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é importante analisar como se dão essas encarnações mentos do sagrado do mundo offline para o mundo

contemporâneas da religião por meio da mídia, e como online. Aqui novamente estão em jogo algumas conti-
elas lidam com a continuidade da tradição, como esta se nuidades e rupturas, e principalmente coevoluções. O
adapta e sobrevive historicamente nesse novo ambiente mais importante é compreender em que sentido ocorre a
comunicacional. mudança nas modalidades de experiência religiosa.
Conforme Brasher (2004), para que o sagrado te-
nha substância e corresponda às necessidades de cada
época, todas as gerações articulam ideias do divino que 4 Religião pela internet: A prática religiosa na
devem ser críveis e significativas ao seu próprio período era das mídias digitais
histórico. Nesse sentido, ao longo da história, os encontros
com o sagrado são contados pelas gerações, especialmen- “As pessoas estão fazendo de forma online gran-
te as originárias, como eventos da vida cotidiana: Moisés de parte do que fazem offline, mas estão fazendo isso
que, em seu pastoreio, encontra uma sarça em fogo; o de forma diferente”, afirmam Dawson e Cowan (2004,
anjo Gabriel que se manifesta a Maomé no deserto ou a p. 1, tradução nossa). Na verdade, “há muito pouco no
Maria enquanto faz seus afazeres domésticos; Jesus que mundo real que não esteja eletronicamente reproduzido
opera seus milagres em situações corriqueiras da vida do online, e há muito pouco online que não tenha funda-
povo etc. Ou seja, hierofanias na vida diária. Nesse con- mento ou referente offline” (Dawson; Cowan, 2004, p.
texto, continua Brasher, o ciberespaço é o componente 6, tradução nossa). Em geral, portanto, as pessoas usam
dominante da paisagem do século XXI. Por isso também a internet em continuidade com suas vidas offline, ou
há sinais do transcendente dentro de seus domínios. Os mesmo ampliando-as.
fiéis buscam a presença de Deus também na internet. E, O que percebemos é a “emergência de novas
como Moisés, as pessoas sobem essa montanha digital formas, contextos e experiências de rituais [religiosos],
porque veem uma chama em seu topo, assim como o pa- muitos dos quais são possíveis apenas porque vivemos
triarca judeu viu a sarça ardente no Monte Horeb. em um tempo em que a mídia desempenha um papel
Portanto, cabe-nos agora compreender alguns tão importante” (Hoover, 2001, p. 4, tradução nossa).
pontos centrais dessa transição e deslocamento de ele- Contudo, questiona o autor, “essa nova forma de ser re-

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ligioso [na internet] irá fazer alguma diferença na forma litúrgico-ritual, em que o fiel pratica a sua religião por
como a religião será concebida e praticada no futuro?”. meio de determinadas práticas religiosas.
A grande questão é perceber o que essas “experiências Mas a “religion online” e a “online religion”, em
e práticas [religiosas] que evoluíram na era da mídia” vez de opostas, são dois tipos de expressão e de ativida-
– ou seja, aqueles fenômenos religiosos que dependem de religiosas que existem em continuidade na internet.
da mídia e que, sem ela, não existiriam – possuem de Por isso é importante perceber a “religião na internet”
realmente novo e tensionador. É a partir desse questio- como um convite ao fiel para participar da dimensão
namento que tentaremos analisar aqui algumas dessas religiosa do mundo por meio da internet (“religião pela
diferenças, desvios e deslocamentos presentes nas ma- internet”). Aqui, contudo, interessamo-nos mais pela se-
nifestações do fenômeno religioso no ambiente online. gunda modalidade, a “religião pela internet” em que os
Em primeiro lugar, há uma diferença de nível fiéis vivenciam praticam e experienciam a sua fé.
entre a religião na internet e a religião pela internet. Young (2004) explicita ainda uma segunda dife-
Os estudos anglófonos geralmente esclarecem essa renciação na experiência religiosa online: uma experiên-
diferenciação mediante os conceitos de “religion onli- cia que pode ser totalmente online ou que pode estar
ne” e “online religion”. Young (2004, p. 93, tradução conectada ao mundo offline. Na primeira situação, ela
nossa), por exemplo, define “religion online” como a dá o exemplo de sequências de oração feitas apenas
“recepção de informações” sobre religião. Já a “online no computador, em que o fiel as acompanha na tela do
religion” é a “participação em uma atividade” religiosa. computador. Ou seja, um ritual que ocorre totalmente
Essa taxonomia está baseada em função do “tipo de online. Na segunda situação, a autora exemplifica com
comunicação que elas apresentam ao usuário [...] e, os pedidos de oração que remetem para o mundo offli-
paralelamente, do tipo de ‘fazer religioso’ que o usuá- ne, ou seja, para grupos e comunidades que irão rezar
rio está buscando”, afirma Costa e Silva (2005, p. 5). pelos pedidos feitos pelos fiéis via online. Ou ainda as
Dessa forma, o “fazer religioso” da religion online (da missas e demais ritos gravados e transmitidos via web.
religião na internet) é um fazer de tipo informacional, Contudo, defende a autora, um ritual online não
em que o fiel se informa sobre a religião. Já a online pode existir sem fazer referência às vidas offline daqueles
religion, ou a religião pela internet, é um fazer de tipo que participam no ritual. Os sites que parecem ser “as

