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O CONTESTADO – ENTRE A QUESTÃO E A

GUERRA

Henri Carlos Bet


Professor –Robson Heinzen
Centro Universitário Leonardo da Vinci - UNIASSELVI
História (HID 0366) – Projeto de Ensino
21/05/17

RESUMO

O Contestado envolve muito mais do que apenas as questões de fronteira entre os estados do
Paraná e Santa Catarina. As batalhas se darão entre atores bem definidos dentro do espaço
contestado. Os coronéis, figuras abastadas espalhadas por todo o território nacional e que
participou em todas as fases do conflito. As empresas, que aqui representam a entrada da
exploração sem limites nas terras sertanejas. Os estados catarinense e paranaense e o governo
federal. E por fim, teremos o caboclo. Figura que vive no campo através de uma vida de
subsistência, passa a ter seu destino tragado por coronéis e pelo ímpeto capitalista. Esses atores da
região contestada entrarão em choque e acabarão marcando o Brasil em um conflito que
perduraram aproximados quatro anos e com muitas vidas ceifadas. Faz-se relatar os principais
pontos desses conflitos, das causas do início até o fim do movimento sertanejo. O movimento
sertanejo contará com figuras enigmáticas que marcará a sua conduta de fé e ação dentro dos
preceitos criados e adquiridos pelo povo caboclo. Os monges se farão presentes em curtos
intervalos de tempo, porém, sendo o bastante para fazer os caboclos serem taxados de fanáticos.
Uma luta não só de cunho religioso, como alguns citam, mas uma briga pelo direito a vida digna,
pelo pedaço de terra e pela sua subsistência.

Palavras-chave: Contestado. Caboclo. História.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tratará das questões do Contestado, que permearam os estados do sul no
início do século XX. Para que se tenha um melhor entendimento, o assunto será dividido em duas
questões importantes que se desenvolveram na região citada. Será abordada a chamada “Questão do
Contestado”, onde para isso será analisado de forma distinta os problemas relacionados com a
delimitação de fronteiras entre os estados de Santa Catarina e do Paraná. E ainda, entendendo
possuir relação, mas não como causadora direta pelas demarcações de fronteiras, a “Guerra do
Contestado”. Nessa última, se buscará delimitar os personagens que participaram ativamente dos
conflitos, e ainda, se trará uma análise dos principais fatos dentro dos confrontos que se sucederam
por todos os locais que envolveram o chamado Episódio do Contestado.
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Tem-se por objetivo compreender como se deu a Questão do Contestado, onde os estados
envolvidos permaneceram em litígio por alguns anos. E ainda, destrinchar a Guerra do Contestado
para que se reconheça e se entenda o papel dos principais atores envolvidos. Buscar os possíveis
motivos para o conflito armado entre sertanejos contra as tropas militares e civis. Buscará também,
entender o desenrolar dos conflitos e os principais acontecimentos da Guerra do Contestado. Como
a população da região participou do evento e como foi interpretado pela mesma.

Para a realização da pesquisa, que será através de método documental, será analisado obras
variadas, de diferentes autores. Buscar-se-á entender a visão da época, através de livros como o do
militar que participou dos conflitos, Demerval Peixoto, datado de 1920. E ainda, de obras
contemporâneas diversas. Livros e teses de doutorados que se tornaram referenciais na trajetória do
pesquisador do contestado estarão sendo utilizadas para poder se compreender as questões
pertinentes do trabalho.

A pesquisa será apresentada por etapas bem definidas, iniciando com a “Questão do
Contestado”, onde se buscará compreender os problemas que envolveram os estados catarinense e
paranaense. Em seguida, já observando as questões da “Guerra do Contestado”, o trabalho elencará
os principais atores que se envolveram no conflito, para que se tenha uma maior apropriação
contextual de toda a complexidade vivida pelo sertanejo na região contestada, incluindo as figuras
dos monges que marcaram a vida do caboclo. E por fim, de forma mais extensa, será tratado os
principais fatos que se desenrolaram durante os conflitos que marcaram a região. Buscando expor
os motivos do início dos conflitos, até o que veio acarretar após o fim dos mesmos.

2 A QUESTÃO DO CONTESTADO – FRONTEIRAS INDEFINIDAS

O Contestado foi um conflito de interesses que se iniciou no final do século XVIII, com a
emancipação do Estado do Paraná, sendo apenas em 1916 resolvido, onde os estados do Paraná e
Santa Catarina afirmavam através de suas fundamentações, possuírem direito a uma área localizada
entre ambos. Durante esse período, os estados envolvidos não promoveram o desenvolvimento da
área, já que a mesma se encontrava com o futuro incerto com relação de quem iria ficar com a
administração da mesma. Esse interesse surgiu após a criação da Província do Paraná em 1853,
desmembrado de São Paulo, que tinha pretensões de ter sob sua administração toda a região do
planalto e oeste catarinense, com exceção de Lages, e assim, o novo estado paranaense surgia
lutando por essa intenção.
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Já Santa Catarina fundamentava seu direito a área inicialmente por entender que as leis
coloniais lhe dariam o domínio ao sul dos rios Iguaçu e Negro. Paraná também apresentava
documentos coloniais que se faziam entender serem os paranaenses os administradores legais de
toda a região, além do uti possidetis1, que apresentavam uma maioria de lavradores e criadores na
região provenientes de São Paulo e Paraná. De certo modo, a área contestada sempre foi algo
duvidoso com relação aos seus limites e administradores legais. Certa área, inclusive, era contestada
pela Argentina, e essa veio a se resolver apenas com o Tratado de Palmas em 1895.

O Paraná, que foi emancipado em 1853, ainda gerava dúvidas com relação a sua área. Um
atlas do Império do Brasil, organizado por Cândido Mendes de Almeida em 1868, mostra uma
imagem da divisão política no mapa do Brasil Imperial, a Província de Santa Catarina com seus
limites do norte ao sul na altura dos rios Iguaçú e Uruguai respectivamente (anexo 1). O mesmo se
dá com relação ao mapa individual da mesma Província catarinense (anexo 2). Já no mapa
individual da Província do Paraná, mostra-se no mapa as suas fronteiras do norte e ao sul, limitadas
nos rios Paranapanema e Uruguai respectivamente (anexo 3), fazendo a Província do Paraná ter
fronteira com a Província do Rio Grande do Sul. Santa Catarina, nesse caso, possuindo seu território
anterior, com a costa leste acrescentado de Lages apenas. No referido Atlas do Brasil Imperial, o
autor menciona as questões indefinidas entre os estados do sul, e tenta manter, o que cada estado
apresenta como sendo de seu domínio administrativo. Com o passar dos anos, novos argumentos
foram apresentados e a contestação seguiu por vias legais.

Em 1901, Santa Catarina entra com ação no Supremo Tribunal Federal, que em 1904 dá
causa ganha para Santa Catarina. Paraná se movimentou com um embargo em 1909 e outro em
1910. Nesse mesmo ano, o Supremo confirma a decisão dando posse à área do litígio para Santa
Catarina. Paraná por sua vez, inicia uma campanha de contestação contra a decisão do Supremo
Tribunal Federal com o objetivo de não cumprimento da ação, mobilizando os meios de
comunicação, autoridades políticas, entre outros meios.

FIGURA 1 – ÁREA CONTESTADA ENTRE PARANÁ E SANTA CATARINA

1
dir.int.púb. Princípio do direito internacional que, em disputas envolvendo soberania territorial, reconhece a legalidade
e a legitimidade do poder estatal que de fato exerce controle político e militar sobre a região em litígio.
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FONTE: BRANDT, 2007, p. 137

Por trás de toda essa movimentação, estavam em questão aspectos econômicos que
beneficiariam quem saísse vitorioso na ação. A região possuía uma forte atividade extrativista,
pecuarista e da comercialização da erva-mate. Os Campos de Palmas, com sua criação de gado e
famílias com influência direta nas questões políticas, faziam paralelo com os ervais, que a partir de
1850 passou a ter um grande valor na exportação muito por causa da procura de Uruguai e
Argentina.

Os maiores beneficiadores da erva se encontravam no estado do Paraná, em Curitiba,


Paranaguá, entre outras cidades. Com as questões fronteiriças se desenrolando a favor de Santa
Catarina, os engenhos situados no Paraná passaram a pagar mais tributos para receberem a matéria
prima, e como solução, muitos beneficiadores passaram seus negócios para cidades catarinenses
afim de não serem tão onerados. Dessa forma, entende-se a importância da região para ambos os
estados, que levaram até as últimas alternativas na tentativa de garantir a sua posse da área
contestada.

