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085220
A retórica é a arte de convencer pelo
discurso; é também a teoria dessa arte,
criada pelos gregos e constitutiva do nosso
• humanismo.
Depois de um longo eclipse ela voltou em
nossos dias com muita força, a ponto de
ser aplicada à imagem, ao cinema, à
música, ao inconsciente. INTRODUÇÃO À RETÓRICA
Cinco enfoques complementares são
desenvolvidos nesta introdução: uma
apresentação histórica do "sistema"
retórico, uma exposição metódica dos
procedimentos retóricos, uma aplicação
prática - "leitura retórica de diversos
textos", um glossário com definições dos
termos técnicos e uma filosofia da retórica.
Tradução
IVONE CASTILHO BENEDETTI
Martins Fontes
São Paulo 2004
Índice analítico
l"ledição
Prefácio ......................................................................... . XI
.::te-ero de 1998 Introdução: Natureza efunção da retórica .................... . XIII
-mmmr0 de 2004 Arte, discurso e persuasão......................................... XIV
Função persuasiva: argumentação e oratória............. XVII
A função hermenêutica ............................................. XVIII
A função heurística.......... ........ ..................... ............ XIX
do original A função pedagógica........ ........ ............ ........ ............. XXI
Vadim Vale inot'Ikh Nikitin
_Revis'; s gráficas
"-na Maria O. M. Barbosa
Capítulo I - Origens da retórica na Grécia ................. .
Marise Simões Leal
Produção gráfica
Geraldo Alves
Nascimento da retórica ............................................ . 2
PaginaçãolFotolitos Origem judiciária ............................................... . 2
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Córax .................................................................. . 3
Origem literária: Górgias ................................... .. 4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A retórica e os sofistas ............................................ .. 6
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reboul, Olivie!. 1925-
Protágoras: o homem medida de todas as coisas .. 7
Introdução à retórica I Olivier Reboul tradução Ivone Castilho Fundamento sofistico da retórica ....................... .. 9
Benedetti. - São Paulo: Martins Fontes, 2(X)4. - (Justiça e direito).
Isócrates ou Platão? ................................................ . 10
Título original: Introduction à la rhétorique Isócrates, o humanista ........................................ . 10
Bibliografia.
ISBN 85-336-2067-5 Uma pausa .......................................................... . 12
1. Retórica I. Título. 11. Série. Texto 1 - Platão, Górgias, 455 da 456 c, trad. M.
04-6899 CDD-808
Croiset ................................................................ . 13
índices para catálogo sistemático: Retórica e cozinha .............................................. . 16
1. Retórica 808 De que "ciência" se trata? .................................. .. 18
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Lida. Capítulo 11 - Aristóteles, a retórica e a dialética ........ .. 21
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867 Uma nova definição de retórica .............................. .. 22
e-mail: info@martin,ifontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
Texto 2 - Aristóteles, Retórica, livro I, capo 2, Capítulo IV - Do século I ao XX .................................. . 71
1355 a-b ............................................................. .. 22 Período latino .......................................................... . 71
Uma definição mais modesta............................. . 23 Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras ........ . 71
A argumentação de Aristóteles .......................... .. 24 Retórica e moral .............. , .................................. . 73
O que é dialética? .................................................... . 27 Retórica e democracia ........................................ . 74
A dialética é umjogo .......................................... . 28 Por que o declínio? .................................................. . 77
Tudo para ganhar ............................................... .. 29 Retórica e cristianismo ....................................... . 77
Respeitar as regras do jogo ................................ .. 30 Verdadeiras causas do declínio: retórica, verdade
Utilidade do jogo dialético .................................. . 32 e sinceridade ....................................................... . 79
Retórica e dialética .................................................. . 34 Hoje: retóricas ......................................................... . 82
O que elas têm em comum .................................. . 35 Uma retórica estilhaçada ................................... .. 82
Dialética, parte argumentativa da retórica .......... . 36 Retórica da imagem ............................................ . 83
Moralidade da retórica ....................................... .. 37 Retórica da propaganda e da publicidade ............ . 85
Conclusão: Aristóteles e nós .............................. .. 39 Nova retórica contra nova retórica ..................... .. 87
retórica clássica, que começa com Aristóteles e se prolonga até É verdade que a retórica antiga dá à palavra discurso um
o século XIX. É a ela que recorreremos para definir a retórica. sentido claramente mais restrito, mas nós mostraremos que se
É verdade que se pode criticar a tradição, mas ela pelo menos pode perfeitamente ampliar o objeto da retórica sem a trair.
tem a vantagem de nos oferecer elementos estáveis, indepen- Questão "de ordem": este livro é retórico?
dentes das preferências individuais e dos modismos. Pode-se
criticar a tradição, e não deixaremos de fazê-lo quando for o Portanto, a retórica diz respeito ao discurso persuasivo, ou
caso, mas pelo menos saberemos o que estamos criticando e o ao que um discurso tem de persuasivo. O que é pois persuadir?
que pretendemos suplantar. É levar alguém a crer em alguma coisa. Alguns distin-
guem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindo
este último não em fazer crer, mas em fazer compreender. A
Arte, discurso e persuasão nosso ver essa distinção repousa sobre uma filosofia - até
mesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto que
c Eis, pois, a definição que propomos: retórica é a arte de opõe no homem o ser de crença e sentimento ao ser de inteli-
persuadir pelo discurso. gência e razão, e postula ademais que o segundo pode afirmar-
Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. Até segunda
oral, constituída por uma frase ou por uma seqüência de frases, ordem, renunciaremos a essa distinção entre convencer e per-
que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido. suadir.
De fato, um discurso incoerente, feito por um bêbado ou um Por outro lado, manteremos uma distinção pertinente, por-
louco, são vários discursos tomados por um só. quanto inerente ao próprio termo "persuadir":
Conforme nossa definição, a retórica não é aplicável a to-
dos os discursos, mas somente àqueles que visam a persuadir, o 1) Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa.
que de qualquer modo representa um belo leque de possibilida- 2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.
des! Enumeremos as principais: pleito advocatício, alocução
política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábu- Distinção capital para compreender a retórica, pois em (1)
la, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciên- Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, en-
cias humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desde quanto em (2) ele conseguiu levar-me afazer alguma coisa, não
que "de tese", e o poema satírico ou laudatório. se sabendo se acredito nela ou não. A nosso ver, a persuasão
O que sobra então de não retórico? Os discursos (no senti- retórica consiste em levar a crer (1), sem redundar necessaria-
do técnico definido acima) que não visam a persuadir: poema mente no levar a fazer (2). Se, ao contrário, ela leva a fazer sem
lírico, tragédia, melodrama, comédia, romance, contos popula- levar a crer, não é retórica.
res, piadas. Acrescentemos os discursos de caráter puramente Pode-se dizer, por exemplo, que alguém persuadiu alguém
científico ou técnico: modo de usar, em oposição a anúncio a fazer alguma coisa por ameaça ou promessa, e que nisso resi-
publicitário; veredicto, em oposição a pleito advocatício; obra dia toda a eficácia de sua argumentação. Resposta: é verdade
científica, em oposição à vulgarização; ordem, em op?sição a que se falar de eficácia, mas não de argumentação. Esta
slogan: É proibido fumar não é retórico, ao passo que E proibi- visa se'tiíl>re a levar a crer. Por certo, através de promessa ou
do fumar, nem que seja "Gallia"*, é retórico. ameaça, pode-se persuadir alguém a cometer um erro, mas
esse alguém estará persuadido de que o erro não é erro?
* Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.) No entanto, Pascal escreve:
XVI INTRODUÇÃO À RETÓRICA INTRODUÇÃO XVII
Ao advogado pago adiantadamente parecerá bem mais jus- mas em retórica ele é inevitável!) constituem uma bela ilustra-
ta a causa que defende! (Pensées, p. 365) ção; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam uma
argumentação técnica, que não deixaria de ser pesada, Pascal
Na realidade, Pascal nada tem contra os advogados em retoma as mesmas idéias na forma de panfleto irônico, eficaz
particular; é do homem que ele não gosta, do gênero humano porque claro e jocoso, e que ainda tem a ver conosco. A arte de
corrompido pela queda, cuja propensão para acreditar "no que persuadir produziu muitas obras-primas.
sabe ser falso" mostra até que ponto ele é miserável. Entretan- Mas não será ela também a arte de enganar, ou pelo menos
to, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que o de manipular? Voltaremos a esse problema no Capítulo 11. En-
erro não é regra, e que existe um tipo de persuasão que não se quanto isso, para compreender melhor a retórica, interrogue-
obtém nem pelo dinheiro nem pela ameaça: a que conceme à mo-nos sobre suas funçõ"es; em outras palavras, sobre os servi-
retórica. ços que ela é capaz de prestar aos que a empregam, e talvez
Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego também aos demais.
f!:chné, é ambíguo, e até duplamente ambíguo. Em primeiro lu-
gar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto
Função persuasiva: argumentação e oratória
uma competência adquirida através do ensino. Depois porque
designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na cria-
A primeira função da retórica decorre de sua definição:
ção ultrapassa a técnica e pertence somente ao "gênio" do
arte de persuadir. É, aliás, a mais evidente e a mais antiga; e o
criador. Em qual ou em quais desses sentidos se está pensando
problema maior deste livro será saber por que meios um dis-
quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos. curso é persuasivo.
Para começar, existe uma retórica espontânea, uma apti- Aqui nos limitaremos a uma distinção realmente funda-
dão para persuadir pela palavra que talvez não seja inata - não mental. Esses meios são de ordem racional alguns, de ordem
entremos nessa discussão agora -, mas que tampouco é devida afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros
a uma formação específica, e também existe uma retórica ensi- mais afetivos, pois em retórica razão e sentimentos são insepa-
nada com o nome, por exemplo, de "técnicas de expressão e ráveis.
comunicação", que serve para formar vendedores ou políticos, Os meios de competência da razão são os argumentos. E
para ensinar-lhes aquilo que outros vendedores, outros políti- veremos que estes são de dois tipos: os que se integram no ra-
cos parecem já saber naturalmente. Quais são os mais eficazes, ciocínio silogístico (entimemas) e os que se fundamentam no
quais deles conseguem "se sair melhor"? Sem dúvida os últi- exemplo. Ora, como já notava Aristóteles, o exemplo é mais
mos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontra- afetivo que o silogismo; o primeiro dirige-se de preferência ao
mos os mesmos procedimentos, intelectuais e afetivos, proce- grande público, enquanto o segundo visa a um auditório espe-
dimentos que fazem da retórica uma técnica. cializado, como um tribunal.
Mas será que se trata de simples técnica? Não, é muito Os meios que dizem respeito à afetividade são, por um
mais. O verdadeiro orador é um artista no sentido de descobrir lado, o etos, o caráter que o orador deve assumir para chamar a
argumentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de atenção e angariar a confiança do auditório, e por outro lado o
que ninguém teria idéia e que se mostram ajustadas; artista patos, as tendências, os desejos, as emoções do auditório das
cujos desempenhos não são programáveis e que só se fazem quais o orador poderá tirar partido. De modo um pouco dife-
sentir posteriormente. Les provincia/es de Pascal (outra vez, rente, Cícero distingue docere, de/ectare e movere:
XVIII INTRODUÇÀO A RETÓRICA INTRODUÇÀO XIX
Docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do dis- orador - aquele que fala ou escreve para convencer - nunca
curso. está sozinho, exprime-se sempre em concordância com ou-
Delectare (agradar) é seu lado agradável, humorístico, etc. tros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de
Movere (comover) é aquilo com que ele abala, impressiona outros discursos.
o auditório. Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreender
os que lhe fazem face, captar a força da retórica deles, bem
Em resumo, o persuasivo do discurso comporta dois as- como seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretação é feito
pectos: um a que chamaremos de "argumentativo"; e outro, de por todos de modo mais ou menos espontâneo. Até a crianci-
"oratório". Dois aspectos nem sempre fáceis de distinguir. nha mostra ser um excelente hermeneuta, por exemplo quando
Os gestos do orador, o tom e as inflexões de sua voz são percebe que a ameaça dos pais é aterradora demais para ser
puramente oratórios. Todavia, o que dizer das figuras de estilo, executada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentido
aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retórica? A que lhe convém I.
metáfora, a hipérbole, a antítese são oratórias por contribuírem Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber
para agradar ou comover, mas são também argumentativas no também a quem se está falando, compreender o discurso do
sentido de exprimirem um argumento condensando-o, toman- outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas cila-
do-o mais contundente. Assim é a célebre metáfora de Marx: das, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o
"A religião é o ópio do povo." não-dito. Aí vai um exemplo dessa hermenêutica espontânea.
Se for introduzido um último termo, a demonstração, meio Durante o debate de televisão que antecedeu as eleições presi-
de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo e denciais de 1981, Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: "O se-
que escapa portanto ao domínio da retórica, chega-se ao se- nhor conhece a cotação do marco hoje?" Mitterrand, que prova-
guinte esquema: velmente não sabia, adivinha que Giscard quer impor-se ao
público como um economista sério, um especialista, um mestre,
retórico e lhe responde taco a taco: "Senhor Giscard, não sou seu aluno."
I
I I E não se falará mais de cotação do marco durante todo o debate.
demonstrativo argumentativo oratório
I Essa é a função hermenêutica da retórica, significando
.1
racIOnal "hermenêutica" a arte de interpretar textos. Na universidade
atual, essa função é fundamental, para não dizer única. Não se
ensina mais retórica como arte de produzir discursos, mas como
A função hermenêutica arte de interpretá-los. Aliás, é o que faremos aqui. Mas aí a
retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa a
Entretanto, por mais primordial, a função persuasiva não produzir, mas uma teoria que visa a compreender.
é única. Se a retórica é a arte de persuadir pelo discurso, é pre-
ciso ter em mente que o discurso não é e nunca foi um aconte-
cimento isolado. Ao contrário, opõe-se a outros discursos que
o precederam ou que lhe sucederão, que podem mesmo estar ..
A função heurística
implícitos, como o protesto silencioso das massas às quais se Arte de persuadir pressupõe que não estamos sozinhos; só
dirige o ditador, mas que contribuem para dar sentido e alcan- pode ser exercida quando se interpreta o discurso de outrem.
ce retórico ao discurso. A lei fundamental da retórica é que o Pois bem, será mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a
xx INTRODUÇÃO À RETÓRICA INTRODUÇÃO XXI
persuasão não passa de um modo - o mais insidioso de todos mais hábil tem diante de si outros advogados que fazem o mes-
por certo - de tomar o poder, de dominar o outro pelo discurso. mo trabalho em sentido inverso. Do mesmo modo, o político
Podemos achar isso, é certo, desde que nos abstenhamos de confronta outros políticos; o pedagogo, outros pedagogos. Cada
persuadir alguém disso! um deles - essa é a regra do jogo - defende sua causa sendo tão
Na realidade, quando utilizamos a retórica não o fazemos persuasivo quanto possível, e contribui assim para uma decisão
só para obter certo poder; é também para saber, para encontrar que não lhe pertence, que incumbe a um terceiro: o juiz.
alguma coisa. E essa é a terceira função da retórica, que deno- Num mundo sem evidência, sem demonstração, sem previ-
minaremos "heurística", do verbo grego euro, eureka, que sig- são certa, em nosso mundo humano, o papel da retórica, ao de-
nifica encontrar. Em resumo, uma função de descoberta. fender esta ou aquela causa, é esclarecer aquele que deve dar a
Claro que ela não é óbvia. Hoje em dia, quando falamos palavra final. Contribui - onde não há decisão previamente es-
em descoberta, pensamos em ciência, e a ciência não quer nem crita - para inventar uma solução. E faz isso instaurando um de-
saber de retórica. Quem sabe se por parte dos cientistas isso bate contraditório, só possível graças a seus "procedimentos",
não é um denegação, não é a recusa de enxergar sua própria sem os quais logo descambaria para o tumulto e a violência.
retórica. Mas pouco importa: o que se pergunta é o que a retóri- A retórica possui realmente uma função de descoberta.
ca pode ter para descobrir...
Convenhamos, porém, que vivemos num mundo que não
condiz inteiramente com o conhecimento científico, um mundo A função pedagógica
em que a verdade raramente é evidente, e a previsão segura rara-
mente possível. No campo econômico e político, é preciso tomar Agora, poderemos ser censurados por termos ampliado
decisões sem saber com toda a certeza se elas são as melhores, abusivamente o campo da retórica. De fato, se nos reportarmos
visto que o "com toda a certeza" só vem depois do feito! Nos aos programas escolares da Idade Média e da época clássica,
debates jurídicos, é preciso sobrepujar, sabendo-se que muitas verificaremos que a retórica só admite a primeira das nossas
vezes não há veredicto objetivo, no sentido em que é objetiva a três funções, ficando a função hermenêutica reservada à gra-
medida de um galvanômetro. Na esfera da educação, fazem-se mática, e a função heurística à dialética.
programas, reformas, sem nunca se ter certeza de que as coisas Mas será legítimo impor à cultura as divisões de um pro-
serão melhores que antes e de que os alunos envolvidos realmen- grama escolar (por certo exigidas pelos imperativos da pedago-
te tirarão proveito delas, quer dizer, vinte anos depois ... gia), para estancá-la em disciplinas sem inter-relações, em "es-
Esse mundo de que estamos falando é o da vida; quase pecialidades"? É mais ou menos como afirmar que a física não
não comporta certezas científicas, dessas que possibilitam pre- tem nenhuma relação com a matemática, alegando que elas têm
visões seguras e decisões irrepreensíveis. Mas tampouco está professores diferentes.
entregue ao acaso, ao aleatório, ao caos. Não se pode prever Mostraremos no próximo capítulo que, na própria escola,
com total certeza, mas é possível prever com mais ou menos gramática, retórica e dialética não passavam de partes de um
certeza, com alguma probabilidade. Não se pode dizer: "é ver- rnrsmo todo que se esclerosaram quando se separaram. A arte
dadeiro" ou "é falso", mas pode-se dizer: "é mais ou menos ve- dô1hscurso persuasivo implica a arte de compreender e possi-
rossímil". bilita a arte de inventar.
Como pois achar o verossímil? Recordemos aqui a lei fun- Qual é, pois, esse "mesmo todo" de que fazia parte a retó-
damental da retórica: o orador nunca está sozinho. O advogado rica? Em termos modernos, cultura geral. E aqui tocamos na
XXII INTRODUÇÃO A RETÓRICA Capítulo I
Origens da retórica na Grécia
última função da retórica, que pode ser chamada de "pedagó-
gica".
No fim do século XIX, a retórica foi abolida do ensino
francês, e o próprio termo foi riscado dos programas. Todavia,
como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra
não se suprimiu a coisa. A retórica permaneceu, só que desarti-
culada, privada de sua unidade interna e de sua coerência. Em
todo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazem
retórica2 •
Ensinar a compor segundo um plano, a encadear os argu-
mentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encon- A melhor introdução à retórica é sua história.
trar as construções apropriadas e as figuras exatas, a falar dis- Vamos, portanto, empreendê-la, mas com duas observa-
tintamente e com vivacidade, não serão retórica, no sentido ções preliminares.
mais clássico do termo? Demonstraríamos com facilidade que A primeira é que a retórica é anterior à sua história, e mes-
os critérios segundo os quais um professor de língua, ou mes- mo a qualquer história, pois é inconcebível que os homens não
mo de filosofia, avalia uma redação - respeito ao assunto, ao tenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, aliás,
plano, à argumentação, ao estilo, à personalidade -, que esses encontrar retórica entre hindus, chineses, egípcios, sem falar
critérios são encontrados, com outros nomes, na retórica clás- dos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer que
sica (cf. infra, pp. 55-56). a retórica é uma invenção grega, tanto quanto a geometria, a
Deve-se ver nisso uma sobrevivência lamentável? Pode-se tragédia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois senti-
achar, ao contrário, que esses princípios são formadores, que dos. Para começar, os gregos inventaram a "técnica retórica",
deixar de respeitá-los - errar na formulação da questão, escre- como ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que
ver de modo incorreto, monótono, extremado, confundir tese possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois,
com argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atrás inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma
de clichês - é dar prova de incultura. Em outras palavras, é habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas à compreen-
apartar-se dos outros e de si mesmo. É verdade que existem são, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teo-
outras culturas além da escolar, mas não existe cultura sem for- ria da arte, da literatura, da religião.
mação retórica. E aprender a arte de bem dizer fi já e também Segunda observação: escrever uma história, como por
exemplo da música, da pintura ou da filosofia, é repercorrer
aprender a ser.
uma evolução, feita de transformações, perdas e criações. Ora,
paradoxalmente, entre os séculos V e IV antes da nossa era, os
gregos elaboraram A retórica, que, em seguida, "durante dois
milênios e meio, de Górgias a Napoleão I1I", pode-se dizer que
se mexeu mais!. As diversas épocas enriqueceram alguma
do sistema, mas sem mudar o sistema. Ainda hoje,
quando se fala em "retórica", seja a de um filme ou a do in-
consciente, a referência é sempre feita à retórica dos gregos. A
história da retórica termina quando começa.
2 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 3
Origem judiciária
Córax
A retórica não nasceu em Atenas, mas na Sicília grega por
volta de 465, após a expulsão dos tiranos. E sua origem não é Córax é considerado o inventor do argumento que leva seu
literária, mas judiciária. Os cidadãos despojados pelos tiranos nome, o córax, e que deve ajudar os defensores das piores cau-
reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros sas. Consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser
conflitos judiciários2 • Numa época em que não existiam advo- verossímil demais. Por exemplo, se o réu for fraco, dirá que
gados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua não é verossímil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todas
causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o seu as evidências lhe forem contrárias, sustentará que, justamente,
próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma "arte oratória" seria tão verossímil julgarem-no culpado que não é verossímil
(tekhné rhetoriké), coletânea de preceitos práticos que conti- que ele o seja.
nha exemplos para uso das pessoas que recorressem à justiça. Antifonte (480-411), o melhor representante da retórica
Ademais, Córax dá a primeira definição da retórica: ela é "cria- judiciária de Atenas, cita o seguinte exemplo de córax:
dora de persuasão"3.
Se o ódio que eu nutria pela vítima tomar verossímeis as
Como Atenas mantinha estreitos laços com a Sicília, e até
suspeitas atuais, não será ainda [mais] verossímil que, prevendo
processos, imediatamente adotou a retórica. essas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de cometê-
Retórica judiciária, portanto, sem alcance literário ou filo- lo? (in Perelman-Tyteka, p. 608, cf. Aristóteles, Retórica, 11, 24,
sófico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade. 1402 a)
Como não existiam advogados, os litigantes recorriam a logó-
grafos, espécie de escrivães públicos, que redigiam as queixas E O pleiteante a seguir insinua que os verdadeiros criminosos
que eles só tinham de ler diante do tribunal. Os retores, com aproveitaram-se da verossimilhança para cometer impunemen-
seu senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aos te aquele ato.
logógrafos um instrumento de persuasão que afirmavam ser O mais maçante é que o córax pode ser voltado contra seu
invencível, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coi- autor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que pare-
sa. Sua retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas a ceÍfâ.suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegou
partir do verossímil (eikos). a acumular propositadamente acusações contra si mesmo, para
Observemos que isso é inevitável. Tanto entre nós quanto depois as refutar com facilidade.
entre os gregos. De fato, se no âmbito judiciário se conhecesse - Argumento simples: todas as evidências estão contra ele.
4 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 5
- Córax 1: exatamente, ele sabia que seria o primeiro sus- Conservou-se um magnífico exemplo dessa eloqüência
peito, logo não seria verossímil que cometesse o crime. epidíctica em Elogio de Helena. Sabemos que para os gregos
- Córax 2: mas justamente por isso ele poderia cometê-lo, Helena era o protótipo da mulher fatal. Esposa de Menelau,
sabendo que não suspeitariam dele. deixou-se raptar por Páris, o troiano, e os gregos, para resgatá-
De qualquer modo, os primeiros retores inventaram a dis- la, lançaram-se numa guerra que durou dez anos. Em seu dis-
posição do discurso judiciário, que Antifonte divide em cinco curso Górgias começa louvando o nascimento de Helena de-
partes; também elaboraram os lugares (topoi), argumentos que pois sua beleza: '
bastava decorar e chamar à baila em determinado momento da
disputa jurídica. Assim, no exórdio, o orador começa dizendo Em mais de um homem, ela despertou mais de um desejo
que não é orador, elogia o talento do adversário, etc. amoroso; só por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontáveis
corpos, uma multidão de guerreiros ... (Les présocratiques,
p.l031)
Origem literária: Górgias
Mas então como perdoar-lhe o ter-se deixado raptar? O
Com Górgias surge uma nova fonte da retórica: estética e orador, através de uma enumeração completa, inventaria todas
propriamente literária. Nascido por volta de 485, Górgias viveu as possíveis causas desse rapto: ou ele se deveu ao decreto dos
cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Sócrates. Também si- deuses e do destino; ou ela foi arrebatada à força; ou foi per-
ciliano e discípulo de Empédocles, em 427 foi para Atenas suadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Ora, em
numa embaixada. Diz-se que ali sua eloqüência encantou os nenhum dos casos Helena estava livre; em todos, foi subjugada
atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que volta- por uma força superior à sua; portanto, não é culpada. Górgias
ria. Essa história é significativa. se detém no terceiro caso, a força do discurso, e sua defesa de
Isso porque, até então, os gregos identificavam "literatu- Helena na verdade é uma defesa da retórica:
ra" com poesia (épica, trágica, etc.). A prosa, puramente fim-
cional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum. o discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento ma-
Górgias, um dos fundadores do discurso epidíctico, ou seja, terial de pequenez extrema e totalmente invisível alçam à pleni-
elogio público, cria para esse fim uma prosa eloqüente, multi- tude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo,
plicando as figuras, que a tornam "uma composição tão erudi- dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade. (Ibid.,
ta, tão ritmada e, por assim dizer, tão bela quanto a poesia" p.1033)
(Navarre, p. 86). Suas figuras são, por um lado, de palavras:
assonâncias, rimas, paronomásias, ritmo da frase; por outro, Observemos que sua retórica é bastante sofistica, visto que
figuras de sentido e pensamento: perífrases, metáforas, antíte- se baseia em uma petição de princípio. De fato, as únicas cau-
ses. Exemplo de metáfora: "Túmulos vivos", para os abutres. sas possíveis por ele atribuídas ao ato de Helena são precisa-
Exemplo de antítese, o final do Elogio fúnebre aos heróis ate- mente as que a inocentam; não considera uma última possibili-
nienses, cuja tradução é um pálido reflexo: dade, a de que Helena tenha partido por livre e espontânea von-
.. Todavia, esse seu princípio, de que o ato involuntário
Assim, apesar de terem desaparecido, o ardor deles com não é culpável, é bem novo para a época.
eles não morreu, porém, imortal, vive em corpos não imortais, Aliás, é no sentido mais técnico que Górgias merece a de-
ainda que eles não vivam mais. (Les présocratiques, p. 1030) nominação de sofista. Como todos os outros - Pitágoras, Pró-
6 INTRODUÇÃO À RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 7
dico, Trasímaco, Hípias, Crítias, etc. -, ele foi professor; dava Ora, se admitirmos como ele que o ser não existe, ou que não
de cidade em cidade lições de eloqüência e de filosofia, co- é cognoscível nem comunicável, não estaremos reconhecen-
brando a cada uma delas o fabuloso salário de cem minas. Di- do ipso facto a onipotência da palavra, palavra que não está
gamos que por um dia de trabalho ele recebia o salário diário mais submetida a nenhum critério externo e da qual nem mes-
de dez mil operários! O mesmo acontecerá com Protágoras. Na mo se pode dizer que é falsa? Nessas alturas estamos em ple-
realidade, esse ensino preenchia uma necessidade, pois até en- na sofística.
tão os gregos só recebiam uma formação elementar, sem
de parecido com um ensino superior ou mesmo secundário. E
aos retores que se deve essa inovação: ensino intelectual apro- Protágoras: o homem medida de todas as coisas
fundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro
objetivo senão a cultura geral. O elo entre a sofística e a retórica só aparece plenamente
É verdade que logo Górgias foi criticado pela ênfase de em Protágoras5 • Originário da Abdera, na Trácia, Protágoras
sua prosa, que carecia demais de simplicidade; o verbo gorgia- (c. 486-410) também era um mestre itinerante, que ensinava ao
z-o ficou como sinônimo de grandiloqüência. Mas sua idéia de mesmo tempo eloqüência e filosofia e também ganhava quan-
prosa "tão bela quanto a poesia" impôs-se a todos os escritores tias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que GÓrgias. Che-
gregos, a começar por Demóstenes, Tucídides, Platão ... Gór- gando a Atenas, fez a seguinte profissão de fé agnóstica:
gias pôs a retórica a serviço do belo.
