SOCIAIS
Relatório
da Comissão Gulbenkian
sobre a reestruturação
das Ciências Sociais
PUBLICAÇÕES EU ROPA•AMÉRICA
PARA ABRIR
AS CIÊNCIAS SOCIAIS
COMISSÃO CALOUSTE GULBENKIAN
PARA ABRIR
AS CIÊNCIAS SOCIAIS
PUBLICAÇÕES EUROPA~AMÊRICA
Título original: Open tire Social Scienres
Cura: estúdio~ P. E. A.
Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda .•
Mira-Sintra - Mcm Martins
COMISSÃO GULBENKIAN
PARA A REESTRUTURAÇÃO
DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Comissão criada
pela Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa.
I
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DAS CIÊNCIAS SOCIAIS,
DO SÉCULO XVIII ATÉ 1945
1
fER:S:AND 8RAUDEL
15
(0.\1/SS iO GUl.8c.NKU,\'
/6
f't\Rt\ t\lllUR t\S Ctf.NC/AS SOC/t\l.\
2
Apttd Sir llenry Lyons, Tlte Royal Society, 1660-1940 Jova Iorque:
Greenwood Press, 1968), p. 41.
Dlvtrsos-2
17
COlflSS.40 GULBENKIAN
/9
COMJSS,\0 GULBI \KIAN
21)
PARA ABRIR AS Clt:NC/AS SOCIAIS
4
Este fenómeno transparece claramente tanto em Inglês como nas lín-
guas românicas. É menos claro em Alemão, onde a palavra Wisscnscluift
continua a ser utilizada como termo genérico para o conhecimento sistemá-
tico e onde as chamadas «humanidades» são designadas por Geisteswis-
senschaften, o que à letra significa conhecimento das coisas do espírito ou da
mente.
21
quem havia de controlar o conhecimento relativo ao num2-o
humano.
A necessidade, sentida pelo Estado moderno, de possuir
um conhecimento ma is exacto sobre o qual pudesse basear as
uas decisões havia conduzido ao surgimento de novas cate-
gorias de conhecimento já no século xvm, no entanto, tais ca-
tegorias afiguravam-se ainda incertas nas suas definições e
fronteiras. Os filósofos sociais começaram, então, a falar de
uma «física do social», e os pensadores europeus começaram
a reconhecer a existência, no mundo, de múltiplas espécies
de sistemas sociais («como é que se pode ser persa?»), cuja
variedade se impunha explicar. Foi neste contexto que a uni-
versidade (que em larga medida se revelara uma instituição
moribunda desde o século xvi, por força da sua anterior liga-
ção estreita à Igreja) foi revitalizada nos finais do século xvm
e princípios do século XIX, tornando-se o lugar institucional
preferencial para a criação de conhecimento.
A universidade conheceu, assim, um processo de revitali-
zação e transformação. As faculdades de Teologia perderam
importância - por vezes desaparecendo completamente, de
outras vezes dando lugar a simples departamentos de es-
tudos religiosos no interior das faculdades de Filosofia. As
faculdades de Medicina mantiveram a sua função de centros
de formação prática numa área profissional específica, de-
finida agora inteiramente como conhecimento científico
aplicado. Seria, antes de mais, no interior das faculdades de
Filosofia (e, em grau consideravelmente menor, nas faculda-
des de Direito) que iriam ser erigidas as modernas estruturas
do conhecimento. Seria, enfim, na faculdade de Filosofia
(que em muitas universidades se manteve estruturalmente
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PARA ABRIR AS ClflNCIAS SOCIAIS
23
CO.\FJSS\O Ol'LBENKJA1
u
!'ANA AIIRIR AS CltNCIAS SOCIAIS
•.. - -
tica enquanto actividade não empírica), seguida do estudo
das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a
escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se
aproximavam muitas vezes da própria história, ao prefigura-
rem-se como uma história das artes. Por fim, entre as huma-
nidades e as ciências naturais ficava o estudo das realidades
ociais, com a história (ídíográfíca) a situar-se junto das facul-
dades de artes e letras ou mesmo no seu interior e com as
«ciências sociais» (nomotéticas) na proximidade das ciências
da natureza, Postos perante uma separação cada vez mais rí-
gida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas
com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das
realidades sociais viram-se como que entalados e profunda-
mente divididos por estas questões epistemológicas.