Com a abertura da estrada Dona Francisca, em 1873, foi alterada a rota de comercialização
da erva-mate. Os beneficiadores – donos de engenhos de beneficiamento da erva-mate -,
localizados em Curitiba, Morretes, Antonina e Paranaguá, pagavam expressivos tributos por
sua exportação ao estado do Paraná. Assim, procuravam nova rota de comercio, que passou
a ser efetuada pela estrada D. Francisca, implicando na progressiva transferência e
instalação de expressiva parcela dos engenhos e estabelecimentos de produção da erva-mate
para a vila catarinense de Joinville. As atividades realizadas no porto de Paranaguá foram
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seriamente prejudicadas. Diminuiu, por tanto, a receita do Paraná e, em consequência,


aumentou o valor da área disputada pelos dois estados. (COSTA, 2011, p. 228)

Para o fim da disputa entre Santa Catarina e Paraná, o Presidente da República Wenceslau
Brás intermediou o acordo entre os governadores Felipe Schmidt e Carlos Cavalcanti,
respectivamente. Ficaram estabelecidos no acordo assinado em 1916 os novos limites territoriais
dos estados envolvidos. A contestação se dava em uma área de 48 mil km², ficando acertada desse
território, uma área de 20 mil km² para o Paraná e 28 mil km² para a administração de Santa
Catarina.

Imediatamente foram criadas, pelo governo de Santa Catarina, as condições necessárias


para a incorporação e o progresso dessa área. Foram então criados, em agosto de 1917,
através da Lei N. 1.147, os municípios de Mafra, Porto União, Cruzeiro (atual cidade de
Joaçaba) e Chapecó. O objetivo da instalação destas sedes municipais, com suas comarcas
judiciárias, paróquias e unidades escolares, dentre outros, era fomentar a ocupação da área
anteriormente contestada e fundamentar a conquista do Oeste catarinense. (COSTA, 2011,
p. 229)

Já pelo lado paranaense, a ocupação recebeu uma maior atenção nas margens do Rio Negro,
e ainda, na região do Rio do Peixe. Com a abertura da estrada de ferro que cortava ambas as
localidades, houve um progresso mais acentuado, naturalmente, por conta das correntes imigratórias
que aconteciam de um lado para outro. Ainda se faz importante mencionar, o fato da expansão
agrícola do norte do Rio Grande do Sul ir ganhando espaço nas novas terras catarinenses, e
posteriormente, chegando ao Paraná. Para que a área progredisse de uma forma mais acentuada, o
governo catarinense deu concessões de terras para que empresários promovessem a colonização.

3 A GUERRA NO CONTESTADO – OS ENVOLVIDOS

Ao contrário do que se leva a pensar inicialmente, os conflitos não se deram diretamente


entre as tropas catarinenses e paranaenses. Envolvidos em meio às questões de fronteiras entre os
estados, nos aparecerão outros atores de grande importância dentro do confronto. Personagem
principal dentro de todo o acontecimento nos aparece o sertanejo, referenciado por caboclo. Após
anos de exclusão, sua situação fora agravada por vários motivos que os levaram a uma organização
e levante contra as instituições opressoras.

Fazendo oposição ao sertanejo, encontram-se as forças militares estaduais e o Exército da


República, que se faz presente de forma considerada pesada para a época. Por pesada se entende os
materiais belicosos, onde metralhadoras e até avião fora utilizado para aniquilar as bases
organizadas do sertão. Unindo-se a esses, vamos encontrar ainda os vaqueanos recrutados para
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entrarem na contenda através dos coronéis e dos próprios estados envolvidos para se utilizarem da
força na região conflituosa.

Fator de extrema importância e que vai alterar e agravar todo o quadro social local é à
entrada da Brazil Railway nos territórios do contestado. Essa por sua vez, vem representando a
voracidade do capital em meio a um povo já excluído, agravando o quadro social local. O fato é
que muitos elementos interligados acabaram propiciando os conflitos que se seguiram. E dentro
desses elementos, podemos realizar uma leitura que nos levará de encontro aos motivos da eclosão
das batalhas. Reconhecer os atores do conflito e entender o contexto social, cultural e político são
fundamentais para entrarmos na verdadeira questão da Guerra no Contestado.

3.1 OS CORONÉIS

A origem dos coronéis se dá com a Guarda Nacional, que se originou em 1831. Procurava-se
implementar a Guarda Nacional em cada município do Império, e o título de coronel se dava,
geralmente, aos homens que eram tidos como chefes políticos locais, esses por sua vez,
costumavam ser ainda os mais abastados dentro do panorama em que estavam inseridos, sendo
grandes fazendeiros e/ou comerciantes industriais. Os motivos dessa ação se dava em função de se
criar uma força que reprimisse manifestações, já que o exército não tinha uma posição de defesa
absoluta do estado, no sentido de que em algumas situações o exército se colocou ao lado dos
manifestantes. Através de muitos fatores, esses coronéis poderiam se utilizar de artifícios variados
como força política, influência, entre outros benefícios concedidos que os colocavam a um passo a
frente na escala social, exercendo assim, o “comando” do município e/ou região onde estava
inserido.

[...] a razão primeira do coronelismo é o fator geográfico, que vai estar intrinsecamente
ligado à formação das grandes propriedades. A formação complexa e individualista da
nossa expansão territorial se faz através de núcleos isolados. Portugueses nobres,
comerciantes ricos e militares a serviço da Coroa, etc. recebem sesmarias, formando os
primeiros núcleos independentes e iniciando, por razões várias, um processo que prossegue
no Império e República. Enquanto os latifúndios se estendem, praticamente não existe a
ação do Estado; a ausência do poder público facilita a presença do poder privado, que se
arroga no direito de todos os atributos "legais". (CARONE, 1979, p. 85)

A forma como se deu a formação populacional do Brasil pelo vasto território ajudou na
construção desse tipo de relação. Pode-se mencionar que desde os tempos coloniais os donos de
grande espaço de terra são os homens que irão ditar as regras legais e ilegais, já que serão esses a
comporem as câmaras municipais inicialmente, e ainda, se utilizam da força competente a si,
enquanto proclamado coronel, legalmente ou não, para realizar a seu bem entender as disposições
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que por ventura achar relevantes. E nesse caso, se compreende que sua posição o trará inúmeros
benefícios, onde grande parte desses buscará ‘inchar’ as suas propriedades de forma voraz.

E essa ‘chefia’, ou melhor, o mandonismo esteve presente em praticamente toda a extensão


territorial nacional, percebe-se que a forma como eram conhecidos esses homens poderiam receber
formas variadas, mas o comportamento e as relações sociais estavam paralelamente configuradas da
mesma forma. Na maior parte do território, o nome utilizado viria a ser o coronelismo, mas vamos
ter ainda na região do vale do São Francisco o chefismo, e ao extremo sul, no Estado do Rio Grande
do Sul, o nome de caudilhismo. Como citado anteriormente, não se trata de um problema ligado a
uma ou outra região, mas sim, a configuração de ocupação do território nacional.

A formação dispersa torna o problema do mandonismo um processo nacional. Desde a


Colônia os grandes proprietários de terra vêm dominando de fato, e tornando-se
os homens bons (ricos), que compõem as câmaras municipais. Os barões e coronéis
representam simples continuidade do sistema anterior, havendo, no entanto, maior
amplitude de representação legal. É que a partir da Independência e, principalmente, do
federalismo da Primeira República, acentuam-se os predomínios locais, uma vez que são os
representantes das oligarquias latifundiárias que dominam o legislativo e executivo.
(CARONE, 1979, p. 86)

Os coronéis, em suma, são representantes da chamada “justiça com as próprias mãos”, como
muitas vezes são classificados. E com o passar do tempo, muitos já não necessitavam de serem, ou
terem feito parte da Guarda Nacional, apenas uma posição privilegiada financeiramente já o estaria
rotulando de coronel, e encontravam no sistema onde estavam inseridos, as condições necessárias
para o exercício do ‘mando’ local, e muitas vezes, regional, tendo inclusive poder para influenciar
as bases políticas do estado, trazendo para si, os benefícios políticos necessários para as suas
arbitrariedades.