\' Quanto aos deuses, não estou em condições de saber se
existem ou se não existem, nem mesmo o que são. (Ibid., p.1 000)
A retórica e os sofistas
O que logo lhe valeu uma condenação à morte, da qual, menos
A serviço do belo quererá dizer a serviço da verdade? Essa heróico que Sócrates, livrou-se fugindo.
questão implica toda a relação entre a retórica e a sofística. Com isso, foi um autor enciclopédico. Foi decerto o pri-
Observemos que o ensinamento de Górgias comportava meiro a interessar-se pelo gênero dos substantivos, pelos tem-
uma vertente filosófica. Foi conservado o resumo de um de pos dos verbos, bem como pela psicologia das personagens de
seus discursos, intitulado Do não-ser, ou da natureza\ com Homero; em suma, pelo que depois será chamado de "gramáti-
este promissor início: ca". Passa também por fundador da eristica, que depois virá a
ser dialética. Partindo do princípio de que a todo argumento
Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que
exista alguma coisa, o homem não a pode apreender; em terceiro
pode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado
lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, não pode ser formu- ou refutado, ele ensina a técnica eristica, arte de vencer uma
lada nem explicada aos outros. (Les présocratiques, p. 1022) discussão contraditória ("eristica" vem de éris, controvérsia).
Essa arte, extremamente elaborada, não hesita em recorrer aos
Haverá algum elo entre esse agnosticismo e a retórica? piores sofismas. Do tipo:
Em Elogio de Helena, ele diz: }, ...
•." ... O rato (mys) é um animal nobre pois é dele que provêm os
Quando as pessoas não têm memória do passado, visão do mistérios ... (Aristóteles, Retórica, 140 la)
presente nem adivinhação do futuro, o discurso enganoso tem Pode-se ser branco e não branco ao mesmo tempo, porquanto
todas as facilidades. (Ibid., p. 1033) o etíope é negro (na pele) e branco nos dentes. (in Navarre, p. 65)
8 INTRODUÇÃO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRÉCIA 9
É pouco compreensível como oradores célebres, gregos em Protágoras (320 c s.), meditação antropológica espantosa-
além de tudo, a começar por Protágoras, puderam impor-se com mente profunda e moderna. O segundo é a autodefesa de Protá-
tais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Aristó- goras em Teeteto (166 a). Esses dois textos nos apresentam um
teles e Platão, envidaram tantos esforços para refutar os sofis- Protágoras cativante e respeitável, um mestre de humanismo e
tas, é sinal de que estes não eram negligenciáveis nem estúpi- tolerância. Acreditar em quê, em quem?
dos, e que, acima de suas artimanhas publicitárias, eles ensina-
vam algo importante. Mas o quê?
É dificil saber, pois só os conhecemos através de seus ini- Fundamento sofistico da retórica
migos. Recordemos as teses de Protágoras: o homem é a medi-
da de todas as coisas; em outras palavras, as coisas são como De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram
aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade. O a retórica como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensi-
que produz o mais completo relativismo, porque, se uma coisa no sistemático e global que se fundava numa visão de mundo.
parece bela a um, feia a outro, fria a um, quente a outro, grande Ensino global: é aos sofistas que a retórica deve os primei-
a um, pequena a outro, será as duas coisas ao mesmo tempo. ros esboços de gramática, bem como a disposição do discurso
Não há mais nenhuma objetividade, nem mesmo lógica, pois o e um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a idéia de
princípio de contradição não vale mais. A cada um a sua verda- que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acor-
de, e todas são verdades. A cada um: mas, em Protágoras, o "ca- do final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o
da um" é tanto a cidade quanto o indivíduo; é a cidade que, em qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência
nome de seu próprio interesse, decide sobre os valores e as ver- no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na
dades. Isso equivale a dizer que nossa língua, nossas ciências, fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da
nossos valores estéticos e morais não passam de convenções oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer
que mudam de uma cidade para outra, que variam segundo a retórica viva. Sim, todos os elementos de uma retórica riquíssi-
história e a geografia: "Bela justiça a que é delimitada por um ma, que serão encontrados depois, especialmente em Aristó-
rio ...", dirá Pascal, admitindo que assim é, e lamentando. teles.
Relativismo pragmático, tal parece ter sido a doutrina de No entanto, o fundamento que dão à retórica parece-nos
Protágoras. Não existe verdade em si, mas uma verdade de cada bem perigoso. É de perguntar se eles não a comprometeram
indivíduo, de cada cidade; e o importante é aquilo que lhe per- para sempre, ao justificá-la como o fizeram pela incerteza e pe-
mite fazer-se valer e impor-se, que é precisamente a retórica. lo sucesso. Mas, afinal, por que esse laço, aparentemente inque-
Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a brantável, entre o sofista e o retor?
violência quanto a tolerância. Por isso ela nos parece ao mes- Certamente porque o mundo do sofista é um mundo sem
mo tempo fascinante e ambígua; e é esse o sentimento que se verdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar o
tem diante do Protágoras de Platão. consenso de todos os espíritos, para dizerem que dois e dois
Platão parece ter detestado o grande sofista, que ele afir- são quatro e que Tóquio existe ... Privado de uma realidade ob-
o discurso humano fica sem referente e não tem
ma ser pervertedor de jovens, e a quem objeta que não é o ho-
mem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E, no entanto, outro critério senão o próprio sucesso: sua aptidão para con-
Platão escreveu dois pastichos, dois trechos brilhantes que ele vencer pela aparência de lógica e pelo encanto do estilo. A úni-
atribui a Protágoras. O primeiro é o mito da origem do homem, ca ciência possível é, portanto, a do discurso, a retórica.
10 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 11
Concretamente, o que muda? Muda que o discurso não bastante grave; ele escreveu sua própria defesa, confiou-a a um
pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, só discípulo e ... perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicar
poderá ser eficaz; em outras palavras, próprio para convencer, sua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, aliás, co-
que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem ré- mo modelos que publicou inúmeros discursos, alguns jurídi-
plica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro, cos, outros epidícticos.
mas dominar através da palavra; ela já não está devotada ao sa- Em suma, um grande professor de retórica, admirado pe-
ber, mas sim ao poder. los contemporâneos e sempre admirável. Ao contrário de seus
Os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e predecessores, recusa-se a fazer malabarismos prop_agandísti-
o objetivo de sua educação não deixa de ser nobre: capacitar os cos e rejeita a aprendizagem automática de lugares e outros
homens "a governar bem suas casas e suas cidades"6. Entre- procedimentos. Ensina sempre recorrendo à reflexão do aluno
tanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas o sa- e fazendo seus grandes discípulos cooperarem na gênese de
ber fazer a serviço do poder. seus próprios discursos, que lêem, discutem e corrigem com o
Com a sofistica, a retórica é rainha, mas rainha despótica mestre 7 • Aliás, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de
. porquanto ilegítima. Agora, o elo entre retórica e sofistica é fa- capacitar qualquer um a persuadir qualquer um, ele mostra que
tal: será possível salvar a primeira da segunda? o ensino não é todo-poderos0 8 • A seu ver, para ser orador, são
necessárias três condições. Para começar, aptidões naturais.
Depois, prática constante. Finalmente, ensino sistemático. Prá-
Isócrates ou Platão? tica e ensino podem melhorar o orador, mas não criá-lo.
Apesar de, como Górgias, querer uma prosa literária, des-
Vimos que a retórica veio atender a diversas necessidades preza a grandiloqüência e cria uma prosa que se distingue com-
dos gregos: necessidade de técnica judiciária, de prosa literá- pletamente da poesia: sóbria, clara, precisa, isenta de termos
ria, de filosofia, de ensino. Ora, Isócrates vai conseguir satisfa- raros, de neologismos, de metáforas brilhantes, de ritmos mar-
zer sozinho essas quatro exigências, ao propor uma retórica cados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Sem
mais plausível e mais moral que a dos sofistas. ser poética, tem um ritmo que se deve ao equilíbrio do período
Aliás, a partir do final do século V, esse termo passou a ser e à cláusula que a fecha; é eufônica, evitando as repetições des-
pejorativo, e devemos agradecer Isócrates por ter libertado a re- graciosas de sílabas e os hiatos.
tórica do domínio sofistico. O problema está em saber se de fato Principalmente, moraliza a retórica ao afirmar alto e bom
foi uma libertação real, e se afinal Isócrates não deixou as coi- som9 que ela só é aceitável se estiver a serviço de uma causa
sas como estavam. É exatamente isso que Platão critica nele. honesta e nobre, e que não pode ser censurada, tanto quanto
qualquer outra técnica, pelo mau uso que dela fazem alguns.
Aliás, para Isócrates, ensino literário e formação moral estão
!sócrates, o humanista ligados, para dizer o mínimo. De fato, ele ensina que a retórica
deve ter um objetivo para depois procurar todos os meios de
Ateniense da gema, Isócrates viveu noventa e nove anos sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a
(436-338). Sua voz fraca e sua invencível timidez impediram- organizar um discurso, não se estaria também ensinando a
no de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratória. Aos governar a própria vida? O ensino literário é uma escola de
oitenta anos, foi-lhe movida uma espécie de processo fiscal estilo, de pensamento e de vida. Idéia bem grega, de que a har-
12 INTRODUÇÃO À RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRÉCIA 13
monia é o valor por excelência, que rege a existência tanto quan- fundo contra a retórica, especialmente no livro que lhe dedica,
to rege o discurso. Estamos aqui na origem do humanismo, Górgias, um dos textos mais fortes de toda a literatura.
para o qual Isócrates contribui, aliás, com um fundamento an- Mas comecemos com uma pausa, dando pela última vez a
tropológico. palavra ao sofista retor. Pois nesse diálogo Platão lhe dá a pala-
A palavra, diz ele, é "a única vantagem que a natureza nos vra. Põe em cena seu mestre Sócrates a discutir retórica com
deu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo o Górgias e mais dois de seus discípulos. Aliás, parece que o Gór-
resto"lO. Em outras palavras, todas as nossas técnicas, toda a gias histórico é menos visado em Górgias do que Isócrates.
nossa ciência, tudo o que somos devemos à fala. Donde ele in- No começo, Sócrates, fingindo ignorar o que é retórica,
fere uma conclusão política: os gregos, povo da palavra, for- pede a Górgias que a defina. Ela é - responde o outro - "o po-
mam na verdade uma única nação, não pela raça, mas pela lín- der de persuadir pelo discurso" assembléias de qualquer tipo
gua e pela cultura. Devem, portanto, renunciar às guerras fra- (452 e): ela é, portanto, "criadora de persuasão" (peithous de-
tricidas e unir-se. miurgos). Sócrates então faz uma pergunta capital para o que
Isócrates, que se proclama anti-sofista, também não rei- se segue: será que a retórica tem ciência daquilo de que persua-
vindica o nome de retor. Ele se diz "filósofo". Mas, convencido de? E Górgias responde que ela não precisa disso (tanto quanto
(de que o homem não pode conhecer as coisas assim como são, quem faz propaganda de um remédio não precisa ser médico).
colocando a dialética de Platão no mesmo nível de inutilidade Mas então para que precisamos dela: nos debates públicos não
da eristica dos sofistas, integra a filosofia na arte do discurso". se buscará o conselho de especialistas, e não retores? A respos-
Ela é para a alma o que a ginástica é para o corpo, formação ta de Górgias merece ser citada por inteiro.
intelectual e moral, boa para os jovens, mas inútil para perse-
guir por toda a vida (a mesma critica que será feita a Sócrates'2
por Cálicles). Em suma, para Isócrates, "filosofia" é cultura
Texto 1- Platão, Górgias, 455 d a 456 c, trad. M. Croiset
geral, centrada na arte oratória; numa palavra: retórica.
Nesse caso, qual é seu mérito em relação aos sofistas? Uma
GÓRGIAS - Vou tentar, Sócrates, revelar-te claramente o
contribuição tipicamente grega, o sentido da beleza. Ele escreve poder da retórica em toda a sua amplitude (... ). Não ignoras por
em seu Elogio de Helena que a beleza é "o mais venerado, o certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de
mais precioso, o mais divino dos bens" (54). É a beleza que toda a organização de vossos portos se deve por um lado aos
constitui a harmonia do discurso e da vida, e a educação é ética conselhos de Temístocles e por outro aos de Péricles, mas em
pelo simples fato de ser estética. Se a linguagem é peculiar ao nada aos dos homens do oficio.
homem, a bela linguagem é valor por excelência: e a retórica, SÓCRATES - É isso realmente o que se relata a respeito de
confundida com a filosofia, é a rainha das ciência. Mas será Temístocles, e, quanto a Péricles, eu mesmo o ouvi propor a
construção do muro interno.
possível separar o discurso do ser, a beleza da verdade?
GóRGIAS - E, quando se trata de uma dessas eleições de que
falavas há pouco, podes verificar que também são os oradores que
matéria dão e que a fazem
Uma pausa . SÓCRATES - Posso venficar ISSO com espanto, Gorglas, e
por isso me pergunto há muito tempo que poder é esse da retóri-
Se Isócrates enaltece a retórica, que para ele é toda a filo- ca. Ao ver o que se passa, ela se me aparece com uma coisa de
sofia, Platão, em nome da filosofia, aplica-se a uma critica de grandeza quase divina.
14 INTRODUÇÃO À RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRÉCIA 15
GÓRGIAS - Se soubesses tudo, Sócrates, verias que ela uma visão global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir e
engloba em si, por assim dizer, e mantém sob seu domínio todos fazer-se ouvir.
os poderes. Vou dar-te uma prova impressionante disso: E seria fácil continuar os exemplos de Górgias: são os pre-
Aconteceu-me várias vezes acompanhar meu irmão ou sidentes das empresas que decidem, não os engenheiros; os
outros médicos à casa de algum doente que recusava uma droga grandes ministros raramente são especialistas em seu setor: um
ou que não queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que as Ministro da Saúde não precisa ser médico, um Ministro da Edu-
exortações do médico resultavam vãs eu conseguia persuadir o
cação não precisa ser professor, e os melhores comandantes
doente apenas com a arte da retórica. Que um orador e um médi-
co andem juntos pela cidade que quiseres: se começar uma dis- das guerras não são militares: pensemos em Clemenceau ou
cussão numa assembléia popular ou numa reunião qualquer para em Churchill. Quem realmente decide não são os especialistas,
decidir qual dos dois deverá ser eleito médico, afirmo que o mas aqueles que, graças à cultura e à arte da eloqüência, são
médico será anulado e que o orador será escolhido, se isso lhe capazes de fazer-se ouvir e arbitrar.
agradar. Aliás, é por isso que Protágoras, em outro diálogo, afirma
O mesmo aconteceria com qualquer outro artesão: o orador que educa os jovens não para torná-los técnicos em alguma
se faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois não coisa, mas para sua educação all'epi paideia, ou seja, para sua
há assunto sobre o qual um homem que conhece retórica não cultura geraP3.
consiga falar diante da multidão de maneira mais persuasiva que Na seqüência de seu discurso, Górgias amplia o argumen-
um homem do oficio, seja ele qual for. Aí está o que é retórica, e
to, mas por isso mesmo o enfraquece, pois exige demais dele.
do que ela é capaz.
Depois de mostrar o poder da retórica, quer transformá-lo em
onipotência. Para isso acrescenta outro exemplo, menos verifi-
cável, mas também plausível, o do orador que convence o en-
Para começar, cabe admirar a ironia de Sócrates (§ 4), que
finge não compreender e espantar-se. Observemos também fermo. Continuamos no verossímil: para levar um paciente a
admitir que tem de sofrer para curar-se, é preciso coisa diferen-
que, sem explicitar, Górgias ilustra a teoria de Isócrates, para
quem a palavra é apanágio do homem e origem de todos os seus te da ciência médica: psicologia.
"poderes"; donde se pode concluir que o domínio da palavra Mas no fim a argumentação incha a ponto de explodir,
será também o domínio de todas as técnicas. com o exemplo - puramente fictício - do concurso. A assem-
Górgias, porém, não utiliza o raciocínio. Argumenta atra- bléia preferirá o orador ao médico, caso o orador queira fazer-
vés do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipotên- se eleger médico! No fundo é o ponto de vista da publicidade,
cia da retórica, ele parte de dois fatos bem conhecidos, de que que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "vender-
seu próprio interlocutor foi testemunha (§ 2). Esses exemplos se". No entanto o eu afirmo (phémi) de Górgias não é realmen-
são muito fortes, pois bastam para pôr em xeque a pretensão te autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por mais
dos especialistas e refutá-la. Ainda hoje não são os especialis- numerosos e eloqüentes que sejam, não provam tudo; não que
tas que promovem vendas, mas publicitários. Ainda hoje como não provem nada, mas não provam nada de universal. Desse
na Grécia, as decisões políticas não são tomadas por especia- modo, os exemplos de Górgias provam que nem tudo podem os
listas. Por quê? Porque estão em falta? Ao contrário, talvez por especiattstas, e não que nada podem; provam que a retórica é
existirem em excesso, por ser necessário selecionar os melho- capaz de alguma coisa, e até muito, mas não que é onipotente.
res, que raramente sabem se impor. É preciso, portanto, um Na verdade, seria fácil contra-argumentar mostrando que, sem
"retor", um não-especialista que em contrapartida disponha de médicos ou outros especialistas, o retor não iria muito longe; a
16 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 17
cidade que o tivesse elegido médico não seria enganada por mui- crates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranos
to tempo! fazem o que querem? Naturalmente fazem o que lhes agrada,
Em suma, partindo de um argumento muito forte, Górgias mas será realmente o que querem? Fazer o que se quer implica
o enfraquece, depois o destrói, exigindo dele o que ele não po- saber do que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valor
de provar. real. Ora, o retor e o tirano não conhecem nada disso. Pois seu
único critério é o prazer, e o prazer nunca indica o verdadeiro
bem; só dá uma satisfação aparente e fugaz. Assim como a
Retórica e cozinha culinária cujo objetivo único seja lisonjear nossa gula não nos
dá saúde, pelo contrário, também a retórica apenas lisonjeia,
A seqüência do diálogo é uma refutação progressiva e to- sem preocupação com o verdadeiro bem. Aquilo que a culiná-
tal da retórica. ria é para a medicina, ciência da saúde, a retórica é para ajusti-
Para começar, é o próprio Górgias que, como Isócrates, li- ça, ou seja, sua falsa cara, sua imitação.
mita o pOder dela, subordinando-a à moral: Poder da retórica? Um poder sem freios como o do tirano,
e sem controle. Mas é poder de verdade? Polos afirma que o
Deve-se usar a retórica com justiça, assim como todas as tirano é o homem onipotente, pois pode fazer "tudo o que lhe
armas. (Górgias, 457 b; cf. Isócrates, A troca, 251 a 253) agrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei algu-
ma. Ora, Sócrates abstém-se de criticas morais, do tipo "não
Górgias (ou Isócrates?), retor honesto, subordina a retóri- está certo". Mostra simplesmente que "não é forte", que esse
ca a uma moral que lhe é completamente exterior; mas não es- poder que o retor e o tirano se atribuem não passa de impotên-
taria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos da cia, porque não fundado em verdade, porque não pode justifi-
retórica? Pois, afinal, mesmo a serviço de uma boa causa, a ar- car o que está propondo ou se propondo. O tirano considera-se
ma continua sendo uma arma, e não é infalível que o seu poder um monstro, mas um monstro feliz; na verdade, é apenas fraco
seja sempre totalmente controlável. e infeliz, mais digno de lástima que suas vítimas.
Sócrates começa fazendo Górgias confessar que a retórica
assim definida não necessita conhecer aquilo de que está falan- POLOS - O homem miserável e digno de piedade sem a
do, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusão menor dúvida é aquele que foi morto injustamente.
desdenhosa: SÓCRATES- Menos do que aquele que mata, Polos ... (469 b)
Logo, quem leva a melhor sobre o sábio é um ignorante E a retórica, com todo o seu prestígio, sofre da mesma impo-
que está falando a ignorantes. (459 b; "sábio" no sentido de com- tência; não passa de técnica cega e rotineira que, longe de pro-
petente) porcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para
serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem
O debate torna-se mais agressivo com o discípulo de Gór- ajudá-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotência
gias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escrúpulos da retQrica não passa de impotência:
que seu mestre. Como ele se embevece com a onipotência da '''-'
retórica, Sócrates demonstra que esse poder teria a mesma na- Os oradores e os tiranos são os mais fracos dos homens.
tureza do poder do tirano, o que Polos admite, achando por cer- (466 d)
to que lhe dirão que a retórica é perigosa, imoral, etc. Ora, Só-
18 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 19
Platão rejeita a confiança que os sofistas como Isócrates beriam disso! Há um bom tempo estaríamos livres de ações
atribuem à linguagem. Só lhe reconhece valor se a serviço do errôneas e erráticas, e poderíamos prever o futuro com segu-
pensamento, único a atingir as "idéias", a verdade inteligível: rança e tomar decisões irrefutáveis. Ora, nesse ponto, Isócrates
continua tendo razão: não é por aí. A "ciência" que Platão opõe
A autêntica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro, à retórica ainda está para ser feita e, sem dúvida, estará sempre.
não existe e não poderá jamais existir. (Fedro, 260 e) Notemos que, em Fedro, ele parece reabilitar a retórica.
Mas trata-se de uma retórica a serviço da dialética, método da
É por isso que a retórica não é nem mesmo o que pretende ser, verdadeira filosofia, que "capacita a falar e a pensar" (266 b).
uma tekhné, uma arte. Uma retórica do verdadeiro, que não procura o beneplácito das
Em resumo, Platão volta contra o retor o seu próprio argu- multidões, mas dos deuses (273 e). Mas essa retórica, que não
mento. Seu pretenso "poder" nada é. Por quê? Porque ele des- passa de expressão da filosofia, perde toda a autonomia, e mes-
conhece o verdadeiro, porque lhe falta a ciência, especialmente mo toda a existência própria.
a da justiça, única que concede o poder real e a felicidade. Concluindo, como diz muito bem Barbarin Cassin 1\ Pla-
Assim CC!JllO é a medicina que proporciona o verdadeiro bem- tão apresenta-nos duas retóricas, quer dizer, duas a mais. A pri-
estar, não a confeitaria. meira, a dos sofistas e de Isócrates, não é arte, mas uma falsa
adulação. A segunda é apenas uma expressão da filosofia, sem
conteúdo próprio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo
De que "ciência" se trata? estéril entre uma publicidade que só procura agradar, para ven-
der, e uma pretensa "ciência humana" que não resolve os pro-
Só que o argumento de Platão sustenta-se apenas por seu blemas humanos, abstendo-se mesmo de formulá-los. Entre-
pressuposto: de que, no domínio dajustiça e da felicidade, exis- tanto, esse conflito talvez não seja fatal. Deve ser possível uma
te uma "ciência", um conhecimento tão seguro quanto a medici- outra retórica.
na, que, assim como esta desqualifica a culinária, autorizaria a
desqualificar a retórica. E Platão está bem convencido disso.
Para ele, essa ciência, a dialética, proporciona um conhecimen-
to das coisas éticas e políticas tão seguro quanto as ciências da
natureza, e até mais seguro (cf. República, livros VII e VIII).
Mas essa ciência existe? Quando Sócrates lança a Polos a céle-
bre fórmula: "Mais vale sofrer a injustiça do que a cometer",
querendo dizer com isso que a vítima não só é menos desonesta
como também menos infeliz, porquanto o mal não está nela,
tem razão. Mas será que podemos saber uma única vez e uma
vez por todas o que é o justo e o que é o injusto?
Hoje em dia, certamente em sentido diferente, alguns au-
tores afirmam também que existe uma ciência da política, da
ética, da educação, o que lhes permite condenar, como Platão,
tudo o que é retórico, a que dão o nome de "literário" ou mes-
mo "filosófico". Mas afinal, se tal ciência existisse, todos sa-
Capítulo 11
Aristóteles, a retórica e a dialética
Belo elogio da retórica. Retórica que Aristóteles vai re- sua função não é [somente] persuadir, mas ver o que cada caso
pensar de cabo a rabo, integrando-a de início num sistema filo- comporta de persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras
sófico bem diferente daquele dos sofistas, e depois transfor- artes, pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer
tudo o que for possível para curar o doente.
mando-a em sistema.
valia pelo uso, Aristóteles lhe confere um valor positivo, ainda tras palavras, dela se pode esperar aquilo que se espera de todas
as técnicas: um serviço; é o que vão mostrar os quatro argu-
que relativo.
Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, à sua definição mentos, cada um por sua vez.
"corrigida" da retórica. Ela não se reduz, diz ele, ao poder de O primeiro argumento parece responder a uma objeção
persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no es- implícita: não é possível contentar-se com expor simplesmente
sencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso o verdadeiro e o justo, sem recorrer a artifícios oratórios? Aris-
comporta. Em outras palavras, o bom advogado não é aquele tóteles leva em conta a objeção, dizendo: sim, o verdadeiro e o
que promete a vitória a qualquer custo, mas aquele que abre justo são por natureza (physei) mais fortes que seus contrários.
para a sua causa todas as probabilidades de vitória. Só que a experiência mostra - aqui, argumento pelo exemplo -
E aqui surge uma vez mais a personagem paradigmática que muitos veredictos dos tribunais são iníquos. Como expli-
do iatrós, do médico. Para Górgias, ele estava submetido ao re- car isso? Pelo erro dos litigantes, que não souberam fazer valer
tor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seu seus direitos, que não conseguiram sobrepujar a retórica de
paciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Platão, é, ao con- seus adversários, capazes de "tomar mais forte o argumento
trário, o faz papel bonito; é ele que sabe e pode mais fraco", de fazer o injusto prevalecer sobre o justo. Se a
curar, enquanto o retor não passa de envenenador que não sabe arte pode ter vantagem sobre a natureza, é preciso um suple-
nem como nem por que envenena, uma vez que sua pretensa mento de arte para devolver à natureza seus próprios direitos.
arte não passa de rotina cega. Pode-se observar que o médico É isso o que o terceiro argumento desenvolve tecnicamen-
de Aristóteles tem bem menos segurança do que faz; ele nada te. É preciso ser capaz de defender tão bem o contra quanto o
pode fazer pelos doentes incuráveis, e mesmo aos outros não po- pró, claro que não para tomá-los equivalentes - como preten-
de prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportu- diam os sofistas -, mas para compreender o mecanismo da ar-
nidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infini- gumentação adversária e assim a refutar.
tamente mais científica que a de Aristóteles, não pode prome- O quarto argumento amplia o debate, ligando novamente a
ter mais. Aqui o médico já não está abaixo do retor, nem acima; retórica à condição humana, como já fazia Isócrates, o grande
ambos estão frente a frente, sendo cada um detentor de uma ausente-presente de todo o debate. Se a palavra é característica
arte que só tem poder porque reconhece seus limites. do homem, é mais desonroso ser vencido pela palavra que pela
Em resumo, dando à retórica uma definição mais modesta força física. Para interpretar a polissemia do termo grego 10-
que a dos sofistas, ele a toma muito mais plausível e eficaz. gos, o tradutor inglês emprega rational speech.
Entre o "tudo" dos sofistas e o "nada" de Platão, a retórica se Na verdade, esses argumentos valem não somente para o
contenta com ser alguma coisa, porém de valor certo. discurso judiciário como também para todos os tipos de discur-
sos públicos. No campo do direito, da política, da vida interna-
cional, vivemos sempre uma situação polêmica, em que as ar-
A argumentação de Aristóteles
mas mais eficazes são as da palavra, visto que só ela - e não a
força física - define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o no-
Nosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso é feito
bre e o;àWsprezível. A retórica, arte ou técnica da palavra, é,
com quatro argumentos mais uma prolepse (§5), para final-
portanto, indispensável. E aí está o que a legitima.
mente passar à definição.
