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O Principio do Anonimato na Inseminacao Artificial com Doador (IAD): Das Tensies entre Natureza e Cultura TANIA SALEM* “Artholds the mirror up to nature, Science holds Lhe mirror up to society.” (The Economist, 8111994) Introduciio Intimeros sfo og dilemas éticos que vém sendo suscitados pelo avango na pesquisa e aplicag’o das técnicas de reprodugao assistida (TRA), A adminis- tragfio da doagdo de esperma, de ovos ¢ de embrides; o destino e propriedade. de embrises suplementares; a prdtica do “aluguel de (itero”; o debate sobre a legitimidade do acesso de homens e mulheres solteiros, bem como de casais homossexuais, a esses servicos; a propensdo eugénica possibilitada pelo avancgo da engenharia genética sfio, dentre outras, questées inauguradas ha menos de 20 anos — momento em que se realiza a primeira fertilizagao in vitro no mundo, em 1978. Novos recursos ¢ técnicas em matéria de reprodugao so noticiados, em ritmo cada vez mais acelerado, nas primeiras paginas de jornais ¢ revistas direciona- das ao grande ptiblico: no final de 1993, por exemplo, para regozijo de uns € * Professora do Instituto de Medicina Social da UERJ. 34 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5. Némero 1. 1995 indignagao de outros, foram anunciadas a clonagem de embrides hamanos, a impregnagio de mulheres em pés-menopausa ¢ a implantagao de oves fertili- zados de mulheres brancas em mulheres negras. Cientistas acenaram ainda com a possibilidade, em futaro préximo, de recorrer a dvulos de fetos abortados ¢ de transplantar ovarios desses mesmos fetos em mulheres com problemas de. infertilidade. Muitos diagnosticam, e lamentam, o hiato entre o acelerado avanco das TRA e a incapacidade da sociedade de digerir e lidar juridica e eticamente com os novos desafios. Ac mesmo tempo, as intengdes de legislar e impor limites sdo muitas vezes contestadas, com o argumento de que elas constituem uma invasdo ilicita na privacidade e no “direito de procriagao” de casais e/ou de individuos, bem como uma afronta 4 liberdade de pesquisa. E bem verdade que alguns consensos éticos minimos foram estabelecidos s ¢ doadores como, por exemplo, 0 “consentimento informado” dos pacient envolvidos na reproduciio assistida; a preocupagie coma minimizagiio de riscos para a gestante, o feto e os doadores, o exame minucioso dos tltimos de modo a afastar a possibilidade de transmissdo de doengas hereditarias; 0 manuseio apropriado de embrides congelados ou no etc, Por outro lado, afora ser plausivel sugerir que tais ques(6es sé se afirmam como consensuais emi virtude da generalidade de suas formulacGes, admite-se que a cena est4 dominada pela confusio, por duvidas ¢ controvérsias. Com efeito, diferentes pafses, sociedades médicas ¢ comités de ética vm se posicionando de modo diverso em face das novas questdes. Exatamente por isso é intrigante constatar, em um cendrio tio convulsionado, @ presenga de uma norma quase que universaimente adotada: 90 princfpio do anonimato da terceira parte envolvida na concepedo.' A regra reza que 0 doador nie pode conhecer a identidade do casal receptor, nem este a do doador e. com vistas a tal fim, elidem-se os eventuais elos e relagdes entre eles. Também é curioso que, justamente em um contexto em que a técnica promove, de forma crescente, a visibilidade e a “transparéncia”,” a “escolha” social imponha a ocultagao & figura do doador(a). Deve-se entretanto registrar que, ao menos em alguns pafses, a exigéncia do L.A expressdo “lerceira parte envotvida na coneepedio” come denotando 6 coador é de uso corrente ra literatura, Ela contém, entretanto, soh certo ponto de vista, uma imprecisio, posto que quando a (éenivas de reprodugao assistida recorrem & doagiio de gametas, 20 menos um dos cénjuges estd biclogicamente excluido do ato da fevundagdo. Por conseguinte, a expresso s6 faz sentido caso se considere a ~primcira parte” como aludindo 1 muther sobre quem s¢ realiza a intervengdo € a “segunda” ao corpo médico, Registro ainda que, mesmo quando apenas um dos patceitos éincapaz, de procriar, 2 qualificagto de “infértil” recai sobre o casal. Por te76es de conveniéncia de redagio, adoto-a aqui. 2 LTostars, L’Ouuf Transparent, Paris, Flammarion, 1986. 