Você está na página 1de 18
rani De que trata a lingtistica, afinal?’ 1. OBJETIVO E OBJETO Seria de se esperar que pesquisadores e estuiliosos de wine disciplina soublessem exatamente do que trata essa disciplina, isto é, qual € seu “objeto de estado’, ‘Se passéssemos um questionério com essa pergunta a um grupo de lin- sistas, talver obtivéssemos urna resposta dominante: “Ora, a lingtistice € 0 ‘estudo cientifice da Tinguager humana”, Certamente tal “definigao” se en- contra em virios tratados de lingilstica © nesses textos, com. essa resposta suméria, considera-se encerrade o debate sobre a natureza do objeto da in~ vestigagio lingtstica, Se porventuca ainda se deixar espago para uma “epistemotogia” da lings- tica, esta se concentrard sobretudo na discussdo de questoes “raetodolégicas’, ou sea, na elucidagio do adjetivo “ccntifico” na definigdo acima: qual 0 mé todo (ou quais os métodos) que garantriam a “cientficidade” da Tngistica, que a qualificariam para merecer integralmente 0 titulo honorifieo de céncia, Vejamos algumas das razoes para duvidar da validade dessx posture: a) Bm primeiro lugas, ela adota implicitamente uma posicao relativa- mente ao objetivo da lingiistica. Grosso modo, essa posigio consiste em spor 7 Br cm ehborarto com o Prof Marcelo Dasa, da Universiade de Tel Avi sa DE QUETRATA ALINGOISTICA, AFINAL? 31 que 0 objetivo da lingtistica & fazer ciducia a espeito da linguagem. Obvia- mente, pata fazer sentido, tat caracterizagdo tem que s€ opor a outras, como, {fazer filosofia, fazer mégica, eriar efeitos esttios, fazer jomalisme etc. — todas tendo um mesmo objeto: a Hnguagem. Deixernos de lado a questio —~ diftcl — de como se distinguem entre si esses varios fazeres aplictveis a tum mestno objeto. Perguatema-nos, porém, se o “objet, 20 qual se aplicam os diferen- tes rodos de fazer, permanece efetivamente o mesmo. Ein outcas palavras, a linguagers, tal como manipulads ou enfocada pea Biosofia, peta magia, pela atividade est6tica(iteratura, por exemplo}, pelo jornalismo e pela Linguistica invariante, auto-identica, independentemente do enfoque? A resposta é, certamente, nZo! Ou seja, a escolha de umn objetivo relativa ‘mente a ahordagem de ura objeto determina, na verdade, uma visio, um modo de construir esse objeto. Ao escolher 0 objetivo fazer cincia, 2 lingtstica pro- poe de fato um modo de construir ou conceber seu objeto, a linguagern b) Ao se erigir em a citneia da linguagem, a Hingistica,além disso, se autocaracteriza como aquela dehtre as ciéncias que poderiam abordat a lin- ‘guagem (p. ex, a antropologia, a psicvlogia, a sociologia, a actstica, a neurofisiologia ete.) que dispde de um ponto de vista privilegisdo sobre esse cbjeto, ponto ce vista que captaria sua esséucia (na medida em que uma citncia pode captar a esséncia de uma cose) As demais disciplinas cientifi- «as, abordand a li € perifricos.O fato de “aceitarem” nomes compastos (“psicolingistica’, “an ‘ropologia inghistica, “neurolingiistica” et.) atesta sso. Soa lingusstica proper captaria (cientificamente) 0 objeto inguagem em sua totalidade © naquilo que tem de essencial A lingiistica constitutia assim mileo das ciéncias da linguagem, sendo as demais abordagens periféricas ou subsidirias. Eviden- temente, ssa diferenciagdo do estudo (cientifco) da linguagem em umm nti cleo e uma periferia contém, implicitamente, uma definigéo do objeto de cestudo, Por que deixar tal definigao implicita e, portanto, fora de debate? sgem, abordé-la-iam, entdo, de pontos de vista parciais ©) B sabido, & Juz da historiografia da ciéncia, que tanto a concepyio do “fazer ciéncia” em