Os quatro argumentos têm por finalidade provar a tese, Mas o que dizer então da objeção de Platão, qual seja, que
exposta desde o início: "A retórica é útil" (khrésimos); em ou- a retórica é inteiramente estranha à verdade? Parece-nos que o
26 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 27
segundo argumento de Aristóteles (§ 2) responde implicitamen- Parece que o problema está em outro lugar. O domínio da
te a ele. A retórica, dizia Platão, que se autodefine como arte retórica, o das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo
onipotente, não é arte de modo algum, pois é cega no que faz e da verdade científica, mas do verossímil. O próprio Aristóteles
no que quer. Por ignorar o verdadeiro, não é nem mesmo verda- diz isso em outro texto:
deiro poder. O que responde Aristóteles?
"Conquanto possuíssemos a ciência..." É preciso entender Seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos sim-
bem o que está em jogo. Aristóteles opõe-se aos sofistas, para plesmente persuasivos quanto exigir de um orador (retor) de-
os quais tudo é relativo, e também, como sempre, a Isócrates, monstrações invencíveis. (Ética a Nicômaco, I, 1094 b)
para quem uma ciência absoluta, à moda de Platão, não passa
de logro, visto que o homem poderá chegar apenas a opiniões A retórica não é, pois, a prova do pobre. É a arte de defen-
justas, ou melhor, mais ou menos justas (A troca, VI, 271). der-se argumentando em situações nas quais a demonstração
Quanto a Aristóteles, admite que existe uma ciência exata, e não é possível, o que a obriga a passar por "noções comuns",
até "inteiramente exata" (akribestaté). Assim como Platão, ad- que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode
mite uma ciência que, por via demonstrativa, parta do verda- encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria
deiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Pla- menos científico do que exigir respostas científicas.
tão que a ciência mais exata é impotente para convencer certos Numa palavra, Aristóteles salva a retórica, colocando-a
auditórios, aos quais falta instrução. É preciso, portanto, utili- em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe Um papel modesto,
zar noções "comuns", ou seja, acessíveis ao comum dos mor- mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos. É a
tais. Suponhamos que uma comissão médica queira fazer cam- arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo,
panha contra o tabagismo: vai precisar achar para difundir coi- sempre que não houver outro recurso senão o debate contradi-
sa bem diferente de um curso de medicina! Tal é a interpreta- tório. Para entender melhor isso, passemos ao exame da rela-
ção corrente do texto de Aristóteles. No entanto, ela nos parece ção entre a retórica e a dialética 1•
evidente e banal demais para não ser suspeita.
Com efeito, no fim da alínea, Aristóteles refere-se à dialé-
tica dos Tópicos. Atendo-nos a essa interpretação, poderíamos o que é dialética?
acreditar que a dialética não passa de quebra-galho, devido à
incultura dos auditórios populares, uma maneira de falar aos Sabe-se que os gregos eram grandes esportistas, pratican-
ignaros, que só têm a seu favor (quando muito) o senso co- tes de toda espécie de lutas e competições. Mas também se des-
mum. A retórica seria então a filosofia do pobre, o que no fun- tacavam numa disputa esportiva fora dos estádios e ginásios,
do nos remete a Platão. ou puramente verbal, a dialética. Dois adversários se enfren-
Na verdade, é preciso retomar à frase obscura: "o discurso tam diante do público: um sustenta uma tese - por exemplo,
segundo a ciência pertence ao ensino". Em outras palavras, um que o prazer é o bem supremo -, e a defende custe o que custar;
discurso submetido às exigências científicas só pode ser feito o outro ataca com todos os argumentos possíveis. O vencedor
numa escola, numa instituição especial, com seus métodos, será aquele que, prendendo o adversário em suas contradições,
seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, não é a mesma conSe8uir reduzi-lo ao silêncio, para grande alegria dos espec-
coisa quando se fala diante de um tribunal, ou em praça públi- tadores.
ca, onde não se tem nem mesmo o tempo para expor cientifica- Parece que a primeira dialética foi a erística dos sofistas,
mente. Mas será por causa da incultura do auditório? arte da controvérsia que permitia fazer triunfar o absurdo ou o
28 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 29
falso. Sócrates e depois Platão puseram a dialética a serviço do Em nossa opinião, a melhor resposta para esse tipo de crí-
verdadeiro, transformando-a no próprio método da filosofia. tica é mostrar que a dialética não é nem moral nem imoral, sim-
Para Aristóteles, a dialética não está menos a serviço do plesmente porque, no fundo, ela é um jogo. Num jogo, o pro-
verdadeiro do que do falso; ela trata do provável: blema é ganhar. E, neste, vencer é convencer; em outras pala-
vras, uma proposição enunciada pelo adversário é admitida
Em filosofia, é preciso tratar as questões segundo a verda- como provada, sem que se possa voltar a ela.
de, mas em dialética somente segundo a opinião2•
Como em todos os jogos, a polêmica só é conflito na apa-
rência: um prélio esportivo ou uma partida de xadrez estão tão
A dialética de Aristóteles é apenas a arte do diálogo orde-
longe de ser um conflito real quanto um rei do xadrez está lon-
nado. O que a distingue da demonstração filosófica e científica
ge de um monarca histórico; assim, quem defende uma tese po-
é raciocinar a partir do provável. O que a distingue da erística
de muito bem não acreditar nela; defende-a por jogo ... Enfim,
sofista é raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente
as regras da lógica. como todo jogo, a dialética não tem outro fim além de si mes-
ma: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E é
nisso que se distingue das atividades sérias: da filosofia por
A dialética é um jogo um lado e da retórica por outro, ainda que lhes seja - como ve-
remos - indispensável.
O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes, Em síntese, um jogo análogo ao xadrez, em que o acaso
necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo tem posição ínfima. Um jogo em que se deve fazer de tudo
indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simples- para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras ... da ló-
mente prováveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a 'gica.
todo o mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indiví-
duos competentes. O endoxon opõe-se, pois, ao paradoxon (o
paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opinião aceita). Tudo para ganhar
São assim, hoje em dia, os conceitos de "normal" ou de "matu-
ridade": não possuem nenhum rigor científico, mas são úteis No embate dialético, é preciso antes de tudo levar em con-
para que as pessoas se entendam, tanto nas ciências humanas sideração o adversário concreto que temos diante de nós e dis-
quanto na vida social; seriam bons exemplos de endoxa. por os argumentos por via de conseqüência. Por exemplo, se o
Portanto, a dialética renuncia à verdade das coisas em be- adversário é iniciante, será atacado com exemplos ou analogias;
neficio da opinião aceita. Substitui a pergunta científica: "o se for experiente, ser-Ihe-ão opostos raciocínios dedutivos4 •
que é?" por esta outra: "o que lhe parece?"3. A verdade é que Aristóteles, aliás, ensina procedimentos, "truques" próprios
Aristóteles toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consenso a desorientar o adversário, impedi-lo de ver aonde se quer che-
do consenso aparente (phainomenon endoxon), com que se con- gar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argu-
tentam os sofistas. mentação que dissimulem a conclusão, para que o adversário
Hoje, quem lê os Tópicos pergunta-se com freqüência o não sat& aonde se está indo realmente; inserir na argumenta-
que distingue Aristóteles dos sofistas. Desconfia-se que seu ção proposições inúteis para melhor esconder o jogo, etc. 5 ; do
objetivo não é ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipular mesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objeções a
o adversário e mesmo a enganá-lo. si mesmo; às vezes não se hesita em concluir o verdadeiro a
30 INTRODUÇÃO À RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALÉTICA 31
partir de premissas falsas, em se verificando que o adversário contrário, se obstinar, não estará fazendo mais que chicanice,
admite estas últimas mais facilmente que as verdadeiras!6 No pois estará bloqueando o debate de modo totalmente arbitrá-
todo, as aparências são salvas. Tem-se até o direito de jogar rio lO • Analogamente, é preciso evitar que as objeções acabem
com as palavras (como os sofistas!), quando, por culpa do virando obstrução, o que equivale a desperdiçar tempo e parali-
adversário, se está "absolutamente impossibilitado de discutir sar a discussão para não perder. De modo mais geral, deve-se
de outra maneira..."7. evitar discutir com qualquer um, porque, se o adversário ignora
Na verdade, pouco importa se o defensor sustenta uma as regras do debate, este só poderá abespinhar-se, já que cada
tese provável ou improvável; pouco importa se a tese é dele, de um recorrerá a qualquer meio para impor sua conclusão II •
outro, ou de ninguém. O importante é acharem que ele defen- Às regras que dizem respeito aos argumentadores, acres-
deu bem, que argumentou brilhantemente8 ; por fim, caso o centam-se as que dizem respeito à argumentação.
questionador tenha vencido ressaltando todos os absurdos de- Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito
correntes da tese, o defensor deve poder "mostrar" que a culpa aos termos. Muitas vezes os debates são deturpados por se utili-
zarem premissas ambíguas. Vejamos, entre milhares de exem-
nâo é sua, mas da própria tese; em suma, que ele defendeu o
plos, este sofista registrado na Lógica de Port-Royal (p. 217):
melhor que pôde uma tese que não era sua>, Assim,
Não és o que sou;
num debate dialético, o objetivo do questionador é parecer, por
eu sou homem;
todos os meios, estar fazendo uma refutação, e o objetivo do de-
logo, não és homem.
fensor é parecer não estar sendo afetado pessoalmente em nada.
(VIII,5,159a)
Sofisma porque, na conclusão, "ser homem" é tomado no
sentido universal, enquanto na premissa menor ele é tomado
em sentido particular: este homem, e não todo o homem ou
Respeitar as regras do jogo qualquer homem I2 •
Outros sofismas dizem respeito à forma do raciocínio. Por
Um jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitando- exemplo, a petição de princípio, que toma como aceita a tese
se as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas não que se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras I3 ;
por quaisquer meios. Porque a trapaça, transgressão das regras em que a conclusão é extraída de premissas menos prováveis
lógicas, induz de chofre a destruição do jogo. E é exatamente que ela, ou de premissas excessivamente numerosas para que
por isso que Aristóteles tanto insiste nas regras da dialética, se possa compreender a razão do que está sendo concluído; e
que a opõem à sofistica, essa trapaça. As principais são as que em que se chega à conclusão por meio de um raciocínio impró-
seguem: prio ao assunto, como por exemplo um raciocínio não geomé-
Para começar, as que - sem serem propriamente lógicas - trico para estabelecer uma conclusão geométrica I4 •
têm por objetivo permitir a conclusão, o fim do jogo, num tem- Vimos que, contra certos adversários malevolentes ou li-
po limitado. mitados, o verdadeiro pode ser concluído de premissas falsas.
Assim, se é verdade que, a partir de casos particulares, por Mas, ,mesmo nesse caso, continua proibido transgredir as re-
mais numerosos que sejam, nunca se pode concluir por uma gras d&raciocínio; sejam as premissas certas, prováveis ou fal-
proposição universal, cumpre entretanto que o adversário, após sas, o raciocínio deve ser correto.
certa quantidade de exemplos, aceite essa passagem para o uni- A passagem,do falso ao verdadeiro deve ser dialética, não
versal, a menos que ele próprio gere um contra-exemplo. Se, ao erística (161 a).
32 INTRODUÇÃO À RETÓRICA ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 33
Enfim, uma regra apropriada ao 'jogo" dialético: só serão E o próprio Aristóteles, no capítulo 2 do primeiro livro dos
feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com Tópicos, fixa os beneficios secundários oferecidos pela dialéti-
não. Por exemplo, não se deve perguntar: "O que é o bem?", ca. Aponta três: uso pedagógico, uso filosófico e uso social
mas: "O bem se reduz ao prazer?" (158 a) ("homilético", que diz respeito diretamente à retórica).
O uso pedagógico será explorado pelo ensino durante cer-
ca de vinte e cinco séculos! "É a gymnasía: Nos embates dialé-
Utilidade do jogo dialético ticos, argumenta-se para avaliar as forças, e não para debater",
"com o propósito de exercitar-se e provar-se, e não de instruir-
A dialética é, pois, um jogo cujo objetivo consiste em pro- se"16. Se desse jogo não se extrair verdade alguma, pelo menos
var ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio. O se adquirirá um treinamento intelectual, um método que permi-
papel do inquiridor "é concluir a discussão de modo que o de- ta argumentar sobre qualquer assunto.
fensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como conse- O 'uso filosófico divide-se em dois. Em primeiro lugar, a
qüências necessárias de sua tese" (159 b). Ao outro, em contra- dialética, que desempenha um papel epistemológico por per-
partida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial mitir (e só ela o faz) estabelecer através de um exame contradi-
é que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos os tório os primeiros princípios de cada ciência e os princípios
argumentos a seu alcance. E esse "mostrar" já não é simples comuns a todas. Foi graças a um exame dialético que Aristóte-
aparência; é o sofista que raciocina na aparência, exatamente les estabeleceu os primeiros princípios da fisica, da moral e até
como o trapaceiro, que faz de conta que estájogando. Quanto à o princípio de contradição.
dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência, A outra função é interna à filosofia. A dialética dá ao filó-
mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que sofo uma competência que lhe é indispensável: "Numa pala-
reforça ainda mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles: vra, é dialético quem está apto a formular proposições e obje-
quando um dos dois adversários raciocina mal, a discussão vira ções."!7 Proposição: extrair o universal de vários casos particu-
chicana, e o faltoso "impede o bom cumprimento da obra co- lares; objeção: achar um caso particular que permita infirmar
mum" (161 a); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu uma proposição universal... E ainda mais, a dialética dá ao filó-
próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum, sofo "a capacidade de abarcar apenas com um olhar (00') as
que é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas conseqüências de uma e de outra hipótese"; assim, só lhe resta
ambos querem levar a bom termo "a obra comum". "fazer a justa escolha entre ambas"18.
Finalmente, qual é o proveito do jogo dialético? Aristóte- Mas o filósofo não joga. Utiliza a formação que a dialética
les por certo responderia - e todos os gregos com ele - que esse lhe dá para buscar a verdade. No uso lúdico da dialética, cada
jogo tem fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pela um leva em conta os objetivos reais ou prováveis do adversário
beleza e pelo prazer de uma disputa bem travada, prazer com- que tem diante de si. No uso filosófico, têm-se em mente todas
partilhado, aliás, pelo público. Entretanto, Aristóteles diz em as objeções possíveis, ainda que estas jamais tenham sido for-
outro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo, mulaqas nem sejam formuláveis. O filósofo está diante de um
pode-se também "jogar com vista a uma atividade séria"!5. Po- adverMho que renasce a cada instante, pois está sempre insa-
de-se, com efeito, ignorar o valor insubstituível do jogo na edu- tisfeito: ele mesmo.
cação? Pode-se ignorar o aspecto de jogo intelectual que se en- Resta a função homilética da dialética:
contra tanto na matemática quanto na filosofia?
34 INTRODUÇÃO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALÉTICA 35
Sua utilidade no contato com os outros é explicada pelo Dessa forma, ela passa a ser antístrofos da dialética, ou seja,
fato de que, depois de prepararmos o inventário das opiniões da está no mesmo plano.
maioria (tôn pollôn), não estaremos falando a ela a partir de
pressupostos que lhe sejam estranhos, mas a partir de pressupos-
tos que lhe são próprios, sempre que a quisermos persuadir... o que elas têm em comum
(1,2, 101 a)
No mesmo plano: vejamos agora como Aristóteles prova
É preciso deixar claro que esta passagem é precisamente isso. Seus argumentos podem ser resumidos em cinco l9 •
aquela à qual Aristóteles remete no segundo argumento de Primeiramente, a retórica e a dialética são capazes tanto
nosso texto de Retórica. "Contatos com os outros": essa é exa- de provar uma tese quanto o seu contrário; o que não significa
tamente a área da retórica, e aí temos uma idéia dos serviços
que as duas teses sejam necessariamente equivalentes, pois
que a dialética pode prestar-lhe.
então se cairia na sofística; quer dizer que se pode argumentar
mesmo em favor de uma tese fraca.
Em segundo lugar, a retórica e a dialética são universais,
Retórica e dialética
no sentido de não serem ciências, de não implicarem nenhuma
especialização e de possibilitarem a discussão de tudo o que for
Qual é então a relação entre dialética e retórica? A esta
controverso.
pergunta Aristóteles responde desde a primeira frase de seu
Em terceiro lugar, ainda que ambas sejam praticadas por
livro: a retórica é antístrofos da dialética" (Retórica, I, 1354 a).
hábito ou mesmo por acaso, podem também ser ensinadas me-
O problema é que não se conhece bem o sentido de antístrofos.
todicamente, e são nesse caso "técnicas".
Os tradutores utilizam ora "análogo", ora "contrapartida". E-
Em quarto lugar, ao contrário da sofistica, ambas são ca-
o que não simplifica as coisas - a explicação do próprio Aristó-
pazes de fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente: a
teles é um tanto confusa. Nesse primeiro capítulo, ele escreve
dialética, entre o verdadeiro silogismo e o sofisma', a retórica,
que a retórica é o "rebento" da dialética, isto é, sua aplicação,
mais ou menos como a medicina é a aplicação da biologia. Mas entre o realmente persuasivo e o logro.
depois ele a qualifica como uma "parte" da dialética. Diz tam- Em quinto lugar, elas utilizam dois tipos idênticos de ar-
bém que ela lhe é "semelhante" (omoion), portanto que a rela- gumentação: indução e dedução, que se situam entre a demons-
ção das duas seria de analogia. Antístrofos: é maçante um livro tração (apodeixis) própria da ciência e a erística enganadora
começar com termo tão obscuro! dos sofistas.
Na nossa opinião, esse termo deve ser visto como uma Esses argumentos são tão fortes que dialética e retórica
provocação ... Isto porque Aristóteles argumenta quase sem- chegam a parecer dois termos que, no fundo, designam a mes-
pre contra Platão. Como se sabe, este último desprezava a re- ma disciplina! Mas não é nada disso. A retórica é apenas uma
tórica e exaltava a dialética, na qual via o método por exce- "aplicação", entre outras, da dialética; é uma de suas quatro
lência da filosofia, único que permitia alcançar o absoluto, o funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um
"aipotético". Aristóteles inicia, pois, o seu livro com um ges- meio,entre outros, de persuadir. Mais ou menos como o médi-
to de desafio a Platão. Faz a dialética descer do céu para a ter- co utiliza as ciências biológicas, mas também a psicologia, a
ra e, inversamente, reabilita a retórica, atribuindo-lhe um pa- psicanálise, etc.
pel mais modesto do que lhe atribuíam os antigos retores.
36 INTRODUÇÃO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALÉTICA 37
Dialética, parte argumentativa da retórica Se não é justo encolerizar-se contra quem nos tenha feito
mal sem intenção, quem nos fez bem por obrigação não tem
É certo que a retórica utiliza a dialética para convencer. E direito a nenhum reconhecimento. (1397 a)
parece mesmo que, no capítulo primeiro do livro I, Aristóteles Se os deuses não são oniscientes, muito mais razões há
limita a retórica à técnica da prova; diz, aliás, que o orador só para que os homens não o sejam. (1397 b)
deve ocupar-se com problemas de fato e deixar para o juiz a
preocupação de avaliá-los. Em suma, uma retórica honesta, po- A partir daí, pode-se desculpar "X" por não ser grato, ou
rém inexpressiva ... que não será exatamente a que Aristóteles "Y" por se ter enganado. Embora não sejam irrefutáveis, esses
vai desenvolver em seu livro. Esta, longe de limitar-se a ser argumentos são altamente verossímeis.
aplicação, vai subordinar a si a dialética como um meio entre Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa
outros de convencer. da retórica. Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não
E já no capítulo 2 o autor introduz em sua retórica elemen- tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os
tos de persuasão que nada têm a ver com a dialética, que só casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua
conhece provas de ordem intelectual. A retórica, diz Aristóte- vez, não é um jogo. É um instrumento de ação social, e seu
les, comporta três tipos de provas (pisteis) como meios de per- domínio é o da deliberação (buleusis); ora, esse domínio é pre-
suadir. Os dois primeiros são o etos e o patos, que estudaremos cisamente o do verossímil. De fato, não se delibera sobre o que
no próximo capítulo; constituem--4 parte afetiva da persuasão. é evidente - por exemplo, para saber se a neve é branca! - nem
O terceiro tipo de prova, o raciocÍnio, resulta do logos, consti- sobre o que é impossível; delibera-se sobre fatos incertos, mas
tuindo o elemento propriamente dialético da retórica20 • que podem realizar-se, e realizar-se em parte através de nós.
O próprio Aristóteles diz que "esses dois métodos", a de- Por exemplo, a cura de um doente, a vitória na guerra, etc. 21
dução e a indução, "são necessariamente idênticos nas duas Em resumo, a retórica é uma "aplicação" da dialética, no
técnicas" (1356 b). Idênticos não apenas em termos de estrutu- sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de per-
ra, mas também de conteúdo. Em retórica como em dialética, suasão. Mas instrumento que não a dispensa de modo algum
os dois tipos de raciocínio apóiam-se no verossímil, o eikos, dos instrumentos afetivos.
termo constante entre os antigos retores, que Aristóteles com-
para ao endoxon da dialética. Fique claro que, limitada ao ve-
rossímil, a argumentação continua racional. O eikos (por exem- Moralidade da retórica
plo, o filho amar o pai) é o que acontece com mais freqüência,
portanto o que apresenta grande probabilidade e pode ser pre- Mas aí surge uma questão sobre a retórica que não existia
sumido salvo prova em contrário (cf. 1357 a). com referência à dialética. Como vimos, esta última em si mes-
Nesse sentido, a retórica assim como a dialética opõe-se à ma é somente umjogo, cuja moralidade consiste em não trapa-
sofistica, que se compraz com o inverossímil e o "prova" por cear, em respeitar as regras internas, sem as quais o jogo não
meio de uma aparência de raciocínio. Assim, no capítulo 24 do seria mais jogo. A retórica, ao contrário, é uma disciplina séria,
livro 11, Aristóteles detém-se numa análise dos sofismas que pois está ligada à ação social e contribui para decisões graves,
retoma de modo mais abreviado a análise feita em Tópicos. E como éôhdenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz,
no capítulo 23 expõe os lugares, ou seja, os tipos de argumen- etc. Pode-se, pois, formular a questão de sua moralidade: será
tos verossímeis que servem de premissas ao raciocínio retóri- honesto o método de debater e persuadir, ou trata-se de mani-
co. Por exemplo: pulação desonesta?
38 INTRODUÇÃO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALÉTICA 39
A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formu- assim ela produzirá conseqüências iníquas. O segundo é a
lar, vimos o que responde Aristóteles: a retórica é uma técnica útil, recusa do arbitrário, pois afinal cada um pode invocar as leis
freqüentemente indispensável. Se seu uso às vezes é desonesto, "não escritas" de Antígona para revogar a lei que o incomoda;
não cabe censurar a técnica, mas o técnico. No entanto, lendo a é como se alguém alegasse erro médico "para passar-se por
seguir os conselhos da retórica de Aristóteles, perguntamo-nos se mais hábil que os médicos" (ibid.)!
ela não se reduz a uma manipulação digna de sofistas. Discutire- Só que a situação não é mais de dialética, mas de proces-
mos esse assunto a partir de um exemplo concreto. so, em que há bens em jogo, talvez mesmo vidas. E aconselhar
No capítulo 15 do livro I, Aristóteles dá conselhos ao liti- o litigante a adotar, segundo a causa, ora uma tese, ora seu con-
gante sobre o que dizer; primeiro se a lei lhe for contrária, de- trário, parece um tanto amoral. Mas não se deve esquecer que a
pois se a lei lhe for favorável. Numa primeira leitura, tem-se a condição do litigante, como aliás a do político, é de não estar
impressão de que ele legitima todas as "velhacarias de advoga- sozinho; ele tem diante de si outro litigante, a quem compete
dos". Para destacar bem isso, dispusemos os dois textos lado a fazer de tudo para desmentir sua argumentação; ambos têm por
lado, invertendo ligeiramente a ordem dos argumentos, para que missão preparar o julgamento: cada um faz valer tudo o que
cada um corresponda a seu contra-argumento. possa servir à sua própria causa. Quem define é o juiz.
A retórica só é exercida em situações de incerteza e confli-
"Se a lei nos é desfavorável" "Se a lei nos for favorável"
to, em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada
- "é preciso recorrer à lei comum, - Ué preciso explicar que ninguém senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o de-
com razões mais equânimes e mais [gortanto nenhuma cidade] escolhe bate entre Creonte e Antígona, entre a razão de Estado, que
justas"; o bem absoluto, mas sim seu próprio exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se
bem";
- "dizer que a fórmula em minha al-
resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se
- "dizer que a fórmula do juramento
em minha alma e consciência signi- ma e consciência não tem por objeti- acreditar que não nunca se encerrará.
fica não nos atermos estritamente à vo obter uma sentença contrária à A única coisa que se pode fazer, na falta de uma demons-
letra da lei"; lei, mas escusar o juiz de perjúrio, tração rigorosa, é confiar no debate contraditório em que cada
caso ele tivesse ignorado o sentido orador "se esforça por detectar tudo o que seu caso comporta
real da lei";
- "dizer que os princípios de eqüida- - "dizer que não há diferença entre
de persuasivo" ...
de são permanentes e nunca mudam, não ter lei e não recorrer àquelas que
nem a lei comum, que é baseada na temos!"
natureza"; Conclusão: Aristóteles e nós
- citar "a lei não escrita de Antígo- - "dizer que querer ser mais sábio
na", único critério de justiça das leis que as leis é justamente o que proí-
escritas, aliás muitas vezes ambíguas, bem essas leis [não escritas] que Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes,
anacrônicas ou contraditórias entre si. costumam ser elogiadas" (75 a). mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialé-
tica é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações,
Note-se que o debate é propriamente dialético, pois opõe comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo
dois endoxa. O primeiro é a recusa do legalismo, em nome da que, ertttt outros meios de convencer, utiliza a dialética como
"eqüidade" (epieikés), que põe a justiça acima do direito posi- instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem
tivo e faz do juiz um árbitro, que pode corrigir a lei quando esta cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e - indo mais
"deixar de desempenhar sua função de lei" (ibid.), porque longe - porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo.
40 INTRODUÇÃO À RETÓRICA ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 41
É certo que não desempenham o mesmo papel. "A dialéti- provável, onde a decisão é mais ou menos justa. Mundo onde,
ca", diz Pierre Aubenque, "refuta no real ( ... ) mas só demons- embora possamos "refutar no real", com uma certeza demons-
tra na aparência"22. Na retórica, em que não se sustenta uma trativa, devemos nos contentar com provas mais ou menos con-
tese, mas se defende uma causa, em que não se joga com idéias, vincentes, com opções mais ou menos razoáveis.
mas o que está emjogo no discurso é o destino judiciário, polí- Esse mundo já não é nosso, dirão. Não mesmo, porém vai
tico ou ético dos homens, na retórica, é preciso levar a sério o continuar sendo ainda enquanto não tivermos chegado à ciên-
"na aparência", como verossímil que faz as vezes de uma evi- cia total. Aí então é o homem que já não será.
dência sempre inapreensível.
Em todo caso, elas pertencem ao mesmo mundo. O que Quadro comparativo
significa isso?
Campo para
A retórica de Aristóteles está bem próxima da retórica de Alvo Modalidade Aristóteles Campo para nós
Isócrates em termos de conteúdo. A diferença é que em Aristó-
teles a retórica é uma arte situada bem abaixo da filosofia e das Demonstração: Eu, nós Necessária Lógica, ciências Lógica, ciências
ciências exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "ne- saber exatas, exatas
metafísica e naturais
cessárias", que, como os teoremas, só podem ser o que são, Dialética: Tu Provável Universal, Ciências
possibilitando compreender e prever. A retórica, por sua vez, jogo, (endoxon) princípios humanas,
só atinge o verossímil, aquilo que acontece no mais das vezes, exercício primeiros fílosofia,
mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer teologia
Retórica: Vós Verossímil Judiciário, Os mesmos, mais
que ela só é possível em certo mundo. convencer (eikos) político, pregação,
Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o mundo um público epidíctico propaganda,
divino, o "céu", não cognoscívélJ pela fé, mas, ao contrário, publicidade
pela razão demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invisí- Sofística: Impessoal, Falsa-aparência Ilusão Idem
vel, Deus, quanto o divino visível, a saber, os astros, objeto da dominar eles
pelo logro
astronomia matemática, visto que seus movimentos são neces-
sários, portanto calculáveis e previsíveis.
