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2018
Revista do NU-SOL — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP
verve
verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

34
2018
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº34 (Setembro 2018). São Paulo: o Programa, 2018 - semestral

1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal.

I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coorde-
nadoras: Lucia Maria Machado Bógus e Vera Lucia Michalany Chaia); indexada
no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes, no
LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson


Passetti (coordenador), Eliane K. Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo
Simões, Leandro Siqueira, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Maria Cecília
Oliveira, Ricardo Abussafy, Rogério Zeferino Nascimento, Salete Oliveira,
Sofia Osório, Thiago Rodrigues, Vitor Osório.

Conselho Editorial

Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca


Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato
(UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo
Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago
(Unicamp), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa),
Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur l’Anarchisme),
Rogério Zeferino Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo

Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Heleusa F. Câmara (UESB), João da Mata


(SOMA), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José
Eduardo Azevedo (Unip), Maria Lúcia Karam, Nelson Méndez (Universidade
de Caracas), Silvio Gallo (Unicamp), Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti
Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
verve

revista de atitudes. transita por limiares e ins-


tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, ges-
tos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela
agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
Os intervalos desta edição são poemas de Diane di Prima,
uma das poucas mulheres beat, poeta anarquista ativa nas
revoltas de 1968 em São Francisco. Considerada uma das
mais importantes poetas, aos 84 anos, mãe de cinco filhos
e com muitos netos, continua a escrever na região da Baía
de São Francisco, Estados Unidos.

Traduções de Júlia Rocha, Gustavo Simões, Eliane K.


Carvalho.
Revisão da tradução de Beatriz Carneiro.
sumário
68: invenções e resistências
12 68: inventions and resistances
Edson Passetti & Gustavo Simões

De Avignon ao Brasil, a vida de Julian Beck, uma anotação


anarquista
64 From Avignon to Brazil, the life of Julian Beck, an anarchist note
Gustavo Simões

83
69 83
Julian Beck

Roberto Freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria


74 Roberto Freire and the anarchism of body, pleasure, and joy
João da Mata

5 anos depois
5 years since 2013
96 [página única 1]
Nu-Sol

"Nada maisque amor": 50 anos de contracultura


116 “Nothing more than love”: 50 years of counterculture
Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel

Entrevista com Ricardo Líper


130 Interview with Ricardo Líper
Ricardo Líper & Nu-Sol

Cordas e correntes se arrebentem: pela liberdade imediata


dos 13
142 Breaking balls and chains: immediate freedom for the 13
[página única 2]
Nu-Sol

Pierre Clastres: fragmentos de ética anarquista


146 Pierre Clastres: fragments of an anarchist ethics
Sebastian Stavisky
2013 – uma dimensão ética libertária
159 2013 – An anarchist ethical dimension
Camila Jourdan

1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e


antipolítica
176 1968 and 1999: differences and metamorphoses between new politics
and antipolitics
Acácio Augusto

resenhas
A democracia e suas brechas totalitárias
195 Democracy and its totalitarian gaps
Vitor Osório

Maria Lacerda de Moura hoje


200 Maria Lacerda de Moura today
Flávia Lucchesi
ao lado do punhado de pássaros contra o grande costume,
como o poema de júlio cortázar, verve está no ar. no calor
dos acontecimentos, agora, edson passetti e gustavo simões
apresentam a intensa aula-teatro 68: invenções e resistências;
julian beck descreve a marcante ruptura do the living theatre
com o festival de avignon; joão da mata recorda a anarquia
e o tesão de roberto freire, assim como ana carolina arruda
de toledo murgel lembra luhli, entre outras existências
vibrantes, expondo a liberação ética e estética transcorrida
no final da década de 1960. ainda nesta edição, em entrevista
especial, ricardo líper comenta as resistências anarquistas
na ditadura civil-militar, suas práticas libertárias hoje e os
sonhos com emma goldman. intempestivos, os combates
contra o estado são sublinhados por sebastián stavisky e
sua aproximação entre a antropologia de pierre clastres e os
anarquistas. camila jourdan e suas considerações libertárias
acerca de 2013, no brasil, estabelecem uma conexão direta
com os hypomnematas do nu-sol, páginas únicas nesta
verve, lembrando os cinco anos das jornadas de junho, e um
alerta urgente contra a sentença de aprisionamento dos 23.
por fim, e ainda nas reverberações destas lutas no presente,
acácio augusto analisa as semelhanças, mas, sobretudo, as
diferenças entre as mudanças radicais irrompidas com as
manifestações de 68 e as políticas surgidas nos protestos
globais de 1999. sobre os livros: vitor osório, a partir de
simone weil, alerta para as conivências da democracia com
os fascismos e flávia lucchesi, com maria lacerda de moura,
afirma ainda hoje a atualidade singular da anarquista. ao
lado do punhado de pássaros contra o grande costume e
com poesias da exuberante diane di prima, que atravessa a
revista como uma flecha certeira, verve está no ar, como a
anarquia, agora.
REVOLUTIONARY LETTER #4
Left to themselves people
grow their hair.
Left to themselves they
take off their shoes.
Left to themselves they make love
sleep easily
share blankets, dope & children
they are not lazy or afraid
they plant seeds, they smile, they
speak to one another. The word
coming into its own : touch of love;
on the brain, the ear.

We return with the sea, the tides


we return as often as leaves, as numerous
as grass, gentle, insistent, we remember
the way,
our babes toddle barefoot thru the cities of the universe.

CARTA REVOLUCIONÁRIA #4
Entregues a si próprias as pessoas
deixam o cabelo crescer.
Entregues a si próprias elas
tiram seus sapatos.
Entregues a si próprias elas fazem amor
dormem tranquilamente
dividem cobertores, drogas & crianças
elas não são preguiçosas ou têm medo
elas plantam sementes, riem, elas
falam umas com as outras. A palavra
vem por si mesma : toque de amor
no cérebro, no ouvido.

Voltamos com o mar, as marés


voltamos quase sempre como as folhas, tão numerosas
como a relva, gentis, insistentes, lembramos
o caminho,
nossos bebês passeiam descalços pelas cidades do universo.
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68: invenções e resistências1

edson passetti & gustavo simões

prólogo
Corifeus
Gus:
“‘Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham
para as estrelas’. Oscar Wilde.

Lili:
E quem olha se fode. Lori Lamby.”2

Flávia:
“A rebelião da juventude é um fenômeno mundial como
nunca se viu na história. Não acredito que eles irão acalmar-
-se e se tornar executivos aos 30 anos, como o establishment
gostaria que acreditássemos. Milhões de jovens do mundo
inteiro estão cansados de autoridades vazias e indignas, que
governam com base numa plataforma de merda.”3

Lili:
“VOCÊ AINDA É
O INIMIGO, você está se vendendo
barato, lembre-se

Edson Passetti é professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol. Contato:
passetti@matrix.com.br. Gustavo Simões é doutor em Ciências Sociais pela PUC-
SP e integrante do Nu-Sol. Contato: gusfsimoes@gmail.com.

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68: invenções e resistências

você pode ter o que pede, peça


tudo.”4

Vitor:
“Jean Genet, que tem considerável experiência com a polícia,
diz que nunca viu expressões tais em rostos supostamente
humanos. E o que estão os policiais fantasmas a gritar, de
Chicago a Berlim, da Cidade do México a Paris? ‘Somos
REAIS, REAIS, REAIS!!!, como este CASSETETE!’ En-
quanto sentem, da sua maneira animal, obscura, que a reali-
dade lhes escapa.”5

Gus:
Descobri “que sem paixão não se faz a revolução de nossos
sonhos, como há tempos descobri que sem tesão não há
solução para a nossa vida. (...)
Quanto mais eu faço amor, mais eu tenho vontade de fazer
a revolução.

Bia:
Quanto mais eu faço a revolução, mais eu quero fazer
amor.”6

Lili:
“Não há quando. Só aqui. Não há ofensa. Só desacATO.
Ato que afirma no ESPAÇO. Paço-lugar. Passo-substantivo.
Passo-verbo. Passo do quando para onde. COM-POSIÇÃO
exuberante. De que lado está o avesso? Bobagem… A paixão
é superlativa.”7

Cena 1: memórias.
Bia:
“Até no colégio de freiras, onde cursei o Ginásio, a mo-
vimentação 68 respingava no mural de notícias; em rela-
tos de estudantes universitários, parentes de colegas, ou de
uma ou outra professora jovem, que ao trazer novas ideias,
tinha permanência curta na escola.

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Flávia:
Assim como as ruas ocupadas por estudantes, a universi-
dade aparecia como um local pulsante de debate e ação
efetiva, um espaço de liberdade e de liberação.

Lili:
Para mim, o mundo estava lá fora, estava fora dos muros da
escola e da família. (...) Em 1968, as revoltas contamina-
vam o mundo todo.

Bia:
Pela imprensa acompanhei manifestações de rua pelas ci-
dades mais diversas; jovens largando empregos e dizendo
não à guerra; scholars abandonando as cátedras bem postas
e caindo na vida; desertores do Vietnã em fuga; anticon-
sumismo; contracultura; antipsiquiatria; revoltas contra as
prisões; a busca de uma vida autêntica

Lili:
- as palavras ‘espontâneo’ e ‘autêntico’ nomeavam as atitu-
des valorizadas do dia a dia.

Bia:
Eu seguia as notícias sobre Daniel Cohn Bendit e o maio
francês; os estudantes no México; as passeatas brasileiras
de protesto contra o arrocho salarial, contra a falta de vagas
nas universidades estatais, contra a ditadura, a morte do es-
tudante no Rio, a briga UNE x CCC – Comando de Caça
aos Comunistas, na rua Maria Antônia”. (...) [Eu acompa-
nhei a repercussão do Congresso da União Nacional dos
Estudantes em outubro, no sítio em Ibiúna/SP, quando
mais de 700 estudantes foram presos].

Flávia:
A coragem de “dizer não” se propagou como fogo e vento.
Não às ditaduras com ou sem palavras de ordem, não ao
Vietnã, não aos pais, não à burocracia de Estado, ao ensino,
ao Exército, aos empregos, à repressão sexual, às institui-
ções, aos estados ordinários de consciência, não às hierar-

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68: invenções e resistências

quias, não ao não. A coragem de fazer sexo, fazer grupos


atuantes, fazer protestos, ocupações na rua, arte, invenções,
fazer experiências, a coragem do fazer sim. (...)

Lili:
Em 1968 eu tive a certeza de que o mundo, daquele mo-
mento em diante, se manteria incrível, libertário, autêntico,
diferente da minha vidinha besta de família-colégio[;] (...)
parecia que as instituições conservadoras estavam sendo
demolidas para sempre e sem possibilidade de retorno, e
[condutas] autoritárias e burocráticas desapareceriam de
tão desprezadas!

Bia:
Havia o espectro de uma guerra total e o fim do plane-
ta. Tudo ou nada! (...) Acompanhei os acontecimentos do
AI-5 pela rádio BBC e Rádio Cuba no dia 13 de dezem-
bro.

Flávia:
As prisões e perseguições pelo Brasil eram alardeadas no
exterior enquanto que por aqui... Eu estava sozinha, sinto-
nizando estações de rádio. Tive a impressão que algo ter-
rível ocorrera.

Lili:
Que aquele mundo amplo e livre que mal dera as caras se
fôra para sempre.”8

Cena 2: estudantes no Brasil.


Vitor:
“Em março, a cidade [do Rio de Janeiro] se movera com a
morte do estudante Edson Luis Lima Souto no restauran-
te Calabouço, e o cortejo fúnebre agrupou mais de 50.000
pessoas silenciosas, tristes e com sangue iracundo pulsando
até o cemitério São João Baptista.

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Gus:
O protesto pelas ruas do Rio repercutiu em proibição às
manifestações pelos governantes, anunciando o procedi-
mento repressivo que se tornaria padrão, sobretudo, após a
promulgação do AI-5, no final do ano.

Vitor:
Então, nada como comemorar os quatro anos da ditadura
civil-militar [que à época era chamada apenas de ditadura
militar] com uma manifestação estrondosa em 1º de abril,
paralisando a cidade, danificando viaturas, apedrejando lo-
jas e bancos.

Gus:
O governo ficou apavorado e em junho temia um maio de
68. (...) No Rio de Janeiro, novos confrontos ocorrem, na
sexta-feira sangrenta: ‘os fugitivos tentam refugiar-se nos
prédios, mas duas viaturas do DOPS surgem jogando mais
bombas. Um helicóptero sobrevoa o local. Sirenes anun-
ciam que estão chegando reforços. É um pandemônio. Po-
liciais gritam: ‘vamos atirar para matar!’.

Vitor:
Em seguida, três moças caem feridas. (...) Maria Ângela
Ribeiro, ferida na fronte, é levada com vida para o QG da
PM, onde morre em seguida.

Bia:
É hora do almoço, e a reação popular vai começar. Alguém
joga pedaços de gelo de um edifício, tentando acertar a
polícia. Foi como um sinal. Uma chuva de objetos passa a
cair em lugar do gelo."9

Flávia:
Foi na quinta-feira que os policiais prenderam, molestaram
e feriram cerca de 400 estudantes no estádio do Botafogo
F.R. As fotos circularam e nelas se viam "soldados urinan-
do sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre
as pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos

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na cabeça, ajoelhados ou deitados de bruços com o rosto na


grama, eram uma alegoria da profanação."10

Lili:
"Em resposta às violências das forças armadas e da polícia
militar, no 26 de junho, (...) cerca de cem mil pessoas saí-
ram as ruas do Rio de Janeiro, em manifestação que ficou
conhecida como Passeata dos cem mil.(...)

Gus:
Naquele ano rondava o imprevisível. Em 18 de junho,
em Bogotá, no estádio El Campin, jogavam Seleção da
Colômbia e Santos Futebol Clube. O árbitro da partida
era Guillermo Vellásquez que, ao final do primeiro tempo,
expulsou Pelé. A imensa torcida presente ao estádio queria
ver Pelé, rei-deus negro, e o timaço do Santos F.C. jogar
contra sua seleção. Convulsão geral durante o intervalo. Ao
reiniciar o jogo, Pelé estava em campo. O juiz foi subs-
tituído pelo bandeirinha, e o Santos venceu por 4 a 2. A
torcida colombiana queria apreciar a arte e não se sujeitar à
onisciência de um juiz!”11

Cena 3: o senhor tem fogo? e o levante 22 de Março em


Nanterre, França.
Salete-repórter de rádio:
“Começou com sexo, já em janeiro, quando a França ainda
estava entediada [segundo famoso editorial do Le Monde].
Os estudantes da Universidade de Nanterre, um campus
excepcionalmente feio, com um prédio de concreto de qua-
tro anos de existência, onde 11 mil estudantes estavam en-
tulhados na beira de Paris, levantaram a questão dos dor-
mitórios mistos, e o governo os ignorou.

Vitor-estudante:
Você tem fogo (para acender o cigarro)? Senhor ministro,
li seu informe sobre a juventude. Em 300 páginas, não há
uma só palavra sobre as questões sexuais da juventude.

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Bia-Ministro:
Estou aqui para promover programas esportivos, coisa que
vocês aproveitariam muito mais do que desperdiçar o tem-
po com baderna.

Vitor-estudante:
Nas 300 páginas, não há uma só palavra sobre as questões
sexuais da juventude.

Bia-Ministro:
Não é de admirar, com um rosto como o seu, que tenha
esses problemas: sugiro que dê um mergulho no lago.

Vitor-estudante:
Aí está uma resposta digna do ministro da Juventude de
Hitler.”12

Gus-estudante:
“Os operários e os estudantes nunca estiveram juntos...
Eram dois movimentos autônomos. Os operários queriam
uma reforma radical das fábricas — salários etc. Os estu-
dantes queriam uma mudança radical de vida.”13

Flávia-estudante:
“Na Universidade de Nanterre-Paris X, o movimento so-
cial de 22 de Março emerge e age, coletivamente (...) con-
jugando a sua luta subversiva na defesa da libertação de um
estudante que havia sido preso pela polícia ao manifestar-se
contra a Guerra do Vietnã.

Lili-estudante:
Cerca de 700 estudantes convocam uma Assembleia Geral
para debater e decidir sobre os assuntos que eram objetos
de litígio. (...) A espontaneidade e a informalidade, assim
como a auto-organização e a democracia direta (...) [co-
ordenam] a sua ação coletiva contra a burocracia das uni-
versidades e a repressão policial. A luta contra o Estado e
o capitalismo estava na ordem do dia, (...) [prescindindo

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de] chefes, partidos, sindicatos ou burocratas de quaisquer


espécie.

Gus-estudante:
Os 140 a 150 estudantes que iniciaram o movimento social
22 de Março, apesar [dos] (...) maoístas e trotskistas, na sua
grande maioria eram libertários. (...)

Lili-estudante:
No dia 2 de maio (...) foi realizada mais uma ‘jornada anti-
-imperialista’ [quando] os estudantes reclamaram locais
para exibirem os seus filmes e para debaterem assuntos do
seu interesse. Esta exigência impossibilitou um professor
de dar o seu curso, razão suficiente para que o Ministro do
Interior, Alain Peyrefitte, tenha suspendido todos os cursos
(…) [em] Nanterre.

Flávia-estudante:
Em função desta suspensão, o movimento social 22 de
Março, em 3 de maio (...) sai dos limites da Universidade
de Nanterre-Paris X, e reconfigura-se (...) na Universidade
de Sorbonne-Paris I (...) ocupada na sua plenitude. (...) O
reitor da academia de Paris acion[ou] a intervenção da po-
lícia para expulsar os estudantes que ocuparam a Sorbonne.
(...) Aproximadamente 300 estudantes [foram] aprisiona-
dos e levados para as masmorras dos carros dos polícias.

Lili-estudante:
[A] atmosfera de revolta de milhares de estudantes [se es-
tendeu] ao Bairro Latino (Quartier Latin). (...) [As bar-
ricadas] contra a polícia já não [eram só de] libertários e
situacionistas, mas também [de] esquerdistas de diferentes
ideologias, jovens proletários marginalizados e desempre-
gados, assim como jovens desclassificados socialmente pela
sociedade vigente”14, os chamados enragés.

Gus-estudante:
“Com o início da greve geral em 13 de maio (...) envol-
vendo 10 milhões de trabalhadores assalariados em todo

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o território francês, (...) [o reformismo] das massas traba-


lhadoras e dos respectivos sindicatos [entram] na ordem
do dia em detrimento (...) [das afirmações] libertárias da
revolução social.

Bia-estudante:
Os acordos de Grenelle, assinados em 27 de maio (...), en-
volveram cinco centrais sindicais, as associações patronais
e o governo francês (...) atomizou qualquer veleidade revo-
lucionária. (...)

Gus-estudante:
[A] pacificação das relações entre as massas trabalhado-
ras, o Estado e o capital, a normalização da vida cotidiana
tornou-se um fato nas empresas, nas instituições e orga-
nizações do Estado, ao ponto das greves perderem o seu
impacto e se tornarem irrelevantes, ao mesmo tempo em
que as manifestações dos estudantes foram perdendo (...)
sua força (...) nos primeiros dias de junho de 1968”15, na
França.

Cena 4: Checoslováquia.
Edson-repórter de rádio:
“O povo da Checoslováquia só foi informado de que seu
mundo estava prestes a mudar na sexta-feira, 5 de janeiro,
quando a Rádio Praga anunciou a ‘renúncia’ de [Antonín
Josef ] Novotný como primeiro-secretário e a eleição de
Dubček. Os checos não tinham percebido que Novotný
estava com problemas e a maioria deles não tinha ideia ne-
nhuma de quem era esse Dubček. Numa sociedade fecha-
da, os políticos mais bem-sucedidos operam fora do olhar
público.”16

Salete-repórter de rádio:
Palavras de Aleksander Dubček, em 1986: “O povo estava
insatisfeito com a liderança partidária. Não podíamos mu-
dar o povo, então mudamos os líderes.”17

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68: invenções e resistências

Edson-repórter de rádio:
“A Checoslováquia é o único país que se tornou comunista
por meio de votação democrática.

Salete-repórter de rádio:
Apesar da promessa de que os pequenos negócios não se-
riam estatizados, em 1948 os comunistas dominavam o
país e estatizavam todas as empresas e transformavam as
fazendas em propriedades estatais.”18

Edson-repórter de rádio:
Em 1967, houve uma “manifestação dos estudantes em
Praga, por uma questão aparentemente banal, a calefação e
a iluminação. (...) Foram de madrugada carregando velas,
mas no caminho se depararam com a polícia que deixou
cerca de 50 hospitalizados. A imprensa falou apenas de ‘ar-
ruaceiros’ que atacaram os policiais.

Salete-repórter de rádio:
Mas o espancamento criou um movimento ainda mais am-
plo. Os estudantes pareciam-se com estudantes de Berlim,
Roma ou Berkeley. É verdade que eram vigiados pela polí-
cia secreta, mas o mesmo acontecia com os manifestantes
americanos[,] da Europa ocidental [e do Brasil].”19

Edson-repórter de rádio:
“Mesmo após Dresden, quando Dubček percebeu pela pri-
meira vez quanto perturbava o bloco soviético, ele foi inca-
paz de controlar a imprensa. A liberdade para sua impren-
sa, bem como o acesso à mídia ocidental, eram, para o povo
checoslovaco, coisas de importância fundamental. (...)

Salete-repórter de rádio:
A Checoslováquia não podia viver mais isolada. De repen-
te, Praga foi observada, comentada, até vista na televisão
em muitas terras, e o que os checos e os eslovacos faziam,
no início de 1968, provocou ondas de choque por todo o
mundo comunista e chamou a atenção dos jovens no Oci-
dente inteiro.

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Edson-repórter de rádio:
De repente, um estudante de Praga, que jamais vira o resto
do mundo, barbudo e usando um jeans (...) sentia-se parte
de um movimento libertador mundial da juventude.”20

Salete-repórter de rádio:
“No dia 20 de agosto, às 11 da noite, hora da Europa cen-
tral, o ar noturno do verão encheu-se de repente de som,
a terra estrondeou — a invasão com o codinome Danú-
bio tinha começado. Não era uma filmagem. Aquela noite,
4.600 tanques e 165.000 soldados do Pacto de Varsóvia
invadiram a Checoslováquia através de 20 cruzamentos[.]

Edson-repórter de rádio:
Cinco países participaram da invasão, inclusive forças sim-
bólicas da Hungria e Bulgária. A Alemanha Oriental e
a Polônia enviaram uma divisão cada uma; os soviéticos
enviaram 13 divisões. Em sete horas, 250 aviões levaram
uma divisão aerotransportada inteira, inclusive pequenos
veículos blindados, combustível e abastecimentos. A ope-
ração foi a maior ponte aérea já realizada pelos militares
soviéticos fora de suas fronteiras.

Salete-repórter de rádio:
Defrontada por uma multidão irada, a coluna soviética abriu
fogo com metralhadoras e um rapaz foi morto a tiro, enquan-
to Dubček e os outros líderes (...) observavam da janela. (...)

Edson-repórter de rádio:
Pelo que se sabe, nem um só guarda de fronteira disparou
um tiro ou de alguma maneira tentou impedir a passagem
das colunas blindadas. Tampouco houve um esforço [de]
parar as tropas e o equipamento que chegavam aos aero-
portos checoslovacos. Mas no final do primeiro dia, 23
checoslovacos estavam mortos.”21

Salete-repórter de rádio:
“Os checos começaram a falar russo com as tripulações dos
tanques,

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68: invenções e resistências

Vitor:
(...) porque [vocês estão aqui], porque não [vão] embora?

Edson-repórter de rádio:
Os jovens tripulantes dos tanques ficaram perturbados e,
desobedecendo às ordens, abriram fogo por cima das ca-
beças da multidão e, depois, diretamente contra os checos.
Em vez de fugir, os checos [jogaram] coquetéis Molotov
nos tanques, enquanto as pessoas em torno deles caíam
mortas ou feridas.

Salete-repórter de rádio:
Alguns tanques pegaram fogo, produzindo uma fumaça
negra, e alguns dos seus tripulantes ficaram feridos. Alguns
até talvez tenham morrido. Mas um imenso tanque T-55
movimentou-se para uma posição de fogo e a Rádio Praga
transmitiu a mensagem:

Edson-repórter de rádio:
‘Tristes irmãos, quando ouvirem o hino nacional saberão
que terminou.’

Flávia:
Então, as primeiras notas do hino nacional foram ouvidas,
quando o tanque abriu fogo e a Rádio Praga silenciou.

Gus:
Em Bratislava, moças de minissaia aproximavam-se deles
e, quando os rapazes russos do campo, que tripulavam os
tanques, paravam para admirar suas coxas jovens, garotos
chegavam correndo e espatifavam seus faróis dianteiros
com pedras e até conseguiam incendiar alguns tambores
de gasolina.”22

Flávia:
“As Nações Unidas condenaram de fato a ação soviética,
mas os soviéticos simplesmente usaram seu veto para anu-
lar a condenação.”23

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2018

Cena 5: Reportagem, Guerra do Vietnã


Lili:
A guerra do Vietnã foi um tema desencadeador do movi-
mento 68 em vários países.

Flávia:
“Os manifestantes exortam os soldados americanos a de-
sertarem, o que eles já estavam fazendo, com solicitações
de asilo à Suécia, França e Canadá. Em fevereiro, o Progra-
ma Anti-recrutamento de Toronto enviou para os Estados
Unidos cinco mil cópias de sua brochura de 132 páginas,
o Manual para imigrantes para o Canadá em idade de recru-
tamento. Além das informações legais, [havia] um capítulo
intitulado ‘Sim, John, existe um Canadá’. Em março, até o
movimento estudantil relativamente moderado da Cidade
do México realizou uma manifestação contra a Guerra do
Vietnã.”24

Vitor:
“Os estudantes japoneses protestam violentamente contra
a presença em seu solo da máquina militar americana enga-
jada na guerra do Vietnã. Essa geração (...) era veemente-
mente antimilitarista. A organização estudantil Zengaku-
ren (…) [reuniu] milhares de manifestantes para impedir
um porta-aviões americano, em serviço no Vietnã, de atra-
car num porto japonês. A Zengakuren também protesta,
algumas vezes de forma violenta, contra questões locais,
como o confisco de terras de lavradores para construir um
aeroporto internacional em Narita, a 50 quilômetros a leste
de Tóquio. O governo japonês estuda a aprovação de leis
de segurança repressivas para controlar a Zengakuren.”25

Lili:
“No Reino Unido, os estudantes iniciaram manifestações
contra a guerra americana no Vietnã e passaram para ques-
tões locais, como a quantidade das bolsas governamentais
para a educação e o controle das universidades.”26

24 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Cena 6. Napalm, o black power e Muhammad Ali


Bia:
Estados Unidos da América: o napalm foi criado pela
Down Chemical.

Gus:
“Inicialmente o nome napalm foi dado a um engrossador
que podia ser misturado com gasolina e outros materiais
incendiários. No Vietnã, a mistura em si foi chamada de
napalm. O engrossador transforma a chama numa substân-
cia semelhante à geleia, que pode ser disparada, sob pres-
são, até uma distância considerável. Ardendo com intenso
calor, ela se gruda ao alvo, seja este vegetal ou humano”27.

Vitor:
Os Panteras Negras lutavam nos guetos contra o que cha-
mavam os ‘dois i’, o de ignorância e o da inércia. Gritavam
para os brancos: ‘Nunca mais lamberemos vosso cu!’ (We
won’t kiss asses anymore!). Recusavam os livros de história
tradicionais, porque eles passavam a visão escravista para
as crianças negras. Eram contrários à guerra do Vietnã,
afirmavam que a luta deles era na própria América.”28 O
boxeador Cassius Clay, agora com o nome de Muhammad
Ali, recusou o recrutamento e a mídia.

Gus:
“A ideia de um boicote negro às Olimpíadas surgiu pela pri-
meira vez numa reunião (...) do Black Power em Newark,
após os tumultos daquela cidade, no verão de 1967.”29

Bia:
“Os Estados Unidos, como previsto, reuniram uma das me-
lhores equipes de atletismo de toda a história. (...) Tommie
Smith e John Carlos, ao receberem medalhas de ouro e
bronze pelos 200 metros rasos, foram à cerimônia de entrega
das medalhas descalços, usando longas meias pretas. Quan-
do tocou o hino nacional americano, cada um deles levantou
uma mão enluvada de negro, com o punho fechado, simbo-

verve, 34: 12-63, 2018 25


34
2018

lizando o [Black Power] (…). Pareceu um gesto espontâneo


mas, na tradição política de 1968, o ato foi, na verdade, resul-
tado de uma série de encontros entre os atletas.”30

Lili:
Quando “George Foreman ganhou a medalha de ouro dos
pesos pesados em 1968, derrotando o campeão soviético Io-
nas Chepulis, ele tirou de algum lugar uma minúscula ban-
deira americana. (...) Começou a acená-la em torno de sua
cabeça. Nixon gostou do desempenho e fez uma compara-
ção, favorável a ele, com aqueles outros jovens americanos
contrários à guerra, que estavam sempre criticando os Es-
tados Unidos.

Salete-repórter de rádio:
(...) Mas para muitos fãs do boxe, principalmente os ne-
gros, aquilo pareceu um momento do gênero ‘Pai Tomás’
e, quando Foreman tornou-se profissional, alguns começa-
ram a se referir a ele como A Grande Esperança Branca,
sobretudo quando enfrentou (...) Muhammad Ali, que o
derrubou e derrotou no Zaire, onde toda a África negra e
grande parte do mundo aplaudiu a vitória de Ali.”31

Edson-repórter de rádio:
“Durante um jantar de comentaristas de boxe, Ali gritou (...):

Vitor-Ali:
‘Vou dar uma surra nessa bunda cristã, sua puta branca de
bandeirinha’.

Edson-repórter de rádio:
Engalfinharam-se no palco e Ali agarrou a camisa de Fore-
man, deixou-o de smoking mas sem camisa.”32

Cena 7: Pastoral americana e seu reverso


Lili:
“A obediência está contida na ideia de baixar os riscos.
Uma esposa linda. Uma casa linda. Cuida dos negócios

26 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

como um brinco. Lida com o seu quinhão de pai com mui-


ta competência. Estava, de fato, levando a vida que pediu a
Deus, a sua versão do paraíso. É assim que vivem os bem-
-sucedidos. São bons cidadãos. Sentem-se afortunados.
Sentem-se gratos. Deus está sorrindo lá de cima para eles.
Existem problemas, eles dão um jeito. E de repente tudo
muda e fica impossível. Nada está sorrindo lá de cima para
ninguém. E quem é que pode dar um jeito nisso? Ali estava
alguém despreparado para o caso de a vida ser infeliz, mui-
to menos para o impossível. Mas quem é que está prepara-
do para o impossível que vai acontecer? Quem é que está
preparado para a tragédia e para o absurdo do sofrimento?
Ninguém. A tragédia do homem despreparado para a tra-
gédia — esta é a tragédia do homem comum.”33

Gus:
“Penso nos anos 60 e na desordem provocada pela Guer-
ra do Vietnã, penso em como certas famílias perderam seus
filhos e outras não, e penso em como os Seymour Levov
foram uma dessas famílias que perderam um filho — fa-
mílias cheias de tolerância e de uma boa vontade liberal e
bem-intencionada, e foram deles os filhos que partiram para
a violência, ou acabaram na cadeia, ou desaparecem nos sub-
terrâneos, ou fugiram para a Suécia ou para o Canadá.”34

Flávia:
“A obra de [David Henry] Thoreau, suas lutas, suas experi-
mentações em Walden, numa fusão com a natureza, acaba-
ram reconhecidas pela universidade em 1960, mas também
passaram a servir de guia a muitos jovens insatisfeitos com
a guerra do Vietnã, com a vida urbana e voltados para a
necessidade de defender o planeta das armas nucleares, das
poluições industriais, do desenvolvimento e do progresso,
com as superabundâncias localizadas e a miséria generali-
zada. Desobedecer!

Lili:
Isso acendeu as brasas dormidas dos jovens estaduniden-
ses, dentro e fora das universidades. Era preciso revolver os

verve, 34: 12-63, 2018 27


34
2018

costumes, redimensionar o apequenar que sufocava. Nada


de ir para a guerra, de ser partidário, sindicalizado, crer nos
partidos, na pátria, na bandeira, aceitar o racismo, o pu-
ritanismo, as encenações democráticas, ou seja, tudo que
formou o estilo de vida liberal do estadunidense. Perigo,

Bia:
ou como dissera Guimarães Rosa: ‘viver é muito perigoso!
Carece é ter coragem!’. As sugestões e as experimentações
estéticas derivadas da existência de Thoreau moveram os
jovens, que não viam a juventude como fase que passa ou
quando as inquietações estão presentes e em busca de ajus-
tes.”35

Cena 8: México
Edson-repórter de rádio:
As interrupções de eventos foram cada vez mais acentu-
adas. “Os manifestantes tinham fechado a Bienal de Arte
de Veneza e o Festival de Cinema de Cannes, atacado a
Feira do Livro de Frankfurt e até atrapalhado o concurso
de Miss América. (...) Nada do gênero deveria acontecer
no México.”36

Salete-repórter de rádio:
“A Olimpíada de 1968 era a primeira vez em que a Revo-
lução Mexicana deveria mostrar-se ao mundo, com todas
as suas realizações, inclusive uma nascente classe média, a
modernidade da Cidade do México e a eficiência com a qual
o [país] podia administrar um imenso evento internacional.
O mundo veria [ao vivo] pela televisão que o México não era
mais atrasado e despedaçado pelos conflitos, mas se tornara
um país moderno, emergente e bem-sucedido.”37

Vitor:
“Porém, em 1968, ao se aproximar a Olimpíada, havia ape-
nas um grupo que o PRI [Partido Revolucionário Insti-
tucional] não tinha sob seu controle e este era o dos estu-

28 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

dantes[. C]omo força política eram um conceito novo no


México. (...)

Gus:
E com uma classe média crescente, o México tinha mais es-
tudantes do que jamais tivera, muitos dos quais apinhados
na Universidade Nacional Autônoma do México, Unam, e
no Instituto Politécnico Nacional, em vastos e espalhados
novos campi, nas partes mais novas de uma capital que en-
golia muitos quilômetros de área nova a cada ano.”38

Salete-repórter de rádio:
Em 22 de julho, “irrompeu uma briga entre duas escolas
secundárias rivais. Ninguém tem certeza quanto ao que
provocou a briga. Os dois grupos brigavam constantemen-
te. Duas gangues locais, os ‘Aranhas’ e os ‘Ciudadelenses’,
talvez estivessem envolvidas. A briga se espalhou para a
Plaza de la Ciudadela, um importante centro comercial da
cidade.

Edson-repórter de rádio:
No dia seguinte, os estudantes foram atacados pelas duas
gangues, mas não reagiram. A polícia e unidades milita-
res especiais, antimotins, ficaram à parte, observando, mas
depois começaram a provocar os estudantes e atiraram
bombas de gás lacrimogêneo. Quando os estudantes se re-
tiraram para suas escolas, os militares os perseguiram pelo
bairro, espancando-os.

Salete-repórter de rádio:
A violência durou três horas e 20 estudantes foram presos.
Vários estudantes e professores foram espancados (...).

Vitor:
De repente, o movimento estudantil tinha uma causa que
sensibilizava o público mexicano: a brutalidade do gover-
no. O próximo passo foi dado três dias depois. Um grupo
de estudantes decidiu marchar pedindo a libertação dos
estudantes presos e protestando contra a violência. (...) Ao

verve, 34: 12-63, 2018 29


34
2018

contrário das outras manifestações, essa atraiu mais do que


uns poucos estudantes. (...)

Gus:
Aconteceu que o dia dessa manifestação foi 26 de julho e
no centro da cidade a marcha estudantil acabou encontran-
do a marcha anual de um punhado de partidários de Fidel.
Combinada, essa marcha de 26 de julho foi a maior que o
governo mexicano já vira. O exército afastou-os e os diri-
giu para ruas laterais, onde alguns manifestantes jogaram
pedras nos soldados.

Bia:
Os manifestantes que jogavam as pedras não pareceram
familiares aos estudantes. E estes descobriram as pedras
em latas de lixo, o que era curioso, porque não era habitual
as latas de lixo do centro da cidade do México conterem
pedras.

Vitor:
Dias de combates se seguiram. Ônibus foram tomados, os
passageiros forçados a descer e os veículos batidos contra
muros e incendiados.

Bia:
Os estudantes declararam que esses e outros atos de vio-
lência foram executados por militares disfarçados, para jus-
tificar a brutal reação do exército, uma acusação que foi
amplamente confirmada em documentos divulgados em
1999.”39

Gus:
“Em setembro, o pesadelo de Díaz Ordaz tornou-se reali-
dade. Um estudante [de arquitetura] francês do movimen-
to de maio em Paris chegou ao México. (...) Jean-Claude
Leveque fora treinado por estudantes de Belas Artes, du-
rante o levante estudantil francês, a fazer cartazes em si-
lkscreen (serigrafia). A Cidade do México ficou coberta de

30 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

imagens impressas em papel barato mexicano [debochan-


do de autoridades e da imprensa local]. (...)

Vitor:
Mas o México era diferente da França. No México, vários
estudantes foram abatidos a tiros, enquanto tentavam co-
locar cartazes ou escrever grafites nas paredes.”40

Salete-repórter de rádio:
“As manifestações continuaram. Em 18 de setembro, às
dez e meia da noite, o exército cercou o campus da Unam,
com soldados e veículos blindados e, usando a manobra
de atacar pelos dois flancos, cercaram e evacuaram prédios,
arrebanhando estudantes e professores e ordenando-lhes
que ficassem de pé, com as mãos para o alto, ou que se
deitassem no chão, no lugar onde estavam.

Edson-repórter de rádio:
Foram mantidos sob a mira de armas, de baionetas, em
muitos casos, enquanto o exército continuava com seu cer-
co ao campus inteiro, prédio por prédio. Não se sabe quan-
tos membros do corpo docente e estudantes foram presos,
alguns para serem soltos no dia seguinte. Acredita-se que
mais de mil foram mantidos na prisão.

Salete-repórter de rádio:
Em 23 de setembro, na Escola Politécnica, a polícia fez
uma invasão e os estudantes devolveram o ataque usando
paus. Então, chegou o exército — o Exército do Povo de
Obregón — e (...) os militares dispararam suas armas con-
tra os estudantes. (...) [Noticiaram] que houve 40 feridos,
(...) trocas de tiros e a morte de um policial, embora não
haja nenhuma evidência de que os estudantes, algum dia,
tivessem tido quaisquer armas de fogo.

Edson-repórter de rádio:
‘Vigilantes’ não identificados, provavelmente soldados
sem uniforme, começaram a atacar escolas e a atirar nos
estudantes.

verve, 34: 12-63, 2018 31


34
2018

Salete-repórter de rádio:
A violência aumentava. Finalmente, em 2 de outubro, o
governo e o Conselho Nacional da Greve tiveram um
encontro. (...) Um dos cartazes na rua, aquele mês, mos-
trava baionetas e a legenda: ‘Diálogo?’ (...) Naquele dia,
tentariam novamente negociar com o governo. O comí-
cio para anunciar o plano deveria ser num lugar chamado
Tlatelolco.

Edson-repórter de rádio:
Os estudantes não entenderam que uma decisão já fora
tomada. O governo concluíra que aqueles estudantes não
eram Panchos Villas: — eles eram Zapatas.”41

Lili:
Durante muitos anos, foi difícil dizer se uma pessoa de-
saparecida fora morta, se estava na prisão ou se unira aos
guerrilheiros. Muitos de fato se uniram a grupos de guerri-
lheiros armados, em áreas rurais. (...)

