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INTRODUÇÃO
Escrever sobre uma obra de Eric Voegelin nunca é uma tarefa fácil, principalmente
quando se trata de uma obra densa e tão rica de análises como as pertencentes à segunda
e terceira fase de estudos em que se dedicou. Após resenhar sobre uma obra com caráter
mais político (ver Hist. Das Ideias politicas IV), a seguinte obra dá um salto considerável
de dificuldade, devido à ampliação do horizonte de consciência que Voegelin teve e
passou a abarcar. O Mundo da Pólis, 2º volume da magnum opus Ordem e História, possui
um enfoque mais meditativo que vai marcar as obras posteriores do autor.
Não é possível resenhar esse volume sem antes falar do propósito do autor.
Anteriormente Voegelin buscou na história das idéias uma forma de entender a crise
civilizacional do Ocidente; porém, ele percebe que falar de ‘história das idéias’ já é
propriamente um erro: o que se deve fazer, ele entende posteriormente, não é traçar uma
história das ideias, mas das experiências engendradoras que possibilitaram o surgimento
destas ideias. Podemos ver um vislumbre disso em sua coleção anterior, mas ela toma
uma nova face quando Voegelin traça uma busca destas experiências em dois pólos que,
segundo ele, constituem os dois polos pelos quais o Ser se revela aos homens: a revelação
pneumática ou espiritual, observada pelos profetas e patriarcas em Israel, e a revelação
noética, feita aos gregos, que é a qual vamos nos ocupar nesta resenha. A revelação
noética foi a forma encontrada pelos gregos de comunicar suas experiências com o
Absoluto que permitiram ‘ordenarem’ seu interior e tornarem-nos paradigmas espirituais.
“Por mais que falemos sobre a humanidade e a história como se fossem objetos
da ciência, tudo o que é realmente dado são as sociedades concretas cujos membros
se experimentam na forma histórica em virtude do salto no ser. Quando este centro,
luminoso de verdade sobre a ordem do ser e sua origem em Deus, irrompe da
sequência das sociedades humanas, a luz da descoberta se irradia sobre a sequência
e a transforma na história da humanidade na qual o salto no ser ocorreu. A verdade,
certamente, não é uma ilusão; tampouco a descoberta em retrospecto de uma
história da humanidade. Mas se o filósofo aceita a verdade, como a aceita quando
faz da história e da ordem o assunto de sua investigação, tem de enfrentar os
mistérios espirituais e os problemas teóricos que se originam com as manifestações
fenomênicas da natureza genérico-única do homem.” (Eric Voegelin, O Mundo da
Pólis)
O livro é dividido em uma introdução e 3 partes, nas quais ele vai analisar a
transição do mito para a filosofia e a consequente emergência de um novo tipo de forma
ordenadora do espírito humano. Longe de tratar o mito como muitos filósofos modernos
tem feito, Voegelin enxerga neles uma verdade compactada que expressa uma verdade
espiritual do cosmos ainda não diferenciada como na filosofia. A forma mítica somente é
rejeitada quando ela se torna inadequada para expressar o horizonte de consciência do ser
humano com a marcha da história. O ‘salto no ser’ é justamente quando a consciência
alcança uma nova diferenciação e as verdades são descompactadas, expressando um novo
ordenamento espiritual.
“Pois a natureza humana é constante na história da humanidade, a despeito
de seu desdobramento, da ordem compacta à ordem diferenciada: os estágios
discerníveis da verdade progressiva da existência não são causados por "mudanças
na natureza do homem" que romperiam a unidade da humanidade e a dissolveriam
numa série de espécies diferentes. A própria ideia de uma história da humanidade
pressupõe essa constância da natureza; e a realidade dessa constância é atestada
acima de qualquer dúvida pelas experiências do salto no ser, pela experiência de
uma transição da inverdade para a verdade da existência na qual o "antigo homem"
de antes e o "novo homem" de depois são o mesmo homem, ele sofreu a insuflação
do Ser divino.” (Eric Voegelin, O Mundo da Polis)
DO MITO A FILOSOFIA
Justificando ainda mais essa análise de Voegelin, Jean Danielou em seu livro God
and the Ways of Knowing, destaca que os pagãos cultuavam Deus de certa maneira, mas
através das suas hierofanias, as suas manifestações visíveis que expressavam o
ordenamento do cosmos. Se o mito é uma verdade compactada, então os deuses
homéricos são formas incompletas e inarticuladas de expressar a majestade do Ser Divino
(que alcançaria seu ápice no desdobramento da filosofia da Revelação cristã).
Na parte posterior, já tratamos da transição do mito para a filosofia e das causas que
permitiram isso. Em Hesíodo, temos um avanço na especulação filosófica com sua
cosmogonia. Em Xenófanes, a forma mítica se torna intolerável em face da experiência
do divino. Os seres humanos criaram deuses à sua própria imagem e elas não podem ser
verdadeiras. A representação antropomórfica é experimentada como imprópria. Aquilo
que era uma forma simbólica, articuladora de uma experiência da verdade, torna-se opaca,
obstruindo seu significado em vez de revelá-lo. Do ponto de vista do estado de
consciência mais diferenciado, as expressões simbólicas prévias parecem simplesmente
fantásticas ou falsas. É aqui que o mito já não consegue expressar totalmente o horizonte
abarcado pela consciência humana.
“Desde Hesíodo até Platão, quando o salto no ser alcançou a aletheia, a verdade
da existência, o antigo mito torna-se o pseudos, a falsidade ou mentira, a inverdade
da existência na qual os antepassados viviam. E o passado não tem melhor sorte nas
mãos dos modernos: os primitivos têm uma mentalidade pré-lógica; os antigos se
entregam a representações antropomórficas dos deuses sem enxergar através das
falácias de sua própria criação; e a Idade Média é a completa escuridão. Tais
depreciações, certamente, não esgotam a atitude do homem em relação ao passado
da humanidade; elas podem ser compensadas por elogios do passado, por expressões
de admiração pelos períodos clássicos, por generosos reconhecimentos da assim
chamada contribuição das sociedades precedentes para o clímax da civilização
contemporânea. As depreciações, contudo, mais claramente que os elogios, apontam
para o problema real: que o passado da humanidade não é um espetáculo encenado
para ser louvado ou censurado por um presente que, na época, era o futuro.” (Eric
Voegelin, O Mundo da Pólis)
DE PARMÊNIDES, HERÁCLITO E OS RUMOS SOFISTAS
Ao analisar Parmênides, Voegelin destaca que ele falou do Ser de uma maneira
inteiramente sem precedentes, isto é, como um enfático "É!" experimentado no transporte
místico do pensador de tal modo que "o ser e o pensamento são idênticos". Heráclito
explora a estrutura da psique e, portanto, efetivamente descobre a psique como o locus da
experiência humana.
Chegamos então a parte final onde o ponto-chave é o capítulo que Voegelin dá aos
sofistas, que funciona como uma prévia do próximo volume. Antes de abordar a
experiência ordenadora de Platão, Voegelin oferece o panorama de desordem espiritual
dos sofistas, onde o trunfo é mostrar a intrínseca relação dos mesmos com a desordem
espiritual atual: os sofistas gregos encontram uma nova expressão espiritual nos ideólogos
modernos, e o indicador da desintegração da ordem da pólis, tanto na prática institucional
como nos corações dos homens, se repete com mais virulência atualmente.
CONCLUSÃO