Abaixo, o mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso, Notas. - Para começar, a distribuição não é mais idêntica
contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência à de Aristóteles. A metafisica passou para segundo plano, en-
perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil. Mundo, en- quanto as ciências da matéria tomaram-se demonstrativas, e
fim, aberto à ação humana. Citemos mais uma vez Aubenque: referem-se ao necessário (fisica, química, etc.). A natureza e o
campo da sofistica não mudaram, ainda que o sofista já não
Num mundo perfeitamente transparente à ciência, isto é, se confesse como tal; esse é o campo em que se pode tomar a
onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do "aparência" de razão pela razão: na verdade, todos os cam-
que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para
pos! Note-se, por fim, que a sofistica, ao fingir que se dirige a
a ação humana23 •
"ti", ou a "vós", manipula na realidade o "eles" ou o "alguém";
não é eXá1amente a "ti" que o sofista se dirige, mesmo que
Nenhum lugar também para a retórica, que é uma arte. Mas
finja fazer isso, mas sim à coisa em ti.
vivemos em um mundo que não é o da pura ciência; em um
mundo que não é um jogo, mas que nem por isso está submeti- Quanto à retórica, seu campo ampliou-se muito a partir
do ao cego acaso. Mundo onde a previsão é mais ou menos de Aristóteles, o que provaria a fecundidade de seu sistema.
Capítulo III
O sistema retórico
entram as famosas figuras de estilo, às quais alguns, nos anos três? Aristóteles responde: "porque há três espécies de auditó-
60, reduziam a retórica! rio" (Retórica, 1358 a); é a necessidade de adaptar-se a eles
A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva que confere traços específicos a cada gênero: conforme as p.es-
do discurso, com tudo o que ele pode implicar em termos de soas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneIra.
efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à ação será O discurso judiciário tem como auditório o tribunal; o delibe-
acrescentada a memória. rativo, a Assembléia (Senado); o epidíctico, espectadores,
todos os que assistem a discursos de aparato, como panegíri-
Essa classificação pode parecer bem escolar: na verdade
cos, orações fúnebres ou outras.
não é bem assim que as coisas acontecem quando se prepara
Os atos dos três discursos não são os mesmos. O judiciário
um discurso. Pode-se ir de uma tentativa de ação - proferir al-
acusa (acusação) ou defende (defesa). O deliberativo aconse-
gumas frases - para buscar em seguida argumentos; escrever
lha ou desaconselha em todas as questões referentes à cidade:
antes de encontrar um plano, etc. Mas pouco importa a ordem
paz ou guerra, defesa, impostos, orçamento, le-
cronológica. As quatro partes na realidade são as quatro "tare-
gislação (cf. 1359 b). O epidíctico censura e, na malOna das
fas" (erga) que devem ser cumpridas pelo orador. Se este dei- vezes, louva ora um homem ou uma categoria de homens, co-
xar de cumprir alguma delas, seu discurso será vazio, ou desor- mo os mortos na guerra, ora uma cidade, ora seres lendários,
denado, ou mal escrito, ou inaudível. como Helena ... '
Portanto, um advogado que prepare uma defesa, um estu- Aristóteles, que nunca esquece que é filósofo, mostra que
dante que prepare uma exposição, um publicitário que prepare os três gêneros também se distinguem pelo tempo. O judiciário
uma campanha, todos deverão, se não passarem sucessivamen- refere-se ao passado, pois são fatos passados que cumpre
te por essas quatro fases, cumprir pelo menos as tarefas que esclarecer, qualificar e julgar. O deliberativo refere-se ao futu-
cada uma delas representa: compreender o assunto e reunir to- ro, pois inspira decisões e projetos. Finalmente, o epidíctico
dos os argumentos que possam servir (invenção); pô-los em refere-se ao presente, pois o orador propõe-se à admiração dos
ordem (disposição); redigir o disClU'sO o melhor possível (elo- espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do
cução); finalmente, exercitar-se proferindo-o (ação). futuro.
O principal é que os valores que servem de normas a esses
discursos não são os mesmos. Enquanto o judiciário diz respei-
Invenção to ao justo e ao injusto, o deliberativo diz respeito ao útil e ao
nocivo. Útil a quem? À cidade, e a nada mais; e o interesse co-
Antes de empreender um discurso, é preciso perguntar-se letivo, nacional, pode ser perfeitamente injusto; assim, o ora-
sobre o que ele deve versar, portanto sobre o tipo de discurso, o dor político pouco está preocupado em saber
gênero que convém ao assunto. Veremos que essa questão do gê-
nero também diz respeito à interpretação do discurso. se não há nenhuma injustiça em reduzir povos vizinhos à escra-
vidão, mesmo que eles nada tenham feito de mal. (1358 b)
Os três gêneros do discurso Hoje, UfiílIl10S luvas de pelica... Mas será que encontramos
muitos políticos para propor medidas justas, porém nocivas à
Segundo os antigos, os gêneros oratórios são três: judiciá- nação? Quanto ao epidíctico, os valores que o inspiram são o
rio, deliberativo (ou político) e epidíctico. Por que exatamente nobre e o vil (kalon, aiskhron), valores que nada têm a ver com
46 INTRODUÇÃO À RETÓRICA o SISTEMA RETÓRICO 47
o interesse coletivo, e que não se confundem tampouco com o sentimento cívico e patriótico. Pronunciado, além do mais,
"justo", pelo menos no sentido de legal. durante jogos entre cidades (por exemplo, Olimpíada), refor-
Aristóteles quase não se detém nos estilos respectivos çou nos gregos o sentimento de pertencer a uma mesma cultura
dos três gêneros; esclarece, todavia, que o epidíctico é "o que estava acima de todas as guerras intestinas (cf. 6 Gregos!
mais escrito dos três" (1413 b, 1414 a). Em compensação, de Górgias, 1414 b). Em suma, o epidíctico não dita uma esco-
mostra durante longo tempo que o tipo de argumentação dos lha, mas orienta escolhas futuras.
três não é o mesmo. O judiciário, que dispõe de leis e se diri- Significa dizer que ele é essencialmente pedagógico. No
ge a um auditório especializado, utiliza de preferência racio- vastíssimo terreno que abre, os sucessores de Aristóteles in-
cínios silogísticos (entimemas), próprios a esclarecer a causa cluirão a história, essa "memória dos grandes feitos do passa-
dos atos. O deliberativo, dirigindo-se a um público mais mó- do". Mais tarde, na era cristã, o gênero epidíctico será enrique-
vel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que, cido com toda a pregação religiosa.
aliás, permite conjecturar o futuro a partir dos fatos passa- O fato é que a teoria dos três gêneros hoje é bem mais res-
dos: Dionísio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos tritiva; há tantos outros tipos de discursos persuasivos além des-
conhecidos da história pediram uma guarda; logo, Dionísio ses três! Mas o mérito de Aristóteles foi mostrar que os discur-
sos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a fi-
vai tomar-se tirano (1357 b). Quanto ao epidíctico, recorre
nalidade. Voltaremos a essa questão no capítulo VII.
sobretudo à amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo
público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua
importância e sua nobreza (1368 a). Hoje em dia mesmo,
quando se faz o elogio de um morto, parte-se daquilo que to- Os três gêneros do discurso
o etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar etos e o patos como dois tipos de afetividade: a primeira calma,
confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumen- comedida, duradoura, submetida ao controle mental; a segunda
tos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança: súbita, violenta, irreprimível, portanto irresponsável. Quinti-
liano, como a retórica ulterior, distingue bem dois tipos de afe-
Por isso é que sua eqüidade é praticamente a mais eficaz tividade, mas sem definir nitidamente que uma é do orador e a
das provas. (1356 a) outra do auditório.
Em todo caso, a retórica criou uma verdadeira psicologia,
Como então dispor favoravelmente o auditório? É verdade de que tirará proveito toda a literatura, em particular o teatro.
que a resposta depende do próprio auditório, cujas expectativas Toda a análise dos sentimentos e das paixões deriva da retórica.
variam segundo a idade, a competência, o nível social, etc. O Se o etos diz respeito ao orador e o patos ao auditório, o
orador, portanto, não terá o mesmo etos se estiver falando com logos (Aristóteles não emprega esse termo, que utilizamos para
velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em simplificar) diz respeito à argumentação propriamente dita do
todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibi- discurso (cf. 1356 a). É o aspecto dialético da retórica, que
lidade, mostrar-se sensato, sincero e simpático. Sensato: capaz Aristóteles retoma inteiramente dos Tópicos.
de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimu- Como em Tópicos, distingue dois tipos de argumentos, o
lar o que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar entimema, ou silogismo baseado em premissas prováveis, que
seu auditório (cf. 11, 1, 1377 b e também 1366 a). é dedutivo, e o exemplo, que a partir dos fatos passados con-
Note-se que etos é um termo moral, "ético", e que é defi- clui pelos futuros, e que é indutivo. As premissas prováveis
nido como o caráter moral que o orador deve parecer ter, dos entimemas são: ou verossimilhanças (eikota), como por
mesmo que não o tenha deveras. O fato de alguém parecer sin- exemplo que um filho ama o pai, ou indícios seguros, como
cero, sensato e simpático, sem o ser, é moralmente constrange- por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indí-
dor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer não é menos cios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica
constrangedor, pois assim as melhores causas estão fadadas ao que houve fogo. Voltaremos a esses diversos argumentos no
fracasso. /) capítulo VIII.
O patos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos
que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso.
Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristóteles dedica boa Provas extrínsecas e provas intrínsecas
metade de seu livro 11 à psicologia das diversas paixões - cóle-
ra, medo, piedade, etc. - e dos diversos caracteres (dos ouvin- Na realidade, o orador dispõe de dois tipos de provas: as
tes), segundo a idade e a condição social. Aqui, o etos já não é atekhnai, ou seja, extra-retóricas, e as entekhnai, ou seja intra-
o caráter (moral) que o orador deve assumir, mas o caráter (psi- retóricas. Vamos denominá-las, respectivamente, extrínsecas e
co lógico) dos diferentes públicos, aos quais o orador deve intrínsecas (no século XVII, eram traduzidas por naturais e ar-
adaptar-se. tificiais).
No entanto, há nisso certa ambigüidade de que sofrerá a As Pr"ovas extrínsecas são as apresentadas antes da inven-
retórica ulterior. Quintiliano (VI, 2, 12 s.) dedica também um ção: testemunhas, confissões, leis, contratos, etc. Do mesmo
longo estudo ao etos e ao patos, termos que ele mantém em modo, num discurso epidíctico, tudo o que se sabe da persona-
grego, alegando (como nós) que são intraduzíveis. Define o gem cujo elogio se faz.
50 INTRODUÇÃO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 51
As provas intrínsecas são as criadas pelo orador; depen- zir "lugar" por argumento. Mas lembremos que esse termo tem
dem, pois, de seu método e de seu talento pessoal, são sua ma- pelo menos três sentidos, que exporemos por níveis de tecnici-
neira própria de impor seu relatório. Vimos isso no capítulo dade.
anterior: o texto-lei, prova extrínseca, pode ser objeto de uma 1) No sentido mais antigo e mais simples, o lugar é um ar-
argumentação intrínseca contraditória, conforme essa lei seja gumento pronto que o defensor pode colocar em determinado
favorável ou desfavorável ao orador (cf. supra, p. 50); do mes- momento de seu discurso, muitas vezes depois de o ter apren-
mo modo, quem não tiver testemunhas dirá que os testemunhos dido de cor. Numa forma menos rígida, esses lugares são en-
são subjetivos, muitas vezes comprados, e que é melhor julgar contrados em toda a retórica antiga. Assim, no discurso judi-
segundo as verossimilhanças (cf. 1376 a). O orador transforma ciário, os lugares da peroração que concluem a acusação:
assim sua desvantagem em vantagem.
Num elogio fúnebre, as provas extrínsecas são aquilo que Se deixardes impune o seu crime, haverá multidões de imi-
se sabe do defunto, que nem sempre é bonito; o argumento in- tadores. Muitos esperam com impaciência o vosso veredicto.
trínseco é a amplificação, que tira partido das provas extrínse- (Chaignet, p. 132, e Navarre, p. 305)
cas:
Como lugares de amplificação, servem para persuadir os
transformar o impetuoso em franco, o arrogante em respeitável, juízes de que a causa ultrapassa a pessoa do réu, que ela com-
o temerário em bravo, o pródigo em liberal. (1367 b) promete o futuro.
Um lugar das defesas modernas é o da infância infeliz, que
Moliere retomou esse procedimento numa cena do Misan- permite chamar à baila circunstâncias atenuantes. No século
tropo, descrevendo a retórica do amor, que transforma os defei- XVII, servia, ao contrário, à acusação, pois via-se na inf'ancia
tos da amada em "perfeições": infeliz do acusado indícios de que ele sempre fora pervertido, e
que só poderia reincidir; essa não era uma prova de que ele era
A magra o que tem é altura e liberdade;
escusável, mas ao contrário irrecuperável (cf. A. Kibedi-Varga,
A gorda tem porte cheio de majestade; ( ... )
A altiva tem a alma digna duma coroa;
1970, p. 145).
A patife é perspicaz, e a tola é tão boa. (lI, 5) No primeiro sentido, o lugar é, pois, um argumento-tipo,
/,/ cujo alcance varia segundo as culturas. São encontrados no dis-
Logro? Sabe-se lá: quem disse, e com que direito, que ele curso epidíctico: os melhores são os que partem ... ; também se-
era temerário e nada mais, que ela era tola e nada mais? Fala-se rão vistos no discurso publicitário.
de objetividade, mas essa não é tantas vezes a máscara da 2) Em sentido mais técnico, o lugar já não é um argumen-
malevolência? Em todo caso, é dificil conhecer alguém que, to-tipo, é um tipo de argumento, um esquema que pode ganhar
nesse domínio das relações humanas, possa ser realmente obje- os conteúdos mais diversos. Por exemplo, o lugar do mais e do
tivo. menos:
Como encontrar os argumentos? Por lugares. Esse termo é Ou, de modo positivo, todos os lugares do tipo:
tão corrente quanto obscuro. Na dúvida, pode-se sempre tradu-
52 INTRODUÇÃO A RETÓRICA o SISTEMA RETÓRICO 53
Quem pode o mais pode o menos. (1392 a, b) Vejamos um exemplo simples: um estudante que precisa
fazer uma dissertação não sabe ainda se vai adotar um plano
Altamente verossímil, esse lugar do mais e do menos está por perguntas ou um plano por tese-antÍtese-síntese; o próprio
longe de ser evidente, porém; como toda verossimilhança, fato de interrogar-se assim só é possível através de um lugar: a
pode ser contestado. Seria incontestável se aplicado a realida- questão dos tipos de planos!
des homogêneas, como por exemplo o dinheiro: quem pode dar Esse terceiro sentido da palavra lugar é muito notado num
mil francos pode dar cem; mas isso não despertaria interesse. É lugar próprio do gênero judiciário, o do estado da causa (stasis,
interessante quando se aplica a dados heterogêneos, como por status). Suponhamos que alguém é processado por um crime: a
exemplo aos saberes e aos poderes; mas aí deixa de ser eviden- acusação e a defesa vão propor-se as mesmas perguntas, que a
te. Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de antiga retórica sintetiza em quatro:
quem sabe mais; o mesmo para o poder: uma enfermeira pode 1. Estado de conjectura: ele matou realmente?
coisas que um médico não pode, etc. Quem pode o mais não 2. Estado de definição: trata-se de crime premeditado, não
pode necessariamente o menos. premeditado, de homicídio involuntário?
Classicamente, dá-se a esses lugares o nome de "luga- 3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido o
res-comuns", pois se aplicam a toda espécie de argumenta- crime voluntário, quais são as circunstâncias que podem acusar
ção; no caso atual não passa de opinião banal expressa de mo- ou escusar o réu: motivo patriótico, religioso?
do estereotipado, enquanto o lugar comum clássico é um es- 4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se o tribu-
quema de argumento que se aplica aos dados mais diversos. nal é realmente competente, se a instrução foi suficiente, etc. 2
Tecnicamente, opõe-se ao lugar próprio, tipo de argumento Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode
particular a um gênero de discurso. Assim os lugares judi- ser um lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espé-
ciários: cie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos
de causas, etc. Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma
Considera-se que ninguém ignora a lei. questão que permite encontrar argumentos que sirvam à tese,
Uma lei não pode ser retroativa. inventar as premissas de uma conclusão dada.
Esta exposição, que desejamos tão clara quanto possível,
Note-se, aliás, que o segundo depende do primeiro; de fato, ficará incompleta se não considerarmos o que se tomou o lugar
uma lei retroativa aplica-se a pessoas que não poderiam conhe- depois de Aristóteles: termo abrangente que se aplica aos dados
cê-la, pois ela não existia no momento em que essas pessoas mais heteróclitos. Assim, na retórica medieval, teremos topoi,
agiraml espécies de trechos esperados e até obrigatórios, como o lugar
3) No sentido mais técnico, o dos Tópicos, o lugar não é da modéstia afetada; o lugar do puer senilis, da criança ajuiza-
um argumento-tipo nem um tipo de argumento, mas uma ques- da como um velho; o lugar da paragem agradável, da paisagem
tão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-argu- paradisíaca; o lugar dos impossíveis:
mentos:
o queima dentro do gelo,
os lugares ( ... ) são como etiquetas dos argumentos, sob as quais O sofficou negro. (Théophile de Viau)
vamos buscar o que há para dizer num ou noutro sentido. (Cí-
cero, Orador, 46) Lugar que se encontra nos panfletos: teremos visto tudo!
54 INTRODUÇÃO A RETÓRICA O SISTEMA RETÓRICO 55
Existem igualmente lugares metafisicos, lugares teológi- A disposição, em si, é um lugar, ou seja, um plano-tipo ao
cos (a autoridade da Escritura e dos concílios), lugares risí- qual se recorre para construir o discurso. A retórica clássica
• 3
velS ... quase não fala da disposição do discurso judiciário. Em que
Finalmente, lugar é tudo o que possibilita ou facilita a in- pode ela nos interessar? Unicamente pela(s) função(ções) de-
venção, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invenção sempenhada(s) por cada uma de suas partes.
deixa de sê-lo à medida que se torna fácil! Os autores propuseram diversos planos-tipo, que iam de
duas a sete partes. Ficaremos com o mais clássico, em quatro
partes: exórdio, narração, confirmação e peroração.
Observações sobre a invenção
Na realidade, a própria noção de invenção pode parecer- Exórdio ("prooimion ", proêmio)
nos muito ambígua. De fato, ela se situa entre dois pólos opos-
tos. Por um lado, é o "inventário", a detecção pelo orador de Exórdio é a parte que inicia o discurso, e sua função é es-
todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. sencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevo-
Por outro, é a "invenção" no sentido moderno, a criação de ar- lente.
gumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristó- Dócil significa em situação de aprender e compreender; por
teles, a confiança inspirada pelo orador, deve ser "obra de seu isso, é preciso fazer uma exposição clara e breve da questão que
discurso" (1356 a); em outras palavras, o importante não é o vai ser tratada, ou ainda da tese que se vai tentar provar.
caráter que ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o cará- Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedi-
ter que ele cria. mentos - dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tão espan-
Invenção inventário, que hoje se poderia deixar a cargo de toso ou de tão grave -, procedimentos infladores, pois os juízes
um computador, ou invenção criação? Na realidade, talvez se-
deviam ficar bem cansados com eles! Aliás - observa Aristóte-
jamos nós que criamos uma oposição onde os antigos não a
les -, o exórdio é o momento do discurso que exige menos
viam. Não imaginavam criação ex nihilo, e achavam que qual-
atenção; nas partes seguintes, ao contrário, a atenção tende a
quer invenção é feita, por um lado, a partir de materiais dados
relaxar-se, sendo preciso renová-la.
(lugares extrínsecos) e por outro de regras mais ou menos estri-
Benevolente: é aí que o etos assume toda a sua impor-
tas (lugares intrínsecos); mas achavam támbém que com ela a
criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se ainda tância. Um dos lugares mais correntes consistia em escusar-se
mais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário
uma prática e de um ensino. (cf. Navarre,pp. 223 s.)
A retórica do exórdio se aplica aos outros gêneros de dis-
curso? Aristóteles afirma que o deliberativo quase não precisa
Disposição ("taxis") do exórdio, pois o auditório já sabe do que se trata. Quanto ao
epidícti$O, o exórdio consiste em fazer o auditório sentir que
Para definir com outros termos, a retórica apresenta-se está pes;oalmente implicado no que se vai dizer, em incluí-lo
como um código a serviço da criatividade. E esse duplo aspec- no fato (cf. Retórica, 1415 b).
to se encontra em suas outras partes, mais propriamente estéti- A retórica do exórdio consiste às vezes em suprimi-lo,
cas e literárias que a invenção. em ir direto ao que interessa. Assim, o célebre ex abrupto
56 INTRODUÇÃO À RETÓRICA
O SISTEMA RETÓRICO 57
coisas: 1) o testamento é legal; 2) é justo, e Isócrates prova isso tando diversos aspectos seus e refutando os argumentos con-
narrando os inumeráveis serviços prestados pelo herdeiro ao trários.
defunto; 3) ele tem bons sentimentos, pois respeita os legíti- Se nos ativermos à ordem "homérica", teremos o seguin-
mos interesses da família4 • te: 1) apresentação do argumento; 2) refutação dos contra-ar-
Em suma, narração e confirmação são duas tarefas que o gumentos; 3) retomada do argumento com nova forma.
orador deve cumprir, mas nada o obriga a realizá-las sucessiva- Essa tese do argumento único é provada a contrario: um
mente. Quintiliano dirá, aliás (11, 13, 7), que impor um plano- discurso que acumula argumentos diferentes, sem nexos entre
tipo ao orador é tão estúpido quanto impor uma estratégia-tipo si, parecerá -estar lançando mão de qualquer expediente, por-
a um general! No fundo, pouco importa em que ordem o gene- tanto ser de má-fé.
ral e o orador atingem seus objetivos, o importante é que os Note-se que, em Roma, a confirmação freqüentemente
atinjam. era seguida por uma altercação, breve debate com a parte ad-
Existe uma outra questão no que se refere à confirmação: versária.
é a da ordem dos argumentos. Deve-se começar pelos mais fra-
cos e acabar pelos mais fortes? Nesse caso, há o risco de cansar
o auditório. Optar pela ordem inversa? Mas o auditório não Digressão ("parekbasis") e peroração ("epílogos")
entenderá bem, achará que estão sendo queimados cartuchos à
toa, esquecerá a força dos primeiros argumentos. Cícero, em No discurso judiciário, prevê-se um momento de "relaxa-
Do orador (11, § 313), preconiza a ordem "homérica", que con- mento", a digressão, trecho móvel, "destacável", como diz
siste em começar pelos argumentos fortes, continuar com os Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento
mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse do discurso, mas de preferência entre a confirmação e a pero-
plano supõe que o orador tem um número suficiente de argu- ração.
mentos fortes para reparti-los assim. Narrativa ou descrição viva (ekphrásis), a digressão tem
Perelman-Tyteka (TA, p. 661) afirmam que a força de um como função distrair o auditório, mas também apiedá-lo ou
argumento é uma noção relativa, pois um argumento é mais ou indigná-lo; pode até servir de prova indireta quando feita como
menos forte em função dos que o precederam. Portanto, parte- evocação histórica do passado longínquo. Hoje em dia, esse
se de um argumento cuja força não dependa da dos outros; ou termo tomou-se pejorativo. Os professores, em particular, es-
ainda de um contra-argumento que refute uma objeção que tigmatizam a digressão, ainda que a utilizem à vontade em suas
pese sobre qualquer argumento possível, por exemplo a aulas, aliás de pleno direit05 •
i
afirmação de que o orador é desonesto venal, o que toma A peroração é o que se põe no fim do discurso. Aliás, po-
suspeito tudo o que ele disser. Em nossa opinião, convém con- de ser bastante longa e dividir-se em várias partes. Mencione-
testar a própria idéia da pluralidade de argumentos; cada dis- mos as principais.
curso só teria um único argumento capaz de conquistar a deci- 1) Amplificação (auxese, importada do gênero epidícti-
são, e os outros não passariam de maneiras diferentes de apre- co. Se o acusador, por exemplo, tiver mostrado a realidade do
sentar ou não seriam mais que contra-argumentos que respon- delito,it1sistirá então em sua gravidade, mostrará que é vital
deriam às objeções possíveis. Assim, remetemos à dupla argu- para a cidade castigar o culpado de maneira exemplar, ao pas-
mentação de Aristóteles em Retórica, I, 15 (cf. supra, p. 50). so que absolvê-lo seria incitar outros a imitá-lo (cf. Navarro,
Nos dois casos, desenvolve-se um argumento único apresen- pp. 307 s.).
60 INTRODUÇÃO A RETÓRICA
O SISTEMA RETÓRICO 61
2) Paixão, trecho que visa a despertar piedade ou indigna- Elocução ("Iéxis")
ção no auditório. Assim, a apóstrofe de Cícero a Verres:
A elocução, em sentido técnico, é a redação do discurso. Das
Se teu pai houvera de julgar-te, grandes deuses, que pode- quatro partes da retórica, diz-nos Cícerd que esta é a mais pró-
ria ele fazer? (in Quintiliano, VI, 1,3)
pria ao orador, aquela em que ele se exprime com? tal. Tese esta
que vale para toda produção literária: faço um lIvro; ter
3) Recapitulação (anacefaleose), que resume a argumen-
muitos conhecimentos e muitas idéias, um plano magnífico, mas
tação. Notemos que uma conclusão não deve constituir um no-
meu livro nada será enquanto eu não o tiver escrito; e, quem sabe
vo argumento, pois nesse caso não passaria de uma parte a
se, uma vez escrito, não exibirá outras idéias e plano bem diferen-
mais, e o discurso careceria de unidade.
te do que eu tivera no início? O verdadeiro salto criador está entre
Note-se, enfim, que a peroração é o momento por exce-
a obra escrita e aquilo que a prepara.
lência em que a afetividade se une à argumentação, o que cons-
titui a alma da retórica.
Língua e estilo.' uma arte funcional
Por que a disposição? A elocução é, pois, o ponto em que a retórica encontra a
literatura. Todavia, antes de ser uma questão de estilo, diz res-
O plano antigo do discurso judiciário é muito particular, peito à língua como tal. Para os antigos, o primeiro pro!'lema
mas nos apresenta o problema da utilidade da disposição: afi- da elocução é o da correção lingüística. O orador deve por-se a
nal, por que fazer um plano? A nosso ver, por três razões. serviço, ou melhor, sentir-se responsável por aquilo que os gre-
A disposição tem primeiramente uma função econômica: gos chamavam de to hellenizein, os latinos de latinitas, e que
permite nada omitir sem nada repetir; em suma, possibilita que traduziríamos por "bom vernáculo". Naquelas culturas, em que
o orador "se ache" a cada momento do discurso. o ensino ainda estava pouco desenvolvido, as exigências da
Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a arte oratória fixaram a língua como instrumento indispensável
disposição é em si mesma um argumento. Graças a ela, o orador para quem se quisesse fazer entender por todos. Hoje em dia
faz o auditório encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que esco- também, quem quiser persuadir o grande público não
lheu, conduzindo-o assim para o objetivo que propôs. Essa metá- permitir-se incorreções nem preciosismos, salvo em ocaSlOes
fora do caminho é confirmada por termos como "preâmbulo"
muito precisas. . ,
(sinônimo de exórdio) ou "digressão" (desvio do rumo). A retórica foi a primeira prosa literána e durante mUlto
Finalmente, a disposição tem funçàb heurística, por per- tempo permaneceu como a única; por isso, precisou
mitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, o que é fa- se da poesia e encontrar suas próprias normas. Por quê? Afmal,
zer um plano? É formular-se uma série de perguntas distintas, um discurso poético pode ser perfeitamente convincente. Só
constituindo cada uma delas uma parte ou uma subparte. Saber que a poesia grega utilizava uma língua arcaizante, bastante
fazer um plano é saber fazer-se perguntas e tratá-las uma após esotérica e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portan-
outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasça da respos- to, era recorrer à prosa, mas a uma prosa digna de riva-
ta precedente. É por isso que acreditamos - talvez de acordo lizar com a poesia. Em suma, entre o hermetismo dos poetas e
com os antigos - que o verdadeiro plano, o plano orgânico, só o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa oratória devia encon-
aparece após a redação, a elocução. trar suas próprias regras.