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instâncias mais claras de religiosidade online não existem giosa, o que leva à necessidade, por parte das religiões,
completamente online. Mesmo ali, a experiência online de desenvolver novos rituais e mediações teológicas.
interage com o mundo offline” (Young, 2004, p. 103, Assim, surge um ponto de interrogação quando
tradução nossa). E isso, afirma, pode se dar de duas ocorre uma substituição do ato de dar as mãos entre cor-
formas: por meio de uma experiência lembrada (para o pos reais e em tempo real por palavras digitadas ou ima-
caso daqueles fiéis que já vivenciaram uma experiência gens e sons gerados por computador (cf. Dawson; Co-
semelhante no ambiente offline, como aqueles que assis- wan, 2004). Essas microalterações na vivência da fé não
tem uma missa pela internet trazendo consigo uma baga- são apenas uma isenta mudança de forma, mas sim, em
gem de lembranças das missas em que participaram em sentido mcluhaniano, uma mudança de conteúdo: téc-
igrejas territorializadas) ou mesmo imaginada (em que o nica e humano, aqui, coevoluem de forma midiatizada,
fiel que nunca acendeu uma vela como ritual, por exem- gerando novos predicados sócio-humanos. Por isso, no
plo, constrói essa experiência na internet a partir dos ele- que se refere às manifestações religiosas católicas online,
mentos religiosos que já possui de outras experiências). é necessário responder em que as novas modalidades
Em suma, poderíamos dizer que ocorre hoje uma de religiosidade possibilitadas pela internet aumentam
“diáspora” (cf. Brasher, 2004) da experiência religiosa, ou complementam as experiências offline de interação
já que a internet torna-se o ambiente para o qual gran- entre fiel/Igreja/Deus. Se o indivíduo busca essas novas
de parte (senão todas) as religiões tradicionais vão, aos modalidades, é em resposta a uma busca anterior por
poucos, se deslocando. Citando o trabalho do jesuíta algo diferente, ou porque o que ele descobriu na internet
norte-americano Walter J. Ong (1912-2003), Brasher difere em algo da sua experiência offline que o atrai.
(2004) afirma que esse deslocamento para as mídias Um dos conceitos-chave para a compreensão das
eletrônicas transforma o “sensorium” humano, ou seja, inter-relações entre religião e mídia é a noção de prática,
as interações entre som, olfato, visão, tato e até imagi- ou seja, a “prática factualmente situada de interação reli-
nação, por meio das quais experienciamos a vida e o giosa online” (Højsgaard; Warburg, 2005, p. 5, tradução
sagrado. Essas interações, segundo a autora, são agora nossa). Desviando o foco das estruturas ou das institui-
reconstruídas eletronicamente, criando novas áreas do ções sociais formais, é importante situar-se justamente
desconhecido e campos imprevistos de necessidade reli- “no meio dessas coisas, onde indivíduos e comunidades