Quase todos os autores concordam em afirmar que a base do poder político dos Coronéis
era a grande propriedade fundiária, geralmente habitada por muitos peões e agregados,
homens de sua confiança que, junto a fazendeiros, posseiros e lavradores vizinhos,
colocavam a sua lealdade a serviço do chefe político local. O coronel dispunha, desta
forma, de grande capacidade de decidir eleições municipais e de influenciar fortemente em
eleições estaduais e nacionais. (MACHADO, 2001, p. 83)

Os coronéis ainda costumavam exercer dentro dos domínios que sua atuação se fazia
presente, atividades que iam de julgar conforme seu critério, desempenhar papel fiscalizatório e
policial, resolviam rixas e toda e qualquer atividade que exigisse impor sua arbitrariedade, estando
ele dentro dos conformes legais ou não. De certa forma, estar dentro da legalidade pouco importava
para os coronéis que se beneficiavam de poder político e de agregados e capangas que o faziam ter a
segurança necessária para manter seus privilégios e decisões.
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A região do contestado apresentou, muito por causa das formas de povoamento, um grande
grupo de homens que se faziam utilizar dos artifícios citados a cima para fins de benefício de
influência, controle, justiça e tantos outros fatores. Ainda demonstravam perfis patriarcais,
decidindo não só os rumos de suas gerências financeiras, como também da vida daqueles que
estavam dentro do seu círculo, como afirma Machado: “[...] na região de Curitibanos, por outro
lado, vislumbramos uma população de tropeiros, sitiantes e posseiros independentes, na passagem
do séc. XIX ao XX, em processo de perda de sua autonomia e crescente submissão frente ao poder
local dos Coronéis e grandes fazendeiros.” (MACHADO, 2001, p. 94). Os coronéis dispunham do
poder necessário para indicar seus representantes para que ocupassem diversificadas atividades
dentro da esfera pública, criando assim uma corrente de pessoas que trabalhavam de modo
favorável para as causas dos coronéis.

[...] a região contestada esteve sempre e se eternisará entregue ao despotismo dos chefetes
locaes, ao desvario de uma sorte innumeravel de crimes mal apurados e ao desmando de
caudilhos temiveis, homistados, fóra da alçada da justiça das cidades; e taes têm sido os
propulsores moraes das causas que levaram á rebeldia, como recurso de defesa, os
sertanejos ignorantes e expoliados pelos prepotentes. (PEIXOTO, 1920, p. 11)

Os coronéis, a fim de resolverem alguns assuntos que necessitassem de força, ou ainda pela
sua própria segurança e das áreas que dominavam, utilizavam-se dos jagunços, chamados na região
de vaqueanos. Esses, juntamente com os coronéis, irão desempenhar um papel determinante no
conflito do Contestado. Tanto com as causas quanto com a posterior repressão. Os coronéis foram,
junto de outros fatores, responsáveis por agravar as questões relativas ao conflito. Voltar-se-á a falar
de sua conexão com o sertanejo em momento apropriado no presente trabalho.

3.2 BRAZIL RAILWAY

Não menos importante dentro de todo o quadro caótico que se criou na região, estava a
Brazil Railway. Companhia do empreendedor Percival Farquhar, nascido no ano de 1864 em
Yorque, EUA, filho de Arthur Farquhar que exerceu forte influência no seu comportamento
empreendedor. Seu pai exercia atividades na indústria metalúrgica e com exportação de máquinas,
tratores e implementos agrícolas, além de estar sempre envolvido no meio político e empresarial.

Autores afirmam que Percival iniciou verdadeiramente a sua carreira empreendedora em


Cuba, onde com outros empresários, fundaram a Cuban Eletric Company em 1898, dando o início a
sua empreitada de entrar através dos negócios por vários países das Américas. Juntamente com
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Willian Van Home, Percival entrou no ramo das ferrovias, extração de madeiras e ainda, no rentável
negócio da colonização. Ambos os setores estarão presentes na região do contestado.

Cabe referir agora que a construção de ferrovias na América Latina subdesenvolvida era o
ponto de partida para a possibilidade de outros grandes projetos como a extração comercial
da madeira e a própria colonização. Na condição de grande articulador nos meios
econômicos entre os frequentadores de Wall Street, os planos para a construção da ferrovia
que teria metade da extensão de Cuba levaram a Farquhar a procurar Willian Van Horne.
Em abril de 1900, foi registrada a Cuba Company, tendo Van Horne como presidente e
Farquhar, seu Assistente. “Em uma semana foram vendidos os 160 lotes de ações
avidamente abocanhadas por 20 pessoas” (VALENTINI, 2009, p. 76)

Depois de Cuba, Farquhar ainda empreendeu na Guatemala, juntamente com outros grandes
nomes como o Minor C. Keith, da United Fruits. Após as empreitadas de Cuba e Guatemala, o
empresário passou a possuir a experiência necessária para lidar com as negociações políticas em
países desestruturados, lidar com grandes personalidades locais e ainda, com toda a estrutura que
seu planejamento exigia, desde técnicos e engenheiros, aos operários, colonos e índios. Estava
formada a base para se lançar a sua Brazil Railway Company.

No Brasil, oficialmente a partir de 1905, Farquhar se lançou em muitas atividades,


investimentos em energia elétrica em alguns estados e portos para escoação de matéria prima.
Ainda esteve envolvido em negócios ligados com gado, borracha, agricultura, colonização,
companhias de navegação e muitas outras atividades que apesar de gerarem lucros de forma
independentes, estavam todas relacionadas.

A Brazil Railway Company foi fundada em 1906, para que fosse viabilizada construção e a
administração de um sistema complexo de estradas de ferro. E juntamente com esse
empreendimento, estariam sendo criadas subsidiárias que complementariam outros setores que
estavam ligados ao avanço dos trilhos pelo terreno brasileiro, tais como o setor de extração de
madeiras e o de colonização. Entre essas, estavam a Brazil Development & Colonization Company,
que centralizou em suas mãos a tarefa de viabilizar os projetos de colonização através da imigração,
e também outros meios.

Através da Brazil Development & Colonization Company, a Brazil Railway Company


planejou a imigração em larga escala, visando especialmente a elementos europeus para se
instalarem nas terras das concessões adquiridas do Governo brasileiro. Já existiam centenas
de milhares de imigrantes dessa procedência, trabalhando nas fazendas de café, nas
indústrias manufatureiras e no comércio de São Paulo. Era conhecido o anseio desses
imigrantes por se tornarem proprietários de suas próprias terras, como já descritos no
Programa Farquhar. (VALENTINI, 2009, p. 117)
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E ainda a Southern Brazil Lumber & Colonization Company que visava a exploração de
madeira, assim como a venda das terras e a administração dos transportes. Esses três
empreendimentos, a Brazil Railway Company, a Brazil Development & Colonization Company e a
Brazil Lumber & Colonization Company serão protagonistas e influenciadoras diretas no agravante
dos conflitos que se erguerão posteriormente no sertão contestado. Nota-se inicialmente, que a
Companhia possuía uma forte política de exploração total por onde passasse, deixando para trás,
não apenas o chamado ‘progresso’, mas também uma devastação de imensas proporções e atingindo
um inimaginável número de pessoas.

Percebe-se que a intenção dos programas de colonização se daria em torno de pessoas


vindas de outras áreas e países, deixando de fora quem há muito tempo já ocupava as terras em
questão, me referindo aqui a muitos que já estavam instalados na região, desde os chamados
caboclos, como de imigrantes europeus que também se faziam presentes na área em que a Lumber
atuou. Ainda se faz importante salientar que dentro do acerto da empresa com o Estado brasileiro, a
Brazil Railway tinha a garantia de juros caso houvesse prejuízos, além de receber até 15 km de terra
para cada lado da linha férrea para explorar da forma que bem entendesse. A Brazil Railway
Company mantinha uma rede de lideranças políticas locais e estaduais que ia proporcionando
facilidades nas suas investidas.

Fato importante para que se entenda a política de posse da citada empresa, se dá entre os
anos de 1908 e 1910 nas proximidades do Rio do Peixe, repara-se que as data irão ser muito
próximas do momento em que eclodem os conflitos. Por esses anos mencionados, a Brazil Railway
iniciou um processo de grilagem onde a força predominou sobre todos os aspectos. A empresa tinha
por objetivo, preparar áreas para a sua comercialização, se concentrando na venda para novos
imigrantes ou, ainda, para os filhos de colonos estabelecidos. Assim, para que a empresa tomasse
posse das terras, fora utilizado a força para afastar os que ali se alocavam.