62 INTRODUÇÃO A RET6RICA O SISTEMA RET6RICO 63
Estas 7 diziam respeito à escolha das palavras e à constru- A segunda regra é a da clareza, em outras palavras, a
ção das frases, o que produzia um discurso ao mesmo tempo adaptação do estilo ao auditório. Pois a clareza é relativa: o
correto e bonito; mas será mesmo que essas coisas são diferen- que é claro para um público culto pode parecer obscuro para
tes? Para os antigos, parece que correção e beleza não eram quem é menos culto e infantil para especialistas. Ser claro é
separáveis. De qualquer modo, o fato é que a prosa oratória pôr-se ao alcance de seu auditório concreto. Agora, será pos-
deve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vul- sível falar de clareza em si? Em todo caso, pode-se falar da
gar. Para isso: escolher as palavras no vocabulário usual, evi- obscuridade em si: a do discurso que nenhum auditório pode
tando tanto arcaísmos quanto neologismos; utilizar metáforas e realmente penetrar, visto que seus termos e sua construção
outras figuras, desde que sejam claras, ao contrário das dos padecem de ambigüidade intrínseca. Certos oradores, em ma-
poetas; evitar qualquer frase métrica, como os versos dos poe- téria de política, diplomacia, publicidade, utilizam essas
tas, e qualquer frase arrítmica, para encontrar frases com ritmo ambigüidades para esquivar-se aos problemas mais embara-
flexível e sempre a serviço do sentido. çosos ou então para conjugar públicos diversos. Admitindo-
Portanto, a retórica criou uma estética da prosa, uma esté- se que a honestidade permite esse tipo de manobra, ainda cum-
tica puramente funcional, da qual tudo o que é inútil é excluí- pre que ela seja consciente, que a obscuridade seja decorrente
do, em que o mínimo efeito de estilo se justifica pela exigência de uma decisão, e não, como quase sempre acontece, da im-
de persuadir, em que qualquer artificio gratuito engendra pre- potência. Quanto ao resto, fiquemos com estas palavras de
ciosismo ou vulgaridade. Quintiliano:
O que conservar dessas considerações sobre o estilo? A
nosso ver, três pontos, que correspondem respectivamente aos A primeira qualidade da fala é a clareza, e quanto menos
três pólos do discurso: assunto, auditório e orador. talento se tem, maior é o esforço para guindar-se e inflar-se,
O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, é aquele que se adap- assim como os nanicos que se alevantam nas pontas dos pés.
ta ao assunto. Isso significa que ele será diferente conforme o (11,3,8)
assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo: o nobre
(grave), o simples (tenue) e o ameno (medium), que dá lugar à A terceira regra diz respeito ao próprio orador, que deve
anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que convém a mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, di-
seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na pero- nâmico, imprevisto, engraçado ou caloroso, numa palavra:
ração; o simples para informar e explicar (docere), sobretudo na vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de empréstimo a um
narração e na confirmação; o ameno para agradar (delectare),
pastor retórico do século XVIII, G. Campbell, que a expõe com
sobretudo no exórdio e na digressão. A primeira regra é, portan-
o termo vivacity. Para ser vivaz, é preciso observar regras de
to, o da conveniência (prepon, decorum)8.
:) estilo bem precisas. Primeiro, a escolha das palavras, sempre
que possível concretas: deve-se preferir "fonte" a "origem",
Estilo Objetivo Prova Momento do discurso "aqui jaz Alexandre" a "aqui jaz o corpo de Alexandre". De-
pois, o ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a
nobre = grave comover = movere patos Peroração (paixão), que constitui a força das máximas:
digressão
simples = tenue explicar = docere logos Narração, confirmação,
Todos querem viver muito, mas ninguém quer viver velho.
recapitalução
(Swift, citado, p. 337)
ameno = medium agradar = detectare etos Exórdio, digressão
64 INTRODUÇÃO A RETÓRICA O SISTEMA RETÓRICO 65
Em suma, não só se fazer entender, mas também fazer-se "sa- sivo transformá-la no traço distintivo da retórica. Dirão que o
borear" (relish, p. 237). latim de Cícero constitui um desvio em relação à língua latina?
Essas regras, porém, não passam de linhas gerais: evitar Na verdade, a retórica não se reduz a figuras, que só consti-
ser redundante, inutilmente abstrato, etc. O sabor do discurso tuem uma parte de uma parte de uma de suas partes.
não se ganha com regra alguma; quem o faz é o autor. Pois bem, cumpre definir as próprias figuras como des-
A vivacidade é capital para o etos, pois ela toma o discur- vios? À primeira vista, sim. A metáfora desvia-se do sentido
próprio, substituindo o significado por um outro que lhe é se-
so marcante, agradável, cativante; e, principalmente, confere-
melhante; assim também a ironia, que substitui o significado
lhe o indispensável cunho de autenticidade. O verdadeiro estilo
é o do discurso onde é possível encontrar o seu autor. por um que lhe é contrário:
tância capital. Certas regras antigas permanecem, como a im- o problema do escrito e do oral
postação da voz, o domínio da respiração, a variedade do tom e
da elocução, regras sem as quais o discurso não passa. O que apresenta outro problema: a relação entre o discur-
Outras regras dizem respeito à conveniência, aqui adapta- so escrito e o oral. Ao lermos os antigos retores temos a im-
ção do discurso ao canal. Nos anos 30, os oradores políticos pressão de que para eles o discurso é essencialmente escrito, e
forçavam a voz diante do microfone, embora este permitisse que o problema da ação é unicamente de "interpretá-lo", assim
justamente utilizar voz suave, calma e descontraída. Em todo como um pianista interpreta uma sonata, portanto de pronun-
caso, a dicção sempre faz parte da retórica. ciá-lo com clareza e vivacidade depois de o ter redigido e me-
morizado. É verdade que as peripécias do debate político e ju-
diciário obrigariam a improvisar (aliás, os discursos publicados
o problema da memória dos oradores antigos foram reescritos), mas pouco importa:
eles não parecem ter pensado num estilo específico do discurso
Pois bem, como eram proferidos os discursos: eram lidos, oral, talvez porque a língua falada estivesse longe demais da
proferidos a partir de notas, de improviso? Parece que, para os língua escrita.
antigos, começava-se aprendendo de cor. Donde a importância Para nós, o discurso oral deve ser bem mais lento que uma
da memória (mnemé), que para certos autores latinos constituía leitura, ou o auditório perderia o fio da meada. Deve ser redun-
a quinta parte da retórica: a arte de memorizar o discurso. dante, para suprir a memória. Finalmente, o mais importante, a
Para Cícero (Brutus, 140,215, 301), isso é uma aptidão língua não é exatamente a mesma: exige frases mais curtas,
natural, não uma técnica; portanto, não pode ser parte da retóri- expressões mais concretas e familiares, ou então o discurso
ca. Para Quintiliano, ao contrário, a memória não só é um dom parecerá artificial. Concretamente, fala-se evitando a forma sin-
como também uma técnica que se aprende (cf. XI, 2,passim); e tética do futuro, substituindo mesóclises e até ênclises por pró-
indica processos mnemotécnicos, como decompor o discurso clises, usando "pra" em vez de "para", dizendo "acho" em vez
em partes, que serão memorizadas uma após outra, associando de "acredito". Quintiliano, que pode ser muito "moderno", acon-
a cada uma um sinal mental para lembrar de proferi-la no mo- selha o orador a:
mento certo: uma âncora para o trecho sobre o navio, um dardo
para o trecho sobre o combate (29). Mas, além desses "truques", cuidar principalmente de fazer que sejam ouvidos como descon-
faz três observações essenciais. traídos desdobramentos muito cerrados, e a dar às vezes a im-
Primeiro, a memória depende antes de mais nada do esta- pressão de estar refletindo, hesitando, buscando aquilo que foi
levado bem pronto. (XI, 2, 47)
do fisico: para lembrar-se é preciso ter dormido bem, estar com
boa saúde, etc.
Depois, um discurso é fácil de memorizar por sua estrutu- Ninguém fala "como livro", mas como gente.
ra (ordo), ou seja, por sua coerência, pelo encadeamento lógico
de suas partes, pela eurritmia de suas Mostrar que a retórica é um sistema é mostrar que ela tem
Finalmente, é "dominando" o discurso que temos mais con- um sentioo ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a seqüência
dições de ajustar-nos às objeções e de improvisar. Portanto, deste livro sustenta a tese de que é possível utilizar a retórica
em vez de se opor à criatividade, a memória é fator essencial sem fazer referência a esse sistema, que na verdade constitui
para ela. uma das chaves da nossa cultura.
Capítulo IV
Do século I ao XX
Período latino
tralatio, epidíctico é demonstrativum. Tekhné rhetoriké será mente por Cícero como humanitas, nossa cultura geral. Só ela
chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar o debate
grega rhetor terá duas traduções: orator, que é o executante, o da causa à thésis, do caso particular à questão geral subjacente.
fazedor de discursos, e rhetor, que é o professor, geralmente Por exemplo, o advogado, ao pedir o castigo do réu, elevar-se-á,
grego. tomando considerações históricas em apoio, aos problemas da
Essa dualidade apresenta um problema de fundo, o do pa- defesa social, da exemplaridade do castigo, etc.
pel da técnica na eloqüência. Pois o retor ensina uma técnica,
com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verda-
deira eloqüência tem a ver com receitas? Não, responde Cícero; Retórica e moral
se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele
seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as
O mesmo se aplica a Quintiliano que, no apogeu do Impé-
áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas
rio, retoma de modo mais sistemático as idéias de Cícero. Ele
retóricas, os "truques" para se impor são ineficazes.
também considera a retórica como arte funcional, que exclui
O estilo também nada tem de artificial; longe de ser um
tudo o que seja inútil, arte que procede do mesmo espírito dos
ornamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do ftm-
aquedutos romanos e da disciplina legionária. O estilo deve seu
do. A escolha das palavras (electio), a composição das frases,
brilho à função, analogamente ao brilho das armas da legião
as figuras, o ritmo - principalmente o ritmo - são expressões
em ordem de batalha (cf. X, 1,29). A arte oratória, portanto,
naturais do que se tem para dizer, e tudo o que soa artificial deve
em vez de criar "desvio" permite atingir a expressão mais jus-
ser riscado:
ta, e nosso pretenso "grau zero" do discurso "normal" para
Se houver nobreza nas próprias coisas de que se fala, das Quintiliano não passaria de inaptidão, desjeito, incultura, "gar-
palavras brotará uma espécie de fulgor natural. (Do orador, rulice improvisada"2.
III, 125) Inversamente, retórica é sinônimo de cultura, e a Institu-
tio oratoria, "Formação do orador", apresenta-se como um
E o homem culto que tem algo para dizer não precisa dos cur- tratado completo de educação a partir da primeira infância,
sos de expressão dos retores. É por isso que Cícero chama as que possibilita classificar seu autor, sem muito anacronismo,
figuras de estilo de lumina, pois elas trazem a lume o que que- como pedagogo. Não entraremos no mérito de seus conselhos
remos dizer (cf. O orador, 85, 95, 134). O discurso para ele é notáveis, muitas vezes bem atuais, como o de sempre levar o
um organismo vivo cujas partes desempenham todas um papel; aluno a propor-se questões. Diga-se que ele abre o campo do
portanto, se forem aplicados ornamentos, eles não passarão de ensino retórico, por nele incluir a gramática, como explicação
"pintura", enquanto o que conta é o "colorido da pele", sinal de dos textos, e a dialética, como técnica de argumentação (cf. 11,
boa saúde l . 21, 12). Porém o mais importante, como educador, é que ele se
Então é melhor renunciar à retórica? Não, pois a ausência esforça por reconciliar a retórica e a ética, que Aristóteles ha-
de retórica, em vez de significar sinceridade, não passa de inap- via separado.
tidão, incapacidade para exprimir-se e convencer. Portanto, uma Quantio define a retórica como scientia bene dicendi, arte
retórica, e que seja ensinada. Mas trata-se de um ensino em pro- de bem falar (11, 15, 5; 16, 38), a palavra "bem" para ele tem
fundidade, que pega o homem desde a infância e forma-o na- sentido não só estético como também moral. A quantos censu-
quilo que os gregos chamam de Paideia, tra(fuzido magnifica- ram a retórica por persuadir tanto do pior quanto do melhor,
74 INTRODUÇÃO À RET6RICA DO SÉCULO I AO XX" 75
Quintiliano responde que não se pode atribuir "o nome de o Mas dá outra explicação, menos banal. A arte oratória ce-
mais belo dos oficios a quem aconselhe perversidades" (15, senvolvera-se na sociedade em que era indispensável, qual seja,
17), e chega a dizer: a democracia. Quando todas as decisões eram submetidas a de-
bates públicos, o futuro orador formava-se naturalmente no fó-
Onde houver causa injusta, não haverá retórica. (11, 17, 31) rum, ouvindo as discussões e depois tomando parte delas; des-
cobria assim as técnicas dos diversos oradores e, principalmen-
Em suma, ela não só é uma arte, mas uma virtude. E, à acusa- te, as reações do público. "Hoje" (na época dos imperadores),
ção de que um homem mau pode às vezes utilizar uma retórica quando esses debates não são mais correntes, os jovens apren-
excelente para chegar a seus fins, ele responde: dem eloqüência na escola, ou seja, de modo artificial, sem ou-
tro público senão camaradas tão pueris quanto eles, sem outros
Um bandido pode bater-se com valentia, e a coragem nem temas de debate senão assuntos irreais, absurdos.
por isso deixará de ser virtude. (11, 20, 10) Em suma, uma vez que a função cria o órgão, a eloqüência
desenvolveu-se na sociedade que precisava dela, a democracia,
Note-se que esses dois argumentos não combinam: de acordo e não sobreviveu a esta senão de maneira artificial. Mas não
com o primeiro, a retórica a serviço de uma causa imoral não é devemos enxergar em Tácito um velho democrata embrulhado
retórica; de acordo com o segundo, ela continua retórica e con- em virtuosa nostalgia. Ele lembra que aquela democracia sig-
tinua virtude! nificava menos liberdade e mais desordem e violência, e que a
Na realidade, o que reconcilia retórica e moral é a cultura, paz romana, concretizada pelos imperadores, vale mil vezes
para Quintiliano valor supremo. Concordando com Isócrates, mais que o regime de anarquia que a precedeu. Raciocinando
ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do por analogia, ele afirma que não se deve sentir saudade da de-
homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana sordem democrática só porque ela produziu grandes oradores,
por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente, assim como não se sente saudade da guerra só porque ela pro-
só o homem de bem, honesto e culto, fala bem. Pode-se dizer duz heróis (37, 7).
que a Institutio oratoria propõe os fundamentos da educação Fato é que esse trecho de Tácito foi transformado em ver-
humanista. dadeiro lugar-comum, afirmando-se que a grande retórica teria
morrido com a liberdade, dando lugar apenas à retórica artifi-
cial, ornamental e vazia. Será verdade?
Retórica e democracia Em certo sentido, a história da educação romana confirma
isso. Tudo ocorre como se os romanos tivessem ganho, com a
Na época imperial, um pouco depois de Quintiliano, um retórica, um instrumento que não lhes servia para grande coisa.
texto célebre de Tácito, Diálogo dos oradores, levanta proble- Nas aulas de retórica, usavam-se, como exercício, "declama-
ma bem diferente. No fim dessa conversa, os protagonistas se ções", discursos puramente fictícios. Eram de três tipos. Os
perguntam por que a eloqüência entrou em decadência depois elogios, discursos epidícticos, tratavam de personagens históri-
de Cícero. Para isso, o orador Messala dá uma primeira expli- cas ou lerttiárias e eram completadas por paralelos (por exem-
cação: esse declínio se deve "à preguiça dos jovens", tanto plo, entre Aquiles e Heitor). Os suasórios eram discursos polí-
quanto ao desleixo de sua educação; história tantas vezes repe- ticos, mas fora da situação vivida:
tida desde então... '/
76 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XY 77
Aníbal, no dia seguinte a Canas, está pensando se marchará Por que o declínio?
sobre Roma. (in Marrou, p. 415)
Na realidade, foi no século XIX que a retórica realmente
As controvérsias, enfim, eram discursos favoráveis ou contrá- declinou, a ponto de quase desaparecer. Seria interessante sa-
rios a alguma coisa. Os exemplos utilizados eram fictícios, às berporquê.
vezes inverossímeis, alegando-se que a dificuldade era forma-
dora por si mesma. Assim o caso do "duplo sedutor", que era
preciso defender e acusar: Retórica e cristianismo
A lei aqui será: a mulher seduzida escolherá entre a conde- Um grande problema que se apresenta no fim da Antigui-
nação à morte do sedutor ou o casamento com ele, sem dote. Na
dade é o da relação entre a retórica e a nova religião, o cristia-
mesma noite, um homem violenta duas mulheres. Uma pede sua
nismo. Este, de fato, situa-se em ruptura total com a cultura an-
morte, a outra escolhe casar-se com ele. (in Marrou, p. 415)
tiga, cujo "cerne" é constituído pela retórica: cultura pagã, idó-
latra e imoral, que só poderia afastar a redenção, "única coisa
Essas khreias lembram o exercício da conferência dos advoga-
necessária" .
dos estagiários: a lei pune o marido se ele comete adultério no
No entanto, como mostrou tão bem R.-I. Marrou, os cris-
domicílio conjugal. Ora, um marido é surpreendido em fla-
tãos logo aceitaram a escola romana e a cultura que ela veicula-
grante delito de adultério com a vizinha, no muro que divide as
va. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do
duas residências. Ele é passível das penas da lei?
Império desmoronaram, foi a Igreja que se tomou depositária
Em Vida cotidiana em Roma, Jerônimo Carcopino fustiga
desse cultura antiga, retórica inclusive. É verdade que grande
esse ensino retórico totalmente apartado da vida: "retórica
número de pais da Igreja rejeitam os autores pagãos, como inú-
irreal" "virtuosidades verbàis", "formalismo incurável"
teis e perigosos, mas admitem a língua e a retórica dos pagãos
(pp. 1:35 s.). R.-I. Marrou é mais matizado; mostra que essa
(cf. Marrou, 460 s.). Por quê? Por duas razões.
cultura formal a longo prazo produzia resultado positivo: for-
A primeira é que a Igreja, em seu papel missionário e em
mava advogados, administradores, embaixadores capazes de
suas polêmicas, não podia prescindir da retórica, muito menos
falar com eficácia nas situações mais inéditas. Afinal, também
da língua (grega ou latina). Não podia deixar esses meios de
seria possível falar de formalismo com referência a nossas dis-
persuasão e de comunicação em mãos de adversários. Santo
sertações e a nossos problemas de matemática.
Agostinho escreve assim, no fim do século IV:
Se o ensino da retórica perdurou durante o Império Roma-
no se sobreviveu em Bizâncio, tanto sob o islamismo quanto
Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira
na' Europa medieval, com métodos semelhantes, significa que com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se
não era tão inútil. É verdade que a retórica perdeu os grandes esforçam por persuadir do falso saberiam desde o exórdio tomar
debates políticos, que só recuperará nas democracias moder- o auditório dócil e benevolente, enquanto os defensores da ver-
nas, mas ganhou outros gêneros: a epístola, a descrição, o tes- dade seriam incapazes disso? (Doutrina cristã, IV, 2,3)
tamento, o discurso de embaixada, a consolação, o conselho ao '.,
príncipe, etc. O "fim da retórica" não passa de lugar-comum no A segunda razão é que a própria Bíblia é profundamente
mau sentido do termo, ou seja, não retórico. retórica. Não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de pala-
vras, antíteses, argumentações, tanto quanto nos textos gregos,
78 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XX 79
se não mais? São Paulo bem que afirma que não tem a sophia brios, mas continuam utilizando a hermenêutica dos quatro sen-
logou, "arte do discurso" (1 Cor I, 17), mas acrescenta a argu- tidos, que funciona como um lugar da retórica.
mentação de um rabino às antíteses de um orador grego.
Portanto, a Bíblia era um modelo, porém mais ainda: um
problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser com- Verdadeiras causas do declínio:
preendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos retórica, verdade e sinceridade
os recursos da retórica. A hermenêutica da Idade Média é toda
alegórica: propõe que todo texto bíblico tem outro sentido além Portanto, o cristianismo nada tem a ver com o declínio da
do literal. Outro, ou melhor, vários. Tomemos como exemplo a retórica. Esta, ao contrário, desenvolveu-se durante toda a Ida-
palavra Jerusalém (pois essa interpretação dizia respeito sobre- de Média, tanto na literatura profana quanto na pregação. A
tudo à palavra): 1) ela tem um sentido próprio ou histórico, de partir do Renascimento, voltou aos cânones antigos, e seu ensi-
cidade onde viveram David, Salomão, etc.; 2) tem também um no constitui o ciclo essencial de toda a escolaridade, tanto entre
sentido alegórico, que se refere ao Cristo, e Jerusalém signifi- os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuítas\ No
ca Igreja; 3) tem um sentido tropológico, ou seja, moral, e Je- entanto, é nesse período que começa o declínio da retórica. As
rusalém significa a alma do cristão, tentada, castigada, curada; novas idéias vão dar-lhe o golpe mortal, rompendo o elo entre
4) finalmente tem um sentido anagógico, relativo à ressurrei- o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor.
ção e ao reino de Deus, e Jerusalém significa a cidade de Deus, Foi dito que essa cisão ocorreu a partir do século XVI, com
depois do Juízo Final. o humanista Pedro Ramus (Pierre de la Ramée, 1515-1572).
Tomemos o texto seguinte, interessante por possibilitar Este de fato separa resolutamente a dialética, arte da argumen-
destacar os mecanismos da alegoria; é um breve comentário tação racional, da retórica, reduzida "ao estudo dos meios de
sobre Êxodo, XI, 12: expressão ornados e agradáveis" (TA, p. 669), em suma à elocu-
ção. Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido dura-
À meia-noite sairei pela terra do Egito. E todo primogênito doura; ao contrário, os retóricos que apareceram até o século
morrerá ... XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incluindo
tanto a invenção e a disposição quanto a elocução.
Como comentar esse versículo terrível? Apesar disso, no século XVII ocorre uma fratura também
grave com Descartes, que vai destruir um dos pilares da retóri-
Pode ser interpretado historicamente porque, como se lê, ca, a dialética, em outras palavras a própria possibilidade de
quando a Páscoa é celebrada, o anjo exterminador atravessa argumentação contraditória e probabilista. Em sua autobiogra-
(pertransit) o Egito. Alegoricamente, a Igreja passa (transit) da fia intelectual, que abre o Discours de la méthode, ele escreve:
descrença à fé pelo batismo. Tropologicamente, a alma deve
passar (transire) do vício à virtude pela conversão e pelo arre- Eu apreciava muito a eloqüência e era apaixonado por poe-
pendimento. Anagogicamente, o Cristo passou (transivit) da con- sia, mas achava que uma e outra eram dons do espírito, e não
dição mortal à imortalidade, para nos fazer passar (transire) da do estudo. Aqueles que têm raciocínio mais forte e que
miséria deste mundo à fé eterna3 • digen!m melhor seus pensamentos, para tomá-los claros e inteli-
gíveis, são os que sempre conseguem persuadir melhor daquilo
Como se vê, essa tripla alegoria é construída sobre o tema que propõem, ainda que só falassem baixo bretão e nunca tives-
da passagem. Hoje em dia, os pregadores são bem mais só- sem aprendido retórica.
80 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XY 81
Hoje: retóricas Os três parágrafos que seguem contêm exemplos desse es-
tilhaçamento.
Ou melhor: falsa saída de cena. Pois se a retórica perdeu o
nome nem por isso morreu. Não só sobrevive, como se viu, no
ensino literário, nos discursos jurídicos e políticos, como tam- Retórica da imagem
bém vai renovar-se com a comunicação de massa, própria do
século xx. Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na França "Vivemos no século da imagem", é o que se ouve com fre-
e na Europa uma nova retórica, que logo conhecerá imenso su- qüência. Clichê bem contestável, pois os outros séculos comu-
cesso. A palavra já não dá medo.
nicaram-se bem mais pela imagem que pelo texto escrito. Além
do mais, é raro que as nossas imagens possam prescindir do
texto escrito para serem legíveis.
Uma retórica estilhaçada
Assim, é perfeitamente possível fazer a interpretação retó-
Apesar de tudo, a retórica atual é bem diferente daquela rica de estátuas romanas, de ícones, de portais romanos, etc.,
que substitui. imagens que se vinculam ao gênero epidíctico, para glória de
Para começar, seu objetivo já não é produzir discursos, po- um soberano ou de Deus. Mas é normal que essa retórica se in-
rém interpretá-los, e assim se aproxima mais da gramática dos teresse mais pelas produções atuais, sobretudo pelas imagens
antigos. Pode-se dizer que já não se aprende a fazer discursos? publicitárias, persuasivas por essência.
Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a O pontapé inicial da retórica da imagem, na França, foi
formação literária e filosófica, já não é visto como retórica - dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communi-
ou não é ainda. cations no ano de 1964. Nele, Barthes analisa um cartaz feito
Em segundo lugar, o campo da moderna retórica alargou- para as massas Panzani, mostrando que além de sua denotação
se muito. Longe de limitar-se aos três gêneros oratórios dos - legumes frescos e pacotes de macarrão saindo de uma sacola
antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas mo- - o cartaz persuade pela conotação: as cores verde, branca e
dernas do discurso persuasivo, a começar pela publicidade, e vermelha sugerem italianidade; os legumes, frescor e natureza;
mesmo dos gêneros não persuasivos, como a poesia. Não con- a sacola, cozinha artesanal, etc. Ainda que as massas em ques-
tente com reivindicar todo o campo do discurso, vai bem além, tão sejam francesas e industrializadas! Mas Barthes faz mais
pois se apodera de todas as espécies de produções não verbais. semiótica que retórica.
Elabora-se assim uma retórica do cartaz, do cinema, da músi- O que se pode dizer é que, se é imprópria para produzir
ca, sem falar da retórica do inconsciente. argumentação, a imagem é porém notável para amplificar o
Finalmente, e mais importante, a retórica moderna é uma etos e o patos.
retórica estilhaçada, fragmentada em estudos distintos. Distin- Tomemos como exemplo o cartaz da oposição que inau-
tos não só pelo objeto, mas pela própria definição que dão à gurou a campanha eleitoral para as eleições legislativas de
palavra "retórica", de tal modo que cabe perguntar se esse ter- 1986. Como texto, o cartaz contém o slogan: Vivement demain!,
mo ainda tem algum sentido preciso. Esse estilhaçamento, que e em menores: Avec le RPR!*. O slogan expressa a ex-
afeta, aliás, a arte e a filosofia, é um dos grandes sinais da nos- de toda oposição: chegar ao governo. A seqüência
sa cultura, índice de que ela está bem viva, pois é a vida que es-
tilhaça as formas rígidas. Mas também de que, como acontece
com tudo o que é vivo, há o risco de morrer. * Literalmente, "Vivamente amanhã" e "Com o RPR". (N. do T.)
84 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XX 85
sugere que o beneficiário dessa expectativa é o RPR, e não dos caso das massas Panzani ... Mas de uma sugestão, que por certo
outros partidos de oposição. se encontraria em qualquer imagem publicitária. Em todo caso,
A imagem: Jacques Chirac, o líder, no centro de uma linha esses dois cartazes, aliás belíssimos (beleza funcional), mos-
de doze pessoas, das quais duas mulheres jovens, em posições tram bem duas coisas:
simétricas, que avançam por um prado, debaixo de um céu 1) A retórica da imagem desenvolve o oratório em detri-
imenso, onde está escrito o slogan. mento do argumentativo.
