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Dr.

Mauro Martin
onhada à família possível
PUC -

Marlizete Maldonado Vargas


Da família sonhada à família possível

Fernando Freire
© 1998, 20l3 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
p1 oibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
Sumário
sem autorização por escrito dos editores.

1ª Edição 1998
2•Edição 2013
Editor lngo Bemd Güntert
Agradecimentos - - - - - - - - - 11
Gerente Editorial Fabio Alves Melo
Coordenadora Editorial Marcela Roncalli
Prefácio- -------- 13
Assistente Editorial Cíntia de Paula

Projeto Gráfico e Diagramação Felipe Meyer


Capítulo 1- ~guns passos pelas trilhas da adoção 17
Revisão Caroline Zanelli Martins
A adoçao no contexto histórico ---- 21
Adaptação ortográfica Laura Carvallw
A ad~çáo na religião, mitologia, tragédia grega e
Capa Ana Karina Rodrigues Caetano
literatura infantil 23
A adoção hoje ------------- 25
A adoção e a l e ~ i - - - - - - - - - - - - - - - 25
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica llacqua CRB-8/7057 Adoção e pesqu1'·-=sa::-:s~-------------- 33
Vargas, Marlizcte Maldonado
Adoção tardia : da família sonhada à família possível/ Marlizete
Maldonado Vargas. - 2. ed. - São Paulo : Casa do Psicólogo, 20 l3.
Capítulo 2 - A adoção tardia- - - - - - - - - 41
ISBN 978-85-8040-294-0
1. Adoção 2. Adoção - Aspectos psicológicos 3. Adoção - Aspectos Capítulo 3 - A realização da pesquisa 51
sociais 4. Crianças adotadas 5. Família 6. Pais adotivos 7. Pais e filhos
Os grupos acompanhados ---------- 54
l. Tículo
CDD 155.445
A trajetória - - - - - - - - - 55
12-0248
Índices para catálogo sistemático:
l. Adoção de crianças: Psicologia Capítulo 4 - Ric-. do m e do a, ousadi a nas relações
Impresso no Brasil com o outro 61
Printed in Brazil
A história de Ri-;-:.c:---------------- 63
A história do casal·I_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
65
A,; opiniões expressas neste livro, bem como seu canteiulo, são de responsabilidade de seus autores,
não necessariamente correspondendo ao ponto de vista da editora. A preparação 67
O acompanham::-;:-;:-en:-t:=o-:fc.am=i~li~ar------------- 71
Reservados todos os direitos de publicação em lingua portuguesa à

f Casapsi Livraria e Editora Ltda. Capítulo 5 - A travessia de Cláudia 109


., Rua Simão Alvares, l020
Pinheiros • CEP 05417-020
Os primeiros passos - - - - - - - - - - - 111
i\o Paulo/SP - Brasil
A história de Cláudi'-=a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 112
Te\. Fax: (11) 3034-3600
www.casadopsicologo.com.br A família 112
R~umod~o~ac~o:m::p:anh=i:-am=~en_t_o_____________
115
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

Capitulo 6-Luciana: quando refazer é preciso _ _ _ _ _ 125


A história de Luciana _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 127
A história da família _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 128
Resumo do acompanhamento___________ 131

Capítulo 7 -Alice: do país do sonho para a realidade de uma


farrúlia._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 145
A história de Alice_______________ 147
Afamília _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 147
Resumo do acompanhamento___________ 149
A outra família _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 160

Capítulo 8 - Pedro: em busca de raízes _ _ _ _ _ _ __ 163


A história de Pedro _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 165
A família _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 165
Resumo do acompanhamento _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 166
A Philippe, Marianne e François, que, além de ficarem
Anexo _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 181 privados de meu tempo, foram o apoio de que precisei em
muitos momentos, quando oponto de chegada parecia
Conclusões e considerações finaís _ _ _ _ _ _ _ _ __ 187
distante.
O enfrentamento do preconceito _ _ _ _ _ _ _ _ __ 188
O comportamemo regressivo _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 192
O comportamemo agressivo _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 193
Ritmo de desenvolvimento global da criança. _ _ _ _ _ __ 195
O esforço da criança para se idemificar com as novas
figuras parentais _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 196
O acompanhamemo preventivo na adoção tardia _ _ _ __ 197
O imermediário _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 199

Referências bibliográficas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 205

,,
Em matéria de adoção tardia, cada situação é excepcional
cada experiência é singular, cada trr!Jetória de criança, intei-
ramente única, isto a talponto que nenhuma generaliZfJção
seria possível
(OZOUX-TEFFAINE, 1987)
Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Mauro Martins Amatuzzi, pelo carinho e


paciência com que conduziu a orientação da pesquisa e pelo
espaço oferecido para que eu pudesse me deparar com o "rol
de possibilidades passíveis de generalizações''.
À Vara de Infância e Juventude de Campinas, represen-
tada pelo Exmo. Dr. Erson de Oliveira e equipe técnica, pela
confiança depositada e não só por ter aberto o espaço, como
também pelos questionamentos acerca de seu trabalho, que
me possibilitaram entender os procedimentos de adoção.
À Maria Antonieta Pisano Motta, pelo incentivo ("empur-
rão'') para que esse livro se tornasse concreto e pela sua grande
amizade. Conhecemo-nos em função deste trabalho e logo
nos tornamos parceiras em pesquisas, estudos e divulgação do
tema da adoção.
Ao Fernando Freire, grande força que tem dado não só
ao nosso trabalho - sempre cobrou este livro a cada contato
mantido - como a todos que se interessam pelo tema, "pela
causa", diria ele, de tantas crianças que necessitam de uma
família. É dele a ideia do subtítulo.
Às crianças e famílias, participantes anônimas, que pos-
sibilitaram este estudo e com as quais aprendi muito, princi-
palmente nas lições de vida e de amor. A elas o meu carinho
especial.
ADDCÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

\ lodos os "encorajadores": amigos, colegas, professores,


p;1ts e filhos adotivos que venho acompanhando. Aos meus Prefácio
pais, de ambos os lados, desejo registrar a minha gratidão.

A busca pela informação científica acerca do tema "adoção


tardia" partiu de uma necessidade decorrente do nosso trabalho.
Como integrante da equipe de assessoria técnica da Secretaria
da Criança e do Adolescente de Blumenau/SC, que acabava
de ser criada (1991 ), passei a prestar serviços ao Juizado da
Infância e Juventude daquela cidade. Ao realizar avaliações de
um grupo de crianças maiores de 20 meses, abrigadas em uma
instituição, por períodos que variavam de três meses a dois
anos e meio, enquanto tramitavam processos de destituição do
pátrio poder de suas familias, questionei a respeito das chances
de tais crianças, caso fossem adotadas, terem uma experiência
bem-sucedida, ou seja, de estabelecerem, efetivamente, novos
vínculos familiares. Na busca de respostas e de instrumen-
talização teórico-técnica para uma possível intervenção da
equipe, verifiquei, pela ausência de literatura específica, a
pouca repercussão que este tema possui no meio científico.
Ao ingressar no curso de mestrado em Psicologia Clínica da
PUC de Campinas, surgiu então a possibilidade de um estudo
mais sistemático dos processos de adoção de crianças maiores
de dois anos.
Acompanhei c1nco grupos constituídos pelas crianças e
respectivas familias, nas quais aquelas foram colocadas em
estágio de convivência, para fins de adoção. O material colhido
ao longo dos acompanhamentos, que duraram cerca de oito