A Brazil Railway possuía um contingente armado, cuja coordenação estava nas mãos do
Coronel Palhares, famoso por suas violências praticadas na região, um oficial antigo da polícia do
Paraná. Além de possuir parte da classe política ao seu lado, e ainda a fama por se utilizar da força
contra os posseiros e retirantes que viviam no sertão do planalto catarinense, a Companhia
despertava receio por parte das administrações estaduais. Mesmo alegando problemas legais
relacionados com as terras devolutas, o estado catarinense, por exemplo, não prosseguia com suas
contestações relativas à ilegalidade dos procedimentos da Companhia.
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Havia uma pendência judicial entre a Brazil Railway e o Estado de Santa Catarina pelas
terras à margem do Rio do Peixe. Enquanto a Cia. alegava que estava simplesmente
cumprindo o contrato de concessão previsto pelo Decreto Imperial e renovado pelo
Governo Provisório da República, o Estado argumenta que, pela Constituição de 1981, as
terras devolutas passaram para o domínio dos Estados e que, segundo os decretos originais,
a Companhia só tomaria posse dos respectivos terrenos após a definição do traçado da
estrada e das medições oficiais de demarcação. A definição do traçado ocorreu após a
Constituição de 1891, e a demarcação das terras foi feita diretamente pela Brazil Railway
sem o acompanhamento do Estado de Santa Catarina. Mas os governantes catarinenses não
quiseram impor seu ponto de vista, nem pleitearam uma guerra judicial contra a companhia.
Um parecer emitido pela Consultoria Geral da República foi favorável ao ponto de vista da
Brazil Railway e o governador não acionou qualquer outro meio político ou judiciário de
contestação. (MACHADO, 2001, p. 141)

Esse fato demonstra algumas questões importantes. O primeiro é que a Companhia Brazil
Railway vinha fazendo as suas demarcações de forma não oficial, porém, definitiva. A Companhia,
assim como na demarcação, se utilizava dos meios que lhe interessavam para alcançar seus
objetivos, e aqui, podemos então relacionar com as questões envolvendo posse de terras por parte
do sertanejo, onde esse era escorraçado sem direito algum e sem ter a quem recorrer. Nesse caso, o
estado desempenhou um papel de indiferença com relação ao seu povo.

Já com relação às terras, apesar do Estado reconhecer que as demarcações deveriam ter uma
fiscalização por parte dos poderes constituídos, esse não foi realizado pelo simples silenciar do
consentimento, permitindo que a Companhia tomasse a frente de forma autônoma em praticamente
todas as fases de posse, até o destino final das mesmas, compreendendo a sondagem das terras, o
estudo de viabilização para a implantação da estrada de ferro, a retirada dos moradores, que em
muitas situações, se utilizavam das terras para a sua subsistência, a extração de matéria natural
como madeiras para a comercialização, e por fim, a comercialização das terras, onde a Companhia
as vendia para colonos e imigrantes, garantindo assim, o lucro em todas as fases do processo.

3.3 OS SERTANEJOS

É muito difícil encontrar na literatura sobre o contestado, quando se fazendo referência ao


povo que se rebelou contra a ordem política e militar, algo diferente de Caboclo. Segundo o
dicionário Michaelis (MICHAELIS, 2017), o caboclo vem a ser um mestiço, filho de branco com
indígena, ou ainda, de negro com indígena, ainda no mesmo dicionário, o caboclo vem com as
referências de ser alguém simples, retraído e desconfiado, com pouca instrução e com modos
rústicos. Conhecendo o contexto social no final do século XIX e início do século XX, sabe-se que o
nome caboclo vai agregar um pesado fardo ao mesclar em sua formação genética, os dois maiores
representantes da exclusão social do Brasil. O negro e o índio.
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O negro, que apenas, há aproximados 20 anos se viu livre das amarras da escravidão, e o
índio, ainda sendo massacrado por toda a parte que se fazia presente. Nota-se que o grupo que
enfrentou as forças militares era aqueles que beiravam a rejeição social. Existe no Brasil um
capítulo que mudou o cenário do território nacional. Assim como o negro, o índio também recebeu
o tipo de tratamento onde ele era subjugado e/ou aniquilado pelos homens que chegavam para
povoar determinadas regiões. Em Santa Catarina, esses casos foram frequentes por muito tempo. A
região contestada não foi diferente.

Assim que chegavam para uma nova empreitada em novas terras, muitas vezes os homens
‘brancos’ realizavam perseguições a fim de se livrarem da vizinhança desagradável para si. Os
índios, ou bugres, eram tidos como verdadeiros ‘estorvos’ pelos colonizadores de diferentes tipos,
procedências e etnias. É importante frisar ainda, que no território contestado existia uma grande
diversidade de origens do povo que ali habitava. O sertanejo do contestado é a fusão de uma massa
de anônimos que foram entrando em contato gradualmente pelos espaços do planalto e em épocas
diferentes.

Normalmente a população ‘branca’ procurava liquidar com os bugres das regiões recém
ocupadas como uma forma preventiva de ‘limpeza de terreno’. Além da óbvia disputa por
espaço, a população colonizadora não reconhecia os indígenas como gente. Cipriano, um
antigo morador do vale do rio Timbó, [...] afirma que quando seu pai chegou na região “não
tinha nada, não morava ninguém, só tinha mato, onça e bugre”. Esta prática genocida dos
pioneiros foi mantida pela população posterior, que continuou resolvendo muitos de seus
problemas de terras através da violência física. (MACHADO, 2001, p. 39)

Os primeiros povos a se estabelecerem na região foi o indígena, através do Xokleng e


Kaigang, do grupo Jê. Conforme afirma Schmitz (SCHMITZ, 2013), o planalto catarinense teve
uma ocupação tardia por parte dos indígenas se comparados com outras ocupações meridionais,
acredita-se que foi apenas no primeiro milênio de nossa época que o grupo aqui referido começou a
se estabelecer pelo planalto dos três estados do sul. Através de estudos arqueológicos, encontram-se
normalmente no interior de suas ocupações, restos de cascas de pinhão carbonizado, além do milho,
acreditando-se então, que esses ocupantes tinham na coleta do pinhão, no uso do milho e na caça a
sua principal forma de subsistência.

Seguidamente, encontramos espanhóis e, majoritariamente, portugueses a partir do século


XVI explorando a região, esses se mesclaram através de filhos deixados na região com a mulher
indígena. Vale lembrar que essa miscigenação aconteceu de forma lenta, assim como o próprio
povoamento e ocupação desses espaços. A partir desse momento, inicia uma nova configuração dos
habitantes do planalto, onde começam a surgir os luso-brasileiros, que vieram a ser denominados de
13

caboclos. Jaci Poli nos afirma que, após um levantamento documental de casamentos do início do
século realizados em várias cidades do oeste catarinense que hoje são reconhecidas com populações
predominantemente italianas e alemãs, vai confirmar que o “luso-brasileiro foi o verdadeiro
pioneiro na penetração e desbravamento do sertão catarinense.” (POLI, 2006, p. 151).

Posteriormente a essa fase inicia-se em meados do século XVIII na região, a abertura de


caminhos para que tropeiros pudessem abastecer os estados do sudeste para fins alimentícios dos
trabalhadores das minas e cafezais daquela região. Criando assim, uma ligação que firmaria aos
poucos as primeiras fazendas e vilas do planalto catarinense, onde essas eram em geral, os locais de
descanso que foram sendo criadas por toda a região. “Assim surgiram Lages, Curitibanos, Campos
Novos e São Joaquim como as principais vilas, onde se localizaram as maiores fazendas de criação
do Planalto catarinense.”(POLI, 2006, p. 152).

Os negros também se fizeram presentes na região. Geralmente foram sendo introduzidos no


território contestado através de levas de fazendeiros que os traziam para trabalharem nas ocupações
de terras na condição de escravos e, após esse primeiro momento, chegaram como homens livres de
várias partes do país para servirem de mão de obra na construção da ferrovia que cortaria os estados
do sul. Após o término da ferrovia, ou ainda sendo dispensados anteriormente, muitos não
retornaram aos seus estados de origem, permanecendo e compondo a sociedade local. Juntaram-se
ainda a esse momento, os libertos que acabaram se instalando na região após saírem de suas
missões belicosas. Os Federalistas e os Farroupilhas. Muitos federalistas gaúchos e paranaenses
acabaram se refugiando no oeste catarinense, assim como muitos farroupilhas que se fizeram
também presentes na região após se desligarem de seus conflitos.

O movimento federalista marcou profundamente a memória da região. Alguns afirmam que


serviu apenas para ensinar aos caboclos a degola e o arrebanhamento de gado alheio,
praticas que foram posteriormente adotadas pelos “fanáticos” do Contestado. Mais que isto,
o movimento federalista impôs forte resistência ao estabelecimento da nova ordem
republicana e seu relativo, embora passageiro, sucesso militar (com o domínio das
principais cidades de Santa Catarina e de Curitiba) foi sempre lembrado pela população
sertaneja. (MACHADO, 2001, p. 82)

Não podendo deixar de lado, os dissidentes europeus que também foram se estabelecendo na
região e mesclando ainda mais a população local que ocupava esses territórios de forma secular.
Lembrando ainda que os primeiros povoados começaram efetivamente a surgir após a abertura da
Estrada Real de Viamão em 1737 por conta do tropeirismo que ligou o sul ao sudeste. Como se
tinha uma predominância indígena, a aparência desses se sobressaía, como afirma Machado dizendo
que “a gente cabocla, com forte presença negra e indígena, mesclada a alguns grupos familiares de
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origem paulista e rio-grandense, compunha a principal base da população trabalhadora da região”


(MACHADO, 2004, p. 336). Esse caboclo, enfim, retrata o Brasil dos encontros e desencontros. O
caboclo surge como resultado da miscigenação que a região proporcionou, criando algumas
características marcantes e uma forma de viver muito particular. O seu labor é voltado para a
subsistência, e a forma de explorar a mata não a destrói.