Flávia:
Não foram encontrados túmulos coletivos com as pessoas
mortas em Tlatelolco ou em qualquer dos massacres pos-
teriores. Houve casos de famílias inteiras serem ameaçadas,
se persistissem em perguntar sobre um parente desapare-
cido em 1968. (...)

Vitor:
Famílias não se apresentam em busca de filhos desapare-
cidos porque recebem telefonemas anônimos dizendo: ‘Se
falarem alguma coisa, todos os seus outros filhos morrerão’.
Entendo. Quando eu era garoto, alguém matou meu pai e
me disse que, se eu não ficasse calado, mataria meu irmão
mais velho. Então, eu não disse nada.’”42

Bia:
“Pela primeira vez na história, a tocha olímpica foi acen-
dida por uma mulher, o que foi considerado um progresso

32 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

considerável desde a antiga (…) Grécia, quando uma mu-


lher apanhada numa Olimpíada era executada.

Lili:
Não havia mais nenhum sinal do movimento estudantil
no México e, se fosse mencionado, o governo simplesmen-
te explicava, num desafio a toda lógica, que o movimento
fora uma conspiração comunista internacional tramada
pela CIA.”43

Cena 9: Laura na cidade do México


Gus:
“Acostumados como estão a monologar apenas, embriaga-
dos por uma retórica grandiosa que os envolve como uma
nuvem, nossos presidentes e líderes acham quase impossí-
vel acreditar que sequer existam aspirações e opiniões dife-
rentes das suas.”44

Flávia:
“Laura Diaz fotografou seu neto Santiago na noite de 2 de
outubro de 1968 (...) [na cidade do México]. Fotografava
todas as ações do movimento estudantil, desde as primeiras
manifestações (...) [até a] marcha do silêncio com 100 mil
cidadãos amordaçados (...).

Lili:
– Não adiantaria de nada preveni-lo. Tinha rompido com
seus pais e se identificado com sua avó (...) juntos gruda-
ram os ouvidos no chão e ouviram a mesma coisa, o tumul-
to cego da cidade e do país, a ponto de explodir...

Vitor-Santiago:
– O inferno do México. São inevitáveis o crime, a violência,
a corrupção.

Bia-Laura:
– Não fale, filho. Escute. Antes de fotografar, sempre es-
cuto (...).

verve, 34: 12-63, 2018 33


34
2018

Flávia:
– Os dois levantaram os rostos da pedra gelada e se olha-
ram (...) Laura soube então que Santiago agiria como agiu,
(...)

Bia-Laura:
[eu] não ia lhe dizer você tem mulher, tem filho, não se
comprometa (...)

Gus:
– [Santiago] entrava com centenas de jovens mexicanos,
homens e mulheres, na Plaza de las Tres Culturas, o antigo
cerimonial asteca de Tlatelolco (...).

Bia-Laura:
– [Tudo é velho aqui,] a pirâmide indígena, a igreja de
Santiago, o convento e o colégio franciscano, mas também
edifícios modernos, a Secretaria de Relações Exteriores, os
apartamentos multifamiliares; talvez o mais recente seja
o mais velho, porque (...) [é o que resiste menos, já está
rachado,] com a tinta descascada, os vidros quebrados, a
roupa estendida (...)

Lili:
– Acendiam-se os postes da praça (...) entravam jovens por
um lado, dezenas de soldados os cercavam pelos outros la-
dos; apareceram sombras agitadas nos telhados, punhos de
luvas brancas se ergueram e Laura fotografou a figura de
seu neto Santiago, sua camisa branca, sua estúpida camisa
branca como se ele mesmo tivesse pedindo para ser o alvo
das balas (...)

Vitor-Santiago:
– vovó não cabemos no futuro (...) eu não caibo no futuro
inventado por meu pai (...).

Bia-Laura:
Ainda havia coisas por que lutar nesse México conformado
e satisfeito, enganoso e enganador de 1968, ano das Olim-

34 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

píadas, obrigada, meu filho, por ensinar-me a diferença en-


tre o vivo e o morto (...)

Lili:
– A comoção na praça foi como um terremoto que der-
rubou o Anjo da Reforma, a câmera de Laura Diaz su-
biu às estrelas e ela não viu nada, abaixou-se tremendo e
deparou-se com o olhar de um soldado olhando-a como
uma cicatriz (...) Retiraram Laura da praça a pontapés;
retiraram-na não por ser Laura, a fotógrafa (...) não que-
riam testemunhas, Laura, escondeu, sob as amplas saias,
seu rolo de filme dentro da calcinha, junto do sexo, mas ela
já não pôde fotografar o cheiro de morte que exalava da
praça empapada de sangue jovem, ela já não podia captar o
céu escuro de Tlatelolco, ela já não podia registrar o medo
difuso do grande cemitério urbano, os gritos, os gemidos,
os ecos da morte...

Coro:
– A cidade escurece.

Bia-Laura:
– Para o presidente não eram mortos.

Coro:
Eram desordeiros, subversivos, comunistas, ideólogos da
destruição, inimigos da Pátria (...).

Gus:
– Os [jovens] mortos eram singulares: não havia um rosto
igual ao outro, nem um corpo idêntico a outro, nem pos-
turas uniformes.

Flávia-narrador:
– Cada bala deixava um florão diferente no peito, a cabeça,
a coxa do jovem assassinado, cada sexo de homem um re-
pouso diferente, cada sexo de mulher uma ferida singular
(...).

verve, 34: 12-63, 2018 35


34
2018

Gus:
– Duas semanas depois, o presidente Gustavo Díaz Ordaz
inauguraria os Jogos Olímpicos com um vôo de pombas da
paz e um sorriso de satisfação (...)

Lili:
– Quando reconheceram o cadáver de Santiago no necro-
tério improvisado (...) Laura acariciou os pés do neto e
pendurou uma etiqueta no pé direito.”45

Cena 10: Auxilio na UNAM.


Gus:
Durante a invasão da UNAM pelo exército, lá estava Au-
xilio Lacourte:

Bia:
“Agora poderia dizer que pressenti 68, que senti seu cheiro
nos bares, em fevereiro ou março de 68, mas antes de 68
se transformar realmente em 68. (...) Vi tudo e ao mes-
mo tempo não vi nada. Entendem? Eu estava na faculdade
quando o exército violou a autonomia e entrou no campus
para matar todo mundo. Não. Na universidade não houve
muitos mortos. Foi em Tlatelolco. (...)

Lili:
Eu estava no banheiro... estava sentada na latrina, com
a saia arregaçada, como diz o poema ou a canção, lendo
aquelas poesias tão delicadas de Pedro Garfías (...), quem
iria imaginar que eu iria estar lendo no banheiro justo no
momento em que os granadeiros babacas entravam na uni-
versidade. (...)

Flávia:
O que fiz então? O que qualquer pessoa faria: fui à janela,
olhei para baixo e vi os soldados, fui à outra janela e vi
os tanques, a outra, no fim do corredor, e vi furgões onde
estavam metendo os estudantes e professores presos, como
numa cena de filme... Então eu disse para mim mesma:

36 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Todas:
fique, aqui, Auxilio. Não deixe que a levem em cana, mu-
lher.

Flávia:
Voltei para o banheiro e, vejam que curioso, não só voltei
ao banheiro como voltei à latrina, a mesmíssima que eu
estava antes... mas sem nenhuma necessidade fisiológica,
com o livro de Pedro Garfías e de repente ouvi barulho de
botas? (...)

Bia:
e então eu ouvi uma voz que dizia algo como tudo está em
ordem... e alguém, talvez o mesmo cara que tinha falado,
abriu a porta do banheiro, entrou, e eu levantei os pés feito
uma bailarina de Renoir (...), então eu me vi e vi o sol-
dado que se olhava extasiado no espelho... e depois ouvi
suas passadas indo embora. (...) E minhas pernas erguidas,
como se decidissem por si mesmas, voltaram à sua antiga
posição. Devo ter permanecido assim por umas três horas...

Lili:
A situação era nova, admito, mas sabia o que fazer. (...) Sou-
be que precisava resistir e disse para mim: Auxilio Lacourte,
cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante,

Todas:
resista. (...)

Lili:
Se você sair vão prender você (e provavelmente vão te de-
portar para Montevidéu, porque, evidentemente, você não
está com a documentação em ordem, sua boba), vão cuspir
em você, vão espancá-la. Decidi resistir. Resistir à fome e
à solidão... dormir sentada num trono é muito incômodo.
(...)

verve, 34: 12-63, 2018 37


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2018

Flávia:
Acordei congelada e com uma fome dos diabos. (...) Não ado-
eça, Auxilio, disse a mim mesma, beba toda água que quiser,

Todas:
mas não adoeça. (...)

Flávia:
Então perdi a conta de quantos dias estava trancada. (...)
Depois comi papel higiênico (...), depois adormeci. Depois
acordei. Estava com cãibras no corpo todo. Me movimen-
tei lentamente pelo banheiro... ai que cara horrível eu esta-
va (...), depois ouvi vozes. Acho que fazia muito tempo que
não ouvia nada. (...)

Lili:
Depois Lupita, a secretária do professor Fombona, abriu a
porta e ficamos nos encarando, as duas com a boca aber-
ta, mas sem poder articular nenhuma palavra. De emoção,
creio, desmaiei. Quando voltei a abrir os olhos, percebi que
estava instalada no escritório do professor Rius (como Rius
era bonito e corajoso!), entre amigos, e rostos conhecidos,
entre gente da universidade e não entre soldados, e isso me
pareceu tão maravilhoso que eu comecei a chorar, incapaz
de formular um relato coerente de minha história, apesar
da insistência de Rius, que parecia ao mesmo tempo es-
candalizado e grato pelo que eu tinha feito... A lenda se
espalhou ao vento de 68. (...)

Bia:
Ouvi muitas vezes a história, contada por outros, na qual
aquela mulher que ficou quinze dias sem comer, trancada
num banheiro, é uma estudante da Faculdade de Medicina
ou uma secretária da Torre da Reitoria, e não uma uruguaia
sem documentos, sem trabalho, sem casa para descansar.

Lili:
Às vezes nem é uma mulher, mas um homem, um estudante
maoísta ou um professor com problemas gastrointestinais. E,

38 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

quando ouço, essas histórias, essas versões da minha história,


geralmente (e sobretudo se não estou de porre) não digo
nada. E, se estou de porre, não dou a mínima importância
ao caso! Isso não é importante, digo a eles, isso é folclore
universitário, então eles olham para mim e dizem:

Vitor e Gus:
Auxilio, você é a mãe da poesia mexicana.

Flávia:
E eu respondo (se estou de porre, grito) que não, que não
sou a mãe de ninguém, que, isso sim, conheço todos, todos
os jovens poetas, os que nasceram aqui, os que chegaram
das províncias, os que a maré trouxe de outros lugares da
América Latina, e amo todos eles.”46

Cena 11: Notícias breves.


Edson-repórter de rádio:
Em1968 o The Living Theatre é expulso do Festival de
Avignon, na França; Roda Viva é massacrado pelo CCC;
Roberto Freire e o Grupo TUCA de teatro são persegui-
dos pela polícia e a Igreja durante a montagem de O&A no
Teatro da Universidade Católica de São Paulo.

Salete-repórter de rádio:
Nos EUA é encenado Hair; estudantes secundaristas do
Brooklin exigem alimentação melhor e dança; os hippies
tomam a estação central de Nova Iorque e os negros não
dão sossego.

Edson-repórter de rádio:
Os londrinos tingem de vermelho a fonte de Trafalgar
Square. Os ecologistas estão cada vez mais presentes aler-
tando contra a eventual morte da Terra.

Flávia:
“Em 1959, nós lutamos contra a polícia numa batalha de
rua depois deles terem agredido queers em uma loja de

verve, 34: 12-63, 2018 39


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2018

donuts, em Los Angeles. Em 1966, a brutalidade da polícia


contra as bichas da rua no bairro de Tenderloin se trans-
formou: agora eram as bichas batendo nos polícias com
suas bolsas. Em 1969, uma batida policial aparentemente
comum em [Stonewall] um bar queer de Nova York irrom-
peu quatro dias de revolta.”47

Salete-repórter de rádio:
As Mulheres Radicais de Nova Iorque atiram "dentro de
uma lata de lixo, rotulada de 'lata de lixo da liberdade', cin-
tas, sutiãs, cílios postiços, onduladores de cabelos e outros
‘produtos de beleza". E bradam:

Todas:
"Liberdade para as Mulheres!"48

Edson-repórter de rádio:
“Não eram só palavras, pronunciamentos, movimentações
de confrontos com o Estado e seus governos, mas também
contra o individualismo dos pequenos Estados. 68 mexia
com o pensamento, com as práticas, o sexo e com a vida
cotidiana de quem queria se mexer.”49

Salete-repórter de rádio:
Para muitos estadunidenses permanecia inesquecível a es-
túpida execução na câmara de gás em 1960 no estado da
Califórnia, de Caryl Chessman — também identificado
pelas mídias como O bandido da Luz Vermelha —, que
raptara duas mulheres e as forçara a manter sexo oral.

Edson-repórter de rádio:
Muitos não esqueceram que “em 1950, a Alemanha Oci-
dental, com a aprovação dos Estados Unidos e dos Aliados,
declarou uma anistia para nazistas de baixos escalões. Na
Alemanha Oriental, 85 por cento de juízes, promotores e
advogados foram excluídos do foro judicial por causa dos
seus passados nazistas e a maioria deles reiniciou sua pro-
fissão legal na Alemanha Ocidental, qualificando-se para a
anistia. Na Alemanha Oriental, escolas, ferrovias e correios

40 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

foram expurgados de nazistas. Esses alemães também pu-


deram continuar suas carreiras na Alemanha Ocidental.”50

Salete-repórter de rádio:
Guerra civil na Nigéria entre os Ibo e o grupo dirigente, na
região chamada Biafra (onde estava o petróleo). A Nigéria
era um país rico em petróleo e que acabara de conquistar a
independência.

Edson-repórter de rádio:
Em maio, o governo da Nigéria destruiu Port Harcourt e
cercou Biafra. O confronto desde o início foi desigual. Do
lado de Biafra 25.000 homens, mulheres e crianças. Do
lado da Nigéria, 100 mil soldados. Os biafrenses alertaram
ao mundo que o ataque haussás — a tribo dominante —,
a escolas, hospitais e igrejas era na verdade um genocídio.
O que chamou a atenção do ocidente para o genocídio não
foi o número de mortos por projéteis, mas o de cadáveres
resultantes da fome. Kwashiorkor era o nome da falta de
proteínas que em agosto de 68 matava de 1.500 a 40.000
biafrenses por semana, sobretudo crianças.

Salete-repórter de rádio:
“O governo norte-americano disse aos repórteres que era
inútil ajudar Biafra, porque não poderiam permitir-se dar
ao mundo subdesenvolvido a impressão de que estavam in-
terferindo na guerra civil africana.”51

Edson-repórter de rádio:
Na Espanha, muitos jovens permaneciam atentos às vio-
lências de Francisco Franco e suas glorificações como
mandar rezar missa para Hitler. Em 68, jogavam pedras
nas autoridades e bradavam:

Todos:
“Liberdade” e “Morte a Franco!”.

verve, 34: 12-63, 2018 41


34
2018

Edson-repórter de rádio:
No dia de seu aniversário de 70 anos o ditador recebeu dos
estudantes um cartaz que dizia:

Todos:
“Franco assassino, feliz aniversário!”

Salete-repórter de rádio:
“Primeiro transplante de coração na Cidade do Cabo
(África do Sul) por Christiaan Barnard, considerado bem-
-sucedido (dos 3 realizados até o momento). [O coração
de um negro de 24 anos foi transplantado em um dentista
branco de 58 anos.] (...) Questionou-se se o médico pode-
ria determinar quem está condenado.

Edson-repórter de rádio:
A controvérsia não foi amenizada por Barnard, que disse,
numa entrevista a Paris Match: ‘Obviamente, se eu tivesse
de escolher entre dois pacientes com a mesma necessidade
e um deles fosse um idiota congênito e o outro um gênio
da matemática, eu escolheria o segundo’.”52

Bia:
Nesta década, quando os estudantes liam muito, alguns es-
critores foram decisivos: Albert Camus, com o ensaio A
morte de Sísifo e o romance A peste; Herbert Marcuse e o
seu O homem unidimensional; Os condenados da Terra, do
psiquiatra Frantz Fannon, nascido na Martinica; o Listen
Yankee, de Charles Wright Mills, e muitos anarquistas.

Lili:
“Aquele 68 que revolveu costumes estava sintonizado com
as práticas anarquistas de amor livre, cultura livre e educa-
ção livre;

Vitor:
aversão às autoridades hierarquizadas, condutores de cons-
ciência, maestros, catedráticos, famílias falocêntricas, juízes

42 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

das condutas, opondo-lhes atitudes surpreendentes e in-


confessáveis.

Flávia:
Enunciavam o insuportável e o enfrentavam como incóg-
nitos, anônimos, pessoas comuns.

Gus:
A rebeldia e a revolta tomavam os espaços contra a guerra
permanente como revolução permanente, como já sinaliza-
ra Proudhon no século anterior. A revolução era e é cons-
titutiva de nossas vidas, não é um conceito, uma palavra a
ser banida ou redimensionada, está no calor dos aconteci-
mentos.”53

Edson-repórter de rádio:
O poeta Allen Ginsberg, também estava entre os escritores
lidos pelos jovens em 68. Para além da poesia, no final dos
anos 1960 esteve ao lado de Timothy Leary na divulgação
de experimentações com o LSD e como figura emblemáti-
ca nos protestos na Guerra contra o Vietnã.

Salete-repórter de rádio:
Contudo, “uma das visitas com menor repercussão de
Allen Ginsberg foi em Cuba, onde ele ficou favoravelmente
impressionado com o que encontrou. Ele escreveu o se-
guinte, sobre sua chegada, no início de 1965:

Gus:
‘A futilidade Marxista Histórica Revolucionária com to-
ques wagnerianos animou meu coração.’”54

Edson-repórter de rádio:
Mas a “revolução rapidamente se cansou de suas pregações.
Haydée Santamaría disse-lhe (...):

verve, 34: 12-63, 2018 43


34
2018

Bia:
[você pode] até discutir drogas e homossexualismo com
altas autoridades, mas não deixar[emos que você] (..)
espalh[e] essas ideias para a população em geral. (...)

Edson-repórter de rádio:
Ginsberg ficou impressionado com a experiência cubana
da construção de uma nova sociedade. Mas os cubanos não
ficaram impressionados com Ginsberg. (...)

Salete-repórter de rádio:
Uma autoridade do governo, com três guardas unifor-
mizados, disse-lhe que fizesse as malas e o colocaram no
próximo avião para o exterior que, por acaso, ia para a
Checoslováquia, outro país de onde ele logo seria expul-
so”55, depois de ter sido coroado o Rei de Maio durante o
1º de maio em Praga daquele mesmo 1965.

Edson-repórter de rádio:
Mais tarde escreveria:

Gus:
“E os Comunistas não têm mais nada a oferecer a não ser
bochechas gordas e óculos e policiais mentirosos
e os Capitalistas oferecem Napalm e dinheiro em valises
verdes aos
Nus...”56

Bia:
“Antes, os artistas eram marginalizados. Hoje, nós os propo-
sitores, estamos muito bem colocados no mundo. Consegui-
mos sobreviver — apenas propondo. Há um lugar para nós
na sociedade. Há um outro tipo de pessoas que prepara o que
vai acontecer, outros precursores. A eles, a sociedade conti-
nua a marginalizar. No Brasil, quando houve uma briga com
a polícia e eu vi um jovem de dezessete anos ser assassinado
(coloquei sua foto na parede de meu atelier), tomei consciên-
cia de que ele cavou com seu corpo um lugar para as gerações
posteriores. Esses jovens têm a mesma atitude existencial que

44 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

nós [artistas-propositores]: lançam processos dos quais não


conhecem o fim, abrem caminho onde a saída é desconhe-
cida. Mas (...) [a] sociedade é maior e ela os mata. É porque
eles atuam mais do que nós. (...) São incendiários. São eles que
fazem balançar o mundo. Quanto a nós, [os artistas] às vezes
me pergunto se não estamos um pouco domesticados.”57

Cena 12: Cultura asfixiante


Lili:
Há uma “arte dos que são separados da sociedade e da cul-
tura no seu sentido mais amplo (ou estrito), os eximidos
do convívio com os demais. São os internos de asilos, hos-
pícios, clínicas, prisões, casas de reabilitação, estes tristes
lugares de onde não se sai e, se for possível sair, não será
como se entrou. Faltará algo que foi perdido para sempre.
É esta arte que Jean Dubuffet denominou de Arte Bruta, e
que pode ser entendida como resultado da recusa à cultura
asfixiante, nome que deu ao seu texto manifesto publicado
em 1968.

Gus:
‘Sou um individualista, ou seja, considero que meu papel
de indivíduo é o de me opor a toda compulsão ocasionada
pelo interesse do bem social. Os interesses do indivíduo
são opostos aos do bem social. Querendo servir a ambos ao
mesmo tempo, só se desemboca em hipocrisia e confusão.
Se o Estado vela pelo bem social, eu devo velar pelo do
indivíduo. Do Estado só conheço uma cara: a de polícia.
Todos os departamentos dos ministérios de Estado têm,
aos meus olhos, um só rosto e somente posso imaginar o
ministério da cultura como a polícia da cultura, com seu
prefeito e seus comissários. Figura que me é extremamente
hostil e repugnante.’

Flávia:
Os autores da Arte Bruta são marginais refratários ao ades-
tramento educativo e ao condicionamento cultural, entrin-
cheirados numa posição de espírito rebelde a qualquer

verve, 34: 12-63, 2018 45


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2018

norma e a qualquer valor coletivo. Não querem receber


nada da cultura, nem querem nada lhe dar. Não aspiram
comunicar-se, em todo caso não segundo os procedimen-
tos mercadológicos e publicitários próprios do sistema de
difusão da arte.”58

Lili:
“A obra é pois vista pelo seu autor como um suporte aluci-
natório; é da loucura que se deve falar, porquanto se isente
o termo de suas conotações patológicas. O processo criati-
vo escapa assim imprevisivelmente de um episódio psicó-
tico, articulando-se segundo sua lógica própria, como uma
língua inventada. Aliás, quando os autores da Arte Bruta
também se exprimem pela escrita, é acomodando a gramá-
tica e a ortográfica aos seus ânimos.”59

Flávia:
“A cultura asfixiante cumpre sua função: está acabando
com a possibilidade de respirar”.60

Salete:
“Caro Antonin Artaud,
Habituei-me, evitando os intermediários folgazões, a pen-
sar em você, no desconhecido e na falta de propósito. As-
sim se mantêm intactos a ligação que tenho por sua obra
e o afeto que sinto por sua pessoa. As circunstâncias me
ensinaram a economia de raríssimos vulcões e também do
poder de evaporação de tudo o que tem preço, por pouco
que se queira apreendê-lo. Eu verei, doravante, quebrando
o crânio dos relógios, o apocalipse de Van Gogh se uni-
versalizar por seu intermédio. Sua charrua ara esse mun-
do perdido, ergue e devolve ao seu curso apaixonado os
inextinguíveis meteoros que os carrascos de sempre tentam
enterrar em seu estrume. Obrigado ainda, Antonin Artaud,
por viver no fogo de trigais. René Char.”61

46 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Cena 13: Polônia


Edson-repórter de rádio:
Na Polônia, “em 11 de março, milhares de estudantes mar-
charam para o centro de Varsóvia e foram até a frente da
fachada cinzenta, totalitária, art déco do quartel-general do
Partido Comunista polonês.

Lili:
Ali, com autoridades do Partido olhando para baixo, de um
terraço no sexto andar, a polícia novamente apareceu e ba-
teu nos jovens com grossos bastões, derrubando-os no chão
com murros, espancando-os até sangrarem e arrastando-os
para longe. Alguns reagiram lutando, atirando entulho na
polícia. O combate demorou duas horas.

Vitor:
Os poucos milhares de manifestantes eram um pequeno
número (...) para protestar contra a Guerra do Vietnã, mas
para um país do bloco soviético era uma ocorrência surpre-
endente, noticiada em primeira página no mundo inteiro.

Salete-repórter de rádio:
Do lado de fora do campus universitário, os caminhões
cheios de homens em trajes civis que chegaram foram sau-
dados pelos manifestantes com gritos de

Todos:
‘[Fora] Gestapo!’.

Salete-repórter de rádio:
Em 1968, era difícil ocorrer uma manifestação, de Varsóvia
a Berlim, a Paris, a Chicago e à Cidade do México, cujos
participantes não comparassem a polícia aos membros das
tropas de assalto da Alemanha nazista.

Flávia:
Em Varsóvia, essas tropas de choque em trajes civis, que
chegavam de caminhão, as que os estudantes chamavam

verve, 34: 12-63, 2018 47


34
2018

de Gestapo, eram frequentemente a milícia dos operários,


aos quais fora dito que os manifestantes estudantis eram
garotos privilegiados, que moravam nos melhores aparta-
mentos e viajavam para Paris, coisas que, de forma geral,
eram verdadeiras.

Gus:
Embora houvesse abundantes relatos de que trabalhadores
se recusavam a entrar nos caminhões e se negavam a par-
ticipar do combate às manifestações, lançar os operários
contra os estudantes era uma estratégia bem-sucedida do
governo.

Bia:
Em 11 de março, antes de o dia terminar, estudantes e mi-
licianos já haviam combatido por quase oito horas nas ruas
de Varsóvia. O governo fechou as fábricas cedo, para que os
operários fizessem manifestações contrárias, denunciando
os estudantes como ‘quinta-colunas’.

Edson-repórter de rádio:
Sabia-se bem que, nos Estados Unidos, os manifestantes
contra a guerra gritavam para o povo: ‘Juntem-se a nós!’ Os
estudantes de Gdansk não tiveram mais sorte com os ope-
rários do que os estudantes de Washington com a Guarda
Nacional. Em Poznan, os estudantes gritaram:

Todos:
‘Um viva para os operários de Poznan!’,

Edson-repórter de rádio:
mas lá também os operários não aderiram ao movimento.”62

Cena 14: Eleições em 1968


Vitor:
“No Haiti, [no] Caribe, era o décimo-primeiro ano de go-
verno de François Duvalier, o pequeno médico rural, ami-
go do negro pobre, que se tornara um assassino em massa.

48 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Numa entrevista coletiva à imprensa, em meados do ano,


ele fez um sermão para os jornalistas: ‘Espero que a evo-
lução da democracia, que vocês observaram no Haiti, sirva
de exemplo para os povos do mundo, em particular para os
Estados Unidos, com relação aos direitos civis e políticos
dos negros.’”63

Gus:
“1968 foi um ano de uma série de eleições nacionais ou
locais na Europa, e nas Américas. Entre eleições diretas e
ditaduras, prevaleceu o governo conservador de militares e
dos democratas-cristãos.”64

Edson-repórter de rádio:
Na França, depois dos levantes de maio, venceu o conser-
vador da União Democrática para a República, e elegeu
o Primeiro Ministro Georges Pompidou, com campanha
apoiada pela maioria silenciosa; na Itália, a Democracia
Cristã; na Bélgica, o Partido Social Cristão; em Luxem-
burgo, o Partido Popular Social Cristão; nos EUA, o re-
publicano cristão, Richard Nixon; na Venezuela, Rafael
Caldera, do Partido Social Cristão; e, em El Salvador, os
conservadores do Partido da Conciliação Nacional.

Salete-repórter de rádio:
Em Portugal e na Espanha, seguiam as ditaduras: a sala-
razista, agora com Marcelo Caetano, e a franquista; assim
como na América do Sul militares com apoio civil gover-
navam no Paraguai, no Peru e no Brasil.

Flávia:
“As explosões rebeldes de 1968 conviveram com a propagação
conservadora institucional. A população de bem, cristã, bem
comportada e bem conformada mostrou que diante de ebu-
lições inventivas, Deus e o Estado devem assegurar a paz em
sua mortificação, ainda que sobre carnificinas silenciosas.”65

verve, 34: 12-63, 2018 49


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2018

Cena 15: China, Cuba e o purismo


Gus:
“A China também teve sua geração de 1968, os primeiros
chineses nascidos e criados na revolução, e, como o resto do
mundo, eles se inclinavam para a esquerda. Na Revolução
Cultural, foram os paladinos de Mao, liberados de suas es-
colas para serem a ‘Guarda Vermelha’ de vanguarda, como
foram rotulados em maio de 1966 por estudantes radicais
da Universidade Qinghua. O propósito declarado de Mao
era combater a insinuante mentalidade burguesa. (...) Os
chineses pareciam determinados a não deixar sua revolução
descer para a venalidade e a hipocrisia dos soviéticos. (...)

Bia:
Os líderes cubanos estavam intrigados com o esforço (…)
[da China de Mao e seu livrinho vermelho] para purificar
sua revolução. A pureza revolucionária sempre fora um as-
sunto favorito do martirizado Che, que se opusera veemen-
temente a todos os incentivos financeiros, porque temia que
corrompessem a revolução. Castro era mais pragmático e
este desacordo, junto ao fato de que a verdadeira revolução
estava terminada, levou à decisão de Che de renunciar ao
governo e partir para outra revolução.

Flávia:
Castro declarara que 1968 era ‘o ano do guerrillero herói-
co’.”66 Che havia sido assassinado na Bolívia, em 9 de ou-
tubro de 1967.

Vitor:
Se a recusa da guerra do Vietnã apareceu em todos os movi-
mentos de 68 nos Estados Unidos e na Europa deflagrando
as revoltas, na América Latina a Revolução Cubana foi o
estopim de quase tudo.

Gus:
“apesar de serem de ‘esquerda’ — dizer que [os estudantes] são
revolucionários é uma coisa, agirem como reacionários é outra

50 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

e mais real, pois é o modo como se manifestam: isso não é no-


vidade, acontece todos os dias. O símbolo de Guevara parece
ter sido absorvido pela classe dominante e passa a ser também
instrumento deles, numa forma qualquer de liberalismo.”65

Cena 16: Vincennes, a novidade!


Bia:
“[Pressionado, o] governo francês [cria] o Centro Universi-
tário Experimental de Vincennes. (...) [Para esse local] bem
específico [foram] as energias contestadoras e revolucioná-
rias dos estudantes que pretendiam abolir o capitalismo e o
Estado. (...)

Lili:
[Subsidia] uma adesão massiva por parte de estudantes e
sobretudo de professores (...) ansiosos por refletir e ana-
lisar variadíssimas temáticas (...) passíveis de estruturar a
emancipação social do proletariado que (…) [aderia] mas-
sivamente a esta experiência universitária.

Vitor:
[Houve a] inscrição maciça de estudantes que tinham par-
ticipado no Maio de 1968 (...) foi permitido o acesso di-
reto de trabalhadores que tinham mais de 25 anos e não
possuíam o ensino secundário completo. (...)

Salete-repórter de rádio:
A experiência da Universidade de Vincennes-Paris VIII
como consequência direta do Maio de 1968 na França, se
teve um conteúdo revolucionário efetivo, foi, sem dúvida,
nas (...) relações hierárquicas baseadas na autoridade for-
mal [que] foram quase sempre abolidas;

Edson-repórter de rádio:
a transmissão de conhecimentos deu lugar a uma apren-
dizagem generalizada entre ambos e, ao mesmo tempo, a
democracia direta e a autogestão eram atributos dos pro-
fessores e estudantes.

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2018

Flávia:
Os exames e testes foram abolidos, (…) [e] a avaliação de
cada disciplina era outorgada pela presença física e discus-
são de textos.”68

Cena 17: miscelânia


Vitor:
A universidade de “Colúmbia se tornara, para [os] estudan-
tes, um centro revolucionário. Estudantes e líderes estu-
dantis de outras universidades e até de escolas secundárias
apareceram para manifestar seu apoio. Um número cada
vez maior de pessoas do Harlem, tanto grupos organizados
quanto indivíduos, chegaram ao campus e fizeram grandes
manifestações. Stokely Carmichael e H. Rap Brown foram
até Hamilton Hall, agora rebatizado como Universidade
Malcolm X. Os jovens do Harlem chegaram ao campus gri-
tando [Black Power] ‘Poder Negro!’ Era o pesadelo [para
o reitor] Grayson Kirk.”69 Em 4 de abril de 1968 Martin
Luther King Jr. fora assassinado.

Flávia:
E Ângela Davis já era Professora de Filosofia na Universi-
dade da California, em Los Angeles.

Bia:
“Em 1968, a Life classificou a nova música rock como ‘a
primeira música nascida na era da comunicação instantâ-
nea’. Em junho de 1967, os Beatles realizaram a primei-
ra transmissão internacional ao vivo, por satélite, de um
show.”70 Antigamente os prazeres da carne eram comida,
bebida e sexo, a partir de 68, sexo, drogas e rock 'n' roll.

Flávia:
Inovações na tecnologia da TV mudaram os noticiários:
o videotape (barato porque NÃO precisa ser processado
antes da transmissão) e o satélite. (…)

52 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Bia:
Os primeiros satélites, como o Early Bird, não eram geoestacio-
nários — não mantinham sua posição relativa à Terra — e, por
causa disso, só podiam receber transmissão de qualquer ponto
da Terra em certas horas do dia.”71

Flávia:
“Se outra geração de 1968 for, algum dia, novamente produ-
zida, seus movimentos terão todos sites na Web, e eles serão
cuidadosamente monitorados pelas forças da lei, (...) a fim de
se atualizarem. E não resta dúvida de que outros instrumentos
serão inventados. Mas até a ideia de novas invenções tornou-
-se banal.”72

Cena 18: Outros espaços


Lili:
“NUNCA EXPLIQUE O QUE VOCÊ ESTÁ FAZEN-
DO. Isto desperdiça muito tempo e raramente consegue
êxito. Mostre-lhes por meio de sua ação e, se não entende-
rem, fodam-se, talvez você consiga atraí-los com a próxima
ação. ABBIE Hoffman73

Gus-Burroughs:
“Cito a seguinte frase tirada do jornal London Express, de
30 de dezembro de 1968: ‘Se você for um jovem com me-
nos de 25 anos de idade, em forma e com reflexos precisos,
que não tem medo de nada, tanto do céu quanto da terra,
e tem grande entusiasmo por aventuras, não hesite em se
candidatar à vaga de astronauta.’ [Espaço é a nova frontei-
ra? Seria esta a fronteira aberta aos jovens?] Dr. Paine, do
Centro Espacial de Houston, Texas:

Vitor:
Este voo [Apollo 8] foi um triunfo para os caretões desse
mundo, que não são hippies, que trabalham com réguas de
cálculo e que não têm vergonha de fazerem uma oração de
vez em quando.

verve, 34: 12-63, 2018 53


34
2018

Gus-Burroughs:
É esta a grande aventura do espaço? São estes homens que
vão dar os passos em regiões literalmente impensáveis em
termos verbais? Para viajar no espaço é preciso deixar para
trás o velho lixo verbal: o discurso de deus, o discurso da
pátria, o discurso da mãe, o discurso do amor, o discurso
do partido. É preciso aprender a existir sem religião, sem
pátria, sem aliados. É preciso aprender a viver sozinho e em
silêncio. Alguém que reza no espaço não está lá.”74

Cena 19: A na bola


Flávia:
“Ao chegar a Paris meu propósito era o de ajudar na apro-
ximação entre os diversos grupos e tendências em que se
fragmentava o reduzido movimento anarquista, o que me
levou a sugerir iniciativas (...) [aos] mais jovens (...)

Vitor:
uma forma de propiciar uma confluência consistia em en-
contrar um denominador comum que (...) pudesse consti-
tuir um ponto de coincidência (...)

Flávia:
multiplicar a presença notada do movimento anarquista
pelo simples fato da repetida aparição deste denominador
comum nas expressões públicas (...) dos diferentes coleti-
vos anarquistas [pasquins, pichações, etc.].

Vitor:
Propus esta ideia a um dos grupos que pertencia, insistin-
do que deveria ser um símbolo que fosse fácil e rápido de
desenhar, e que evocasse o anarquismo de forma suficien-
temente direta.

Flávia:
A proposta foi aceita, nos lançamos a uma profusão de
ideias e a altas horas da noite concordamos que um ‘A’ em
um círculo poderia ser um bom logotipo. Foi assim que

54 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

em abril de 1964, saía na página inteira do nº 48 de nosso


boletim “Jeunes Libertaires”, [o] primeir[o] ‘A’ n[a bola].

Vitor:
Acompanhava um editorial no qual se explicava o sentido
da proposta e se convidava todos os grupos anarquistas a se
apropriarem desse símbolo. Na realidade apenas havíamos
criado uma imagem e formulado uma proposta, não havía-
mos criado um símbolo (...)

Flávia:
[O ‘A’ na bola se tornaria] em um símbolo do anarquismo
mediante a ação de milhares de mãos que a pintariam nas
ruas do mundo; trata-se de uma criação coletiva maciça
cuja paternidade não pertence a ninguém.”75

Cena 20: Curso Livre


Gus:
O Curso Livre de Anarquismo no Rio de Janeiro “talvez
tenha sido a atividade pública que tenha suscitado o maior
interesse e colhido de surpresa os ambientes universitários,
a opinião pública, bem como os serviços de polícia. Tratou-
-se de um desafio aberto à ditadura, pois o rótulo 'anar-
quismo' reaparecia abertamente e com bastante evidência
em um cartaz de grandes dimensões afixado nos quadros
murais de todas as faculdades (...) e das escolas particulares
mais importantes (...)

Lili:
As prisões ocorreram durante o mês de outubro de 1969,
(...) um ano após a conclusão do curso no Teatro Carioca.
Estava previsto e cada um de nós tinha se preparado para
isso (pelo menos, foi assim que pensávamos). (...)

Vitor:
Minha prisão ocorreu no Dia dos Professores, 15 de outu-
bro de 1969. Fui levado ao Quartel Geral da Aeronáutica

verve, 34: 12-63, 2018 55


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2018

Militar no Galeão, junto com o professor [e anarquista]


Roberto das Neves.

Flávia:
Os outros foram presos em dias diferentes resultando num
total de dezesseis militantes, todos anarquistas menos um.
A acusação era de atividades subversivas, de complô con-
tra o governo, de fabricação de explosivos, de formação de
guerrilhas, de financiamentos ilícitos de proveniência es-
trangeira e assim por diante. (...)

Vitor:
Fomos soltos depois de três ou quatro dias, alguns só de-
pois de um mês, porém fomos todos denunciados.”76

Gus:
“Os acontecimentos na França, na Tchecoslováquia, a pu-
blicidade de nosso curso no Teatro Carioca, artigos no
Jornal do Brasil, a propaganda do Movimento Estudantil
Libertário, tudo contribuiu a criar um clima favorável à di-
fusão do anarquismo no Rio de Janeiro. A edição previs-
ta pela Editora Germinal [do livro de Daniel Guérin, O
anarquismo] esgotou rapidamente.”77

Cena 21: Enfim…


Salete:
“Em 68 foram muitos os audaciosos enfrentando o insu-
portável com forças e atitudes, até mesmo com o ideal de
revolução herdado da Revolução Francesa, da Revolução
Russa, Chinesa e Cubana.

Edson:
Não esperavam que esse guia revolucionário, tido e visto
em progresso ou evolução, seria ultimamente substituído
pelo ideal da independência estadunidense: a democracia.

56 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Bia:
E o que esta palavra, prática e diversidade comportaram
naquele momento e nos seguintes, também se viu reduzido
a uma nova uniformidade como democracia representativa,
participativa, pública, enfim, uma democracia de governo
do Estado e das relações (...).”78

Lili:
O 68 também trouxe uma nova leitura sobre o direito pe-
nal, o sistema penal, as penalizações e punições pelo mili-
tantismo abolicionista penal.