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podem ser vistos ativos na construção de sentido” (Hoo- expressão, símbolos, práticas e história) é explícita ou im-
ver, 2001, p. 2, tradução nossa), ou seja, nas “interações plícita? É uma experiência direta ou mediada4?
entre textos, produtores, receptores e os contextos em Uma das formas mais específicas dessas novas
que eles residem” (Hoover, 2001, p. 4, tradução nossa). práticas religiosas é o que chamamos de rituais online
Aproximando a questão da prática religiosa com (cf. Sbardelotto, 2011a; 2011b), ou seja, em síntese,
a teologia, Herring (2005) fala de teologia contextual, atos e práticas de fé em ambientes digitais. Mas, como
ou seja, uma teologia que não se interessa diretamente indica Casey (2008), um ritual nem sempre é religião, e
pelo discurso sobre Deus (ou a religion online, “religião a religião nem sempre é ritual. Para a autora, os rituais
na internet”), mas sim pelo contexto – as circunstâncias religiosos são atos de crença, porque são referências e
específicas – em que as pessoas interagem com Deus (ou preservam a confiança em realidades invisíveis. Para
a online religion, a “religião pela internet”). Em síntese, uma melhor compreensão do conceito, Grimes (2001)
não como as pessoas creem ou devem crer (doxa), mas afirma que o ritual é um meio de comunicação, porém
sim como as pessoas expressam e praticam a sua fé (pra- representado: é um multimeio, isto é, um “evento de
xis). Por isso, em nosso caso, não basta apenas compre- múltiplas mídias circunscrito, fora do ordinário – reco-
ender o conteúdo da fé vivenciada pelo fiel na internet, nhecido por pessoas de dentro e de fora como distinti-
mas também é preciso analisar o contexto sociocomuni- vamente além do mundano – em que palavras e ações
cacional na interação com o sistema católico online. prescritas são repetidas e dilemas cruciais da humani-
Portanto, a análise da interface religião/mídia dade são evocados e levados a uma resolução siste-
precisa se deter sobre práticas reais em contextos reais. mática (Combs-Schilling apud Grimes, 2001, p. 228,
Nesse sentido, segundo Hoover (2001), algumas díades tradução nossa).
merecem nossa reflexão. Por exemplo, práticas religiosas Para Añez (2003, p. 87, tradução nossa), “toda
como as “velas virtuais” são uma experiência privada ou crença, cerimonial e ritual religioso constituem em si
pública de religiosidade que se desenvolve a partir das
mídias? São manifestações populares ou legitimadas de 4 Segundo o autor, a comunicação mediada intervém sobre a ex-
periência direta de oração, louvor, piedade etc. e, assim, a prejudica
religiosidade? Estão dentro da corrente católica principal
ou mesmo a destrói. Tentaremos tensionar e sopesar essa afirmação
ou marginal? Sua manifestação (que envolve formas de ao longo de nossas análises.

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uma técnica de representação e vivência do sagrado”. Por essa razão, não podemos mais manter uma
Com a revolução tecnológica, especialmente a partir do análise estrita de ritual como ações e gestos concretos
computador e da internet, portanto, “a antiga concepção que envolvem elementos concretos como cálice, pão,
do poder ritualístico da ação simbólica [...] não morreu; vinho, incenso etc. Na experiência online, esses elemen-
ela sobreviveu dentro dos domínios agora limitados da tos são substituídos por simulações textuais, imagéticas e
Igreja e se tornou um novo lar na rede de comunicação audiovisuais, como vemos na ambiência construída pe-
global” (O’Leary, 2004, p. 44, tradução nossa). Assim, los sites católicos em torno dos rituais das velas virtuais
afirma o autor, as novas formas inovadoras na comuni- e dos pedidos de oração. Isto é, o ritual não requer a
cação foram acompanhadas por uma bricolagem, com presença física dos elementos para ser efetivo. A reali-
os “fragmentos do velho sistema [sendo] incorporados dade textual, imagética ou audiovisual, radicalizando
no novo mosaico cultural”. o sensorium das mídias digitais, busca assegurar a efi-
Aqui entram em jogo também os modos para se ciência do ritual. “Significante e significado são fundidos
compreender os processos sociocomunicacionais nos na simulação textual [e também imagética e audiovisual]
quais os rituais online estão envolvidos. Afinal, um ritual das experiências sensórias offline” (O’Leary, 2004, p. 51,
traz novas questões de espaço-tempo; de comunicação, tradução nossa).
discurso e narrativa; e de construção de sentido e de va- Para Fernback (2001), é importante analisar a
lores. “As novas mídias [como a internet] não apenas questão dos rituais como um processo, em que os fiéis
acrescentam algo a um ambiente, mas efetuam uma mu- participam de determinadas formas. Ritual, portanto,
dança qualitativa nesse ambiente. [...] O ciberespaço não seria “a performance de sequências mais ou menos in-
oferece simplesmente outro ‘espaço’ no qual se realizam variáveis de atos e ditos formais não codificados pelos
rituais, mas induz a uma mudança qualitativa no que é performancistas”, citando as palavras do antropólogo
considerado um ritual religioso viável” (Casey, 2008, p. norte-americano Roy Rappaport (1926–1997) (apud
2, nota de rodapé, tradução nossa). Surge, assim, uma Fernback, 2001, p. 257, tradução nossa). Essa perfor-
nova ambiência e uma nova ecologia midiática, que se mance seria a corporificação do contrato social, o que
manifestam nessa “vasta catedral da mente” pelos rituais transforma o ritual no “ato social fundamental sobre
online e seus protocolos e liturgias. a qual a sociedade se fundamenta” (Rappaport apud