11
ADOÇÃO TARDIA Prefácio
Da família sonhada à família possível

1m·ses, foi analisado através do método de estudo de caso. O fazer outro "soneto". Voltei então ao texto inicial, pois essa
material dos acompanhamentos de um dos grupos, o de Ric, pesquisa tem que cumprir o seu destino. Como um bebê que
foi utilizado para o enfoque central da análise e o dos demais, está a ponto de nascer, se o seu parto for mais uma vez adiado,
usado como referência na discussão e conclusões do estudo, ele pode acabar morrendo, asfixiado pelo próprio" cordão
na medida em que auxiliavam na explicitação dos processos umbilical".
focalizados. A pesquisa, que resultou na dissertação defendida A metade dos capítulos, originalmente anexos da pesquisa
para a obtenção do mestrado, no final de 1994, aponta como exploratória, são relatos de experiências que trazem consigo
característicos do período denominado estágio de convivência: muito da emoção da chegada de um filho, da realização do
comportamento regressivo, agressividade, ritmo acelerado de desejo de ser mãe/pai, que vai além de uma necessidade de
desenvolvimento global da criança, enfrentamento do precon- perpetuar-se num outro, mas alcança, em vários momentos, a
ceito social. Atenta também para o esforço significativo da sua mais completa acepção.
criança para se identificar com os novos modelos parentais e De acordo com Amatuzzi 1, todo o material colhido com
relaciona a condição da mesma para estabelecer novos vínculos pessoas em relação é sempre uma preciosidade que deve ser
com a possibilidade de expressão e atendimento, pelos pais tratada com o mesmo cuidado que costuma ter um arqueólogo
adotivos, de suas necessidades emocionais mais primitivas. recolhendo peças pré-históricas num sítio recém-descoberto.
Conclui que são de fundamental importância a preparação e o Cada pedacinho de história é de fundamental importância, e
acompanhamento da família, específico à situação de crise que do cuidado e respeito do pesquisador depende a ecologia da
se instala a partir da formação do novo grupo familiar. trama de relações que se tecem.
Desde então, tenho me dedicado ao estudo e divulgação Este trabalho representa uma espécie de mapa comentado
do tema. Nas apresentações de trabalhos, que incluíam partes sobre o caminho que percorremos com cada grupo. Tentamos
da dissertação, em vários eventos científicos como congressos, simplificá-lo ao máximo, na medida de torná-lo acessível a
simpósios, palestras, tornaram-se crescentes os pedidos um maior número de leitores sem descaracterizá-lo. Poderá
de cópia do material exposto. Esta publicação, tão incenti- servir tanto de referência para outros profissionais que forem
vada por colegas e professores, foi muitas vezes adiada, por percorrer caminhos semelhantes, como de suporte ou enco-
tlll ·sL- es de diversas ordens, mas, principalmente, por consi- rajamento - mesmo atentando para todos os sinais de alerta
tlt-rnr que o texto, ao ser adaptado para este formato, deveria para pessoas com uma grande capacidade de amar e de serem
ro111cr reformulações e atualizações que novas experiências e amadas, como as que encontrei ao longo desta caminhada.
1pws1ionamentos havidos durante esse tempo impunham ao
11,111. s "emendas" começaram a ser tantas que seria melhor Em comunicação oral, referida com a permissão do autor.

15
11
Capítulo 1

Alguns passos pelas trilhas


da adoção
Alguns passos pelas trilhas da adoção

Apesar de toda a evolução científica do nosso tempo, alguns


temas permaneceram "esquecidos" nos meios científicos ou
são tratados de forma preconceituosa. A adoção é um desses,
o qual, mesmo sendo uma prática corrente na sociedade desde
remotos tempos, continua encoberto de silêncio, a alimentar
mitos e fantasmas.
A filiação adotiva é uma filiação legítima, com o mesmo
status jurídico da filiação natural, e uma realidade tanto social
quanto psicológica. A organização social se estrutura em parte
sobre a organização dos laços de parentesco e filiação, motivo
pelo qual tais laços são sempre estritamente definidos, codifi-
cados em toda e qualquer civilização (VERDIER, 1988, 1992).
Falar de adoção requer que se fale antes de abandono.
Este pode ser definido como a perda do direito da criança
de viver no seio de uma familia que a ame, reconheça, eduque e
proteja, direito este postulado universalmente (MARIN, 1990).
O abandono legal, que não está claramente definido no
Estatuto da Criança e do Adolescente, permite respeitar o
desejo dos pais de não assumir o filho (agilizando o processo),
oferecendo, ao mesmo tempo, possibilidade à criança de ter a
segunda melhor chance de construir relações estáveis que são
vitais para o seu desenvolvimento 1. O objetivo da colocação
familiar, ressaltam estes autores, é o de assegurar a cada criança
a integração em um lar e a possibilidade de manter, estabelecer
ou restabelecer laços afetivos entre a criança e figuras paren-
tais, podendo ser esta a solução, também apontada por Marin
(1990), que corresponde aos anseios de toda a sociedade, que

C f. Delaisi e Verdier, 1997; Verdier, 1988, 1992.

19

.
~ - - - - - -

··-.
ADDÇÃD TARDIA
Da família sonhada à família possível Alguns passos pelas trilhas da adoção

pmk oferecer as melhores condições e apoio necessários à como a nossa" 3. A sociedade não precisava se preocupar
criança para que ela se desenvolva. com eles, pois, além de não "vê-los", eram de responsabili-
Abordar este tema num país como o nosso é uma tarefa dade do Governo. Um destes "filhos do governo", conforme
muito difícil, quando, segundo palavras de Weber et ai. (1993), <lefine o pesquisador Roberto da Silva4, ultrapassando todas
"pode-se considerar que grande parte da população foi aban- as barreiras impostas pela sua condição de menor abando-
donada pelo Estado" (p. 12). As autoras apontam que, dos nado e institucionalizado, aponta que o modelo estatal de
32 milhões de crianças e adolescentes de até 17 anos que assistência à infância em situação de risco, estabelecido pelo
vivem hoje em situação de pobreza absoluta, boa parte delas regime FEB 'M-FUNABEM pós-64, constitui ainda hoje um
está em situação de abandono; que as péssimas condições de fator de reprodução da criminalidade, vitimizando crianças e
moradia, saúde e educação levam muitos dos pais a internarem adolescentes órfãos e abandonados que ficaram sob a tutela
os filhos em instituições, buscando assegurar-lhes alimentação do Estado.
e moradia.
Das crianças institucionalizadas, sujeitos no estudo das refe-
ridas autoras, apenas 5% delas eram órfãs bilaterais e em 20%
A adoção no contexto histórico
dos casos as instituições pesquisadas não tinham nenhuma Faço aqui uma breve passagem por fatos históricos
informação sobre o paradeiro dos pais. A destituição do pátrio bastante conhecidos só para situar a evolução da adoção legal
poder costuma ser um processo longo. Às vezes, a dificuldade no mundo ocidental. A prática da adoção sempre existiu nos
de localização dos pais faz com que muitas crianças fiquem países de direito romano que estabeleceram suas bases legais
"depositadas" em abrigos provisórios. Lá elas são, ainda na ideia de filiação conferida. por um certificado aos pais
segundo Weber et ai., "privadas de seu espaço subjetivo, dos adotivos, que anulava a filiação biológica e garantia, através
seus conteúdos individuais, da realidade dos vínculos afetivos. do adotado, a transmissão do nome de família 5. Entende-se
ão despojadas de experiências sociopsicológicas" (p. 13). aqui a adoção como: o direito concedido às famílias nobres
Ao perder totalmente seus vínculos familiares, transfor- de garantir uma descendência onde as noções de linhagem e
mavam-se em prisioneiros sociais 2, ou seja, tornavam-se patrimônio são predominantes na manutenção das dinastias
"p ·ssoas privadas de liberdade sem terem cometido nenhum pela transmissão de títulos nobiliárquicos. Tal procedimento,
delito a não ser, naturalmente, de serem pobres numa sociedade
Lima, 1996, p. 41.
Silva. Os filhos do Governo: A formação da identidade criminosa em crianças órfãs e
1 I'" ' s:111 dl' ( .osta. Família, base de tudo. ln: Ê possível mudar. Malheiros, São Paulo, abandonadas. Atica, São Paulo, 1997.
111111 , 1' 11 Cf. Lebovici, 1977, e Robert, 1989.

