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Semiologia das Afasias: Uma Discussão Crítica

Semiology of Aphasias: A Critical Discussion

Rosana do Carmo Novaes Pinto*,a & Ana Paula Santanab


a
Universidade Estatual de Campinas
b
Universidade Tuiuti do Paraná

Resumo
O artigo discute a semiologia das afasias, que teve início no século XIX com Broca e Wernicke. Não é
nosso objetivo fornecer uma lista exaustiva de sintomas e síndromes para tratar do tema, já que buscamos
discutir criticamente por que a semiologia das afasias ainda se baseia principalmente em perspectivas
orgânicas na prática clínica e na pesquisa científica. Também discutimos as contribuições de Luria e de
Jakobson para uma melhor compreensão de como a linguagem está comprometida nas afasias e como a
Lingüística Moderna, sobretudo a Neurolingüística Discursiva, pode iluminar o debate. Analisamos alguns
dados para ilustrar os pressupostos teóricos e metodológicos das referidas abordagens e discutimos ainda
o peso excessivo que as classificações têm no contexto clínico.
Palavras-chave: Afasia; Semiologia; Neurolinguística; Terapia de fala; Clínica.

Abstract
The article discusses the semiology of aphasias, which started being developed in the 19th century by
Broca and Wernicke. We do not provide an exhaustive list of symptoms and syndromes to address the
theme, since we aim to critically discuss why the semiology of aphasias is still based mainly on organic
perspectives in clinical practice and scientific research. We also discuss the contributions of Luria and
Jakobson to a better understanding of how language is affected in aphasias and how Modern Linguistics,
in special the Discursive Neurolinguistics, may enlighten the debate. We analyze some data to illustrate
the theoretical and methodological assumptions of the above mentioned approaches and also discuss the
excessive strength that classifications have in the clinical context.
Keywords: Aphasia; Semiology; Neurologuistics; Speech therapy; Clinic.

Elegemos a Neurolingüística Discursiva (doravante um nome à doença, que lhe permitisse compreendê-la. A
ND), neste artigo, como o “posto de observação” de onde preocupação com a terminologia nas ciências médicas
nos colocamos para refletir e avaliar criticamente a tem origem nessa necessidade de se desenvolver um jar-
semiologia das afasias e suas implicações no contexto gão técnico, mas que por outro lado servisse também para
clínico. O próprio termo “semiologia”, embora geralmen- a comunicação – ou para a “descomunicação”, segundo
te usado no singular, abriga diferentes sistemas semio- o autor – entre o médico e o paciente.
lógicos, cada qual priorizando aspectos relacionados às Foucault (1998), em O Nascimento da Clínica, faz uma
ciências nas quais são originados. Esses sistemas, como crítica à descrição das doenças como sendo uma “cole-
veremos mais adiante, também se entrecruzam, reve- ção de sintomas”, como uma forma de se alcançar uma
lando a busca de um equilíbrio entre as abordagens orgâ- “verdade”. O autor critica também a idéia de que a clíni-
nicas e as abordagens sociais de funções complexas como ca não seria um espaço para se descobrir verdades desco-
a linguagem humana. nhecidas, mas apenas onde se poderia dispor e apresen-
Porter (1997) afirma que o médico, até meados do sé- tar verdades já adquiridas. A semiologia seria o inventá-
culo XVIII, ao se dispor a ouvir a história do paciente e rio desses sintomas, organizados ou re-categorizados em
a interpretar suas queixas, tentava formar uma idéia síndromes, e reflete as condições da produção do conhe-
totalizante da doença, já que não possuía um conjunto de cimento e das crenças de uma determinada sociedade,
tecnologia de diagnose e nem o que o autor chama de ou seja, depende da “vontade de verdade de uma época”,
“moeda lingüística certa para as trocas entre profissio- fortemente marcada pela relação entre “ver e dizer”.
nal e paciente”. Em outras palavras, não era atribuído Essa abordagem dos fenômenos orgânicos e psicológi-
cos, segundo Foucault (1998), evidencia a preocupação
*
Endereço para correspondência: Universidade Estadual
classificatória e nominalista dos estudos desenvolvidos
de Campinas, Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571, Cida- na prática da medicina nos séculos XVIII e XIX. Cada
de Universitária, Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil,
CEP 13084-971. Tel.: (19) 3521 1761. E-mail:
um dos sintomas ou comportamentos é entendido como
ronovaes@terra.com.br um item semiológico, batizado de acordo com o ponto de