O etos é sugerido pelas conotações da imagem: 2) A imagem não é eficaz, nem mesmo legível, sem um
mínimo de texto.
"Equipe": as pessoas estão com os braços nos ombros das outras A imagem é retórica a serviço do discurso, não em seu lugar.
ou estão de braços;
"respeitável": usam traje social, com gravata;
"trabalho": tiraram os paletós; o vento levanta as gravatas; Retórica da propaganda e da publicidade
"juventude" : quase todos têm menos de quarenta anos; os mais
idosos estão no meio; sinédoque: alguns jovens para marcar Pode-se considerar a propaganda (política, militar, etc.) e
juventude. a publicidade como invenções do século XX. Ainda que nossos
ancestrais não nos tenham esperado para defender seus parti-
O patos também nasce das conotações: dos e criar suas mercadorias, o que eles faziam era coisa bem
diferente, por uma boa razão.
"ímpeto irresistível": a linha ondulante sugere uma vaga que nos A propaganda e a publicidade pertencem à comunicação
envolve; metáfora; de massa. O que é massa? Um número indefinido, geralmente
"saúde": todos estão incrivelmente bronzeados;
imenso, de indivíduos cujo único elo é receber a mesma men-
"dinamismo": a equipe avança; numa primeira versão, estava
sagem. Um camelô que vende um tira-manchas na feira dirige-
imóvel, o que era bem menos convincente;
"patriotismo": o céu é azul, as camisas são brancas, os vestidos se a algumas pessoas e adapta-se às reações delas. O anuncian-
das duas mulheres são vermelhos; te de um tira-manchas na televisão dirige-se a milhões de des-
"otimismo": as doze pessoas (bom número, o dos apóstolos), os- conhecidos cujo único elo é a mensagem a que estão submeti-
tentam um sorriso comercial, o que valeu ao cartaz o nome dos. A massa, em si, é passiva e atomizada.
de "ouistiti-sexe"*. Na verdade é a comunicação de massas que cria a massa.
Para que ela exista, são necessários meios de comunicação mo-
Esse cartaz é obra de profissionais da publicidade, como dernos, de grande difusão, como o cartaz ou o anúncio de tele-
aliás todos os dos outros partidos nessa campanha5 • Note-se visão. Nisso, a massa se distingue da multidão, conjunto de pes-
que a conotação enriquece a denotação, e que em certo sentido soas reunidas para alguma coisa, que pode reagir imediatamen-
a contradiz. Pois a imagem dá a entender que todos os figuran- te à mensagem que recebem. A multidão aplaude ou infama; a
tes da equipe irão tornar-se ministros de Chirac, ao passo que massa não tem voz nem rosto. E a comunicação de massa é
alguns não se tornaram; o mais importante é que ele não mos- sempre indireta. Utiliza algum canal, do cartaz ao filme, com-
tra os principais colaboradores de Chirac, que não eram nem plexo o que implica conseqüências para o próprio con-
um pouco jovens. Não se trata de uma mentira, tanto quanto no teúdo do discurso.
Em primeiro lugar, geralmente é breve, pois limitada no
* Ouistiti é sagüi, mico. (N. do T.) tempo ou no espaço, o que quase não lhe possibilita argumen-
86 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XX 87
tações sutis, mas autoriza, em compensação, a jogar com ambi- Poder-se-ia retorquir a Flader que sua explicação é parcial,
güidades. Sua satisfação ou o dinheiro de volta: ótimo, mas em pois há outras motivações além do retorno à infância; a liber-
que condições? X lava mais branco: mas o quê e como? Em se- dade de Lee talvez seja também a comodidade do corpo, a libe-
gundo lugar, embora menos claro e menos preciso, o discurso é ração sexual, a saída da infância (e não a volta a ela!). Mas, no
completado pelo conteúdo não lingüístico da mensagem, pela conjunto, ele tem razão; o patos ganha do logos, e esse patos
música, pela imagem, que no fundo desempenham o papel da inova em relação à tradição retórica.
ação, parte não verbal da antiga retórica. Mas a publicidade vai Mas, se mudar seu conteúdo, a publicidade se inserirá no
renovar a invenção também. sistema retórico; comporta invenção, disposição - plano da men-
Primeiro ela cria seus próprios lugares, no sentido de ar- sagem, estrutura do cartaz -, elocução e principalmente ação.
gumentos-tipo ("somos jovens") ou de perguntas para chegar a Numa propaganda eleitoral, por exemplo, não só a voz é essen-
eles ("Como parecer jovem?"). Lembremos os lugares mais cial como também todo o comportamento, a aparência do can-
conhecidos: juventude, sedução, saúde, prazer, status, diferen- didato, que é a forma moderna do etos.
ça, natureza, autenticidade, relação qualidade/preço. Caberia mostrar aqui o que distingue a propaganda da pu-
Depois, a publicidade privilegia o etos e, principalmente, blicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confun-
o patos, em relação ao logos. Em outras palavras, a mensagem
dir-se, pois os partidos políticos confiam suas campanhas cada
é bem mais oratória que argumentativa. O próprio patos - psi-
vez mais a publicitários. Donde a pergunta: a publicidade é real-
cologia utilizada pelos meios de comunicação de massa - é di-
mente compatível com a democracia?
ferente do da retórica antiga. Inspira-se, pelo menos atualmen-
Pode-se responder: sim, porquanto é retórica, e a base da
te, na psicanálise. Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a
estratégia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa retórica é a argumentação contraditória. Toda publicidade é con-
retórica, voltada para a necessidade que há nos consumidores traditada por outras, e quem não achar que X lava mais branco
de se sentirem seguros e amados. Es lohnt sich bestimmt ("Sim, sempre pode comprar Y; assim também, quem não gosta do
vale a pena!"), proclama o slogan, incitando a deixar de lado a sorriso comercial deste candidato tem a liberdade de votar em
angústia da dúvida, a entregar-se à voz paterna onisciente e outro. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha
onipotente. Lee match frei ("Lee é liberdade"); Lee já não é um por situar o debate em tal nível que na verdade não há debate,
objeto, calças banais, porém um ser personalizado que cuida de conservando da argumentação apenas o que ela tem de mais
nós, e a liberdade que nos proporciona encontra verdadeiro sumário e oferecendo como termos de escolha apenas objetos
sentido no inconsciente: livra-nos da angústia de sermos adul- - brancura, sorriso - que não têm grande relação com proble-
tos. Significa que todas essas mensagens, ao eliminarem o mas reais. A democracia precisa de um povo adulto, e a retóri-
tempo e as relações causais, ao criarem uma fusão narcísica en- ca publicitária devolve as massas à infância.
tre o objeto e o ego, jogam com a necessidade de regressão afe-
tiva. Vê-se o mesmo fenômeno nos "revolucionários" de 1968;
seus slogans mais fortes: Nova retórica contra nova retórica
Sob a calçada, a praia.
NOS'MloS 60, assiste-se ao nascimento de uma "nova retó-
É proibido proibir.
rica". Mas que retórica? Houve várias, e a que estava mais na
Seja realista, peça o impossível.
moda naquela época afirmava-se puramente literária, sem rela-
faziam parte da recusa global de ser adultos. ção alguma com a persuasão. Tinha-se então esquecido tão bem
88 INTRODUÇÃO A RETÓRICA DO SÉCULO I AO XX" 89
o que significava a palavra "retórica" que ela virou rótulo de de valor? O que nos permite afirmar que isto é justo ou que
coisa completamente diferente. aquilo não é belo? Buscaram, pois, a lógica do valor, paralela à
Esse movimento, que incluiu Jean Cohen, o grupo MU, da ciência, e acabaram por encontrá-la na antiga retórica, com-
Gérard Genette, Roland Barthes, transforma a retórica em "co- pletada, como convém, pela dialética. A grande descoberta desse
nhecimento dos procedimentos da linguagem característicos tratado - a palavra "descoberta" comporta um pressuposto, mas
da literatura" (Rhétorique générale, p. 25). E esses procedi- nós o assumimos - é que, entre a demonstração científica e a
mentos são reduzidos às figuras de estilo, definidas como des- arbitrária das crenças, há uma lógica do verossímil, a que dão o
vios do "grau zero", que seria a prosa não literária. Renri Mo- nome de argumentação, vinculando-a à antiga retórica.
rier chegou a fazer um Dicionário de retórica e poética sem No essencial, esse livro é um estudo dos diversos tipos de
falar de argumentos, lugares, disposições. Essa "nova retórica" argumentos, a que voltaremos no capítulo VIII; é certo que
limita-se, pois, à elocução, e desta só fica com as figuras. Em abre espaço para as figuras, porém um espaço menor, reduzin-
suma, uma retórica sem finalidade alguma. do-as a condensados de argumentos; por exemplo, a metáfora
Não nos cabe desprezar essas obras, tão ricas e muitas ve- condensa uma analogia. Em suma, uma retórica centrada na in-
zes apaixonantes. Mas trata-se de retórica? Um representante venção, e não na elocução.
do grupo MU responde rejeitando qualquer argumento de au- Portanto, também incompleta. De fato, se o tratado des-
creve maravilhosamente as estratégias da argumentação, deixa
toridade:
de reconhecer os aspectos afetivos da Retórica, o delectare e o
Nem a Bíblia, nem o Código Civil, nem poder algum pode movere, o encanto e a emoção, essenciais contudo à persuasão.
nos obrigar a partir do domínio da antiga retórica. ("Rhétorique Na França, o Traité de 1'argumentation foi ignorado pelos
de I' argumentation et des figures", in Figures et conflits rhétori- meios literários, fechados para tudo o que não fosse estilística,
ques, p. 126) e até pelos meios filosóficos, de tal modo a idéia de um tercei-
ro caminho, entre a lógica formal e a ausência de lógica, era es-
Por certo, mas há outro poder, o do dicionário. E nosso tranha à cultura da época. Pelo menos na França, pois conti-
temor é de que, à força de infringi-lo, cheguemos à Torre de nuava familiar aos anglo-saxões, que, aliás, nunca tinham es-
Babel... quecido de todo a retórica.
Em todo caso, à retórica literária opõe-se outra corrente, O pensamento de Perelman só teve penetração realmente no
de Chai'm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, cujo livro mais fim dos anos 70. E mesmo então seus esquemas argumentativos
importante, Traité de l'argumentation, la nouvelle rhétorique, foram utilizados bem menos para interpretar os autores que para
foi publicado por Presses Universitaires de France em 1958 e "desmistificá-los". Pois na época o lado retórico dos discursos
quase não teve sucesso na época *. era considerado indício de manipulação ideológica:
Essa obra, que se insere na grande tradição retórica de Aris-
A retórica aparece, assim, como a face significante da ideo-
tóteles, Isócrates e Quintiliano, é realmente a teoria do discurso
logia. (R. Barthes, "La rhétorique de l'image", p. 49)
persuasivo. Seus autores partiram de um problema, não lingüís-
tico nem literário, mas filosófico: como fundamentar os juízos Essal'etórica da desconfiança, preconizada por Barthes e
por tantos outros, parece-nos singularmente redutora, tanto dos
* Tratado de argumentação, São Paulo, Martins Fontes, 1996. (N. textos que interpreta quanto da própria idéia de retórica. A
do E.) nosso ver, a teoria de Perelman-Tyteca permite uma leitura re-
L/
90 INTRODUÇÃO A RETÓRICA Capítulo V
auditório. Um advogado será bem mais orador se o tribunal se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório
comportar um júri; um político será bem mais orador diante é, por definição particular, diferente de outros auditórios. Pri-
das massas que diante do Parlamento, e mais ainda quanto me- meiro pela competência, depois pelas crenças e finalmente
nor for o tempo que tiver para tomar a palavra. É então que o pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de
etos e o patos tendem a suplantar o logos, e é aí também que sur- vista, com tudo o que esse termo comporta de relativo, limita-
gem as figuras. do, parcial. Ora, como a argumentação pode modificar esse
Essas são as duas teses que tentaremos defender com ar- ponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos?
gumentos. Responderão que os próprios Perelman-Tyteca introdu-
zem a noção de auditório universal, que está acima de qualquer
ponto de vista, portanto talvez de qualquer retórica. Mas onde
As cinco características da argumentação está esse auditório e qual seria a sua utilidade para o argumen-
tador?
Como definir a argumentação? Certamente não como um Será um auditório não especializado? É o que se pensava
conjunto ou uma seqüência de argumentos! Pode-se definir o às vezes no século XVII, com o testemunho de MoW:re e Pas-
argumento como uma proposição destinada a levar à admissão cal. Admitindo-se isso, a relação entre o orador e o auditório
de outra. Um indício serve de argumento a um policial ou a um nem por isso deixará de ser retórica; por certo muito mais, pois
advogado, etc.: "pois", "de fato", "porquanto" ... e também a a vulgarização é bem mais retórica que a ciência. E se o próprio
expressão: "Considerando os fatos como são ..." orador finge não ser especialista, como Pascal em Provincia-
Como se vê, certos argumentos são demonstrativos, ou- les, e estar interrogando ingenuamente especialistas, na verda-
tros argumentativos, não se podendo definir a argumentação de está utilizando uma figura completamente oratória, o cleuas-
senão a partir do argumento. Argumentação é uma totalidade mo (ou autodepreciação).
que só pode ser entendida em oposição a outra totalidade: a de- Será um auditório não particular, sem paixões, sem pre-
monstração. conceitos, a humanidade racional, em suma? Mas invocar esse
Inspirando-nos livremente em Perelman-Tyteca, diremos auditório, fingindo que ele existe, poderia não passar de artifi-
que a argumentação distingue-se da demonstração por cinco cio. Em política, faz-se apelo ao homem acima dos partidos, ao
características essenciais: 1) dirige-se a um auditório; 2) ex- homem comum, ao homem de bom senso, ao uomo qualun-
pressa-se em língua natural; 3) suas premissas são verossímeis; que... Nada de mais ideológico. Agora, será que o próprio filó-
4) sua progressão depende do orador; 5) suas conclusões são sofo não está sendo ideólogo quando afirma dirigir-se ao ho-
sempre contestáveis. Veremos que todas essas características mem racional que está acima de seu auditório real (os leito-
incluem o componente oratória da retórica e justificam nossa res)? "Homens, sede humanos!", exclama Rousseau. Será que
segunda tese. na verdade não estava interpelando os intelectuais parisienses
de seu tempo? Dirigir-se ao "homem" por cima do ombro de
seu auditório real é utilizar uma figura completamente orató-
o auditório pode ser "universal"? ria, a apóstrofe.
Em suma, o auditório universal poderia ser apenas uma
Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele
pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama- pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador
94 INTRODUÇÃO A RET6RICA ARGUMENTAÇÃO 95
sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas mam isso; é certo que argumentam e ensinam, mas por repeti-
faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditó- ções, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias, enigmas, que de-
rios possíveis que estão além dele, considerando implicitamen- senvolvem a função poética em detrimento da função crítica,
te todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o como se observa ainda em nossos provérbios.
auditório universal não é um engodo, mas um princípio de su- Em suma, a argumentação oral em geral é menos lógica e
peração, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumen- mais oratória que a escrita. No entanto, cabe ressaltar uma ex-
tação l • pressão, que se ouve nos debates mais técnicos, e não só nas
brigas de família: "Se pelo menos pudéssemos explicar pes-
soalmente!" Ela comprova que falta alguma coisa à argumenta-
Língua natural e suas ambigüidades ção escrita, que a oral tem um valor insubstituível, que a orató-
ria pode ser, de certa forma, heurística.
Na demonstração é grande o interesse de se utilizar uma
língua artificial, por exemplo a da álgebra ou da química. A ar-
gumentação desenrola-se sempre em língua natural (exemplo, Premissas verossímeis: o que é verossímil?
francês), o que significa utilizar com grande freqüência termos
polissêmicos e com fortes conotações, como "democracia", Do fato de o auditório ser sempre particular, parece decor-
que está longe de ter o mesmo sentido e o mesmo valor para rer a terceira característica, o caráter simplesmente vero-símil
todos os oradores. Além disso, a própria sintaxe pode ser fonte das premissas, que não são evidentes em si, mas que "parecem
de ambigüidade. Tomemos como exemplo o adágio: O homem verdadeiras" a esse auditório. Essa constatação parece fadar-
é o lobo do homem, que não é apenas um provérbio popular, nos ao relativismo: "A cada um sua verdade."
mas foi lugar da filosofia do século XVII. O que quer dizer? A Mas essa "constatação" é errônea, pois repousa num jogo
que corresponde a metáfora do lobo: ser cruel, é verdade, po- etimológico de palavras. De fato, a verossimilhança não está
rém solitário ou em matilha? Neste último caso, os lobos, ligada ao auditório, e nossa terceira característica é logicamen-
mesmo humanos, não se comem uns aos outros, e é possível te independente da primeira. O verossímil não decorre de igno-
continuar sendo lobos mesmo sendo irmãos! É significa "sem- rância, incompetência ou preconceitos do auditório, mas do
pre" ou "na maioria das vezes"? E o artigo o refere-se ao ho- próprio objeto. Quando se trata de questões jurídicas, econô-
mem em sua essência, ao homem natural anterior à cultura ou micas, políticas, pedagógicas, talvez também éticas e filosófi-
ao homem de hoje? Em suma, o adágio tem tantas armadilhas cas, não se lida com o verdadeiro ou o falso, mas com o mais
quanto um slogan publicitário. O mais notável, porém, é que ou o menos verossímil. Inversamente, num mundo onde tudo
não sentimos sua ambigüidade; basta ouvi-lo para que nos pa- fosse cientificamente certo, já não seria possível argumentar,
reça claríssimo. É que em língua natural consideramos claro nem ... agir. Em suma, a argumentação não deve resignar-se ao
aquilo que é apenas familiar. verossímil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve res-
Outra observação: quando se fala de argumentação, é pre- peitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um
ciso perguntar se ela é escrita ou oral, pois isso muda tudo. que não passaria de engodo, que na verdade seria
Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais: anti científico.
desatenção e esquecimento; e só pode fazer isso por meio de O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em
procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confir- que a confiança é presumida. Por exemplo, os juízes nem sem-
96 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO 97
pre são independentes, os médicos nem sempre capazes, os mesma conclusão; a palavra "aliás", desconhecida na demons-
oradores nem sempre sinceros. Mas presume-se que o sejam; e, tração, é freqüente na argumentação:
se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem
esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida Demonstração: A - B - C - D .. · z
que rejeita o ceticismo.
Cumpre deixar claro que a argumentação, mesmo se apoian-
do no verossímil, pode comportar elementos demonstrativos,
no sentido de necessários e, portanto, indubitáveis. De modo
geral, aliás, esses elementos são negativos; pode-se demonstrar
que um projeto de lei não é incompatível com a constituição, A ordem dos argumentos é, pois, relativamente livre, e de-
mas não que será benéfico com certeza. E, se há uma ética na pende do orador; vimos, de fato, que a disposição dos antigos
argumentação, é de respeitar esses elementos demonstrativos compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessário, e
sempre que eles existirem. podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditório,
Suponhamos, por exemplo, um debate histórico sobre o caso no sentido de que o orador dispõe seus argumentos segundo as
Dreyfus: é certo que ele sempre comporta aspectos controver- reações, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em suma,
sos, mas pode-se e deve-se considerar como "demonstrado" que a ordem não é lógica, é psicológica.
o capitão Dreyfus não era culpado, que não foi ele o autor da Assim, ainda que o exórdio seja muito útil, pode-se às ve-
documentação criminosa. Duvidar disso seria demonstrar par- zes começar ex abrupto, como Cícero: "Até quando, Catilina,
cialidade racista, e não prudência e objetividade. abusarás da nossa paciência?" Ou ainda como de Gaulle, no
Premissas verossímeis: o simples fato de invocá-las equi- discurso feito em Argel em 4 de junho de 1958: "Eu entendi."
vale, pois, a apelar para a confiança do auditório, para a sua Se essas frases tivessem sido postas no interior do discur-
"presunção", e comporta um aspecto oratório. so, teriam perdido grande parte de sua eficácia.
quem a recusa. Um bom exemplo, que l-B. Grize retirou de Quanto a esta, alguns acham que poderia ser formalizada,
uma obra pedagógica, ilustra essas três características: ou seja, expressa em língua artificial. Mas o verdadeiro proble-
ma é outro. Uma formalização só tem vantagem se for fecunda,
É com referência à atividade da fala que o filhote de ho- se permitir descobrir pelo cálculo outros dados além daqueles
mem se situa; a palavra "infantil" é fonnada por duas unidades, que ela transcreve.
in e Jari, que significam: "não falar". Portanto, é a partir de uma Não nos parece que tal cálculo seja possível com a argu-
carência, de uma ausência, que a criança é percebidaJ • mentação; suas estruturas podem ser descritas, mas não dedu-
zidas. Por quê? Porque a argumentação é dirigida ao homem
A conclusão que se segue ao portanto é bem mais rica que total, ao ser que pensa, mas que também age e sente.
as premissas, pois o autor passa da opinião dos romanos - opi-
nião que ele infere, e de maneira bem contestável, a partir da
etimologia - a uma verdade universal: a criança é percebida, o que é uma "boa" argumentação?
que o autor coloca como necessária. Mas o auditório pode não
aceitá-la, pois talvez não atribua mais valor à etimologia do Ora, dizer que qualquer argumentação é retórica, ou, em
que atribuiria a um trocadilho. Seja como for, uma conclusão outros termos, que comporta uma parte de oratória, não será
não é obrigatória: é sempre contestável; mas o é em maior ou torná-la suspeita? Não será ela ipso facto manipuladora, seja
menor grau. Também aqui é preciso renunciar ao tudo ou nada por confusão, seja por omissão, seja por sedução? Em suma,
em favor do mais ou menos verossímil. uma argumentação pode ser boa? Como?
Concluiremos que a argumentação rejeita a alternativa "ra- Note-se que, aplicado à argumentação, o termo "boa" re-
cional ou emotivo". Pois as premissas são crenças, e as crenças fere-se a dois valores diferentes, ou mesmo opostos. Uma "boa"
sempre têm um conteúdo afetivo, e só pode ocorrer o mesmo argumentação é a mais eficaz ou a mais honesta? E as
com a conclusão, mesmo que em caminho o discurso consiga nem sempre estão juntas! Aqui nos ateremos ao problema da
modificar a afetividade; se o orador transformar medo em con- honestidade.
fiança, tristeza em alegria, terá libertado o auditório de senti- Ora, se uma argumentação é mais ou menos desonesta,
mentos negativos, mas não de sentimentos.
não é porque seja mais ou menos retórica. Caso contrário Pla-
tão, cujos textos são infinitamente mais retóricos, pelo conteú-
Antes de prosseguir, convém perguntar se opor assim ar-
do oratório, que os de Aristóteles, seria menos honesto que es-
gumentação e demonstração não tem algo de forçado.
te! Então, segundo quais critérios avaliar a honestidade duma
Pierre Oléron afirma assim que a própria demonstração
argumentação?
científica não é tão pura e rigorosa quanto diz Perelman. No
O primeiro que vem à mente é o da causa. Uma argumen-
próprio cerne das ciências exatas encontram-se controvérsias
tação valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que
em que ambas as partes têm o desejo de convencer, "de exercer
uma causa excelente seja às vezes defendida por má argumen-
intluência"4. Convém principalmente - cremos nós - distinguir
tação? E, principalmente, como sabemos que uma causa é boa?
entre demonstração lógico-matemática, puramente formal, e
O critério.supõe que o valor da causa seja conhecido antes da
demonstração experimental, na qual intervêm também outros
critérios além da validade lógica, como por exemplo a falsifi- argumentação encarregada de estabelecê-lo: o que equivale a
cação de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar à ar- julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral,
gumentaçã05• a saber antes de aprender. Não existe dogmatismo pior.
100 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO
Outro critério, este interno, consiste em respeitar os ele- mas, ainda que tenha muitas outras coisas censuráveis. Pode-se
mentos demonstrativos, ou seja, lógicos, que a argumentação responder, porém, que a argumentação, pelo fato de comportar
comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela não elementos demonstrativos, pode abusar deles, sendo pois sofis-
seja sofistica. tica no sentido estrito. Vejamos os dois tipos de argumentação
descritos por Aristóteles.
O exemplo torna-se sofistico quando dele se extrai uma
Os sofistas e a argumentação conclusão que ultrapassa o que ele mostra, quando se "extrapo-
la" do particular ao universal: tal e tal políticos de esquerda
Inspirando-nos em Lalande 6, digamos que o sofisma é um aprovam essa medida; logo, a esquerda aprova essa medida.
raciocínio cuja validade é apenas aparente e que ganha adesão O entimema torna-se sofistico quando infringe as regras
por fazer crer em sua lógica. Pode servir assim para legitimar do silogismo, quando conclui além daquilo que a lógica lhe
interesses, amor-próprio e paixões. permite. Vejamos a seguinte proposição:
Portanto, é pela forma que um raciocínio é sofistico, e não
Dupont, por ser deputado de direita, precisou votar essa lei.
por seu conteúdo. Vejamos dois exemplos de silogismo.
O primeiro "demonstra" que o sal mata a sede: O entimema é válido se for admitida sua principal implícita:
- Beber água mata a sede; Todos os deputados de direita votaram essa lei.
- ora, o sal obriga a beber água;
-logo, o sal mata a sede. Agora, um segundo exemplo:
O segundo "demonstra" que o barato é caro: - Todos os deputados de direita votaram essa lei;
- ora, Durand votou essa lei;
- Tudo o que é raro é caro; -logo ...
- ora, um bom cavalo barato é raro;
-logo, um bom cavalo barato é caro. Logo, nada! Não se tem o direito de concluir. Durand po-
de ter votado a lei sem ser deputado de direita.
O primeiro é um sofisma grosseiro, que reside no equívo- Vejamos um terceiro entimema:
co do termo médio: beber = obrigar a beber, significando o
segundo na realidade o contrário do primeiro. Essa medida é de esquerda porque foi tomada por um go-
O segundo é um verdadeiro silogismo, perfeitamente váli- verno de esquerda.
do. Donde vem então o absurdo de sua conclusão? Do fato de
Basta enunciar a principal implícita:
que as premissas são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo
absurdo. Prova que o que é raro nem sempre é caro; ou ainda que Qualquer medida tomada por um governo de esquerda é de
um bom cavalo barato nem sempre é raro (em caso de má venda, esquerda,
por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido estrito, mas •
um erro que consiste em transformar o provável em certo. para perceber que é falso, pois acontece de um governo de di-
Alguns autores argúem a oposição entre demonstração e reita tomar medidas de esquerda e vice-versa. O entimema é
argumentação, afirmando que esta não pode comportar sofis- válido, mas sua premissa é falsa.
102 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO 103
Em suma, um entimema é sofistico quando conclui mais De olhos fechados compro tudo na primavera.
do que deve. É falso quando toma por verdadeira uma premis-
sa, geralmente implícita, que é desmentida pelos fatos. Até o dia em que um outro respondeu:
Podemos ir mais longe: uma argumentação é sofistica, ou
pelo menos errônea, quando sua conclusão vai além dos argu- Quando abro os olhos, eu vou ao Louvre*.
mentos que supostamente a estabelecem. Mas, dirão alguns, isso
não acontece sempre? Nós mesmos afirmamos que uma conclu- o que ilustra um princípio fundamental: só se pode refutar uma
são argumentativa é mais rica que suas premissas. E então? retórica em seu próprio plano, por meio de outra retórica.