'ti 21
ADOÇÃO TARDIA Alguns passos pelas trilhas da adoção
Da família sonhada à família possível

llll • visava exclusivamente atender aos interesses do adotante, A adoção na religião, mitologia, tragédia
foi uma tendência que se manteve. grega e literatura infantil
Foi desta forma que a linha imperial que parte de Otávio,
. ~ quali~ade de adotado é encontrada em muitos dos prin-
"Augusto", adotado por Júlio César, reinou por mais de c1pa1s hero1s, tanto na religião como na tragédia e mitologia
um século no império romano através de seus descendentes greco-romana, ou, ainda, na literatura infantil.
adotivos Tibério, Calígula, Nero, Trajano, os Antônios e Marco
Moisés, o "filho das águas", escolhido por Deus para libertar
Aurélio (ROBERT, 1989).
o povo hebreu, adotado pela filha do faraó, foi criado como
Assim, também, Napoleão Bonaparte, cuja esposa Josefina membro da corte egípcia. Tal condição de membro da corte
havia se tornado estéril procurou garantir, através do Código adquirida através da adoção, facilitou sua missão de retirar 0:
Civil, todos os direitos aos filhos adotivos, inclusive os de escrav~s heb~eus do Egito rumo à "terra prometida" (Êxodo).
sucessão. Mas a lei resultava bastante restritiva, uma vez que Assurma, ass1m, e definitivamente, sua identidade hebraica.
só permitia a adoção de pessoas maiores, isto é, pessoas acima
Hércules (ou Herácles), filho de Zeus Qúpiter) com
de vinte e três anos, que era a idade fixada, naquela época, para
Alcmena, foi abandonado por sua mãe, temente dos ciúmes de
a maioridade. Outras adoções eram feitas, então, através de
Hera, esposa de Zeus. Este, tentando dar à união com Alcmena
contratos amigáveis entre as famílias naturais e adotivas.
o signo da legitimidade, fez o menino sugar o leite imortal da
Já os países de direito anglo-saxão passaram a usar a adoção esposa Hera, do qual Hércules obtém a força que lhe permite
legal após a Primeira Grande Guerra, a fim de proverem de realizar os doze trabalhos (BRANDÃO, 1987).
pais os numerosos órfãos da mesma, julgados pela sociedade
Os gêmeos abandonados Rômulo e Remo, fundadores
como filhos de heróis.
de Roma, segundo o mito (COMMELIN, 1967), depois de
No país, a prática denominada "adoção à brasileira" poderia abandonados no Tibre, foram amamentados por uma loba e
se constituir num importante elo do encadeamento histórico posteriormente, criados por pastores. '
da adoção pela força, persistência e peso numérico que repre-
Através de Sófocles, a tragédia grega apresenta a história
senta. Mas, devido ao fato de ocorrer às margens da lei e das
do mais célebre abandonado-adotado estudado na psicanálise.
L'Statísticas, apresenta barreiras ao pesquisador pela ausência
Estamos falando de Édipo, que, em função das implicações
d · "sistematização e de visão de profundidade" na recupe-
sofridas na busca de sua origem, mereceu uma leitura estru-
ração da história dos protagonista6.
turada de Freud acerca da tragédia incestuosa vivida pelo
personagem (BRANDÃO, 1987).

< 1 < 11 1.,, "/'· 111., p. 27.

1 1
23
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Alguns passos pelas trilhas da adoção

() herói "Super-Homem", da literatura infantojuvenil e com A adoção hoje


ampla difusão no cinema e televisão, foi abandonado pelos
Enquanto na adoção clássica procurava-se garantir a des-
pais biológicos, que desejavam salvá-lo da destruição cósmica
cendência para casais sem filhos, a adoção moderna enfatiza
que seu planeta, Kripton, estava prestes a sofrer. Enviado ao
a solução para a crise da criança abandonada, usando como
planeta Terra, ele é encontrado por um casal estéril, que o
fundamento: possibilitar "uma família para uma criança que
adota. À medida que se desenvolve, destaca-se pela força física
não a tem" (PIL01TI, 1988, p. 23). Segundo o autor, esta
e pelo dom de voar. Na adolescência perde o pai adotivo e
orientação está pautada por três aspectos básicos, que são:
retoma às suas origens, recebendo mensagens e determinações
de seu planeta. Passa a viver, então, com dupla identidade: o • Aspectos psicossociais - enfatiza a relevância da conside-
confuso e tímido jornalista Clark e o herói Super-Homem que ração das características e necessidades dos atores do
combate na defesa dos humanos em perigo. processo (a criança, seus pais biológicos e adotivos).
Alguns autores 7 levantaram entre seus pacientes adotivos a • Aspectosjurídicos - salienta as vantagens da adoção plena
preferência pelo Super-Homem como modelo de identificação. referente aos requisitos, efeitos e procedimentos legais
Tal figura oferece-lhes a possibilidade de compartilhamento que envolve.
da situação básica de abandono e perigo de morte e apelar
• Aspectos institucionais e de procedimento - propõe como
para soluções maníacas e onipotentes de tratar a ansiedade.
necessária a assessoria institucional e profissional, mul-
Garma et aL (1985) destacam que: "A saga do Super-Homem
tidisciplinar, como forma de garantir aos autores do
não é uma versão a mais do mito do nascimento do herói
processo que os procedimentos utilizados cumpram
com correlatos na novela familiar senão que traduz a dinâmica
com todas as exigências técnicas e éticas que a situação
psicológica que caracteriza a situação de adoção" (p. 128).
demanda. Assinala, também, as múltiplas vantagens
Também nos desenhos animados, principalmente nas
oferecidas pelos centros ou agências de adoção, espe-
produções de Walt Disney, encontramos personagens que, uma
cialmente as concernentes à proteção dos interesses e
vez perdendo seus pais, encontram em figuras bem diferentes
do bem-estar do adotado.
de si o cuidado e o apoio necessários para se desenvolverem
cm família, como o rei Leão, que, adotado por um suricate do
dcsert , Timão, e um porco selvagem, Pumba, pôde desen- A adoção e a lei
vo lver plenamente as suas potencialidades.
No Brasil, a adoção existiu, principalmente, marginal aos
processos legais e escapando às estatísticas. Segundo Costa
<, 11111.1 ri,,!. (1985); Videla e Maldonado (1981). (1988), a prática, denominada de "Adoção à brasileira", ocorria