Flávia:
Movimento e outra linguagem para lidar com situações
problemáticas contestando a particularidade do universa-
lismo do direito penal, o funcionamento e o alto custo dos
encarceramentos, propondo uma nova maneira de abordar
cada situação problemática como singularidade."79

Vitor:
“68 foi um ano libertário para negros, mulheres, bichas,
jovens, operários, estudantes, pesquisadores e aqueles que
decidiram contestar a ordem do socialismo autoritário, das
guerras imperialistas, das ditaduras, dos fascismos, das me-
galópoles, dos colonialismos, da vida urbana consumista...

Gus:
[68] produzi[u] um militantismo, uma atitude de vida que
se afasta da instituição da sociedade. Tudo, ou quase tudo
se desarranjou. Desafiaram e levaram a cabo um basta ao
estabelecido, ao convencional.”80

Coro:
“Libertem todos os prisioneiros políticos
Libertem todos os prisioneiros políticos
Todos os presos são prisioneiros políticos
Todo maconheiro fuma um prisioneiro político
Todo assaltante um prisioneiro político
Todo falsário um prisioneiro político

verve, 34: 12-63, 2018 57


34
2018

Toda criança furiosa que quebra uma janela uma prisio-


neira política
Toda puta, cafetão, assassino, um prisioneiro político
Todo pederasta, traficante, motorista bêbado, ladrão
caçador, grevista, fura-greve, estuprador
Urso polar no Zoológico de São Francisco, prisioneiro po-
lítico
Sábia tartaruga secular no Aquário de Detroit, prisioneira
política
Flamingos morrendo no parque turístico de Phoenix, pri-
sioneiros políticos
Lontras no Museu do Deserto de Tucson, prisioneiras po-
líticas
(...)
Toda criança na escola uma prisioneira política
Todo advogado em seu cubículo um prisioneiro político
(...)
Toda dona de casa uma prisioneira política
Todo professor mentindo na cara dura um prisioneiro po-
lítico
Todo indígena em reserva um prisioneiro político
Todo negro um prisioneiro político
Toda bicha escondendo-se no bar um prisioneiro político
Todo viciado injetando no banheiro um prisioneiro polí-
tico
Toda mulher uma prisioneira política
Toda mulher uma prisioneira política
Você prisioneiro político preso a um corpo tenso
Você prisioneiro político preso a uma mente rígida
Você prisioneiro político preso aos seus pais
Você prisioneiro político preso ao seu passado
Liberte-se (...)”81

FIM

58 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

Notas
1
Aula-teatro 24 do Nu-Sol. Pesquisa: Acácio Augusto, Beatriz Scigliano
Carneiro, Edson Passetti, Eliane K. Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Simões,
Lúcia Soares, Luíza Uehara, Salete Oliveira, Sofia Osório, Thiago Rodrigues
e Vitor Osório. Com: Beatriz Scigliano Carneiro, Edson Passetti, Eliane K.
Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Simões, Salete Oliveira e Vitor Osório.
Coordenação de Edson Passetti.
2
Hilda Hilst. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo, Globo, 2005, epígrafe.
3
William Burroughs. “The Coming of the Purple Better One” in Esquire,
novembro de 1968. Apud Mark Kurlansky. 68: ano que abalou o mundo. Tradução
de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro, José Olympio, 2005. p. 11.
4
Diane di Prima. “Revolutionary letter #19” in Revolutionary Letters. San
Francisco, Last Gasp Press, 2004.Versão publicada em 2004, sem permissão,
baseada na 3a edição da City Lights [San Francisco, City Lights Books, 1974].
Tradução de Eliane K. Carvalho.
5
William Burroughs apud Mark Kurlansky, 2005, op. cit., p. 355.
6
Roberto Freire. “Sem paixão não se faz revolução” in Libertárias, São Paulo,
2000, n. 6, p. 69.
7
Salete Oliveira, “Paixão, a incontível revolta” in Libertárias, São Paulo, 2000,
n. 6, p. 53.
8
Beatriz Carneiro. “um dossiê 1968” in Revista verve, São Paulo, Nu-Sol, 2008,
v. 14, pp. 15-24.
9
Zuenir Ventura. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira,1988, p. 136.
10
Ibidem, p. 139, apud idem.
11
Edson Passetti e Gustavo Simões. “68 e os andarilhos” in Revista Direito
Práxis, Rio de Janeiro, 2018, vol. 9, n. 2, p. 996. Disponível em: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/33902.
12
Mark Kurlansky, op. cit., p. 289.
13
Ibidem, p. 305.
14
José Maria Carvalho Ferreira. “Anarquia e o maio de 1968 na França” in
Revista verve, São Paulo, Nu-Sol, v. 33, 2018, pp. 25-28. Disponível em: http://
www.nu-sol.org/blog/dt_portfolios/v-e-r-v-e-33/.

verve, 34: 12-63, 2018 59


34
2018

15
Ibidem, pp. 30-31.
16
Mark Kurlansky, op. cit., p. 46.
17
Ibidem, p. 49.
18
Ibidem, p. 53.
19
Ibidem, p. 59.
20
Ibidem, p. 64.
21
Ibidem, p. 380-381
22
Ibidem, p. 383.
23
Ibidem, p. 391.
24
Ibidem, p. 87.
25
Ibidem, pp. 119-120.
26
Ibidem, p. 120.
27
Ibidem, p. 31.
28
Eduardo Valladares, “1968, um ano apaixonado” in Libertárias, São Paulo,
2000, n. 6, p. 44.
29
Mark Kurlansky, op. cit., p. 427.
30
Ibidem, p. 454.
32
Ibidem, p. 456.
Norman Mailer. A luta. Tradução de Cláudio Weber Abramo. São Paulo,
32

Companhia das Letras, 2011, p. 92.


Philip Roth. Pastoral Americana. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo,
33

Companhia das Letras, 2013, p. 108.


34
Ibidem, pp. 110-111.
35
Edson Passetti e Gustavo Simões, op. cit., p. 1003.
36
Mark Kurlansky, op. cit., p. 422.
37
Ibidem, p. 427.
38
Ibidem, pp. 430-431.
39
Ibidem, pp. 437-438.
40
Ibidem, p. 440.

60 verve, 34: 12-63, 2018


verve
68: invenções e resistências

41
Ibidem, pp. 442-443.
42
Ibidem, pp. 446-447.
43
Ibidem, p. 454.
44
Octavio Paz apud Mark Kurlansky, op. cit., pp. 421-422.
Carlos Fuentes. Em 68: Paris, Praga e México. Tradução de Ebréia de Castro
45

Alves. Rio de Janeiro, Rocco, 2005, pp. 145-156.


46
Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo, Companhia das Letras, 2006, pp. 194-203.
47
“Nothing Is The Only Thing Worth Keeping Of This World That Wants Us
Dead”, June 27, 2010 in Fray Baroque e Tegan Eanelli. Queer Ultra Violence:
a Bash Back! Anthology. San Francisco, Ardent Press, 2011, p. 40. Tradução de
Flávia Lucchesi.
48
Mark Kurlansky, op. cit., p. 402.
49
Edson Passetti e Gustavo Simões, op. cit., p. 1004.
50
Mark Kurlansky, op. cit., pp. 194.
51
Ibidem, pp. 338-339 e 342.
52
Ibidem, p. 43.
53
Edson Passetti e Gustavo Simões, op. cit., p. 1009.
54
Mark Kurlansky, op. cit., p. 225.
55
Idem, pp. 226-227.
56
Ibidem, p. 125.
57
Manuel Borja-Villel; Nuria E. Mayo, Lygia Clark. Catálogo de exposição-Paço
Imperial Rio de Janeiro. Barcelona, Fundación Antoni Tàpies, 1998, p. 233.
58
Dorothea Voegeli Passetti. “a atualidade de dubuffet: cultura asfixiante” in
Revista verve. São Paulo, Nu-Sol, 2009, vol. 16, p. 152. Disponível em: http://
www.nu-sol.org/blog/dt_portfolios/v-e-r-v-e-16/.
59
Ibidem, p. 157.
60
Ibidem, p. 161.
René Char.“Carta inédita a Antonin Artaud”, 19 de janeiro de 1948. Documento/
61

Biblioteca Nacional da França (BNF) in Florence de Méredieu. Eis Antonin Artaud.


Tradução de Isa Kopelman. São Paulo, Editora Perspectiva, 2011, pp. 965-966.

verve, 34: 12-63, 2018 61


34
2018

62
Mark Kurlansky, op. cit., p. 166.
63
Ibidem, p. 335.
64
Nu-Sol. hypomnemata 201. Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol, maio de
2018. Disponível em: http://www.nu-sol.org/blog/hypomnemata-201/
65
Ibidem.
66
Mark Kurlansky, op. cit., pp. 227-228.
67
Hélio Oiticica. “A trama da terra que treme”, setembro 1968, documento
datilografado.
68
José Maria Carvalho Ferreira, op. cit., pp. 36-38.
69
Mark Kurlansky, op. cit., pp. 227.
70
Ibidem, p. 240.
71
Ibidem, pp. 68-70.
72
Ibidem, p. 16.
73
Abbie Hoffman. “Revolution for the Hell of lt” apud Mark Kurlansky, op.
cit., p. 235.
74
William Burroughs in Daniel Odier. The job. London, Penguin, 2008, p. 21.
Tradução de Beatriz Carneiro.
Tomás Ibañez. “Anarquismo como catapulta”. Entrevista a Lobo Suelto, 2017.
75

Disponível em: http://lobosuelto.com/?p=7543


76
Pietro Ferrua. “a breve existência da seção brasileira do centro internacional
de pesquisas sobre o anarquismo [1ª parte]” in Revista verve. São Paulo, Nu-
Sol, 2009, v. 15, pp. 140-146. Disponível em: http://www.nu-sol.org/blog/
dt_portfolios/v-e-r-v-e-15/
77
Ibidem, p. 155.
78
Edson Passetti e Gustavo Simões, op. cit., p. 994.
79
Edson Passetti. “Mortos e mortificações: da política das condutas à atitude
vital” in Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, 2018, n. 12, p. 393.
80
Idem, p. 393.
81
Diane di Prima.“Revolutionary letter #63” in Diane Di Prima, op. cit..

68: inventions and resistances, Edson Passetti & Gustavo


Simões.

62 verve, 34: 12-63, 2018


34
2018

de avignon ao brasil, a vida de


julian beck, uma anotação anarquista

gustavo simões

Enrique Vila-Matas, em seu último livro, Mac e seu


contratempo, ao expor os pensamentos de um escritor
iniciante e seu diário, argumentou: “embora os assuntos
mundanos logo tenham me levado por caminhos
inesperados e até hoje eu nunca tenha escrito nada com
intenção literária, sempre fui apaixonado pela leitura.
Primeiro, fui leitor de poesia; mais tarde, de relatos,
um amante das formas breves (...) Por outro lado, não
simpatizo com romances, porque eles são, como dizia
Barthes, uma forma de morte: transformam a vida em
destino”.
O disparate da existência, a abordagem assistemática
de ideias em diários e fragmentos reuniu como expôs
Augusto de Campos, “uma pequena constelação de
poetas-pensadores ou pensadores-poetas, que se situam no
polo oposto ao dos articuladores de discursos normativos
e sistemas fechados”. Entre esta pequena constelação que
tem como procedências Heráclito, passando por Novalis e
Nietzsche, segundo o poeta, contemporaneamente chama
Gustavo Simões é pesquisador no Nu-Sol e doutor em Ciências Sociais na PUC-
SP. Contato: gusfsimoes@gmail.com.

64 verve, 34: 64-68, 2018


verve
De Avignon ao Brasil, a vida de Julian Beck, uma anotação anarquista

a atenção a abertura experimental de John Cage, “todos os


seus livros, de Silence a Empty words, mas particularmente
o seu ‘Diário: Como melhorar o mundo (você só tornará
as coisas piores’)”. Por fim, conclui, “os norte-americanos
têm, de resto, atrás de si, a tradição extraordinária dos
Diários de Emerson e Thoreau”4.
Para além dos apontamentos literários de Campos
é preciso sublinhar que, em especial, depois da segunda
guerra, os diários foram um dos principais modos
escolhidos não somente por poetas e artistas, mas, também
por certos anarquistas como modo de apresentar suas
questões ético-estéticas. Na verve, em 2016, publicamos
um breve texto de Julian Beck, anarquista como John
Cage e amigo próximo do compositor, extraído do seu
importante diário The life of theatre, no qual, ele descreve
a participação ativa do The Living Theatre, em maio de
1968, na ocupação do Teatro Odeon. Como registrou
em suas anotações, os acontecimentos de maio, vistos
em um aparelho de televisão na Sicília, Itália, enquanto
ensaiavam Paradise now, foram decisivos para que o grupo
interrompesse suas atividades e se lançasse na agitação
das ruas. Agora, nesta edição mais recente da revista, o
Nu-Sol retoma as anotações do anarquista e inventor do
Living Theatre, ao lado de Judith Malina, seguindo com as
traduções de histórias ainda pouco conhecidas no Brasil,
desta vez acerca do abandono de Living, em julho de
1968, do Festival de Avignon.
Judith Malina e Julian Beck desembarcaram no Festival
de Avignon – evento inventado depois do fim da guerra, em
1947, por alguns artistas e intelectuais, entre eles o poeta
René Char –, no início de julho, pouco tempo depois de
terminada a ocupação do Odeon. Ainda animados com a

verve, 34: 64-68, 2018 65


34
2018

“grande obra em 30 dias”, maneira pela qual Beck definiu a


tomada do teatro parisiense, encontraram uma cidade não
menos polvorosa do que Paris. Dias antes, atuando pelas
ruas, o grupo Theatre Chêne Noir havia sido duramente
reprimido pela polícia francesa, a CRS. Logo após a sua
chegada, em protesto contra a violência e em apoio aos
Chêne, o elenco do Living apresentou Antígona com as
bocas tapadas por fitas coloridas simbolizando a bandeira
francesa. Em seguida, no Palais de Papes, um dos palcos
mais importantes de Avignon, o grupo finalmente deu
forma a Paradise now, provocando, de um lado, a reação de
gaullistas que tentavam interromper sem sucesso a ação
do grupo e, de outro lado, a alegria dos enragés que, ao
final, saíram pelas ruas gritando “o teatro está nas ruas”.
A partir da apresentação de Paradise now, o The Living
Theatre anunciou publicamente que se apresentaria
gratuitamente pelas ruas de Avignon. Todavia, assim
que chegaram ao bairro operário de Champfleury foram
impedidos de trabalhar por setenta e cinco policiais
fortemente armados. Segundo Joseph Tytell, o prefeito
da cidade de Avignon – usando como justificativa a
prevenção de supostos confrontos entre jovens de direita
e esquerda –, depois de tomar conhecimento do conteúdo
de Paradise now e da própria existência anarquista dos
integrantes do The Living Theatre, emitiu um decreto
especial proibindo qualquer apresentação do coletivo
libertário. Segundo Denis Yueh-Yeh Li, ator do The Living
Theatre, em 2016, um morador que narrou suas memórias
da época corroborou com a pesquisa de Tytell. “Ele veio
nos contou uma pequena história do porquê os Living se
tornaram uma presença controversa (...). Um integrante
estava tomando banho no meio do dia. Seu filho correu

66 verve, 34: 64-68, 2018


verve
De Avignon ao Brasil, a vida de Julian Beck, uma anotação anarquista

para a rua. Ele tentou pegá-lo o mais rápido possível. Em


vez de vestir suas roupas, saiu com uma toalha cobrindo
somente a parte inferior do corpo. Alguns cidadãos de
Avignon condenaram a ação como algo que perturbaria
a paz da cidade”.
Julian Beck, no texto a seguir, excerto 83 de The life of
theatre, explicita a ruptura do Living com o Festival após o
decreto do prefeito; atualiza a afirmação de Liev Tolstói em
O que é arte? de que trabalhos artísticos não podem excluir
ninguém social e economicamente; utiliza termos de Jean
Dubbufet irrompidos em 68 como cultura asfixiante. E,
finalmente, sublinha um deslocamento fundamental da
perspectiva do grupo após o fogo de 1968. No rescaldo da
ocupação do Odeon, em Paris e da realização de Paradise
Now, em Avignon, além de se liberar do teatro, Malina
e Beck abandonaram também a Europa e os Estados
Unidos, experimentando o nomadismo no Marrocos e no
Brasil, de onde Beck redigiu, em 11 de outubro de 1970,
o que se lerá adiante.
Em plena ditadura civil-militar, no governo de
Garrastazu Médici, em meio ao trabalho constante nas
favelas do Rio de Janeiro e a dificuldade de se comunicar
em linguagem fluente com trabalhadores e o lumpen, o
anarquista recordou “os anos em que viajávamos pela
Europa em vans VW, pirados, observando a paisagem
(...). Recordo de teatros, nos quais, pessoas atentas nos
recebiam e nos agradeciam”. Entretanto, logo adiante,
corajoso, completa afirmando suas próprias decisões ético
e estéticas: “pela primeira vez na minha vida alerto que no
passado, a cultura, o modo de vida que levava, ao mesmo
tempo em que me premiava com medalhas e amenidades,
foi me esvaziando”.

verve, 34: 64-68, 2018 67


34
2018

Agora, 2018, em meio a comemoração de cinquenta


anos dos acontecimentos 68, é mais que vibrante retomar
esse breve trecho do diário de Julian Beck – artista
que escreveu e viveu de maneira anarquista –, não de
maneira nostálgica. “A nostalgia é reacionária”, anotou
o libertário, neste excerto 83. Julian Beck, mais adiante,
nas páginas que seguem, explicita que o anarquismo é
sempre contemporâneo e, assim como os diários, é repleto
de invenções singulares e intransferíveis, basta começar a
escrever.

Notas
1
Enrique Vila-Matas. Mac e seu contratempo. Tradução de Josely Vianna
Baptista. São Paulo, 2018, p. 12.
2
Augusto de Campos. “Valery: eu mordo o que posso” in Paul Valery: a
serpente e o pensar. São Paulo, Brasiliense, 1984.
3
Idem.
4
Idem.
5
Ver a definição na aula-teatro publicada neste número de verve.
6
Joseph Tytell. The Living Theatre: Art, Exile and Outrage. New York, Groove
Press, 1995.
7
Ver Dennis Yueh-Yeh Li. “AVIGNON”, disponível em: https://www.
livingtheatre.org/single-post/2016/11/29/AVIGNON. Acesso em:
27/09/2018.
8
Ver Dorothea Passetti, “a atualidade de dubuffet: cultura asfixiante” in
verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 16, 2009.

68 verve, 34: 64-68, 2018


verve

83

julian beck

Avignon, 1968, inventamos Paradise now no ano em que


a cultura morreu. Na cidade siciliana de Cèfalu, enquanto
trabalhávamos, entre o inverno e o início da primavera,
compondo dialeticamente uma revolução anarquista não-
violenta, já fazíamos parte do movimento que floresceu em
maio na França e ao redor do mundo naquele ano. Zeitgeist.
As circunstâncias forçaram nossa retirada do Festival
de Avignon. Não tínhamos paixão para continuar.
Observamos que todos aqueles festivais eram de fato
contrarrevolucionários.
Naquele ano toda a arte começou a desaparecer. Toda
a bela arte que valorizávamos, toda a arte que pensávamos
ser uma forma de experiência máxima. Naquele ano,
começamos a encarar a arte como algo que fortalece a
estrutura. Toda essa arte de festival faz com que seu público
privilegiado acredite que a visão da face de Deus é imediata
como um produto do Festival. Como dizem, a visão do
rosto de Deus é sempre próxima para aqueles que a olham.
Mas, estar à procura significa também que não há como se
esconder. “Adão se esconde para escapar da responsabilidade
Julian Beck foi inventor, junto com Judith Malina, do The Living Theatre, grupo
de teatro anarquista fundado em 1947.

verve, 34: 69-73, 2018 69


34
2018

de sua vida, convertendo a existência em um sistema de


esconderijos. E nesta fuga constante da ‘face de Deus’, é
cada vez mais anunciada sua perversão” (Buber). Quando
alguém se esconde do povo, esconde-se do próprio rosto.
Quando alguém vai à arte, aos festivais onde outras pessoas
não podem ir porque são marginalizadas econômica, social
ou culturalmente, é um modo de se esconder de Deus.
Dois incidentes concretos nos proporcionaram a
justificativa da qual precisávamos para deixar o Festival
de Avignon. O primeiro foi a proibição de representações
posteriores de Paradise now (nos pediram para substituí-lo
por Antígona). O segundo foi a proibição de apresentações
gratuitas nas ruas de Avignon (na noite anterior, quando
declaramos o abandono do Festival, setenta e cinco
policiais bem armados foram ao nosso encontro quando
estávamos no bairro operário de Champfleury para
representar livremente Mysteries nas ruas). Entretanto, na
declaração tentamos explicitar as verdadeiras razões da
nossa ação. Apresentamos onze motivos, entre eles, bem
na metade, os números seis e sete definiam nossa saída:
6. Para nós não é possível servir a Deus e a Mammon
[dinheiro] ao mesmo tempo; não podemos servir ao
povo e ao Estado ao mesmo tempo; não podemos dizer a
verdade e mentir ao mesmo tempo.
7. Enfim, chegou a hora de começar a se recusar a servir
aqueles que querem o conhecimento e o poder da arte apenas
àqueles que podem pagar por isso; que querem manter as
pessoas no escuro e trabalhando para a Elite do Poder; que
querem controlar a vida do artista e as vidas das pessoas.
Depois de 68, a cultura asfixiada, a conspiração
internacional foi à luta. Estamos à procura de outras

70 verve, 34: 69-73, 2018


verve
83

maneiras para sair do labirinto. Não temos mapas e o


Minotauro (Mammon) espreita em cada esquina. Enquanto
isso, deslizando, repetimos pelos corredores o mantra
“venceremos, venceremos...”, nos encontramos, em outubro
de 1970, rastejando pela floresta no Rio de Janeiro. Onde?
Como? O quê? Circunstâncias desconfortáveis, problemas
inéditos, um terreno distinto. Atravessando as barreiras de
classe sinto uma espécie de medo, suo, contorço os dedos.
Creio que é a minha sensação de falta de proximidade com
os trabalhadores, o lumpemproletariado, os camponeses,
os marginalizados, os mais pobres entre os pobres. Não os
conheço e não consigo falar com eles em linguagem fluente.
Eu sou desprovido!
Pior. Durante a noite caí no sono sonhando
nostalgicamente com os anos em que viajávamos pela
Europa em kombis VW, pirados, observando a paisagem,
organizando-nos apenas, mas, organizando-nos o tempo
inteiro. Recordo de teatros nos quais pessoas atentas nos
recebiam e nos agradeciam. “A nostalgia é reacionária...”
Agora, toda a certeza desapareceu. Nada se encaixa
mais, tudo está um pouco fora do lugar, disse Joe Chaikin1...
Eu sei, felizmente. Mas eu ainda não sinto isso. Agora
estou desapontado. Está bem. Mas também estou
desconfortável. Esta viagem não é uma turnê teatral.
A estrutura burguesa seleciona comodidades, conforto
corporal, conforto intelectual, somente para um número
limitado de pessoas. E para se sentir confortável dessa
maneira, a alienação é necessária. Assim se cria uma
cultura alienante, na qual é possível aprender tudo, mas
não fazer nada; desfrutar de um consolo intelectual/

verve, 34: 69-73, 2018 71


34
2018

cultural, suportar tudo, viver uma existência breve e


morrer. O caminho confortável para a morte.
O homem paleolítico, que tentou pintar a si mesmo
com toda a falta de conforto, talvez tenha encontrado as
ferramentas para viver. “O querer” não tem nada com isso.
Nem a pessoa que faz o tecido para o meu casaco (Marx)
“ama” o trabalho. Agora, o alfaiate nunca chegará a amar
seu trabalho até que toda a estrutura mude. Mas ainda
sou privilegiado e sigo fazendo o que eu quero, incluindo
aquilo que não amo.
Nas favelas do Rio, arrastando-me sobre o próprio
estômago, na lama e na merda, assustado, tateando
incertamente, o vento soprando em mim, encontro durante a
noite algo que anteriormente nunca tinha sentido. Pergunto-
me o que é isso, difícil de identificar porque é tão novo.
Meu coração batendo define. Esse sentimento estranho é
vigoroso e o medo que eu experimento não é fraqueza. No
passado, com minha segurança e fama crescentes eu possuía
realmente uma fraqueza que aumentava. O medo de agora é
a emoção que vem com um despertar de vigor. Pela primeira
vez na minha vida alerto que no passado, a cultura, o modo
de vida que levava, ao mesmo tempo em que me premiava
com medalhas e amenidades, foi me esvaziando. Mas, agora,
estou vivendo a transição de cima para baixo, da ilusão à força.

Rio de Janeiro, 11 de outubro, 1971.


Traduzido do inglês por Gustavo Simões.

Notas
1
Integrante do The Living Theatre nos anos 1960.

72 verve, 34: 69-73, 2018


verve
83

Resumo
Julian Beck, neste excerto de sua biografia, relata a ruptura do
The Living Theatre com o Festival de Avignon, anunciando
a morte da cultura em 1968, e o seu estranhamento vigoroso
ao aportar em terras brasileiras, no início da década de 1970.
Palavras-chave: The Living Theatre, 68, Brasil.

Abstract
In this excerpt from his biography, Julian Beck describes
The Living Theatre break up with the Festival of Avignon,
announcing the death of culture in 1968, and his strangeness
when he arrived in Brazil in the early 1970’s.
Keywords: The Living Theatre, 68, Brazil.

83, Julian Beck.


Indicado para publicação em 20 de agosto de 2018.

verve, 34: 69-73, 2018 73


34
2018

roberto freire e o anarquismo de


corpo, prazer e alegria

joão da mata

Em 2018, completaram-se dez anos desde que Roberto


Freire faleceu.
Dez anos, passaram rápido! A ausência do amigo
e parceiro de trajetórias libertárias, dentro e fora da
Somaterapia1, deixa saudades. Mas deixa também a alegria
que sua existência nos trouxe, especialmente naqueles que
conviveram com a inquietude de um homem que não
cessava de se manter jovem.
Sempre atento às questões do tempo presente e suas
incidências nas sociabilidades e nas subjetividades, Freire
ventilou os anarquismos com cheiros e gostos de uma
liberdade libertina e liberada de tesão pela vida, vivificadas
em nossos corpos. Queria retirar dos libertários os ranços
de uma militância triste e sisuda, trazendo para perto o
prazer corporificado em uma existência solar. Avesso
às disputas dentro do jogo participativo das eleições e
crítico feroz do capitalismo, o Bigode, como era chamado
João da Mata é doutor em Psicologia/UFF; Doutor em Sociologia Econômica
e das Organizações/Universidade de Lisboa; Pós-Doutor em História/UFF.
Trabalha com a Soma – uma terapia anarquista há 25 anos. Contato: jodamata@
terra.com.br

74 verve, 34: 74-93, 2018


verve
roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

carinhosamente pelos amigos, despertou especial interesse


nos jovens que viam no anarquismo uma perspectiva ético-
estético-política mais próxima de seus sonhos e quereres.
Anarquista que viveu na pele a contracultura e
testemunha ocular de alguns dos principais acontecimentos
da história recente no Brasil, Roberto Freire foi um
importante pensador libertário que marcou presença
em diversas áreas da cultura brasileira. Além de escrever
mais de trinta livros, entre romances e ensaios políticos
e científicos, envolveu-se no teatro, jornalismo, medicina,
psicologia, cinema e música. Sua implicação na luta contra
a ditadura civil-militar no Brasil — entre as décadas de
1960 e 1970 —, além de sua vinculação nestas distintas
áreas, serviram de fermento para a criação da Somaterapia,
um processo terapêutico-pedagógico anarquista.
Joaquim Roberto Corrêa Freire nasceu em São Paulo,
no dia 18 de janeiro de 1927, e faleceu na mesma cidade,
em 23 de maio de 2008. Em diversas publicações, Freire
defendia um anarquismo visceral, ligado ao corpo, ao
prazer e à paixão, simbolizado na expressão “Sem tesão
não há solução”2, título de um dos seus mais conhecidos
livros.
Esta expressão, curiosamente descoberta por Freire
enquanto caminhava pelas calçadas da Rua da Consolação
em São Paulo, escrita nos muros de um cemitério, tornou-
se uma espécie de “bandeira” de seu pensamento. Depois
de conviver com jovens em vários cantos do Brasil,
Freire constatou que a expressão tesão mudara de sentido
semântico, não mais expressando desejo sexual, mas uma
mistura de beleza, alegria e prazer no ato de viver.

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Segundo Freire, “tesão, agora, é muito mais do que


tesão, porque de substantivo passou a ser adjetivo e está
a pique de virar verbo quase completamente transitivo
e pronominal”3. Para ele, é este modo de encantamento
diante da vida que move a liberdade de ser e estar no
mundo, uma potência para existir livre e criativamente.
Instaurador de uma política libertária do prazer, Freire
soube dar um sentindo anárquico à sua existência, e sua
obra confunde-se com sua própria trajetória de vida.
Roberto Freire formou-se em Medicina na Universidade
do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ), no Rio de Janeiro, em 1952. Obteve destaque
nos estudos em Endocrinologia Experimental — com
bolsa de estudos da Unesco para pesquisas no Collège
de France, em Paris, no ano de 1953 — sob orientação
do prof. Robert Courrier (1895-1986), tendo vários
trabalhos publicados em revistas especializadas brasileiras
e francesas sobre o tema. De volta ao Brasil e após alguns
anos trabalhando como endocrinologista clínico, Freire
realizou sua formação em Psicanálise através da Sociedade
Brasileira de Psicanálise, em São Paulo, e fez trabalhos de
acompanhamento clínico no Centro Psiquiátrico Franco
da Rocha, também em São Paulo, em 1956.
Após algum tempo como psicanalista, Freire decidiu
procurar novos caminhos de investigação em Psicologia,
que o levaram a realizar estágios no exterior: em
Bioenergética, com os colaboradores do ex-psicanalista
Wilhelm Reich, em Paris; e em Gestalt-terapia, com os
colaboradores de Frederich Perls, em Bourdeaux. Suas
divergências teóricas e ideológicas se ampliaram, e Freire
acabou se distanciando da psicanálise, ao mesmo tempo
em que se aproximava cada vez mais do campo artístico-

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roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

literário e político brasileiro. Este era o período da ditadura


civil-militar, e Freire iniciou então sua militância em
organizações de esquerda, especialmente na AP – Ação
Popular4, grupo marxista de ação política ligado à Igreja
Católica, formado em 1962 e composto especialmente
por jovens que então participavam da JUC – Juventude
Universitária Católica.
Durante o período em que militou na clandestinidade,
Freire passou por diversas prisões, sendo torturado física
e emocionalmente em todas elas. A ditadura civil-militar
no Brasil, iniciada após o golpe militar de 31 de março de
1964, durou até 1985, resultando em desaparecimentos,
mortes, torturas e exílios. Até hoje, o Brasil não “acertou
suas contas” com o passado recente. Freire foi personagem
ocular desta história, e mais que isso, levou na carne as
marcas da violência fascista:
“Eu passei por doze prisões e por quase todos os tipos
de tortura. Mas há uma tortura que me marcou bastante e
viria a deixar lesões para toda a vida, foram os chamados
‘telefonemas’, eram as pancadas que eles nos davam nos
dois ouvidos em simultâneo com as duas mãos. Faziam
isso 10 a 12 vezes ao dia e era horrível. Era uma dor
lancinante, caíamos logo. Devido a isso as minhas duas
retinas ficaram deslocadas anos a fio. Dez anos depois
viriam mesmo a cair. Uma vista já não vê e a outra está
muito mal”5.
Foi neste período de luta política que Roberto Freire
conheceu e se interessou pelo anarquismo, assim como
ampliaram suas divergências teóricas e práticas com
os movimentos políticos da esquerda tradicional. Sua
militância política contra a ditadura permaneceu ativa, no

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entanto, mais distante do grupo do qual fazia parte, traçando


outras estratégias de luta e ação. Mesmo divergindo da
forma de atuação e, sobretudo, dos objetivos políticos dos
partidos da esquerda marxista, visando a derrubada do
regime militar e a implantação de um Estado socialista,
Freire participava do movimento revolucionário, dando
inclusive apoio financeiro aos militantes e suas famílias.
Segundo ele, “durante muitos anos, depois de 1968, fiz,
em segredo, atendimento aos militantes clandestinos, e foi
nesses momentos que a Soma descobriu e confirmou, na
prática, seus fundamentos teóricos e políticos, bem como
encontrou a força motivadora para a ação verdadeiramente
revolucionária. Mais tarde, quando eu próprio já não era
mais tão visado pela repressão (pois adotara novas táticas
de ação), pude trabalhar legalmente e transformá-la
também numa fonte de finanças para a manutenção das
famílias de militantes clandestinos ou vitimados por fuga,
prisão ou morte”6.
Antes mesmo do início da ditadura e depois dela, em
paralelo à militância política, Freire desenvolveu intensa
participação no teatro, após abandonar a psicanálise. Ele
dirigiu as peças Escurial, de Michel Guelderode, e Morte
e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Também
escreveu e codirigiu o espetáculo O&A, com Silnei
Siqueira, Quarto de empregada, Sem entrada e sem mais
nada, entre outras.
A peça Morte e vida severina, encenada em 1965, é
destacada por diretores e atores, pois foi a revelação de
um jovem músico: Chico Buarque. Além disso, esta peça
enaltecia, segundo os críticos, dois pilares essenciais no
teatro: a sua alta qualidade artística associada ao trabalho
coletivo do grupo de atores, músicos e diretores. Estes

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elementos foram fundamentais na superação da estrutura


material ainda precária, e impulsionaram o grupo de tal
maneira que no ano seguinte, em 1966, a peça ganhou
os prêmios de crítica e público no IV Festival de Teatro
Universitário Mundial, em Nancy, na França. Além de
receber um importante prêmio internacional, Morte e
vida severina marca a inauguração do TUCA – Teatro da
Universidade Católica.
As precárias condições financeiras para financiar a
viagem do grupo, composto por mais de trinta membros,
entre atores e diretores, foram superadas graças ao apoio
e à colaboração de amigos e integrantes do espetáculo.
Freire vendeu seu telefone; o cantor Chico Buarque, seu
primeiro veículo, um Fusca 1966. Além dos inúmeros
espetáculos realizados pelo grupo para arrecadar fundos,
foram realizados shows de amigos como Elis Regina,
Dorival Caymmi e Geraldo Vandré.
Meses antes da montagem de Morte e vida severina,
Roberto Freire fora convidado pela Reitoria da
Universidade Católica de São Paulo para criar o teatro da
instituição. O músico Chico Buarque, ao referir-se a Freire
e à formação da equipe que levaria o primeiro espetáculo
aos palcos do TUCA, afirma: “Ele me convidou para
musicar Morte e vida severina a partir de um festival da
Excelsior, onde eu era compositor e ele foi jurado. (…)
Eu tinha a sensação de ser o caçula daquele pessoal, sentia
uma incapacidade, achando que não ia conseguir musicar
o poema. Em todo caso, discutia tudo, falava de tudo, e eu
não entendia nada, nem de teatro”7.
Alguns anos antes, em 1958, membros do Teatro de
Arena criaram o Seminário de Dramaturgia, do qual

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Roberto Freire foi um dos participantes mais entusiastas.


