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CONTEMPORÂNEO: CONTRIBUIÇÕES DO
PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER
RESUMO: O artigo tem por objetivo explicitar a pertinência e a atualidade do Personalismo, tal
como elaborado por Emmanuel Mounier, para o desenvolvimento do projeto civilizatório
contemporâneo, em geral, e para a educação em particular. Para tanto, após breve informação
sobre sua trajetória intelectual e atuação de liderança cultural de Mounier, no entre-guerras,
esboça as grandes linhas de seu pensamento, consubstanciadas em torno de suas duas categorias
fundamentais, quais sejam, a pessoa e a comunidade. Argumenta-se que o alicerce de sustentação
dessa sua proposta politico-pedagógica encontra-se na eminente dignidade de que é detentora a
pessoa humana, simultaneamente imanente e transcendente em suas relações com o mundo
objetivo da natureza e da sociedade. Visa-se então a construção de uma nova existência
comunitária, desencadeada com base no conhecimento objetivo e crítico da realidade social
opressora, cabendo à educação a tarefa de despertar as pessoas, conscientizando-as da “desordem
estabelecida” social vigente e apelando-as a uma práxis transformadora dessa realidade.
PALAVRAS-CHAVES: Pessoa, Personalismo, Comunidade, Formação humana, Práxis politico-
pedagógica.
ABSTRACT: The purpose of this article is to elucidate the pertinence and currentness of
Personalism, as elaborated by Emmanuel Mounier, for the development of the contemporary
civilizational project, in general, and for education in particular. Therefore, after a brief overview
of Mounier’s professional career and cultural leadership role in the interwar period, the main
lines of his thinking are outlined, embodied around person and community, his two fundamental
categories. It is argued that the foundation that provides support to this political-pedagogical
proposal lies in the eminent dignity that the human person holds, simultaneously immanent and
transcendent in their relations with objective world of nature and society. It aims to build a new
community existence, triggered on the basis of objective and critical knowledge of the oppressive
social reality, with education being the task of awakening people, making them aware of the
"established disorder" social in effect, and urging them to a praxis that transforms this reality.
KERYWORDS: Person, Personalism, Community, Human formation, Political and pedagogical
praxis.
Introdução
Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através dele, exponho-me a mim
próprio, ao mundo, aos outros, através dele escapo à solidão de um pensamento que mais
não seria do que pensamento do meu pensamento. Recusando-se a entregar-me a mim
próprio, inteiramente transparente, lança-me sem cessar para fora de mim, na
problemática do mundo e nas lutas do homem. (Mounier, O Personalismo, p. 37)
significativas para uma prática substantiva e pertinente da reflexão filosófica, ainda nos dias
atuais.
A contribuição que gostaria de hoje trazer com esta breve reflexão é a de que o
pensamento personalista, tal como concebido e articulado por Mounier, continua
expressando, na atualidade, uma contribuição muito relevante perante a demanda por uma
nova civilização. Seu projeto filosófico continua representando referência fundamental para o
projeto civilizador que a humanidade ainda tem que conceber e implementar. E a pedra de
toque, o seu grande legado, para a reflexão ético-política que deve fundamentar esse projeto
é a sua concepção da pessoa humana, como núcleo conceitual e valorativo básico, portadora
que é de eminente dignidade. A dignidade humana é a referência nuclear e central da ação
adequada à humanidade, a única base para nosso agir consequente, com vistas à construção e
implementação de um novo projeto de civilização.
referência necessária para o melhor entendimento de sua obra, por se tratar de um pensador
que uniu, radicalmente, o pensamento teórico com a prática político-social1.
Participou intensamente da história de sua época, a partir de sua sociedade local, mas
sempre com uma perspectiva universal. E essa participação expressava o seu perfil
existencial, feito de tensão entre o recolhimento em si e a abertura ao outro, decorrente da
tensão ontológica entre imanência e transcendência...
Nasceu e foi criado no seio de uma família católica, que lhe assegurou uma infância
feliz. Seu extremado respeito pela família o fez acatar a sugestão de seguir a carreira da
Medicina, tendo se inscrito na Faculdade de Ciências, embora se sentisse atraído pelas Letras.
Logo se deu conta que tomara um caminho errado e decidiu mudar de rumo, no que contou
com o apoio da família. O pai o apresentou então a Jacques Chevalier, professor de Filosofia
em Grenoble. Foi então estudar Filosofia ao mesmo tempo em que se engajava no apostolado
leigo, trabalhando no esclarecimento dos jovens sobre a Ação Francesa. Conheceu Mons.