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Alguns passos pelas tr ilhas da ado ção

cm 90% das adoções que se concretizavam no país até 1988, idade mínima do adotante e a diferença de idade entre esse e
ou seja: pessoas de qualquer estado civil registravam como o adotado, respectivamente. Passou a exigir o consentimento
próprias, legítimas, os filhos de outros. Os argumentos para explícito do adotado maior ou do seu representante legal, caso
tal prática estavam, geralmente, apoiados no excesso de buro- fosse o mesmo menor ou incapaz. Estabeleceu, por outro lado,
cracia imposto pela legislação vigente até 1989. que os casais só poderiam adotar após cinco anos de casamento.
No país a adoção entrou para a nossa legislação com as Outros avanços no instituto da adoção ocorreram na lei
mesmas características do direito português, que, por sua vez, 4.655, de junho de 1965, com a criação da legitimação adotiva.
inspirava-se no Direito Romano 8• No artigo 217 da "consoli- D estacam-se, dentre eles, a possibilidade de se permitir a
dação" do Código Civil de 1917, é abordado o tema adoção da legitimação adotiva de crianças maiores de sete anos que já
seguinte forma: estivessem sob a guarda dos adotantes, antes de completarem
essa idade; a dispensa do prazo de cinco anos de casamento,
[...] aos juízes de primeira instância compete desde que provada, por perícia médica, a esterilidade de um
conceder cartas de legitimação aos filhos sacrí- dos cônjuges; a irrevogabilidade da legitimação; o rompimento
legos, adulterinos e incestuosos e confirmar as da relação de parentesco com a família de origem e o direito de
adoções procedendo às necessárias informa- modificação do prenome e do uso do nome da familia adotiva.
ções e audiências dos interessados, havendo-os. Por outro lado, esta lei excluía o legitimado adotivo do direito
à sucessão, caso viesse a concorrer com o filho legítimo já
Já o artigo 368 estabelecia que "só os maiores de cinquenta havido antes da adoção.
anos, sem prole legítima ou legitimada" poderiam adotar. O Com o Código de Menores (lei 6.697 /1979), foi introdu-
artigo seguinte, que estipula uma diferença de dezoito anos zida a adoção plena em substituição à legitimação adotiva,
entre o adotado e o adotante, leva-nos a concluir que pode- expressamente revogada, admitindo, também, a adoção
riam ser adotadas, pelo Código Civil de 1917, pessoas maiores simples, regulada pelo Código Civil. O Código de menores era
de trinta e dois anos. destinado à proteção dos menores de até dezoito anos que
Os dispositivos da lei de 1957 que alterava o Código Civil se encontrassem em "situação irregular". Sob esse mesmo
trouxeram abrandamentos na le~ eliminando a exigência de rótulo foram agrupados, segundo aponta Costa9 , crianças e
ausência de prole legítima por parte do adotante, diminuindo adolescentes: (1) desprovidos de meios para satisfação de suas
de inquenta para trinta anos e de dezoito para dezesseis a necessidades básicas (carentes); (2) privados de qualquer tipo

( " ,111;11 0 . A adoç,io 110 Brasil 11a atualidade, Tese (Doutorado) Mackenzie, São Paulo,
1'1',C, Costa. Família, base de tudo. Jn: É possível mudar. Malheiros, São Paulo, 1993.

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Alguns passos pelas trilhas da adoção

de assistência familiar (abandonados); e (3) em conflito com a direitos especiais em virtude de: ainda não terem acesso ao
lei em razão de cometimento de delito (infratores). conhecimento pleno de seus direitos e nem possuírem condi-
A Lei que disciplina a adoção de crianças e de adolescentes ções de defendê-los, não contarem com meios para a satisfação
é a lei 8.069/90, promulgada em 13 de julho de 1990, do Esta- de suas necessidades básicas e estarem em pleno desenvolvi-
tuto da Criança e do Adolescente - CA. A concepção que mento físico, emocional, cognitivo e sociocultural, que lhes
sustenta o ECA é a Doutrina de Proteção Integral, defendida faculta a primazia no recebimento de proteção e socorro em
pela ONU com base na Declaração Universal dos Direitos qualquer circunstância.
da Criança, que afuma o valor intrínseco da criança como ser Como exemplo de facilitação introduzida pelo ECA, o Art.
humano. 42 estabelece que qualquer pessoa maior de 21 anos, inde-
A elaboração da lei foi coordenada pelo Fórum Nacional pendente de estado civil, pode adotar, tendo como restrição
de Entidades Não Governamentais de Defesa das Crianças e apenas a diferença mínima de 16 anos entre o adotante e o
Adolescentes. De outra parte, o Fórum Nacional de Dirigentes adotado e o grau de parentesco (não podem adotar irmãos e
Estaduais e Políticas Públicas para a Criança e Adolescente avós do adotando). Deve o postulante, porém, submeter-se
(FONACRlAD) e a Frente Parlamentar pelos Direitos da a um parecer técnico e/ ou do juiz, que deferirá o seu pedido
Criança, com a articulação de lideranças, imprimiram ao movi- de candidatura para a adoção de uma criança ou adolescente.
mento uma dimensão consensual situada acima das questões Está previsto, também, um trabalho sistemático de preparação
partidárias 1°. O resultado de toda essa mobilização foi uma lei e acompanhamento por técnicos que orientem a criança e
que é considerada de vanguarda no panorama internacional. familia em todo o processo de adoção.
As mudanças introduzidas pelo ECA colocam a sociedade Mesmo que o Ministério Público e a Magistratura estejam
brasileira diante de um novo paradigma em relação à ótica e se reorientando nesse sentido, observa-se a carência no meio
aos modos de ação quando se trata de Infância e Juventude. científico de um trabalho mais sistematizado de acompanha-
A Carta Constitucional, tanto como o Estatuto, traz avanços mento das mães/ familias que abandonam seus filhos, crianças
fundamentais quando passa a considerar a criança e o adoles- abandonadas e das familias ou indivíduos postulantes à adoção
cente: 1) sujeitos de direito; 2) pessoas em condições peculiares (ver FREIRE, 1991).
de desenvolvimento; e 3) de prioridade absoluta. Isto significa
tJll • já não poderão mais ser tratados como objetos passivos da A prática da adoção na nossa comunidade
int ·rvcnção da familia, da comunidade e do Estado; adquiriram Na região de Campinas, a adoção de crianças maiores é,
também, dificultada pela escassez de postulantes à prática,
I li
< t < "'' ·' · 1991; Sêdc, 1993; Pereira, 1996. inscritos e avaliados como aptos. Mais difícil ainda se torna
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à fa mília possível Alg uns passos pelas trilhas da adoção