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Fernback, 2001, p. 257, tradução nossa). Para a compre- 5 Religião pós-internet: As metamorfoses da fé
ensão de um ritual, assim, é preciso responder a algumas midiatizada
questões centrais: “Quem são os atores? O que consti-
tuiu o palco e os bastidores? Onde está a audiência? Que Como vimos, o vínculo tradicional do fiel com o
roteiros ditam a performance?” (Grimes, 2001, p. 230, sagrado e a Igreja é reconstruído histórica, prática e litur-
tradução nossa). gicamente. O importante, por isso, é detectar e delinear
Segundo Grimes (2001), também podemos com- os elementos de continuidade e de ruptura – ou, melhor,
preender os rituais online como um processo de rituali- os elementos caracterizadores de mudança – existentes
zação, ou seja, uma forma tácita de ritual, ou, segundo na internet, dentro do cenário de desenvolvimento da
Erwin Goffman, uma “interação ritual”. Assim, ao anali- midiatização da religião.
sar essas interações rituais, pode-se perceber o “sagrado Por isso, aqui, podemos falar de metamorfoses da
latente”, a experiência religiosa em sua plena manifesta- fé a partir do fenômeno da midiatização digital: isto é, as
ção, já que o ritual “ao encobrir o intangível em uma for- microalterações da vivência, da prática e da experiência
ma concreta por meio de vários elementos, torna presen- da fé, somadas aos diversos outros âmbitos sociais e
te o virtual” (Casey, 2006, p. 80, grifo nosso), o sagrado. históricos que evidenciam esse processo. Metamorfose
Portanto, “o mundo irá testemunhar não apenas é a criação de uma metaorganização que surge a partir
uma liturgia assistida pela mídia, mas também uma litur- de um ponto de saturação da organização original “que,
gia centrada na mídia” (Grimes, 2001, p. 223, tradução embora tendo os mesmos aspectos físico-químicos, pro-
nossa), já que ela também oferece modelos para a lide- duz novas qualidades” (Morin, 2010, online). Como
rança litúrgica, para o espaço litúrgico e para o imaginá- afirma o autor, uma metamorfose começa “por uma
rio litúrgico, o que manifesta que a influência da mídia inovação, uma nova mensagem desviante, marginal, pe-
sobre a liturgia é muito maior do que o contrário. A partir quena, muitas vezes invisível para os contemporâneos”.
dessa discussão, é importante analisar também que pers- Retomaremos essa discussão mais adiante. Po-
pectivas vão se abrindo a partir dessa interface tão com- rém, cabe aqui indicar que esses desvios, em uma aná-
plexa e rica entre religião e internet. Algumas pistas-cha- lise histórica ampla, apontam para o fato de que “o
ve, a partir de nossas leituras, serão agora apresentadas. conteúdo propositivo e a forma apresentacional da re-

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