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vista do pesquisador ou da área na qual se inscreve. As A teoria que guia nossas reflexões é a Neurolingüís-
categorias passam a ser prévias às observações e o papel tica Discursiva, que vem sendo desenvolvida há mais de
do clínico é apenas o de encaixar nelas os sujeitos e as vinte anos, desde os primeiros trabalhos de Coudry na
patologias. década de 80 e que se apóia numa concepção sócio-his-
O conhecimento de uma área se constrói a partir dos tórica-cultural, tanto do cérebro como da linguagem, in-
modelos e propostas antecessores e, mesmo que velhos fluenciada por áreas da Lingüística como a Análise do
conceitos sejam criticados e reformulados, a semiologia Discurso, a Pragmática, a Semântica Enunciativa e a
geralmente acaba sendo cristalizada. Nesse sentido, ob- Aquisição da Linguagem. Todas essas correntes têm em
serva-se que o peso da tradição é tão forte que ainda hoje comum o fato de considerarem o sistema da língua em
nos flagramos descrevendo as afasias com as termino- sua relação com o exterior discursivo: o contexto social e
logias adotadas pelos neurologistas do século XIX, pre- as condições de produção dos discursos, incluindo o su-
cursores dos estudos afasiológicos, apesar de toda a jeito e as marcas de subjetividade nas teorias que visam
discussão sobre seus limites. explicar seu funcionamento2.
Embora muitas vezes o exercício classificatório e ta- Buscaremos discutir, mais adiante, como as teorias
xonômico tenha o objetivo de generalizar sobre os fenô- lingüísticas, sobretudo a ND, podem contribuir para uma
menos e possibilitar a comunicação entre os profissio- melhor compreensão das questões relacionadas à semio-
nais que se dedicam aos estudos e/ou à prática clínica, as logia das afasias, seja refutando, propondo ou resigni-
categorias (geralmente concebidas como síndromes ou ficando os itens semiológicos e, para isso, vamos nos valer
conjunto de sintomas)1 têm sido tomadas como parâme- neste texto da análise discursiva de alguns episódios
tros para a avaliação e para os encaminhamentos terapêu- dialógicos.
ticos, sem muita reflexão crítica. Descrevem-se os déficits
e as perdas detectados por meio de baterias de testes e Os Estudos de Broca e Wernicke
encaixam-se os sujeitos em uma ou outra categoria, des- e a Relação entre Ver e Dizer
cartando tudo o que não cabe nos modelos, principal-
mente as variações individuais. (Novaes-Pinto, 1999). A origem da semiologia das afasias é marcada pela
É consenso entre os estudiosos de que não existe uma preocupação localizacionista que caracterizou os estu-
classificação satisfatória das afasias. A semiologia utili- dos do cérebro no século XIX. Broca (1861/1969) foi o
zada para caracterizar os diferentes sintomas e síndromes, primeiro a postular uma localização para a linguagem e
embora cristalizada ao longo dos séculos, apresenta bas- a mostrar que ela é, de certa forma, independente de
tante variação, principalmente com relação aos nomes outros processos cognitivos. Ele descreveu um caso de
das categorias clínicas (Jakubovicz & Cupello, 1996; afasia motora, correlacionando alterações lingüísticas
Lecours, Dumais, & Tainturier, 1987; Ortiz, 2005). de um sujeito a uma lesão na terceira circunvolução fron-
As classificações nunca dão conta da complexidade dos tal do hemisfério esquerdo – até hoje conhecida como
fenômenos. O sintoma pode ser visto até mesmo em fun- “área de Broca” – e usou o termo “afemia” para designar
ção do modo como cada sujeito lida com suas dificulda- o que julgava ser a perda da faculdade da linguagem arti-
des e com os limites impostos pela afasia. Em outras pa- culada, responsável por traduzir as imagens mentais em
lavras, as classificações nada mais são que uma tentativa imagens motoras ou, em outras palavras, em movimen-
ilusória de se compreender regularidades subjacentes às tos (Broca, 1861/1969). As etapas da produção da lin-
alterações. A variação terminológica reflete as diferentes guagem estariam “truncadas”, gerando uma linguagem
concepções de linguagem, de cognição e de cérebro, dos não-fluente. Apenas em 1887 foi que Trousseau, discor-
diferentes autores. dando do termo utilizado por Broca, propôs o termo
Enfatizamos a impossibilidade, pela natureza deste tra- “afasia”, significando a perda da memória da palavra.
balho, de apresentar de forma exaustiva a semiologia das A partir da descrição acima, podemos inferir sobre uma
afasias, isto é, as síndromes e os sintomas, nas versões concepção de linguagem subjacente às conclusões de
desenvolvidas pelos muitos estudiosos que se ocuparam Broca. Trata-se de uma representação de conteúdos sen-
dessa tarefa. Os recortes foram feitos com o objetivo de sório-perceptivos alojados nos centros imagéticos e do
abordar e problematizar o tema, atentando para o limite ato motor propriamente dito. Essa concepção é bastante
das classificações. redutora, a nosso ver, se considerada à luz dos conheci-
mentos produzidos nas Neurociências e na Lingüística
nas últimas décadas.
1
A noção de sintoma é o construto teórico que estaria mais
diretamente ligado à observação dos fatos, o que seria mais
perceptível ao observador ou revelado por meio da aplica-
ção de testes neuropsicológicos. A associação dos sintomas, 2
A ND se distingue de uma Neurolingüística tradicional,
por sua vez, permite distinguir síndromes ou categorias visto que esta última geralmente apóia-se apenas nas
clínicas, geralmente determinadas por correlações estatís- neurociências e está desvinculada das teorias lingüísticas
ticas. O levantamento dos sintomas e o seu agrupamento ou restringe-se apenas aos modelos formais, como o estru-
em categorias clínicas passam, evidentemente, pelo filtro turalista e o gerativista, para respaldar suas análises e corro-
de uma teoria, que é prévia à observação. borar seus modelos.