geral, como & concepgio do abjeto e dos métodos de cada ‘tncia particular estio em constante evolugdo historia. Quer s¢ concebs tal evolugio como linear ¢ cumulativa, quet como uma sucessdo de revolurdes ‘32 ENSAIOS DE FILOSCFIA DA LINGOISTICA cionifcas (como proposto por Thomas Kuhn), € claro que nto se pade to ‘mar pot 6x0 o concsito de citncia, tampouco a caracterizagio do abjeto de cada cincia, Por conseguinte, também as opasigdes cidncia vs. ndo-ciéncia € iiclea vs, periferia em cada tea vatiamn historicamente, ‘Todos os argumentos acima nos levam 8 conclusio de que, guelramos ou rio, a questdo do objeto da lingtistica nao pode ser deixada de lado por quem quer que deseje tomar conécigncia cas opges subjacentes & pratica da investigagio linguistica Um tipo de resposta possivel uo nosso questionsrio poderia ser a seguin te:“Nio sabemos qual o objeto da ‘lingiistice’ as such: mas cade um de nds sabe perfeitemente qual o objeto de sua expecializagdo deni da linguistice’ Seria absurdo supor que quem se ocupa de morfologia, fonologia,sintaxe, seanitntica, lenicografia, discurso, texto etc, nto saiba de que objeto se ocupa Logo, tant pis se nao dispomos de uina caracteri 120 generics do ubjeto da Jingistice, Para todos os fins pritigos e tedricas, basta dispor de caracteriea- ses apropriadas vara cada uma das reas de investigagio ent lingtistca, Evidentemente, tal resposta, em sus eparente modéstia, implica — ela também ~~ uma opge quanto a0 objeto dalingSistica: « opeao ce sgmen- tagao, Nao haveria um objeto, mas sim um “Eeixe” de fenémenos relacione- dos entre si, passiveis de ser estudados de pontos de vista diferentes ¢ inde- pendentes uns dos outros. Tal opedo jé no permitivia falar de “nédleo” € “periferi®’, tornaria sem sentido 2 busca saussuriana da homogeneidade do objeto da lingiistica, ¢ satisfaria os que se sertem vagamente atraides pelo “dadaismo epistemol6gico” (ver Feyerabend 1975). Mas nem por isso deixa de ser uma opeao dentre outrus possiveis. Os que a adotam tendem a distinguir, entre as subdisciplinas em que se fragmenta a linghistica, aquelas que sio mais “nobres” (sja por seu estado mais “avan- cado” de desenvolvimento € formatizacao, seja pela “centralidade” de seu objeto frente aos demais componentes da linguagem) © aquelas que s40 “marginais” ou *secundivias” Temos aqui, de novo, niicleo vs. perifera, #6 ‘que agora no interior da propria lingUistica, Na verdade, 2 questio qual é o objeto da lingitstica?, longe de ser uma ‘questo ingénua ou simplesmente descritiva,é a questo normativa bisica da DEQUETRATA ALINGUSTICA. Arial? 32 Linguistica, Este “deve por sua ver, aplictse mio apenas aos mcios pars atingir fin predeterminados, mes tambeit aos prdpios fins ou objetivo (P ex, deve a lingilstica ser cientiice) ‘A cada moments histérico da evolugdo da lingustica corresponde uma resposta (implicita ou explicita) a essa questo normativa, Seria pretensiaso de nossa parte procurar defender aqui « nossa oped normativa. O que fare mos 6 discutic as propostas alternativas de objeto existentes tanto no curso. dda historia de linguistica como em nossos dias 2, OBJETO OBSERVACIONAL E OBJETO TEORICO © mundo das eparéncias (0 mundo das coisa tais como se apresentar} um mundo de diversidade: pouco ou nada hé de comum na multiplicidade de coisas individuais, que parecer difericradicalmense umas das outras, As citnelas, assim como outtos espécies de saber, fazcm redugées parciais da diversilade, isto &, recortam 0 campo da diversidade observacional de ma neiras que thes parecer apinpriadas pata 0 tipo de entidades ¢ de explica- es que hes sto