Tudo isto, porém, se desenrolava num contexto em que a
ciência (newtoniana) havia triunfado sobre a filosofia
(especulativa), afirmando-se como a incarnação mesma do
prestígio social no mundo do conhecimento. Augusto Com-
te tinha-se referido ao corte entre ciência e filosofia em termos
de um divórcio, não obstante ele representar de facto, antes
de mais, uma rejeição da metafísica aristotélica e não tanto de
preocupações filosóficas propriamente ditas. Mesmo assim,
.,. _
26
PARA ABRIR AS Clf.NCIAS SOCIAIS
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COMISS~O GULBI-.NA.IAN
---
poder espiritual. A base tecnocrática e a função social da
nova física social tornavam-se, ãss:im, evidentes. - -
- Dê acordo com esta nova estrutura do conhecimento, os
filósofos tomar-se-iam - para usar uma expressão bem
conhecida - «especialistas em generalidades». O que isso
significava era que eles iriam aplicar ao mundo social a lógica
da mecânica celeste (aperfeiçoada pela versão laplaciana do
protótipo de Newton). A ciência positiva visava a libertação
total relativamente à teologia e à metafísica, bem como a
todos os demais modos de «explicação» da realidade. <'A
nossas investigações positivas [ ... ] devem limitar-se, sob
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/'ARA AIJRIR AS Clf.NCIAS SOCIAIS
-
sidade intelectual reflectida nas estruturas disciplinares das
ciências sociais teve um reconhecimento formal por parte das
principais universidades, sob as formas por que hoje as
conhecemos. É certo que já entre 1500 e 1850 existira biblio-
grafia respeitante a muitas das questões centrais tratadas
das Coílecreâ Works of John St11nrt Mil/ (Toronto; Univ. of Toronto Press,
1974), Livro VI, cap." tn. par. 2, p. 846.
29
COMf.'i'S,\O GULBENKIAS
--
O primeiro aspecto a registar é onde é que esta institucio-
nalização teve lugar. No decurso do século xrx a actividade
das ciências sociais deu-se em cinco espaços principais: a
Grã-Bretanha, a França, as Alemanhas, as Itálias e os Estados
Unidos. A maioria dos estudiosos e das universidades (em-
bora não todos, obviamente) encontrava-se num destes cinco
espaços. Quanto às universidades dos restantes países, falta-
va-lhes o peso ou o prestígio internacional das destes cinco.
E até hoje a verdade é que a maior parte das obras oitocen-
tistas que ainda lemos foram ali escritas. 1
JZ
f'AIU AIIRIH AS CltNCIAS SOCIAIS
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OMISS.~O GULBENKU,"''
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!'AR/\ AIJRIR AS CllNCIAS SOCIAIS
I
política (um termo igualmente novo, que designava, de
forma bastante literal, a macroeconomia ao nível das socie-
dades políticamente organizadas), a estatística (outro termo
novo, que inicialmente designava os dados quantitativos re-
/
lativos aos Estados), e as Kameralwissenschaften {ciências da
administração). A jurisprudência já era ensinada nas facul-
dades de Direito das universidades, e, quanto às Karneralwís-
senschaften, é no século xv111 que passam a ser matéria de es-
tudo nas universidades alemãs. Contudo, só no século xix é
que começamos a encontrar urna disciplina chamada econo-
nuã ,umas vezes no interior da faculdade de Direito, mas
mais frequentemente na faculdade (por vezes ex-faculdade)
de Filosofia. E dadas as teorias económicas liberais preva-
lecentes no século xrx, a expressão «economia política» (uma
expressão corrente no século xvm) desaparece, na segunda
metade de oitocentos, em favor da palavra «economia». Ao
descartarem o adjectivo «política», os economistas ficavam
em condições de defender que o comportamento económico
era reflexo de uma psicologia individualista universal e não
de instituições socialmente construídas, argumento que pôde
então ser utilizado para afirmar o carácter natural dos prin-
cípios do laissez [aire.