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Mansur e Radanovic (2004) afirmam, baseadas nos e sub-corticais, ou ambas: por um lado, tem-se afasia
trabalhos de Dronkers (2000), que os pacientes autopsi- cortical motora, afasia subcortical motora, afasia transcor-
ados dos quais Broca derivou sua descrição apresenta- tical motora e, por outro, afasia cortical sensorial, afasia
vam, respectivamente, infartos múltiplos e demência3. O subcortical sensorial, afasia transcortical sensorial.
caso clínico a partir do qual fundamentou sua teoria foi O termo “transcortical” foi utilizado por Wernicke
o de seu paciente Leborgne, também conhecido por Tan, para substituir o termo “afasia cortical e subcortical” e
em função dos enunciados que produzia, reduzidos a tan- o autor manteve a descrição de “afasia de condução5”,
tan, termo reconhecido na literatura como estereotipia quando a lesão compromete áreas intermediárias entre
ou automatismo. Morato (2001, p. 150), também a esse as regiões de Broca e Wernicke, e cuja característica
respeito, questiona o fato de que esse caso seja justamen- principal seria a produção de parafasias6. Foi descrita a
te o que dá origem aos estudos afasiológicos: “muitos partir do momento em que foram observados sintomas
admitem, não sem uma ponta de ironia, que a Afasiologia não mais explicáveis por lesões nas áreas de Broca e de
tem sua origem numa espécie de malogro ou equívoco Wernicke. Logo, parecia correto afirmar que haveria
clínico”. uma representação cortical para este sintoma – uma le-
Alguns anos após o trabalho de Broca (1861/1969), são nas fibras associativas. Sua classificação é um bom
Wernicke (1874/1994) localizou a área de armazena- exemplo para ilustrar de que forma se buscava estabe-
mento da imagem sonora na primeira circunvolução lecer as correlações entre os sintomas lingüísticos e as
temporal do hemisfério esquerdo, que seus sucessores áreas cerebrais responsáveis, refletindo o enfoque locali-
batizaram como “área de Wernicke”. Estando essa área zacionista vigente7.
comprometida, os sujeitos teriam dificuldades para com- Além das críticas já apontadas acima, sobre os limites
preender a linguagem verbal, já que haveria uma inter- metodológicos que levaram Broca e Wernicke a postula-
rupção das fibras nervosas – das conexões, bloqueando a rem os centros responsáveis pela produção e pela com-
chegada das informações às áreas associativas. A produ- preensão da linguagem, há pesquisas recentes que põem
ção estaria relativamente preservada, desde que as áreas em cheque a relação direta entre essas áreas e os tipos de
motoras não estivessem afetadas. afasias descritos no século XIX e ao longo de boa parte
Também são feitas críticas a Wernicke quanto às rela- do século XX.
ções que estabeleceu entre cérebro e linguagem, a partir Segundo Dronkers (2000, citado por Mansur &
do estudo de apenas dois casos. Mansur e Radanovic Radanovic, 2004), apenas cerca de 50% a 60% dos pa-
(2004) relatam que ele realizou autópsia apenas em um cientes com lesão na área de Broca possuem uma “afasia
dos sujeitos e que o outro paciente também apresentaria de Broca persistente” e apenas 30% dos pacientes com
demência. As autoras acreditam que o fato de não se con- lesão na área de Wernicke são afásicos de Wernicke crô-
seguir encaixar as observações clínicas no modelo cria- nicos. Há ainda cerca de 15% de pacientes com afasia de
do por Wernicke se deve às limitações do mesmo. Para Broca crônica que não têm lesão na área de Broca e 35%
Wernicke (1874/1994), a afasia era um quadro comple- de afásicos de Wernicke que não têm lesão na área de
xo que consistia, por um lado, em afemia pura e afasia Wernicke. A afasia de condução, por sua vez, geralmente
motora – tal como postulada por Broca – e, por outro, atribuída a lesões na região do fascículo arqueado (entre
em afasia sensorial com uma variedade de síndromes as regiões de Broca e Wernicke, o que explica o nome de
disfásicas. Também considerava a linguagem como um condução), ocorre geralmente devido a lesões no lobo
“instrumento das representações mentais, um fenômeno parietal inferior.
da mente”. Sua classificação das afasias deriva do mode- A respeito da variabilidade inerente aos fenômenos
lo baseado na palavra (signo verbal). Para compreender afasiológicos e também da variação inerente às aborda-
e produzir a palavra, necessita-se de dois níveis: o con- gens teóricas, Lecours et al. (1987), afirmam que deve-
ceito da palavra e o conceito do objeto 4. Wernicke mos nos reportar às “afasias de Broca”, ou seja, usar o
mantinha, ainda, a oposição motora e sensorial e acres-
centava elementos relacionados à extensão da lesão,
5
A literatura afasiológica sempre se reporta à afasia de
principalmente no comprometimento de áreas corticais condução quando há problemas dos sujeitos com a repeti-
ção. No entanto, em seus primeiros trabalhos, Wernicke
(1874/1994) não menciona problemas de repetição, mas sim
a produção abundante de parafasias - característica central
3
Morato (2001, p. 150) comenta também o fato de que desta afasia. Somente em trabalhos posteriores, o autor ex-
Leborgne, que ficou internado durante 20 anos no Hospital plica que a repetição é impossível se a rota entre o centro
Bicêtre, em Paris, “padecia de vários males antes mesmo sensorial e o motor estiver alterada.
de ter sofrido uma lesão cerebral e que não foi, na ver- 6
Parafasia é a produção de um som ou de uma palavra no
dade, apenas uma.” lugar de outro som ou palavra pretendidos. Pode ser fonéti-
4
No processo de compreensão, o primeiro estágio se ori- co/fonológica, no caso da substituição de um som por outro
ginaria no conceito da palavra e passaria depois pelo con- ou lexical (ou semântica) no caso de substituição de uma
ceito do objeto. O mesmo processo ocorreria na produ- palavra por outra.
ção, mas na ordem inversa, com o conceito do objeto emer- 7
Para ilustrar a força que os modelos clássicos têm ainda
gindo primeiro, seguido do conceito da palavra. Para hoje, citamos Geschwind (década de 90 do século XX),
Wernicke (1874/1994), na produção da fala espontânea que expandiu o modelo de Wernicke, ficando conhecido
seria mais importante, ou mais necessária, a preservação como “Wernicke-Geschwind“ ou “modelo conexionista“,
do conceito da palavra. base para a classificação atual das afasias.

