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02/02/2019 Com Ciência - Cidades

A cidade como objeto de estudo: diferentes olhares sobre o


Editorial: urbano

As cidades e os Maria Josefina Gabriel Sant'Anna


muros
Carlos Vogt
A cidade ocidental moderna tem sido pensada sob distintas matrizes
Reportagens:
teóricas, com diferentes graus de abstração e de generalização. Busca-se
aqui formular um breve panorama de algumas das diversas concepções
Prós e contras da que marcam o pensamento sobre a cidade. Trata-se, portanto, de um
revitalização recorte, o que implica na eleição de alguns paradigmas, na exclusão de
urbana outros e ainda na impossibilidade de contemplar todos os autores e
tendências.

Enfim o Estatuto A cidade segundo os clássicos: Marx, Weber, Durkheim


da Cidade Para Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), a cidade ocidental
moderna constitui o local da produção e reprodução do capital, produto da
Programa Habitat sociedade capitalista, e, portanto, parte integrante de processos sociais
procura mais amplos. Ela expressa a miséria e a degradação da classe operária,
desenvolver a denunciadas com contundência em A situação da classe trabalhadora na
qualidade de vida
nas cidades Inglaterra (Engels, 1845), retomadas posteriormente em O Capital (Marx,
1867). Para os autores, "a história de qualquer sociedade até nossos dias
é a história da luta de classes" (Manifesto Comunista/1848); deriva daí a
Ocupações
revelam déficit concepção do papel histórico e estratégico que eles imputam à cidade
habitacional industrial no século XIX, como locus da luta de classes. Berço da
burguesia e de sua ascensão revolucionária, a cidade é também o espaço
onde se evidencia a exploração dos trabalhadores e onde, dialeticamente,
Fórum Social tal exploração será superada, por meio da revolução operária. A cidade
propõe uma outra
cidade possível capitalista nessa perspectiva tem concretude histórica.

É diferente, nesse sentido, a ótica de Weber, (1864-1920), que concebe a


Novas cidade como tipo-ideal, demarcando um outro campo teórico. Interessa ao
metrópoles, autor explicitar a origem e o desenvolvimento do capitalismo moderno e
velhos problemas da racionalidade que o atravessa em todas as suas esferas, destacando o
papel que a cidade desempenha na emergência desses processos. Sua
reflexão mais sistemática sobre a cidade está em The City (1922),
Conflitos entre posteriormente incorporada à obra Economia e Sociedade sob o título de
centro e periferia
A dominação não-legítima (tipologia de cidades). Nesse texto, Weber
reúne um conjunto de estudos sobre a Antigüidade, sobre a ética
protestante e o espírito do capitalismo e sobre a moral econômica das
Qualidade das grandes religiões. Esse conjunto de estudos mostra a intenção do autor de
águas é cada vez
pesquisar a política econômica urbana, tal como se desenvolveu na cidade
pior
medieval, o que visava compreender o papel da cidade no
desenvolvimento do capitalismo moderno. Na sua forma típica ideal, a
Lixo é problema cidade caracteriza-se por constituir-se como mercado e por possuir
ambiental com autonomia política. A cidade medieval ocidental é a que mais se aproxima
agravantes sociais de seu tipo ideal de cidade.

Transporte em
Para encerrar os clássicos, é preciso mencionar Durkheim (1971), que se
São Paulo: interessa indiretamente pela cidade, graças à atenção que concede à
conflitos e morfologia social. Toma como referência para a análise da sociedade a
soluções
disposição, em determinado território, de uma massa de população de
Poluição sonora certo volume e densidade, concentrada nas cidades ou dispersa nos
piora ambiente campos, que, servida por diferentes vias de comunicação, estabelece
urbano
diferentes tipos de contato. É, portanto, no contexto da anatomia da

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sociedade, em seus aspectos marcadamente estruturais, que a cidade


Preservação surge como substrato da vida social, acumulando e concentrando parcelas
ambiental: significativas da população.
destino
alternativo para o
litoral sul de São Os preceitos teóricos e o alto grau de abstração e de generalidade
Paulo? presentes no pensamento dos clássicos da Sociologia opõem-se à
abordagem largamente empiricista que marca a Escola de Chicago.
Cidade tenta unir
tecnologia com A Escola de Chicago: o nascimento da Ecologia Urbana
inclusão social