A presunção de pressupostos universalizantes por parte
da economia fez ~n que o estudo desta se tomasse muito
voltado para o presente. Em consequência desse facto, a his-
-... -
tória económica foi sempre relegada para lugares inferiore
nos currículos da economia, e quando surge como subdisci-
plina essa evolução dá-se mais a partir da história (da qual se
irá parcialmente separar) do que da economia. A única
grande tenta tiva feita no século '<t x no sentido de desenvolver
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CO.UISS,\O (;Ul..BE,\'KfAN
uma ciência social que não fosse nem nomotética nem idio-
grâfica, mas antes uma busca das leis subjacentes a sistemas
ociais caracterizados por uma especificidade histórica pró-
pria, fui a construção, na área alemã, de um campo do saber
chamado Str1afswissenscl111ften. Abrangendo uma mistura de
aberes que (para usar uma linguagem actual) incluía a his-
tória económica e a jurisprudência, a sociologia e a economia,
o campo em questão caracterizava-se por acentuar a especi-
ficidade histórica dos diferentes «Estados», abstendo-se de
estabelecer as distinções entre disciplinas que então começa-
vam a ser prática corrente tanto na Grã-Bretanha como na
França. A própria designação de Staa.tswissenschaften (ou
«ciências do Estado») apontava já para a circunstância de os
eus proponentes procUiarern preencher aproximadamente
o mesmo espaço intelectual antes ocupado pela «economia
política» na Grã-Bretanha e na França, desempenhando assim,
por conseguinte, a mesma função de facultar aos Estados um
conhecimento útil, pelo menos a longo prazo. Esta invenção
disciplinar conheceu um florescimento acentuado, sobre-
tudo na segunda metade do século xrx, vindo no entanto a su-
cumbir em face dos ataques dirigidos do exterior e de uma
certa tibieza interna. Na primeira década do século xx, as
ciências sociais alemãs começaram a adaptar as categorias
disciplinares em vigor na Grã-Bretanha e na França. Alguns
dos principais vultos das Staatswissenschaften, como Max
Weber, encabeçaram a fundação da Sociedade Alemã de So-
ciologia. Por altura da década de 20, a palavra Sozialswíssen·
sclrnflen (vciêncías socíais») havia substituído a designação
Staatswissenscliaften.
Ao mesmo tempo que a economia- nomotética e voltada
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PARA AIJRIR AS CtfiNCIAS SOCIAIS
-
menos à análise nomotética, mas antes de mais devido à
-
resistência oferecida pelas faculdades de Direito quanto a
ceder o monopólio que detinham nesta área. A resistência a
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CO.WSSÃO GUIBl-~\'l..'I:\,\'
-
rias no século xrx (e de facto até 1945), o quarteto por elas
- não
constituído -- só-se limi tau a ser praticado nos cinco países
em que elas tiveram, colectivamente, origem, como se dedi-
cou, em grande medida, a descrever a realidade social desses
mesmos países. Não se pode dizer que as universidades dos
cinco países em causa ignorassem o resto do mundo. O que
sucedia é que nelas esse estudo era segregado para disci-
plinas diferentes.
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PARA ABRIR AS Clf:.NCIAS SOCIAIS
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CO~IISS.~O GIJLBt::NKIA,\'
d os antropólogos
... - ----- --
da ilha de Guam e dos índios americanos). O enraizamento
- foi Q factor
nas estruturas da universidade
.,______ -~
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PARA ABRIR AS CJf.NCJAS SOCIAIS
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C<)\IISS.~0 GUlRF..\'1".\
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COMISS,iO GULBENKIA
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l'AHA AHRIR AS CttNCIAS SOCIAIS
•
campos que nunca lograram ser componentes basilares das
ciências sociais: a geografia, a psicologia e o direito.~ ~eo~ra-
fia, tal como a história, correspondia a uma prática já antiga.
Nos finais do século xrx ela procedeu à sua própria reconstru-
ção como disciplina nova, sobretudo nas universidades ale-
mãs, que assim serviram de inspiração à evolução verificada
noutras paragens. Apesar de partilhar com as ciências sociais
as suas grandes preocupações, a geografia resistiu à_categori-
--
zação. Procurou fazer a ponte com as ciências naturais pela
via da atenção à geografia física e com as humanidades pela
via da atenção à chamada geografia humana (desempe-
nhando um trabalho de algum modo semelhante ao dos an-
tropólogos, se bem que com uma ênfase nas influências exer-
cidas pelo meio). Além disso, durante o período anterior a
1945 a geografia foi a única disciplina que se esforçou de
forma consciente por ter uma prática verdadeiramente
mundial quanto ao seu objecto de estudo. Essa foi a sua vir-
tude, e porventura também a sua perdição. À medida que,
nos finais do século xix, o estudo da realidade social se foi
compartimentando em disciplinas distintas, de acordo com
uma nítida divisão do trabalho, a geografia tornou-se anacró-
nica devido ao seu pendor generalista, sintetizante, e não
analítico.