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termo no plural, já que “afasia de Broca” passa a ser e parietais, com dificuldades na recepção e percepção da
apenas um protótipo da afasia não fluente. Os autores linguagem10.
também admitem o fato de que nem sempre tais afasias Outra dicotomia associada às que foram apresentadas
resultam de lesão na área de Broca, o que pode hoje ser acima diz respeito à classificação das afasias em fluentes
comprovado cientificamente, como mostram as pesqui- e não-fluentes, o primeiro termo relacionado às afasias
sas de Dronkers (2000, citado por Mansur & Radanovic, posteriores (Wernicke) e o segundo às anteriores (Broca).
2004). Geralmente o conceito de fluência é definido em relação
Para ilustrar a diversidade e a divergência conceitual ao de disfluência. Nas afasias motoras, os enunciados são
que estão subjacentes à adoção dos itens semiológicos, disfluentes devido à presença de fala laboriosa, muitas
trazemos a discussão que Lebrun (1983) faz a respeito hesitações e pausas, parafasias, repetições, dificuldades
de alguns termos que são muitas vezes tomados como para encontrar palavras e pelo estilo telegráfico (sobre-
sinônimos na literatura neuropsicológica. O autor discu- tudo nos casos de agramatismo, com ausência marcante
te que a afemia, proposta por Broca, seria de fato a sín- de verbos, de flexões nominais e verbais e de palavras
drome da anartria ou apraxia da fala. Segundo Lebrun funcionais como artigos e preposições).
(1983), nessa síndrome as habilidades metalingüísticas Esse tema tem recebido bastante atenção por parte da
ficam geralmente intactas. Aponta a confusão conceitual ND, que busca incorporar fenômenos geralmente descar-
e terminológica subjacente a esse diagnóstico e questiona tados nas abordagens mais tradicionais, de cunho estru-
se os problemas articulatórios dos anátricos não seriam turalista. Scarpa (1995) tem enfatizado que os fenôme-
diferentes das dificuldades articulatórias dos afásicos de nos acima mencionados – digressões, pausas, hesitações,
Broca – posição contrária a de Pierre Marie (1906/1994), repetições, etc. – são constitutivos da linguagem e de sua
por exemplo, que via os fenômenos como sendo da mes- natureza dialógica e revelam atividades epilingüísticas.
ma natureza, em que a afasia de Broca seria a combi- Em outras palavras, deixam entrever os processos que
nação de uma afasia pura com uma anatria 8. Lebrun estão em curso, o trabalho lingüístico que os sujeitos re-
ressalta a necessidade de rever a opinião de Pierre Marie alizam sobre os recursos da língua, apesar das limita-
e chama a atenção para o fato de que os termos anartria ções impostas pelas afasias. As análises lingüísticas têm
ou apraxia da fala também são confundidos com a afasia apontado que, da forma como é postulada na literatura
motora eferente, de Luria, todos relacionados às difi- tradicional, a noção de fluência é um mito, uma vez que
culdades de caráter fonético/articulatório. Indiferentes a a disfluência é constitutiva da fluência.
uma discussão mais conceitual, todos esses termos são A semiologia que se refere às alterações da linguagem
bastante utilizados na área médica. Aparecem de forma escrita nas afasias e também em outras síndromes neuro-
recorrente, por exemplo, nos protocolos dos sujeitos, nos psicológicas também é prolífera. Termos como agrafia,
relatórios neurológicos e neuropsicológicos e nos enca- agrafia pura, alexia, alexia sem agrafia, alexia verbal,
minhamentos para a clínica fonoaudiológica. alexia frontal, alexia literal, agrafia parietal, dentre
Pesquisas realizadas na Lingüística sobre este tema, outros, pretendem dar conta de explicitar a variedade de
sobretudo na Fonologia Articulatória (Albano, 2001), sintomas observados nas diferentes síndromes (Santana,
têm apontado para a inadequação das abordagens que 2002). A semiologia da escrita não será tratada neste
separam os níveis fonético e fonológico. Esta questão foi artigo, mas nos referimos a essa questão apenas para
também abordada por Freitas (1997), na área de Neuro- reforçar a existência de controvérsias terminológicas e
lingüística, ao discutir a proliferação de rótulos e questio- conceituais.
nar não só a ruptura entre aspectos fonéticos e fonoló-
gicos, mas o fato de se conceber as alterações fonéticas A Semiologia das Afasias
nas afasias como sendo da mesma natureza dos distúr- na Neuropsicologia Moderna
bios anártricos e, portanto, concordando com Lebrun.
Voltando às dicotomias, os termos de Broca, emissivas, Iniciamos a discussão sobre a semiologia das afasias
de expressão e motoras estão relacionados às principais na Neuropsicologia Moderna destacando as contribui-
características das afasias anteriores9, que alteram os ções de Luria, autor que elegemos como o principal re-
mecanismos de expressão. Por outro lado, as afasias de presentante do século XX nessa área, uma vez que seus
Wernicke, receptivas, sensoriais ou de compreensão, são estudos promoveram mudanças fundamentais na con-
relacionadas às lesões posteriores, sobretudo temporais cepção do funcionamento cerebral. Mais adiante, dis-
cutiremos também uma espécie de paradoxo existente
8
entre uma concepção sócio-histórica-cultural e dinâ-
Pierre Marie, em 1906, caracterizou o diagnóstico de
anartria como uma dificuldade articulatória resultante de mica de cérebro e de linguagem – presente na obra de
uma lesão na circunvolução pré-central e/ou circunvolução Luria, amplamente aceita nas neurociências – e a tenta-
pós-central, na região do núcleo lenticular ou na cápsula
interna, tanto à direita quanto à esquerda.
9
Os termos anteriores e posteriores denotam a locali-
10
zação da lesão em relação à fissura sylviana, que podem Em casos extremos podem ser referidas como “desinte-
comprometer a região de Broca e/ou áreas adjacentes. gração fonética”.