Guerry, depois bispo de Cambrai, que era muito envolvido com a pastoral da pobreza.
Terminados os estudos em Grenoble, foi para Paris, prestando concurso para o doutorado na
Sorbonne, tendo sido classificado em 2º. lugar, depois de Raymond Aron. Recomendado por
Chevalier, estabeleceu contato com Jean Guitton e Jacques Maritain, bem como com o Pe.
Pouget, um lazarista místico, que muito vai influenciá-lo em sua formação teórica e em suas
opções existenciais. Muito aprecia o pensamento de Péguy, através do qual se aproxima
1Os interessados em conhecê-lo mais aprofundamente podem recorrer a vários estudos já publicados entre nós,
destacando-se Moix (1968), Domenach (1969), Lacroix(1972), Lorenzon (1990), Severino (1983b), Villela-Petit
(2005) Bingemer (2007), identificáveis nas referências bibliográficas finais.
Após o fim da guerra, volta a Paris, relançando a revista Esprit e dando continuidade a
sua atuação organizativa e intelectual, sobretudo publicando seus trabalhos, escritos
avulsamente até então. Saúde abalada, acabou vítima de um colapso cardíaco em março de
1950.
Mounier pertenceu a uma geração que, em meados do século XX, toma consciência da
grave crise por que passava a civilização cristã-ocidental. Trata-se de crise muito semelhante
àquela ocorrida ao final da Medievalidade. Por isso o mote é refazer o Renascimento.
As razões pelas quais Mounier pleiteava, na primeira metade do século XX, um novo
renascimento continuam presentes no contexto da sociedade contemporânea, em que pesem
as mudanças em algumas de suas configurações. A pretensa nova ordem mundial continua
sendo uma “desordem estabelecida” (MOUNIER, 1962b, p. 477).
Com efeito, não estamos vivendo hoje uma sociedade que fosse marcada por um novo
ordenamento, sob uma nova ordem mundial. Os grandes avanços tecnológicos deram ao
homem maior domínio sobre o planeta, mas esse crescimento do poder de manipulação do
mundo material não se fez acompanhar de um crescimento qualitativo nos âmbitos ético e
político nem na esfera econômica. Muito menos nos encontramos num mundo pós-moderno,
pois o que vivenciamos hoje é a plena realização das promessas da modernidade iluminista e
liberal, desencadeada e sustentada pelas injunções do racionalismo, no plano epistemológico,
pelo capitalismo, na esfera econômica, e pelo liberalismo, no âmbito político-ideológico. A
nossa atual sociedade continua marcada por um exacerbado individualismo, acirrado agora
pelo consumismo desenfreado num cenário de opulência desigual e de pura competitividade.
A vida do espírito está totalmente condicionada pelos ditames da indústria cultural. A ética
moldada num hedonismo egoístico e narcísico.
Nesta linha, a filosofia personalista tem um diferencial no sentido de que “apela” para
o engajamento. Ela engaja um engajamento. Para ela, o filósofo tem que ser simultaneamente
profeta e pedagogo, respondendo pela denúncia, pelo anúncio e pelo encaminhamento de
propostas de ação histórica. Não endossa o silêncio dos intelectuais, seja ele o silêncio da
omissão ou não. Cobra necessária militância intelectual, não só pela análise fria e neutra, mas
também pela crítica e pela proposta. Dos intelectuais se espera um necessário compromisso
político e que tenha discernimento competente e combatente (MOUNIER, 2004, p. 101-111).
comum e universal que une todos os homens ao mesmo tempo que reconhece sua encarnação
empírica. As estruturas mediante as quais o Personalismo descreve o universo pessoal
abrangem simultaneamente o absoluto de sua transcendência tanto quanto o relativo da
imanência instaurada por sua encarnação no mundo material
tinham de sobreviver. Não sem razão, insistia em reiterar que o marxismo representava “seu
batismo de fogo”. Seu inconformismo brotara de uma particular sensibilidade que tinha à
violação histórica da dignidade do ser humano (MOUNIER, 1962a, p. 132)
2A escravidão é a demonstração mais efetiva e concreta da negação da dignidade humana do outro. Na condição
de escravo, o ser humano é reduzido à condição de ser puramente natural, como se fosse um animal de carga.