preferencias, Tomennos a terias da lu como exemplo. A teotin corpuscular da luz, que assume corpscilas como entidades bisicas, val privilegiae aqueles aspectos dos fendmenos luminosos que se prestam 3 eX plicagdo corpuscular saber, 2 propagaja da luz, Mesto dentro do campo resrito da propagecio, @ teoria corpuscular tem dificuldade pare explicar fendmenos como a inteferéncia e prefer, portant, concentrar-se em outros fendmenos, como a reflexto e a refragdo. Além disso, la deixa de lado quase aque interamente tuo 0 que diz respeito& cox. teosia onduatéria da las por outro lado, asumindo que as entidades bisicas sto dase io eorpis- “ules, nao encontra difculdades em explicar fendmenos como a interferén~ cia, que se toxnam 0 foco de sua atengio, e oferee uma explicasto rezoével {em termos de freqiéncias de ondas) da cor fenémenos que Ihe sao rela- cionados, como 2 difragto Podemos perguitar agora qual 0 objeto das teorias da luz ¢ encontrar das respostas. No nivel observacional, o objeto & 0 conjunto dos fendmenos uminosos e & igual para ambas as tcorias. No nivel tebrico (deseritivo ou 34 ENSAIOS DE FLOSOFIA DA LINGDISTICA ei i itera se explicativo), os objetos sio distintos, Para a eoria corpuscultrimpde-se uma subdivisio da teoria da fuz em duas subleorias: 2 da propagasia e a da cor. Isto porque na teoria da propagagio as explicayGes em termos de corpiseu- tos sio selativamente simples ¢ imediatas, enquanto na teoria da cor tornam, se extremamente tortuosas ¢ problemiticas, Ji a teoria ondulatoria permite tunificar essas duas subteorias por meio de nm mecanismo explicativo nico, Para fazé-lo, porém, € forgada a deixar de lado certos aspectos dos fendme- ros luminosos que a teoris corpuscular consegulia explicar faciimente, pert cularmente 0s fatos relatives & existincia do quanta de luz, ou seja,feixes cenergéticos minimos gue se comportarn como se fossem particulasLumino ‘as, Essa divergéncia no nivel te6rieo 36 serd superada pelo “truque” de De Broglic, em 1924, dle postular “entidades hibridas” subjacentes & luz — enti- dades que se comportam ora como corpasculos (Fbtons) ora vomo ondas. O que De Broglie faz 6 substituir os objetos tebricos das altemativas corpuscular ¢ ondulatéria por um terceiro objeto teério corpuscular-ondulatério para jeada da uz. obter, assim, uma teoria unif “Yoda teoria deimita una certs “regido” da realidade como seu objeto de cestudos, Uma teoria da luz trata de fendmenos Iusninosos € nau de sons ou de mavimentos dos corpos; uma teoria quimica trata das combinagdes € das veagdes entre as substincias qufmicas, mas nfo trata das sensagoes gustativas aque essas substincias despertam nas pessoas, nem trate de estabelecer a na~ tureza dos locais geoldgicos onde as substincias podem ser encontradss. As disciplinas cientifiea, enfim, fazem uma espécie de “loteamento” da realida- de, cabendo a cada uma delas um dos “Joes”, Mas este “Toteamento” no € sempre bem definido, de forma que hi dreas em disput, porgdes da realida- de que sio reclamadas por mais de uma disciptina cientific. As substincias simples, como 0 hidrogénio e 0 carbono, pertencem a uma “regiao” da rea- lidade que tanto pode ser considersda objeto da quimica como da biologie, da geologia ou mesmo da fitica. © objeto abservacional de uuna teoris & erm principio, a “egido” que a teoria privileia como foco de sua atengio ¢ & constitufdo por um conjunto de fendmenos observives. ‘Um erro comum é supor que as divisdes da cidscia correspondem @ Bes naturais da realidade, Isto € equivalente a supor que, pelo fato de [DE QUE TRATAALNGUISTICA, AFINAL? 35

Você também pode gostar