quando se trata de grupos de irmãos, de crianças não brancas a sociedade possa colocar com os preconceitos que tendem a
e/ ou com algum tipo de deficiência. Enquanto realizava a segregar os diferentes e as minorias. Quando a criança, mesmo
pesquisa no juizado, tive contato com processos de adoção maior de cinco anos, passa a integrar uma família, incorpora
de três grupos de irmãos e de duas meninas maiores de seis todos os costumes e a cultura familiar diferentes dos seus,
anos que foram colocadas em famílias em adoção interna- como na maioria dos casos de adoção internacional. Por
cional, por não terem sido encontrados, nos cadastros dos outro lado, é preciso que se tenham alternativas para que a
juizados, brasileiros dispostos a adotá-las. Por outro lado, a adoção internacional deixe de aparecer, na maioria dos casos,
adoção internacional tornou-se bastante visada pela rrúdia, como única via possível de colocação da criança maior de seis
restritiva , em virtude das alarmantes denúncias do uso de anos, abandonada e institucionalizada, em ambiente familiar.
crianças para "tráfico de órgãos", não esclarecidas na época 11 . A maior aceitação de europeus e americanos para as adoções
O relatório da Agência de Divulgação dos Estados Unidos, tardias e inter-raciais é resultado de um trabalho de longo
submetido à ONU 12, é enfático ao considerar tais notícias, tempo que vêm realizando as agências oficiais de adoção, tanto
boatos montados sem nenhum interesse de esclarecimento, estatais quanto particulares, em função também da escassez de
mostrando que todas as matérias que pretendiam esclarecer bebês disponíveis para adoção nesses países.
ou provar a ausência de veracidade das notícias não tiveram a Aqui na região, até há bem pouco tempo, grupos infor-
mesma ênfase ou nem chegaram a ser mostradas nos mesmos mais de pais adotivos costumavam orientar as pessoas que
veículos que apresentaram as rumorosas denúncias. Aponta, queriam adotar a fazerem cadastro em várias comarcas dos
também, que o número de adoções na cidade de Recife, por estados do Paraná e Santa Catarina. Este último aparece como
exemplo, caiu durante o primeiro semestre do ano de 93 para principal fornecedor de crianças para adoções que procuram
o de 1994, de 300 para 36, o que o relatório considera decor- imitar a biologia, ou seja: o bebê (com poucos dias ou horas
rente dessas falsas denúncias. de vida) deve ter as mesmas características físicas do casal.
O direito universal da criança de crescer e se desenvolver Nestes Estados do sul do país a probabilidade de se conseguir
no seio de uma família deve ser assegurado independente um bebê louro de olhos claros é muito maior, o que explica a
da nacionalidade, cor, etnia do(s) possível(eis) pai(s), pois a preferência maciça de postulantes à adoção de outros Estados,
criança, recebendo amor e respeito, irá superar as barreiras que segundo aponta Costa (1988). A lei estadual que determina
a exclusividade de cadastro do postulante apenas na comarca
11 Cf. veiculado no jornal Folha de S. Pedro de 3/8/1994, caderno 3, e revista IstoÉ de
de seu domicilio, sem que os juizados, principalmente os do
17/8/ 1994, p. 42.
1' Relatório submetido ao relator especial das Nações Unidas sobre o comércio de interior, estejam informatizados (o que agilizaria o acesso às
, nanças, prostituição e pornografia infantis publicado em 1994 com o tírulo: O rumor crianças disponíveis e aos cadastrados), restringiu ainda mais
w/Jn· , , tr,íjiro de órgãos i11Ja11tis: uma "lenda urbana" mo derna.

\() 31
ADOÇÃO TARDIA Alguns passos pelas trilhas da adoção
Da família sonhada à família possível

adoção de recém-nascidos, podem ser mais curtos, variando


a possibilidade de adoções de recém-nascidos brancos e do
desde a dispensa do estágio em algumas varas até cerca de seis
sexo feminino (preferência de mais de 90% dos inscritos em
meses em outras varas da região.
um grupo de pais pesquisado 13), pelo tempo que leva (além de
dois anos, em média) para serem chamados.
A colocação de crianças acima de três anos na Vara onde Adoção e pesquisas
foi realizada a pesquisa é feita pelas psicólogas, que recorrem
Considerando a natureza da adoção, vários autores apontam
à adoção internacional quando não encontram no país pessoas
uma estreita relação com a esterilidade dos adotantes 14, que ,
dispostas a adotá-las, por serem consideradas "idosas", bem
segundo Lani-Bayle (1996), tende a ser negada, mesmo por
como as não brancas, as com algum tipo de deficiência e as
casais que se submeteram a tratamento de fertilidade por
integrantes de grupos de irmãos. Para o processo de cadastro
vários anos. Isso ocorre, também, pela dificuldade de assumir
dos postulantes, a visita domiciliar se tornou imprescindível,
o fracasso diante da sociedade, que tanto valoriza a procriação.
por possibilitar aos técnicos uma visão do cotidiano dos
Para estes, o filho adotivo torna-se, em última análise, uma
mesmos e evitar a dissimulação, principalmente em relação
garantia de descendência que os livra da angústia da finitude,
às condições econômicas, que os requerentes imaginavam ser
da morte. A motivação para a adoção aparece, na maioria
o critério, por excelência, de aprovação. Também a entrevista
desses casos, como uma substituição, ou seja, o filho adotivo
psicológica passou a ser mais detalhada com a participação de
e buscado para ocupar o lugar do filho biológico, ou repa-
membros da família em momentos distintos e tendo como
, ação da culpa pela esterilidade, e espera-se que ele tenha as
objetivos: a) coleta de dados sobre aspectos básicos como
1 aracterísticas do casal. Os mesmos autores apontam também
motivação (manifesta e latente), dinâmica familiar, papel
reservado no grupo para a criança, disponibilidade afetiva e que para outro pequeno grupo, constituído principalmente de
< asais com filhos biológicos, a adoção caracteriza-se ainda pela
expectativas em geral; b) orientação sobre dúvidas, princi-
possibilidade de satisfação de seu desejo humanitário. No caso,
palmente de ordem jurídica. Concluídas as entrevistas, os
relatórios são encaminhados para manifestação do promotor
.,s restrições na hora da escolha do filho adotivo resultam bem
111 ·nores.
e, posteriormente, para deferimento ou não do cadastro do
adotante pelo juiz. A duração do estágio de convivência que
antecede a adoção tardia varia em torno de um ano, podendo
chegar até a dois anos em algumas varas. Já nos processos de
,. Cf. Caramuru, 1990; Costa, 1988; Garma et aL, 1985; Hartman e Laird, 1990; Le-
bovici, 1977; Lisondo, 1984; Marin, 1990; Pilotti, 1988; Robert, 1989; Santos, 1987;
11 ( f. Vargas. Perfil do adota11te de 11n,a associação de pais adotivos da região de Ca111pi11as, 1996, Ozoux-Teffaine; 1987; Videla e Maldonado, 1983; Woiler, 1987; Zirneo, 1991.
rd,1tcmo de pesquisa.