“O Arena”, como era conhecido, foi composto por um grupo
de artistas ligados ao teatro com forte implicação política.
Freire teve sua peça teatral Gente como a gente analisada
neste seminário e, posteriormente, dirigida por Augusto
Boal, em julho de 1959. Em depoimento, Roberto Freire
considera que: “o Seminário de Dramaturgia foi mais um
marco histórico que um processo de elaboração de textos
brasileiros. (…) Sem o seminário, teríamos escrito as
mesmas coisas, mas sem a mesma tomada de consciência.
O que me acrescentou alguma coisa foi ter participado
com outras pessoas de uma tomada de posição em favor
do teatro brasileiro”8.
Freire trabalhou também em funções administrativas
da área teatral, como presidente da Associação Paulista
da Classe Teatral; diretor do Serviço Nacional de Teatro
no Governo de João Goulart, deposto logo após o golpe
militar de 1964; e diretor artístico no TUCA. Mas foi nos
tempos de TUCA, como costumava falar, que Freire viveu
o ápice de seu encantamento pelo teatro:
“Criado por estudantes que resistiam e não aceitavam
as imposições deformantes e castrativas de sua liberdade
de associação e manifestação e por profissionais de teatro
que já haviam participado de experiências de cultura
popular e que, após 1964, preferiam não trabalhar em
teatro comercial, o TUCA encontrou logo o apoio da
reitoria da Universidade Católica de São Paulo”9.
Na música, Freire foi letrista e jurado de diversos
Festivais da MPB. Participou ativamente do movimento
cultural que lançou nomes importantes na música brasileira
e que atuariam também como resistência política nos

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anos de chumbo. O pesquisador Zuza Homem de Mello,


em seu livro A era dos festivais10, descreve claramente de
que maneira os resultados dos Festivais passaram a ser
ditados pelos interesses ligados à ditadura civil-militar.
Numa das passagens mais marcantes, Homem de Mello
enfoca o papel de Roberto Freire, um dos membros do
júri nacional: “Ao tentar ler no palco do VII FIC [Festival
Internacional da Canção da TV Globo] um manifesto
contra a destituição do júri nacional, Roberto Freire foi
violentamente arrastado por policiais, que o levaram a
uma sala e o espancaram barbaramente (…). Terminava
aí a Era dos Festivais”11.
Sua atuação foi marcante também na televisão
brasileira, na qual Freire foi autor do Teleteatro, exibido
na TV Record e na Rede Globo. Foi um dos primeiros
roteiristas dos folhetins Malu mulher e A grande família,
este último ainda hoje em cartaz; além de ser autor de
algumas novelas. No cinema, fez a direção e roteiro do
longa-metragem Cleo e Daniel, de sua autoria, com
Myriam Muniz, John Herbert, Beatriz Segall, Irene
Stefânia e Chico Aragão. O roteiro é uma adaptação do
romance homônimo, escrito por Freire em 1966, inspirado
na tragédia Daphnis e Chloe12, do poeta romano Longus.
O romance Cleo e Daniel — primeiro livro publicado
por Freire — é reconhecido como um marco para a geração
de 1960 e 1970, que se identificava fortemente com os
conflitos familiares e amorosos das personagens, frutos
da repressão política e social vividas no Brasil em função
da ditadura civil-militar. Redigido em folhas de jornais
velhos, nas celas das prisões políticas por onde passou, o
livro Cleo e Daniel representou, na visão de Freire, a síntese
do que se vivia no Brasil naquele período de escuridão

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política. A falta de liberdade para a realização do amor


dos jovens, personagens centrais do livro, era o espelho de
uma sociedade calada pela força da repressão fascista dos
militares. Segundo Freire: “Percebi que todas as histórias
de amor e da morte que me habitam, todas mesmo,
possuem em comum um conflito básico: em nosso sistema
político e social, para não morrer temos de nos travestir
(nos mais estritos e nos mais amplos sentidos), e, uma vez
travestidos, o amor torna-se impossível ou irreconhecível.
Então, só nos sobra a vida para viver. E a vida assim, é
muito pouco, ou nada”13.
No jornalismo, Freire foi repórter e redator de medicina
e saúde pública no jornal OESP; diretor responsável do
jornal Brasil Urgente; cronista do jornal A Última Hora
/ SP; repórter da revista Realidade, da Editora Abril, na
qual obteve, em 1967, o Prêmio Esso com a reportagem
Meninos do Recife; diretor de reportagem da revista
Bondinho; editor da revista Grilo (histórias em quadrinhos)
e um dos fundadores da revista Caros Amigos. Na área da
Educação, foi assessor de Paulo Freire no Plano Nacional
de Alfabetização de Adultos e professor na Escola de Artes
Dramáticas da USP.
Em todas as atividades às quais se dedicou — medicina,
psicologia, educação, teatro, televisão, jornalismo e
literatura —, Roberto Freire deixou suas marcas. Porém,
segundo o que afirmava o próprio Freire, a Somaterapia foi
a sua principal contribuição, enquanto teórico e militante
libertário. Fortemente inspirada por sua atividade política
na luta contra a ditadura e sua incursão pelo teatro, a Soma
foi o retorno de Freire à psicologia:

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“Eu estava na Europa e fui ver um espetáculo de Living


Theatre dirigido por Julian Beck. Era um teatro anarquista
norte-americano que não ficou nos Estados Unidos
porque não queria pagar impostos. Saiu pelo mundo
fazendo um sucesso tremendo, porque atuava de uma
forma completamente revolucionária. Eu fiquei fascinado.
Fui então entrevistar o Julian Beck e disse-me que a sua
arte de representar era simples porque eles estudavam
Wilhelm Reich. Eu perguntei quem era, e ele respondeu-
me que era um psicanalista dissidente e discípulo de
Freud. Levou-me para casa dele e deu-me a ler uma série
de livros de Wilhelm Reich e outros. Comecei então a
estudá-lo em pormenor mesmo na Europa pela mão de
um diretor de teatro”14.
Durante sua militância clandestina na luta contra
a ditadura civil-militar, Freire não reconhecia nem na
psicanálise, nem na psicologia tradicional, instrumentos
eficientes e necessários para ajudar nos conflitos
emocionais e psicológicos de seus companheiros de luta
que o procuravam buscando auxílio. Foi, então, encontrar
nas pesquisas do mais radical crítico de Sigmund Freud e
sua psicanálise, o austríaco Wilhelm Reich, os elementos
fundamentais de sua terapia libertária.
A partir daí, criou uma técnica terapêutica corporal e em
grupo, onde o referencial anarquista é a base metodológica
do processo terapêutico. Trabalhando em autogestão, os
grupos de Soma procuram realizar uma dinâmica em
que o grupo funciona como um microlaboratório social,
no qual os conflitos de poder presentes nos diversos
níveis da sociedade ali se apresentam e são trabalhados.
A Somaterapia é um método libertário que busca o
desbloqueio da criatividade para o ato de viver. Para a

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construção de seu método, Freire utilizou, entre outros


recursos, exercícios oriundos de sua experiência em teatro,
seu encontro com a obra reichiana e sua militância política.
Através de seus estudos e da criação da Soma, Freire
defendeu o que chamava de anarquismo somático15. Esta
noção de anarquismo está ligada à defesa do prazer como
valor ético, ao entendimento do corpo como unidade
indivisível, à atuação libertária no aqui e agora e ao
entendimento do ser humano dentro de uma perspectiva
biopsicossocial. O cruzamento das teorias psicológicas,
especialmente a obra de Wilhelm Reich com o anarquismo,
possibilitou a singularização do pensamento libertário na
prática da Soma nesta denominação de um libertarismo
somático. As reflexões a respeito do anarquismo somático,
presentes em boa parte da obra de Freire e cujo objetivo
não modifica em nada o substantivo anarquismo,
evidenciam algumas singularidades em sua concepção e
em sua prática, tanto no trabalho da Somaterapia como
na ampliação da ação libertária no Brasil e no mundo.
O anarquismo somático, enfim, é uma possibilidade de
pensar a luta libertária como algo que tenha o prazer
impregnado nas formas de agir no cotidiano, que una o
humano nele mesmo e que o faça agir apaixonadamente.
Roberto Freire nos apresentou, através de suas
pesquisas, um jeito libertário singular, tropical, algo
intimamente ligado às questões da atualidade, no Brasil e
no mundo. Também nos mostrou a possibilidade de fazer
política libertária de uma forma lúdica e prazerosa, longe
dos sisudos partidos políticos. Não é à toa que os jovens
têm uma fácil identificação com seus textos e com a Soma.
E foi com ela e para ela que as contribuições libertárias
de Freire mais tiveram alcance. Este “militante do tesão”

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roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

— como costumava se autointitular — pôde contagiar


novos libertários, convidando-os à celebração da vida e
da liberdade.
Por fim, deixo aqui uma das passagens que considero
mais elucidativas dos efeitos do autoritarismo capilarizado
nas relações amorosas, tema que ocupa uma centralidade em
sua obra. Nela, muitas vezes encontramos acontecimentos
da vida cotidiana e de gente simples, que refletia os reveses
da existência. Transcrevo aqui um fragmento de um de
seus textos, publicado originalmente no livro Viva eu, viva
tu, viva o rabo do tatu!16. Neste diálogo entre mãe e filho
está contida a crítica poética de Freire sobre o silencioso
e cotidiano assassinato de nossos sonhos e utopias. O
fragmento é autoexplicativo.

“Há muitos anos, quando era médico dos operários


de uma fábrica que ficava perto de Santo André, eu
fazia o percurso de São Paulo até lá por meio de trem
suburbano, que apanhava na Estação da Luz. Cada uma
dessas viagens (ida e volta) era um mergulho enriquecedor
e aprofundador naquilo que já chamei de saldos de povo
que existem em mim, apesar de tudo. Quando ia para a
fábrica, pegava o trem das seis e trinta da manhã. Meus
companheiros de viagem eram quase que exclusivamente
operários e comerciários.
Certa manhã, sentei-me diante de uma mulher de uns
quarenta anos, operária, e de um garoto de dezoito anos,
seu filho, comerciário. Suas profissões vim a saber ao fim
da viagem, quando trocamos algumas palavras. O que
pretendo contar é o diálogo havido entre os dois, mãe e

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filho, à minha frente, falando alto e com a intensidade do


amor em crise.
O rapaz queria saber a opinião da mãe sobre o caderno
de poemas que tinha escrito e que lhe dera para ler na
véspera.
— Bonitos. Muitos não entendi. Mas me deu medo…
— Medo? Por que medo, mãe?
— Você gosta mais de escrever poesias do que trabalhar
no escritório, não gosta?
— Gosto muito mais. Quer dizer, não gosto de trabalhar
no escritório e adoro escrever poesias… Vou ser sincero: às
vezes, lá no escritório, fico escrevendo uns versos…
— Você vai acabar perdendo o emprego, filho. Está
vendo por que eu disse que tinha medo?
— Mas é uma coisa assim que vem de dentro de mim;
não dá pra controlar: ou faz ou arrebenta. Sabe, assim
como vontade de fazer pipi… Mas é do jeito da vó, lembra,
quando ela tinha aquela doença de velhice, e fazia pipi na
cama, na sala, na rua, onde estivesse…
— Me explica uma coisa: se você trabalha de dia,
estuda de noite, joga bola sábado de tarde e domingo de
manhã, namora domingo de tarde e de noite, a vontade de
fazer esse tal de pipi-poesia interrompe o que você estiver
fazendo, onde estiver, mesmo, como sua vó?
— Não. Só faço pipi igual à vó quando tou no escritório
e nas aulas.
— Eu desconfiava. Você vai acabar perdendo o
emprego…

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— Arranjo outro…
— Se o negócio do pipi continuar, você perde esse
emprego também, e o outro, e o outro…
— É, a senhora tem razão, pode acontecer, e…
— E acaba reprovado na escola. Acaba também não
sendo ninguém, feito nós…
— Mas serei um poeta!
— Poeta?
— É, poeta! Tem muito poeta no mundo.
— Tem, tem, eu sei. Mas tudo morrendo de fome,
desempregado…
— Nem todos, mãe…
— Pega um jornal de domingo, filho, pega a parte de
anúncios classificados, espia direito, e vê se tem algum
anúncio oferecendo emprego pra poeta!
— Não tem, não preciso ver, eu sei que não tem.
— E então?
O rapaz virou o rosto para o vidro, parecendo estar
olhando a paisagem feia, amarga e triste do subúrbio
paulistano, mas talvez não tão feia, tão amarga e triste
quanto deviam ser os seus pensamentos e sentimentos
naquele momento, supunha eu, tirando por mim. A mãe,
com jeito sofrido, angustiado, como que cumprindo um
dever de responsabilidade, insistiu, agora em tom baixo
e cuidadoso, pois devia conhecer a sensibilidade do filho:
— E então, meu filho?

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Sem se voltar — e eu o imagino vendo a feia


paisagem suburbana passando veloz diante de seus olhos
e se deformando e diluindo nas lágrimas que continha,
envergonhado, além de tudo —, respondeu mais para
dentro do que para fora:
— Você tem razão, mãe. Vou parar com a poesia. Não
estou velho e doente como a vó, vou dar um jeito de não
ficar mais mijando minhas poesias nas calças… por aí…
— É, filho, tenho pena, as coisas não tinham de ser
assim, mas são. A gente não pode fazer o que gosta, ainda
mais quando o que gosta é poesia…
E sorriu. Abraçou o filho. Beijou-o na testa. Ele virou
o rosto para mim. Então vi que o menino tinha os olhos
enxutos e deles escapavam chispas de ódio.”

Publicações de Roberto Freire


Roberto Freire. viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu!. São
Paulo: Global, 1977.
_____. Utopia e paixão. São Paulo, Trigrama, 1991.
_____. A farsa ecológica. Rio de Janeiro, Guanabara
Koogan, 1992.
_____. Soma – Uma terapia anarquista – Vol. 1 – A alma é o
corpo. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1988.
_____. Soma – Uma terapia anarquista – Vol. 2 – A arma é o
corpo. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1991.
_____.Um anarquista do cotidiano. Entrevista para o Jornal
Diário de Pernambuco. Recife, 1992.
_____. Roberto Freire. Entrevista para a Revista Utopia.
Lisboa, 1999

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roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

_____. Tesudos de todo o mundo: uni-vos!. São Paulo,


Siciliano, 1995.
_____. Liv e Tatziu: uma história de amor incestuoso. São
Paulo, Globo, 1999.
_____. O Divã Anarquista. Entrevista para a Revista
IstoÉ. São Paulo, 1995.
_____. Cleo & Daniel. São Paulo, Sol & Chuva, 1995.
_____. Coiote. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1986.
_____. Ame e dê vexame. São Paulo, Trigrama, 2000.
_____. Sem tesão não há solução. São Paulo, Trigrama, 2000.
_____. Eu é um outro. Salvador, Maianga, 2002.
Roberto Freire & João da Mata. Soma – uma terapia
anarquista – Vol. 3 - corpo a corpo. São Paulo, Sol e Chuva,
1996.
_____. Soma - terapia libertaria. Barcelona, Ediciones
Urgentes, 2004.
Roberto Freire; João da Mata; Jorge Goia & Vera
Schroeder. O tesão pela vida. São Paulo, Francis, 2006.

Filmes sobre a Soma:


• As bases teóricas da Somaterapia:
http://www.youtube.com/watch?v=ARy1sMiyxiw
• As maratonas de campo:
http://www.youtube.com/watch?v=jdHk45edR0s
• A política da Somaterapia e a capoeira angola:
http://www.youtube.com/watch?v=h7RDTDIk2-E
• Video-aula 1: Os objetivos da Somaterapia
https://www.youtube.com/watch?v=Wp8TkH3chwA

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• Vídeo-aula 2: A história da Somaterapia


https://www.youtube.com/watch?v=FuMUDAIAoUY
Canal da Somaterapia no YouTube:
h t t p s : / / w w w. y o u t u b e . c o m / c h a n n e l /
UCaQZXWcPGv5buEv3EMvsFPg

Site da Soma terapia:


www.somaterapia.com.br

Notas
1
http://www.somaterapia.com.br
2
Este é um dos best-sellers de Roberto Freire, no qual o autor defende o
fim do bloqueio que, segundo ele, a sociedade impõe à satisfação do prazer.
Reúne três ensaios nos quais Freire destila suas pesquisas e reflexões sobre
psicologia e política. Segundo o autor, o livro Sem tesão não há solução
influenciou no uso corriqueiro da palavra tesão, em seu atual significado, no
português falado no Brasil. Usada apenas para descrever excitação sexual,
após o lançamento e as sucessivas edições do livro, a palavra deixou de ser
chula e ganhou todas as faixas etárias e camadas sociais, literatura, rádio e
TV, foi publicada em revistas e jornais. E sempre com o sentido que Freire
lhe deu: paixão por algo que desperte prazer, beleza e alegria.
3
Roberto Freire. Sem tesão não há solução. São Paulo, Trigrama, [1987] 2000,
p. 18.
4
A Ação Popular (AP) foi um movimento político nascido em junho de
1962. Seu surgimento foi derivado de um congresso realizado em Belo
Horizonte (MG) como resultado da atuação dos militantes estudantis da
Juventude Universitária Católica ( JUC) e de outros agrupamentos da Ação
Católica. A partir de seu segundo congresso, realizado em Salvador (BA), a
AP decidiu-se pelo “socialismo humanista”, buscando inspiração ideológica

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roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

em Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Padre


Lebret. Teve uma vertente protestante, cujo representante mais conhecido foi
Paulo Stuart Wright. Foi composta principalmente de lideranças estudantis,
entre as quais se destacaram Herbert José de Souza (o Betinho), Jair Ferreira
de Sá, José Serra, Vinícius Caldeira Brant, Aldo Arantes, Haroldo Lima,
Duarte Lago Pacheco, entre outros, contando ainda com a participação de
lideranças camponesas e operárias.
5
Roberto Freire. Entrevista para a Revista Utopia. Lisboa, 1999, p. 71.
6
Roberto Freire; João da Mata; Jorge Goia; Vera Schroeder. O tesão pela
vida. São Paulo, Francis, 2006, p. 16-17.
7
Chico Buarque. “Chico no jornal Poramdubas” in Revista do TUCA. São
Paulo, 1980, p. 22.
8
Carmelinda Guimarães. “Seminário de Dramaturgia: uma avaliação 17
anos depois” in Dionysos. Especial: Teatro de Arena. Rio de Janeiro, MEC/
DAC-Funarte/SNT, nº 24, 1978, p. 69.
9
Roberto Freire. Eu é um outro. Salvador, Maianga, 2002, p. 216.
10
Zuza Homem de Mello. A era dos festivais. São Paulo, Editora 34, 2003.
11
Idem, p. 429. Estes festivais da canção foram concursos de músicas
nacionais e estrangeiras que fizeram bastante sucesso do Brasil. Deles
saíram alguns dos mais importantes representantes da música brasileira nas
décadas de 1960 e 1970. Os festivais eram realizados no Rio de Janeiro e
transmitidos, inicialmente, pela TV Rio, e depois, pela TV Globo. Foram
criados por Augusto Marzagão e realizados de 1966 a 1972, totalizando
sete festivais. Cada um tinha duas fases: a nacional, para escolher a melhor
canção brasileira, e a internacional, para eleger a melhor canção de todos
os países participantes — a concorrente brasileira era a vencedora da fase
nacional.
12
Daphnis e Chloe, obra atribuída ao escritor grego Longus, é considerado
um dos mais antigos e conhecidos romances pastorais (amor bucólico). O
texto foi escrito por volta do ano 200, mas o manuscrito foi tardiamente
descoberto por Paul-Louis Courier, na Biblioteca Laurenziana, em Florença,
em 1509. A história de Daphnis e Chloe foi publicada, originalmente,
em francês, em 1509 e em inglês, em 1587. O romance de Longus atraiu
diversos ilustradores no século XVIII, principalmente artistas franceses que
enfatizaram a sexualidade através de imagens — várias edições, em muitos

verve, 34: 74-93, 2018 91


34
2018

exemplares, foram publicadas. Ao longo dos últimos cinco séculos, embora


a obra nunca tenha saído de catálogos de impressores artesanais e editores
comerciais, foi raramente valorizada, chegando a ser identificada na História
do Livro como “o bestseller desconhecido”.
13
Roberto Freire. Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu!. São Paulo, Global,
1977, p. 12.
14
Idem, 1999, op. cit., p. 73.
15
Esta expressão ganhou contorno, sobretudo, a partir do encontro entre
Roberto Freire e o pensador libertário Jaime Cubero (1926-1998), ainda
na década de 1970. Cubero observara na obra de Freire um jeito diferente
de exercer o anarquismo no Brasil, com características marcantes de uma
militância mais despojada, lúdica e prazerosa. Sempre atento às diferentes
formas de anarquismos, Cubero percebeu na obra de Freire algo novo e
singular na militância libertária.
16
Roberto Freire, 1977, op. cit..

92 verve, 34: 74-93, 2018


verve
roberto freire e o anarquismo de corpo, prazer e alegria

Resumo
10 anos após o falecimento do anarquista e inventor da
somaterapia, Roberto Freire, o artigo retoma parte de
sua história; sua formação e ruptura com a psiquiatria; o
envolvimento com a militância de esquerda; sua descoberta do
anarquismo; a perseguição e tortura pela ditadura civil-militar;
seu envolvimento com as artes, em especial o teatro e a literatura;
seu retorno para a prática terapêutica, após o encontro com o
grupo anarquista The Living Theatre, que lhe apresentou o
trabalho de Wilhelm Reich. Roberto Freire nos apresentou um
jeito libertário singular, tropical, e nos mostrou a possibilidade
de fazer política libertária de uma forma lúdica e prazerosa,
longe dos sisudos partidos políticos. Saúde, tesão e anarquia.
Palavras-chave: Roberto Freire, somaterapia, anarquia.
Abstract
10 years after the death of the anarchist and inventor of
Somatherapy, Roberto Freire, the article resumes part of his history;
the training and rupture with psychiatry; the involvement with
left-wing militancy; the discovery of anarchism; the persecution
and torture he suffered by the civil-military dictatorship; the
involvement with the arts, especially theater and literature; the
comeback to therapeutic practice after meeting the anarchist group
The Living Theater, which introduced him the work of Wilhelm
Reich. Roberto Freire introduced us a singular, tropical anarchist
way, and showed us the possibility of making libertarian politics
in a playful and pleasurable form, far from the sober political
parties. Salute, lust, and anarchy.
Keywords: Roberto Freire, somatherapy, anarchy.
Roberto Freire and the anarchism of body, pleasure, and
joy, João da Mata.
Recebido para publicação em 15 de julho de 2018. Confirmado
em 30 de setembro de 2018.

verve, 34: 74-93, 2018 93


REVOLUTIONARY LETTER #8
Everytime you pick the spot for a be-in
a demonstration, a march, a rally, you are choosing the ground
for a potential battle.
You are atill calling these shots.
Pick your terrain with that in mind.
Remember the old gang rules :
Stick to your neighborhood, don’t let them lure you
To Central Park every time, I would hate
To stumble bloody out of that park to find help :
Central Park West, or Fifth Avenue, wich would you
Choose?

go to love-ins
with incense, flowers, food, and a plastic bag
with a damp cloth in it, for tear gás, wear no jewelry
wear clothes you can move in easily, wear no glasses
contact lenses
earrings for pierced ears are especially hazardous

try to be clear
in front, what you will do if it comes
to trouble
if you’re going to try to split stay out of the Center
don’t stampede or panic others
don’t waver between active and passive resistance
know your limitations, bear contempt
neither for yourself, nor any of your brothers
NO ONE WAY WORKS, it will take all of us
shoving at the thing from all sides
to bring it down
CARTA REVOLUCIONÁRIA #8
Toda vez que você escolhe o lugar para um be-in
uma manifestação, uma marcha, um comício, você está
escolhendo o solo
de uma potencial batalha.
Você ainda atrairá os disparos.
Escolha o terreno com isso na cabeça
Recorde as indicações das velhas gangues :
fique em seu pedaço, não deixem que
toda vez te atraiam ao Central Park, eu odiaria
tropeçar saindo ensanguentada do parque em busca de
socorro :
Central Park West ou Quinta Avenida, qual você
escolhe?

vá para love-ins,
com incenso, flores, comida e uma sacola de plástico
com um pano úmido dentro para usar em caso de gás
lacrimogênio, não use jóias,
vista roupas que facilitem movimentos, não use óculos,
lentes de contato
brincos em orelhas furadas são especialmente perigosos

tente ser direto


no front, o que você vai fazer se houver
confusão
se você está indo para tentar romper fique fora do centro
não fuja ou deixe os outros em pânico
não vacile entre resistência ativa ou passiva
reconheça suas limitações, não tenha desprezo
nem por você, nem por seus companheiros
NENHUM CAMINHO ÚNICO FUNCIONA, é preciso
todos nós
empurrando a coisa de todos os lados
para derrubá-la.
5 anos de 2013;

“debaixo do rosto da máscara existe o rosto


da máscara”, Heráclito

“não proteste, desfigure”, Hakim Bey

O FOGO NO MURO (anotações pelas


paredes da cidade)
“violento é o Estado”

“saímos do facebook”

“você só olha da esquerda para a direita. o


Estado te esmaga de cima para baixo”

“por uma vida sem catracas”

“tarifa zero”

“PM, não esqueceremos Carandiru, Candelária


e das favelas”

“se a tarifa não baixar a cidade vai parar”

Rebelião e revolução
Stirner, Proudhon, Bakunin e Zapata já
alertavam sobre não misturar os conceitos
de ‘Revolução’ com ‘Rebelião’. Revolução e
Rebelião não têm o mesmo significado! Rebelião
e Revolução não são sinônimos!
A primeira quer o Estado, seja ele
democrático ou socialista. Qualquer arranjo
que perpetue a falsa liberdade, com a ‘soma’
(Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley) que dá
ao dito revolucionário a visão de que ele é a
salvação do mundo, colocando nele a audácia
de dizer ‘sou superior perante ao povo’. (…)
A segunda é um curso de água suja, que ao
longo de seu levante diário vai purificando
com sua consciência desperta. Um ‘anarquista
inconsciente’, como diria Roberto Freire. Ele
tira do Estado (políticos ou reis) o poder de
decisão. Retira também das instituições e dos
movimentos as lideranças.

Chega de bordões como ‘O gigante acordou’ ou


‘nós mudamos o Brasil’. http://www.anarquista.
net/chega-de-bordoes-como-o-gigante-acordou-
ou-nos-mudamos-o-brasil/

Jornadas de junho: o ingovernável


As manifestações de rua animadas pelo MPL
(Movimento Passe Livre), e logo engrossadas
por uma multiplicidade de gentes e de forças,
alvo de incontáveis comentários, exercícios
opinativos e clamores por adesão acendem uma
chama que pode se desdobrar em interessantes
mudanças: as ruas da cidade não podem servir
apenas aos carros e a polícia não é sua dona
e/ou sua zeladora (…).
É preciso olhar para os alvos atingidos e
abandonar a saída fácil que consiste em identificar
certos jovens como arruaceiros infiltrados.
Quebraram, especialmente na terça-feira (11/6),
entradas de bancos, vitrines, shopping centers
e postos policiais. Quebraram o que lhes é, era
e será insuportável e ponto. Quebraram a manobra
jornalística que pretendia confundir pacifismo
com passividade. (…) Mesmo reunindo estudantes
secundaristas e universitários, transeuntes,
ativistas, curiosos, gente a fim de se divertir
e toda sorte de motivação que totalizou mais
ou menos 20 mil pessoas, os preocupados com as
formas e os preços do deslocamento na cidade
formaram uma minoria potente. (…)

As estimativas falaram em 5 mil pessoas


no dia 11/6 e 20 mil pessoas no dia 13/6. A
imprensa divulgou que milhares de policiais
estiveram envolvidos na repressão. Diante
disso: (…) inventem novos desrespeitos e
desprezos à instituição e à farda! Coragem!
Porém, se você pensa que se trata de uma
polícia despreparada e incapaz de agir numa
democracia, não esqueça que a polícia serve
para cuidar, vigiar, monitorar, espionar,
reprimir, torturar e matar. Polícia é polícia!
Viver livre nas ruas da cidade não depende de
polícia preparada, mas de sua abolição! (…)

A polícia é inaceitável. A polícia é um dos


abomináveis em nossa existência. Diante dela,
cotidianamente, há o passe reto, o pare quieto,
as mãos para trás, os corpos imóveis no chão,
a revista, as subordinações e os subornos, as
detenções e os espancamentos, os tiros mortais
e morais, os corpos perfurados, as asfixias, os
choques, a pimenta que destempera, a tortura,
a prisão. Co-ti-di-a-na-men-te. (…)

A polícia não é um efeito colateral do cuidado,


da prevenção, da proteção e da segurança. Ela
é a expressão e tradução literal das práticas
de governo, dissimuladas até mesmo como “arma
de efeito moral”. Diante da perenidade de sua
existência em cada um, jamais haverá livres
passagens. Um viva de saúde aos jovens que
foram para cima da polícia, que bateram nela
de frente, que destroçaram suas casinhas
denominadas de postos comunitários, que dela
se esquivaram e não foram pegos e os que se
mobilizaram para soltar tantos outros. (…)

O MPL pressionou os governos estadual e


municipal e contou com o Ministério Público, que
propôs suspender o aumento de 20 centavos por
45 dias. As autoridades executivas rejeitaram.
Novas negociações serão agendadas com pauta
única: revogação do aumento da tarifa. Entre
palavras de ordem exigindo transparência e
fim da corrupção, postagens em blogs, twitter,
instagram e facebook, certa simpatia pela
polícia, a reiterada ausência de lideranças
e uma anunciada ampliação das reivindicações
para as áreas de saúde e educação, tudo
marcha para uma solução ordeira até um novo
inesperado. Enquanto isso, resta nos ouvidos
o som vigoroso do VAI TOMAR NO CU: Haddad,
Alckmin, Dilma, Datena, Jabor, helicópteros.

Nu-Sol. flecheira libertária 299, 18 de


junho de 2013. http://www.nu-sol.org/wp-
content/uploads/2017/10/flecheira299.pdf

Após ampla divulgação na mídia e dos efeitos


da ação policial, os protestos que irromperam com
as reivindicações pela redução da tarifa foram
sufocados pelo hino brasileiro. Do embate direto
com as Tropas de Choque país afora, o fogo das
manifestações abrandou-se rapidamente, efeito
da voz do rebanho que repetia pelas avenidas
ter orgulho de “ser brasileiro”. Quem decide
sair às ruas para defender a pátria consente e
deseja a polícia. Sempre há uma gente disposta
a experimentar a desafinar no coro, seja ele
qual for, e experimentar, no presente, uma vida
livre. Em meio à marcha verde-e-amarela, um
bando ecoou: “nacionalismo é o caralho, esse
país é racista e sanguinário”. (…)

A maioria dos manifestantes que tomaram as


ruas do país nas últimas semanas se identificou
com o apartidarismo. Muitos, embrulhados em
bandeiras do Brasil, passaram a queimar e
a rasgar bandeiras partidárias. Não tiveram
problema algum em se aliar a skinheads para
bater em quem as carregava. Distante da extrema-
direita, mas, também aproveitando a onda
apartidária, crescem na internet reivindicações
pela “democratização da democracia” e pela
“reforma política”. Conectados e muito
atentos à insatisfação geral, certos líderes
políticos do bem aproveitam para ampliar sua
rede rumo à obtenção do registro legal de
novo partido. Surpreendente? De modo algum!
A maioria desolada apartidária da ocasião não
vai além; não questiona e não experimenta
práticas que dispensam Estados, polícias e
bandeiras. A diferença entre apartidarismo e
antipartidarismo não se reduz à semântica. (…)

Anarquistas não são democratas convencionais.


A democracia acolhe em seu “seio” o pluralismo
que dá voz aos fascistas. A direita fascista
manifesta-se com sua lei e ordem e o faz em
nome da lei e da ordem do Estado. Ela subjuga,
humilha, prende, tortura, mata. Nomeia as
bruxas, criminosos, baderneiros da vez para
sanar a sede sanguinária da população ordeira
e covarde. Não me engano: a ação radical de
esquerda nada tem a ver com a de direita. Da
mesma maneira, um movimento auto-intitulado
pacífico pode produzir desdobramentos muito
mais sombrios e violentos sobre a vida de cada
um. O fogo que alimenta liberdades não é o mesmo
que apaga os rastros.

Nu-Sol. flecheira libertária 300, 25 de


junho de 2013. http://www.nu-sol.org/wp-
content/uploads/2017/10/flecheira300.pdf
… e cai a cara do Estado
[Bakunin é um dos suspeitos!]. Sim, isso
serve como piada, mas mostra muito bem com
que tipo de processo estamos lidando, isto
é, baseados em que tipo de inquérito estão
tentando destruir a vida das pessoas. É
similar com o que ocorria na época da ditadura
militar, quando tentaram prender Sófocles por
conta das suas peças de teatro subversivas.
Mas não deixa de ser uma grande homenagem: em
seu bicentenário, Bakunin continua subversivo
e procurado pela polícia. Agora todos querem
saber quem é, afinal, este Bakunin, as pessoas
estão procurando, estão lendo mais sua obra
por causa disso, e isso é ótimo (…)

A polícia chegou derrubando a minha porta


às 6h da manhã e apontando uma arma para mim
e meu companheiro, ele foi algemado. Minha
casa foi revirada, a casa da minha mãe foi
revistada. Eu me senti sequestrada, sequestrada
pelo Estado. Mesmo não acreditando no Estado
democrático de direito não dava para acreditar
que chegaria a tanto. (…)

Toda a operação é inacreditável, mandados


expedidos sem nenhuma prova concreta,
executados de modo totalmente arbitrário,
um processo baseado em depoimentos altamente
desqualificados com claro intuito de prejudicar
alguns por questões pessoais, e, claro, tendo
em vista evitar manifestações na final da
copa (…) Eu sei que o Estado se mantém pela
exceção, por isso uso com muita reserva esta
noção, mas o modo como esta operação ocorreu
superou todas as minhas expectativas. O bom é
que a máscara de suposta democracia cai, fica
evidente o que é o Estado brasileiro. (…)

Nossos netos vão estudar a revolta do vinagre


na escola, vão aprender o que foi a batalha da
ALERJ, vão ler sobre este processo kafkaniano
promovido para garantir megaeventos e o lucro
de empresários.”

Camila Jourdan em https://camilajourdan.


noblogs.org/

Muitos nomes são dados a essa escória: porco,


gambé, cana, ‘us homi’, etc.. Nenhum dos termos
que busca um teor pejorativo consegue alcançar
o simples emblema de “policial”. Essa palavra
deveria ser a maior ofensa para um ser humano.
(…)

Ao afirmar que toda propriedade é um roubo,


não deixaremos que roubem nossas vidas, nosso
tempo, nossos pensamentos. É por meio da ação
direta que agiremos, que tiraremos a paz de
quem nos tormenta. Enquanto houver patrão,
pastor e político, haverá pobreza e revolta.

Zine Pássaro Libertário #3, segundo semestre


de 2013.
No dia 20 de junho de 2013 aconteceu no Rio
de Janeiro uma das maiores manifestações contra
o aumento da passagem de ônibus. Nesse dia,
Rafael foi detido quando chegava de mais um dia
de trabalho no casarão onde dormia; ele estava
com duas garrafas de plástico, uma de pinho sol
e outra de desinfetante. Os policiais o levaram
para a delegacia e apresentaram a garrafa de
pinho sol já aberta e com um pano, alegando que
era um coquetel molotov. Tudo forjado pra poder
condená-lo. E conseguiram: ele foi condenado
a 5 anos e 10 meses de prisão. Em dezembro de
2015, Rafael conseguiu migrar para o regime
aberto, sendo monitorado por uma tornozeleira
eletrônica. No dia 12 de janeiro de 2016,
ao sair pela manhã para ir à padaria, foi
abordado por policiais que novamente forjaram
um flagrante, dessa vez por porte de drogas.
Segundo os policiais, ele teria sido pego com
0,6 gramas de maconha e 9 gramas de cocaína.
Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão
por tráfico e associação ao tráfico. Isso é
apenas um resumo sobre o caso de Rafael.

http://anarcopunk.org/v1/2018/02/
coletanea-pela-liberdade-de-rafael-braga-
entrevista-com-morto-fortaleza-ce/

Nas manifestações de segunda-feira um


fenômeno decorrente da adesão dxs mais
conservadorxs se mostrou muito presente.
Pessoas preocupadíssimas com que as pichações
‘manchem a imagem’ da manifestação e
preocupadíssimas em serem mal interpretadas
pela polícia e pelos segmentos da sociedade.
Pessoas entoando ‘sem violência’ ou ‘vandalismo
não’ para qualquer ato que não seja caminhar
para frente, esquecendo-se de que são estxs
vândalxs que estão lhes protegendo na linha
de frente! São estxs vândalxs ‘violentxs’ que
defendem a manifestação das bombas de gás. Por
que estas pessoas evitam criticar a violência
policial que é contra PESSOAS e criticam e
caracterizam como violência ações contra a
propriedade ou órgãos públicos que têm papel
direto no preço das passagens, nos gastos com
a Copa, e com a desigualdade entre as classes?

E.D. Não seremos massa de manobra. http://


acaoantisexista.tk/nao-seremos-massa-de-
manobra/

Nos protestos pelo Brasil, pudemos observar


que o machismo também ‘saiu às ruas’. É
importante ressaltar isso (…) observamos o
sentimento ufanista, a necessidade desesperada
de caracterizar o movimento como pacifista,
a violência perpetuada contra pichadorxs, a
perseguição de manifestantes alcunhadxs como
vândalxs, a tentativa de cooptação da direita,
a infiltração de neonazis e da própria polícia,
entre outras questões.
(…) De certa forma, poderia ser mais fácil
confrontar preconceitos em situações similares
a protestos como este, onde são trazidas à tona
as desigualdades, já que existe um terreno
propício ao questionamento. Mas parece não ser
tão fácil assim.

(…) Durante estes protestos surgiram


cartazes e gritos machistas, como os referentes
à Dilma, não enquanto presidente, mas enquanto
mulher (…) Ouvi, em diferentes momentos,
mulheres serem chamadas de vadias no meio dos
protestos, por não corresponderem ao esperado
delas.

enila dor. O Machismo Também Saiu às Ruas.


http://acaoantisexista.tk/o-machismo-tambem-
saiu-as-ruas/
No Brasil, tal operação é fortalecida pela
ação das polícias civis que, sob controle de
diferentes governos (de centro-esquerda ou
de direita), invadiram a sede da Federação
Anarquista Gaúcha (FAG) em 2009, voltaram a
invadir a sede da FAG em junho de 2013 e no dia
de hoje (25), numa operação intitulada Érebo,
também cumprem mandado de busca e apreensão
contra diversos outros espaços e ativistas
libertários da cidade e contra a FAG. Cabe lembrar
que em 2013, dos 23 presos nos protestos do Rio
de Janeiro, anarquistas foram processados/as
e permaneceram detidos/as por meses, até sua
soltura temporária (correndo o risco de ainda
serem condenados/as). Em Goiás, a sombra do
processo sobre 32 ativistas sociais que ocuparam
a sede da Secretaria de Educação e Cultura do
Estado ainda paira, evidenciando o arbítrio
estatal. E o que falar da atuação de William Pina
Botelho, o “Baltazar”, codinome de um capitão
do exército que simplesmente se infiltrou num
grupo de whatsapp de estudantes para armar
uma prisão em flagrante. Os estudantes foram
acusados de associação criminosa e corrupção
de menores. (…) Há de maneira evidente, desde o
fim de 2013, uma escalada conservadora.

Sobre a perseguição ao anarquismo e a


criminalização do protesto. http://elcoyote.
org/sobre-a-perseguicao-ao-anarquismo/

Apesar da recente onda de manifestações


que tomou as ruas de uma infinidade de
cidades do território controlado pelo estado
brasileiro ser supostamente interpretada como
algo inesperado e surpreendente, as mesmas
são resultado de um acúmulo recente de uma
trajetória de lutas que, já desde o princípio
deste século XXI, vem acontecendo de maneira
difusa e progressiva. (…)

A luta contra o aumento das tarifas do


transporte público não surgiu nessas semanas,
mas é algo que se vem construindo ao longo
da última década em diversas localidades,
colocando muitos corações jovens e cheios
de revolta pela primeira vez em contato
com maneiras organizativas que suprimiam as
lideranças e os partidos. O transporte dito
público nada mais é do que a mobilidade das
veias e artérias, desta enorme prisão chamada
cidade, o movimento de uma estrutura surgida
de uma lógica baseada no poder, no domínio
e no controle. Qualquer pedido por reformar
essa estrutura acaba caindo numa miserável
mendicância por mais correntes e mais algemas
para seguir alimentando os que, gordxs e
fartos, seguem acomodados em seu sofá. O grande
valor deste processo de lutas que culminou na
recente tempestade social foi a possibilidade
de colocar inúmeras pessoas inquietas em
contato com uma conflitividade real nas ruas.
(…)

Cabe apontar que quando as pessoas tomam


as ruas, as reivindicações reformistas são
desbordadas pela raiva acumulada de quem convive
diariamente com a humilhação e exploração
levada a qualquer indivíduo que vive longe
do privilégio de quem está satisfeitx nesta
sociedade. O que se vivenciou nessas semanas
foi um descontrole que ia muito além de 20
centavos, que sacudiu com violência a tão
almejada paz-social, que na prática só existe
nos delírios das mentes ordeiras. (…)

A tática anteriormente usada de não


mencionar, ou citar de maneira rasa qualquer
tipo de manifestação crítica com o atual rumo
das coisas, foi substituída pela ênfase na
manifestação ordeira, no protesto pacífico,
num exaltado estímulo à cidadania, criando
assim o terreno aberto para apontar como
criminosas as inúmeras ações de ataque aos bens
materiais e representantes da ordem imposta. A
ilusória participação cidadã que passou a ser
alimentada pelo Estado, meios de comunicação
e proprietárixs, ilustrou uma estratégia
descarada de buscar um apaziguamento. (…)

Os atos apontados como violentos são


consequência e responsabilidade direta de
um sistema político/econômico baseado na
mercantilização da vida, no absoluto controle,
na violência policial cotidiana, na existência
do cárcere como mecanismo de punição para
qualquer que se demonstre improdutivo para
esta ordem. A dicotomia criminosx/inocente
é um jogo, uma farsa utilizada para tentar
justificar o verdadeiro terrorismo estatal
que surge como reação a quem se rebela. Não se
trata de uma criminalização que aparece neste
momento, mas sim de uma lógica que criminaliza
tudo que esteja no caminho do desenvolvimento dos
projetos do capital, tentando descaracterizar
atos de rebelião como algo vazio de conteúdo,
e se aproveitando disso para encaminhar a
criação de uma nova lei antiterrorista, uma
lei temporária e emergencial para suprir as
necessidades dos grandes eventos esportivos,
baseada na já empoeirada Lei de Segurança
Nacional, que prevê a punição de 15 a 30 anos
de reclusão por atos que hoje são chamados de
“vandalismo”. (…)

A copa do mundo é um abalo sísmico na


existência de muitas pessoas por todo lado deste
território, pensar que o dinheiro investido
nela deveria ser destinado a saúde e educação,
é continuar com uma confiança fantasiosa no
Estado, algo como acreditar no coelhinho da
páscoa. Vivemos o ápice da relação Estado/
Empreendedorxs-Empresárixs, a consolidação de
um regime onde o grande governante é o mercado,
e xs que se beneficiem dele: Xs ricxs. O regime
democrático sempre funcionou desta maneira,
com uma mão empunhando o chicote enquanto a
outra faz carícias, uma dubiedade que visou
e obteve uma apatia generalizada que pouco-
a-pouco vem sendo desconstruída e subvertida
na geração de uma recente cultura de lutas,
que traz novamente a ação direta como meio
propulsor de transformação. (…)

Momentos de tormenta, onde mesmo diante da


intensificação do contexto repressivo e de
um cada vez mais intenso terror psicológico,
devem ser motores de nossa capacidade de
transformação e criação, afiando as navalhas
da solidariedade e da propaganda, exercendo a
anarkia como uma tensão constante ao existente
mundo de misérias e mostrando uma vez mais
que não existem diálogos ou explicações a
serem dadas aos poderosxs, os atos de rebeldia
exercidos muitas vezes por instinto, pela
explosão furiosa do ódio que é propiciado pela
autoridade e repressão, sem necessariamente
estarem pautados em ideologias e teorias,
falam por si só.