[...] quando apenas o caboclo ocupava o chão Contestado e o dividia entre “terras de
plantar” e “terras de criar”. A população cabocla, denominada também de brasileiros,
dedicava-se ao cultivo de pequenas lavouras de subsistência, à criação de animais soltos e,
principalmente, à extração da erva-mate. Com a atuação das companhias colonizadoras, a
terra passou a ser comercializada e os brasileiros “posseiros” passaram a condição de
intrusos. (VALENTINI, 2009, p. 37)

Com o novo ciclo de povos por conta do processo colonizador, fica claro perceber que
existia na região o sentimento de excluir do círculo social, aqueles que não se enquadravam nos
costumes dos novos moradores. Os colonizadores, aqui os vendo enquanto novos donos não apenas
de sua faixa de terra, mas também, de quem poderia ou não viver na sua região. Assim, muito da
população local foram agrupados por vários motivos, entre eles está o fator exclusão, que serviu de
motivo para aproximação entre diferentes povos, que ao final, compunha o homem do sertão, o
sertanejo.

Existe um número expressivo de obras que nos trazem uma noção de quanto o sertanejo era
julgado pela sua condição, julga-se pela sua cor, pelo seu status social, o culpam por não querer sair
de sua condição de miserável. O sertanejo do planalto catarinense, de certa forma, foi taxado de
ignorante, ou ainda, de se manterem estáticos na sua condição miserável por ser descendente de
determinados povos.

[...]o autor tece críticas à maneira como foi e continuava sendo descrito o modo de vida dos
caboclos. O viajante europeu Saint-Hilaire, por exemplo, deixou uma impressão a respeito
dos casebres e plantio dos caboclos no planalto paranaense enfatizando aspectos como
‘uma triste pobreza atribuída à indolência’.Criticando essa visão, Vinhas de Queiroz
lembra que esses aspectos é que iriam se tornar sempre mais ressaltados, praticamente até o
momento em que ele próprio escrevia, caracterizando uma verdade absoluta, parte da
natureza própria dos caboclos brasileiros. Aspectos que suplantariam impressões diversas
deixadas por outros viajantes como, por exemplo, Avé-Lallemant que, em meados do
século XIX, ao atravessar muitas roças considerou que os caboclos eram homens que não
queriam submeter-se ao serviço mais ou menos escravo nas grandes propriedades e por
isto enfrentavam os riscos e as privações de uma existência sem recursos, dentro da
floresta. (LAZARIN, 2005, p. 78)

O caboclo vivendo no sertão do planalto catarinense se tornou homem daquele lugar, não
tinha em seu íntimo progredir na forma como o homem que chega com o trem entendia ser o
objetivo de uma vida. O caboclo possuía sua maneira de viver, com seus costumes e crenças, se fez
15

presente em um vasto território sulista e conviveu com muitos que por ali passaram. O trabalho de
subsistência com suas plantações e criações, o cultivo e a coleta daquilo que a floresta lhe
proporcionava o fez arraigar e se reconhecer como cidadão daquelas terras.

O caboclo é ainda muito referenciado como um adepto de fanatismos, onde ele vai possuir
sua forma de cultuar seu deus e seus santos com uma chamada religião simplificada. Mesclavam os
rezadores, benzedeiros, curandeiros e uma ordem a quem deviam respeito dentro de sua crença.
Fica claro que, após reconhecer o caboclo como o resultado de uma grande miscigenação de
diferentes povos e culturas, se tenha uma maior abertura para as diferentes formas de crenças.
Diferente do homem de grandes comunidades bem delimitadas ou do meio urbano, onde se vai
possuir religião específica, uma forma de vida e sociedade bem definidas, inclusive, com as suas
crenças sendo ideologicamente passadas de geração a geração sem que haja alterações ou
influências contrárias.

O que vai acontecer com o sertanejo é que ele vai recebendo com o passar do tempo,
grandes influências de diferentes crenças, vai criando um sincretismo, tendo no catolicismo a sua
base, mas com fortes influências dos povos de sua formação étnica. Importante frisar que esse fato
não os caracteriza como sendo aptos para algum tipo de fanatismo pelo simples fato da sua
mestiçagem, mas sim, que apenas se firmou características culturais e sociais diferentes das aceitas
na cidade.

A história marcou o caboclo do contestado como sendo um sujeito fanático, inferiorizando-o


em uma religião arcaica. O fanatismo do sertanejo do contestado é, e foi exaustivamente debatida,
muitos levando a crer que esse fato possui uma relação que vai determinar as ocorrências do
conflito. Fator que não pode ser deixado de lado pela sua importância, e mais que isso, pela forma
apelativa em que foi abordada historicamente.

4 FANATISMO

Como mencionado anteriormente, o ‘fanatismo do caboclo’ se trata de uma questão muito


importante dentro do quadro social na região. Destacam-se alguns nomes e algumas práticas que
marcaram a vida do sertanejo e os foram levando gradativamente a um grau de crença que o marcou
como fanático. Inicialmente vamos ter como figura central, aquele que ficou conhecido como o
monge João Maria de Agostinho. Faz-se presente na vida do sertanejo praticando curandeirismo,
profecias e aconselhamentos.
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Os relatos irão mostrar que o monge surge por volta de 1840 no planalto catarinense. Entre
aparições e sumiços, o monge se dedicava a uma vida de peregrinação, onde se fazia surgir de São
Paulo a Rio Grande do sul. Os registros dão conta de sua vida até 1870, onde após isso não se pode
verificar mais suas ações. A sua prática estava muito relacionada com os cultos da igreja católica,
acrescido de curandeirismo. Tinha uma estreita relação com a Igreja Católica, onde inclusive,
celebrou missas no Rio Grande do Sul.

Para as autoridades civis, a sua presença muitas vezes criava insatisfação, já que a prática de
curandeirismo costumava aglomerar muitas pessoas em sua volta. Para o governo rio grandense,
essas práticas poderiam prejudicar algumas ações, já que o estado passava por agitações civis e
militares. Chegou a ser preso e enviado a Santa Catarina com a recomendação de que fosse bem
tratado, mas que sua presença ao sul não se fazia oportuna.

Um segundo monge surge peregrinando pelo planalto a partir de 1890 a 1908. Esse
possuindo o nome de João Maria de Jesus. Possível proveniência de Buenos Aires, o monge possuía
semelhanças físicas com o primeiro, e algumas ações também se assemelhavam, como a sinalização
das águas santas, onde doentes procuravam essas fontes para fins de curas. Mas algumas
particularidades se fazem presentes nesse segundo monge, como o fato de possuir uma relação
hostil com Clero Católico, tinha um discurso apocalíptico inflamado e realizava muitos batismos na
região. Era tido como um homem que realizava milagres e profetizava o futuro. João Maria de Jesus
é o responsável, segundo os padres da época, pelo surto de fanatismo do contestado. Ressalta-se
aqui, que o monge deixa a região muito antes de se iniciarem os conflitos.

José Maria, que consta ser Miguel Lucena de Boaventura, surge em 1912, aproximado do
início dos conflitos, figura controversa, onde não parece ter angariado a totalidade da confiança dos
sertanejos. Tinha em suas ações as práticas de caridade e cura. É dentro das práticas de cura que
José Maria vai se sobressair. Possuidor de conhecimento a cerca do emprego de ervas, plantas e
raízes nativas para combater doenças, José Maria passou a atender muitas pessoas que buscavam
por algum tipo de cura. Ressalta-se aqui que essas práticas de cura nada tinham de curandeirismo
mágico, mas sim, no poder medicinal que se encontravam nas plantas e raízes da região. Com
relação ao fanatismo que foi associado posteriormente a esse monge, se faz interessante analisar o
depoimento que Antônio Fabrício das Neves deu e foi apresentado no trabalho de Paulo Pinheiro
Machado.
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Para o pessoal mais próximo ao monge, as práticas de cura não tinham origem mágica.
Antônio Fabrício das neves, de Irani, cujo pai conheceu de perto José Maria, afirma que o
monge não era fanático, nem estimulava o fanatismo: “Isso aí [o fanatismo] é o que eles [os
inimigos] queriam dizer para desacreditar o homem [José Maria]. Queriam dizer que ele
estava mentindo. Que ele se dizia ser um santo, eu nunca ouvi dizer que alguma vez ele
falou isso. Ele dava os pareceres dele, mas dentro de um ritmo de futuro, de respeito, de
gente que queria crescer junto. Por isso é que essa gente de Curitiba veio aqui dizendo que
era o tal fanatismo, que ele nunca pregou, nunca defendeu. Eram os de fora que chamavam
de fanáticos e, principalmente, os de fora que se interessavam por esse pedaço de terra.”
...”O certo mesmo é que era um homem com muita instrução, muito entendido” Sobre as
curas: “ Ele ensinava, mas ele nunca se propôs a ser um curador como diziam.”
(MACHADO, 2001, p. 169)

A constante presença de monges na região faz com que se crie uma visão caricata do
sertanejo, onde esse vai se apegar em fatores de crenças e/ou magias. Mas essa característica não o
faz mais, ou menos necessitado de terras para a sua subsistência, não o deixa imune da fome, das
necessidades diárias, e muito menos, da opressão que seria lançada em cima de sua vida através do
Estado e das grandes companhias de Percival Farquhar.