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tiva de se mapear o cérebro e localizar aspectos de fun- escassez de output espontâneo, enquanto a compreen-
ções complexas como a linguagem, em substratos neurais são, a articulação, a nomeação e a repetição estão com-
discretos. parativamente preservadas; afasia semântica: o proces-
Luria (1976) retoma da literatura neuropsicológica so e a seleção ficam comprometidos, pois palavras que
vigente em sua época a noção de Sistema Funcional têm similaridades fonêmicas, morfológicas ou semânticas
Complexo (SFC), segundo a qual os processos mentais teriam a mesma probabilidade de serem selecionadas13.
(dentre os quais percepção, memória e linguagem) não Reconhecemos que a semiologia proposta pelo autor,
podem ser considerados como faculdades isoladas ou apesar de diferenciar-se da classificação tradicional, pa-
como funções diretas de grupos limitados de células11. rece não avançar muito em termos de poder explicativo,
Inúmeras são as contribuições deste autor para o estu- em relação às teorias antecessoras. Sua classificação deixa
do do funcionamento do cérebro e da linguagem, sobre a transparecer a concepção funcionalista de linguagem e a
relação entre os níveis lingüísticos e a organização dos terminologia utilizada enfatiza a sua natureza sistêmica,
campos semânticos, a relação com outros sistemas cog- mas ao mesmo tempo, baseia-se nas antinomias tradi-
nitivos, etc. Entretanto, não poderemos dissertar aqui cionais: codificação/decodificação; sensório/motor; emis-
sobre todas essas contribuições e passaremos a discutir são/recepção; produção/compreensão, aferente/eferente,
como ele se reportava às afasias e sua semiologia, objeto privilegiando os níveis formais de organização do sistema
de reflexão deste artigo. da língua: fonético/fonológico, sintático e semântico.
Ao referir-se à afasia de Broca, Luria (1976) propõe Gandolfo (1996) critica o fato de que Luria, apesar de
uma divisão em aferente e eferente. A fisiologia moder- sua diferenciada visão sócio-histórica-cultural da lingua-
na mostra que os movimentos voluntários não resultam gem e dos demais processos cognitivos complexos, não
somente de uma excitação eferente, mas também da orga- incorpora questões pragmático-discursivas, como os pro-
nização aferente, isto é, da organização de um esquema cessos inferenciais ou o reconhecimento de normas con-
simultâneo de movimento. Aspectos motores envolvidos versacionais, que são considerados pelo autor no âmbito
na produção oral requerem a participação de pelo menos do comportamento, associados às alterações cognitivas,
dois fatores: o primeiro está associado às partes cines- como nas chamadas Síndromes Frontais. Para a autora,
tésicas da área sensório-motora do cérebro (predominan- as alterações pragmático-discursivas deveriam fazer parte
temente as partes inferiores do giro pós-central), ou seja, da semiologia das afasias, uma vez que dizem respeito
fornece um esquema cinestésico para a articulação, às alterações que relacionam o sistema da língua e as
enquanto o segundo fator requer a atividade das partes condições de produção, à relação do sujeito com o con-
inferiores da área pré-motora do hemisfério esquerdo, a texto, etc. Cabe ressaltar que, em estudos mais recentes,
já referida zona de Broca, base cortical da fala fluente. o termo afasia pragmática tem sido relacionado às Sín-
Pelo menos dois tipos de afasia motora podem ser des- dromes do Hemisfério Direito (Fonseca, Parente, Cote,
critos, a partir de alterações nesses esquemas: a aferente, & Joanette, 2007).
como conseqüência de lesões do Operculum Rolandi e a Os postulados de Luria acerca do funcionamento cere-
afasia eferente, que seria a afasia de Broca propriamen- bral e seu modo de compreender a linguagem, também
te dita. Luria demonstra que os mecanismos fisiológi- como um sistema funcional complexo, ainda hoje funda-
cos, bem como o quadro clínico destas formas, são muito mentam as pesquisas em Neuropsicologia e muitos de
diferentes. seus pressupostos podem ser confirmados por meio de
A fim de se compreender como o autor concebe as modernos instrumentos de neuroimagem14.
alterações que ocorrem nas afasias, citamos resumida- A década do cérebro – nos anos 90 – possibilitou um
mente sua classificação dos fenômenos: afasia acústico- avanço sem precedentes no seu conhecimento científico.
amnésica12, caracterizada pela incapacidade de se esta- Segundo Damásio (1997), as descobertas ajudaram a
belecer diferenças entre palavras que são foneticamente esclarecer e a transformar a visão clássica a respeito do
similares, já que o traço fonêmico-lexical estaria per- funcionamento cerebral e devem-se, principalmente, a
dido; afasia dinâmica, cuja característica principal é a três fontes: os estudos eletrofisiológicos, os estudos das
lesões e os estudos com as imagens funcionais. A exposi-
11
Segundo Luria, uma coisa é afirmar que há áreas
especializadas que contribuem para realizar funções espe-
cíficas e outra, bem diferente, seria afirmar que as funções 13
A afasia, para Luria (1984), é um problema da função
estão localizadas em áreas específicas do cérebro. reguladora da linguagem e isso tem a ver com o fato de que
12
Luria (1984) afirma que a maioria das manifestações de o sujeito tem alterada a sua capacidade de seleção, de con-
afasias de condução pode ser explicada pela insuficiência trole sobre a escolha. Luria (1987) afirma que a linguagem
de aferenciações cinestésicas do ato verbal. Para repetir é envolve processos de associações fonéticas, semânticas e
necessário que se tenha preservada uma avaliação exata da morfológicas. Nas afasias, todas as associações seriam
organização fonêmica. A afasia de condução pode ser anali- evocadas (como ocorre no processamento normal), mas a
sada como uma forma mais leve de afasia acústico-amnésica escolha tornar-se-ia difícil ou impossível.
ou de afasia motora aferente (na qual a fala fonemática está 14
Há relatos na literatura neuropsicológica, por exemplo,
desorganizada). Pode ser resultado, ainda, de um distúrbio de experimentos com Ressonância Magnética Funcional,
seletivo de um articulema. A afasia de condução, portanto, envolvendo o processamento de tarefas complexas como a
seria uma forma complexa de afasia, que pode ocorrer de- leitura de textos argumentativos, durante os quais se obser-
vido a distúrbio de diferentes componentes. va intensa atividade em todas as regiões cerebrais.