Cronologia da guerra social vivida nas ruas


de Porto Alegre. Jornal Agitação. https://
cumplicidade.noblogs.org/?p=45

16 de Dezembro 2013:
Porto Alegre, Brasil: Ataque a caixas
eletrônicos do Banco Santander em solidariedade
com Mónica Caballero e Francisco Solar.

A Solidariedade é uma força viva! Fogo na


Bomba!

Na despedida de um sol quente de 34° e na


subida da lua cheia em encontro ao céu que
nos cobre, visitamos nessa segunda-feira, na
avenida Osvaldo Aranha, o banco Santander, de
frente a um posto policial.

Entrando no estabelecimento bancário,


lhe deixamos junto aos caixas eletrônicos
um presente incendiário natalino na clara
intenção de destruir o estabelecimento. Após
isto, o tempo e o fogo fizeram sua parte.

Não viemos roubar seu sujo dinheiro, viemos


destruí-lo. Alcançamos nossas intenções:
Atacamos, causamos destruição, saímos ilesos e
demonstramos com esta ação que a solidariedade
não é um slogan vazio e que não vive em toda sua
grandeza somente com a palavra. Esse pequeno
gesto nos mostra que o incremento de medidas
de vigilância na cidade não pode ser um freio
à nossa vontade de desafiar constantemente
o Poder; sempre podemos encontrar um jeito
de escapar da “grande besta”, começando por
desconstruir os nossos próprios medos.

Que seja um incentivo a todos os corações


rebeldes a passar a ação na luta contra os
“projetos de aceleração do crescimento”
e também contra a copa do mundo que vem
atropelando em alta velocidade. É evidente
que a luta não se resume a este evento
esportivo que tem violentado muita gente. E
mais, sinalizamos com o calor deste incêndio
nossa solidariedade com Rafael Vieira, Jair
Soares, aos que resistem contra a hidrelétrica
de Belo Monte, a todos que sofrem processos
e perseguições como resultado dos protestos
do inverno e também e não menos distante
a todos que lutam contra o poder em todos
cantos do mundo e se enfrentam com o peso do
sistema penitenciário na Argentina, Grécia,
Indonésia, Chile, Itália, Estados Unidos,
Bulgária, México, Alemanha, Espanha.

Com esse pequeno ataque aos interesses


espanhóis, mandamos uma força solidária para
Monica Caballero e Francisco Solar, presxs nas
mórbidas grades do Estado espanhol, isolados
no regime de segurança máxima FIES.
Frente à repressão, solidariedade ativa com
todos os métodos possíveis!

Força e solidariedade para Monica e


Francisco!

Liberdade ao Baiano e a Rafael Vieira,


presos no Rio de Janeiro!

Biblioteca anárquica Kaos. Cronologia


Maldita – Golpeando o inimigo: Cronologia
da confrontação anárquica no território
controlado pelo estado brasileiro (2000-2015),
pp. 33-34.

É animadora a expansão da revolta por todas


regiões do território dominado pelo Estado
brasileiro desobedecendo e ofendendo o poder.
A guerra social cria significado para muitxs
e ascende a relevos mais expressivos. Guerra
ao poder é afinal uma declaração forte e
será assim entendida pelos senhores e seus
lacaios, pois não há sentido em considerar-
se vítimas xs que se posicionam em ofensiva,
mas sim hão de ser indivíduos conscientes do
conflito que assumem. Não nos causa estranheza
as atitudes dos aparatos repressivos; sabemos
por infinitos exemplos que são capazes de tudo
para defender o poder de seus senhores, para
defender esta sociedade baseada na dominação
representada hoje pela democracia lembramos
que tanto a democracia como a ditadura são
formas, expressões, gestões do poder.

https://cumplicidade.noblogs.org/?p=172

Contra a força do Estado


Nesse momento é preciso estar atento às
formas de nossa liberdade, não esquecer que no
século XX a maioria sempre esteve ao lado dos
tiranos e dos dominadores; que o nacionalismo
ampliou e regrou o racismo de Estado; que
ditaduras foram instituídas para “salvar” as
democracias.

A liberdade não é um valor, é uma prática!

Ampliar as possibilidades, animar


as multiplicidades, multiplicar as
descentralidades e combater na luta os
moralismos e os anúncios de salvação.

Uma coisa é certa: ninguém sai vivo daqui.

Violento é o Estado; arruaceiro é o governo


e seus agentes oficiais e extra-oficiais.

Quem defende a bandeira e canta o hino,


saúda mais de 500 anos de assujeitamentos e
extermínios.

Que a insatisfação se transforme em revolta;

Que a mudança aponte para ampliação da série


liberdade.
Que os jovens que iniciaram essas ondas
de insatisfação no começo desse século XXI
encontrem uma forma de se desvencilhar dos
fantasmas políticos do século XIX e das
normalidades genocidas do século XX.

Por um mundo sem violência!

Leia-se: sem polícia, sem Estado, sem


propriedade, sem deuses, mestres e amos!

Nu-Sol. hypomnemata 157, junho de 2013.


http://www.nu-sol.org/blog/hypomnemata-157/

[Publicado como hypomnemata 202. Boletim


eletrônico mensal do Nu-Sol, junho de 2018]
34
2018

“nada mais que amor”:


50 anos de contracultura1

ana carolina arruda de toledo murgel

As datas “significativas”, marcadas às dezenas ou


centenas no nosso calendário histórico, costumam
escolher um evento específico – no caso da contracultura,
o maio de 1968, quando os estudantes tomaram as ruas de
Paris com palavras de ordem e relembrando, para alguns
estudiosos, a Comuna de Paris, ocorrida no século XIX,
pela utilização das barricadas como forma de resistência.
Os dois movimentos são tão distantes e díspares quanto
o marco temporal para se pensar a contracultura. Em seu
livro Contracultura através dos tempos2, Ken Goffman e Dan
Joy apontam diversos momentos na história atravessados
por essa resistência ética às normas e cultura vigente que
denominamos contracultura.
Pensando o século XX, os dois momentos marcantes
de resistência se deram após as duas grandes guerras como
efeito de resistência aos atos considerados hediondos: nos
anos de 1920 aos 30, pela crueldade e efeitos da Primeira
Guerra, e a partir dos anos de 1950 até meados dos

Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel é doutora em História Cultural,


Pesquisadora Colaboradora do Departamento de História do IFCH/Unicamp.
Contato: acmurgel@gmail.com.

116 verve, 34: 116-129, 2018


verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

anos de 1970, com o choque dos campos de extermínio


nazistas na Segunda Guerra, a bomba de Hiroshima, a
guerra fria e a invasão americana ao Vietnã, só para citar
algumas causas. No entanto, nos anos seguintes a esses
dois movimentos, as reações patriarcais3 foram violentas –
nos anos 1930, com o fascismo e o nazismo e, atualmente,
com um novo crescimento da extrema direita em várias
partes do mundo ocidental, como podemos ver também
em nosso país.
Se pensarmos em Paris nas primeiras décadas do
século XX, é impressionante notarmos as vanguardas
artísticas presentes na cidade. Para citarmos alguns nomes,
acompanhando Goffman e Joy: Isadora Duncan, Anaïs
Nin, Jean Cocteau, Joan Miró, Jean Paul Sartre, Lawrence
da Arábia, Claude Monet, Pablo Picasso, F. Scott e Zelda
Fitzgerald, e.e. cummings, André Breton, T.S. Eliot,
Stéphane Mallarmé, Tristan Tzara, Salvador Dalí, Simone
de Beauvoir, Samuel Becket, Leon Trotski, Igor Stravinski,
Sarah Bernhardt, George Bataille, Gertrud Stein, Antonin
Artaud, Paul Valery e Max Ernest, entre muitos outros.
Não era só Paris, a literatura e a pintura traziam nomes de
vanguarda em outras partes do ocidente, como Virginia
Woolf, Remedios Varo, Leonora Carrington e Frida
Kahlo, só para ficar em algumas das mulheres. No Brasil,
temos a geração modernista (Anita Malfatti, Mário de
Andrade, Pagu, Oswald de Andrade, Oneyda Alvarenga)
e também Maria Lacerda de Moura, Gilka Machado
entre muitos outros. Um período profícuo nas artes, que
lembrando Deleuze, aponta os devires libertários de seu
tempo.
Na Europa, a primeira guerra foi um choque para essa
geração artística:

verve, 34: 116-129, 2018 117


34
2018

“A guerra foi uma chacina diferente de qualquer outra


que a humanidade vira até então. Mais de oito milhões de
pessoas foram mortas. Sem que houvesse claramente um
agressor, a conflagração foi uma espécie de briga de bar
em grande escala. As democracias da Europa e os Estados
Unidos tentaram vendê-la como uma guerra para salvar
a civilização. Mas o sentimento que se espalhou pela
comunidade boêmia de Paris era exatamente o oposto.
Muitos escritores e artistas viam a guerra como uma prova
de que a civilização tinha fracassado, e que a doce razão
postulada pelo Iluminismo servira apenas para amordaçar
expressões do subconsciente (convenientemente
descoberto por Freud meia década antes), que finalmente
tinham irrompido com uma fúria vulcânica. Disciplinados
psicóticos uniformizados marchando em longas filas
retas sob a ordem de matarem e serem mortos tinham
produzido um caos muito mais medonho do que os
desordeiros artistas de Paris poderiam sequer imaginar ou,
certamente, desejar. Se a lógica, a disciplina e o refinamento
burguês tinham produzido aquela insanidade sangrenta,
então a única saída era a irracionalidade, a desobediência
e a provocação”4.
A reação à cultura dominante vem com o Dadaísmo e
em seguida o Surrealismo (em 1922), mas é interessante
notar que para os autores, os movimentos de contracultura
desse período terminam quando explodem as vaidades
pessoais de seus integrantes e as ideias identitárias – o
que creio também ocorrer no próximo movimento de
contracultura a partir dos anos de 1970.
Nos anos de 1930, confirmava-se a ascensão das
extremas-direitas, com o fascismo na Itália, nazismo na
Alemanha e, no Brasil, o integralismo.

118 verve, 34: 116-129, 2018


verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

É desnecessário lembrar os efeitos do mais indescritível


horror que desemboca na Segunda Guerra e nas soluções
de extermínio praticadas pelos nazistas, sem esquecer
da carnificina também provocada pelos americanos com
a bomba de Hiroshima e a tentativa de erradicação da
esquerda americana no período Macarthista, nos anos
de 1950. É possível, nesse período pós-Segunda Guerra,
percebermos a reação de uma juventude que não via futuro
para a humanidade ou para a civilização inicialmente
com os hipsters, e logo em seguida com a geração beat,
influenciada tanto pelo modo de vida hipster quanto pela
música negra americana, especialmente o bebop, derivado
do jazz e do blues:
“[A] contracultura que viria a ser dominada pelos
filhos da classe média branca estava em grande parte
enraizada nos estilos culturais e nas estratégias dos filhos
afro-americanos dos escravos (…). No final do século
XIX, o blues se espalhou, tornando-se uma linguagem
folclórica popular em todas as comunidades rurais negras,
e no início da década de 1910 se tornou conhecido da
sociedade como um todo. O blues transmitia uma
informação chocante para a cultura branca: o sexo estava
de alguma forma ligado ao ritmo!”5
Não é por acaso que o rock’n’roll, nos anos de 1950,
era considerado o mais “sexual” dos ritmos, lembrando a
dança pélvica de Elvis Presley. E é um festival de rock,
o Woodstook, em 1969, que marca definitivamente a
contracultura americana, sem nos esquecermos, é claro,
dos movimentos pelos Direitos Civis, o Feminismo e o
Movimento Gay. Enquanto esses movimentos aconteciam
nos EUA a partir dos anos de 1960, a juventude também
questionava a civilização e as normas nos mais diversos

verve, 34: 116-129, 2018 119


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2018

países do ocidente. Se na França o movimento é marcado


pelo Maio de 1968, no Brasil seu marco definitivo é a
Tropicália. O disco Tropicália saiu em 1968, com
participação de Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Rogério Duprat, Torquato Neto, Os Mutantes, Capinan e
Nara Leão, mas o movimento estourou mesmo em 1967,
no III Festival da Música Popular Brasileira da Record,
com “Alegria alegria” de Caetano Veloso e “Domingo
no parque”, de Gilberto Gil (onde obtiveram o 4º e 2º
lugar respectivamente). Os baianos tinham uma proposta
de “som universal” que considerava que todos os sons
produzidos pela humanidade eram válidos, assim como
os instrumentos musicais, contrariando uma “patrulha
ideológica musical” do período para quem o que vinha
do “imperialismo” americano (incluindo as guitarras)
não deveria nunca entrar na canção popular brasileira. A
Tropicália rendeu muitas brigas entre as duas correntes
e desfez algumas amizades, descritas detalhadamente no
livro Tropicália: a história de uma revolução musical, de
Carlos Calado6. É preciso, a respeito dessas discórdias,
compreender que o Brasil vivia sob uma ferrenha ditadura
militar, e foram precisos alguns anos para que aqueles que
patrulharam a Tropicália compreendessem que se tratava
sim de uma revolução – cultural, dos costumes, libertária.
Os militares entenderam rápido, prendendo Gil e Caetano
em dezembro de 1968 e banindo os dois alguns meses
depois. Nem mesmo Geraldo Vandré, considerado como
um dos grandes nomes da canção de protesto passou por
isso.
Para a minha geração, nascida nos anos de 1960 e
que cresceu durante a ditadura, já não havia divisões na
canção popular, ouvíamos atentamente tanto Caetano e

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verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

Gil quanto Edu Lobo, Geraldo Vandré e Chico Buarque,


amando os versos e buscando a resistência no silêncio
assustador imposto pelo estado de exceção, uma geração
preocupada tanto com os tempos sombrios e dolorosos
quanto buscar a alegria herdada pela contracultura, com
liberdade sexual, muita experimentação e criatividade –
era a forma de resistirmos àqueles tempos, era respirar.
Outros tempos sombrios vieram logo em seguida, nos
anos de 1980, com a AIDS e o temor imposto por ela ao
sexo livre, nos amigos que perdemos e choramos ainda
muito jovens, assim como a geração nascida nos anos de
1940, que chorou os amigos perdidos ou torturados pela
ditadura, também muito jovens.
Nos anos de 1980, Dany Cohn-Bendit, um dos
expoentes do Maio de 68 francês, procurou pessoas ligadas
à contracultura e às revoluções dos anos de 1960, querendo
saber o que havia acontecido com elas anos depois7.
Entrevistou Abbie Hoffmann (Anarquista/EUA), Jerry
Rubin (Ativista/EUA), Bobby Seale (Panteras Negras/
EUA), Roel Van Duyn e Rob Stolk (Provos/Holanda),
Jean-Pierre Duteuil (França), Michel Chemin (França),
Serge July (França), Gaby Cerone (França), Fernando
Gabeira (Brasil), Alfredo Sirkis (Brasil), Jane Alpert
(EUA) e Hans-Joachim Klein (Alemanha), entre outros.
De alguma forma, quase todos continuavam militando
de diferentes modos, mas era evidente a captura pelo
capitalismo de Jerry Rubin. O antigo fundador do Partido
Internacional da Juventude, Yippies, se transformou num
empresário e investidor Yuppie fazendo propaganda para a
American Express Card. Hoje, é impossível deixar de notar
também a guinada à direita dada por Fernando Gabeira,
que defendeu a intervenção militar no Rio de Janeiro pelo

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2018

governo Temer, relativizou a morte da socióloga e ativista


Marielle Franco e se juntou para fotos e conversas com
a pior escória da direita brasileira, responsável por boa
parte das notícias falsas que inundaram a internet a partir
do golpe de 2016 contra o governo de Dilma Rousseff,
representada pelo MBL. Os sonhos envelheceram? O que
mudou nesses 50 anos para estarmos em vários países do
ocidente beirando novamente os fascismos?
Das diversas características da contracultura, podemos
ressaltar algumas que evidentemente são herdadas do
anarquismo ainda do século XIX: a ação comunitária, a
generosidade, a contestação às hierarquias, o sexo livre e o
anticapitalismo (e, por extensão, o anticonsumismo). Essas
características se aproximam do conceito foucaultiano do
cuidado de si ou de viver a vida como uma obra de arte.
Em História da Sexualidade I: A vontade de saber,8 Foucault
desvenda os sofisticados mecanismos de sujeição, de
produção dos corpos pelos micropoderes disseminados
pelo social. Num segundo momento, isto é, nos volumes
II e III, O uso dos prazeres9 e O cuidado de si10, ele desloca
a sua problemática, ao focalizar as práticas da liberdade
que, no mundo contemporâneo, permitiriam escapar da
normatividade e das capturas. É nesse momento de sua
reflexão que ganham destaques os conceitos de modos de
subjetivação, artes da existência e cuidado de si, por meio
dos quais percebe a construção de outras subjetividades
em nosso passado histórico. Vale lembrar que, para ele, as
técnicas de si, com as quais os indivíduos podem se constituir
autonomamente, devem ser compreendidas como “práticas
refletidas e voluntárias através dos quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também
procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular

122 verve, 34: 116-129, 2018


verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos


valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”11.
Nessa direção, as “estéticas da existência” permitem
pensar diferentemente a constituição de si e sua relação
com o outro, visando à construção de uma subjetividade
ética por meio de práticas do cuidado de si, “a elaboração
da própria vida como uma obra de arte pessoal”12. Foucault
empresta este conceito da antiga civilização grega como
forma de melhor compreender a contemporaneidade. O
filósofo buscava entender o deslocamento na formação do
indivíduo que substituiu as escolhas éticas por uma moral
normativa que transformou as práticas que buscavam
tornar um cidadão livre, autônomo em suas escolhas e
em sua relação com o outro, no sujeito normatizado e
constrangido da atualidade, construído no contexto de
relações autoritárias aceitas como naturais. Ao mostrar
que historicamente nem sempre foi assim, ele abre a
possibilidade de pensarmos e buscarmos outras formas
de existência. Foi provavelmente o que ocorreu após
o momento da contracultura nos anos de 1960 – as
capturas do tempo, do capital e também da tecnologia
normatizaram, moralizaram e constrangeram os sonhos
e as ideias de muitos dos jovens libertários do período,
transformando a prática do cuidado de si em culto de si.
Foucault explica a diferença entre as duas práticas:
“Temos um certo número de temas (...) que nos indica
numa cultura para a qual devemos alguns dos nossos
elementos morais constantes mais importantes, era uma
prática de si, uma concepção de si, muito diferente de
nossa atual cultura de si. No culto de si da Califórnia,
devemos descobrir o verdadeiro si, separá-lo daquilo que
deveria obscurecê-lo ou aliená-lo; decifrar o verdadeiro

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2018

reconhecimento à ciência psicológica ou psicanalítica,


supostamente capazes de apontar o que é o verdadeiro eu.
Portanto, não apenas identifico esta antiga cultura do si
com aquilo que podemos chamar de culto californiano do
si; eu acho que são diametralmente opostos. (...) O que
aconteceu é precisamente uma inversão da cultura clássica
do si. Isto ocorreu quando o cristianismo substituiu a ideia
de um si ao qual deveríamos renunciar, pois ater-se a si
mesmo era se opor ao desejo de Deus, pela ideia de um si
que deveria ser criado como uma obra de arte”13.
O filósofo sugere que o culto de si californiano busca o
entendimento de um “eu interior” que inexistia entre os
gregos – é a partir da prática da confissão entre os cristãos,
onde os desejos ainda não imaginados e os pensamentos
mais velados devem ser alvo de escrutínio e confissão,
que se constrói esse “eu” que deve conter uma verdade
que desconhecemos. Mas é a partir da popularização da
psicologia, psiquiatria e psicanálise que trocamos o padre
pelo terapeuta: é essa pessoa que não nos conhece que vai
nos ajudar a chegar a uma verdade sobre nós mesmos, ao
nosso “âmago”. Sem querer ser injusta com os terapeutas,
é preciso reconhecer que esse “eu mais profundo” é
procurado também em várias práticas meditativas, na
política e nas mais variadas religiões, no desejo de dar
sentido à vida ao seguir um líder ou um pastor, ou seja,
um portador externo de nossa “verdade interior”.
A busca por esse “eu interno” faz parte da tentativa
de descobrir “o que somos”, ignorando a transitoriedade
da vida e seus momentos, onde o “ser” reduz o indivíduo
às suas aptidões “inatas” e à criação de identidades que o
normatizam e restringem, como se cada momento da vida
humana não se tratasse de uma construção.

124 verve, 34: 116-129, 2018


verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

A contracultura continuou ecoando após o maio de


68, nas mais diversas tribos que se formaram, nas trocas
generosas de informação que se deram pela internet,
que se a princípio era uma possível linha de fuga dos
poderes estabelecidos, rapidamente transformou-se no
maior instrumento de controle e captura de uma forma
que sequer Huxley e Orwell imaginariam. Entregamos
docilmente nossos dados, sonhos, desejos, localização e
ideologia com apenas alguns cliques. Toda uma geração
procurando viver uma felicidade fugaz baseada em
selfies no Facebook, Instagram, Twitter e correlatos.
Eventualmente aparece um desses antigos engenheiros
que participaram das primeiras redes ou um Snowden
para nos alertar do perigo, mas são solenemente ignorados.
Porque se as resistências são linhas de fuga rizomáticas, o
neoliberalismo, o fascismo e as linhas de captura também
estão contidos no rizoma:
“Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar
qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas
linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar
as formigas, porque elas formam um rizoma animal do
qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe
de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de
segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc;
mas compreende também linhas de desterritorialização
pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada
vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga,
mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. É por isto que não
se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem
mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. Faz-

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2018

se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-


se sempre o risco de reencontrar nela organizações que
reestratificam o conjunto, formações que dão novamente
o poder a um significante, atribuições que reconstituem
um sujeito — tudo o que se quiser, desde as ressurgências
edipianas até as concreções fascistas. Os grupos e os
indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de
cristalização. Sim, a grama é também rizoma. O bom
o mau são somente o produto de uma seleção ativa e
temporária a ser recomeçada14.
Se houve a captura do movimento, é preciso lembrar,
como afirmam Goffman e Joy que as contraculturas têm
por especificidade a transitoriedade15.
Enquanto escrevo este artigo o fascismo nos ronda
nas eleições presidenciais de 2018, e também durante a
escrita recebo a notícia da morte minha querida amiga
Luhli, compositora e cantora que viveu a contracultura
profundamente nos anos de 1970, juntamente com Luíz
Fernando, seu marido, e Lucina, parceira e companheira
naqueles tempos. É autora de sucessos como “Vira” e
“Fala” (ambas em parceria com João Ricardo), gravadas
pelo grupo Secos & Molhados.
Luhli recusou a cola das identidades, e fez de sua vida
uma obra de arte. E é com ela que termino esse artigo,
na esperança de que novos momentos de contracultura,
de negação das formatações do eu venham nos tirar da
sombra que está nos envolvendo. Novos tempos em que o
amor, a generosidade e os princípios libertários tragam luz
e, outra vez, alegria, alegria!

126 verve, 34: 116-129, 2018


verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

O QUE FICOU - 199616


(De Luhli para Lucina)
Foi muita droga, muita yoga, muita vertigem
foi muito verde, muito mar
muito banho de chuva
foi muito sonho e som
doía de tão bom
bobeira e bobagem
viagem no poder da flor
na nudez total nada mais que amor

tudo foi tanto, muito


e ainda é pouco
vamos ganhar o mundo
com o que ficou de ser louco

ficou um toque, um laço, um enfoque, uma telepatia


ficou certeza na alegria de quem sabe e cria
ficou você e eu
cada uma na sua no pescoço uma guia
o eterno no élan do céu
seja como for muito mais que amor

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Notas
1
Dedico este artigo com meu amor a Luhli Borges da Fonseca, falecida em 26
de setembro de 2018.
2
Ken Goffman e Dan Joy. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu
à cultura digital. Introdução de Timothy Leary. Tradução de Alexandre Martins.
Rio de Janeiro, Ediouro, 2007.
3
Aqui lembro o comentário que me fez a médica feminista Ana Regina Gomes
dos Reis, de que o fascismo seria o “Viagra” do patriarcado contra a feminização
da cultura, o que inclui não só as lutas feministas como as de todas as minorias.
4
Ken Goffman e Dan Joy. 2007, op. cit., p.252.
5
Idem, pp. 252 e 254.
6
Carlos Calado. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo,
Editora 34, 1997.
7
Dany Cohn-Bendit. Nous l’avons tant aimée, la révolution. Paris, Éditions
Bernard Barrault, 1986.
8
Michel Foucault. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque.
Rio de Janeiro, Graal, 2001.
9
Michel Foucault. História da Sexualidade 2: O Uso dos prazeres. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 2001a.
Michel Foucault. História da Sexualidade 3: O cuidado de si. Tradução de Maria
10

Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999.


11
Michel Foucault, 2001a, op.cit, p. 15.
12
Cf. Michel Foucault. “Uma estética da existência”.in Manoel Barros da
Motta (org.). Ética, Sexualidade, Política – Ditos e Escritos, vol. V. Tradução
de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2004, pp. 288-293.
13
Paul Rabinow e Robert Dreyfus. Foucault: Uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1995, pp. 270-271.
14
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 1.
Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro, Editora
34, 1995, p. 18.

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verve
"Nada mais que amor": 50 anos de contracultura

15
Ken Goffman e Dan Joy, 2007, op. cit., p. 244.
16
“O que ficou” (de Luhli pra Lucina). Gravada por Lucina no CD Canto
de Árvore (Independente, 2017). Disponível para audição em https://www.
youtube.com/watch?v=g2aBNsnOKrU (Acesso em: 01/10/2018). Lucina conta
a história da canção em https://www.youtube.com/watch?v=Hq5sMrTb9cg.

Resumo
O ano de 1968 é lembrado pelas manifestações contraculturais em
diversos países do mundo, tendo como marco o maio francês. No
Brasil, o período foi marcado, de um lado, pelo acirramento da
ditadura militar com o AI-5 e, de outro, pela explosão da Tropicá-
lia. Este artigo analisa rupturas e continuidades dos movimentos
contraculturais, indagando seus efeitos no tempo presente.
Palavras-chave: movimentos contraculturais, ditadura civil
militar, tropicalia.
Abstract
The year of 1968 is remembered for the countercultural
demonstrations in several countries of the world, having as
a milestone May 68 in France. In Brazil, the period was
marked, on the one hand, by the escalation of the military
dictatorship with then AI-5 and, on another, by the explosion
of Tropicalia. This article analyzes ruptures and continuities
of the counter-cultural movements, investigating their effects
in the present time.
Keywords: countercultural movements, civil-military
dictatorship, tropicalia.

“Nothing more than love”: 50 years of counterculture, Ana


Carolina Arruda de Toledo Murgel.
Recebido para publicação em 30 de setembro de 2018.
Confirmado em 5 de outubro de 2018.

verve, 34: 116-129, 2018 129


34
2018

entrevista com ricardo líper1

Nu-Sol – Como foi a invenção do grupo O Fantasma da


Liberdade, em plena ditadura civil-militar, em Salvador,
Bahia?

Ricardo Líper – Como o nome diz, era muito sutil. E


essa sutileza, me parece, passou um pouco batida. Muitos
não sabiam direito o que se estava falando e sugerindo. Às
vezes era um tanto desfigurado, ninguém entendia direito,
mesmo que os nossos panfletos, na ocasião, usassem o
cartaz do filme de Luis Buñuel de mesmo nome.

– O Inimigo do Rei começou em 1977, com um grupo


de estudantes na Universidade Federal da Bahia. Em pouco
tempo tornou-se o jornal de quase todos os anarquistas no
Brasil, num contexto ainda de censura e perseguição. Como
você analisa hoje a presença dos anarquismos na universidade
e como anda, para você, as relações entre os anarquistas e os
anarquismos em todo território?

– Vamos fazer algumas ponderações. Um grupo de


estudantes, mas nem sempre eram só estudantes e nem
todos eram da Universidade Federal da Bahia. Tinham
outros de outras faculdades, jornalistas. Não sei se

130 verve, 34: 130-140, 2018


verve
Entrevista com Ricardo Líper

realmente se tornou o jornal de quase todos os anarquistas.


Alguns anarquistas, e talvez a maioria, seria mais correto
se dizer. Alguns não estavam confortáveis com temas
como o amor livre e uma vida cotidiana mais anárquica.
O que era uma tolice porque Emma Goldman, se viva,
provavelmente ficaria satisfeita, suponho, com O Inimigo
do Rei. A censura e a ditadura toleravam querendo se dizer
mais ou menos branda. Assim fez com o Pasquim e outros
tipos de jornais semelhantes que contestavam certas
situações às quais estávamos vivendo. Mas a maioria dos
anarquistas nos apoiou. Sem eles não teríamos feito um
jornal como o nosso. Devemos muito a Esther Redes e
seu companheiro Ideal Peres, Jaime Cubero, Roberto das
Neves e muitos outros que, sem eles, o jornal não teria
vingado e nem seria distribuído em grande parte do país.

– Depois da promulgação do AI-5, em 1968, e que culminou


também na prisão de anarquistas no Rio de Janeiro, entre eles,
Pietro Ferrua e Roberto das Neves, como se movimentava o
chamado movimento anarquista em meados dos anos 1970?

– Não sei lhes dizer com exatidão, porque mereceria


uma pesquisa maior que abrangeria a todos eles e na Bahia,
até por motivo de segurança, não sabíamos com detalhes
o que estavam fazendo. O que sei é que o anarquismo
sempre aparece quando se pensa que desapareceu e com
muitas faces. É próprio dele. Não sendo um partido
floresce com várias cores, formas e diversidades. Aliás, é o
resultado de se adotarem práticas de liberdade sem chefes.

verve, 34: 130-140, 2018 131


34
2018

– O anarquista Hakim Bey bem-humoradamente brinca que


muitas vezes certos anarquistas organizados escrevem ou falam
como se os anos 1960, a liberação de certos costumes e o LSD, não
tivessem ocorrido de fato. Como foi a relação de vocês com alguns
dos militantes que marcaram a história dos anarquismos até os
anos 1960?

– Os anarquistas não andam com uma Bíblia na qual


todos devem rezar. Daí, quando se quer determinar novos
ou específicos anarquismos se coloca anarco antes do que
eles focaram. Daí anarco-sindicalismo e alguns outros. E
assim sendo, Hakim Bey contribuiu com suas reflexões.
O anarquismo é vivo e não congelado. E se recria a
cada momento a partir de seu eixo epistemológico que
é a pesquisa do poder com novas experiências visando
eliminar, especificamente, relações de poder. Daí ele estar
presente no apoio mútuo e na ação direta, nas lutas contra
a dominação das mulheres pelos homens, contra o racismo,
contra as palmatórias usadas contra as crianças, contra o
assédio moral e acadêmico contra os estudantes e a favor do
amor livre para todos, sejam quais forem as práticas sexuais
e também a favor da luta para que as remunerações de
todos sejam iguais. O anarquismo está onde tem injustiça
e exercício de relações de poder. Ele está sempre presente e
tem muitas e muitas vitórias com, repito, sua metodologia
básica que é baseada em apoio mútuo e ação direta, quer
dizer sem partidos ou intermediários.
– Para além do anarquismo, as páginas de O Inimigo
do Rei divulgaram textos de filósofos como Michel Foucault.
Como foi na época a incorporação pelos anarquistas dos escritos
do filósofo francês?

132 verve, 34: 130-140, 2018


verve
Entrevista com Ricardo Líper

– Existe uma querela sobre o anarquismo e Foucault. Se


o que o anarquismo pensa e faz é a pesquisa sobre o poder
e suas práticas para criar relações sem o exercício de poder,
assim, todos os autores que pesquisaram o poder serão alvo
de interesse e estudo pelos anarquistas. Pierre Clastres, por
exemplo. O anarquismo foca na analítica do poder e assim
executa pesquisas constantes, várias práticas e ações políticas
libertárias. É uma ciência como Kropotkin quis justificar.
Marx ficou aprisionado como um peixe em um aquário
ao cair no idealismo de Hegel, deslumbrado com o seu
racionalismo, chamado por ele de o espírito e Marx pensou
que resolveu, com a dialética de Hegel, a invenção de uma
filosofia da história racional e materialista. Uma epopeia
da razão. E Marx e Engels, entre outros, somaram com a
economia política de Adam Smith e David Ricardo e como
ela iria colocar Hegel de cabeça para cima, supondo eles que
Hegel estava de pernas para cima. Epistemologicamente
não chegaram ao que queriam. O X da questão sempre
foi o poder e não a economia de Adam Smith e David
Ricardo e, muito menos, o idealismo histórico de Hegel. O
exercício do poder é que é a base na qual se dá a exploração
e não o contrário. Não é a infraestrutura, substituindo o
espírito racionalista em Hegel, criando a superestrutura, ou
seja, também o poder. Releiam Pierre Clastres. Ora, aí nos
apareceu Foucault que desmonta toda noção possível de
verdades com as suas epistemes, usando a história, com o
empirismo sem o idealismo de Hegel e a economia política
de David Ricardo e Adam Smith. Foucault a usou como
um instrumento ao contrário de Hegel, Marx etc. A história
desmontava ao se comparar em cada época qualquer tipo de
verdades e evolução ou coisas baseadas nessas lógicas a priori
e idealistas. Foucault então pôde, a partir das epistemes na

verve, 34: 130-140, 2018 133


34
2018

história, sem nenhuma razão misteriosa que as guiassem


e, então ao contrário, criaram “verdades” para constituir o
sujeito sujeitado. Só que as “verdades” mudam na história
e se instalam relações de poder em cada época até onde
se chegou então às disciplinas dos corpos e depois ao que
ele chamou de biopoder. Não dominar só individualmente,
mas a espécie. Quer dizer, a dominação pela espécie. Se isso
não é anarquismo, visto a partir de uma análise da verdade
e a questionando, tendo como principal finalidade política
criar a subjetividade da dominação do sujeito sujeitado, não
sei mais o que é anarquismo. Repito, epistemologicamente
falando, o anarquismo é essencialmente uma analítica
do poder em movimento realizado em grande parte do
nosso cansado mundo. Portanto, a contribuição para o
anarquismo dada por Foucault foi muito importante.
Digo contribuição para escapar dos discursos acadêmicos
monotonamente querelando à exaustão se Foucault foi
anarquista ou não. Isso não interessa nem tem sentido a
não ser para acadêmicos que não têm o que fazer além de
se preocupar com as normas da ABNT e no copiar e colar
para alimentar uma aristocracia acadêmica, se mordendo
entre si, para criar e atingir o poder nas academias.

– Em meados dos anos 1970, o jornal adotou uma postura


singular diante da anistia com a capa “eu também quero sair”
estampada com a foto de um preso considerado por parte da
esquerda como “preso comum”. Como era essa relação com a
esquerda que defendia a libertação somente dos “presos políticos”?

– Sugiro que releiam Vigiar e Punir que encontrarão a


resposta.

134 verve, 34: 130-140, 2018


verve
Entrevista com Ricardo Líper

– Assim como O Inimigo do Rei, Roberto Freire irrompeu


para o anarquismo em 1977, com o lançamento de viva eu viva
tu viva o rabo do tatu, afirmando um anarquismo aliado a
questões como a liberação do sexo e ecologia libertária. Qual foi
a relação de vocês com Roberto Freire?

– Cordial. O problema sexual é somente uma questão


política. E quando surgiu a pólvora a mortalidade de
homens em guerras foi maior do que se esperava. Surge a
preocupação com o nascimento de meninos para as guerras
e meninos e meninas para a mão de obra barata. Aí entra
a necessidade de regular as relações sexuais para meninas
incubadoras fabricarem soldados e mão de obra. E isso
só é possível com o sêmen, daí reeditaram o que Tomás
de Aquino determinou, que só fosse permitido colocar o
sêmen no vaso natural. Então, desde a masturbação até
derramar o sêmen fora do vaso natural, quer dizer, em
uma bananeira, numa ovelha, em outro do mesmo sexo,
tudo isso impediria o nascimento de mão de obra barata
e soldados para serem buchas de canhão. Atualmente a
natalidade ficou mais garantida com vacinas dadas aos
animais e aos bebês e, assim ficou mantida a natalidade, o
que já cria outro problema, a superpopulação. Então, não
precisa mais tanto exigir fazer primogênitos homens e
sobram pessoas para mandar para as guerras e as fábricas.
Em alguns países que superaram essa situação, liberam a
sexualidade e se pode ejacular onde quiser. Não se fala
muito mais de sexo e prazeres proibidos ou não. Os fiscais
do pênis alheio que eram religiosos, médicos, psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas associados aos policiais e juízes
perderam suas forças porque a mão de obra está sendo
substituída por muitas máquinas. Os gregos e os samurais

verve, 34: 130-140, 2018 135


34
2018

e muitos outros povos tinham outro ponto de vista.


Ou seja, o nascimento dos substitutos para as guerras
e as lavouras era garantido, mas depois de cumprir sua
obrigação natalista, os homens podiam colocar o seu pênis
onde quisessem como mostrou Platão, sem censuras. Ou
seja, quem manda come quem quiser ou dá para quem
quiser desde a irmã, como fez Calígula, ou de quem
apareça disponível. Ou seja, mandava quem tinha o poder
também de gozar livremente porque ninguém teria a
coragem de fiscalizar onde um homem armado ou da
nobreza está colocando o seu pênis para ejacular. O fiscal
de pênis não existia. Passou a existir em países como a
Inglaterra, principalmente na época vitoriana, e outros
países quando precisavam aumentar os seus impérios. O
resto não me interessa. Discursos fajutos para explicar os
inocentes prazeres de Afrodite não me interessam. Coisa
safada e amoral foi a criação do fiscal de pênis e vagina.
Desde os médicos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas
até o seu vizinho e o vendedor de amendoins.

– O jornal acabou em 1988, há exatos trinta anos. Qual é


sua atualidade ainda hoje?

– Acredito talvez que o que colocamos ainda gere


alguns problemas que estavam debaixo do tapete e ainda
se luta para resolver. Por isso, nos assustamos quando
ainda se interessam pelo jornal, que gostamos de fazer,
mas passou.

136 verve, 34: 130-140, 2018


verve
Entrevista com Ricardo Líper

– Entre os anarquismos, no Brasil, O Inimigo do Rei foi


marcante para a afirmação da liberação do sexo e das drogas.
Como você vê as atuais associações entre anarquia e teoria
queer?

– Sempre teve. Se você é anarquista não deveria ser um


fiscal de pênis ou de vagina de ninguém. A questão não é
sexual e nunca foi. A questão é uma relação de poder. É
política. Ou seja, eu mando em você de tal maneira que até
em seu pênis ou vagina quem manda sou eu. A biopolítica
de que fala Foucault. Eu sou contra relações eróticas entre
adultos e crianças, porque é uma relação de poder se um
adulto a seduz, já que é fácil de serem manipuladas, e
combato o estupro, que é uma violenta relação de poder.
Mas o sexo consensual entre adultos não tenho o menor
interesse sobre o que estão fazendo, não sou fiscal dos órgãos
sexuais de ninguém. Tenho muito mais o que fazer. A teoria
queer é um momento histórico de resistência para libertar
os inocentes desejos sexuais. Droga não é apenas uma coisa,
são coisas. Precisa-se saber até que ponto se foi libertado de
tudo para ficar dependente de uma droga. Depende muito
de como se usa e quais são usadas. Não fiscalizo os pênis
alheios, onde estão sendo colocados, nem o que ninguém
come, nem as drogas que consomem. Eu sou empirista. Só
me interessa se algo é chato ou não. Porque pode ser chato
para mim e muito divertido para outros. Apenas isso.