5 A GUERRA NO CONTESTADO

Os conflitos, como afirmado anteriormente, não se deram entre as forças militares de Santa
Catarina e Paraná, mas sim, entre a população de trabalhadores rurais de subsistência contra as
forças estaduais e federais, juntamente com os coronéis e seus vaqueanos. Por tanto, em meio às
questões de divisão de terras entre catarinenses e paranaenses, estava um movimento social que
buscava libertação da opressão de diversas formas. O povo do campo, que já vinha sofrendo ao
longo dos anos pelo seu abandono, onde o estado sempre o deixou a própria sorte, teve sua situação
agravada com os fatores consequentes da estrada de ferro e sua rede de influência, levando a
variadas formas de se sentirem acuados dentro do seu próprio território. Lazarin, de certa forma,
resume em poucas palavras, mas de forma pontual, nos dando uma visão mais abrangente dessa
guerra sertaneja quando diz que “a guerra é expressãode múltiplos fatores dentre os quais se destaca
a penetração das relações capitalistas no campo.” (LAZARIN, 2005, p. 10). Para que se ilustre a
frase de Lazarin quando ele se refere às relações capitalistas no campo, cita-se a frase do
pesquisador Nilson Cesar Fraga onde ele diz que “a lumber não agride apenas o caboclo tirando
dele o direito a terra, a Lumber tira a vida, tira a dignidade e tira o direito de ser brasileiro.”
(OLHAR, 2012).

O início dos conflitos se deu por motivos políticos e como forma de fazer o ‘ajuntamento’
de sertanejos se dissipar de Taquaruçu. Nessa localidade, aconteceu a Festa do Bom Jesus, onde
José Maria havia sido convidado a participar. O fato que vem se mostrar preocupante para algumas
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lideranças políticas se dá na questão de que após as festividades, José Maria, permanecendo no


local, acabou atraindo doentes e curiosos a sua volta, além de pessoas das comunidades vizinhas
que chegavam diariamente. Para agravar a desconfiança das lideranças políticas, na comunidade
ainda estavam muitos sertanejos que haviam sido expulsos da Lumber e da Brazil Railway, pessoas
em geral que não tinha mais destino, sem rumo, que pelas festividades acabaram ficando pelo local.

O Superintendente Municipal, Coronel Albuquerque, alarmado sobre o fato da aglomeração


de sertanejos, solicitou a presença de José Maria para que pudessem conversar e entender sobre o
que se passava em Taquaruçu. José Maria, por sua vez negou-se ir de encontro ao Cel. Albuquerque
afirmando que a distância entre ambos era a mesma, que então viesse o Cel. Albuquerque ao seu
encontro. Após essa resposta tida como uma insubordinação e, de certa forma, obcecado por se
colocar em um fato humilhante por parte do monge, iniciaram-se algumas etapas que irão culminar
no confronto de Irani. O Coronel envia para o governador do Estado uma mensagem carregada de
insinuações a respeito da aglomeração, deixando a entender de que se tratava de um movimento
monarquista.

Apesar de aparente exagero do Coronel, uma maior atenção foi dada para a informação,
aliando-se ao fato de a imprensa passar a descrever sobre os “bárbaros” caboclos e seus costumes,
fazendo necessidade de uma resposta por parte do governo. Ressalta-se ainda de que para uma
grande parte das lideranças políticas, a aglomeração de pessoas em Taquaruçu não tinha qualquer
ligação com movimentos ligados a restituição da monarquia.

De qualquer maneira, para o governo do Estado reprimir o ajuntamento de Taquaruçu já era


o suficiente o fato de que havia uma crescente concentração de sertanejos pobres, que não
se subordinavam às autoridades locais. Na imprensa do litoral, os representantes do
governo argumentariam que, por conta da ignorância e da carência dos sertanejos, não
restava outra opção ao governo se não liquidar o ajuntamento em torno de José Maria. A
possibilidade de não haver o ataque a Taquaruçu estava presente neste momento. Bastava o
governo não dar ouvidos ao Cel. Albuquerque e deixar os sertanejos em paz. Esta
possibilidade foi levantada por muitos contemporâneos, mas não foi a opção de Vidal
Ramos, que tinha no Cel. Albuquerque um seguidor fiel que representava o Partido
Republicano em Curitibanos, dali Albuquerque sustentava o projeto de consolidação do
Município de Canoínhas, com a liderança do Major Vieira nesta última Vila. Além disso,
Albuquerque era Deputado no Congresso Legislativo catarinense, ocupando a presidência
desta casa em 1914. (MACHADO, 2001, p. 176)

Entende-se aqui, que o envio de tropas para dissolver a aglomeração de sertanejos estava
mais ligada aos caprichos do Cel. Albuquerque e ao seu posicionamento político, do que ao fato de
apresentar qualquer perigo para o Estado. Santa Catarina envia 30 soldados e solicita ao governo
federal o auxílio para reprimir a concentração de sertanejos, enviando assim, unidades militares
para se juntar as tropas catarinenses. José Maria, para evitar qualquer derramamento de sangue,
19

decide se afastar do local, rumando com aproximadamente 40 pessoas para Irani, comunidade que
se encontrava sob jurisdição do Paraná.

Acredita-se que por causa da questão do contestado, Paraná tenha decidido realizar um duro
ataque aos sertanejos em Irani para evitar tropas federais estivessem na região, beneficiando Santa
Catarina que pretendia tomar posse através da sentença de limites que havia vencido na justiça. O
Coronel João Gualberto de Sá foi destacado para Irani para resolver o problema paranaense. Esse
Coronel rumou para Santa Catarina determinado a promover um ataque aos sertanejos e ainda, levar
alguns amarrados para um desfile pelas ruas curitibanas para demonstrar a força do Estado do
Paraná.

Fato de extrema importância aqui com a tentativa de intervenção do Cel. Domingos Soares,
onde intermediou junto a José Maria para que esse desfizesse o grupo e partisse de Irani. O monge
concordando com a sugestão, solicitou um prazo de três dias para poder assentar as pessoas por
várias localidades, desfazendo assim, o grupo que o seguia. João Gualberto de Sá não concordou e
no dia seguinte realizou o primeiro ataque aos sertanejos do contestado. Ao lado de José Maria,
estavam aproximadamente 200 sertanejos, entre os que o seguiam, moradores locais e simpatizantes
dos que ali estavam, lutaram e venceram as tropas paranaenses. João Gualberto e o monge José
Maria morreram no combate.

De outubro de 1912 a 1913 não houve confronto entre sertanejos e tropas estaduais e
federais. Nesse período existiu alguma conturbação política entre as lideranças locais. Rivalizando
com Coronel Albuquerque, alguns opositores veem nos redutos sertanejos uma forma de se
combater o mandonismo das autoridades.

Iniciou-se por parte dos sertanejos um novo agrupamento em Taquaruçu, alguns chegaram
espontaneamente e outros por convite daqueles que lideravam o grupo. Nos redutos, os sertanejos
iniciaram uma vida de independência de qualquer forma de poder e espécie econômica que estava
em vigência no Estado. Pretendiam possuir uma economia de subsistência através do trabalho em
comunidade com todos sendo beneficiados. Criavam animais de pequeno e grande porte, possuíam
roças e tinham uma organização que fazia com que todos participassem ativamente da vida em
comunidade e suas tarefas.

