciada como
representante de seus pares humanos; ele é obrigado e autorizado a transmiti-la a eles.
Para Voegelin, essas evocações com caráter de autoridade, e, por conseguinte, muitas
vezes rudes e arrebatadas, estruturam a história da humanidade.
Se na resenha anterior Voegelin destacou que o gnosticismo era a raiz das
ideologias modernas e, consequentemente, da crise no Ocidente, neste volume ele
aprofunda ainda mais sua análise ao mostrar como esses fenômenos de alienação
desordenam a harmonia fundamental do homem com o cosmos. Esses fenômenos
representam um afastamento de do eu em harmonia com a ordem do ser para justificar a
existência num estado de rebelião contra a verdade. Ainda que quase sempre estejam
presentes nas sociedades humanas, eles se tornam especialmente prevalecentes e
corrosivos na era moderna, dando origem a ideologias que Voegelin classifica como
gnósticas. A raiz do gnosticismo agora já não é somente um sistema de crenças externos
que permeia o homem, mas uma desordem espiritual interna da própria consciência
humana.

“Por mais que falemos sobre a humanidade e a história como se fossem objetos
da ciência, tudo o que é realmente dado são as sociedades concretas cujos membros
se experimentam na forma histórica em virtude do salto no ser. Quando este centro,
luminoso de verdade sobre a ordem do ser e sua origem em Deus, irrompe da
sequência das sociedades humanas, a luz da descoberta se irradia sobre a sequência
e a transforma na história da humanidade na qual o salto no ser ocorreu. A verdade,
certamente, não é uma ilusão; tampouco a descoberta em retrospecto de uma
história da humanidade. Mas se o filósofo aceita a verdade, como a aceita quando
faz da história e da ordem o assunto de sua investigação, tem de enfrentar os
mistérios espirituais e os problemas teóricos que se originam com as manifestações
fenomênicas da natureza genérico-única do homem.” (Eric Voegelin, O Mundo da
Pólis)

O livro é dividido em uma introdução e 3 partes, nas quais ele vai analisar a
transição do mito para a filosofia e a consequente emergência de um novo tipo de forma
ordenadora do espírito humano. Longe de tratar o mito como muitos filósofos modernos
tem feito, Voegelin enxerga neles uma verdade compactada que expressa uma verdade
espiritual do cosmos ainda não diferenciada como na filosofia. A forma mítica somente é
rejeitada quando ela se torna inadequada para expressar o horizonte de consciência do ser
humano com a marcha da história. O ‘salto no ser’ é justamente quando a consciência
alcança uma nova diferenciação e as verdades são descompactadas, expressando um novo
ordenamento espiritual.
“Pois a natureza humana é constante na história da humanidade, a despeito
de seu desdobramento, da ordem compacta à ordem diferenciada: os estágios
discerníveis da verdade progressiva da existência não são causados por "mudanças
na natureza do homem" que romperiam a unidade da humanidade e a dissolveriam
numa série de espécies diferentes. A própria ideia de uma história da humanidade
pressupõe essa constância da natureza; e a realidade dessa constância é atestada
acima de qualquer dúvida pelas experiências do salto no ser, pela experiência de
uma transição da inverdade para a verdade da existência na qual o "antigo homem"
de antes e o "novo homem" de depois são o mesmo homem, ele sofreu a insuflação
do Ser divino.” (Eric Voegelin, O Mundo da Polis)
DO MITO A FILOSOFIA

Na primeira parte Voegelin analisa as origens da civilização grega com os aqueus


e jônios, mas não me ocuparei tanto disso. quando ele passa a tratar de Homero, no
entanto, que fica interessante ao ver sua ‘exegese’ de Ilíada como uma forma do grego
comunicar a expressão da desordem civilizacional enraizada na psique. Voegelin o vê
como o criador de um novo simbolismo da ordem divina e humana que fez uso de uma
psicologia sutil, onde os deuses homéricos não são entidades individuais, mas
manifestações de forças na ordem do ser da qual fazem parte os seres humanos. Seus
deuses são antecipações embrionárias do Deus Único, não são diferentes Dele.

Justificando ainda mais essa análise de Voegelin, Jean Danielou em seu livro God
and the Ways of Knowing, destaca que os pagãos cultuavam Deus de certa maneira, mas
através das suas hierofanias, as suas manifestações visíveis que expressavam o
ordenamento do cosmos. Se o mito é uma verdade compactada, então os deuses
homéricos são formas incompletas e inarticuladas de expressar a majestade do Ser Divino
(que alcançaria seu ápice no desdobramento da filosofia da Revelação cristã).
Na parte posterior, já tratamos da transição do mito para a filosofia e das causas que
permitiram isso. Em Hesíodo, temos um avanço na especulação filosófica com sua
cosmogonia. Em Xenófanes, a forma mítica se torna intolerável em face da experiência
do divino. Os seres humanos criaram deuses à sua própria imagem e elas não podem ser
verdadeiras. A representação antropomórfica é experimentada como imprópria. Aquilo
que era uma forma simbólica, articuladora de uma experiência da verdade, torna-se opaca,
obstruindo seu significado em vez de revelá-lo. Do ponto de vista do estado de
consciência mais diferenciado, as expressões simbólicas prévias parecem simplesmente
fantásticas ou falsas. É aqui que o mito já não consegue expressar totalmente o horizonte
abarcado pela consciência humana.