– O Inimigo do Rei combateu diretamente a ditadura


civil-militar bem como as condutas autoritárias de parte
da esquerda. Quais são os combates mais decisivos para os
anarquistas na atual democracia?

verve, 34: 130-140, 2018 137


34
2018

– Libertar o que não está ainda libertado. O anarquismo


vai eliminando focos de relações de poder: quer seja nas
escolas; nas relações com as mulheres; com o amor livre,
que inclui todas as formas adultas de prazeres sexuais;
eliminar os poderes raciais, enfim de tudo aquilo que é
exercício das relações de poder. Não é um partido, porque
os partidos querem o poder e os anarquistas não querem
tomar o poder. Querem pacificamente mudar o mundo
sem tomar o poder. Compreendemos que não queremos
sofrer da síndrome de Calígula, que leva, disfarçada ou
não, a uma ditadura. Se alguém toma o poder, a primeira
pessoa que o poder toma e domina é ela mesma. Com
ilusão de ter o poder, você é escravo dele.

– Em que medida e desmedida a democracia favorece


práticas anarquistas?

– A democracia permite que se possa debater pontos


de vista e dá acesso às informações. Nesse sentido,
podemos dizer que se pensa de mais variadas formas
numa democracia. O anarquismo é uma democracia mais
elaborada e plena, procurando somar liberdade total e
rendas iguais para todos.

– Como você observa a retomada dos estudos anarquistas


nas universidades? (no passado estavam relacionados à
formação da classe operária e movimentos ‘pré-políticos’ e hoje,
estariam no combate a práticas black-bloc?)

138 verve, 34: 130-140, 2018


verve
Entrevista com Ricardo Líper

– Uma tragédia. Tudo que chega nas universidades e


na academia morre. Os ateneus libertários mundo afora
é que criaram, de fato, na prática e na teoria, os estudos
anarquistas. A academia é ditatorial e de uma ingenuidade
de formar reflexões, a não ser suas lutas pelo poder
acadêmico. Muitas teorias, literatura e arte, e muitas
delas as melhores, não foram criadas nas universidades.
O anarquismo não nasceu dentro de faculdades. A teoria
e prática nas universidades sofrem de muitas relações de
poder, burocracia e possuem uma metodologia que me
parece incompatível com a metodologia libertária. É um
perfil que nenhum anarquista deveria adotar. Os black-
bloc eu nunca conheci nenhum e nunca se sabe quem são
porque sempre estão sem mostrar quem são. Conheço
muito pouco para dizer alguma coisa. Eu acredito mais em
mudar opiniões para mudar mentalidades e assim mudar
o mundo. Sim, dá muito trabalho, requer muito tempo e
pode ser chato. Mas só acredito na capacidade de pesquisas
e publicações dos ateneus libertários porque eles é que estão
mudando o mundo, pacificamente, sem tomar o poder.

– Diante das avaliações constantes como é resistir hoje


trabalhando na universidade?

– A academia, para mim, é um trabalho como qualquer


outro. Faço dando aulas. Nunca falto e procuro ser um
professor da maneira melhor possível para criar bons
profissionais. Eu sou profissional como professor. Não
faço dela o conhecimento e as pesquisas, com as regras e
as relações de poder das academias em um mundo que está
recusando todas as relações de poder. Eu estudei e sempre

verve, 34: 130-140, 2018 139


34
2018

aprendi nos ateneus libertários. Nas escolas e academia


quase nada aprendi. Aliás, em nenhuma escola. Só
repressão. Eu aprendi foi indo aos teatros, lendo os livros
e filmes proibidos, nos ateneus libertários que participei
com outros amigos. Aprendi com os livros editados por
Roberto das Neves, com o camponês e sindicalista cearense
Antonio Mendes. E hoje, vindo pela ironia da vida, O
Inimigo do Rei e outras reflexões a respeito do anarquismo
viraram tese na academia e para a minha surpresa e um
pouco de desgosto, até no exterior. Eu prefiro continuar
anônimo lendo Pitigrilli e Lima Barreto entre outros
e me deliciando com Fellini, Buñuel e todos que me
ensinaram de fato sem humilhações nem sofrimento. Eu
aprendi pela arte e não pelas palmatórias, disfarçadas ou
não. Só estou com essas conversas aqui porque penso que
vocês são libertários. Porque se não fossem não iria perder
meu tempo de madrugada para responder e enviar essa
entrevista. Bem: agora vou dormir, se possível sonhando
com Emma, que algumas vezes me aparece em sonho e,
em alguns desses sonhos, dançamos uma valsa. Sem Freud
pelo amor de Deus. Ela não é minha mãe, ela é apenas
Emma. Mas se fosse era tão boa e inteligente como foi
minha mãe.

Notas
1
Ricardo Líper, pseudônimo de Ricardo Calheiros Pereira, é professor de
Filosofia da UFBA. Escritor de blogs e em jornais, criador de Inimigo do
rei, publicação anarquista dos anos 1980.

Indicado para publicação em 15 de setembro de 2018.

140 verve, 34: 130-140, 2018


REVOLUTIONARY LETTER #10
These are transitional years and the dues
Will be heavy.
Change is quick but revolution
Will take a while.
America has not even begun as yet.
This continet is seed.

CARTA REVOLUCIONÁRIA #10


Estes são anos de transição e as tarefas
serão pesadas.
A mudança é rápida mas a revolução
levará um tempo.
A América ainda mal começou.
Este continente é uma semente.
cordas e correntes se arrebentem:
pela liberdade imediata dos 23

No último dia 17 de julho, o juiz Itabaiana,


da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, emitiu
a sentença condenatória de 23 pessoas em
processo policial e denúncia que inclusive
indiciou o bicentenário Mikhail Bakunin.

O processo se arrastava há 3 anos expondo


como o terror é um artifício ordinário dos
agentes da lei, do policial ao juiz, passando
por seus servis carcereiros e respectivos
mandatários.

O caso, conhecido como “processo dos 23”,


tem especificidades tenebrosas. Trata-se de
um grupo de 23 pessoas pinçadas das jornadas
de junho de 2013, que contaram com centenas de
milhares de manifestantes nas ruas.

Naquela ocasião, a partir de uma pauta


específica contra a tarifa nos transportes
coletivos, diversas lutas foram deflagradas:
contra a violência policial (nas favelas e nas
manifestações), contra as leis de exceção (como
a Lei Geral da Copa, de número 12.663/2012),
contra as execuções pelas Unidades de Polícia
Pacificadora – UPPs (como o caso Amarildo de
Souza), contra as remoções arbitrárias (como
na Vila Autódromo e na Aldeia Maracanã),
contra a repressão aos professores (como na
greve de outubro de 2013) e contra a campanha
midiática, à direita e à esquerda, que
identificava os “temíveis black blocs” como
os grandes inimigos do momento.

A sentença de hoje atinge toda e qualquer


forma de contestação que ouse desafiar os
poderosos, suas máfias e suas milícias.
Reconhece que ali houve um combate à política
por pessoas não autorizadas pelo jogo da
participação e da representação partidária e/
ou sindical.

O cálculo de uma condenação é sempre uma


arbitrariedade, é a expressão raivosa de alguém
impotente. Dito de outro modo: como o juiz
Itabaiana nunca vai ser nada de interessante
na vida, pois só lhe restou a miséria na
existência de ser juiz, não é improvável que o
cálculo condenatório que chegou à façanha do
número 7 (sete), relativo aos anos da sentença
decretada, não passe de uma vingança dos 7 a
1 que o Brasil sofreu da Alemanha na Copa de
2014.

Não há sentença e, por conseguinte, não há


processo, seja ele qual for, que não seja a
expressão do ridículo dispensável de alguém!

O direito penal é a miséria. Ele procura


se escorar sobre aquilo que não passa de uma
construção arbitrária: o crime.
Os termos do juiz são um compilado exemplar
do rancor sob os livros. Seu texto repete, por
mais de 30 vezes, a monótona ladainha de que
os alvos possuem “personalidades distorcidas”.
Edifica a verdade que lhe convém para apontar
“crime de mera conduta e de perigo abstrato”.

Insiste em atribuir lideranças de forma


aleatória, seguindo os veículos de mídia.

Não bastasse tudo isso, Itabaiana aponta a


prática de ação direta como “atos de vandalismo
e de violência”.

Mirando a ação direta e o que chama de


“personalidade distorcida”, o juiz atualiza
a imagem do anarquista como sujeito perigoso,
aos moldes da psiquiatria do século XIX em sua
aliança com o Direito Moderno.

Em suma, além do absurdo seletivo, racista


e ordinário do Direito Penal, a sentença em
questão é a expressão do delírio covarde de
seu redator.

Diante da sentença, não basta apontar que


ela é um ataque violento e burocrático às
liberdades civis de um regime democrático.

É urgente interromper esse processo


imediatamente!

Essa sentença marca um ponto sem retorno


no autoritarismo brasileiro. Cabe a cada
um resistir para além dos argumentos legais
e legítimos. Juiz nenhum vale mais que um
professor, um estudante ou qualquer pessoa
que ouse questionar os atos dos poderosos,
suas máfias, milícias e juízes com suas togas
cheias de sangue.

É preciso dar um fim aos juízos, à


prepotência impotente destes homens e destas
mulheres que brincam com a vida de outras
pessoas, julgando-as e condenando-as porque
se acreditam superpoderosos com sua caneta,
sua toga e seus códigos. Todos excessivos,
supérfluos e dispensáveis diante do incontível
da vida que jamais caberá em tribunal algum.

Liberdade aos 23 sentenciados!

Todo preso é um preso político!

[Publicado como hypomnemata extra. Boletim


eletrônico mensal do Nu-Sol, julho de 2018.]
34
2018

pierre clastres:
fragmentos de ética anarquista

sebastián stavisky

No ano passado, completaram-se quarenta anos da


morte de Pierre Clastres, etnólogo francês cujas pesquisas
produziram uma das renovações mais importantes na
antropologia política nos últimos tempos. Seus trabalhos
não convulsionaram somente o campo antropológico:
a filosofia política e o pensamento libertário também
encontram ali uma fonte de inspiração. Nele, Foucault
soube encontrar uma “concepção de poder como tecnologia
que tenta se emancipar da supremacia, do privilégio da
regra e da proibição que, no fundo, havia reinado sobre
a etnologia”1. Por sua vez, Deleuze e Guattari — que
recorreram a tais estudos para a elaboração de alguns de
seus respectivos conceitos fundamentais — reconheceram
que, “quanto à etnografía, Pierre Clastres já disse tudo e,
em todo caso, para nós, foi quem melhor disse”2.
A tese sobre as sociedades primitivas enquanto
sociedades não sem, mas contra o Estado é, sem dúvida,

Sebastian Stavisky é mestre em Antropologia Social, bolsista de doutorado do


Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas de Argentina e
integrante do Instituto de Investigaciones Gino Germani da Universidade de
Buenos Aires. Contato: sebastian.stavisky@gmail.com.

146 verve, 34: 146-158, 2018


verve
Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

uma das contribuições mais significativas do autor, tal


como mostram as múltiplas e heterogêneas interpretações
feitas a partir daquela simples e copernicana ideia3. Em
um dos artigos que compõem o livro El espíritu de las
leyes salvajes, Miguel Abensour encontra nela insumo
para o desenvolvimento de um pensamento em oposição
a Hobbes. Para fundamentar a conexão que propõe
entre antropologia e filosofia, Abensour defende que,
enquanto a relação de afinidade entre o etnólogo francês
e pensadores como La Boétie, Montaigne e Rousseau
“permite compreender melhor a situação de Clastres no
interior da filosofia política, a relação de oposição parece
apresentar maior interesse teórico” 4.
Dessa forma, antes de postular as relações de afinidade
e de oposição como duas alternativas excludentes ao
se ensaiar uma leitura de Clastres, penso ser possível
encontrar na própria discussão que ele mantém com a
filosofia hobbesiana uma série de vínculos de afinidade
com o pensamento de autores ao qual ele não remete
explicitamente em sua obra, mas com os quais, arrisco-
me a afirmar, certamente era familiarizado. Refiro-me,
especificamente, a Piotr Kropotkin e Pierre-Joseph
Proudhon. Neste artigo proponho uma série de relações
entre o pensamento destes autores e o de Clastres, não
tanto com o objetivo de reconhecer o lugar que ele poderia
ocupar na tradição libertária, mas sim para avançar em
uma hipótese da qual este trabalho não pretende ser
mais do que um primeiro esboço: existe na antropologia
anarquista — entendida não como corrente disciplinar,
mas enquanto uma pergunta para os outros e para nós
mesmos —, uma perspectiva ética que faz das diversas

verve, 34: 146-158, 2018 147


34
2018

formas de sociabilidade o campo de investigação da


desobediência voluntária.

Kropotkin precursor de Clastres


Em sua “Introducción a la tercera edición en español”
de O apoio mútuo, Ángel Capelletti afirma encontrar em
Kropotkin um precursor da antropologia de Clastres5.
O livro do anarquista russo é resultado de uma série de
artigos que ele escreveu para a Nineteenth Century durante
a década de 1890, como resposta aos trabalhos do biólogo
britânico Thomas H. Huxley, que, a partir da recuperação
parcial da teoria da evolução de Darwin, concebe o mundo
animal como um campo de batalha pela sobrevivência do
mais forte e mais astuto. No entanto, outra leitura possível
é a contestação da conhecida tese de Thomas Hobbes, na
qual por outro lado se apoia o próprio Huxley, sobre o
estado pré-social como guerra permanente de todos contra
todos. Sobre isso, Kropotkin entende que estas ideias foram
desenvolvidas no século XVII, quando ainda não havia
conhecimento suficiente sobre as formas sociais de vida
entre os povos selvagens; no entanto, menciona em seu
livro Origem e evolução da moral, publicado logo após a sua
morte: “é completamente inconcebível que o naturalista as
tenha feito suas”. Contra a concepção antropológica que
se depreende dos postulados hobbesianos e que se resume
na famosa fórmula homo homini lupus6, Kropotkin afirma
que “a vida em comum na terra tinha precedido a aparição
do homem”7. Desse modo, a sociabilidade seria não apenas
uma característica inerente ao ser humano anterior à
constituição do Estado, cujo surgimento rompeu os laços

148 verve, 34: 146-158, 2018


verve
Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

de solidariedade, mas um instinto próprio de toda forma


de vida.
Por sua vez, também Clastres se opõe à ideia de
guerra presente em Hobbes, ainda que de uma maneira
completamente distinta de Kropotkin. Para o anarquista
russo, a violência não conta com nenhuma positividade
em relação às formas de vida das sociedades selvagens, e,
por isso, nelas se destaca a existência de dois conjuntos de
ações e aspectos éticos diferenciados: as relações no interior
de cada tribo, regidas por laços de apoio mútuo sobre os
quais concentram seus trabalhos, e as relações externas
entre tribos distintas, em que a desconfiança toma o lugar
da solidariedade. Afirma Kropotkin: “cada tribo ou clã
representa uma unidade separada (…) e, exceto em tempos
de guerra, estes limites são observados religiosamente”8.
Clastres se apoia em uma concepção similar de sociedade
selvagem enquanto unidade separada, autossuficiente
e autônoma para analisar os mecanismos de conjuração
contra o Estado colocados em funcionamento por ela.
Mais adiante retornarei à função que o etnólogo atribui
à guerra enquanto mecanismo de conjuração centrífugo
tendente à dispersão. Antes, me deterei nas operações que
impedem a divisão no interior da sociedade.
Os mecanismos de conjuração próprios da política
interna das sociedades selvagens remetem, na obra de
Clastres, às relações que estas estabelecem com seus
chefes. A pergunta que se faz é: quais são os meios que
impedem que estes se separem do comum, ou seja, quais
são as operações de despossessão das virtuais pretensões
soberanas de constituição de um poder despótico? Em seu
artigo “Troca e poder”, publicado em 1962, e reeditado
mais tarde no livro A sociedade contra o Estado, Clastres

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34
2018

investiga a impotência característica dos líderes das


sociedades selvagens do Amazonas a partir da análise
de relações singulares de troca e de dívida que estas
estabelecem com aqueles. Focarei, especialmente, no rumo
adotado em tais relações pela circulação de mulheres,
consideradas em tais sociedades como “valores essenciais”
que todos os homens anseiam, sendo que os chefes são os
únicos que podem dispor de quantas mulheres quiserem9.
Antes de ser um privilégio de poliginia, esta condição
de excepcionalidade os coloca em um estado de dívida
permanente e impossível de saldar junto ao conjunto social,
dívida que se traduz em uma obrigação de generosidade
que o chefe não pode recusar, senão à custa de perder suas
funções. Alguns anos mais tarde, no prefácio a um livro
de Marshall Sahlins, Clastres retoma a relação entre a
dívida e o poder ao afirmar que “o líder encontra-se em
uma situação de dívida em relação à sociedade, na medida
em que ele é justamente seu líder. Jamais poderá saldar
esta dívida, pelo menos durante o período em que quiser
continuar a ser o líder. Basta que ele deixe de sê-lo e a
dívida é imediatamente cancelada...”10. Desta maneira,
a relação de dívida característica das sociedade estatais,
em que os súditos se encontram na obrigação de pagar
um tributo e obedecer aos seus chefes, se vê radicalmente
invertida. “Deter o poder e impor o tributo é uma coisa
só, e o primeiro ato do déspota consiste em proclamar a
obrigação de pagá-lo”11.
Este modo de compreender a troca e a dívida como
mecanismos de conjuração nos remete à famosa obra de
Marcel Mauss sobre a dádiva. Vinte anos antes de Mauss,
Kropotkin percebeu a importância do assunto como forma
de impedir a instituição da propriedade privada e, junto

150 verve, 34: 146-158, 2018


verve
Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

dela, o individualismo desenfreado, cujo desenvolvimento,


afirma, se encontraria nas sociedades modernas e não
nas primitivas. Enquanto o conjunto dos bens for
compartilhado, e enquanto a instituição familiar não tiver
rompido a unidade tribal, nas sociedades selvagens não há
propriedade privada. E nos casos em que a acumulação de
certos objetos ameaça romper as condições de igualdade,
Kropotkin constata, por meio dos trabalhos de Hinrick
Rink sobre os esquimós, também analisados por Mauss,
o emprego de “um meio bastante original para diminuir
os inconvenientes que surgem da acumulação pessoal da
riqueza”12: a distribuição e destruição de bens. A ameaça
de a propriedade privada romper com as formas de vida
comunitária se vê desta forma conjurada por laços de
amizade que a dádiva estreita entre os vivos e pelo tributo
que a incineração dos pertences do defunto reserva aos
mortos. Assim, impedindo a acumulação de riquezas, as
sociedades selvagens procuram manter em seu interior
as relações de apoio mútuo que caracterizam sua ética
igualitária.

Clastres leitor de Proudhon


Se, com o conceito de ajuda mútua, Kropotkin põe em
questão a ideia hobbesiana da guerra como determinação
do estado pré-social, Clastres faz o mesmo ao estabelecer a
guerra como o ser diretamente social e político das sociedades
primitivas. O erro de Hobbes, afirma, “foi ter acreditado que
a sociedade que persiste na guerra de todos contra todos não
é exatamente uma sociedade; que o mundo dos selvagens não
é um mundo social”13. Em oposição à concepção clássica da
antropologia de que a guerra entre os selvagens é resultado

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de uma função derivada de outras, Clastres propõe pensar


a guerra como “causa e meio de um efeito e de um fim
intencionais: a fragmentação da sociedade primitiva. Em seu
ser, a sociedade primitiva quer a dispersão”14. A dispersão é o
modo que a sociedade primitiva encontra para permanecer
em seu ser, para sustentar a diferença com o fora e afirmar
sua condição indivisa dentro, ou seja, para continuar sendo
totalidade-uma. A guerra é, em primeira instância, uma
guerra contra os outros povos também dispersos além das
fronteiras de seu próprio território. Mas, ao mesmo tempo, é
uma guerra contra a unificação sob a égide do Um, ou seja,
uma guerra contra o Estado.
Nesta tese acerca das sociedades selvagens como
sociedades contra o Estado, ressoam certas ideias presentes
no pensamento anarquista clássico. Assim constata Georges
Balandier ao investigar as possibilidades que o trabalho de
Proudhon abrem à elaboração de uma teoria antropológica
do Estado. Ao retomar o estudo de Pierre Ansart sobre a
sociologia do anarquista francês, Balandier afirma que, para
Proudhon,“a relação do político com a sociedade é comparável
àquela que vincula o capital ao trabalho: a vida social e o
Estado centralizado se encontram necesariamente em uma
relação de contradição radical”15. Aqui é possível encontrar
não apenas uma certa antecipação da ideia que Clastres, sete
anos depois da publicação do trabalho de Balandier, estampa
no título de seu último livro, como também a distinção, com
a qual ele finaliza o capítulo homônimo, entre a história da
luta de classes dos povos com história e a história da luta
contra o Estado dos povos sem história16.
No entanto, se assumirmos a distinção estabelecida por
Clastres não como um simples jogo retórico, mas como
uma afirmação da verdade, estabelece-se a partir disso

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Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

uma diferença em relação ao pensamento de Proudhon.


Tal como salienta Ansart, para o anarquista francês o
Estado não é apenas “posterior à organização social”, mas
também “depende das estruturas econômicas”17. Enquanto
força coercitiva garantindo a ordem, o Estado é resultado
dos conflitos que a desigualdade inerente à propriedade
privada desencadeia entre proprietários e trabalhadores.
Daí que Proudhon afirma no “Esboço de uma revolução”
com que abre seu famoso livro de 1840: “se vocês querem
gozar da igualdade política, exterminem a propriedade”18.
Desta forma, a luta de classes contra a desigualdade
implica, como consequência necessária e imediata, a
luta contra o Estado e contra a desigualdade política.
Este paralelo que o autor traça entre as contradições
econômicas enfrentadas por proprietários e trabalhadores,
e as contradições políticas que fazem o mesmo com o
Estado e a sociedade, expressa uma de suas principais
críticas à teoria marxista. Além disso, sua concepção de
anarquia surge daí como uma ordem social sem senhor
ou soberano em que, em vez de se oporem, a liberdade e a
igualdade coincidem. Neste ponto, Yoram Moati encontra
mais uma confluência entre o pensamento de Clastres e
o de Proudhon: em ambos há a convicção de que “toda
sociedade dividida é uma sociedade em servidão”19.
Voltando à concepção de guerra enquanto vetor de
dispersão tal como é pensada pelo etnólogo francês,
Hakim Bey encontra nela uma modalidade particular de
violência em que o corpo daqueles envolvidos é perigoso
e não sacrificado, como na guerra entre Estados, nem
desaparecido, como na guerra hiper-real20. Sem nos deter
nas particularidades de cada uma, basta notar que, de um
lado, o que diferencia a violência selvagem das outras duas

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modalidades é que sua implantação é resultado de uma


decisão ética em que aqueles que a assumem se expõem
sem se subtrair das consequências da própria ação. Esta
forma singular de se expor com um ato de coragem
para resistir a um poder coercitivo e arbitrário pode ser
interpretada como o conteúdo moral inerente aos muitos
atos de propaganda pela ação realizados por anarquistas.
De outro lado, no que nos interessa, é necessário observar
que essa concepção ética da violência está presente mais
uma vez no pensamento de vários autores clássicos do
anarquismo. Como é o caso de Mikhail Bakunin, que
possivelmente é quem o expressa com maior ênfase,
mas, também, o de Proudhon, em A guerra e a paz, no
qual Daniel Colson observa uma perspectiva positiva da
guerra, próxima à que Clastres assume cem anos depois
em seus estudos das sociedades selvagens21.
Para o velho anarquista francês, a guerra e a paz não
são dois estados contraditórios e excludentes, mas duas
formas correlatas em alternância constante na vida dos
povos. Do mesmo modo, o Direito, enquanto garantia
da paz, não é a suspensão da guerra, mas “a reivindicação
e a demonstração pelas armas do direito da força”22, o
primeiro e o mais fundamental de todos os direitos. Em
um breve comentário sobre o modo de vida dos selvagens,
Prodhoun afirma que “força, razão e direito são, para eles,
sinônimos”23. No entanto, seria um erro sustentar, como
faz a teoria contratualista, que tal correlação é própria de
um estado primitivo que em algum momento foi superado.
Ao contrário, sua insistência, analisada pelo autor em
diferentes momentos da história, leva-o a postular a guerra
como uma condição inerente a toda sociedade humana.
Por meio da vitória que se pode alcançar por ela, os povos

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Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

são capazes de darem a si mesmos um novo direito: “Em


princípio, qualquer guerra indica uma revolução”24.
Em seu comentário ao livro A guerra e a paz, Thiago
Rodrigues afirma que, ao contrário das ideias de
Hobbes, para Proudhon a guerra é “o primeiro e o mais
fundamental dos legisladores, a instituidora de todas as
formas de direito (...) e moduladora da vida social e dos
modos de organização política e econômica”25. Se muitos
anarquistas, sujeitos à crença de uma concepção idealizada
da natureza humana como essencialmente boa e solidária,
incomodaram-se com tais postulados, sem dúvida, este
não foi o caso de Clastres. As sociedades selvagens não
expressam para ele um momento perdido ao qual se deve
retornar, nem um modelo que deveríamos imitar. Antes,
colocam-nos uma pergunta que, como aquela lançada por
La Boétie no século XVI, “está absolutamente liberada de
toda ‘territorialidade’ social ou política”26: como fazer das
relações com os outros e com nós mesmos a arte e a ética
de uma desobediência voluntária?

Tradução do espanhol por Beatriz Scigliano Carneiro e


Eliane K. Carvalho.

Notas
1
Michel Foucault. “Las redes del poder”. Tradução de Heloísa Primavera
in Christian Ferrer (comp.). El lenguaje libertario. Antología del pensamiento
anarquista contemporáneo. La Plata, Terramar, 2005, p. 17.
2
Gilles Deleuze. “Deleuze y Guattari se explican…” in La isla desierta y otros
textos. Textos y entrevistas (1953-1974). Tradução de José Luis Pardo Torío.
Valencia, Pre-Textos, 2005, p. 194.

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3
Marcelo Campagno relata encontrar quatro grandes linhas interpretativas da
tese: a que opõe a sociedade e o Estado como duas formas em conflito; aquela
que, de uma perspectiva deleuziana, afirma se tratar de duas formas sociais
sempre presentes; a que se concentra na análise do conjunto de dispositivos que
impedem a emergência da divisão social; e aquela, defendida pelo autor, cujo
enfoque é o estudo das lógicas de organização incompatíveis com a dinâmica
estatal. Marcelo Campagno. "Introducción. Pierre Clastres, las sociedades contra
el Estado y el mundo antiguo". in Marcelo Campagno (ed.). Pierre Clastres y las
sociedades antiguas. Buenos Aires, Miño y Dávila, 2014, p. 10.
4
Miguel Abensour. “El contra Hobbes de Pierre Clastres” in Miguel
Abensour (comp.). El espíritu de las leyes salvajes. Pierre Clastres o una nueva
antropología política. Traducción de Carina Battaglia. Buenos Aires, Del Sol,
2007, pp. 196-197.
5
Ángel Capelletti. "Introducción a la tercera edición en español" in Piotr
Kropotkin. El apoyo mutuo. Móstoles, Madre Tierra, 1989.
6
"O homem é o lobo do homem". (N.T.)
7
Piotr Kropotkin. Origen y evolución de la moral. Tradução de Nicolás Tasin.
Buenos Aires, Americalee, 1945, p. 165. O grifo, assim como nas demais
citações, pertence ao original.
8
Piotr Kropotkin. El apoyo mutuo. Tradução de Luis Orsetti. Buenos Aires,
Americalee, 1946, p. 144.
9
Pierre Clastres. La sociedad contra el Estado. Tradução de Ana Pizarro.
Buenos Aires, Terramar, 2008, p. 35.
10
Pierre Clastres. “A economia primitiva” in Arqueologia da violência.
Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo, Brasiliense,
1982, p. 140. (Prefácio a Marshal Sahlins. Age de pierre, Afe d’abondance.
Paris, Gallimard, 1976. N.T.).
11
Pierre Clastres. Investigaciones en antropología política. Tradução de Estela
Campo. Buenos Aires, Simón dice, 2007, pp. 142-143. Cabe ressaltar que
nesta consideração acerca das mulheres como bens ou valores repousa
uma das principais críticas esboçadas por alguns autores a Clastres: sobre
um poder coercitivo exercido nas sociedades primitivas, que ele não teria
notado, e que responderia à pergunta, formulada tantas vezes, de como
uma sociedade poderia resistir a um poder que ela não conhece. "Talvez
os homens da Amazônia", afirma David Graeber, "conheçam esse poder

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verve
Pierre Clatres: fragmentos de ética anarquista

arbitrário, inquestionável e que se mantém graças ao uso da força, pois é


justamente o poder que exercem contra suas mulheres e filhas. Talvez por
esta mesma razão não queiram estruturas capazes de exercer esse mesmo
poder sobre eles". David Graeber. Fragmentos de antropología anarquista.
Tradução de Ambar Sewell. Barcelona, Virus, 2011, p. 33.
12
Piotr Kropotkin, 1946, op. cit., pp. 128-129.
13
Pierre Clastres. Arqueología de la violencia: la guerra en las sociedades
primitivas. Tradução de Luciano Padilla López. Buenos Aires, Fondo de
Cultura Económica, 2009, p. 78.
14
Idem, p. 42.
15
Georges Balandier. Antropología política. Tradução de Carina Battaglia.
Buenos Aires, Del Sol, 2005, p. 213.
16
Pierre Clastres, 2008, op. cit., p. 186.
Pierre Ansart. Sociología de Proudhon. Tradução de Dora y Aida Cymbler.
17

Montevideo, Proyección, 1971, p. 127.


Pierre-Joseph Proudhon. ¿Qué es la propiedad? Tradução de Rafael García
18

Ormaechea. Buenos Aires, Hyspamerica, 1983, p. 48.


19
Yoram Moati. “Pierre Clastres: a antropologia anarquista”. in verve 23,
2013, pp. 148-158. Pierre Clastres, 2007, op. cit., p. 114.
20
Hakim Bey. "La guerra de la información" in T.A.Z. Zona temporalmente
autónoma. Tradução de Guadalupe Sordo. Madrid, Talasa, 1996, p. 2.
21
Daniel Colson. Pequeño léxico filosófico del anarquismo. De Proudhon a
Deleuze. Tradução de Heber Cardoso. Buenos Aires, Nueva Visión, 2003,
p. 114.
Pierre-Joseph Proudhon. “A guerra e a paz”. Tradução de Martha Gambini.
22

Seleção e revisão técnica de Thiago Rodrigues in verve 19, 2011, p. 50.


23
Idem, p. 39.
24
Ibidem, p. 49.
25
Thiago Rodrigues. “A guerra, condição do homem: nota sobre ‘a guerra e a
paz’ de Proudhon” in verve 19, 2011, p. 19.
26
Pierre Clastres, 2007, op. cit., p. 113.

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2018

Resumo
Pouco mais de quarenta anos depois da morte de Pierre Clastres,
este artigo se volta sobre alguns de seus conceitos fundamentais,
tendo em vista a análise de uma série de conexões entre o seu
pensamento e o dos autores clássicos do anarquismo, Piotr
Kropotkin e Pierre-Joseph Proudhon. Dessa forma, procura
fazer avançar a hipótese de que, antes de ser uma vertente
disciplinar, é possível pensar a antropologia anarquista
como uma perspectiva ética que faz das diversas formas de
sociabilidade seu campo de pesquisa acerca da desobediência
voluntária.
Palavras-chave: Anarquismo, antropologia, ética.
Abstract
Nearly forty years after the death of Pierre Clastres, the article
returns to some of his fundamental concepts for the purpose of
rehearsing a series of links between his thought and that of
two classic authors of anarchism: Piotr Kropotkin and Pierre-
Joseph Proudhon. In this way, it seeks to advance the hypothesis
that, rather than a disciplinary current, it is possible to think
of anarchist anthropology as an ethical perspective that makes
the different forms of sociability the field of inquiry into the
voluntary disobedience.
Keywords: Anarchism, anthropology, ethics.

Pierre Clastres: Fragments of an anarchist ethics,


Sebastian Stavisky.
Recebido para publicação em 20 de junho de 2018. Confirmado
em 15 de setembro de 2018.

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verve

2013 – uma dimensão


ética libertária

camila jourdan

O aspecto ético da falência da representação


É muito comum associarmos o levante popular de 2013
a uma falência do sistema representativo. Entender isso
dessa maneira parece-nos correto no essencial, ocorre que
a representação é mais do que um sistema macropolítico,
é também um sistema ontológico-epistêmico nascido na
Modernidade, fundado no dualismo entre mente e corpo e
que tem como pressuposto básico o sujeito cartesiano, isto
é, aquele que, sozinho em seu quarto, pensando, afirma-
se como existente e independente do mundo material. O
pressuposto básico da representação é a separação rígida, a
distinção fundamental entre representante e representado,
entre material e imaterial. Deste sistema ontológico-
epistêmico deriva também certa maneira de compreender
a ética, centrada no sujeito moral, nos imperativos da
racionalidade; uma ética que se apresenta pelo modelo

Camila Jourdan é professora adjunta na Universidade do Estado do Rio de


Janeiro. Desenvolve pesquisas na interface entre filosofia da linguagem e filosofia
política, com ênfase na ruptura com o paradigma representacional. Contato:
camila.jourdan@gmail.com.

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2018

do sistema jurídico, da lei, às quais corresponderiam os


princípios morais primeiros, universais, inquestionáveis.
Entender, portanto, a ruptura com a representação em
sua dimensão ética implica entender também a ruptura
com este dualismo e com o sujeito transcendental que
o constitui, isto é, inclui uma compreensão de si mesmo
não mais como um átomo separado do todo, sujeito moral
partido em uma substância pensante e uma substância
corpórea, mas como um sujeito que se realiza por inteiro na
relação e na prática coletiva. Trata-se também de entender
que o representante e o representado, fundamentalmente,
colapsam, misturam-se, constituem-se mutuamente e só
a partir desta mútua constituição pode-se criar valores,
pois é esta mútua constituição que abre um campo de
possibilidades. O que permite a representação não pode
ser do âmbito da representação, precisa ser do âmbito
da ação direta. Esta é uma observação que concerne à
linguagem, à política e à ética.
1968 nos dizia: “sejamos realistas, peçamos o
impossível”, e esta talvez seja uma ótima chave de
compreensão para o que está envolvido em qualquer
modificação social profunda. Cortar a cabeça do rei, subir
no caveirão, colocar o choque pra correr, fazer o governo
do Estado sentar no chão da aldeia maracanã, fazer o
oligopólio midiático mudar seu discurso, colocar Sérgio
Cabral pedindo clemência na TV. Não negociar pautas
aceitáveis, acima de tudo, não negociar, não aceitar nada
além do que uma mudança total, nada menos do que tudo.
Sim, por um lado, transformar o impossível em possível,
por outro, destruir necessidades. Isso significa justamente
romper a barreira dualista entre abstrato e concreto,
possibilitar que um passe ao outro, que algo que tenha um

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2013 – Uma dimensão ética libertária

valor de mero fato pontual ganhe o valor semântico de


fundamento, de reestruturação significativa da realidade.
Por isso 2013 não ocorre como um fato no mundo, um
fato entre outros fatos possíveis. 2013 não foi um ocorrido
corriqueiro, foi um acontecimento após o qual nada ficou
tal e qual. O acontecimento se difere do fato justamente
porque ele enquanto tal não era possível antes, e é por isso
que ele é capaz de criar valores. É isso que Deleuze nos
disse sobre 1968 e é isso também que podemos arriscar
dizer agora sobre 2013:
“Nos fenômenos históricos, como a Revolução de 1789,
a Comuna, a Revolução de 1917, há sempre uma parte de
acontecimento, irredutível aos determinismos sociais, às
séries causais. Os historiadores não gostam muito desse
aspecto: eles restauram causalidades retrospectivamente.
Mas o próprio acontecimento está deslocado ou em
ruptura com as causalidades: é uma bifurcação, um desvio
em relação às leis, um estado instável que abre um novo
campo de possíveis. (...) Neste sentido, um acontecimento
pode ser contrariado, reprimido, recuperado, traído,
mas ele não deixa de comportar algo que não pode ser
ultrapassado. São os renegados que dizem: isso está
ultrapassado. Mas o próprio acontecimento, por mais
antigo que seja, não se deixa ultrapassar: ele é abertura
de possível. Ele passa para dentro dos indivíduos, tanto
quanto para dentro da espessura de uma sociedade. E
isso porque os fenômenos históricos que invocamos
eram acompanhados por determinismos ou causalidades,
ainda que de outra natureza. Maio de 68 é da ordem de
um acontecimento puro, livre de qualquer causalidade
normal ou normativa. A sua história é uma ‘sucessão de
instabilidades e de flutuações amplificadas’. Houve muitas

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2018

agitações, gesticulações, falas, besteiras, ilusões em 68, mas


não é isso que conta. O que conta é que foi um fenômeno
de vidência, como se uma sociedade visse, de repente, o
que ela tinha de intolerável, e visse também a possibilidade
de outra coisa. É um fenômeno coletivo na forma de:
‘Um pouco de possível, senão eu sufoco...’ O possível não
preexiste, é criado pelo acontecimento. É uma questão de
vida. O acontecimento cria uma nova existência, produz
uma nova subjetividade (novas relações com o corpo, o
tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...).”1
Nossas existências dentro daquele período ganharam
um novo valor, experiência que marca profundamente
quem a experienciou. Sabe-se agora como este modo
de vida aparentemente inatingível é frágil, sabe-se agora
que pode-se viver de outra maneira, sem se ser regido
pelo capital, que a vida pode ser autogerida, que isso não
apaga o problema da vida, mas pode dar a ela novas cores,
novos sabores. 2013 marcou profundamente a sociedade
que o vivenciou porque é muito difícil viver a verdade e
depois ter que voltar a viver de mentira novamente. Uma
mensagem que não cessa: essa vida feia e neurótica do
capitalismo, essa gincana produtivista de nossa alienação
crescente, não é a única maneira possível de se viver como
querem nos fazer crer, nem é saudável, nem é desejável,
nem é necessária.
Disse Hobbes,um dos grandes filósofos da representação,
que constituir um poder representante seria instaurar uma
transcendência com base em alguma suposta legitimidade
ou fundamento.2 Tal transcendência segue a lógica do
abstrato representante de um concreto, ou seja, a mesma
lógica que a compreensão cognitiva moderna trabalha.
Destituir a representação é jogar esta transcendência no

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2013 – Uma dimensão ética libertária

concreto, por um golpe de força, fazendo com que ela


seja novamente destrutível. Este rearranjo ocorre por
meios das insurreições, enquanto acontecimentos que
tornam possível o que até então era impossível, ou seja,
levam novamente para o concreto mutável aquilo que
havia adquirido um papel de transcendência inatingível.
Este acontecimento traz à tona o diálogo entre concreto
e abstrato, o colapso que traz de volta como ‘mais um’ no
mundo aquele que havia sido investido de um poder que
o tornava Uno formal e indestrutível. Destituição do Uno,
quebra da monotonia paralítica. Um golpe de ar contra o
sufocamento.
“Nenhuma ordem social pode se basear de modo
duradouro no princípio de que nada é verdadeiro. É preciso
também sustentá-la. A aplicação a tudo do conceito de
‘segurança’ nos tempos que correm, exprime este projeto
de integrar nos próprios seres, nos comportamentos e nos
locais, a ordem ideal a qual estes já não estão dispostos
a sujeitar-se. ‘Nada é verdade’ não diz nada acerca do
mundo, mas tudo acerca do conceito ocidental de verdade.
A verdade aqui não é entendida como um atributo dos
seres ou das coisas, mas da sua representação. É tida como
verdadeira a representação conforme a experiência. A
ciência é, em última instância, o império da verificação
universal. Ora, todos os comportamentos humanos, dos
mais vulgares aos mais eruditos, se baseiam numa base
de evidências formuladas de forma desigual, sendo que
todas as práticas partem de um ponto onde as coisas e
as suas representações estão indistintamente colapsadas, e
em todas as vidas entra uma dose de verdade que ignora o
conceito ocidental de representação. Daí que os ocidentais
sejam universalmente tidos, pelos que colonizaram, como

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2018

mentirosos e hipócritas. É por isso que pode até ser


cobiçado o que eles têm — o avanço tecnológico — mas
nunca o que eles são, que se vê justamente desprezado.
Não se poderia ensinar Sade, Nietzsche e Artaud nas
Universidades, se essa noção de verdade que ultrapassa
a mera representação não tivesse sido antecipadamente
desqualificada. Conter ao infinito todas as afirmações, mas
sempre como letra morta, desativar passo a passo todas as
certezas vividas, este é o longo trabalho da inteligência
ocidental. Assim, polícia e filosofia podem tornar-se
meios convergentes, ainda que formalmente distintos.”3
Assim, 2013 instaura uma verdade que não é do âmbito
da representação, da letra morta, mas da relação interna, a
verdade necessária do acontecimento.