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ção do córtex cerebral durante cirurgias tem oferecido a psicológica e uma área cerebral, fortalecendo os mode-
oportunidade de se estudar o cérebro humano diretamente, los que são cada vez mais valorizados pelo paradigma
por estimulação elétrica, desativando temporariamente científico vigente nas neurociências.
a função de uma determinada região. Os resultados mos- Como opção a uma terminologia marcada pela tradi-
tram, segundo o autor, que diversas áreas do córtex cere- ção localizacionista, a análise lingüística dos fenômenos
bral esquerdo, fora das áreas clássicas de linguagem, parece contribuir para que se repense a semiologia das
estão ativamente comprometidas em tarefas lingüísticas. afasias e de outras alterações de linguagem envolvidas
Com a utilização da ressonância magnética e de re- nas patologias cerebrais, orgânicas ou funcionais.
construções tri-dimensionais in vivo, o estudo das lesões
permitiu uma nova onda de experimentos cognitivos. As Contribuições da Lingüística para a Discussão
Damásio (1997) afirma que os resultados desses estudos sobre a Semiologia das Afasias
têm mostrado que o processamento da linguagem não
depende somente das áreas de Broca e Wernicke, mas de A Lingüística inicia a discussão sobre a semiologia das
um trabalho de muitas áreas trabalhando em conjunto, afasias apenas na metade do século XX, com Jakobson
tal como postulado por Luria. (1954), e vem se solidificando como uma área que muito
A literatura neuropsicológica produzida nas últi- pode contribuir para o avanço das teorias que se debru-
mas décadas sobre a organização cerebral e o processa- çam não só sobre o estudo das afasias, mas de qualquer
mento da linguagem dedica-se a formular hipóteses fenômeno que relacione a linguagem aos demais proces-
acerca dos mecanismos responsáveis por sua aquisição sos cognitivos. A complexidade desses processos e de suas
e desenvolvimento, pela busca e seleção de palavras ou inter-relações só pode ser melhor compreendida numa
da morfologia (flexional e funcional), pelas regras gra- perspectiva multidisciplinar e a Neurolingüística, disci-
maticais mobilizadas para a produção e compreensão plina híbrida, busca explicações que sejam compatíveis
da língua(gem), dentre outros. entre um modelo de cérebro dinâmico, flexível, como
Como apontamos acima, parece haver um paradoxo propõe a abordagem luriana, e uma concepção de lin-
entre, por um lado, uma concepção acerca do funciona- guagem também dinâmica, como atividade constitutiva
mento cerebral como um sistema funcional complexo, dos sujeitos e da própria língua, como a que é defendida
proposta por Luria e reconhecida por autores como pela ND.
Damásio (1997), que demanda o trabalho de muitas áre- Inaugurando a entrada da Lingüística nas afasias,
as corticais e sub-corticais em distintos pontos do cére- Jakobson (1954) ressalta a importância dessa disciplina
bro para processar qualquer das funções superiores e, por para uma adequada descrição e melhor compreensão dos
outro lado, a tentativa de se mapear o cérebro e as fun- fenômenos. Ele, de fato, convoca os lingüistas a partici-
ções complexas. parem de tal empreitada, em seu texto Dois aspectos da
Uma quantidade substancial dos trabalhos produzidos linguagem e dois tipos de afasia. Foi o primeiro a reali-
recentemente nas neurociências tem como objetivo não zar uma análise dos distúrbios afásicos utilizando crité-
só postular “modelos de processamento lingüístico”, mas rios puramente lingüísticos. Os neurologistas e neuropsi-
revelar os substratos neurais que participam dos proces- cólogos acreditavam que a afasia era um “problema de
sos funcionais complexos como linguagem e memória, à língua”. Jakobson rompeu com essa concepção, que ha-
semelhança do que se pode afirmar sobre os processos via marcado os estudos até então, e assumiu o ponto de
primários como a percepção visual, auditiva e tátil, o vista de que só se pode entender a linguagem “em funcio-
que parece se constituir como uma tendência neo-loca- namento” e compreendendo as suas distintas funções.
lizacionista ou neo-frenológica. Ao contrário das primi- A classificação das afasias, segundo Jakobson, pode
tivas técnicas utilizadas por Gall e seus seguidores, no ser estabelecida em relação aos dois “eixos” de organi-
século XIX, que apalpavam os cérebros dos pacientes zação da linguagem: o paradigmático e o sintagmático.
nas autópsias a fim de descobrir protuberâncias ou le- O primeiro estaria relacionado às dificuldades do afásico
sões que justificassem o estabelecimento de seus mapas em selecionar unidades dentre uma lista de elementos –
frenológicos, a utilização da neuroimagem se estabelece também concebido como eixo metafórico – e o segundo
no século XXI como o instrumento mais respeitado para relacionado às dificuldades com as combinações dos ele-
revelar as “verdades” acerca do funcionamento cerebral mentos previamente selecionados – ou eixo metonímico.
(Novaes-Pinto, 2008). Jakobson (1954) propõe, de acordo com as dificuldades
Voltando à questão da semiologia, é provável que os mais acentuadas dos afásicos com a seleção ou com a
achados das pesquisas realizadas com neuroimagem ve- combinação, dois tipos de afasias, cujas formas puras
nham a influenciar a terminologia, não só referente às poderiam ser descritas como polares: a jargonafasia e o
afasias, mas relacionadas às síndromes neuropsicológicas agramatismo. Em outras palavras, as afasias causariam
em geral. Num futuro próximo, poderão determinar ain- uma ruptura em um dos dois eixos e a bipolaridade –
da mais fortemente a relação entre o orgânico e o psico- característica da linguagem normal – em que seleção e
lógico, a partir da correlação estatística de uma função combinação estão intimamente vinculadas15, passaria a