O Personalismo leva em conta, antes de mais nada, a condição real do ser humano
como entidade natural e histórica. O homem está, por sua própria condição, lançado no
mundo, aí é sua casa. A convergência do Personalismo com algumas teses do marxismo
advém dessa sensibilidade à encarnação do homem. O mundo não é apenas um vale de
lágrimas provisório mas o habitat real da humanidade.
Em que pese o Personalismo mounierista ter perdido bastante seu impacto político e
sua força de inspiração filosófica nos contextos socio-culturais do Ocidente, vítima que foi
de cerrado questionamento ideológico, ele constitui, na verdade, um referencial filosófico de
extrema relevância. Todas as conquistas teóricas que hoje têm ganhado reconhecimento no
contexto da filosofia pós-moderna, por exemplo, foram antecipadas pelo Personalismo na
primeira metade do século XX. Mas, a humanidade jamais conseguirá superar seus graves
problemas se não decidir apoiar-se numa concepção antropológica em que a dignidade do ser
humano, como pessoa livre e encarnada, tornando-a referência norteadora de todas as suas
ações, individuais e coletivas. Não se trata de elaborar novas metanarrativas, mas de
reconhecer a dignidade humana como o valor fonte para a ação que constrói a história.
À luz das referências filosóficas do Personalismo, cabe insistir que a educação não
pode ser concebida apenas um processo institucional, seu lado visível, mas fundamentalmente
como um investimento formativo do humano, seja na particularidade da relação pedagógica
pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva. As intervenções educacionais, mediadoras
universais e insubstituíveis da formação humana, ancoram-se na condição da educabilidade
do homem. O que está em pauta não é só a habilitação técnica mas uma autêntica Bildung, a
formação de uma personalidade integral, o investimento sistemático e intencionalizado na
construção do humano no homem, sua humanização, sua personalização.
Assim, é também por exigência ética que a atividade profissional dos educadores deve
se conceber e se realizar como investimento intencional sistematizado na consolidação das
forças construtivas das mediações existenciais dos homens. É isto que lhe dá, aliás, a sua
qualificação ética. O investimento na formação e na atuação profissional do educador não
pode, pois, reduzir-se a uma suposta qualificação puramente técnica. Ela precisa ser também
política, isto é, expressar sensibilidade às condições histórico-sociais da existência dos
sujeitos envolvidos na educação. E é sendo política que a atividade profissional se tornará
intrinsecamente ética.
também aos desafios que a educação brasileira precisa enfrentar para cumprir sua missão
intrínseca que é aquela de investir nas forças construtivas das práticas relacionadas ao
trabalho, à vida social e à cultura simbólica. O que se constata, todavia, a respeito da
educação brasileira, é que ela se encontra numa situação ainda muito deficitária, não só do
ponto de vista quantitativo, mas também do ponto de vista qualitativo. O deficit educacional
se apresenta em números muito elevados, uma vez que a efetiva prestação educacional é
ainda limitada e se expressa igualmente pela baixa qualidade da educação institucionalizada
que é oferecida.
Tal situação demanda de todos nós, sensíveis ao valor da dignidade da pessoa humana
e, portanto, de sua atitude ética, é o compromisso de fazer a prática político-educativa tornar-
se um investimento competente para a consolidação das condições de trabalho, para a
construção da cidadania, na esfera da vida pessoal e da democracia, na esfera da vida social, e
para a expansão da cultura simbólica, utilizando todos os recursos disponíveis e, de modo
especial, o instrumento do conhecimento. A educação é paideia/politeia, é movimento destinado
a despertar as pessoas históricas para seu compromisso historial, para refazerem então o
renascimento.
Conclusão
A análise que Mounier fez da civilização ocidental dos meados do século XX se aplica
perfeitamente ao que acontece hoje no Brasil, que não conseguiu implementar um projeto
civilizatório mais abrangente. Certamente, é preciso ainda fazer seu renascimento,
compreendendo, com isso, superar todos os índices de opressão, de exclusão, de pobreza e de
miséria, de modo que o ser possa superar o ter.
O que se pode perceber então é que aquilo de melhor que é pensado e realizado, hoje,
na esfera educacional, retoma essencialmente a inspiração madura, crítica e construtiva do
pensamento personalista que propõe e consolida um projeto humanista de transformação
qualitativa de toda nossa realidade individual e social.
Bibliografia
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