33
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível

Alguns passos pelas trilhas da adoção

m pesquisa que realizamos 15 sobre opiniões e motivações


acerca do tema entre pessoas com nível superior completo e .,dotiva se constitui num dos principais fantasmas causados
outros níveis de escolaridade, foram evidenciados, em ambos pda falta de esclarecimentos básicos às famílias adotivas
os grupos, a valorização positiva e o reconhecimento da '
segundo nos apontam, também, vários outros autores.
relevância social da prática, seguidos da relevância pessoal e
Apesar de nossa cultura ter como pressuposto a visão de
explicitações quanto a impedimentos particulares para sua
,1uc a educação é tão poderosa quanto a natureza, o tema
concretização. Mesmo não havendo uma correlação entre as
do poder da biologia e da hereditariedade é frequentemente
respostas de cada grupo, os interesses pessoais são prepon-
l"ncontrado entre pais adotivos. O temor à hereditariedade
derantes, tanto nas motivações favoráveis para adotar uma
patológica da criança adotiva se constitui num dos principais
criança quanto nas motivações contrárias. Estas últimas, mais
fantasmas da adoção. De acordo com Hartman e Laird (1990),
cotadas em ambos os grupos, denotam a pouca disponibili-
llluitos pais chegam a sentir que, não importa o que eles
dade das pessoas para a adoção, apesar de haver unanimidade
l.1c,;am, o "contágio" da "semente ruim" irá modelar o caráter
em relação a sua relevância social. O grupo com nível superior
1 n1 personalidade de seu filho adotivo.
alegou um maior número de impedimentos, como situação
No caso de crianças mais velhas, é acrescido o medo da
financeira, falta de espaço, e disponibilidade de tempo para
"sombra do passado", ou seja, de que a criança nunca mais
adotar uma criança. Tal divergência de interesses sociais e
t· recuperará das experiências que teve antes da adoção, não
pessoais pode estar refletindo a ambivalência em relação à
1111portando o quanto de cuidado e amor elas recebam e que a
prática da adoção referida na literatura.
l"ducação das mesmas sempre ficará prejudicada.
Usando como referência o estudo do parentesco, a relação
O perfil dos pais adotivos de uma pesquisa de Weber (1996)
deste com a biologia e uma abordagem teórica mais ampla
1rvcla que 91 % eram casados, com idade até 40 anos, e 55%
sobre natureza e cultura, Costa (1988) analisa as representações
1w> possuíam filhos naturais. O perfil da criança adotada pelos
e práticas da adoção no universo das camadas médias brasi-
rntrevistados se equivale ao conhecido perfil das crianças
leiras, focalizando a intermediação, o segredo e biologização,
1 hamadas "adotáveis": uma criança saudável (76% dos bebês
bem como as crenças e teorias que sustentam os pontos mais
11,10 apresentavam problemas de saúde), do sexo feminino
controvertidos na sua prática. Tais pontos estão evidenciados
(<i0%), recém-nascida (69% eram bebês com até 3 meses de
no preconceito social e na estigmatização do adotivo, na cons-
1da<le) e de pele clara (64% dos bebês eram brancos). Ressalta,
trução de sua identidade social e nas relações geradas nesse
111 ir outro lado, a existência da prática de adoções não "conven-
contexto. O temor à hereditariedade patológica da criança
1 1onais": adoções tardias (16,66% foram adotados com mais

Cf. Vargas, Gatti, Campos, 1993. , k 2 anos); inter-raciais (36% dos adotados eram de cor parda
1 n, negra); de crianças deficientes e com problemas de saúde

14
35
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Alguns passos pelas trilhas da adoção

(23,15%); e de adoções por parte de pessoas que já tinham 111tes do fato (adoção), suas capacidades para a "paternagern".
filhos naturais (45%). 1lartman e Laird (1990), por exemplo, atentam para a possi-
Muitas famílias adotivas experimentam fortes sentimentos 1,didade de casais inférteis que experienciam um sentifPento
de empatia ou pena, particularmente em relação à mãe bioló- d1· fracasso em sua incapacidade de procriar terem, por esta
gica pela perda da criança que essa sofreu. Sentem gratidão r.,zào, a necessidade de provar que eles podem ser pais bem
e, algumas vezes, culpa por terem se beneficiado através do 1!Cedidos. Sobre isso, Marin (1990) conclui que:
infortúnio de outra pessoa. Entretanto, devido à dificuldade
em lidar com estes sentimentos dolorosos, ou para justificar [...] quando a adoção está a serviço de e conder

terem a criança, os pais adotivos podem caracterizar os pais a carência de ser, tanto de pais, quanto de filhos,

biológicos muito negativamente. funcionando para manter a onipotência de se


julgar capaz de garantir a felicidade plena ao
Videla e Maldonado (1981) assinalam que quase todos os
outro, está sujeita a um provável fracasso. (p. 5)
pais adotivos têm a fantasia de que realizaram algo delitivo
e, em consequência, alimentam culpas e temem represálias,
Segundo Freire (1991), é pela ausência de uma cultura mais
como perder a criança supostamente "roubada"; que a criança
li-senvolvida da adoção, mais adequada à realidade de nossas
resolva retomar para os pais biológicos; que a sociedade lhes
11anças abandonadas, que muitas experiências não são mais
censure pela ausência do processo biológico da gestação ou
111 ,n resolvidas, principalmente pela falta de acompanhamento
que o aspecto filantrópico seja exaltado. Podemos acrescentar
a esta lista, com base em Marin (1990), o temor dos pais de 11 1 nico especializado.
serem confrontados mais uma vez com seu fracasso pessoal, ( )bserva-se uma certa ênfase nas dificuldades de adota-
ao serem questionados pelo filho adolescente quanto à sua i, ,s pelo maior volume de publicações em relação a outros
origem diante das dificuldades e dúvidas típicas da fase. 11loques do tema. Vários estudos 16 focalizam problemas com
11ln1ivos, como dificuldades de aprendizagem, sociopatias,
Muito conectada com a fantasia do rapto e com a "culpa"
li I úrbios psicomotores e psiquiátricos.Já a maioria dos auto-
subjacente está a tendência dos pais adotivos de sentirem
latinos consultados atenta para a carência de publicações
que devem ser pais perfeitos, o que acaba sendo exacerbado
11 nca da adoção em nosso meio, o que, segundo Caramuru
pelo processo de estudo durante a etapa do cadastramento,
1 l 1J<JO), pode estar refletindo os preconceitos e tabus que a
independentemente do cuidado e respeito com que seja reali-
zado. Tal situação tende a colocar expectativas de que os pais
,1dotivos, de alguma forma, devam ser melhores do que os <f. Bohman et ai., 1987; Humphrey e Humphrey, 1989; Feder, 1974; Haja! e Rosem-
hcrg, 1991 ; Meller, 1987; Piccini, 1986; Rushton, 1989; Verhulst, 1991; Wieder, 1977,
pais llll · criam seus filhos biológicos, pois devem demonstrar, 1')95; Woiler, 1987.