418
Novaes-Pinto, R. C. & Santana, A. P. (2009). Semiologia das Afasias: Uma Discussão Crítica.

ser unipolar nos afásicos (Fedosse, 2008). O autor sali- refere a um fato ocorrido durante as férias de 2007, quan-
enta que, embora suas colocações sejam relativas aos casos do sofreu um enfarte:
puros, prevê a possibilidade de diferentes graus em que OJ: Janeiro. Catorze. Seis horas.
esses processos estariam comprometidos, o que permiti- Irn: Seis da manhã ou da tarde?
ria explicar as várias formas possíveis de afasia. Nossa OJ: Tarde.
experiência com o estudo das afasias nos leva a crer que Irn: E aí, o que aconteceu?
não existem “casos puros”, como os descritos na litera- OJ: Dor. Dor. Muita dor!
tura, e os dados abaixo apresentados – de EV e de OJ – Irn: Dor onde?
corroboram essa idéia. A polarização da semiologia em OJ. Peito. Frio. Muito frio. Hospital. São Sebastião
dois grandes grupos também pode ser rediscutida a do Paraíso.
partir da ND. As análises de episódios dialógicos têm Irn: Quem te socorreu?
revelado o que se entende ser a projeção de um eixo so- OJ. Maria José.
bre o outro (Coudry, 2002), uma vez que uma unidade da [Mostra cicatriz no braço e no peito]
língua (fonemas, morfemas, palavras, frases) só é sele- Irn: E aí? Precisou fazer cirurgia?
cionada no plano paradigmático em relação a um con- OJ. Amanhã. Ribeirão Preto.
texto sintagmático (o morfema é contexto para o fonema, Irn: Ah, no dia seguinte, foi para o Hospital em Ri-
a palavra para o morfema, a frase é contexto para a pa- beirão.
lavra e o enunciado, por sua vez, contexto para a frase) OJ: Isso.
e, por outro lado, unidades da língua só são combinadas, As análises orientadas pela ND (Coudry, 1986/1988,
sintagmaticamente, se operações de seleção forem rea- 2002; Fedosse, 2008; Freire, 2005; Novaes-Pinto, 1999,
lizadas. A ND, de certa forma, atualiza o modelo propos- dentre outros)17 nos levam, antes de mais nada, a obser-
to por Jakobson e o expande, à luz dos conhecimentos var o que está presente nos enun-ciados do sujeito e não
advindos com o desenvolvimento da Lingüística, sobre o apenas aquilo que foi omitido. Em outras palavras, con-
funcionamento da linguagem, principalmente o que se cebemos a fala telegráfica como uma estratégia alterna-
deu a partir dos anos 70, com as teorias pragmáticas e tiva do sujeito para lidar com suas dificuldades de sele-
discursivas. ção e de combinação. Em geral, as análises orientadas
O objetivo de inserir alguns dados de situações dialó- pela ND visam explicar os fenômenos afasiológicos de
gicas neste texto é, justamente, o de ilustrar e discutir as acordo com as alterações lingüís-ticas mais predominan-
duas formas de afasias preconizadas por Jakobson. OJ, tes (comprometimento dos diferentes níveis lingüísticos),
agramático, apresentaria, de acordo com o autor, difi- sem recorrer à semiologia clássica ou re-significando os
culdades de combinação no eixo sintagmático. Sua pro- termos cristalizados, como agramatismo ou jargonafasia.
dução é vista na literatura como disfluente, de estilo Apresentamos, a seguir, um dado de EV, quando con-
telegráfico. Em seus enunciados não aparecem palavras versa com a fonoaudióloga Isk18, para ilustrar o outro
funcionais (artigos, preposições, conjunções) e nem fle- tipo de afasia de Jakobson, predominantemente de sele-
xões verbais (quando o verbo é selecionado, geralmente ção (de traços para formar fonemas, de fonemas para
está na forma infinitiva). Podemos concordar com formar morfemas, de morfemas para formar palavras e
Jakobson, quando ele diz que se trata de uma dificuldade de palavras para formar frases)19:
predominante de combinação. Entretanto, pode-se ques-
tionar se a dificuldade primária de OJ não seria justa-
mento Livre e Esclarecido, no qual afirmam estar cientes
mente a de selecionar as palavras funcionais, sem as quais de que as sessões são gravadas em vídeo e posteriormente
se torna mais difícil combinar os demais elementos (pre- transcritas, analisadas e utilizadas em pesquisas, divulgadas
em eventos científicos e em publicações da área. Todos os
dominantemente substantivos, adjetivos e advérbios) em dados que constam deste artigo já foram apresentados em
uma seqüência “gramatical”, que seja compreensível para teses defendidas na área de Neurolingüística do IEL (Insti-
o interlocutor. Isso explicaria, inclusive, a produção maior tuto de Estudos da Linguagem) ou como resultados parci-
ais de pesquisas em andamento.
de pausas, hesitações, de repetições e a suposta disfluência 17
Os estudos orientados por uma visão discursiva (Coudry,
desse tipo de afasia. Vejamos um dado de OJ16, que se 1986/1988), normalmente referem-se também ao quadro
neurológico e neuropsicológico/neurolingüístico, uma vez
que o sítio e extensão da lesão são importantes para a com-
preensão do caso e da afasia. Entretanto, a relação entre a
15 lesão e os sintomas não é direta e o que está em foco é a
Podemos dizer que quando selecionamos unidades (tra-
ços, fonemas, morfemas, palavras) em unidades maiores, o descrição da língua(gem) do afásico e seus processos alter-
fazemos já tendo um contexto possível de arranjo, de com- nativos de significação.
18
binação, assim como só combinamos elementos que tenham Dado transcrito da tese de Doutorado de Novaes-Pinto
sido previamente selecionados. Os dois processos são ape- (1999).
19
nas relativamente independentes. É neste sentido que fala- Novaes-Pinto (1999) questiona a transcrição deste dado,
mos em projeção de um eixo sobre outro. especificamente o fato de que a segmentação dos enunciados
16
Os episódios abaixo foram retirados de sessões de grupo de EV em unidades como palavras – arronjárdago, merrar,
de afásicos realizadas no Centro de Convivência de Afásicos medjogo, etc é uma interpretação feita pelo transcritor, que
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Todos se baseou nas pausas ocorridas durante a produção oral. Este
os sujeitos que freqüentam os grupos do CCA (Centro de problema não será, entretanto, explorado neste trabalho e, a
Convivência de Afásicos) assinaram Termo de Consenti- nosso ver, não compromete a análise que apresentamos.