Não-paráfrase e fechamento: demos numerosos exemplos
disso em outros textos 7 • Aqui ficaremos satisfeitos com um só,
Não-paráfrase e fechamento
o já mencionado início da primeira Catilinária de Cícero:
Sofisma da argumentação seria, portanto, ela dizer mais do
Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?
que sabe. Pois bem, existe a maneira de "dizer". Pode-se afir-
mar excluindo qualquer objeção - para começar em si mesma-,
mas também se pode propor sem impor, favorecer ao máximo a Ele mostra perfeitamente o efeito persuasivo decorrente da
própria afirmação, deixando-a aberta às criticas alheias. Essa aliança da forma com o fundo. Lembremos que essa pergunta
abertura constitui a honestidade da argumentação. oratória substitui o exórdio, e que, se aparecesse mais tarde no
Mas não estará esta comprometida pela retórica? Aqui discurso, produziria menos efeitos. Constitui uma apóstrofe,
cabe interrogar sobre o "dizer" próprio da retórica. Pelo que que, aliás, vai durar quase até o fim da arenga; ora, se formos
dissemos acima, um discurso é retórico quando, para persuadir, parafrasear a apóstrofe: "até quando Catilina abusará ..." em vez
alia seu componente argumentativo a seu componente oratório, de "até quando, Catilina, abusarás...", perderemos muito. Por
a forma ao conteúdo. Isso acarreta duas conseqüências. ser não-parafraseável, a pergunta também é fechada, pois é sem
A primeira é que o discurso retórico nunca é completa- réplica. De fato ela contém três pressupostos. Admitamos que
mente parafraseável; em outras palavras, não pode ser traduzi- Catilina tenha respondido: "Vou parar já"; sua resposta teria
do, nem mesmo em sua própria língua, por um discurso que deixado intactas três afirmações: 1) houve paciência; 2) ele
tenha absolutamente o mesmo sentido. Vejamos o argumento abusou dela; 3) essa paciência era "nossa". Note-se, enfim, que
quase lógico mencionado no TA: Cícero conseguiu fundir numa mesma frase duas figuras opos-
tas: a apóstrofe e a prosopopéia: finge dirigir-se a outro (Cati-
Os amigos de meus amigos são meus amigos. lina), e não a seu auditório, mas faz o seu auditório (o Senado)
,falar por sua voz: patientia nostra.
É simples perceber que, se substituirmos amigos por alia- Mas quem não percebe que, sem essa retórica, sem esse
dos ou por quem me ama ... o argumento desaparece integral-
elemento oratório, Cícero arriscava-se a fracassar? Sua argu-
mente.
mentaçã%i eficaz: seria por isso desonesta?
A segunda é que um discurso retórico é sempre mais ou
menos fechado, sem réplica. Um bom slogan é aquele que ex-
clui qualquer resposta; é mau (ineficaz) em caso contrário. Nos * Note-se que em francês há rima: Quand je les ouvre, je vais au Lou-
anos 30, uma grande loja anunciava: vre. (N. do T.)
104 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO 105
A nosso ver, a característica da boa argumentação não é outros, deve atrair e prender a atenção, ilustrar os conceitos,
suprimir o aspecto retórico - uma argumentação inexpressiva facilitar a lembrança, motivar ao esforço. Iremos mais longe:
não é obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibrá-lo, se- aquilo que hoje chamamos de "transposição didática" faz parte
gundo dois critérios. da retórica; ensinar uma matéria é conferir-lhe uma clareza,
À não-paráfrase pode-se opor o critério da transparência: uma coerência que ela não tem necessariamente como ciência,
que o ouvinte fique consciente ao máximo dos meios pelos é passar da invenção à elocução e à ação, porém muitas vezes
quais sua crença está sendo modificada; o encanto e a poesia do em detrimento do conteúdo propriamente científico. As peda-
discurso não serão destruídos por isso, mas serão dominados. gogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, não
Ao fechamento, pode-se opor o critério da reciprocidade: escapam a essa regra: o que há de mais retórico do que conhe-
que a relação entre o orador e o auditório não seja assimétrica, cer antes aqueles que vão ser instruídos e obter sua adesão?
que o auditório tenha direito de resposta. Esses dois critérios Note-se enfim que, mesmo quando se trata de ensinar a de-
não tornam a argumentação menos retórica, porém mais ho- monstrar, só se obtêm resultados através da argumentação retó-
nesta. rica. E aqui tomamos a liberdade de transcrever uma experiên-
Naturalmente, esse mais é relativo. Uma mensagem publi- cia pessoal do tempo do liceu:
citária é bem menos transparente e recíproca que uma argu-
- A professora: Durand, mostre que essas duas retas são
mentação acadêmica. No limite inferior, encontramos esse fe-
paralelas. - Durand: Está se vendo, professora! -A professora:
nômeno próprio do nosso século, a língua estereotipada da pro- Durand, aprenda de uma vez por todas que em matemática não
paganda, mensagens sem nenhuma transparência nem sentido se vê nada, demonstra-se.
preciso, sem nenhuma reciprocidade, pois se trata do discurso
de um poder cuja "retórica" não tem outra função além de ex- Esses imperativos ressaltam o aspecto assimétrico do en-
cluir a crítica. sino, mesmo quando se afirma que há diálogo ou cooperação.
A linguagem estereotipada da propaganda não é a retóri- Só que o verdadeiro professor nunca dissimula sua retórica; ao
ca; é apenas sua perversão mais caricatural. O que salva a retó- contrário: ensina os procedimentos retóricos que possibilitam
rica é precisamente o que exclui esse tipo de linguagem: o diá- ensinar, e leva assim os alunos a tornar-se mestres no assunto.
logo. O ensino é, pois, uma relação assimétrica que trabalha por sua
abolição, para que o aluno se torne, se possível, igual ao mes-
tre. Aí está ajustificativa do "poder docente".
Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica Poder-se-ia pensar que o ensino define um modelo de re-
tórica "transparente" e "recíproca" que deveria ser encontrada
Diálogo: vamos vê-lo em ação em três casos peculiares: em todos os outros setores, pelo menos nas democracias. Con-
ensino, justiça e filosofia. venhamos que isso é utopia. E acrescentamos: utopia das mais
perniciosas.
Tomemos como exemplo o setor judiciário. Se nos ativés-
Do pedagógico ao judiciário semos ao Jnodelo pedagógico, um processo penal deveria ser
um diálogo após o qual o réu confessaria livremente seu crime
O ensino não pode prescindir da pedagogia; e toda peda- e pediria para ser castigado. Esse, aliás, era o ponto de vista de
gogia é retórica. O professor é um orador que, como todos os Platão em Górgias, e foi isso o que os processos stalinistas pre-
106 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO 107
tenderam realizar: processos pedagógicos cujo objetivo era tribunal que designa peritos e depois, eventualmente, uma nova
educar não só o público mas também os culpados, ou pretensos perícia, de tal modo que o processo pode durar muito tempo.
culpados ... Assim, em 1909, grande número de expropriados entrou
Nossa democracia não tem essa pretensão. Distingue niti- com uma ação na justiça que durou até 1913. Mas as indeniza-
damente a ética do judiciário, em que as decisões não implicam ções foram suspensas em 1914 por causa da guerra. Em 1919,
a anuência do culpado. Não se espera que o réu aceite o vere- os expropriados voltaram à justiça devido à desvalorização;
dicto que o condena; ninguém lhe diz: "Não queremos coagi- nessa época, a moeda belga perdera a metade do valor e, em
lo ..." Admite-se que a justiça pode coagir. E isso é inevitável, 1926, no fim do caso, seis sétimos do valor! Caberia indenizar
pois há sempre o risco de que a anuência do condenado seja os expropriados segundo o valor nominal fixado em 1913,
obrigatória, portanto hipócrita. Em todo caso, nada é mais como se nada tivesse acontecido? Nesse caso, as diferentes câ-
nocivo que introduzir a relação pedagógica nos domínios não maras do tribunal de Bruxelas deram respostas contraditórias.
educacionais; isso não é libertar os homens, mas sim infantili- Em resumo, os veredictos de tipo A eram favoráveis aos expro-
zá-los. priados, os do tipo B contrários.
No judiciário, o diálogo "ecumênico" dá lugar ao debate A) Só uma das câmaras julgou que seria preciso recalcular
polêmico, em que o objetivo não é convencer a parte adversá- o valor da indenização - digamos em 1926 multiplicá-la por
ria, mas uma terceira parte, o tribunal. E o advogado nada tem sete -, argüindo que a lei previa um ressarcimento "justo", ou
de professor; sua finalidade é fazer de tudo para tornar válida a seja, que permitisse ao expropriado adquirir bem equivalente
causa de seu cliente, para lhe dar todas as oportunidades de ao que possuía na época da expropriação. Além do mais, julga-
vitória. Só que o advogado não está sozinho, mas tem diante de va a câmara: não se pode atribuir ao expropriado a responsabi-
si colegas capazes de desmentir sua retórica, de contraditá-la lidade pela duração do processo, pois ele "tinha o direito de fa-
com outra. E as duas partes preparam dessa maneira o julga- zer tudo o que estivesse ao seu alcance" para obter a indeniza-
mento do tribunal. ção mais favorável (in Foriers, p. 311).
Até aqui, temos a impressão de que se trata de uma de-
monstração pura e simples, porquanto o veredicto só podia con-
Uma controvérsia judiciária: tar com a anuência dos interessados.
os expropriados e a desvalorização B) No entanto, várias câmaras do mesmo tribunal toma-
ram a decisão contrária, mesmo diferindo em termos de argu-
Vejamos um exemplo de controvérsia em direito civil, que mentos. Vejamos os mais notáveis.
agitou a opinião pública da Bélgica entre 1920 e 1926, mas que O montante da indenização deve levar em conta unica-
tem a ver com muitos outros países8• Trata-se da indenização mente o valor do imóvel na época da expropriação, e não as
devida aos expropriados. Falaremos em linhas gerais, sem nos que se seguiram. Não fosse assim (argumento por
perder em detalhes técnicos. absurdo), caso esse valor tivesse baixado, seria preciso reduzir
A expropriação em caso de utilidade pública é uma venda proporcionalmente a indenização. Em todo caso, "a avaliação
forçada. Os proprietários são obrigados legalmente a ceder seu dependeria. de fatores arbitrários" (p. 314).
imóvel ao Estado (ou às comunas), do qual se tornam então Outro argumento: o Estado que desvaloriza a moeda deci-
"credores"; a única coisa que podem contestar é o montante da de apenas diminuir seu poder aquisitivo; não decide ipso facto
indenização proposta. Se fizerem isso, a questão vai parar num elevar os preços. Inflação não é desvalorização, é apenas uma
108 INTRODUÇÃO À'RET6RICA
ARGUMENTAÇÃO 109
de suas conseqüências mais ou menos previsíveis; acontece até Segundo argumento: uma dissociação. Até então as câma-
de um Estado desvalorizar sem que os preços subam (argumen- ras tinham considerado a moeda como meio de pagamento.
to de dissociação). Portanto, se o expropriado for indenizado Leclerc vai mostrar que a moeda também é - sobretudo - um
segundo o valor do imóvel doze anos depois, cria-se um prece- instrumento de medida da economia. Ora, as desvalorizações
dente para a especulação.
haviam criado uma nova medida
Um último argumento é mais forte, porque dirigido a um
auditório bem mais amplo e menos especializado: é a regra de que na verdade é sete vezes menor que a antiga. Doravante o
justiça. A desvalorização é uma medida adversa que atinge to- franco legal é outro bem diferente do franco legal estabelecido
dos os credores, e deve atingi-los com igualdade. Ora, se for pela legislação ab-rogada. (p. 321)
concedida uma indenização compensatória apenas aos expro-
priados, criar-se-á uma "categoria de privilegiados". A última frase introduz uma nova retorsão: Segundo V.
Ex:', não devem ser levadas em conta as "flutuações" posterio-
Não é concebível que o expropriado tenha mais direito [que
res à expropriação; ora, aceitando outro franco legal, está sen-
os outros credores] de prevalecer-se de uma desvalorização da
do feito aquilo que V. Ex".' condenam. Note-se a epanalepse:
moeda que ocorreu posteriormente [à expropriação]. (p. 316)
franco legal.
Esse exemplo mostra que certos raciocínios aparentemen-
Finalmente, um argumento que responde ao último de A: os
expropriados, dilatando o processo, são causadores do próprio te demonstrativos na realidade são argumentativos e retóricos.
prejuízo, e devem considerar-se os únicos responsáveis por ele. Cada um repousa sobre princípios apenas verossímeis: B atém-
Como se vê, enquanto A favorece o expropriado, B favo- se à letra da lei, cuja infração abriria as portas para a arbitrarie-
rece o expropriador, que poderá pagar em moeda que vale sete dade e a desigualdade. A apóia-se na eqüidade e nega que se
vezes menos. Enquanto Ajulga em nome da ''justa'' reparação, deva observar apenas a lei numa situação que ela própria não
B julga segundo o texto da lei, em nome do risco de arbitrarie- previra (a desvalorização). Finalmente, C tem ganho de causa
dade, e atém-se apenas ao sentido legal da palavra ''justo'' - sobre B utilizando argumentos de B.
assim como se fala de "justas núpcias" (p. 319). Aqui encon- A própria solução decorre do debate contraditório. Mas
tramos o debate-tipo de Aristóteles (cf. supra, p. 50). será ela racional? Não, por certo, porém certamente "mais ra-
C) As sentenças de tipo B ganhavam em número, mas in- zoável".
dignaram a opinião pública. A Corte Suprema deu parecer fa-
vorável às sentenças de tipo A em 1929, depois de uma defesa
veemente feita pelo procurador geral, Paul Leclerc. Argumentação filosófica: onde está o tribunal?
Esta opõe a B dois argumentos.
Primeiro uma retorsão da regra de justiça. Se é que não se 1 E a filosofia? Poderia ser comparada a uma controvérsia
deve criar desigualdades diante da lei, por que só os expropria- .. em que cada filósofo seria advogado de sua própria causa dian-
dos deveriam pagar os custos da desvalorização? O Estado te de um tribunal que seria ... quem senão o leitor? Mas o leitor
dificilmente admitirá ser melhor juiz do que aqueles que ele lê;
foi evidentemente culpado por fazer recair sobre uma classe julgará phra si, é verdade, mas não para os outros.
social em particular os custos da reparação, unicamente porque O fato é que os filósofos não formulam o problema dessa
essa classe estava em situação de deixar-se pilhar (p. 320; "pi- maneira, principalmente - como vimos - a partir de Descartes.
lhar": metáfora hiperbólica). Os maiores deles afirmam ser demonstrativos, "apodícticos",
110 INTRODUÇÃO A RETÓRICA ARGUMENTAÇÃO 111
dizia Kant na língua de Aristóteles; e se, às vezes, aceitam o vincular a filosofia a um dos três gêneros, seria ao epidíctico.
termo argumentação é deixando claro que ela não poderia ter De fato, numa causa é sempre preciso suplantar, impor um ve-
nada que fosse retórico. redicto para põr fim ao debate. Uma tese, porém, nunca é im-
A essa pretensão dos filósofos, de serem demonstrativos posta, e sim proposta. Mas a quem?
podem ser opostos três argumentos, dos quais os dois
Consideremos um exemplo em que se vê a pior retórica (a
mais fácil) passar como por milagre a servir à filosofia, mila-
ros decorrem do lugar da unidade. O primeiro é que os filóso-
gre chamado Sócrates. Em Eutidemo de Platão, o sofista Dio-
fos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas,
nisodoro fala assim do ensino:
embora a demonstração só possa redundar numa verdade úni-
ca. O segundo, ainda mais forte, é que as estruturas da demons-
Quereis que [o aluno] passe a ser sábio e não seja mais
tração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos Kant ignorante? (... ) Uma vez que quereis que ele deixe de ser o que é,
Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Há s6 desejais sua morte? (283 s.)
matemática, enquanto existem várias filosofias.
O terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade os Ele utiliza um sofisma, afallacia accidentis, em que se
filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à argu- muda um nexo acidental: não ser mais ignorante (nexo aciden-
mentação. Descartes argumenta para provar que é preciso tal), não ser mais, portanto morrer. Essa metáfora do ensino
demonstrar. Spinoza, que constrói toda a Ética "de more geo- como morte é um tanto freudiana, e lonesco, aliás, realiza-a em
metrico" (segundo o método geométrico), acrescenta a suas A lição, em que o professor, por ardor pedagógico, acaba ma-
demonstrações os mais importantes "escólios", que as ilustram tando o pobre aluno ...
de modo pedagógico e retórico: tudo acontece como se ele ti- Aí entra o humor de Sócrates; em vez de desmentir a me-
vesse escrito seu livro duas vezes, a primeira para Deus e a se- táfora (morrer), brinca com ela e extrai uma lição:
gunda para nós. Hegel procede da mesma maneira na Enciclo-
pédia. E hoje em dia? Hoje em dia parece que a filosofia cin- Se [esses sofistas] sabem aniquilar as pessoas de tal manei-
diu-se: de um lado uma investigação lógica rigorosa, porém es- ra que as transformam de viciosas e insensatas em virtuosas e
téril; de outro, um discurso retórico que, por falta de interro- sábias ( ... ), que matem esse menino para tomá-lo sábio, e a nós
gar-se sobre sua própria argumentação, incide no arbitrário. também por acréscimo. (285 b)
No entanto, a pretensão de ser demonstrativo comporta
certa dose de verdade, pois permite distinguir o filósofo do ad- O grosseiro sofisma transforma-se em metáfora, ao mesmo
vogado, tanto quanto, aliás, do pedagogo. tempo pedagógica e religiosa. Todo verdadeiro ensino é em
O propósito do filósofo é encontrar, e não ensinar o que certo sentido - sentido metafórico, portanto retórico - uma
outros encontraram, ainda que muitas vezes se encontre mais morte. E um novo nascimento.
ensinando. Assim também, sua tarefa não é defender uma cau- Convém lembrar que em Eutidemo, assim como em todos
sa, e sim sustentar uma tese. Onde está a diferença? os diálogos, os interlocutores são apenas vozes interiores de
Uma causa exige um juízo hic et nunc; uma tese visa a Platão, que vê a filosofia como um diálogo consigo mesmo; por
uma explicação de alcance universal; ela não responde à per- isso, quanlio o filósofo propõe uma tese, o faz primeiro a si mes-
gunta: "Catilina é injusto?", mas a outra bem diferente: "O que mo. E a retórica então? Como todo diálogo, o diálogo interior
é justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance práti- também a utiliza, mas confrontando-a logo com uma outra. Por-
tanto, o que distingue o filósofo - mesmo quando fala de política
co, como aqui, é de longo prazo e para todos. Se cumprisse
112 INTRODUÇÃO A RETÓRICA Capítulo VI
Figuras
ou de direito - do político e do advogado é que ele sustenta ao
mesmo tempo o pró e o contra, é que ele é ao mesmo tempo o
advogado e seu adversário. Mas qual é o tribunal?
O auditório universal, responderia Perelman. Mas deixe-
mos claro que ele não está em lugar nenhum, senão em cada
um de nós. Em Górgias, quando Sócrates declara a Polos que o
culpado é mais digno de lástima que sua vítima, e o culpado
impune mais infeliz que o punido, Polos exclama que ninguém
admitiria tais paradoxos! E Sócrates:
Tens por ti, Polos, todo o mundo exceto eu. E eu não peço O que é figura? Um recurso de estilo que permite expres-
anuência nem testemunho de ninguém, senão de ti. (475 e) sar-se de modo simultaneamente livre e codificado. Livre, no
sentido de que não somos obrigados a recorrer a ela para comu-
Aí está o supremo tribunal. Em Polos. Em cada um. nicar-nos; dessa forma, qualquer um poderá dizer que vai se
suicidar para pôr fim a uma paixão culposa, sem precisar re-
Aí está o que tentamos demonstrar neste capítul09 • Inicial-
correr às figuras de Fedra:
mente, que a argumentação existe como meio de prova distinto
da demonstração, mas sem incidir na violência e na sedução.
Para ocultar da luz uma chama tão negra.
Depois, que ela comporta uma parte de oratória, e que os anti-
gos tinham razão em unificar seus elementos racionais e afeti-
Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura .co-
vos num mesmo todo, a retórica.
nhecida, repetível, transmissível. Assim, no verso de Racme,
Essa união vamos agora observar nas figuras.
identificam-se quatro metáforas e um oxímoro (chama tão
negra). .
A expressão "figuras de retórica" não é pleonasmo,
existem figuras não retóricas, que são poéticas, humorístlcas
ou simplesmente de palavras. A figura só é de retórica quando
desempenha papel persuasivo.
Mas como? Quando os antigos falam das figuras, é para Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que di-
evocar o prazer que elas proporcionam, que eles relacionam zem respeito à relação do discurso com seu sujeito (o orador)
com o de/ectare e mais raramente com o movere. A figura se- ou com seu objeto.
ria, portanto, uma fruição a mais, uma licença estilística para
facilitar a aceitação do argumento. Assim é que na Retórica a
Herênio encontra-se um exemplo de epanalepse: Figuras de palavras
Não te abalaste quando uma mãe te beijou os pés, não te o que caracteriza as figuras de palavras? O fato de serem
abalaste? (IV, 38) intraduzíveis, de poderem ser destruídas por menos que se
mude sua matéria sonora. Por isso, parecem reservadas à poe-
Por que esta repetição? Segundo o autor, tem duas funções: emo- sia ou, a rigor, ao humorismo. Entretanto, devem desempe-
cionar o auditório e ferir a parte contrária: nhar bem alguma função argumentativa, porque os filósofos
mais racionalistas recorrem a elas. Assim, basta traduzir a
Como se um dardo atingisse várias vezes o mesmo lugar expressão Sôma sêma de Platão - "corpo, um túmulo" - para
do corpo. destruí-la, a não ser que se perca o poder da metáfora.
Essas figuras se dividem em dois grupos:
Se o argumento é o prego, a figura é o modo de pregá-lo ...
Perelman-Tyteca também vêem na repetição uma figura
de "presença", uma das que fazem sentir o argumento. Para Figuras de ritmo
eles, porém, ela não se reduz ao patos; não é apenas o que faci-
lita o argumento, mas constitui o próprio argumento; desse mo- Para os antigos, o ritmo da frase tem importância capital,
do, o primeiro Não te aba/aste ... indica um fato; o segundo, pois é a música do discurso, o que torna a expressão harmonio-
depois de quando uma mãe, ressalta o caráter chocante desse sa ou tocante, sempre fácil de ser retida. O problema é que os
fato, incompatível (argumento) com os valores da humanidade. elementos constitutivos do ritmo, como o acento tônico e a ex-
Para o TA, toda figura de retórica é um condensado de argu- tensão das sílabas, não são marcados em todas as línguas. Des-
mento: a metáfora é condensado de analogia, etc. A nosso ver, se modo, por exemplo o slogan alemão de 1968:
essa teoria é intelectualista demais; esquece-se do prazer da
figura, que deriva ora da emoção, ora da comicidade, mas sem-
pre do patos.
Aqui estudaremos a função argumentativa das principais tem estrutura especular: iâmbico, troqueu/troqueu, iâmbico. Os
figuras de retórica l , que classificaremos conforme suas rela- esquerdistas franceses, por exemplo, foram obrigados a atri-
ções com o discurso em que se encaixam.
buir-lhe um ritmo arbitrário:
Figuras de palavras, como o trocadilho, a rima, que dizem
respeito à matéria sonora do discurso.
Figuras de sentido, como a metáfora, que dizem respeito à
significação das palavras ou dos grupos de palavras.
Figuras de construção, como a elipse ou a antítese, que di-
zem respeito à estrutura da frase, por vezes do discurso. '" É só o começo; sigamos a luta. (N. do T.)
116 INTRODUÇÃO À RETÓRICA FIGURAS 117
No entanto, os provérbios, os slogans, certas "frases anto- b) Sílabas: paronomásia: Traduttore, traditore, de cuja tra-
lógicas" muitas vezes têm um ritmo próprio graças ao qual fi- dução não sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima é uma
cam na memória: paronomásia no final das palavras, que retoma em ritmo regu-
lar: Valéry au tri, Anémone au téléfone [Valéry na triagem,
Qsc@s @dtaml e_ai Anémone no telefone] (slogan dos carteiros em greve, em
,-,
1975, que brinca com o nome do presidente francês e de sua
F_aça_a@r, esposa).
,-,
c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonímia, ora na
Vejamos algumas figuras de ritmo mais complexas. A pa- polissemia.
risose é um período composto por dois membros de mesma ex- A partir da homonímia, cria-se o trocadilho, que aproxima
tensão: duas palavras idênticas no som, mas com sentido diferente.
Freqüentemente grosseiro, é fino quando cria uma relação
Beber ou guiar, convém optar. (5 + 5) inesperada com a situação. FremI, em O chiste, conta que, num
baile, uma italiana dá um bom troco a Napoleão, quando este
A cláusula é uma seqüência rítmica que termina um perío- lhe pergunta se todos os italianos dançavam tão mal: Non tutti,
do, como esta com seis pés que termina a célebre peroração de ma buona parte... O imperador podia entender: nem todos, mas
Danton: boa parte, e podia entender também que se tratava de um nome
próprio, o seu.
Pour les vaincre, Messieurs, il nous faut de I 'audace, en-
A figura que se baseia na polissemia é a antanác1ase, que
core de I'audace, toujours de I'audace, et la France est sauvée.
(in Suhamy, p. 76) - - - - -- se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma
[Para vencê-los, senhores, precisamos de audácia, mais au-
mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha o
dácia, sempre audácia, e a França está salva.] exame de mamas:
As figuras de som implicam fonemas, sílabas ou palavras. Ligada à antanác1ase está a derivação, que associa uma
a) Fonemas: aliteração, em que há repetição de uma mes- palavra a outra de igual radical. Assim, no discurso de 30 de
ma letra na frase, como por exemplo na frase de De Gaulle, que maio de 1968, de Gaulle denunciava os contestadores que im-
lembra o resmuninhar dos velhos mal-humorados: pediam·
La grogne, la rogne et la hargne. (r, gn [nh]) os estudantes de estudar, os professores de ensinar [les enseig-
[Resmungo, rezinga, rabugem] nants d'enseigner], os trabalhadores de trabalhar.
118 INTRODUÇÃO À RETÓRICA FIGURAS 119
Se ele tivesse dito: les profosseurs d 'enseigner, les ouvriers [ope- criar uma história do vocabulário. Por exemplo, em latim clás-
rários] de travailler, o argumento de incompatibilidade teria sico, puer designa a criança, infans o bebê, aquele que não
desaparecido. fala (fari, falar). Mais tarde, as designações das faixas etárias
Pergunta: de onde vem a força persuasiva das figuras de acabam com outra distribuição, e infans designa aquele que
palavras? Elas facilitam a atenção e a lembrança, mas não é só ainda não chegou à adolescência. Mas, daí a pretender que a
isso. Lembremos o princípio lingüístico da arbitrariedade do infância é, "por definição", o período em que não há fala, não
signo, segundo o qual as palavras não são "motivadas": não há tem o menor fundamento, é propriamente errôneo. Na verda-
razão para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princí- de, o argumento etimológico esquece-se de outra lei lingüísti-
pio também se aplica às nossas figuras de palavras: não é por- ca, a de que a palavra só tem sentido sincronicamente, ou
que dois significantes são idênticos que seus significados tam- seja, no sistema presente de uma língua. Desse modo, a pala-
bém o sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem idên- vra "infância" só tem sentido em relação a "lactação" e a
ticos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparen- "adolescência"; e o latim não tem autoridade alguma nesse
te, porém incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham, sentido.
provavelmente não é por acaso. A harmonia é comprovada pelo O argumento etimológico às vezes cai no ridículo. Cabe
prazer 2 • citar nesse aspecto os adversários de Freud que, no início do
Que prazer? Do achado, da "felicidade de estilo" (Alain). século, pretendiam refutá-lo aduzindo o "sentido etimológico"
Podemos ir mais longe. Segundo os psicólogos, a criança des- de histeria, derivado do grego hystera, útero, para afirmar que,
conhece a arbitrariedade do signo; para ela, a palavra tem rela- "por definição", histeria só poderia ser doença de mulher! É
ção com a coisa. Cabe perguntar se o adulto, que se deleita verdade que depois disso os psicanalistas inventaram muitas
com uma figura de palavras - seja ela engraçada ou poética - outras 3 •••
não está no fundo sentindo o prazer de retornar à infância. Etimologia como parte da história das línguas, sim. Eti-
mologia como argumento, talvez, porém do mesmo tipo da an-
tanáclase, e não do trocadilho.