“Desde Hesíodo até Platão, quando o salto no ser alcançou a aletheia, a verdade
da existência, o antigo mito torna-se o pseudos, a falsidade ou mentira, a inverdade
da existência na qual os antepassados viviam. E o passado não tem melhor sorte nas
mãos dos modernos: os primitivos têm uma mentalidade pré-lógica; os antigos se
entregam a representações antropomórficas dos deuses sem enxergar através das
falácias de sua própria criação; e a Idade Média é a completa escuridão. Tais
depreciações, certamente, não esgotam a atitude do homem em relação ao passado
da humanidade; elas podem ser compensadas por elogios do passado, por expressões
de admiração pelos períodos clássicos, por generosos reconhecimentos da assim
chamada contribuição das sociedades precedentes para o clímax da civilização
contemporânea. As depreciações, contudo, mais claramente que os elogios, apontam
para o problema real: que o passado da humanidade não é um espetáculo encenado
para ser louvado ou censurado por um presente que, na época, era o futuro.” (Eric
Voegelin, O Mundo da Pólis)
DE PARMÊNIDES, HERÁCLITO E OS RUMOS SOFISTAS

Ao analisar Parmênides, Voegelin destaca que ele falou do Ser de uma maneira
inteiramente sem precedentes, isto é, como um enfático "É!" experimentado no transporte
místico do pensador de tal modo que "o ser e o pensamento são idênticos". Heráclito
explora a estrutura da psique e, portanto, efetivamente descobre a psique como o locus da
experiência humana.

“Com Heráclito e Parmênides, isto é, com a descoberta do Ser e da Psique, a


pólis, segundo Voegelin, parece ter exaurido sua substância e perdido sua razão de
ser no que se refere à história da ordem. As rupturas espirituais destituem de
autoridade as estruturas políticas recebidas, mas permanecem elas mesmas restritas
a expressões incidentais e ineficazes, a menos que haja uma resposta por parte da
sociedade. Nessa memorável ocasião histórica, segundo Voegelin, Atenas de fato
respondeu por meio de uma magnífica irrupção cultural e, assim, inaugurou um
novo ciclo da tensão entre as estruturas da sociedade corporificada e a vida do
espírito.” (Athanasios Moulakis)

Ao analisar Sólon, Voegelin mostra que o legislador fornece o paradigma da psique


de um indivíduo excepcional em consonância com a ordem do ser e efetivamente
transpondo essa ordem para a ordem da sociedade. Seu exemplo é essencial por ter sido
real e também verdadeiro. Sem ele, argumenta Voegelin, Platão não poderia ter concebido
seus reis filósofos.
“O drama da ordem é sempre encenado não diante do futuro, mas diante de
Deus; a ordem da existência humana está no presente sob a autoridade de Deus
mesmo nas épocas em que a consciência daquele presente ainda não se desvencilhou
da compacidade do mito. E o filósofo da história deve, portanto, permanecer
criticamente ciente de que o passado e o futuro da humanidade constituem um
horizonte que cerca todo presente, ainda que este só se torne consciente por meio do
salto no ser. Embora saibamos, em virtude de nossa existência na forma histórica,
que a verdade sobre a ordem se diferencia no curso da história, não sabemos por
que a humanidade tem um passado, nem sabemos nada a respeito de sua meta no
futuro.” (Eric Voegelin, O Mundo da Pólis)

Chegamos então a parte final onde o ponto-chave é o capítulo que Voegelin dá aos
sofistas, que funciona como uma prévia do próximo volume. Antes de abordar a
experiência ordenadora de Platão, Voegelin oferece o panorama de desordem espiritual
dos sofistas, onde o trunfo é mostrar a intrínseca relação dos mesmos com a desordem
espiritual atual: os sofistas gregos encontram uma nova expressão espiritual nos ideólogos
modernos, e o indicador da desintegração da ordem da pólis, tanto na prática institucional
como nos corações dos homens, se repete com mais virulência atualmente.

CONCLUSÃO

A abordagem de Voegelin do História das Ideias Políticas para Ordem e História


teve um salto na forma de abordar o problema da desordem espiritual. A desordem agora
possui sua causa no desvio de experiências engendradoras de ordem; elas são, portanto,
um desvio espiritual daquilo que o Ser divino comunica. Por isso que toda ideologia é
uma rebelião contra Deus e o homem, como ele expressa no primeiro volume de Ordem
e História: porque elas são formas de resistência à ordem espiritual e à própria realidade
ordenada do cosmos e da diferenciação da consciência humana.

O perigo do gnosticismo tão tratado em obras anteriores torna-se mais ameaçador


e sutil, porque já não se encontra somente nos discursos ideológicos de comunistas e
nazistas, mas dentro dos corações e mentes de cada ser humano que, por um motivo ou
outro, tornem-se alvos da desordem espiritual e, incapazes de retomarem o equilíbrio
tensional de seu interior, preferem resistir à ordem, e portanto, ao próprio Ser divino que
se comunica com suas almas. O gnosticismo já não é mais um sistema de idéias; mas uma
experiência humana que tomou o controle do espírito.

“Esse movimento e suas descobertas são ameaçados por um grave perigo. A


ocupação com o ser transcendental e com a orientação da alma rumo à medida
invisível pode se tornar uma preocupação que permita ao homem esquecer que vive
num mundo de almas desorientadas. O movimento de uma alma rumo à verdade do
ser não suprime a realidade demônica da qual se afasta. A ordem da alma não é algo
em que alguém pode se acomodar e ser feliz para sempre.

A descoberta da verdade pelos filósofos místicos e, mais ainda, a revelação


cristã podem se tornar uma séria fonte de desordem caso sejam mal compreendidas
como forças ordenadoras que efetivamente governam a sociedade e a história e pode
produzir uma intoxicação que permita ao homem esquecer que o mundo é o que é.”
(Eric Voegelin)

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