A fala de Eusébio indica que uma forte ideia de liberdade animava o ajuntamento dos
sertanejos. A liberdade aparece associada a ruptura com todas as antigas autoridades,
principalmente dos coronéis, e, no caso mais específico, do Cel. Albuquerque de
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Curitibanos. A liberdade se representa também em relação ao clero franciscano, que não


cansava de tentar catequisar os sertanejos para sua rigorosa disciplina ultramontana e
sufocavam a população com constantes sermões contra a memória dos monges João Maria
e José Maria. (MACHADO, 2001, p. 201)

Para as autoridades, o movimento que se configurava, se dava como uma forma de protestar
contra o sistema republicano e trazer de volta a monarquia. De fato, muitos discursos nos levam a
crer que tal hipótese foi motivo de perseguições e de acusações por conta de políticos locais para
que o grupo sofresse represálias armadas. Mas na verdade a leitura do sertanejo a respeito da
monarquia que desejavam viria a ser outro. A sua monarquia viria a ser aquela que confirmaria o
seu “rei” José Maria, e onde teriam uma vida de irmandade ligados pelos ensinamentos da sua
“Santa Religião”. Machado (MACHADO, 2001, p. 218) ao analisar a organização da vida do
sertanejo nos retiros, descreveu que “no contestado havia um estreito relacionamento da ideia de
monarquia com o comunismo caboclo [...] Os sertanejos entendiam e praticavam sua monarquia
lutando por um reinado de paz, prosperidade e justiça na terra”. Esse movimento de agrupamento
para a sua autodefesa, a seu declarado desejo do retorno da Monarquia, mesmo esta não sendo no
sentido de forma de governo, era a deixa necessária para que lideranças políticas, como do Cel.
Albuquerque, pudessem incitar o ódio e a represália aos sertanejos através dos poderes constituídos.

Em 29 de dezembro de 1913, a comunidade sertaneja em Taquaruçu recebe seu primeiro


ataque, que foi facilmente vencido pelos retirantes, essa defesa rendeu para os sertanejos armas,
munições e mantimentos que foram deixados para trás pelas tropas em retirada. Esse episódio fez
com que os sertanejos passassem a ter uma maior confiança na sua luta, agregando também valores
espirituais que os auxiliaria através de sua fé em José Maria.

O segundo ataque realizado pelas forças militares em conjunto de um grupo de vaqueanos


foi extremamente violenta. Com mais de 700 homens e com armamento pesado de guerra, os
sertanejos que se encontravam no reduto de Taquaruçu não puderam esboçar qualquer reação. Dias
antes a maioria dos sertanejos que ali estavam se mudaram para Caraguatá, ficando para trás uma
maioria de mulheres e crianças. Os homens haviam seguido para o novo reduto para preparar o solo,
derrubando a mata e organizando as novas moradias.

O estrago da artilharia sobre o povoado de Taquarussú era pavoroso. Grande numero de


cadaveres, calculado por uns, em 40 e tantos e por outros, em 90 e tantos; pernas, braços,
cabeças, animaes mortos: bois, cavallos, etc. casas queimadas, etc. Fazia pavor e pena o
espectaculo que então se desenhava aos olhos do espectador. Pavor motivado pelos
destroços humanos; pena das mulheres e das crianças que jaziam inertes por todos os cantos
do reducto. (PEIXOTO, 1920, p. 159)
21

Já em 9 de março de 1914, Caraguatá recebeu a primeira investida dos militares e vaqueanos


na tentativa de se acabar com o grupo de sertanejos. Porém, agora com os homens no comando da
comunidade, as tropas foram dizimadas. O conhecimento do terreno, a luta no mato e a perícia com
armas brancas, fez com que as tropas militares sofressem grandes baixas, levando ao fim, a derrota
daquela que ficou conhecida como a batalha mais feroz da Guerra do Contestado. Após esse
confronto a população mais pobre do planalto, aquela que se identificava por sua condição, passou a
simpatizar com os feitos dos sertanejos rebeldes e acreditar na resistência aos poderes que os
oprimiam, na figura dos coronéis e do próprio Estado.

Após esse episódio, houve um expressivo aumento de sertanejos chegando para aderir ao
grupo de Caraguatá. Funcionários da estrada de ferro que foram despedidos, homens que eram
expulsos de suas terras e simpatizantes em geral. A causa ganha volume e crédito daqueles que
apenas observavam o desenrolar de toda a história. Com a repressão dos coronéis e o impacto que a
Lumber provocava na região, o aumento de sertanejos aderindo a causa passou a ser expressiva. Por
vezes, os problemas causados pelas empresas de bandeira americana faziam nascer homens
revoltados pela situação de impotência junto a justiça. Muitas vezes os confrontos nasciam de
problemas individuais, onde a justiça não praticava seu dever, ao que os sertanejos passavam a fazer
valer a justiça armada. Para exemplificar tal fato, muito interessante é a reação de Aguinaldo, que
vivia em Três Barras, e não se deixou conformar com a exploração da Lumber em suas terras, onde
os valores que ele estaria recebendo pelos pinheiros derrubados eram muito baixos.

“Queixou-se ao juiz em Canoinhas, mas ali lhe explicaram que era melhor procurar uma
solução amigável; os americanos tinham dinheiro e bons advogados. No mesmo dia
Aguinaldo obrigou um cabo da polícia a beber cachaça com pólvora no botequim de
Maneco Preto. Depois galopou para Três Barras, bebeu mais e obrigou mais gente a beber.
Por fim, entrou no escritório da companhia. Descarregou a winchester no pessoal. Matou
um dos diretores, deixou ferido o caixa, de quem arrebatou uns 20 contos. Fez-se ao sertão.
Tornou a atacar a serraria. Acompanhavam-no, agora, oito capangas armados até os dentes.
Como troféu, carregou seis caixas de uísque. Disse a um dos americanos, quieto sob a
ameaça de dois mosquetões de campanha, que já estava pelos gorgomilos de cachaça ruim.
Agora, ia a passar a beber pinga de inglês. Era só para cobrar os juros dos pinheiros que
eles não tinham pago. Quando acabassem as seis caixas, iria buscar mais.” (MACHADO,
2001, p. 247)

A questão da Monarquia cabocla também deixa de ser algo idealizado apenas pelos mais
devotos, e passa a ser um objetivo revolucionário, uma tentativa de mudar a realidade, construindo
através da luta, uma sociedade que desse oportunidade para todos. A vivência em comunidade
despertara um sentimento de sociedade igualitária, sem discrepâncias sociais e nem privilégios para
poucos. De fato, a partir desse momento, autores apontam que o movimento deixou de ser algo
ligado a defesa, e passou a ser um movimento ideológico. No mês de maio de 1914, foi enviado até
22

os sertanejos dois representantes para saber quais as condições para que o grupo colocasse fim a
toda aglomeração de revoltosos. Os caboclos, em resposta, disseram que colocariam fim ao
movimento apenas quando liquidarem com os coronéis da região, e assim que suas mulheres e
crianças, mortas solitariamente em Taquaruçu, fossem devolvidas com vida para eles. Machado
ainda trás em seu relato que o depoimento dos irmãos Carlinà Vinhas de Queiróz afirmando que “de
uma altura em diante, (os sertanejos) não queriam terra; queriam ir ao Rio de Janeiro, derrubar o
governo.” (MACHADO, 2001, p. 241).

A “Monarquia Cabocla” não pode ser avaliada apenas como uma ação reativa aos
desmandos promovidos pelos representantes da ordem vigente. Não se trata apenas de um
movimento defensivo, vingador ou reativo de camponeses. Os “pelados” construíram um
projeto de sociedade e defendiam que deveria ser aplicado em todo o Brasil. Tiveram a
clara perspectiva de espraiá-lo pelo planalto serrano, tanto ao norte, expandindo-se ao
Paraná; quanto ao sul, no rumo do planalto gaúcho. (MACHADO, 2001, p. 241)

E não só de caboclos sem terras que o movimento ganhou força, vários homens letrados, ou
ainda, de cargos públicos aderiram ao grupo de sertanejos. Para exemplo, cito Antônio Tavares de
Souza Junior, Membro do Partido Republicano. Ativo no meio político, Antônio participou da
fundação de Canoínhas, exercia atividades de professor e suplente de promotor público. Em um
telegrama para o governador Felipe Schmidt, Antônio afirma que a região contestada é por direito
de Santa Catarina, após decisão assim proferida pela justiça. Antônio pregava que a revolta deveria
tomar partido na questão do contestado e lutar para que a região ficasse definitivamente com Santa
Catarina. Tavares ainda participou ativamente de alguns ataques a Vila de Canoínhas dando apoio
aos sertanejos. Tavares acreditava na causa dos homens revoltosos, e em anotações em suas
cadernetas, hoje nas mãos de sua família, afirmava de que “o Paraná acossava os pobres caboclos
do ex-contestado e muitos dirigiam-se a mim para que tomasse providência frente aos governos”
(MACHADO, 2001, p. 254).