Um argumento retórico: a etimologia Uma última observação sobre as figuras de palavras: deve-
se evitar o abuso. Lembremos l-I Rousseau que, em Emílio,
Entre as figuras de palavras, é preciso contar a etimologia, vocifera contra La Fontaine, dado às crianças como "moral":
que serve de argumento tanto para as definições quanto para as
dissociações. Recorrer à etimologia para definir o "verdadei- sans songer que I'apologue. en les amusant, les abuse
ro" sentido de uma palavra na verdade é um ato de poder pelo [sem pensar que °apólogo, distraindo, trai].
qual o orador impõe seu "sentido", portanto seu ponto de vista,
ao auditório. Se ele tivesse dito: en les amusant, les trompe [distraindo, en-
Note-se que muitas vezes a etimologia é falsa: "religião" gana], não haveria atrativo. "Les amuse et les abuse" [distrai
seria relacionável com "relego" [percorrer de novo, revisitar] e trai] seria vistoso demais, nouveau-riche demais; desviaria
ou com "religo" [religar]? "Educação" viria de educere (con- a atençã9 da tese em vez de valorizá-la. Retórica, arte fun-
duzir para fora)? Conjecturas ou fantasias. Mas, ainda que cional...
verdadeira, a etimologia teria algum valor? É evidente que
não se deve rejeitar a história das palavras. Caberia mesmo
120 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 121
Figuras de sentido Tropos simples: metonímias, sinédoques, metáforas
Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes, Trataremos agora das três figuras de sentido de que deri-
as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem vam todas as outras.
ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem A metonímia designa uma coisa pelo nome de outra que
em empregar um termo (ou vários) com um sentido que não lhe lhe está habitualmente associada. Seu poder argumentativo é
é habitual. O olho escuta ... Esta estranha metáfora de Claudel antes de tudo o da denominação, que ressalta o aspecto da coisa
poderia levar a pensar em "desvio", transgressão da norma le- que interessa ao orador. Assim, O trono e o altar é uma metoní-
xical segundo a qual o olho deve enxergar e não se intrometer mia valorizadora; O sabre e o aspersório é metonímia deprecia-
no serviço dos vizinhos ... Mas, restabelecendo-se o termo pró- tiva, que reduz o exército a extermínio, e a Igreja a superstição.
prio, perde-se sentido, pois o olho que "escuta" uma obra de Baseada no nexo habitual, a força argumentativa da meto-
arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Por- nímia provém da familiaridade, e essa força desaparece quando
tanto escuta é o termo exato. Isso acontece com toda verdadei- a metonímia vem de outra cultura. Para quem acha, por exem-
ra figura. plo, que o poder ministerial se chama gabinete, pasta ou mes-
Em outras palavras, a figura de sentido desempenha papel mo Esplanada, é difícil entender como o Império Otomano pô-
lexical; não que acrescente palavras ao léxico, mas enriquece o de usar o Divã como símbolo do poder. É verdade que a psica-
sentido das palavras. nálise já deveria nos ter acostumado com isso, mas entre os tur-
"Já disse mil vezes." "Tenho mil coisas para dizer..." A cos era o ocupante do divã quem detinha o poder...
palavra "mil" perde o sentido quantitativo para expressar algo Diz-se com freqüência que, em vista da poética metáfora,
como: vezes demais ... (para repetir outra vez), coisas demais a metonímia é prosaica e pobre. No entanto, existem "metoní-
(para dizer tudo agora... ). A hipérbole cria o sentido. mias vivas". Quando, em 1700, o embaixador da Espanha
Desse modo, a figura de sentido é um tropo, um signifi- declarou Já não há Pireneus, deve ter produzido um belo efeito
cante tomado no sentido de outro, escuta por olha com reve- surpresa; se tivesse dito apenas "acabaram-se as fronteiras",
rência. Mas nem todo tropo é uma figura de sentido. Quando o teria perdido a conotação de cadeia inóspita, quase intranspo-
tropo é lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo pró- nível, que só o divino poder dos reis poderia abolir, poder ca-
prio poderia substituí-lo, passa a ser catacrese. Assim, asas do paz de mover montanhas ...
avião na origem era uma metáfora, mas não é mais figura, pois O importante é que, mais que os outros tropos, a metonímia
não há como dizer de outra forma. cria símbolos, como por exemplo A foice e o martelo, A rosa e a
Inversamente, por falta de referências culturais, uma figu- cruz. Nesse sentido, condensa um argumento fortíssimo.
ra pode ser incompreensível; torna-se então enigma, mas aí A sinédoque distingue-se da metonímia por designar uma
deixa de ser retórica. Podemos dizer da figura de sentido aqui- . coisa por meio de outra que tem com ela uma relação de neces-
lo que Aristóteles dizia da metáfora: deve ser clara, nova e sidade, de tal modo que a primeira não existiria sem a segunda;
agradável. Nova, porém clara e por isso mesmo agradável, como por exemplo cem cabeças por cem pessoas, sinédoque da parte,
o enigma que se tem a alegria de desvendar. A meio caminho ou cem lfIortais, sinédoque da espécie. Donde sua função pró-
entre o enigma e o clichê, a figura de sentido desempenha seu pria: ela é a figura que condensa um exemplo. Muito corrente
papel retórico. em pedagogia (triângulo por todos os triângulos; soneto por
todos os sonetos), serve também à propaganda: partido dos
122 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 123
trabalhadores, sinédoque da parte. Na verdade, nada prova que O símile, como a metáfora que dele deriva, é fonte de poe-
o partido em questão represente todos os trabalhadores. sia, pois aproxima seres cuja semelhança antes não fora perce-
Isso também se observa com a antonomásia, sinédoque bida; cria, como em Claudel, o que em seguida vai parecer evi-
que consiste em designar uma totalidade ou uma espécie pelo dente. Se for inesperado demais, dará origem à comicidade:
nome de um indivíduo considerado seu representante: JojJre bonita como um aviãoJalada como a torre de Pisa. Sua criati-
ganhou a batalha do Mame, como se ele estivesse lá sozinho! vidade permite entender o poder argumentativo da metáfora5 •
Sabe-se muito bem como o referido Joffre motivou a sinédo-
que: Não sei se fui eu que a ganhei, só sei que eu sou quem a te-
ria perdido! O slogan dos anos 30, Hitler é a guerra, fazia re- Tropas complexos: hipálage,
cair sobre Hitler todo o peso do hitlerismo. Também aqui se enálage, oxímoro, hipérbole, etc.
encontra a argumentação pelo exemplo.
A metáfora designa uma coisa com o nome de outra que Desses três tropos básicos derivam outros.
tenha com ela uma relação de semelhança. Voltaremos depois a A hipérbole é a figura do exagero. Baseia-se numa metá-
seu papel argumentativo. Aqui diremos algumas palavras sobre fora (Estou morto de cansaço), ou numa sinédoque (As massas
sua gênese. Diz-se que a metáfora é uma comparação abrevia- laboriosas, para certo número de trabalhadores).
da, que substitui o é como por é: Ela é [bela como] uma rosa; O Para entendê-la, comecemos pela admirável definição de
olho [olha como se] escuta. Mas que comparação? Se esta se Pierre Fontanier:
referir a realidades homogêneas, sua abreviação não redundará
A hipérbole aumenta ou diminui as coisas em excesso,
em metáfora: Pedro é [alto como] um gigante; João é [baixo
apresentando-as bem acima ou bem abaixo do que são ...
como] um anão. Trata-se antes de hipérboles por meio de siné-
doques. É o mesmo se eu disser: Esta água está [fria como]
Temos aí a estrutura da hipérbole: auxese quando amplia em
uma pedra de gelo. sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido nega-
Suponhamos agora que se diga: Sofia é uma pedra de gelo. tivo (esse anão), sendo sempre o significado figurado bem
Há de fato uma comparação (e pouco benevolente), mas de ou- maior ou bem menor que o significado próprio. Por que esse
tro tipo, porque Sofia não é da espécie dos seres que podem exagero?
transformar-se em gelo; a semelhança em que se baseia essa
metáfora provém de termos heterogêneos, que não têm matéria ... não com o intuito de enganar, mas de levar à própria ver-
nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de gelo, dade, e de fixar, através do que ela diz de incrível, aquilo em que
nem é como uma pedra de gelo. Então, como poderemos en- é realmente preciso crer.
tender a metáfora? Por uma semelhança de relações entre ter-
mos heterogêneos (cf. infra, pp. 193 a 196). Em suma, não é uma figura da mentira, como quando se diz
Em resumo, se desenvolvermos a metáfora e lhe restituir- que alguém está morto, se ele está bem vivo; é uma figura de
mos seu como, teremos uma figura de comparação especial, expressão, como em Estou morto, que não engana ninguém.
que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os in- Porém, J"tra exprimir o quê?
gleses, chamaremos de símile. O símile é uma comparação en- O inexprimível, por certo. A nosso ver, a função semânti-
tre termos heterogêneos: Ela canta como um rouxinol, que se ca da hipérbole é dizer que de fato não conseguimos dizer, é
abrevia em metáfora como O rouxinol 4 • dar a entender que aquilo de que estamos falando é tão grande,
124 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 125
tão bonito, tão importante (ou o contrário) que a linguagem o oxímoro é a mais estranha das figuras; consiste em unir
não poderia exprimir. Donde o papel fundamental da hipérbole dois termos incompatíveis, fazendo de conta que não são: Essa
na retórica religiosa, visto que só ela pode designar aquilo que escura claridade que cai das estrelas (Corneille), O sol negro
não se pode denominar. (Nerval). Como é possível? M. Prandi responde 6 que ele indica
Mas, além da expressão, ela condensa um argumento, o de um conflito entre dois enunciadores: um deles - todo o mundo
direção: se começarmos assim, onde vamos parar? A hipérbole - diz que está fazendo sol, e o outro - o poeta - declara metafo-
amplifica o argumento, colocando-se já de início nesse ponto ricamente que para ele tudo está negro. Assim, quando qualifi-
final, como veremos nos textos 11 e 12. ca Antígona de santamente criminosa, Sófocles quer dizer que
Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio ela é criminosa para o poder (Creonte), porém santa para os
cansado, estarei substituindo a hipérbole pela litote, que não é deuses e para sua consciência. Perelman-Tyteca vêem no oxí-
uma hipérbole ao contrário, como a tapinose, mas o contrário moro uma dissociação condensada, por exemplo entre a apa-
da hipérbole. Figura do etos, por mostrar o orador modesto, rência - criminosa - e a realidade - santamente.
prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a Finalmente, dois tropos complexos, simétricos.
insinuação, o eufemismo e sobretudo a ironia: Não, o doutor X Um deles é a metáfora expandida, seqüência coerente de
ainda não matou todos os seus doentes ... Como muitas vezes metáforas, que aliás permite a personificação e... o humor;
acontece, essa litote procede pela negação de uma hipérbole: como por exemplo a metáfora também citada por Prandi:
matou.
A hipálage é um deslocamento de atribuição. Como no o inconsciente da minha máquina de escrever comete es-
célebre verso de Virgílio, que fala dos mortos a vagarem pelos tranhos lapsos.
Infernos:
Outro é a metalepse, que é para a metonímia o que a metá-
Ibant obscuri sola sub nocte per umbram ... fora expandida é para a metáfora: uma seqüência coerente. As-
(Iam escuros por entre a sombra na noite solitária ... ) sim, no Eclesiastes se diz:
Se ele tivesse falado em noite escura e almas solitárias, o efeito Quando a porta está fechada para a rua, quando cessa a voz
de hipotipose teria sido destruído; estaria perdida a expressivi- do moinho, quando se cala o canto do pássaro (... ), quando há
dade do quadro. temor da subida e pavores em caminho ... (XII, 4, 5)
Daí a força argumentativa da hipálage. Por metonímia:
liberdade de preços, por liberdade dos comerciantes, como se Obscura e terrível metalepse para dizer: quando se está velho.
eles nada tivessem que ver com os preços, como se estes decor- Essa figura designa a velhice através de seus efeitos: ce-
ressem de um determinismo natural. gueira, surdez, fadiga, etc. Mas é redutora, pois só leva em
A enálage é um deslocamento gramatical: do adjetivo . conta os efeitos negativos; poderia até considerar os efeitos po-
para o advérbio, como em Vote certo; de uma pessoa para ou- sitivos da terceira idade: prudência, paciência, etc. De fato,
tra e de um tempo verbal para outro, como em O que estare- todas as figuras de sentido são redutoras, por focalizarem certo
mosfazendo?, por "o que você está fazendo?" A enálage torna aspecto efiobretudo certo valor do objeto que apontam em de-
as coisas mais presentes, embora também mais confusas; em trimento dos outros. Donde seu papel argumentativo.
Pensar francês, de Pétain, qual era exatamente o sentido de
"francês"?
126 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 127
Figuras de construção Além do trocadilho nas últimas palavras, recorre-se ao as-
síndeto; o que se deve acrescentar entre 1 e 2, e entre 2 e 3: por-
As figuras abaixo dizem respeito à construção da frase, ou tanto ou mas?
mesmo do discurso. Algumas procedem por subtração, outras A aposiopese, ou reticência, interrompe a frase para passar
por repetição, outras por permutação. ao auditório a tarefa de completá-la; figura por excelência da in-
sinuação, do despudor, da calúnia, mas também do pudor, da ad-
miração, do amor, sua força argumentativa advém do fato de
Figuras por subtração: elipse, retirar o argumento do debate para incitar o outro a retomá-lo por
assíndeto, aposiopese ou reticência sua conta, a preencher por sua conta os três pontos de suspensão.
Os preços estão livres. Vocês são livres. Não digam sim a Não se deve confundir epanalepse com antanáclase, que é
qualquer preço. a repetição de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a
perissologia, repetição de uma mesma idéia com palavras dife-
rentes. P
Dá-se o nome de antítese à oposição filosófica de teses
* CRS = Compagnie républicaine de sécurité, polícia para repressão ou a uma oposição retórica, que sobressai graças à repetição;
de tumultos; SS = esquadrões militares da Alemanha nazista. (N. do T.) AABA, AACA, etc. A antítese é a oposição no mesmo.
128 INTRODUÇÃO À RET6RICA FIGURAS 129
o mesmo pode ser representado por palavras idênticas: de-se dizer que, se a vida determina a consciência, esta, em tro-
ca, muda a vida. A causalidade linear é então substituída pela
Fulminados hoje pela força mecânica, poderemos vencer retroação. Também neste caso o argumento é sedutor, porém
no futuro com uma força mecânica superior. (ibid.) redutor.
Cabe mencionar mais três figuras de construção.
O mesmo também pode ser representado pelo equilíbrio O anacoluto perturba a sintaxe da frase:
rítmico:
o maior filósofo do mundo, sobre uma prancha mais larga do
Et monté sur le faite il aspire à deseendre (Comeille) que necessário, se embaixo houver um precipício, ainda que sua
[E subido no cume ele aspira a descer.] razão o convença de sua segurança, prevalecerá sua imaginação.
A identidade dos dois hexâmetros reforça a oposição. O sujeito do verbo deveria ser o filósofo mas, para nossa sur-
presa, é a imaginação. Seria o anacoluto um "desvio em rela-
ção à norma"? Parece que sim, e até um erro; qualquer profes-
Figuras diversas: quiasmo, sor teria despachado o aluno Pascal a golpes de tinta vermelha...
hipérbato, anacoluto, gradação No entanto, será possível expressar de forma diferente a derro-
ta da filosofia?
O quiasmo é uma oposição baseada numa inversão, AB- A nosso ver, o anacoluto não constitui um erro, mas é a in-
BA, e não mais na repetição: cursão do código da língua oral no código da língua escrita, o
que torna a expressão mais pessoal e a argumentação mais viva.
Deve-se comer para viver, e não viver para comer. O hipérbato, ou inversão retórica, é um caso particular de
anacoluto:
Às vezes cômico, o quiasmo no entanto integra-se muito
bem nas visões trágicas do mundo, de São Paulo a Karl Marx: Chorosa empós seu carro, quereis vós que me vejam? (Ra-
cine)
Quem se exalta será humilhado, quem se humilha será
exaltado. (Le, XVIII, 14) Finalmente, a gradação consiste em dispor as palavras na
Ao contrário da filosofia alemã, que vai do céu à terra, aqui ordem crescente de extensão ou importância:
subimos da terra ao céu (... ) Não é a consciência que determina a
vida, é a vida que determina a consciência. (Marx, A ideologia A pobreza viril, ativa e vigilante. (La Fontaine)
alemã.)
Portanto, é um excelente meio de apresentar os argumentos: não
Aqui o quiasmo está a serviço de um argumento de disso- só, mas também, e sobretudo ...
ciação. Ao par ilusório estabelecido pelo idealismo alemão,
que põe a "terra" como não essencial e a "vida"como simples
exteriorização da consciência, Marx opõe como verdadeiro o Figurasltle pensamento
par inverso; a forma em X do argumento confere-lhe aparência
de necessidade. No entanto, ele assenta numa alternativa sim- As figuras de pensamento são, em princípio, independen-
plista: é a consciência que determina a vida, ou o inverso? Po- tes do som, do sentido e da ordem das palavras: só dizem respei-
130 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 131
to à relação entre idéias. Mas essa definição dos antigos levaria que, na Escócia, Rolling stones gather no moss tem, ao contrá-
a excluí-las do campo das figuras, e mesmo da retórica, que se rio, sentido positivo: quem viaja não cria cascão, está sempre
caracteriza pela íntima ligação entre língua e pensamento. A novo.
nosso ver, essas figuras são identificadas por três critérios. É por isso que não podemos concordar com Goethe e com
Em primeiro lugar, não se referem a palavras ou à frase, os românticos, que opõem a alegoria - figura que teria apenas
mas ao discurso como tal; o trocadilho implica algumas pala- um sentido figurado - ao símbolo, que seria aberto e polissêmi-
vras, enquanto que a ironia engloba todo o discurso; um livro co: vemos que a alegoria também pode ser assim. Fato é que ela
inteiro pode ser irônico. Em segundo lugar, dizem respeito à tem má fama: é tachada de factícia, de ser criada para as neces-
relação do discurso com seu referente; ou seja, pretendem ex- sidades da causa, em resumo, de ser puramente didática.
pressar a verdade: enquanto a metáfora não é verdadeira nem Nesse caso, trata-se de uma curiosa didática, pois com ela
falsa, a alegoria poderá ser verdadeira ou falsa. Finalmente, se acaba perdendo tempo. Platão, após ter enunciado a alegoria
uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no da Caverna, precisa explicá-la; e Jesus também precisa dar a
sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha só não chave de suas parábolas: estranha didática que se condena a en-
faz verão: a verdade do sentido meteorológico implica a verda- sinar duas vezes! Mas veremos, com Rousseau (texto 11), que
de do sentido humano. o verdadeiro problema da educação talvez não seja "ganhar"
tempo.
Na realidade, se a alegoria é didática, não é por tornar as
Alegoria: figura didática? coisas mais claras ou mais concretas; ao contrário, é por intri-
gar. A alegoria da Caverna e a parábola do Semeador intrigam
Esse triste provérbio - eles raramente são alegres - já é os discípulos, que sentem que o texto quer dizer alguma coisa a
mais do que está dizendo, mas não sabem o quê; esperam a
uma alegoria. A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que
explicação do mestre, explicação que não estariam desejando
enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar me-
se o mestre a tivesse dado sem preparação prévia. Existe uma
taforicamente uma verdade abstrata. Ela é a estrutura do provér-
pedagogia muito antiga, a do mistério, que consiste em retardar
bio, da fábula, do romance de tese, da parábola 7•
a solução para incitar o discípulo a buscá-la, para motivá-lo a
Apesar de ser uma seqüência de metáforas - andorinha
aprender. É nesse sentido que a alegoria é "didática".
como boa nova, verão como felicidade - nem por isso a alegoria
Donde seu papel também argumentativo: ela alicia as pes-
é uma metáfora expandida. Por quê? Exatamente porque todos
soas, no sentido de que, se estas aceitarem o foro (a letra), se-
esses termos são metafóricos, enquanto na metáfora expandida
rão obrigadas a aceitar também o tema (espírito). Tomaremos
os termos figurados se encaixam num contexto de termos pró-
da Bíblia (2 Sm XII, 1) o exemplo do profeta Natã, que vai di-
prios, de tal modo que a mensagem só possa ter um sentido, o
. zer ao rei Davi:
figurado. Em Ponha um tigre no seu carro, tigre é metafórico, o
resto não; assim, ninguém achará que se trata de um tigre de Havia dois homens numa mesma cidade, um rico e outro
verdade, exceto o cineasta Jean-Luc Godard, que, para satirizar, pobre. O rico possuía gado pequeno e grande em abundância. O
filma um tigre num motor. A verdadeira alegoria, cujos termos pobrl nada tinha a não ser uma ovelhinha ( ... ) que ele amava
são todos metafóricos, apresenta duas leituras possíveis: como filha. Um hóspede chega à casa do rico que, poupando-se
"Pedra que rola não cria limo" também pode ser lido em de tomar um dos animais de seu rebanho para servir ao viajante.
sentido figurado: quem viaja muito não cria amigos. Note-se pega a ovelha do pobre para prepará-la ...
132 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 133
Essa narrativa indigna e intriga Davi, quer saber quem é esse char, de ver o esfrangalhamento das pretensões de poder, saber
homem, "que merece a morte". E o profeta responde-lhe "Tu e virtude exatamente porque quem faz a ironia parece levá-las
és esse homem." a sério. Figura do patos e do etos - põe do seu lado quem ri -, a
Era ele, Davi, que, inflamado de paixão por Betsabá, rap- ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento
tara-a, engravidara-a e depois, arranjando tudo para que o ma- de incompatibilidade pelo ridículo.
rido dela morresse na guerra, desposara-a. Vemos aí a força da Apreciemos a réplica de Napoleão III, quando lhe mostra-
alegoria. Se Natã tivesse simplesmente exposto o crime, o rei ram o violento panfleto de V. Hugo contra ele:
poderia ter respondido que o amor não tem lei, ou que havia
necessidade de um herdeiro para a coroa; poderia até não ter Pois bem, Senhores, aí está Napoleão, o Pequeno, por
Victor Hugo, o Grande.
ouvido nada. Aqui, a causa é ouvida antes mesmo de ser expos-
ta, e, ao condenar o rico, o rei prendeu-se em seu próprio vere-
dicto. Prestando atenção à narrativa, Davi não percebeu - nem
o que ele quis dizer exatamente? "É ele que se toma por Napo-
leão." "Não me atinge." "Admiro-o apesar de tudo como poe-
de longe - que se tratava dele. Sem a alegoria, teria porventura
ta" ... Talvez os três.
entendido?
A graça, em retórica, é a ironia que vem a calhar, a réplica
arguta, que é a mais eficaz. Quanto ao humor, não é uma espé-
cie de ironia; é o contrário da ironia. Esta denuncia a falsa serie-
Ironia, graça e humor dade em nome de uma seriedade superior - a da razão, do bom
senso, da moral -, o que coloca o ironista bem acima daquilo
Na ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer que ele denuncia ou critica: não é o saber que faz de Sócrates
dar a entender. Sua matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcas- um mestre, mas sua ironia. No humor, é o próprio sujeito que
mo; trata-se realmente de uma figura de pensamento, pois tem abandona sua própria seriedade, que abdica da importância. O
dois sentidos: És a fênix ... pode ser tomado ao pé da letra, como que em princípio exige dele certa calma, certo domínio de si -
a ave, ou então segundo seu espírito, que aqui se opõe ao senti- sim, a fleuma britânica e o humor são uma coisa só -, e desse
do próprio do termo. modo se explica que o primeiro grau do humor seja a palavra
A ironia pode ser amena ou cruel, sutil ou grosseira, amarga descontraída nos momentos em que todos já perderam a cabeça.
ou engraçada ... Delimitaremos o assunto com duas perguntas. Antídoto contra todos os fanatismos, o humor tende para o irra-
O que a torna "fina"? Provavelmente o afastamento entre cional e às vezes para o niilismo. Assim, se a ironia é uma arma,
os dois sentidos, a letra e o espírito. É verdade que se pode o humor é algo que desarma. Retórica superior.
"marcar" a ironia: pelo tom de voz, por ponto de exclamação,
aspas, etc. Se clara demais, passa a ser fácil. A ironia pesada é
a esperada, a que sucumbe ao peso do sentido. A ironia é fina Figuras de enunciação: apóstrofe,
quando seu verdadeiro sentido se deixa esperar, quando sua prosopopéia, preterição, epanortose
vítima é a última pessoa a percebê-la; indo mais longe, pode-se
dizer que é aquela cujo sentido nunca ficará completamente Cettas figuras têm parentesco com a ironia, mas sua antí-
claro, que sempre deixará alguma dúvida. frase diz respeito à enunciação, e não ao enunciado.
Por que é engraçada? Por certo há sempre uma dose de A apóstrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguém dife-
alegria sádica na ironia, o "prazer maligno" de ver a bola mur- rente do auditório real, para persuadi-lo mais facilmente. O
134 INTRODUÇÃO A RETÓRICA FIGURAS 135
auditório fictício pode ser um ser presente, mas na maioria das Figuras de argumento: conglobação,
vezes está ausente: são mortos, antepassados, a pátria, os deu- prolepse, apodioxe, cleuasmo
ses, qualquer coisa:
Existem, finalmente, figuras de pensamento dificeis de
Onde estou? O que vi? Enganais-me, olhos meus? definir sem recorrer à noção de argumento: mais que as outras,
elas demonstram a existência de laços íntimos entre estilo e ar-
Para o TA, esta seria uma "figura de comunhão" (p. 240), gumentação.
que une o auditório ao orador. Para nós é mais uma figura de A prolepse antecipa o argumento (real ou fictício) do ad-
amplificação, que permite ultrapassar o auditório real em dire- versário para voltá-lo contra ele: Dizer-nos que ...
ção a um auditório (mais) universal, ou, inversamente, em di- A conglobação acumula argumentos para uma única con-
reção a um indivíduo que personifique o auditório universal. clusão. A expolição retoma o mesmo argumento com formas
A prosopopéia consiste em atribuir o discurso a um orador diferentes. A pergunta retórica apresenta o argumento em for-
fictício: antepassados, mortos, leis, como Sócrates em Críton, ma de interrogação.
que é interpelado pelas leis de Atenas: O c1euasmo consiste no desgabo que o orador faz de si
mesmo, para angariar confiança e simpatia do auditório: Talvez
O que tentas (ao fugir), seria outra coisa senão destruir- eu esteja sendo tolo, mas... Figura do etos, o c1euasmo também
nos, a nós, as leis ... ?8 afirma a vingança do bom senso sobre os especialistas ou os
eruditos, da vivência sobre o livresco, da ingenuidade sobre a
A preterição, muito próxima da aposiopese, consiste em sofisticação. Desse modo, o criado Sganarello diz a Don Juan:
dizer que não se vai falar de alguma coisa, para melhor falar
dela. Eu também poderia ter dito que... Como se lê no TA, ela é De minha parte, senhor, nunca estudei como vós, graças a
"o sacrificio imaginário de um argumento" (p. 645). Deus, e ninguém poderia se gabar de alguma vez ter-me ensina-
A epanortose consiste em retificar o que se acaba de dizer: do algo; porém, com meu modesto senso, meu modesto juízo,
Ou melhor... Também é uma intrusão do código oral na língua enxergo melhor que os livros ...
escrita; faz o discurso parecer mais sincero e, ademais, faz o au-
ditório participar do encaminhamento dado pelo orador. A apodioxe é a recusa argumentada de argumentar, quer
A contrafisão é uma espécie de optativo que sugere o con- em nome da superioridade do orador (Não tenho lições para
trário do que diz: Tenhamfilhos então! receber ... ), quer em nome da inferioridade do auditório (Não
A epítrope ou permissão é uma figura de indignação que cabe a vocês dar-me lições ... ) Trata-se de uma espécie de vio-
finge aceitar um ato odioso de alguém para sugerir que esse lência verbal. Mas será só isso?
alguém seria capaz de cometê-lo:
Somos todos judeus alemães.
Eis aqui sangue, vem beber. .. (cf. texto 5)
O célebre slogan de maio de 1968 respondia a quem ale-
Assim como a hipérbole, sublinha um argumento de di- gava que oPlíder esquerdista Cohn-Bendit, sendo filho não na-
reção. turalizado de judeus alemães, não podia dirigir um movimento
político francês. O slogan não recusava o diálogo, mas rejeita-
va o pretenso acordo prévio imposto pelos adversários para que
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