H,
Alguns passos pelas trilhas da adoção
ADDCÃD TARDIA
Da família sonhada à família possível

Caramuru (1990), ao estudar os processos psicológicos da


sociedade mantém sobre o exercício não biológico da mater- 111ae e do filho adotivo, constata que a experiência é complexa,
nidade/ paternidade. Para Giberti e De Gore (1991), além do mobiliza intensas emoções, às vezes carregadas de ambiva-
silêncio significativo que envolve o tema, observa-se a falta de lrncia, concluindo que a relação com um "filho do desejo"
formulações teóricas em trabalhos apresentados que permi- pode-se tornar uma "genuína lição de vida" para seus prota-
tam abrir uma discussão técnica a respeito. V' mistas, uma vez que as intensas vivências emocionais sejam
1 laboradas.
A pesquisa que focalize o caráter preventivo da adoção é
ainda inexpressiva nos países latino-americanos. Penso que A verificação de diferenças entre os relacionamentos tanto
outros fatores, além da questão do preconceito e da falta de ,1 iais como familiares de crianças adotivas anteriormente
uma cultura mais desenvolvida da adoção, concorram para 111stitucionalizadas em relação a um grupo de crianças que
esta carência. A dificuldade de se fazer pesquisa, a falta de l'rnpre estiveram com seus pais biológicos foi realizada em
uma cultura de pesquisa nessa área ainda nova do conheci- 11.1balho de acompanhamento longitudinal, em duas etapas,
mento científico, o pouco espaço oferecido pelas instituições piando as crianças estavam com 8 e 16 anos, por Hodges e
legais para que os sujeitos e os processos de adoção sejam l'izard. Na segunda etapa (1989), que resultou no artigo ao
estudados num setting diverso do consultório, quando, então, , 1wtl tivemos acesso, os autores concluíram que há evidência
já se tornaram "pacientes", são alguns exemplos da comple- , ll' que as crianças que em seus primeiros anos de vida foram
xidade da situação, de tabus que ultrapassam a fronteira do privadas de vínculos parentais duradouros podem vir a
tema adoção. A seguir, destaco mais algumas conclusões de , ,instruí-los mais tarde, que tais vínculos não surgem automa-
pesquisas com famílias adotivas. 111 amente, senão que dependem do quanto eles são nutridos
pdos pais adotivos. Entretanto, a despeito destes vínculos,
Santos (1987) fez um estudo comparativo entre um grupo
d •umas diferenças e dificuldades nos relacionamentos sociais
de pais-filhos adotivos e outro de pais-filhos biológicos para
,10 encontradas após 12 anos da colocação familiar, que não
avaliar alguns aspectos da interação mãe-filho e pai-filho como
, tão relacionadas com o tipo de família, mas parecem ter sua
cooperação, proximidade, afetividade, egocentrismo, em
, ,, 1gem na experiência institucional. Concluem os autores que
ambos os grupos, não encontrando diferenças significativas
, 1a dificuldades, que afetam tanto o relacionamento com
entre eles quanto aos aspectos citados. A autora encontrou, no
ulultos de fora da família como com os pares, poderão ter
entanto, uma diferença de interação entre mãe-filho e pai-filho
1111plicações para os relacionamentos futuros destes adoles-
que persistiu em ambos os grupos e conclui que: se a adoção
' l'ntes. Não sabem, entretanto, se tais diferenças seriam
for adequadamente gestada, as possibilidades que terão os
1ll'rmanentes.
filho e os pais adotivos de serem felizes serão, praticamente,
as m 'Smas que têm os pais e filhos biológicos (p. 113).
39
38
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

De acordo com Berthoud (1992), que realizou uma


pesquisa sobre o comportamento de apego em crianças
adotivas, as possibilidades de a criança adotiva estabelecer um
apego seguro pode ser a mesma encontrada em filhos naturais.
Baseando-se nos pressupostos básicos da teoria do apego de
Jonh Bowlby e utilizando o teste situacional de Mary Ains-
t
worth, a referida pesquisadora, em sua dissertação de mestrado,
relacionou o padrão de apego desenvolvido pelas crianças
adotivas com três variáveis: a) idade e condições de vida da
criança anteriores à adoção; b) motivos que levaram os pais à
adoção; e c) condições de vida propiciadas à criança pelos pais
adotivos, especialmente o "padrão de cuidados maternos" (p.
73) . A autora concluiu que tanto a idade da criança como a
história de vida que antecede a sua adoção são fatores intima- apítulo 2
mente relacionados" e que têm influência decisiva no sucesso
da adoção. Aponta também como fundamental a capacidade
da mãe adotiva, principalmente, para desenvolver relações
afetivas de ótima qualidade, apesar das condições críticas da adoção tardia
fase de adaptação.
Aadoção tardia

A adoção é considerada tardia quando a criança a ser adotada


11ver mais de dois anos 1• Tais crianças ou foram abandonadas
t.mliamente pelas mães, que, por circunstâncias pessoais ou
e ,cioeconômicas, não puderam continuar se encarregando

ddas ou foram retiradas dos pais pelo poder judiciário, que os


pilgou incapazes de mantê-las em seu pátrio poder, ou, ainda,
te ,ram" esquecidas" pelo Estado desde muito pequenas em
"e ,rfanatos" que, na realidade, abrigam uma minoria de órfãos,

e >mo já levantado anteriormente.

ão foi encontrado nenhum trabalho enfocando adoção


1 mlia no país. Nos trabalhos de algumas autoras francesas 2,

11 mos relatos de experiências bem sucedidas que contaram,

dcm de uma orientação técnica adequada, com a inaba-


11\ d confiança dos pais adotivos em superar, com êxito, os
1111unentos críticos da relação que se estabelecia. Mostram,
e ,liretudo, que é possível, para milhares de crianças abando-

" idas, consideradas "idosas" para a adoção, reconstruírem


11,1 identidade a partir de novas figuras parentais, que lhes

, ,lt-reçam "base segura" (BOWLBY, 1973), imprescindível


11,1 ta o desenvolvimento de suas potencialidades.

Para Bowlby (1976, 1979), uma criança retirada judicial-


11w11te de sua família sofre profundamente a ruptura e não está
l II tlmente pronta para aceitar outros pais, para refazer laços
111'11vos, e refere que várias pesquisas apontaram, num grande
11111nero de casos, que as crianças que foram

e t P1loti, 1988.
<,1,111gc, 1990; Montel-Girod, 1992; Ozoux-Teffaine, 1987 e Robert, 1989.

43
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível A adoção tardia

[...] passadas de uma figura materna para outra recém-nascido e vive uma espec1e de seguido nascimento,
durante seu terceiro e guarto anos de vida a partir do qual ela pode percorrer de nove seu desenvolvi-
desenvolveram personalidades muito antisso- mento e até resolver melhor as fases da coistituição de seu
ciais e tornaram-se incapazes de estabelecerem ego. É importante para a relação com os fais adotivos que
relações satisfatórias com outras pessoas. (1976, estes possam ver, segundo Ozoux-Teffaine (1987), a criança
p. 52) desejando renascer deles.
Os momentos de regressão variam, segunlo Robert (1989),
Ao analisar o padrão de apego em crianças adotivas, tanto na forma de expressão como na inten.idade, sendo que
Berthoud (1992) aponta que a criança com idade acima de jamais aparecem da mesma maneira em dlaS crianças dife-
seis meses, época crítica em que o comportamento de apego rentes. Irei tratar, a seguir, de um padrão dedesenvolvimento
costuma se estabelecer, já estaria numa ''situação de risco" em geral que, para ser usado na leitura e entendimento de um
relação ao desenvolvimento do apego seguro. Enquanto o processo específico de adoção tardia, deven sofrer, seguindo
bebê, na adoção precoce, tem à sua disposição a mãe adotiva a autora referida, adequação ao caso em puticular. Trata-se
para eleger como primeira/principal figura de apego, a criança de um modelo de processo de desenvolvimmto proposto por
mais velha irá depender de inúmeros outros fatores para o ,\nzieu (1985) e usado por Ozoux-Teffaire (1987), do qual
sucesso dessa "tarefa", como o tipo de experiência anterior .,presentaremos uma síntese.
com a figura materna. Tenho observado que, se a criança A fase mais regressiva do processo de adoção tardia é a
conseguiu estabelecer vínculos precoces positivos, internalizar tantasia de reinclusão no corpo maternal. "fantasma intrau-
uma figura de mãe boa, mais fácil será a construção de novos 1nino" leva a criança a buscar, através de llt'l contato corporal
vínculos significativos. A criança que sofreu ruptura com as pde a pele, boca a boca, a realização do de;ejo de se reintro-
figuras às quais esteve vinculada pode reconstruir o seu eu duzir no corpo materno, de voltar a viver n:t barriga da mãe
primário a partir das novas representações dela própria, das ( 110 caso, de habitá-la pela primeira vez). relato de algumas
quais participa, fundamentalmente, a interiorização das novas 111acs cujos filhos recém adotados verbalizaram querer "morar
imagens parentais. 11. 1 sua barriga", "ter nascido da sua barriga", "entrar na