A Escola de Chicago inaugura uma reflexão inédita ao tomar a cidade


como seu objeto privilegiado de investigação, tratando-a como variável
Educação para isolada, o que em si não constituiria um mérito, mas o que renderia à
uma nova cidade
Escola os créditos da criação da Sociologia Urbana como disciplina
especializada. A validade dessa reverência é discutível. Para Castells, essa
sociologia que advoga a idéia da existência de um urbano per se, não é
Brasília contrastes uma ciência, e sim uma ideologia. Essa crítica, mesmo procedente, não
de uma cidade
planejada
invalida a importância dessa abordagem que se orienta pelos conceitos da
ecologia humana. A teoria de Robert Park, ilustre representante da Escola,
sobre a ecologia humana e as áreas naturais pressupõe uma analogia
Vilas significaram entre o mundo vegetal e animal, de um lado, e o mundo dos homens, de
distância entre
patrões e
outro. Utiliza os conceitos de competição, processo de dominação e
operários processo de sucessão, para explicar tal similaridade. A cidade é
apreendida por meio de um referencial de análise analógico que tem por
Artigos:
base a ecologia animal, daí identificar a Escola de Chicago como Escola
Dimensões da Ecológica.
tragédia urbana
Ermínia
Maricato
Louis Wirth, outro autor de destaque da Escola, afirma que a cidade
produz uma cultura urbana que transcende os limites espaciais da cidade,
afirmação totalmente inovadora. A cidade atua e se desdobra para além
Aprovação do
Estatuto da de seus limites físicos, através da propagação do estilo de vida urbano, e
Cidade torna-se o locus do surgimento do urbanismo como modo de vida.
Geraldo Moura
O empirismo que marca a abordagem da Escola - que transforma a cidade
O passado nas de Chicago em um "laboratório social"- resulta do interesse de buscar
cidades do futuro
Cristina
soluções concretas para uma cidade caótica marcada por intenso processo
Meneguello de industrialização e de urbanização, que ocorre na virada do século XIX
para o XX. Seu crescimento demográfico espantoso, seu imenso
"As cidades nos
países
contigente imigratório, seus guetos de diferentes nacionalidades
subdesenvolvidos" geradores de segregação urbana, sua concentração populacional
em um mundo excessiva e suas condições de vida e de infra-estrutura precaríssimas,
globalizado
Tatiana Schor
favorecem a formulação pela Escola da idéia da cidade como problema,
que dificulta a articulação de um pensamento com maior grau de
Cidades e seus abstração acerca da cidade.
fragmentos
Rogério Lima A sociologia francesa: o urbano capitalista

Cidade, língua, Para os sociólogos franceses (bem como para os norte-americanos


escolae a
violência dos
fundadores da eloqüentemente intitulada "new urban sociology", C.
sentidos Wright Mills e Floyd Hunter, para citar apenas os mais influentes), o
Cláudia Pfeiffer urbano deveria ser compreendido como espaço socialmente produzido,
A cidade como assumindo diferentes configurações de acordo com os vários modos de
objeto de estudo organização socioeconômica e de controle político em que está inserido.
Maria Josefina Ganha importância a interação entre as relações de produção, consumo,
Gabriel
Sant'Anna troca e poder que se manifesta no ambiente urbano. Esse enfoque
Poema:
expressa o descontentamento dos neomarxistas franceses com a idéia
defendida pela Escola de Chicago de que haveria um urbano per se, a
Manual do povo partir do qual era possível explicar toda uma série de fenômenos sociais
peregrino (Valladares e Freire-Medeiros, 2001).
Carlos Vogt
Assim, no final da década de 1960, Castells, Lojkine, Ledrut e Lefebvre
propõem novos marcos para a renovação da reflexão sobre a cidade. Com
Bibliografia
tal enfoque, politiza-se a questão urbana e surgem novas questões: os
movimentos sociais urbanos, os meios de consumo coletivo, a

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estruturação social do território na sociedade capitalista e o papel do


Estado na urbanização (Gonçalves, 1989, p. 71).
Créditos
Lojkine (1981) discute a questão do Estado na sociedade de capitalismo
avançado, com base na hipótese de que a urbanização, como uma forma
desenvolvida da divisão social do trabalho, é um dos maiores
determinantes do Estado do Bem-estar Social. Analisa o papel do Estado
na urbanização capitalista, a relação da política urbana e suas dimensões
com a luta de classes e a questão dos movimentos sociais urbanos diante
do Estado.

Henri Lefebvre, outro expoente dessa vertente francesa, traz um novo


enfoque sobre a cidade, concebendo-a como o reino da liberdade e do
novo urbanismo. Mesmo reverenciado como um dos maiores teóricos do
marxismo contemporâneo, Lefebvre tem suas últimas obras criticadas, no
campo da discussão urbana, tanto por Castells (1977) quanto por Ledrut
(1976). Argumentam que o autor expulsa o marxismo do campo das lutas
de classe para o da "cultura", formulando assim uma concepção ideológica
do urbano. Pode-se, em defesa de Lefebvre, dizer que na sua ótica o
urbano não representa apenas a transformação, pelo capitalismo, do
espaço em uma mercadoria, mas também a arena potencial do cotidiano
vivido como jogo, como festa (1970). Considera simplista "a concepção
que coloca, de um lado, a empresa e a produção e, de outro, a cidade e o
consumo", o que não permite desvendar a verdadeira dimensão do espaço
(1990), numa clara alusão às críticas de Castells e Ledrut.