Talvez em resultado desse facto, a geografia manter-se-ia,
durante todo o período em causa, uma espécie de parente
pobre tanto em número como em prestígio, servindo fre-
quen temente como mero acólito da história. Em consequên-
cia, o tratamento do espaço e dos lugares nas ciências sociai
foi relativamente negligenciado. A tónica posta no progresso
e as políticas para a organização das transformações sociai
fizeram com que a dimensão temporal da existência social
adquirisse uma importância de primeiro plano_, mas deixa-
am a dimensão 1t-spacial no limbo da indefinição. Se os pro-
a:sMJS eram universais e subordinados a um determinismo,
o espaço era teoricamente irrelevante, Se eram praticamente
úniros e irrepetíveis, então o l"'SpclÇO não passava de um mero
aspecto (e um aspecto menor) daquilo que era específico.
Segwido a primeira perspectiva, o e-paço era encarado
simplesmentecomou.maplatafozmaemqueororriamaconte-
címentos ou se desenrolsvam p.roce.ssos - um espaço es-
senciaJmente inerte e como que voláni De acordo com a
segunda. perspectiva, o~ -paço
- pa.ssaYa a Sia""umcontextoque
exercia urna determinada influência sobre os acon~entos
(fosse na história idiog:rá.fica, nas relações íntemacíonaís de
cariz realista, nos • efeitos de vizinhança», e até mesmo nas
extemalidades e nos processos de aglomeração marshal-
líanaj. Na sua maior parte, porém, esses efeitos contextuais
eram vistos como simples influêru:ias-aspectos residuais a
ter em conta para se obter melhores resultados empíricos,
mas não essenciais para a análise ..
Apesar disso, na prática as ciências sociais baseavam-se
numa visão específica-ainda que não assumida -da espa-
cialidade. O conjunto de estruturas espaciais que, no pressu-
posto dos cientistas sociais, presidiam à organização da vida
das pessoas eram os territórios soberanos que celectíva-
menle definiam o mapa político mundial. Ka sua grande
maioria, os dentistas sociais tinham como assente a ideia de
que estas fronteiras políticas fixavam os parâmetros es-
paciais de outras interacçêes fundamentais: a sociedade do
sociólogo, a economia nacional do macroecenemista, o sis-
tema político do cientista político, a nação do historiador.
!'ANA Ali/UI< AS Cl[NC/AS SOCIAIS
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COMISSÃO Gl.JLBt.,\'Af,111.1
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PARA AIJNIR AS CttNC/AS SOCIAIS
Dl'i'tnms-.J 49
·ito de sobrevivência do mais apto foi sujeito a
muitos usos e abusos ~ frequentemente confundido com o
Je éxito po.r via da competição- .Assi ... -
da
PARA ABRIR AS C!Í:NCIAS SOC/,HS
5/
egiaraman-
história:
te regem
mportamentn humano; a prennczo
enómenos a estudar como
idualizadas); a necessidade de segmentar a realidade hu-
mana para poder analisá-la; a possibilidade e a vantagem de
recorrer a métodos estritamente científicos rcomo seja a for-
mulação de hipóteses teóricas, a testar posteriormente em
confronto com as provas disponíveis e através de procedi-
mentos rigorosos e, se possível, quantitativos): a opção por
provas produzidas de forma sistemática (como por exemplo
ados obtidos através de inquéritos por questionário) e pela
observação controlada, de preferência a textos preexistentes
e a outros elementos residuais.
ma vez estabelecida, assim, a separação entre as ciência
sociais e a história idiográfica, os cientistas sociais de orien-
tação nomotétíca - economistas, cientistas políticos e soció-
logos - mostraram-se, eles também, ansiosos
... - __ ~.
por demarcar
,._.-.,....,..
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CO,lfl.'iS·iO GVUIF.VKIA
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