Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ÍH
ÂS VICTIMAS-ALGOZES
MAN
Ie ne fay rien
sans
Gayeté
(Montaigne, Des livres)
Ex Libris
José Mindlin
AS VIGTIMAS-ALGOZES
AS VICTIIÂS-ALGOZES
QUADROS DA ESCRAVIDÃO
ROMANCES
IOR
VOLUME II.
RIO DE JAME1RO.
Typographia—PERSEVERANÇA—rua do Hospício n. 91.
1S60.
III
LUCINDA-A MÜCAMA.
Era o dia feliz que marcava o décimo
primeiro anniversario natalicio de Cândida.
A espaçosa e bella caza de campo de Flo-
rencio da Silva estava vestida de galla, e
resplendendo alegria. A cada momento che-
gavSo carros, conduzindo famílias, graciosas
amazonas e elegantes cavalleiros, que vinhao
applaudir a festa da ditoza menina.
Tanto ardor festival indicava claramente
a importância e o merecimento do pae de
Cândida.
Florencio da Silva era um honrado, in-
telligente e rico negociante da pequena ci-
dade de da província do Rio de Janeiro,
e também um pouco agricultor por distrac-
ção e gosto, possuindo á meia légua da
cidade, onde commerciava, uma chácara es-
meradamente tratada, comprara nas visinh an-
cas delia extensa situação, e ahi, desde o
principio da guerra civil dos Estados-Uni-
dos da America do Norte, explorava com
o maior proveito a cultura do algodão.
Bom, affavel e generoso, repartindo as
sobras da riqueza que accumulava com os
pobres que não erão vadios, e entretendo
numerosas relações no seo e nos visinhos
municípios, Florencio da Silva era ainda
por isso mesmo poderosa e legitima influen-
cia eleitoral e política na sua comarca, e
intimamente ligado como se achava por laços
de estreita amizade e de partido com Plá-
cido Rodrigues o mais opulento fazendeiro
e capitalista do lugar, não haveria trium-
pho possível contra elles em lides eleito-
raes, se no Brasil não houvesse o poder
mágico e despotico da policia que faz da
voz do povo echo obrigado e misero da
ordem dictadá e pelo governo aos falsos,
ou falsificados comícios da nação.
Florencio da Silva não sabia como agra-
decer á Deos a sua felicidade: estimado
geralmente, gozando de consideração igual
ao seo credito, justo tributo pago ás suas
virtudes, tinha no lar doméstico, em Leo-
nidia, o thezouro de uma esposa modelo ;
e dous filhos, á quem idolatrava, Liberato,
o mais velho, que fazia na Corte os seos
estudos de preparatórios, e Cândida, que
completava então onze annos de edade, sem
fallar em Frederico, filho de Plácido Ro-
drigues, que fora creado aos peitos de Leo-
nidia, e que também pertencia ao seo co-
ração.
Elle tinha a família habitando ordinária-
m
mente na chácara, o seo paraizo, enriquecida
de jardins, de prodigiosa variedade de ar-
vores fructiferas e de ornamento, de lagos
e fontes, de arroio natural correndo sobre
leito de pedras, de verdura e relva, e me-
lhor que tudo isso, do amor abençoado e
suavíssimo da esposa e dos filhos.
Era nessa chácara que elle estava feste-
jando os annos da sua querida Cândida.
A menina, enlevo e estremecido cuidado
de seos pães, mostrava-se naquella edade
em que a infância ainda ri, e a puberdade
em longes promessas se annuncia aos olhos
maternaes que observão, nesse estádio da
vida, período de insensível mas progressiva
metamorphose, em que duas edades se mis-
turão e se combatem, uma para morrer entre
flores, risos e sonhos de anjo, outra para
8
— Lucinda!
— Ha de ver que foi isso : não podia ser
outra cousa, sendo minha senhora formosa
como é.
XI.
— Como?...
— Desde dous annos freqüento demais o
theatro da cidade, e não tem havido mez
em que faltasse um baile em festejo de
baptisado, de casamento, ou de commemo-
ração de natalicio ou sob mil pretextos, para
obrigar-me á levar Cândida á sociedade....
— Ah ! também é preciso que ella se re-
creie Cândida não é freira.
— Mas a mim me cumpre ser mais pru-
dente : eu o serei depois que vocês partirem
para os Estados-Unidos.
— Meu pae desconfia de alguma incli-
nação?., notou algum acto leviano ?...
— Oh ! não! juro que não; acudio Flo-
rencio.
E logo começou enthusiasmado á fazer o
elogio da innocencia e das virtudes de Cân-
dida.
Lucinda aproveitou o fervor do elogio
para retirar-se pé por pé e sem ter sido
percebida por alguém na traiçoeira escuta.
A mucama estava alvoroçada pela idéa
daquelle casamento, furiosa contra o em-
penho de seos senhores, e meditando já
sobre os meios de contrarial-o.
Meia hora depois, Lucinda atravessava plá-
cida e alegremente a sala de jantar, onde
— 116 —
— Qual?
— Minha filha.