0 Principio do Anonimato na Iaseminagio Artificial com Doador (TAD) 35 anonimato nao se afirma como peculiar a0 campo das TRA. S. B. Novaes salienta que um anteprojeto de lei proposto pela Assembléia Nacional francesa, em 1992, estipula esse dispositive como aplicavel a “qualquer dom e A utiliza- Giio de partes e produtos do corpo humano”. Ainda assim, a lei prevé excegdes pata casos de “necessidade terapéutica”, 0 que a torna mais maiedve] de modo a permitir que certas praticas — como, por exemplo, a doagdo de rins entre parentes — no sejam interditadas, Mas, ao focalizar a esfera da reprodugdo assistida, Novaes insiste em que a regra do anonimato, sobretudo quando aplicada a doagdo de esperma, apresenta um cardier significativamente mais rigido.* Tal princfpio 6, em tese, aplic4vel ndo sé ao dom de esperma, mas também ao de ovos e embrides. Contudo, ¢ ainda que tanto a prdtica quanto a reflexdo sobre doagées femininas se encontrem em um estagio menos avancado relati- vamente 4 inseminagao artificial com doador anénimo (IAD), pode-se afirmar qne a tegra do anonimato, quando aplicada a doagiio de ovos, apresenta um carfter mais maledvel comparativamente a de esperma. Assim é que, embora o Comité Warnock tenha advogado, em 1984, a doagio anénima de ovos, suas recomendagSes abrem uma significativa exceg&o para os casos em que a doadora seja parente ou amiga préxima da muJher demandante.* Price assinala, ainda, que alguns médicos ingleses vém se declarando favordveis & doagio de ovos entre irmas, alegando que 0 procedimento constitui uma forma de “pre- servar a continuidade genética familiar” > O argumento nao encontra paralelo no que respeita A doagao de sémen; pelo contrério, impée-se af um “afastamento quase obsessivo entre doadores € receptores”.* A prittica genericamente designada de “mie substituta” também implica uma doacéo feminina: seja de ovos e temporariamente do Utero para levar a gravidez atermo (surrogate genetic mother), seja apenas do iitero (surragate gestational 3. S.B. Novags, Le Principe de !Anonytat: Point de Vue Sociologique, trabalho apresentado na ‘Septidine Joumnée de Périconceprologie, Toulouse, 27-29/5/1993, pp. 1-3, datilo. 4, M, Warnock, A Question of Life: The Warnock Report on Human Fertilisation and Embryology, Oxford, Blackwell, 1985, pp. 25 e 37. Esiabelecido pelo governo britinice em 1982, coube a0 Comité Warnock — composio de médicos, acvogados, tedlogos, cientistas sociats, fildsofos e cidaddos comuns — exeminar as implicagGes ciemtficas, éticas ¢ legais embutidas nas TRA ¢, a0 snesmo tompo, formular sugesties para a claborazao de politicas pblicas concernentes. Em julho de 1984 0 Comité produzin seu relatério final, publicado no ano seguintc, Suas recomendacdes sio fundamemtais para a atual legislagao britanica na érca, ¢ constituem referencia obrigat6ria para os que irabalham com 0 tema, 5. F, Price, “Beyond Expectations: Clinical Practices and Clinical Concerns”. in J. Edwards et alii, Technologies uf Pracreation, Kinship is the Age of Assisted Conception, Manchester, Manchester University Press, 1993, p. 35, 6. G.D. Parseval e A, Janavd, E'Enfant a tout Prix: Essai sur fa MEdicalisation du Lien de Fitiation, Paris, Seutl, 1983, p. 221

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