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as MSY Ss Tero 4 \Wesp- ARJUN APPADURAT Dimensées Culturais da Globalizacao A modernidade sem peias U teorema 5 Jogar com a modernidade: a descolonizagio do criquete indiano Para uma ex-colénia, a descolonizagiio € unr Uidlogo com © pasado colonial € ndd o mero désmantelar dos habitos © mancire de viver colo niais. Nunca as complexidades © ambiguidades deste didlogo foram mais, evidentes do que nas vicissitudes do ctiqiiate niaqueles pafses que fizerara parte do Império Britinico. No caso da India, os aspectos cultarais da des~ colonizagio afectam profundamente todos os domfnios’da vida publica; desde'a lingia é as artzs até As ideias de répresentacdo’politica e justia econémica. Em todos os grandes debates piblicos havidos na {ndia con a questio’ de saber ga colonial, Alguiis desses ja — de haver, en~ progressivamente desnaturdndo't medida qué 123 | ARJUN APPADURAT dag’nas colbnias. Nas reas politics ¢ econémica, a relagao especial entre {ndia e a Inglaterra j4 quase nfo tem significado, pois a Inglaterra pro- ‘cura vencet o desastre econémico & 0s Indiarios cada vez se voltam mais para os Estados Unidas, 0 Médio Oriente ¢ 0 resto do mundo asidtieo. Mas If uma parte da culture iidiana actwat ile parece para Sempro inglesa: & Jo criquete. Vale pois a pena examninar a din&mica da descolonizagio nesta fesfera em que a necessidade de costar as amarras com 0 pessedo colonial parece mais fraca. (© proceso qiue foi gradualmente dando ao eriquete « qualidade indt- na india colonial é mais acess{vel se distinguirmos entre formas cul- is «durag» e abrandas», As formas culturais duras séo as que chegam ‘com tim conjunto de ligagBes entre valor, significado e prética incorpora- a, diffceis de quebrar ¢ renitentes 8 transformagio. As formas culturais andas, palo contrério, so as que permitem separar com relative fa ‘a execugao incorporada do significado e do valor ¢ um relat ccesso na sua transformagio a todos os nfveis. Nos termos desta cis direi que o crfquete é uma forma cultural dura que mude quem estiver nele sovializado mais depressa do que muda ele proprio. ‘Uma razaio para que o erfquete nfo seja facilmente susceptivel de rein- terpretagilo quando transpSe barreiras sociais é que os valores que repre- senia siio, no fundo, valores puritanos em que a rigida adesto a eddigos extemos faz parte da disciplina da evoligao moral interna (James, 1963, cap. 2), Um pouco como os princfpias do desenho da Bauhaus, daqui ée- corre directamente a fumgo (moral), Em certa medida, todos os desportos com regras tém esta mesma dureza, mas podemos afirmar que ela esti mais.presente nas formas competitivas que alcangem integrar 03 valores, morais da sociedade em que nasceram. ‘Assim, o crfquete, como forma cultural dura, devia resistir 4 indigeni- zagio. B, com efeito, a0.contrétio do que seria de esperac, foi profunds- ‘mente indigenizado e descolonizado e muitas vezes se diz que-a fndia so- fre de uma autGntica vfebron do criquete (Puri, 1982), Hi duas maneiras ide explicar este enigma. A primeira, recentemente sugerica por Ashis Nandy (19898), 6 que ha no desporto estruturas mniticas, logo abaixo da DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO, superficie, que o tomarn profundamente indian, a despeito das suas ori- ‘gens hist6ricas ocidentais. A abordagem altemativa (embora nio sei teiramente incompativel com tnuitas das perspectivas de Nandy sobre © crfquete na fidia) é que 0 erfquete foi indigenizado mediante um conjunto de processos complexos ¢ contraditérios presentes quando emergiu do Im- ppério Briténico uma «nagio» indiana, A tese desenvolvida neste capitulo € que a indigenizagio 6 muitas vezss produto de experiéncias colectivas e espectaculares com a modernidads e no necessariamente da afinidade subcutfnea de novas formas culturais com padres existentes no reperté- Ho cultural. A indigenizagfo de um desporta coma o criquete tem muitas dimen- sbes: tem algo a ver com a maneira como um, desporte é gerido; epoiado itado; tem algo a ver com a origem de classe dos jogadores nos, logo, com & sua capacidade de mimar os valores da elite vitoriana; tem algo a ver com a dialéctica entre espitito de equipa ¢ sontimento na~ ional que € inerente ao desporto c implicitamente corrosiva dos lagos do imp6rio; tem algo a ver com a maneira como se oria e aliments un reser- vatério de talentos fora das elites urbanas, de tal forma que 0 desporto pode tomnar-se internamente sustentével; tem algo a.ver com amin como.cs meios de comunicacio e a linguagem contribitem para libertat 0 ceriquete da sua britanidade; tem algo a ver com a construgio pés-colo- nial de um ptiblico masculino capaz.de conferir ao erfquete o peso da com- petiedo fisica ¢ do nacionalismo viril. Bstes processos interagern entte si ¢ indigenizam o criquete na india de um modo distinte do processe para~ lelo noutras coldnias brittnicas. (Para um.certo sentido da diéspora no conjunto do império, yer Allen, 1985.) Como € dbvio, « histéria do criquete depende do ponto de vista que a conta. As notiveis implicagdes da hist6ria do orfquete nas Carafbas estio imortalizadas na obra de C. L. R. James’ (1963; ver também Diawara, 1990, ¢ Birbalsingh, 1986), Os Australianos travarara um longo combate — empolado pelo eriquete — para se libertarem da maneira beata ¢-pa~ ternalista como sfio alhados pelos Ingleses. A Africa do Sul encontra no criquete’ mais uma forma conflituasa de canciliar as suas genealogies 125

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