A cidade na visão latino-americana

A década de 1960 inaugura também a reflexão latino-americana sobre


urbanização e desenvolvimento em "países periféricos". Aníbal Quijano,
José Nun, entre outros, elegem a teoria da marginalidade e da pobreza
como seu principal foco de atenção. Esse paradigma, que sempre fornece
explicações veladamente funcionalistas à desigualdade socioeconômica,
será por isso criticado por estudiosos urbanos brasileiros.

Sociologia urbana no Brasil

Enquanto nos Estados Unidos e na Europa, a década de 1960 inaugura um


confronto entre uma sociologia urbana de cunho ecológico e uma "nova
sociologia" preocupada com o urbano de forma mais abrangente, no
Brasil, essa mesma década marca o próprio surgimento da sociologia
urbana como disciplina especializada. Apesar de esforços isolados de
pesquisa e reflexão sobre pequenas comunidades urbanas desde fins dos
anos 1940 (inspirados, sobretudo, por antropólogos americanos como
Donald Pierson e Charles Wagley), a sociologia brasileira só aparece de
fato e de direito, como uma "ciência do urbano", com a publicação, em
1968, do livro Desenvolvimento e Mudança Social: formação da sociedade
urbano-industrial no Brasil, de J. B. Lopes, a primeira grande tentativa de
reflexão sociológica sobre a relação entre desenvolvimento industrial,
falência do modelo patrimonial e urbanização (Valladares e Freire
Medeiros, 2001). O trabalho de Lopes, bem como os estudos latino-
americanos, motivaram os sociólogos brasileiros da década de 1960, que,
entretanto, rejeitaram criticamente o paradigma da marginalidade.
Pesquisas pioneiras, como as de Francisco Oliveira, de Paul Singer, de
Maria Célia Paoli, de Manoel Tostes Berlink, demonstram que a
marginalidade resulta não de um problema de integração social, mas de
uma questão estrutural: a preservação da pobreza ocorre através de
mecanismos institucionais que nada têm de "marginais" ao sistema.
Instala-se, então, uma ruptura com as concepções anteriores sobre
migração e marginalidade e se traz à tona o papel desempenhado por
formas não-capitalistas de produção na acumulação do capital.

Como resultado, as noções de "espoliação urbana" (Kowarick, 1979) e de


"periferização" orientam novas pesquisas. Ganha destaque a dimensão
política da urbanização e proliferam os estudos sobre a dupla espoliação
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sofrida pelas classes populares: como força de trabalho subjugada pelo


capital e como cidadãos submetidos à lógica da expansão metropolitana
que lhes negava o acesso aos bens de consumo coletivos (Valladares e
Freire, 2001).

Quanto aos clássicos da Sociologia, foi o pensamento de Marx que mais


influenciou a produção sobre a cidade, quer por meio da sociologia urbana
francesa, quer na visão crítica da teoria da marginalidade.

No que se refere à Escola de Chicago, sabe-se que ela exerceu grande


influência entre os pensadores brasileiros. Sua herança foi marcante, seja
fundando, curiosamente, os estudos de comunidade próprios da
Sociologia Rural, que têm na obra de Antonio Candido Parceiros do Rio
Bonito (1964) seu exemplo emblemático, seja na Antropologia Urbana
que até hoje trabalha com os métodos e alguns conceitos da Escola de
Chicago, como por exemplo a noção de "zona moral" de Park.

Por sua vez, os preceitos da sociologia urbana francesa marcaram os anos


1980 como pano de fundo teórico e como início dos estudos sobre as
contradições urbanas, sobretudo o estudo da grande novidade temática
da década: os movimentos sociais urbanos.

Hoje os estudiosos urbanos continuam importando paradigmas, mas


permanece o empenho de investigar e de explicar as particularidades da
realidade urbana brasileira. A temática da globalização, por exemplo, está
presente nos estudos sobre as metrópoles brasileiras. A discussão sobre
dual city, uma cidade de estrutura social polarizada, dual, em que o
espaço dos ricos contrapõe-se ao dos pobres, resultante da globalização
das economias urbanas, não deixa de motivar os pesquisadores urbanos,
mas há uma preocupação com os limites da aplicabilidade de tal noção. O
que se nota como peculiar à reflexão contemporânea sobre a cidade é que
ela se torna cada vez mais ampla e multidisciplinar incrementando o leque
temático da Sociologia Urbana.

Atualizado em 10/03/2002

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