Nota-se que após o ataque a Taquaruçu, onde as mulheres e crianças foram alvos das
metralhadoras do exército, e após alguns incidentes de traição por parte dos coronéis, os sertanejos
passaram a atuar de forma mais violenta. Passaram da posição de defesa para o ataque sistemático a
Vilas da região, aos complexos da Companhia Lumber e da Brazil Railway, e ainda, atacando
fazendas de coronéis. Chegaram a tentar tomar Lages por ser este o local de concentração de poder
dos Coronéis em Santa Catarina. Os revoltosos, na condição de atacantes, arrebanharam gado para a
alimentação dos redutos, saqueavam fazendas, e levavam tudo o que fosse necessário para a
subsistência nos retiros.
23

Tomaram estações de trem, onde ficou marcada a violência empregada pelos caboclos. Em um dos
ataques, na porta de um comércio, deixaram um claro recado para as autoridades onde esse dizia
protestar por causa da violência do estado contra o povo do sertão e exigia terras para os brasileiros.
Na ocasião em que tomaram a Vila de Curitibanos, os rebeldes destruíram de forma que se fez
entender quem eram realmente os seus desafetos. Os estabelecimentos públicos que representavam
o governo, e as casas e fazendas dos coronéis. Assim o grupo de aproximados 200 homens
incendiaram um total de 17 casas e prédios públicos.

Nesse momento Santa Catarina e Paraná unem forças em conjunto com as tropas federais para
solucionarem os problemas que os revoltosos estavam criando em toda a região. Se faz importante
mencionar que o governo federal, por conta de forte pressão dos estados e das companhias de
Farquhar, nomeia ainda em agosto de 1914, Fernando Setembrino de Carvalho para liderar as tropas
militares. Esse General conseguiu a garantia de mais de sete mil homens para compor sua
estratégia, além de um alto financiamento para as investidas.

No ataque a Lages, os caboclos tiveram o momento de maior concentração de áreas em seu controle
(anexo 4). Porém, Lages não chegou a ser totalmente assediada por conta da morte do Comandante
Chiquinho Alonso. Com a morte de Chiquinho, outro Comandante passa a dirigir os passos de toda
a extensa comunidade cabocla. Como primeira decisão, o novo Comandante Adeodato, manda
todas as tropas se recolherem para seus redutos, deixando Lages de lado. Adeodato vai criar nesse
momento um super reduto em Santa Maria, onde acredita-se que viveram mais de 10 mil pessoas.
Adeodato ficaria marcado como sendo um comandante cruel, e ainda, como o último comandante
dos sertanejos.

Após sucessivos cercos, por parte do exércitos estaduais e federal juntamente com os
vaqueanos dos coronéis, os redutos foram caindo até que os restantes caboclos ficaram cercados no
reduto de Timbó. Essa fase ficou conhecida como a “guerra do açougue”, devido à enérgica atuação
dos vaqueanos. Os vaqueanos perseguiram sistematicamente todos os integrantes que eram mais
próximos dos líderes do grupo rebelde. Adeodato foi capturado por um grupo de vaqueanos sem
esboçar reação, e foi então apresentado em Florianópolis. Segue-se, após os últimos combates, uma
caçada de integrantes pela região para que fossem assassinados, ou ainda quando esses se
entregavam voluntariamente, a maioria não chegavam às autoridades.

Com o fim dos conflitos, o poder dos coronéis ascendeu novamente dentro das perspectivas
anteriores ao conflito. Com sertanejos se entregando constantemente às autoridades legais, as
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relações de dependência passaram a ser reestabelecidas, ampliando assim, o poder de patronagem


dos coronéis. Em estado de submissão, os caboclos procuravam uma forma de permanecerem vivos
e dentro da comunidade, mesmo que para isso, tivesse que retornar ao antigo estado de
subserviência, o que se tornava um grande atrativo para o poder regionalizado dos coronéis. Os
vaqueanos também passaram a possuir ações de fiscalização e busca por dissidentes dos redutos que
outrora vigorava na região. Esses ao encontrar caboclos envolvidos, os julgavam e aplicavam a sua
sentença, muitas vezes a morte por degola. Muitos sertanejos permaneceram escondidos no mato
por muito tempo, o receio se encontrava na possibilidade de encontrar certos vaqueanos que não
perdoariam qualquer sertanejo que encontrasse. Como afirma Machado, os piquetes vaqueanos de
“Pedro Ruivo, em Canoinhas, ou Coletti, em Santa Cecília do Rio Correntes, sabiam que seriam
massacrados sem piedade” (MACHADO, 2001, p. 333).

6 MATERIAL E MÉTODOS

Para a realização da pesquisa, foram coletadas informações de obras relevantes a respeito do


tema “O Contestado”. Com isso, buscou-se perceber as principais fontes bibliográficas que
permearam os trabalhos que são considerados obras de cunho científico e de importância no meio
acadêmico.

Após essa primeira fase, acrescentou-se para poder se obter um conhecimento que
sustentasse uma base, a inclusão de alguns resumos e vídeos coletados através se sites
especializados em história, e canais de instituições voltadas para o estudo do contestado.

E por último, se inicia a fase de leitura regular, buscando analisar os principais fatos que
envolveram o tema proposto na presente pesquisa. Compreendendo, interpretando e se fazendo
materializar na pesquisa aqui desenvolvida.

7 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foi possível compreender que apesar de estar intimamente ligados, a “Questão do


Contestado” não foi à causadora direta da “Guerra do Contestado”. As questões envolvendo as
fronteiras apenas propiciaram uma área de abandono por parte do estado, garantindo assim, que as
“leis” locais vigorassem de forma a oprimir o pequeno trabalhador agrário. Paraná e Santa Catarina,
pela indefinição de fronteiras, seguiram sua luta pelo meio legal. Já no campo de batalha, uniram
forças juntamente com a República para darem fim ao conflito civil que se desenrolava por toda a
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região do contestado. Ao final, as questões de fronteira foram acertadas entre as partes no Palácio
do Catete e os representantes do povo puderam, enfim, desfrutar de um belo e pomposo jantar na
mesma ocasião.

Foi objeto de pesquisa entender quem foram os atores do conflito e quais as suas influências
e ações dentro do quadro que se desenvolveu na região do contestado. Os coronéis e as suas grandes
propriedades, se utilizando de influência política para exercer o “mandonismo” na região,
provocando a miséria do pequeno agricultor de subsistência para que garantisse a subserviência do
mesmo. Esses mesmos coronéis, foram os responsáveis por incorporar nas tropas militares os seu
exército de capangas para que os mesmos garantissem a ordem estratigráfica regional. Não menos
culpada, pôde-se compreender através das obras analisadas que entra na região contestada as
empresas de Percival Farquhar, representando o imperialismo, o capital movido na propriedade e na
exploração, nunca levando em conta as necessidades daqueles que se utilizavam das terras para a
sua subsistência. As empresas que vieram trazer o progresso para a região ajudaram a constituir um
exército de desafortunados retirantes que buscam na crença a possibilidade de dias melhores.

A pesquisa nos proporcionou uma visão de que o Estado trabalhou para viabilizar os
caprichos das elites locais, como no caso do primeiro ataque que poderia ter sido evitado. Os casos
de interesse regional, disputado entre os estados envolvidos, fez com que se criasse uma região
carente de organização pública que veio propiciar os sangrentos conflitos.

Ainda foi possível reparar que muitas vezes a luta de uma determinada sociedade é
diminuída com rótulos. Como no caso dos sertanejos do contestado, onde muitos se referiram a eles
como ignorantes do sertão, ou ainda, como simples fanáticos que lutavam por uma causa
inexistente. Ao contrário, leu-se aqui, que as forças organizadas dos sertanejos sabiam muito bem
reconhecer os alvos que proporcionavam a sua opressão. Como no caso do ataque da Vila de
Curitibanos, onde apenas as repartições públicas foram atacadas, representando a sua revolta com
um estado omisso e que apenas se fez presente para aumentar a sua opressão. E ainda, queimaram
na mesma oportunidade, as casas de alguns coronéis, esses, sendo representantes diretos dos
problemas vividos diariamente pelo caboclo do contestado.

É possível compreender através da bibliografia estudada, que o sertanejo pode sim, ser
alguém com algum nível de fanatismo em um primeiro momento, mas com o passar do tempo,
podemos perceber a luta real travada no contestado. Buscaram através de um movimento belicoso
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se defender, e depois com novos objetivos, buscar uma vida que pudesse ter a dignidade necessária
para continuar o convívio em sociedade.

O Contestado possui ainda muitos capítulos abertos. Trabalhos recentes apontam inclusive,
que governos europeus entraram em contato com o Brasil para poderem discutir possíveis abusos e
mortes arbitrárias praticadas por vaqueanos e militares a imigrantes provenientes da Europa. Os
vaqueanos praticavam assassinatos aos homens que se rendiam após o término da guerra. Trabalhos
ainda apontam uma necessidade de se entender diversos aspectos ainda pouco estudados, como o
fato aqui apontado de crimes sucessivos mesmo findado o confronto.

REFERÊNCIAS

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contestado à colonização. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina,
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MACHADO, Paulo Pinheiro. Liderenças do Contestado: a formação e a atuação das chefias


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27

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Porto Alegre, RS, 2009.

ANEXO 1
28

ANEXO 2
29

ANEXO 3
30

ANEXO 4
31

ANEXO 5
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