Cândida vio que Frederico se turbara, e
voltara o rosto : revoltou-se dentro de si
contra o censor á quem aliás tinha pro-
mettido plena confiança de irmã; mas obri-
gada á respeita-lo, dice:
— Meo pae, eu não devo ser ingrata ao
meo antigo mestre....
Souvanel impalledeceo: Frederico olhou
com reconhecimento para Cândida.
Florencio da Silva quiz insistir; sua filha
porem o interrompeo, dizendo :
— Conheço por experiência própria, a su-
perioridade do methodo de ensino de Mr.
Souvanel; mas quero aprender menos, con-
servando o meo velho professor.
Não faltou quem louvasse o procedimento
de Cândida, que entretanto nunca fora tão
hypocrita e refolsada.
O almoço terminou. Cândida prendeo-se
todo o dia ás outras senhoras, e evidente-
mente evitou Souvanel.
Frederico não comprehendia ainda até
onde pode chegar o fingimento de uma
moça namoradeira, e começou a ter espe-
ranças de poder salvar Cândida, sem per-
turbar a serenidade e o amor maternal de
— 201 —.
Dançavão.
Leonidia vio Frederico em pé á olhar
para as contradanças em que não tomara
parte, e chamou-o, mostrando-lhe uma ca-
deira á seo lado.
— Porque não danças? perguntou ella á
seo filho adoptivo.
T— Prefiro quase sempre ver dançar os
outros; respondeo Frederico.
—. Eu sei; mas desde hontem me pare-
ces triste.
Frederico sorrio-se.
— Minha mãe vive sempre em cuidados
por mim ; dice elle.
— Não é resposta negativa... é subter-
fúgio . . .
— 206 —
— O que ?
— Ouvir da própria boca do amado, em
conversação secreta, isso mesmo que elle
escreve e muito mais que elle não pode
escrever.
— Lucinda ! que teima ! . . .
— Pois se minha senhora está com ver-
gonhas e medos de menina tola! é couza
do outro mundo uma moça conversar em
segredo, com o moço que hade ser seo ma-
rido?... e elle que a não vê mais, e de-
zeja tanto ve-la?
— Não insistas mais nisto ; eu t'o pro-
hibo.
— O moço francez hade pensar que minha
senhora tem medo delle, e de si
Cândida corou, e revoltou-se : não se con-
teve e dice :
— Frederico tem razão devo acaute-
lar-me de ti!
A mucama recuou um passo perturbada ;
mas logo depois satanicamente inspirada,
perguntou :
— Elle dice á rainha senhora, que des-
confiasse de mim ?
— Dice-me.
Lucinda levou á boca ambas as mãos
como para conter uma risada.
— 241 —
— E então Lucinda?...
— E' preciso, esperar, minha senhora.
Cândida abafou ura gemido.
— Esperar até quando?.
— Até que elle possa escrever-lhe ; não
ha outro recurso ; porque minha senhora
não deve mais expor-se
— Oh! nunca murmurou Cândida
aterrada.
— Também elle pensa assim não por
si; mas por minha senhora
— Também elle ?... dice a infeliz moça,
sobresaltando-se.
— Não por si , repetio a pérfida e
malvada mucama.
Cândida poz-se a chorar.
— De que chora?..
— E hontem ?... porque não pensou elle
assim e tu porque...'.
Os soluços cortarão a folia á victima.
XLI.
— MinKa irmã!
— Chama-me assim ; é o único titulo que
poderás dar-h\e.
— E nossa mãe?...
— Deixemo-la orer e viver algumas se-
manas.'... algum Tempo no seo doce en-
gano .... oh!., Frederico!... Frederico !...
— Cândida fazés-me estremecer...
A pobre moça exclamou immediatamente,
interrompendo Frederico:
— E' loucura mas estou louca
amo Dermany.... não serei delle; mas hei-
de morrer solteira
— Antes isso ; dice gravemente o mancebo.
— Minha mãe está foliando perto.... ella
vae chegar
—^Enganemos pois nossa mãe, Cândida;
é preciso engana-la.... é indispensável en-
gana-la. ..
— Como? porque?.., tu folias, tremendo....
— Cândida, nossa mãe concentra no cora-
ção desgosto assassino.... o corpo resentio-
se dos martyrios da alma.... e aphtisica....
— Oh !... meo Deos !..
— Silencio, Cândida; não a mates; dice
Frederico.
— Como se não fosse eu que a estivesse
matando!... murmurou a infeliz moça.
— 336 —
— Minha irmã !
Cândida reconheceo Frederico, exhalou um
gemido de agonia, e seo corpo sem vida
dobrou-se inerte nos braços do mancebo.
— Que seja um desmaio, meo Deos! dice
Frederico, sustendo Cândida.
— Seja antes a morte; dice Liberato, afas-
tando-se apressado.
— Ajuda-me á soccorrer nossa i r m ã ! . . . .
Liberato em vez de responder ou voltar,
seguio, rugindo de raiva, para o cortiço.
LIV.
I.
FIM.
OBRAS DO MESMO AUTOR
\ Moi
! I ÍM VNfFS :
BRASILIANA DIGITAL
1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais.
Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são
todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial
das nossas imagens.