419
Psicologia: Reflexão e Crítica, 22 (3), 413-421.

Isk: que que houve? Em geral, se diz que neste tipo de afasia o doente está
EV: tô muito triste, não arronjárdago, to meu vá, “incanalizável”, mas isso se deve, principalmente, ao fato
muito merrar só melhávada girre damedárre e de serem analisadas exclusivamente ou preferencialmente
ficando ma ve dano sacorro tute marrom de masson, situações de avaliação metalingüística, em que o sujeito
muito tista. não consegue engajar-se em tarefas de nomeação, repeti-
Isk: a senhora tá se sentindo muito sozinha... ção, leitura, ditado, cópia, dentre outras. Jakobson tem
EV: faze nave, num tem mai dumilhade do que ai razão ao apontar os problemas com a seleção dos ele-
tem medjogo... finale non. mentos, as substituições freqüentes no eixo paradigmá-
Isk: hum... tico, a produção de parafasias fonético/fonológicas e/ou
EV: num deixa eu sair eu tem medo domogaze lexicais/semânticas. Entretanto, não se pode desconsi-
Isk: a senhora fica... derar que o arranjo no eixo sintagmático está também
EV: eu quero morrar no terrão minha caseba comprometido e é isso que causa o efeito de um jargão.
morrava lá no merrar da cidade era mia cola lá. Destacamos a importância de esclarecer que as análi-
Isk: sua casa... ses lingüísticas realizadas sob a orientação da Neurolin-
. . . [corte no dado] güística Discursiva podem se valer dos mecanismos
EV: eu gosto explicativos propostos por Jakobson – de que as afasias
Isk: acostumada no seu cantinho... seriam basicamente resultantes de dificuldades de sele-
EV: depois, assim não seje mais, arrejo mais, não ção e de combinação de unidades lingüísticas –, mas per-
renar, não poge não rer mair então, tudo que eu mite que se ultrapasse ou que se amplie este modelo. Ao
tirava na vida gostava ler dormir delhar meus relava invés de nos centrarmos na análise de palavras isoladas
di noite, gostar renadas e dorme domingada ilhó, e de sentenças (ou de orações), a ND se volta para a aná-
não posso nava, tejo aguas e a ... lise do enunciado, tal qual definido por Bakhtin (1997),
Uma análise lingüística dos enunciados de EV eviden- como a unidade real da comunicação, e para os proces-
cia as dificuldades que ela tem com o sistema da língua sos dialógicos, a fim de avaliar a linguagem em fun-
– não só de seleção, mas também de combinação de ele- cionamento. Dados que seriam descartados das teorias
mentos fonético/fonológicos e morfemáticos, gerando tradicionais, por se caracterizarem como variações indi-
enunciados muitas vezes ininteligíveis, como os que es- viduais, são incorporados pelas análises da ND, já que
tão destacados em negrito no dado: arronjárdago, merrar dados singulares podem revelar indícios de processos que
só melhávada girre damedárre, sacorro tute, dumilhade, seriam mais gerais (Abaurre, 1996).
medjogo, etc., exemplificando o que na literatura é cha-
mado de neologismo. A freqüência de ocorrência desses Considerações Finais
segmentos é que torna a fala muitas vezes ininteligível,
o que a literatura tradicional chama de jargão neolo- A necessidade de descrever e de nomear sintomas e
gizante. de agrupá-los em síndromes ou categorias clínicas faz
A jargonafasia é caracterizada nos estudos tradicionais parte das preocupações das ciências da saúde. Entretan-
como o caso mais severo de afasia de compreensão. A to, diferentemente do ditado popular que diz que: uma
presença de anosognosia: falta de consciência das difi- doença nomeada é uma doença quase curada, temos a
culdades pelo sujeito – é vista como um sintoma co- forte convicção de que não é o fato de nomear uma forma
ocorrente. Outros dados de EV mostram, entretanto, que de afasia (ou qualquer outra patologia) que vai garantir
em episódios dialógicos, embora alterada, a compreen- uma avaliação adequada acerca das alterações e, muito
são está melhor preservada do que nas tarefas metalin- menos, a melhor condução do processo terapêutico. A
güísticas e que suas dificuldades parecem ser proporcio- ilusão do nome dá ao terapeuta (e também ao sujeito)
nais à qualidade da interação nos processos dialógicos: uma espécie de âncora, uma metáfora utilizada por Oliver
quanto mais ela é incluída como sujeito na interação, Sacks20 (1997), mas é a visão mais abrangente e crítica
menos jargonafásica; quanto mais alijada da interação, do examinador/pesquisador e sua concepção de cérebro
mais jargonafásica. Observa-se que EV respeita os tur- e de linguagem, que o orientarão para ver os fenômenos
nos, mantém-se como interlocutora e adere aos temas e buscar uma terminologia coerente.
propostos. Se analisarmos a estrutura dos neologismos, Se, historicamente, as áreas de reabilitação têm feito
em relação ao resto do enunciado e ao contexto de pro- uma colagem de categorias clínicas utilizadas pela área
dução, muitas vezes podemos reconhecer palavras ou o médica, torna-se premente rever não só a terminologia,
tema sobre o qual ela está falando. No último enunciado mas também a metodologia de abordagem dos fenôme-
de EV: “depois, assim não seje mais, arrejo mais, não nos, já cristalizadas na clínica, tanto para avaliar como
renar, não poge não rer mair então, tudo que eu tirava para guiar as condutas terapêuticas.
na vida gostava ler dormir delhar meus relava di noite, As classificações das afasias, como vimos acima, estão
gostar renadas e dorme domingada”, podemos inferir diretamente relacionadas às concepções que se tem so-
que está comparando sua vida de agora (momento da en-
trevista) com a que tinha antes de ser tirada de sua casa. 20
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.

420
Novaes-Pinto, R. C. & Santana, A. P. (2009). Semiologia das Afasias: Uma Discussão Crítica.

bre cérebro e linguagem e compreender tais concepções Freire, F. M. (2005). Agenda mágica: Linguagem e memória.
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RJ: Forense Universitária. Aceite final: 28/11/2008

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