Outra temporalidade
Além de todo o legado político que 2013 nos deixou, este
período de grande efervescência política também ensinou
que outra temporalidade é possível. Este modo de vida
inclui uma maneira distinta de lidar com a temporalidade,
que não é a do tempo do trabalho, nem a do tempo da
produção. A quantificação do tempo de maneira discreta
é algo tão recente na história da humanidade quanto o
advento do capitalismo industrial. Thompson, em “Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial”4, fala-nos
que antes disso a temporalidade era medida de maneira
metafórica, pelas tarefas, sem necessidade de precisão.
“É bem conhecido que entre os povos primitivos a
medição do tempo está comumente relacionada com
os processos familiares nos ciclos de trabalhos e nas

164 verve, 34: 159-175, 2018


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2013 – Uma dimensão ética libertária

atividades domésticas. O relógio é a rotina das tarefas, as


horas do dia e a passagem do tempo são basicamente as
sucessões dessas tarefas e sua relação mútua.”5
O tempo da vida, neste sentido, difere-se do tempo
do trabalho na medida em que o primeiro é regido
pelas necessidades: sabe-se que é a hora de determinada
atividade e esta atividade nos diz que horas são; não se
desempenha uma ação porque está na hora dela, está na
hora dela porque se está na hora dela. Nesta perspectiva,
o tempo pertence à vivência e a constitui, não é dominado
por ela. Mas a revolução industrial introduz outra
temporalidade, a da quantificação precisa e discreta.
Assim, “o que predomina não é mais a tarefa, mas o valor
tempo reduzido ao dinheiro, o tempo agora é moeda:
ninguém passa o tempo e sim o gasta.”6 O capitalismo
produz valor pela dominação do tempo, ‘tempo é dinheiro’,
nosso tempo não nos pertence, não nos constitui, mas
precisa ser cada vez mais dominado, quantificado, para
gerar valor de troca, para produzir mais-valia. Maximizar
a produtividade e aumentar a velocidade até se chegar ao
tempo zero, isto é, ‘matar o tempo’. O tempo do mercado é
o tempo da disciplina, torna dóceis e produtivos os corpos,
dirá Foucault:
“O tempo medido e pago deve ser também um tempo
sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade,
e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar
aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são,
com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo
disciplinar. (…) Define-se uma espécie de anátomo-
cronológico do comportamento. O tempo penetra o corpo
e com ele todos os controles minuciosos do poder. (…)

verve, 34: 159-175, 2018 165


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2018

No bom emprego do corpo, que permite o bom emprego


do tempo, nada deve ficar ocioso e inútil.”7
Ninguém duvida que a nossa vida no capitalismo
contemporâneo se parece cada vez mais com uma gincana;
procrastinar nas redes sociais não é lazer, é apenas o outro
lado da moeda da produção, a vida de verdade, sentimos,
tem que ser outra coisa. Ocorre que pode-se viver hoje
uma vida inteira sem se viver de verdade. Uma coisa que
o existencialismo nos ensinou é que o ser humano está
situado espaço-temporalmente. A carência de vivência
coletiva construída materialmente na sociedade do
espetáculo encontra como substitutivo as comunidades
virtuais. A ilusão de que nos relacionamos com todos, sem
nos relacionarmos com ninguém. Matar para sempre o
tempo pelo seu encarceramento em uma time line infinita.
Estar espetacularmente em todo lugar o tempo todo
significa o advento do “ser sem mundo”, o ser que não está
aí em lugar algum.
Nada contraria mais o modo de vida contemporâneo
do que a temporalidade: busca-se um tempo zero, a
previsibilidade absoluta, nada no inesperado, tudo já
determinado antes mesmo de acontecer, até que o
futuro anteceda o presente e nenhuma abertura para
o totalmente outro seja mais possível. Pois bem, 2013
nos trouxe a imprevisibilidade do acontecimento: quem
poderia imaginar que algo como 1 milhão de pessoas nas
ruas ocorreria antes de que ocorresse? Nenhuma análise
de conjuntura o anunciou, nenhum cientista político o
esperava; antes de 2013, 2013 não era possível. E o que
a vivência do inesperado nos traz? Traz de volta o tempo
como esta abertura para o totalmente outro, não o tempo
de cronos, dividido em extensões discretas, mas de kairós

166 verve, 34: 159-175, 2018


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2013 – Uma dimensão ética libertária

e aion: a oportunidade do bom momento e o instante


intensivo. A possibilidade imprevisível do totalmente outro
não pode ser vislumbrada de dentro da nossa sociedade tal
como ela se encontra hoje, somente em alguns momentos,
momentos insurrecionais, quando a sociedade se revira
em um levante popular como em 2013 é que vemos o que
antes parecia impossível acenar no horizonte.
Reencontrar-se com nossa temporalidade fundante,
desneutralizada em dias que não terminavam. Pode-se
dizer que não havia atos todos os dias, os dias seguiam-se
em uma grande manifestação sem fim, na qual as pessoas
paravam para comer e descansar somente, a tal ponto
que já se ficava por ali mesmo, acampava-se nas praças,
esperava-se o próximo bom momento de enfrentamento
com as forças do Estado, em um amanhã que sempre
seria maior. E por retomar-se assim o tempo, retomava-
se também o espaço, e os corpos potentes, liberados da
disciplina do mercado, sentiam-se novamente vivos e se
uniam nas ruas, agora voltando à materialidade. É preciso
muita alegria para haver um levante popular. Em 2013, as
pessoas dançaram nas barricadas.

A vivência coletiva dos protestos e ocupações de rua


Talvez a principal dimensão que perdemos no nosso
modo de vida atual do capitalismo tecnológico, juntamente
à temporalidade e talvez por causa mesmo desta sua
dominação, seja a possibilidade da vivência coletiva.
Somos seres sociais, mas de uma sociabilidade fundante,
o que significa dizer que não somos jamais separados uns
dos outros, mas nos damos pela partilha, pela linguagem
que nos transpassa, pela relação, pelo estar-com o outro.

verve, 34: 159-175, 2018 167


34
2018

É a relação que nos possibilita. E isso é de tal maneira


fundamental que mesmo o individualismo reinante nada
mais é do que um fenômeno social, a doença de uma
sociedade paradoxal: somos socialmente individualizados
como não-sociais, mas apenas assim somos porque esse
é o modo de vida no qual estamos inseridos. Não é de se
estranhar que vivamos na angústia, em uma existência que
nega sua própria condição.
As revoltas contemporâneas são potentes porque trazem
esta condição à tona. Sentir-se novamente fazendo parte
de algo, não como um acidente, mas como constituinte.
Não se trata apenas de participação política, mas de
retomada de uma constituição fundamental. Uma verdade
ética que não se estabelece na relação entre um sujeito e
objeto previamente dados, mas que forja a própria relação
e, a partir dela, os polos relacionados.8 Obviamente, tal
verdade não pode ser do âmbito da representação.
“Estabelecer o que é verdadeiro é o papel da ciência,
não é mesmo? A ciência, essa que não tem nada a ver
com as nossas normas morais e com outros valores
contingentes. Para os modernos, há o mundo de um lado,
eles de outro, e a linguagem para superar o abismo. Uma
verdade, conforme nos ensinaram, é um ponto sólido
sobre o abismo — um enunciado que descreve de maneira
adequada o Mundo. Convenientemente, esquecemos a
lenta aprendizagem ao longo da qual adquirimos, com a
linguagem, uma relação com o mundo. A linguagem, longe
de servir para descrever o mundo, ajuda-nos sobretudo a
construir um. As verdades éticas não são, assim, verdades
sobre o mundo, mas as verdades a partir das quais nele
permanecemos. São verdades, afirmações, enunciadas ou
silenciosas, que se experimentam mas não se demonstram.

168 verve, 34: 159-175, 2018


verve
2013 – Uma dimensão ética libertária

(...) São verdades que nos ligam as nós mesmos, ao que nos
rodeia e uns aos outros. Elas nos introduzem de imediato
numa vida comum, a uma existência não separada, sem
consideração pelos muros ilusórios do nosso Eu.”9
Como muito bem expressa o Comitê Invisível, não se
trata aqui de uma verdade derivada da essência subjetiva
de um sujeito cartesiano, nem da essência objetiva do real
nele mesmo. Mas de uma verdade que se instaura em ato na
revolta10, por forjar aquilo mesmo que chamamos a partir
de então realidade. Colocar 2013 neste âmbito é resgatar
o que ele significou para a micropolítica, enquanto revolta
ética: um desacordo sobre o que é viver. Tratou-se de uma
ruptura com os pressupostos da representação, isto é, com
o dualismo cartesiano e a crença em um sujeito e objeto
independentemente dados. Esta relação interna entre nós
e o mundo introduz uma proposta ética coletivista, do
comum, do “eu sou porque nós somos”, em contraposição
ao individualismo reinante.
Não se tratou de mudar uma imagem no jogo da
representação, de se conseguir uma pauta, de se fazer uma
reforma, de se eleger um político qualquer. 2013 pretendeu
mudar o arranjo entre o que é pano de fundo e o que é figura
neste pano de fundo sobre o qual nos encontrávamos.
Portanto, não há um caminho dado no mundo tal como
está que nos possa levar à mudança que buscávamos, é
uma mudança nos próprios critérios, é um alargamento
dos limites do que é um fato, é uma modificação no que se
toma como necessário. Mas é também uma modificação
encarnada por 2013 ele mesmo, e não apenas pretendida.
Esta mudança não é uma idealidade, mas é antes de tudo
uma prática. Trata-se da política como um fim em si: as
táticas não são apenas meios para se conseguir algo, elas

verve, 34: 159-175, 2018 169


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2018

são a própria resistência. Tomemos o exemplo concreto


das ocupações. Elas revindicavam algo, mas não eram
apenas o meio para alcançar uma pauta; elas eram já ali,
a ação que elas pleiteavam, a escola autogerida, a célula
social horizontal. O tempo que elas duram é o menos
importante aqui, pois instauram outra temporalidade
descolada da cronologia habitual, são meio e fim de
modificação social em ato.
A experiência do levante, das comunas, das assembleias
horizontais, da vivência cotidiana autogerida seriam
experiências capazes de instaurar outra forma de vida.
Encarnam também em ato como este modo de vida
aparentemente indestrutível do capitalismo é frágil, e
como tudo nele não funciona. Mostram que quem faz o que
precisa ser feito são as pessoas, sempre. Os participantes das
insurreições, das ocupações, das comunas em resistência,
vivenciam uma verdade outra que coloca por terra o modo
de vida do capitalismo atual como única possibilidade de
existência. Uma vez vivenciada esta verdade não é possível
se voltar ao estado anterior de crença no capital, por isso
esta experiência coletiva desvela uma verdade e faz com
que estes que a vivenciaram se tornem a partir de então
conspiradores buscando retomar o acontecimento e torná-
lo contínuo. Nós nos tornamos, assim, as falhas vivas nas
matrix, buscando corroer por dentro este modo de vida,
sabendo que ele é falho, e buscando nos organizar para
destituir o sistema que aí está.

Aprendendo o que realmente importa


Viver agora a sociedade que queremos, como um fim
em si, não como um meio. Estar presente no presente, se

170 verve, 34: 159-175, 2018


verve
2013 – Uma dimensão ética libertária

ajudar estando em perigo grave, não por dinheiro, mas por


algo que acreditamos. Se arriscar, não recuar, saber o que
vale mais. A luta e a resistência educam de várias maneiras,
muito mais do que as instruções teóricas, formais, muito
mais do que qualquer banco escolar poderia fazer. A ética
de 2013 é uma afirmação da coragem ao enfrentamento
do intolerável.
Vivemos a sociedade do espetáculo11, uma falência da
representação por sua elevação à enésima potência de
representação sem representado. É uma ruptura com a
representação por domínio generalizado do espetáculo,
representação da própria representação, e é apenas nesse
sentido que a falência toma vida própria como manutenção
do modo de vida que ao mesmo tempo coloca em questão,
e é apenas nesse sentido que podemos entender que ela se
trata também de uma falência existencial. Nosso modo de
vida consiste numa fuga perpétua do tempo para o mundo
virtual, para o mundo das imagens e das representações
que se tornaram mais reais do que a própria realidade, isto
é, são espetaculares. Este virtual não mais corresponde
ao real, mas se torna mais importante que ele, opera no
vazio. As experiências coletivas que romperiam com
a falência existencial na qual nos encontramos seriam
aquelas capazes de romper também com o primado da
representação e da compreensão dualista de realidade que
a acompanha, que são capazes de instaurar, deste modo,
novas potências reestabelecendo nossa ligação interna
com o real concreto que a contemporaneidade espetacular
havia nos feito esquecer.
Compreender 2013 como experiência ética é situá-lo
na micropolítica e carregá-lo como aprendizado para a
vida. Um aprendizado que diz repeito às relações entre

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2018

meios e fins e que nos ensina, assim, o que é resistência,


que a toma como um valor. Uma ética da insurgência, da
coletividade, da rebeldia, do inesperado. Os mexicanos
costumam falar em ‘dignidade rebelde’, um elogio muito
próprio ao modo de vida deles. Talvez porque toda a sua
construção social tenha sido marcada por resistências e
revoltas qualificadas politicamente, talvez porque tenham
vivido uma revolução popular em 1910 e não seja possível
pensar a sociedade mexicana apartada dos efeitos dessa
revolução. Mas nós, aqui, não vivemos nenhuma revolução
popular, somos ensinados a achar que as modificações
sociais nos foram dadas por nossos soberanos no poder
constituído, somos ensinados a apagar a força popular e a
ação direta como motor de modificação social. Ao mesmo
tempo, fomos fortemente treinados pelo capitalismo
a esquecer o que realmente importa, a acharmos que
as vidraças valem mais que as vidas, que a propriedade
vale mais dos que as pessoas, que um carro novo justifica
crianças passando fome nas ruas, que a suposta aplicação
irrestrita da noção de segurança pública legitima as mortes
nas favelas, que o dinheiro vale mais que nosso tempo,
que o Estado e suas forças são indestrutíveis, que um
celular pode carregar nossa sociabilidade. Mas 2013 nos
gritou: “Cadê o Amarildo?”; “Ação direta é que derruba
o capital”; “Sem hipocrisia, essa polícia mata pobre todo
dia”; “Eu vi o choque correr do Black Bloc”; “Lutar é Criar
Poder Popular”; entre tantas outras palavras de ordem
extremamente éticas que este período nos legou.
Nesse sentido, 2013 permanece extremamente
significativo como limite e contraposição potente ao
instituído hoje. Saber o que realmente importa é saber
pelo que vale a pena resistir, para além dessa vida medíocre

172 verve, 34: 159-175, 2018


verve
2013 – Uma dimensão ética libertária

que nos acenam como única possível. 2013 foi forte pela
multiplicidade que carregou, pela imprevisibilidade que
instaurou, pela ausência de controle e lideranças que nos
trouxe. Entender 2013 é entender também as reações a
ele que ainda vivemos no tempo presente. Não temos que
lamentar a falta de uma organização Una, mas entender
a força de outros modos de agenciamento. Entender
2013 deve ser se apropriar agora do que ele teve de forte
na medida em que não reproduziu o modo de vida do
Uno idealizado, que é também o modo de vida do Ego,
do Estado e do patriarcado. Não domesticar 2013, não
resumi-lo às dualidades da política institucional, não
colocá-lo a serviço do mais do mesmo de sempre. Fazer
isso seria matar o que 2013 pode deixar para as próximas
gerações. Não entende nada de 2013 quem crê que ele
deveria servir à política eleitoral em qualquer sentido que
seja; não entende nada de 2013 que procura aplicar-lhe
as velhas categorias da representação, quem lamenta um
insucesso da sua bandeira partidária. Não é a isso que essas
experiências coletivas servem. Trazer este acontecimento
da verdade como ação para uma continuidade diária,
talvez seja este o desafio agora. Fazer onde se está um
ethos comunitário da multiplicidade, não reproduzindo o
primado do sujeito narcisista.

Notas
1
Gilles Deleuze e Felix Guattari. “Maio de 68 não ocorreu”. Tradução de
Mariana de Toledo Barbosa. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência.
Rio de Janeiro, 1º quadrimestre de 2015, v. 8, n. 1, p.75.
2
Thomas Hobbes. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, Nova Cultural, 1988.

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3
Comitê Invisível. A Insurreição que vem. pp. 101-102. Disponível
em: http://dazibao.cc/wp-content/uploads/2015/11/A-
insurreic%CC%A7a%CC%83o-que-vem-CI.pdf (Acesso em: 15/07/2018).
4
Edward P. Thompson. Costumes em comum. Tradução de Rosaura
Eichenberg. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 267-305.
5
Ibidem, p. 269.
6
Ibidem, p. 272.
7
Michel Foucault. Vigiar e Punir. Treadução de Raquel Ramalhete. 42ª
edição. São Paulo, Vozes, 2014, pp. 148-149.
8
A própria tática de resistência Black Bloc, que se fez presente nos protestos
de rua brasileiros em 2013, encarna uma resposta ao intolerável fundada
na dissolução da identidade subjetivista moderna, que, como já notamos, é
um dos pressupostos da representação. Sobre isso, ver: Francis Dupuis-Déri.
Black Blocs. Tradução de Guilherme Miranda. São Paulo, Veneta, 2014.
9
Comitê Invisível. Aos nossos amigos – Crise e Insurreição. São Paulo, N-1
edições, 2016, pp. 54-55.
10
A revolta, nos diz Camus, sempre cria valores: “Que é um homem
revoltado? Um homem que diz ‘não’. Mas se ele recusa, não renuncia: é
também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um
escravo que recebe ordens durante toda a sua vida, julga subitamente
inaceitável um novo comando. Qual o significado desse ‘não’? Significa por
exemplo: ‘as coisas já duraram demais’; ‘até aí, sim, a partir daí, não’; ‘há um
limite que você não vai ultrapassar’. Em suma, este ‘não’ afirma a existência
de uma fronteira”. Albert Camus. O Homem Revoltado. Tradução de Valerie
Rumjanek. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 25.
Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos
11

Abreu. Rio de janeiro, Contraponto, 2017.

174 verve, 34: 159-175, 2018


verve
2013 – Uma dimensão ética libertária

Resumo
O objetivo deste artigo é resgatar os acontecimentos de 2013
como uma experiência ética, que aponta para a possibilidade de
um modo de vida totalmente outro. Muito do que hoje vivemos
ainda está sob o efeito das inquietações e das possibilidades
abertas pelas grandes manifestações diárias e insurgências
que tomaram o Brasil neste período. É preciso saber responder
adequadamente ao que 2013 nos trouxe, não apenas no
âmbito da macropolítica, mas talvez sobretudo no aspecto
das microrresistências diárias, para retomarmos a mensagem
que este período nos legou. Toda resistência jamais é apenas e
fundamentalmente contra algo, mas sempre e antes de tudo a
favor de outros modos de experimentar a vida.
Palavras-chave: 2013, insurreição, ética, micropolítica.
Abstract
The purpose of this paper is to rescue the events of 2013 as an
ethical experience, which points to the possibility of a totally
different way of life. Much of what we are experiencing
today is still under the effect of the restlessness and possibilities
opened up by the great daily manifestation and insurgencies
that Brazil had in that period. We need to be able to respond
adequately to what 2013 brought us, not just in the macro-
politics, but perhaps above all in the aspect of daily micro-
resistances, to return to the message that this period bequeathed
us. All resistance is never only and fundamentally against
something, but always and before everything in favor of other
ways to experiencing life.
Keywords: 2013, insurrection, ethic, micro-politics.

2013 – An anarchist ethical dimension, Camila Jourdan.


Recebido para publicação em 15 de julho de 2018. Confirmado
em 5 de outubro de 2018.

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2018

1968 e 1999:
diferenças e metamorfoses entre
nova política e antipolítica1

acácio augusto

As difundidas novidades políticas que apareceram


com os movimentos antiglobalização não são exatamente
inéditas. As formas de interpretação e alguns
descolamentos possibilitados por sua aparição é que,
de alguma forma, se apresentam como uma novidade.
O movimento se metamorfoseia, não acabou, e suas
interpretações acompanham as suas atualizações, assim
como os acontecimentos que se desdobram dele.
É um movimento que provocou reviravoltas nas
formas tradicionais de ação dos movimentos sociais. Suas
estratégias e táticas de lutas variadas encontram referências
em uma série de práticas históricas dos anarquismos e
em práticas políticas das resistências nos anos de 1960,
1970 e 1980. Retomemos alguns momentos de atuação
e desdobramentos dos dias de ação de global contra o
Acácio Augusto é doutor em Ciências Sociais (Política) pela PUC-SP e professor no
curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN
- UNIFESP). Pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) e
autor de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens (Rio de
Janeiro, Lamparina, 2013). Contato: acacioaugusto1980@gmail.com.

176 verve, 34: 176-193, 2018


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1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

capitalismo, tanto em relação aos anarquismos quanto em


relação às novas tecnologias de poder.
Haveria muito mais de culminância e esgotamento de
algumas práticas expressas nas ações desses movimentos
de ação global do que propriamente novidade em relação
às práticas de resistências? Teria a repetição de práticas
historicamente minoritárias, alçado a condição de
estratégia geral de luta majoritária? Quando nas década
de 1960 e 1970, temáticas como ecologia, descentralização
de decisões, movimentos de minorias como mulheres,
negros, gays, indígenas, estudantes, liberação sexual,
combates à autoridade centralizada irrompem, produzindo
uma politização afastada das formas tradicionais de
representação política, elas produzem um abalo na
política. Não é coincidência que, a partir de então, os
anarquismos se veem revigorados, revirados e diretamente
referidos, adentrando a academia, forçando inclusive
revisões na historiografia que havia declarado seu fim
com o malogro da Revolução Espanhola, em 1939, ou
restringido-os à contracultura. 68 foi um acontecimento
libertário na história e contra a história, um devir, com
suas atualizações e capturas2. Suas transformações
ficaram registradas de forma irreversível no campo dos
costumes, mesmo que na política formal e institucional
a reação tenha sido, na França, a vitória eleitoral de
George Pompidou, nos Estados Unidos da América,
a de Richard Nixon e, no Brasil, a repressão política do
regime civil-militar recrudescida com a promulgação do
AI-5 (Ato Institucional número 5 de 13 de dezembro de
1968) no final de um ano durante o qual as manifestações
contrárias ao regime tinham se avolumado. 68 não estava
direcionado pela e para a política, ao menos não em sua

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2018

forma rizomática e em sua contestação às formas de vida


que se forjam no interior do capitalismo e abaixo do
Estado. Os movimentos antiglobalização, ou movimento
por justiça global repetirão, de certa forma, algumas das
temáticas e até mesmo algumas das táticas de 1968,
mas, ao contrário do que lá aconteceu, inscrevem-nas no
campo da política, das negociações, das reivindicações e
das articulações comunicacionais. Lutas específicas que
antes haviam abalado a produção da política passarão por
formalizações e certa unidade global, apontando para a
construção de uma cidadania planetária via a produção de
um ativismo global.
É nesse sentido que o movimento antiglobalização,
apesar de repetir temáticas já colocadas por 68, não deve
ser visto como uma repetição, ou mesmo novidade, mas
sim culminância, esgotamento e institucionalização.
Enquanto que para grande parte dos ativistas de 1999
estava em jogo um “outro mundo possível”, emancipações
e possibilidades de contestações e pressões, para os
jovens em 1968, como relata Serge – um estudante de
engenharia eletrônica que participou das barricadas de
maio na França e se tornou integrante da Federação
Anarquista Francesa –, “todos os elementos da vida foram
questionados: as relações entre as pessoas, entre homens
e mulheres, relações de trabalho... (...) As couraças não
explodiram todas em 1968, mas não se aceitavam mais
as mesmas relações entre as pessoas, entre os homens e
as mulheres, e para mim isso permanece até hoje”3. Essa
diferença entre mudar o mundo, construir uma nova vida
no mundo, e mudar a vida, transformá-la no sentido ético
e estético, é crucial para compreender as distâncias e as
diferenças.

178 verve, 34: 176-193, 2018


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1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

No movimento antiglobalização há uma sincronia e


jogos de adaptação em relação às tecnologias de poder no
presente que podem ser demarcados nas táticas e estratégias
desses protestos. Em especial, no que diz respeito à sua
busca por conexão planetária e sua força de articulação
de minorias em torno de uma causa e de uma agenda
global na procura por pressões voltadas aos governos e
agências internacionais, sejam elas humanitárias, como a
ONU, ou financeiras, como o FMI, Banco Mundial ou a
Organização Mundial do Comércio (OMC), formulando
um ativismo com vistas à cidadania global. Desde já, cabe
notar que o traço distintivo dessas ações é seu enorme
poder cooperativo e comunicacional, expresso pelo uso
decisivo da internet em suas conexões para reivindicações,
posicionamentos e pressões políticas.
68 anunciou possibilidades à cultura libertária4 ao
não negar os elementos de contestação que na história
marcaram a crítica e atuação política de socialistas,
comunistas e anarquistas, e por apontar possibilidades de
rebeldias como transformação da existência, dos costumes
e da produção material e intelectual. Suas transformações
se espargiram e embaralharam os campos da política, da
cultura e da sociedade. Ainda que este acontecimento
seja visto por muitos apenas vinculado aos movimentos
de minorias, com seus agentes políticos e sociais, de uma
forma um tanto geral, pode-se dizer que ser negro, mulher,
operário, estudante, gay etc., não foi a mesma coisa depois
de 68. Pouco importa a valoração ou sentido que se dará
a essas mudanças, interessa aqui registrás-las como a
produção de um efeito, como potência em transformar o
campo de forças da política.

verve, 34: 176-193, 2018 179


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2018

Suas transformações estão aí para quem quiser ver, não


como resultantes de uma luta que objetivava isso, mas
como ponto de virada que faz da vida hoje tão diversa,
e em certo sentido mais livre, do que era nos anos 1950.
Essa transformação ampliada e quase que imediata,
não foi vista nos efeitos do movimento antiglobalização,
ao menos não como no relato produzido em 1988 por
Hélène Hernadez, uma militante anarquista que viveu
68 em Paris: “É a vontade de modificar a vida cotidiana
que se afirma como objetivo político; transformar as
relações entre indivíduos, inclusive e sobretudo as relações
de poder. A juventude, tanto operária quanto estudantil,
reivindica sua dignidade, aquela de ser reconhecida, aquela
de sua responsabilização social no momento em que o
desenvolvimento econômico abre-lhe um mercado de
consumo que a autoridade moral, incorporada pelos pais
e pela escola, proíbe-lhe. Ela só pode, então, para existir,
pôr em causa o poder, os poderes. E ela se o permite. (...)
Um outro modo de comunicação instala-se. A palavra
libera-se, pungente, irreverente, amiúde jocosa, liberta-se
da verticalidade: a informação só pode circular para baixo
como em nossas sociedades autoritárias, ou de baixo para
cima como naquelas reivindicadas pelos ‘revolucionários’
de todos os pêlos (trotskistas, maoista, igualmente
autoritários, por sinal)? Todavia, e se cada um reinventa,
revivifica os circuitos horizontais? Que força subversiva!”.
O relato de Hernandez explicita a dupla entrada de
transformação a partir de 1968. De um lado, um impulso
de transformação da vida que produz efeitos de liberação
e da disposição em se enfrentar os limites colocados pelas
autoridades do poder construído. De outro lado, há um
destaque ao que se transforma na relação com a autoridade,

180 verve, 34: 176-193, 2018


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1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

com a produção, com o consumo e a com a comunicação,


que, vistos hoje, dão nota de como essas mudanças foram
encampadas, capturadas, colocadas para funcionar, como
apontou Richard Sennett5, no que chamou de nova
cultura do capitalismo. A abertura, ou a “brecha”, como
Daniel Conh-Bendit chama 686, foi de dupla entrada:
abriu para novas possibilidades libertárias, mas também
para novas formas de governo das condutas. Em relação
às comunicações, se considerarmos que o relato de
Hernandez é anterior à popularização dos computadores
pessoais, esse duplo efeito de 68 torna-se ainda mais
impressionante. O movimento antiglobalização, por
conseguinte, é a culminância desse duplo efeito e dessas
formas de politização.
O movimento antiglobalização se inscreve como
expressão limite dos redimensionamentos operados
pelas transformações de costumes colocadas por 68. Em
seus protestos situam-se os limites das convocações à
participação7 por sua expansão, os limites das reivindicações
ecológicas, da articulação comunicacional planetária da
sociedade civil, da pressão aos organismos internacionais,
do questionamento a uma nova ordem global, da cidadania
nacional, das lutas de minorias que passam a pleitear o
direito de ter direitos em escala planetária. Esses limites
se configuram por meio das reivindicações de poder para
participar e influenciar decisões (políticas, econômicas e
ecológicas), que são tomadas em âmbito planetário pelas
organizações transnacionais e que afetam diretamente a
vida dos cidadãos nas democracias parlamentares nacionais.
Essas pressões podem distender, ou mesmo bloquear
temporariamente, alguns efeitos dessas decisões, mas não
rompem o amplo elástico dos controles planetários. Em

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2018

suas versões mais recentes – como as manifestações que


utilizam as mesmas formas de atuação a partir de 2011
em quase todo planeta –, as mobilizações oscilam entre
uma contestação radical da ordem e lutas por reformas
pontuais; entre uma crítica aos meios de comunicação
e seus usos táticos, seja como mídia em rede, seja como
mídia de massa (ou, como é definida mais recentemente:
massa de mídias); entre produzir alguma transformação na
vida dos jovens que delas participam e treiná-los para os
novos empreendedorismos sociais8.
Nessa oscilação pendular, as mobilizações funcionam
como insumo para reformar discursos políticos, à
direita e à esquerda, ou operacionalizar fóruns de
discussões planetários. Novos sonhos de libertação ou de
melhorias pontuais são repostos na ordem política, agora
conectada de forma planetária, e dispostos a formular
alternativas. Não se nega uma potência de resistência
e a possibilidade de produzir focos de experiências que
escapam e rompem com essa oscilação; mas, no conjunto,
essas aparições são rapidamente tragadas pelos fluxos
informacionais e espetaculares9 em sua efemeridade
comunicacional, servindo em pouco tempo a restaurações
e redimensionamentos teóricos e institucionais. Para
situar um desses efeitos basta um rápido olhar na oposição
complementar entre a conferência oficial e o fórum
alternativo ocorrido durante a última Conferência das
Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,
a Rio+20. Sua opositora, a Cúpula dos Povos só existia
em função da primeira e suas temáticas e reivindicações
eram comuns10; a alternativa apenas reivindica a qualidade
de ser mais democrática, incluir um número maior de
pessoas e questões e tratá-las em vista de um interesse

182 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

geral planetário. Diante da oficial: pretende-se melhor e


mais justa.
Essas transformações no campo das políticas de
contestação, protestos e oposição ao capitalismo mostrarão
suas iniciais mutações no final do século XX e começo do
século XXI. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e o
anúncio do fim da história, proclamou-se a vitória definitiva
do capitalismo em sua versão liberal democrática11, e o que
se convencionou chamar de esquerda, durante o século
XX (poderíamos nomear de esquerda partidária), ficou
órfã com o ocaso do modelo autoritário da URSS (União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Do ponto de vista
da política, entendida como atividade do e no Estado, o
discurso parecia restrito à lamentação sobre o mau futuro
das revoluções, resignando-se à luta parlamentar para fazer
com que a democracia (ou seu aprofundamento) levasse
a pressões para a realização de maior igualdade social e
econômica12. No campo das disputas político-teóricas, o
que se procura a partir de 1989 é uma nova formulação dos
modos de transformação política da sociedade, olhando
democraticamente para os fatos como uma maneira de
buscar justificativas a cada uma das posições divergentes.
No campo da historiografia liberal, 1989 também
será visto como uma nova fase da atuação política
pela emergência institucionalizada da sociedade civil
organizada como contrapeso decisivo diante do domínio
do Estado, substituindo o contrapeso do liberalismo
clássico do século XVIII, o povo. A referência é novamente
a derrocada dos regimes socialistas na Europa oriental: as
chamadas Revoluções de Veludo, que tomaram as cidades
de Vársóvia, Budapeste, Berlim e Praga. O historiador
inglês Timothy Garton Ash, ao descrever como as

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articulações políticas dessa sociedade civil conseguiram


desmantelar os regimes socialistas, oferece uma definição
de transformação político-social que esclarece, em parte,
o apartidarismo que habita tanto os novos movimentos
quanto a atuação de ONGs e movimentos de minorias.
Pela noção descritiva de revolução de veludo, na qual
a guilhotina é substituída pela mesa de negociação, é
possível mapear o itinerário político desses movimentos
que desviam ou contornam a mediação partidária para
fazer valer sua cidadania, embora não prescindam da
forma-partido e, tampouco, dispensem a formalização no
Estado13.
Para Garton Ash, “um conceito que desempenhou
um papel central no pensamento de oposição na década
de [19]80 foi o de ‘sociedade civil’. O ano de 1989 foi
a primavera de sociedades que aspiravam a ser civis. As
noções rudimentares de homens e mulheres comuns sobre
o que significava construir uma sociedade civil poderiam
não satisfazer o cientista político. Mas tais noções estavam
presentes, e continham diversas exigências básicas.
Deveria haver formas de associação nacional, regional,
local e profissional que fossem voluntárias, autênticas,
democráticas e, acima de tudo, não fossem controladas
ou manipuladas pelo Partido ou pelo Estado-Partido. As
pessoas deviam ser ‘civilizadas’, isto é, polidas, tolerantes e
principalmente não-violentas. Civilizadas e civis. A ideia
de cidadania deveria ser levada a sério. (...) E a linguagem
da cidadania foi importante em todas essas revoluções.
As pessoas estavam fartas de serem meros componentes
de uma sociedade deliberadamente atomizada: elas
queriam ser cidadãos, homens e mulheres individuais
com dignidade e responsabilidade, com diretos, mas

184 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

também com deveres, associando-se livremente na


sociedade civil”14. Em poucas décadas, esse associativismo
cidadão ganhou contornos planetários como forma de
organização dos interesses fora da forma-partido, como
era o pressuposto das democracias parlamentares até
então, fossem elas bi ou multipartidárias. Ao tomar a
cidadania em sua individualidade não lastreada em um
grupo político de pressão, a referência passa a ser menos o
partido e mais a lei: a relação que cada cidadão estabelece
com um quadro jurídico do Estado democrático de direito.
Este é pressuposto da racionalidade neoliberal, na qual as
regras do jogo devem ser respeitadas, mantendo o poder
de punir e o uso da violência como uma prerrogativa
exclusiva do Estado15. As pressões internacionais, por
meio de mobilizações civis, para que os governos adotem
e efetivem recomendações — sejam ambientais ou de
direitos humanos — conforma o primado da lei como
manifestação compulsória dessa cidadania planetária em
formação, onde o que está em jogo é a sociedade civil
organizada e não mais o indivíduo16.
Por sua vez, os defensores do socialismo de partido,
diante dessas novas condições, sairão para expor o exame
de consciência autoritária e a defesa da democracia e do
Estado de Bem-estar Social, na medida em que aceitaram
a impossibilidade, mesmo que temporária, de uma
transformação radical ou mesmo revolucionária violenta.
Entretanto, seguem se orientando por um imperativo
de cidadania menos referido à lei e mais ao interesse ou
bem-estar comum, ainda que busquem sua efetivação
pela garantia legal do Estado. Esse mesmo welfare state
em fase de mutação por meio do que ficou conhecido
como políticas neoliberais, muitas vezes identificadas

verve, 34: 176-193, 2018 185


34
2018

como as políticas governamentais de Margareth Thatcher,


na Inglaterra e de Ronald Reagan, no EUA, na América
Latina já conhecia sua versão autoritária, pelo governo do
general Pinochet, a partir do golpe de 1973, no Chile. O
exemplo mais evidente dessa virada no campo do chamado
pensamento de esquerda encontra-se na figura de Claude
Lefort. Oriundo do Nanterre e do ciclo Socialismo ou
Bárbarie, sua obra A invenção democrática. Os limites da
dominação totalitária17, é quase uma expressão-manifesto
dessa correção de rota na atuação política da esquerda
europeia. Novamente é a fobia de Estado e a necessidade
de se contrapor ao totalitarismo que operam a expansão
da racionalidade neoliberal, inclusive entre pensadores da
esquerda18.

O neoliberalismo, ainda
A publicação, na metade dos anos 2000, de dois
cursos de Michel Foucault, proferidos no final dos anos
1970, trouxe novas possibilidades de análise dos efeitos
dessas transformações recentes — como mostra um certo
revisionismo marxista que utiliza a leitura de Michel
Foucault para estabelecer um novo conceito de comum,
que tem como expoente mais notável a obra de Pierre
Dardot e Christian Laval19. Assim, não soa estranho que
historiadores do Direito Internacional, como Samuel
Moyan, localizem os Direitos Humanos como a última
das utopias, e apontem que em torno dessa “nova utopia”,
plenamente afinada com a racionalidade neoliberal,
em especial em relação aos direitos de minorias, se dê
continuidade às políticas neoliberais20. E, ao fazer a crítica
à centralidade desse ativismo humanitário, procura-se

186 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

recolocar no centro da oposição ao neoliberalismo as


questões ligadas à extrema desigualdade que a globalização
produziu.
Hoje, à direita e à esquerda, retoma-se a crença na
capacidade reguladora do Estado como reposta à crise
de 2008. Seja com Alexis Tsipras, na Grécia, ou Donald
Trump e Theresa May, nos EUA e na Inglaterra. Assim,
buscam sufocar a potência antipolítica que emergiu
em meio aos protestos antiglobalização, num primeiro
momento produzindo a divisão entre o ativista responsável
e o militante baderneiro, para em seguida recolocar no
centro a figura dominante da responsabilidade política: o
Estado.
Em vez de olhar para a realidade à sua frente, a esquerda
capitalista em todo o mundo preferiu enganar-se, e a seus
seguidores, com a Syriza (já em 2013, Yanis Varoufakis,
brevemente Ministro das Finanças grego, declarou que o
seu objetivo era “salvar o capitalismo europeu de si mesmo”).
Mas foi também um autoengano, pois confirmou o que
era: uma alternativa. Os últimos três anos mataram essa
ilusão, pois, mesmo para os que creem na alternativa, nada
mudou. A Grécia praticamente desapareceu das manchetes
de jornais como um lugar em convulsão, para assumir o
lugar de exemplo de responsabilidade. Mas as cheerleaders
ávidas pelas mudanças anunciadas pela Syriza, se fazem
de desentendidas. A bola da vez da esquerda planetária,
deposita suas esperanças em outras celebridades socialistas,
como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. Enquanto isso,
na Grécia, as pessoas estão carregando as consequências
da vitória do Syriza: mais cortes nas aposentadorias,
aumento de impostos que devem ocorrer em janeiro de
2019 e a caça aos militantes ditos irresponsáveis que segue

verve, 34: 176-193, 2018 187


34
2018

a todo vapor, com prisões e muita violência do Estado.


Nem a esquerda nem a direita têm a resposta para a crise
em curso, mesmo porque a crise se tornou a própria forma
de governar e os processos eleitorais tornaram-se puro
terror psíquico sobre a catástrofe que virá. Não é apenas
porque a crise se tornou a forma de governo, assim como
a dívida (e responsabilidade que ela requer) tornou-se a
forma de controle, mas porque a busca por alternativas e
a plasticidade da racionalidade neoliberal são capazes de
absorver, pela política, toda novidade como nova política.
E, assim, segue o jogo.
Se é certo que 1999 é a culminância das lutas abertas
em 1968, é preciso lembrar que transformar a vida é
diverso de salvar o planeta.

Notas
1
Este artigo é um pequeno trecho, levemente modificado, retirado de minha
tese de doutorado: Política e antipolítica: anarquia contemporânea, revolta e
cultura libertária. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2013.
2
Para uma leitura anarquista do acontecimento 68 na França, ver: Nu-Sol.
“Dossiê 68” in Revista Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 13, 2008, pp. 84-121.
Para entrevista e textos com os acontecimentos na França, ver: Sérgio Cohn;
Heyk Pimenta (orgs.). Maio de 68. Coleção Encontros. Rio de Janeiro, Beco
do Azougue, 2008. Para análises de sua atualidade, ver: Nu-Sol, 2008, op.
cit., pp. 13-45.
3
Cohn; Pimenta, 2008, op. cit., pp. 87-89.
4
Sobre cultura libertária, ver: Edson Passetti & Acácio Augusto. Anarquismos
e educação. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2008.

188 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

5
Richard Sennett. A Cultura do novo capitalismo. Tradução de Clóvis
Marques. Rio de Janeiro, Record, 2006.
6
Cohn; Pimenta, 2008, op. cit., pp. 14-25.
7
Cf. Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez,
2003.
8
Essa formação empreendedora se mostra mais evidente a partir do início
da segunda década do século XXI, em especial no campo da produção de
mídia alternativa. Se nos movimentos antiglobalização de 1999 a plataforma
ainda era um site de postagem aberta, mas regulada por um grupo de
ativistas, o CMI (Centro de Mídia Independente), com a facilitação do
compartilhamento em redes sociais digitais expandem-se as possibilidades
de empreender a gestão compartilhada. No Brasil atual isso pode ser notado
no grupo Mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação),
ligado a um dos maiores negócios de empreendedorismo cultural do país, a
Casa Fora do Eixo. Esta, além de oferecer formação para gestão de negócios
culturais compartilhados, sustenta-se com verbas dos governos municipais
e estaduais, além das federais do Ministério da Cultura, e possui ligações
políticas explícitas com diversos partidos, inclusive com o que ocupava
o governo federal na época, e atua como um dos principais gestores da
produção cultural alternativa no país. Ver: http://foradoeixo.org.br/ e http://
casa.foradoeixo.org.br/ (acesso em: 10/8/2013). Para uma leitura dos atuais
protestos e suas relações com a noção de empreendedorismo de si, cunhado
por Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica (Tradução Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008), em sua análise da racionalidade
neoliberal, na produção de negócios sociais e de uma dignidade planetária,
ver: Acácio Augusto. “Penalizações a céu aberto, uma política planetária” in
revista ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol/PUCSP, n. 4, 2012. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/13062. (acesso
em: 13/10/2018).
9
A noção de espetáculo como forma descritiva das manifestações pode
até guardar uma certa relação com o conceito de espetáculo cunhado pelo
situacionista Guy Debord, quando este define as imagens como campo
de mediação privilegiada das relações sociais nas sociedades industriais
avançadas (Cf. prólogo crítico de Cristian Ferrer para edição argentina de
1995). Mas o uso que faço dessa palavra se diferencia do conceito de Debord
por três razões objetivas. A primeira é uma razão teórica: o espetáculo, para
Debord, define uma situação passiva do espectador que se mantém como

verve, 34: 176-193, 2018 189


34
2018

que hipnotizado pela ideologia: “quando mais contempla menos vive;


quando mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes de necessidade,
menos compreende sua própria existência e seus próprios desejos” (Guy
Debord,. La sociedade del espetáculo. Tradução de Fidel Alegre e Beltrán
Rodríguez. Buenos Aires, La Marca, 1995, proposição 30). Nestas atuais
manifestações, muitas vezes inspiradas por teses situacionistas, os sujeitos
participam diretamente da produção, edição e difusão das imagens, logo,
não são meros espectadores, mas participantes do espetáculo. Acreditam
estar efetivando uma crítica à “sociedade do espetáculo”. A segunda é uma
razão político-analítica: Debord rechaça explicitamente a possibilidade de
o sujeito romper com essa sobredeterminação ideológica, usando como
exemplo os anarquistas (nas proposições 91, 92, 93 e 94), que para ele têm
nessa possibilidade de rompimento colocada para o sujeito como decisão
pela liberdade: “a uma só vez a grandeza e debilidade da luta anarquista
real (já que, em suas variantes individualistas, a pretensões dos anarquistas
resultam irrisórias)” (Ibidem, proposição 92). Ora, é precisamente a atitude
do sujeito, diante das situações que são colocadas, que possibilita um
rompimento político-crítico como não adesão ao jogo. A última razão é
terminológica: utilizo o espetáculo no sentindo de entretenimento, que
funciona assim tanto para os leitores de jornais e internet e espectadores de
jornais televisivos, quanto para os ativistas participantes das manifestações.
O que também se afasta das teses de Debord, pois para que exista espetáculo
é preciso atender à convocação à participação, seja de forma eletrônica, seja
de maneira presencial nas ruas.
10
Para uma análise desta relação entre conferência e alternativa complementar,
ver: Acácio Augusto e Gustavo Simões. “Paisagens” in Revista Ecopolítica.
São Paulo, Nu-Sol/ PUCSP, n. 3, 2012. Disponível em: http://www.pucsp.
br/ecopolitica/galeria/galeria_ed3.html (acesso em: 13/10/2018). Ver,
também: http://www.onu.org.br/rio20/ e http://cupuladospovos.org.br/
(acesso em: 15/8/2013).
Francis Fukuyama. O fim da História e o último homem. Tradução de Aulyde
11

Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.


12
Sobre esse redimensionamento democrático parlamentar de reivindicação
igualitária da esquerda partidária, ver: Vladimir Safatle. A esquerda que não
teme dizer seu nome. São Paulo, Três Estrelas, 2012.
13
É importante ressaltar como esses questionamentos democráticos
produzem um efeito de valorização quase imediata das ações individuais

190 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

e da sociedade civil organizada como contrapeso eficaz de contenção do


poder de Estado, entre liberais e entre alguns anarquistas. Será precisamente
sob efeito da Revolução Húngara de 1956 que Bookchin abandonará sua
militância sindical e vinculação ao trotskismos, iniciando suas formulações
sobre o municipalismo libertário (uma valorização política da participação
da sociedade civil no espaço público) e a ecologia social (temática com
capacidade de articulação global). No campo do liberalismo, isso se dará,
em especial, no pensamento de Hannah Arendt que, após escrever Origens
do Totalitarismo (Tradução de Roberto Raposo. São Paulo, Companhia
das Letras, 1989), verá na Revolução Húngara de 1956 uma forma de
transformação e atuação políticas que dissociam poder, política e violência
por meio da ampliação da participação democrática da sociedade civil por
meio de conselhos. Esse é o mote de seu seminário, proferido em 1965,
Sobre a Revolução. (Tradução de Denise Bottmann. São Paulo, Companhia
das Letras, 2011), no qual faz a crítica ao modelo revolucionário francês
(republicano, partidário e violento) e o elogio do modelo estadunidense
(democrático, associativo civil e político). Como se verá, para Foucault,
é precisamente essa fobia ao Estado diante da experiência totalitária que
desobstrui o avanço da racionalidade neoliberal. Assim, Ash de maneira
direta, e Bookchin e Arendt, de maneira indireta, estão sob efeito da mesma
racionalidade neoliberal que arrastou toda esquerda alemã no imediato pós
II Guerra Mundial.
14
Timothy Garton Ash. Nós o povo: a revolução de 1939 em Varsóvia,
Budapeste, Berlim e Praga. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo,
Companhia das Letras, 1990, pp. 156-157.
15
Essa relação com a lei como regra do jogo, que situa o cidadão,
simultaneamente, como consumidor e empreendedor de si, é exposta por
Foucault em sua análise do neoliberalismo estadunidense. “O que são essas
regras? Elas devem ser tais que o jogo econômico seja mais ativo possível,
que beneficie, por conseguinte, o maior número de pessoas possíveis — e é
aqui vamos ter a superfície de contato sem penetração real [pelo Estado] no
econômico e no social — uma regra, uma regra de certo modo suplementar
e incondicional no jogo (...) Salvaguarda do jogador (...) Espécie de contrato
ao revés: no contrato social fazem parte da sociedade os que aceitam
o contrato e, virtualmente ou em ato, o assinam até o momento em que
dele se excluem. Na ideia de um jogo econômico há o seguinte: ninguém
originariamente participa do jogo econômico por que quer, por conseguinte
cabe à sociedade e à regra do jogo imposta pelo Estado fazer que ninguém

verve, 34: 176-193, 2018 191


34
2018

seja excluído desse jogo no qual esta pessoa se viu envolvida sem nunca ter
desejado explicitamente participar dele”. (Foucault, 2008, op. cit., pp. 277-
278).
16
Para uma análise atual dessas transformações nos modos de gestão da
vida do planeta que combinam o desenvolvimento como vetor de renovação
do capitalismo e as recomendações internacionais, viabilizadas por Estados,
como forma da vida do cidadão hoje, ver: Edson Passetti. “Transformações
da biopolítica e emergência da ecopolítica” in Revista Ecopolítica. São Paulo,
Nu-Sol / PUCSP, 2013, n. 5, pp. 4-63.
Claude Lefort. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária.
17

Coleção Invenções Democráticas. Tradução de Isabel Loureiro e Maria


Leonor Loureiro. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2011.
18
Para uma análise e discussão dessas correntes teóricas que valorizarão
a participação democrática como meio para produzir maior liberdade e
igualdade por meio da atuação política das diversas forças da sociedade
civil, ver: Silvana Tótora. A questão democrática: perspectivas teóricas e análise
do pensamento político brasileiro na década de 1980. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998.
Pierre Dardot e Chritian Laval. Comum: ensaio sobre a revolução no século
19

XXI. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo, Boitempo, 2017.


Samuel Moyn. The Last Utopia. Human Rights in History. Londres,
20

Harvard Univerty Press, 2012.

192 verve, 34: 176-193, 2018


verve
1968 e 1999: diferenças e metamorfoses entre nova política e antipolítica

Resumo
Este artigo apresenta algumas aproximações e distanciamentos
entre o acontecimento 68 e os movimentos antiglobalização
que emergem em 1999. A hipótese sustenta que 1999 é a
culminância das lutas abertas em 1968, operando capturas
e metamorfoses. O artigo afirma que transformar a vida é
diverso de salvar o planeta.
Palavras-chave: 68, movimentos antiglobalização,
antipolítica.

Abstract
This article presents some of the closeness and detachment
between the 68 event and the antiglobalization movements
that arouse in 1999. The hypothesis sustains that 1999 is the
pinacle of the open clashs of1968, undertaking captures and
metamorphoses. The article asserts that transforming life is
distinct from saving the planet.
Keywords: 68, antiglobalization movements, antipolitics.

1968 and 1999: differences and metamorphoses between


new politics and antipolitics, Acácio Augusto.
Recebido para publicação em 30 de agosto de 2018. Confirmado
em 5 de outubro de 2018.

verve, 34: 176-193, 2018 193


REVOLUTIONARY LETTER #26
‘DOES THE END
JUSTIFY THE MEANS?’ this is
process, there is no end, there are only
means, each one
had better justify itself.
To whom?

CARTA REVOLUCIONÁRIA #26


'O FIM
JUSTIFICA OS MEIOS?' isso é um
processo, não há fim, é melhor que cada um
justifique a si mesmo.
Para quem?
verve

Resenhas
a democracia e suas brechas totalitárias
VITOR OSÓRIO

Simone Weil. Pela Supressão dos Partidos Políticos.


Tradução de Lucas Neves. Editora Âine, Belo horizonte,
2016, pp. 107.

A democracia não foi capaz de criar barreiras aos


fascismos e fascistas. Aos que se interessam pela ampliação
da liberdade, é preciso pensar o que existe no próprio
funcionamento da democracia que propicia a emergência
de tais governos e condutas. Nesse sentido, o livro de
Simone Weil, Pela supressão dos Partidos Políticos, auxilia
e indica que a própria existência dos partidos políticos, a
despeitos de suas posições, não configura uma barreira aos
fascismos, mas, sim, às liberações.
No ano de 1933, ao indagar diretamente Trotsky e
refletir sobre os efeitos da revolução russa, Simone Weil
afirmou que é somente no exercício de um pensamento
liberado da servidão que as relações de opressão podem ser
ultrapassadas. No mesmo ano Weil escreveu Allons-nous
vers la révolution prolétarienne (Vamos para a revolução
proletária?) onde sublinhou que a opressão ao proletariado

Vitor Osório é pesquisador no Nu-Sol e doutorando no Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sociais na PUC-SP. Contato: vitor.free@gmail.com.

verve, 34: 195-199, 2018 195


34
2018

é efeito das técnicas de produção industrial capitalistas


presentes tanto no nazismo, fascismo ou mesmo stalinismo:
para que o proletariado se emancipe, seria preciso acabar
com as técnicas de produção capitalista. Para Weil, a
superação da opressão não está confinada a uma ideia
que se realizará no futuro, não pode ser um fim, mas se
dá no presente. Desta maneira, próxima dos anarquistas –
conviveu com Jean Maitron e Daniel Guérin, na década de
1920 –, assim como alertou Emma Goldman, para Weil
nenhum meio autoritário levará a um fim libertário.
Em 1934, abandonou a magistratura para viver como
operária na fábrica da Renault, onde passa a operar uma
fresa, máquina de movimento contínuo, destinada a moldar
metais e outros materiais sólidos inventada, em 1818, pelo
estadunidense Eli Whitney, visando a fabricação de peças
de rifles. A ferramenta é utilizada até hoje nas indústrias
para transformar peças brutas em peças acabadas com formas
e dimensões desejadas. Segundo seu manual de instruções, os
corpos daqueles que a operam estão sujeitos a cortes por
materiais ou na própria ferramenta; queimaduras por contato
com superfícies e temperaturas extremas; agarramento,
arrastamento, esmagamento, entalamento e desrespeito aos
princípios ergonômicos. Durante sua experiência como
operária, abolindo a distinção entre trabalho manual e
intelectual, Weil manteve o periódico Journal d’usine ( Jornal
da fábrica) onde observou, a partir da própria experiência,
que a exaustão a fez esquecer as verdadeiras razões pelas
quais estava na fábrica. Segundo ela, a vida na fábrica traz
consigo a tentação de não mais pensar. Concluiu que a
opressão não leva à rebelião, mas sim à obediência, à apatia e
à internalização dos valores opressores.

196 verve, 33: 195-199, 2018


verve
A democracia e suas brechas autoritárias

Em 1936, mesmo possuindo intensa miopia, Weil se


juntou a Coluna Durrutti, destacamento anarquista levado
adiante por Buenaventura Durrutti durante a Revolução
Espanhola de onde é obrigada a voltar a Paris por conta de
um grave ferimento na perna. De lá, lutou pela libertação
de militantes libertários presos pelas forças fascistas
em território francês. É de Paris que redige, em 1940, o
texto “Pela supressão dos partidos políticos” (Note Sur La
Suppression Géneral des Partis Politiques), publicado pela
primeira vez em 1950, sete anos após a sua morte.
O livro é redigido logo após a invasão dos países
baixos e da França pelas tropas nazistas onde o governo
do presidente Albert Lebrun, da Aliança Democrática,
é dissolvido para a formação do Regime de Vichy,
caracterizado pela colaboração com o governo da
Alemanha nazista. Na época, alternavam-se no governo
francês a Aliança Democrática, situada ao centro do
espectro político, e o Partido Radical, mais à esquerda.
Pela Supressão dos Partidos Políticos foi publicado no Brasil
em 2016, pela editora Âiné, com tradução do francês de
Lucas Neves. A Âiné – palavra de origem persa, que significa
“espelho” – é uma editora brasileira, com sede em Veneza,
na Itália, e em Belo Horizonte, no Brasil. Foi criada em
2013 pelo brasileiro Pedro Fonseca e pelos italianos Simone
Cristoforetti e Dhuane Fabbris. O livro de Weil faz parte
da Biblioteca Antagonista, uma espécie de selo da Âine,
fruto de uma parceria entre a editora e o site jornalístico “O
Antagonista” de propriedade dos jornalistas Diogo Mainardi,
Mário Sabino e Claudio Dantas. Os autores selecionados,
segundo eles para comporem a Biblioteca são “a expressão
máxima do pensamento libertário que inspirou este site”.
Além de Weil, compõem o grupo de autores Isaiah Berlim,

verve, 34: 195-199, 2018 197


34
2018

Emil Cioran, Johnatam Swift, Paul Valéry, Michael Oakshot,


Daniel Giglione, Gertrude Stein, Alfonso Beradinelli,
Joseph Roth e Robert Musil. Importante ressaltar que a
utilização da palavra libertária neste contexto se aproxima
da concepção neoliberal de libertarianismo, ou mesmo de
de libertária do costume liberal estadunidense enquanto
possibilidade de livre escolha de alocação de recursos para
fins alternativos. A apropriação do termo libertário pelos
liberais e neoliberais é também uma tática de esvaziamento
das práticas anarquistas posto que libertário e anarquista são
sinônimos desde o século XIX como resultante do terror
de Estado contra os anarquistas. O site é um compilado de
comentários políticos, que alimentam a polêmica contra a
corrupção dos partidos políticos e organizações de esquerda
brasileiras e latino americanas, fundamentados por denúncias
e provas produzidas no interior das investigações contra a
corrupção. Não se interessam pelo exercício do pensamento
livre, mas sim na legitimação de verdades interessadas.
Certa vez, o filósofo Michel Foucault disse que o
polemista é aquele que se volta a seu inimigo, a fim de fazer
triunfar a justa causa da qual é ele o principal portador.
Ainda segundo Foucault, a polêmica é o modelo político
partidário por excelência já que tem como efeito produzir
coalizão de interesses ao mesmo tempo em que faz do
outro um inimigo portador de interesses opostos contra
o qual é preciso lutar até que se submeta ou desapareça.
Atento a sua contundência, há exatos dez anos, Simone
Weil foi publicada, no Brasil, pelo editor anarquista Robson
Achiamé. Nesse sentido, próxima de uma crítica libertária
notada por Achiamé, o texto de Weil se distancia da prática
de quem o publica agora, já que não se trata de denunciar esse
ou aquele partido, mas sim explicitar a opressão exercida por

198 verve, 33: 195-199, 2018


verve
A democracia e suas brechas autoritárias

qualquer partido: “um partido político é uma organização


construída de modo a exercer uma pressão coletiva sobre
cada um dos seres humanos que são membros dele” (p.
24). Weil não se presta a discutir as diferentes doutrinas
dos partidos, já que, segundo ela, todas se equivalem em
sua vagueza (p. 26). De acordo com a autora, qualquer
concepção de bem público é inatingível e irreal: “por falta
de pensamento, o partido se vê num estado contínuo de
impotência que atribui sempre à insuficiência do poder
de que dispõe” (p. 28). Dessa maneira, o crescimento do
partido torna-se um critério do bem e esse estado de eterna
impotência revela sua essência totalitária:
“É justamente por ser uma ficção, uma coisa vazia, sem
realidade, que a concepção do bem público própria a este
ou àquele partido impõe a busca da potência total. Toda
realidade implica um limite. O que não existe não é jamais
limitável” (p. 28).
Weil não pretende desvendar o lado obscuro dos
partidos. Livre de idealizações, se dispõe a pensar sobre
o que é evidente e real. Enquanto o sistema partidário
perdurar, o texto é pertinente. Para ela o problema é a
submissão do pensamento. Seja à ideia de revolução,
seja ao partido, seja à exaustão da fábrica. As análises de
Simone Weil nos mostram que a lógica partidária faz do
exercício do pensamento livre um “desejo de conformidade
com um ensinamento previamente estabelecido” (p.41)
condicionado a escolha dessa ou daquela doutrina e suas
possíveis renovações. No presente, para quem se interessa
em destruir fascismos, é preciso libertar o pensamento
e refletir sobre o tanto de totalitarismo que atravessa os
procedimentos democráticos.

verve, 34: 195-199, 2018 199


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maria lacerda de moura hoje


FLÁVIA LUCCHESI

Maria Lacerda de Moura. A Mulher é uma Degenerada. 4ª


edição comentada. São Paulo, Tenda de Livros, 2018, 320p.

Em 1924, Maria Lacerda de Moura publicou pela


primeira vez o livro A Mulher é uma Degenerada pela
José Napoli & Cia, pequena editora localizada na Rua
da Assembleia, em São Paulo. Ela vivia há poucos anos
na capital paulistana e afirmava sua existência anarquista.
Interessada desde a juventude em uma educação
emancipadora, já se empolgara com a educação libertária,
praticada pelos anarquistas desde o final do século XIX, e à
qual fora apresentada por José Oiticica, em 1919, quando
se encontraram na cidade mineira de Barbacena, onde
Maria Lacerda lecionava. Mas foi sua chegada à capital
industrializada, em meio às lutas dos trabalhadores contra
os patrões e a exploração de crianças, mulheres e homens
nas fábricas, que a levou a engajar-se na luta anarquista
pela revolução social.
A Mulher é uma Degenerada foi reeditado no ano
seguinte à sua primeira publicação, quando também
foi traduzido para o espanhol como ¿La mujer es uma
degenerada? e, em 1932, ganhou nova edição pela carioca
Civilização Brasileira. A última e quarta edição, publicada
pela Tenda de Livros, reproduz o fac-símile da edição
anterior e traz comentários de pesquisadoras e artistas

Flávia Lucchesi é pesquisadora no Nu-Sol e mestre em Ciências Sociais pela


PUC-SP. Contato: flalucchesi@gmail.com.

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Maria Lacerda de Moura hoje

anarquistas sobre a obra. A Tenda de Livros é um projeto


voltado para a circulação de publicações de cultura e arte,
levado adiante por artistas pesquisadoras. Não é uma
editora convencional e não transita pelo mercado editorial,
nem em grandes livrarias. Esta edição não teve nenhum
apoio institucional ou financiamento.
Além de Fernanda Grigolin, organizadora da
nova edição, mais seis mulheres apresentam suas
leituras, destacando a atual contundência de muitos
questionamentos e análises traçados por Maria Lacerda
e, em uníssono, afirmam as reverberações do pensamento
da libertária nas lutas anarcofeministas no presente.
Margareth Rago, Samanta Colhado Mendes, Juliana
Santos Alves de Vasconcelos, Carolina O. Ressurreição,
Eloisa Torrão Modestino e Marian Mayumi Bartalini
saúdam a obra e a existência de Maria Lacerda, e citam
também outras libertárias que lutaram ao seu lado ou,
simultaneamente, em outros lugares, assim como outras
pesquisadoras contemporâneas que se dedicam a escavar
essa história menor das mulheres anarquistas ao sul do
Equador.
É notável o cuidado com a edição presente em cada
detalhe do livro. A capa em vermelho e preto é resultante
da pesquisa iconográfica e tipográfica da designer Laura
Daviña, a partir das edições anteriores. Ao final do texto,
há algumas imagens de documentos, como artigos escritos
por Maria Lacerda na imprensa libertária e cartazes de
divulgação de palestras. Junto ao livro, o leitor recebe um
envelope com uma carta, destinada a Maria Lacerda em
maio de 1925, assinada por “Aquela Mulher do canto
esquerdo do quadro”. Esta autoria anônima, mas que não
recorre a pseudônimos como era comum na época, instiga.

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Seguindo algumas indicações presentes na publicação,


chegamos à série “Aquela Mulher”, desdobramento da
pesquisa “Arquivo 17”, também realizada pela doutoranda
em Artes Visuais, Fernanda Grigolin.
“Arquivo 17” é um projeto de artes visuais elaborado
a partir de pesquisas sobre as lutas dos trabalhadores no
início do século XX, no Brasil, que culminaram na Greve
Geral de 1917. O “Arquivo” contempla dezessete trabalhos
que foram expostos no Museu da Imagem e do Som de
Campinas, no ano passado, e estão disponíveis na internet.
Dentre eles, Grigolin fez uma edição de imagens do
documentário Funerais do Comendador Nami Jafet (1924),
na qual localiza uma mulher – a mulher do canto esquerdo
do quadro – em diferentes cenas da filmagem. A figura vira
personagem e narradora, construída a partir da colagem
das imagens e de registros das lutas e experimentações das
mulheres anarquistas. Uma possível história que não foi
escrita, que foi calada ou que se encontra, como tantas
outras, à espera de alguém que a investigue.
Muitas mulheres estiverem na batalha contra a guerra
social, no início do século passado. Impulsionaram as
primeiras greves, revoltadas contra as explorações e
violências às quais elas e seus filhos estavam submetidos.
Rebelaram-se não somente contra a exploração do
trabalho nas fábricas, mas também contra a condição de
mãe e dona do lar, que não lhes deixava tempo para mais
nada, nem mesmo para a leitura. Questões às quais Maria
Lacerda também se dedicou com fôlego em A Mulher é
uma Degenerada. Maria Lacerda foi uma intensa defensora
da educação das mulheres como ação revolucionária e
ampliação das práticas de liberdades.

202 verve, 34: 200-208, 2018


verve
Maria Lacerda de Moura hoje

Dentre todas essas mulheres libertárias no Brasil,


Maria Lacerda é a mais conhecida. De algumas, sabemos
os nomes e uma ou outra informação, conhecemos um
ou outro escrito publicado na imprensa anarquista, mas
da maioria sabemos muito pouco ou nada. A própria
Maria Lacerda, como situa Margareth Rago no primeiro
comentário desta edição, teve suas obras resgatadas apenas
nos anos 1980, por Miriam Moreira Leite, na pesquisa
Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura (1984).
Samanta Mendes, autora da dissertação As mulheres
anarquistas na cidade de São Paulo (1889-1930) (2010),
lembrou a associação de Lacerda às irmãs Maria Angelina
e Maria Antônia Soares e a Carolina Boni e Fidola Cuñado
na formação do Grupo Pela Emancipação Feminina, em
1923, como um desdobramento da União das Costureiras
do Rio de Janeiro, que fora fundada em 1919. A luta das
anarquistas e os registros na imprensa libertária também
foram objeto de estudo de Margareth Rago em Do cabaré
ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista,
desdobramento de sua dissertação de mestrado de 1984, e
que também se encontra em sua quarta edição.
A historiadora Carolina O. Ressurreição procurou não
fazer somente elogios à autora e sua obra, enfatizando que
“o tempo de Maria Lacerda de Moura é, paralelamente, o
de sua atualidade e de seu anacronismo. Se já foi moderno
demais para seu tempo histórico, hoje se mantém
relevante, mas caminhamos o suficiente para ter ressalvas
ou atualizações de seu pensamento” (p. 23). O comentário
da historiadora é um importante alerta, especialmente,
para a atualidade do pensamento anarcofeminista de
Maria Lacerda. Quase cem anos depois, estamos diante
de outros embates. Mas a coragem da anarquista, suas

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reflexões e análises singulares, certamente, podem nos


atiçar a não darmos sossego a nós mesmas, a não nos
acomodarmos na defesa de causas fixas, a avançarmos.
Enquanto isso, o reacionarismo, o conformismo
burguês, a crença na superioridade, por ela combatidos,
parecem conservados ou se repetindo, em retrocesso,
atualmente.
“A mulher é uma degenerada” foi uma frase do
psiquiatra Miguel Bombarda em seu livro Lições sobre
a epilepsia e as pseudo epilepsias (1896). A anarquista
questionou sua tese sobre a degenerescência da mulher,
a qual o médico via agravada pela educação e pela
instrução, casos em que ele dizia só ser possível “salvar o
útero”. Perseguindo uma razão científica, de certa forma
atrelada a um desenvolvimento evolutivo, Maria Lacerda
situou a noção de degeneração como uma decorrência
das mazelas sociais e não de condições biológicas. Ela
questionou a verdade científica que postulava uma
degenerescência feminina inata. Assim como combateu
a maternidade compulsória e a organização familiar da
época. Para ela, a função materna da mulher era igual à
paterna do homem, sem hierarquias, e para a qual ambos
deveriam ser educados e preparados. Essa preparação para
a maternidade e a paternidade poderia reduzir a carga
depositada nas mulheres que, muitas vezes, sem condições
materiais, acabavam por enjeitar seus filhos nas rodas dos
expostos ou sobreviviam com eles na penúria.
Maria Lacerda de Moura escancarou que para o saber
médico, o tipo humano legítimo era o tipo varonil, o que
levava à legitimidade do uso da força masculina para
domesticar, castigar e proteger suas mulheres e crianças;

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Maria Lacerda de Moura hoje

assim como os animais e a natureza. Ela foi adepta do


vegetarianismo e uma das primeiras pessoas a questionar
a vivissecção, mais uma vez, confrontando a suposta
a autoridade do saber médico. “Na atual sociedade as
terras, os mares, as minas, a esposa, os filhos, as massas
trabalhadoras, tudo é propriedade legal” (p. 143).
Sem se restringir às causas das mulheres, nesta obra ela
se dedicou a demonstrar a incoerência das teorias raciais.
Mostrou que tudo nesta ciência médica e antropológica
era falho, cheio de contradições e postulações pretensiosas,
insustentáveis, “ridículas”. Estancou: “Poderíamos ir mais
longe: a que chamam inferioridade?! A diferença?!...”
(p. 50). Algumas comentadoras da obra lembram que
a libertária foi também uma das primeiras pessoas a se
engajar na luta antifascista na América do Sul. Em 1934,
ela publicou o livro Fascismo: filho dileto da Igreja e do
Capital.
Maria Lacerda escreveu ativamente e teve muitas
publicações, no Brasil e no exterior. Sua prisão, após a polícia
de Getúlio Vargas invadir a comunidade anarquista em que
ela vivia em Guararema, interior de São Paulo, em 1937,
foi noticiada no jornal Mujeres Libres, na Espanha. Assim
como muitos libertários, ela aprendeu outros idiomas
lendo publicações da imprensa anarquista estrangeira. Em
A Mulher é uma Degenerada, ela cita em italiano, francês e
espanhol. Além do domínio autodidata de outros idiomas,
ela estabelece conversas com os mais diversos autores,
desde médicos até Rousseau, Kant e Stuart Mill, passando,
é claro, pelos anarquistas. O que nos faz atentar para o fato
de que quando ela falava sobre a importância da educação,
da educação da mulher, não estava falando somente das
Escolas Modernas, das quais era uma enorme entusiasta,

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mas também da dedicação individual aos estudos, à leitura


e à escrita, ao exercício reflexivo. Em relação à educação
formal tradicional, Maria Lacerda se opôs ao que chamou
de uma “fábrica de diplomas” e à Universidade como um
lugar “velho e poeirento”, sem frescor. Mesmo que muito
tenha acontecido neste âmbito nos quase cem anos que
se passaram, suas críticas permaneceram pertinentes. Não
somente as críticas, mas também a resistência proposta
pela via do autodidatismo.
Rompendo com uma identidade de mulher e com a
conduta esperada da mulher burguesa, sem concessões,
a anarquista mostrou que as “melindrosas” e “patrícias”
sustentavam a sujeição feminina. A organização social
burguesa, o capitalismo com a aceitação da fábula de
que as mulheres eram naturalmente mais puras e frágeis,
produziam as condições para a sua própria opressão e seu
aprisionamento social, a fé memso para o acesso ao voto,
em oposição ao feminismo de fachada de Bertha Lutz.
Outra crítica voraz de Lacerda de Moura, que ganha
novos contornos hoje, é o combate à filantropia de
burgueses que “caridosamente” doavam seus restos e
excedentes aos pobres. Ela defendeu a solidariedade e a
restituição como resistência às misérias produzidas pelo
capitalismo. Nenhuma igualdade jurídica e política poderia
acabar com os privilégios de meia dúzia de proprietários e
de suas bibelôs protegidas, dizia ela.
Suas críticas ao casamento não eram restritas às
famílias burguesas. Por sua própria experiência, ela conta
que depois de se separar pôde se dedicar muito mais aos
estudos e à escrita, uma vez que as tarefas relegadas à esposa
roubavam-lhe todo o tempo. Após a separação, não houve

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verve
Maria Lacerda de Moura hoje

um rompimento, mas uma transformação na relação. Ela


seguiu amiga de Carlos Moura, a quem dedicou todas as
edições de A Mulher é uma Degenerada. Maria Lacerda
propagou o amor livre e a obra do anarquista individualista
Han Ryner para o Brasil, em seu livro Han Ryner e o amor
plural (1928).
Para além dessas questões brevemente sinalizadas aqui,
que são esmiuçadas na obra, outra temática que desponta
como muito atual é a discussão entre a arte burguesa e a
arte rebelde, à qual a autora dedica um capítulo inteiro
do livro. Neste capítulo, ela mostra como a arte e a
literatura burguesas se aliam à imprensa, vendem-se e
compram-se, preocupam-se mais em bajular os críticos
do que em se posicionar sinceramente. Retomando os
gregos, ela afirmou que “o artista é criador. Criar é viver, é
transformar-se” (p. 170), e constatou que o rebelde marca
sua rebeldia em todas as suas criações e obras, o que está
relacionado à coragem e aos sentimentos sinceros e livres,
que compõem sua estética.
Maria Lacerda debochou dos burgueses que “se
agarra[m] como ostra à democracia federativa ou
parlamentar, como se isso fosse a última etapa de todas
as civilizações, de todos os séculos por aí além. O Estado
internacional, burguês e capitalista tem os dias contados,
está claro” (p. 256). Talvez diante de todos os avanços,
conservações e retrocessos, essa seja a questão que, durante
esses quase cem anos, permaneceu na afirmação das lutas
anarquistas e no temor dos burgueses e demais aduladores
do Estado e do capital.
A publicação desta edição comentada, além da própria
obra, com suas questões pulsantes e pertinentes e o

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registro de uma existência corajosa e combativa, apresenta


a atualidade de Maria Lacerda e de suas lutas ao ecoar
também pelas obras e lutas de cada uma das autoras que
se compuseram esta edição. Pesquisadoras, educadoras e
artistas que revigoram as memórias e (re)inventam suas
práticas e embates no presente.

208 verve, 34: 200-208, 2018


REVOLUTIONARY LETTER #41
Revolution : a turning, as the earth
turns, among planets, as the sun
turns round some (darker) star, the galaxy
describes a yin-yang spiral in the aether, we turn
from dark to light, turn
faces of pain & fear, the dawn
awash among them

CARTA REVOLUCIONÁRIA #41


Revolução : um giro, como a terra
gira, entre planetas, como o sol
gira ao redor de alguma estrela (mais escura), a galáxia
desenha o yin-yang em espiral no éter, giramos
do escuro para a luz, giram
caras de dor & medo, o amanhecer
flutuando entre elas
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NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999;
flecheira libertária, semanal, desde 2007;
observatório ecopolítica, quinzenal, desde 2015;
Aulas-teatro, no tucarena
Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007;
Eu, Émile Henry, outubro de 2007;
FOUCAULT, maio de 2008;
estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009;
limiares da liberdade, junho de 2009;
FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010;
drogas-nocaute, maio de 2010;
terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011;
eu, émile henry. resistências., maio de 2011;
LOUCURA, outubro de 2011;
saúde!, maio e outubro de 2012;
limiares da liberdade, maio e agosto de 2013;
anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014;
drogas-nocaute 2, maio de 2014;
a céu aberto. controles, direitos, seguranças, penalizações e liberdades,
novembro de 2014;
terr@ 2, maio de 2015;
libertárias, novembro de 2015;
LOUCURA, maio de 2016,
A Revolução Espanhola, novembro de 2016;
a segurança e o ingovernável, maio de 2017;
greve geral em são paulo, 1917, 21 e 22 de novembro de 2017, 6 e 7 de
dezembro (Teatro Ágora-SP);
estamos todos presos. estamos?, 11 e 12 de junho de 2018;
68: invenções e resistências, 16 e 17 de setembro de 2018.
DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC
ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; 2007-2009.
os insurgentes, edição de 9 programas; 2008-2009.
ágora, agora 2, edição de 12 programas; 2008-2009.
ágora, agora 3, edição de 7 programas; 2010.
carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, 2010-2012.
ecopolítica-ecologia, 2012.
ecopolítica-segurança, 2012.
ecopolítica-direitos, 2013.
ecopolítica-céu aberto, 2015.
Canal do Nu-Sol no YouTube https://www.youtube.com/channel/
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Vídeos
Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault, último
(2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola
(2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); Vídeo-Fogo (2009).
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um Incômodo).
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004, 29 títulos.
210
verve

r
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ção. Cada texto, respeitando o anonimato do autor, será apresentado
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que poderão recomendá-lo para publicação, recomendá-lo mediante
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Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim


de texto.

Resenhas não devem conter notas explicativas.

211
34
2018

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Rogério Nascimento. Florentino de Carvalho: pensamento


social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000, p. 69.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios,


vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção
Os pensadores, 1987, p. 76.

III) Para artigos publicados em periódicos:

Nome do autor. “Título” in Nome do periódico. Cidade, Editora,


volume e/ou número, ano, páginas.

José Maria de Carvalho. “Elisée Reclus, vida e obra de um apai-


xonado da natureza e da anarquia” in Utopia. Lisboa, Associação
Cultural A Vida, n. 21, 2006, pp. 33-46.

IV) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

V) Para obras traduzidas:

Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].


Cidade, Editora, ano, número da página.

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma


T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p.42.

212
verve

VI) Para textos publicados na internet:

Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço


da web] (acesso em: data da consulta).

Ex: Claude Lévi-Strauss. Pelo 60º aniversário da Unesco. Dispo-


nível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm
(acesso em: 24/09/2007).

VII) Para resenhas:

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


título, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver). Cidade,


Editora, ano, número de páginas.

Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro,


Ed. Guanabara, 1987, 193 pp.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão “.docx”. Na
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Informações e programação das atividades
do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org

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revista
20
ecopolítica jan - abr 2018

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revista
21
ecopolítica mai - ago 2018

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