Ozoux-Teffaine (1987) e Robert (1989) referem que o 11a barriga pra sair de novo", é um exelTlllo dessa fase que
processo de adoção dos pais pela criança maior de três anos p11demos colher ao longo deste nosso trabalho. O desejo
só se completa quando esta consegue retomar seu desenvol- ill' renascer da barriga desta mãe é um ponto importante na
vimento. A criança adotada tardiamente vive um processo 11k 11 1ificação do processo de filiação que 1 criança começa a
psíquico de regressão. Ela se reporta ao estado imaginário de .1.1 bclecer com as novas figuras parentais.

41 45
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

A adoção tardia

A segunda fase, denominada o "fantasma da pele comum",


pode ser traduzida como uma busca da criança de identificação psicológico para resistir aos mesmos 4 . Ozoux-Teffaine (1987)
física com os pais adotivos. Aparece em afirmativas como: refere ainda que o temor de um outro abandono concorre
"Mamãe, eu sou como você", ou "sou igual a você". É a partir também para o desencadeamento de atitudes hostis para
da manifestação dessa fase que a criança passa a se identificar com os pais adotivos, numa tentativa de proteger-se de mais
psíquicamente com a mãe. Passa, também, a apresentar ideias uma frustração. Isso pode ser observado não só nessa fase,
de apropriação do mundo, sentimentos onipotentes de invul- mas em todas as outras do processo de vinculação. A criança
nerabilidade, de heroísmos. Estes últimos são manifestados testa constantemente o vínculo e suas atitudes hostis podem
com o fim de alcançar uma imagem positiva de si e suficiente- significar, também, uma pergunta como: "até que ponto eu
mente valorizada no ambiente onde passa a conviver. sou querido", ou "até onde eles vão me aguentar". Esta fase
Na terceira fase, aparece um distanciamento. É a fase da pode se revelar muito destrutiva e desconcertante para os pais
"retaliação da pele comum". A criança manifesta agressividade ,1dotivos, se estes não estiverem preparados para lidar com as
e pode reagir, tomada de cólera, a algum tipo de controle dos l eindutas que a caracterizam.

pais com afirmativas do tipo: "vocês não são meus pais", "não A quarta fase do processo de adoção tardia começa a partir
nasci de vocês". da restauração do narcisismo infantil secundário5, que oferece
A perda do objeto de vinculação-identificação com a l'lt-mentos para a criança construir o seu ideal do ego 6. É em
primeira figura materna pode levar à desestruturação do torno desta construção que a criança adotiva vive (refazendo)
mundo interno da criança, que passa a necessitar a introjeção e, "romance familiar". Para a criança adotiva, tal fantasia tem
de novos objetos de identificação. O movimento de intro- 11m componente de realidade: existem mesmo outros pais que,
jeção pode levar ao luto pela mãe biológica, sobretudo a mãe urna vez idealizados (sem a possibilidade de confrontação),
internalizada. Tal reconhecimento, que pode se acompanhar, pc ,derão vir "resgatá-los" de situações percebidas como nega-
como defesa, da projeção maciça dos objetos internos maus3, llvas em suas famílias adotivas. Por outro lado, devem fazer
pode acarretar uma profunda angústia na criança. As fanta- l1l'nte à realidade de que foram abandonados, o que pode
sias persecutórias da criança são, geralmente, incrementadas
pelos "fantasmas", quase sempre maus, da família biológica. l':tmbém referidos por Grange (1990), Montel-Girod (1992) e Robert (1989).
l'nquanto o ego está em processo de formação ou ainda fraco, a libido se encontra
A representação do fantasma da mãe biológica ("má") pode
,,rnmulada no id, que envia parte da mesma para catexias objetais eróticas. Como
ser confundida com a figura da mãe adotiva e resultar em , onscquência, o Ego, "tornado forte, tenta apoderar-se dessa libido do objeto e
1111por-se ao id como objeto amoroso". O narcisismo do ego, retirado dos investi-
ataques a esta, que precisará de esclarecimentos e/ ou suporte
111<·ntos objetais é designado, então, por narcisismo secundário (FREUD, 1923, p. 62).
C onsl.itui um modelo ao qual o indivíduo procura conformar-se. Resulta da "conver-
( }zoux -Tcffaine está se referindo à esquizoparanoide da teoria de Melanie Klein.
1',l'll ia do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com seus
11hs1itutos e com os ideais coletivos"(PONTALIS e LAPLANCHE, 1967, p. 289).

47
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível A adoção tardia

acarretar profundas feridas ao narc1s1smo de tais crianças, inviável. Por outro lado, uma situação externa nova, através
que ficariam mais suscetíveis em períodos críticos de seus dos pais adotivos, é um importante suporte para emergir uma
desenvolvimentos, como salienta Pilotti (1988). Pode acon- nova realidade interna com as novas figuras parentais que
tecer, também, e com bastante frequência, a fantasia invertida, podem, por estarem presentes e atuantes, ser confrontadas
conforme exemplifica a fala de Lúcia: "eles são mesmo os pela criança.
meus pais que me deixaram lá na instituição, mas depois
As projeções dos pais, de acordo com as expectativas de
voltaram, porque já podiam ficar comigo", num processo de
todo o grupo familiar em relação à criança, imprimem carac-
negação do abandono, que pode dificultar a vinculação com
terísticas ao processo de adoção tardia, determinando, muitas
a família adotiva. O "romance familiar" na família adotiva
vezes, o caminho que ele vai seguir. Robert (1989) assinala que
aparece com ênfase na literatura específica e se constitui num
a criança fantasiada pelos pais deve ser "maleável" o bastante
aspecto fundamental para a leitura psicanalítica do processo
para permitir uma superposição com a criança real, ou seja,
adotivo, que mereceria um capítulo especial, caso tivesse tal
que deve haver uma certa flexibilidade quanto às caracterís-
enfoque esse nosso estudo.
ticas imaginadas, para que a criança real possa, pouco a pouco,
Ozoux-Teffaine (1987) vê, na elaboração de um novo desenvolver qualidades no sentido de se aproximar da criança
romance familiar, a resolução do processo de identificação e imaginária dos pais adotivos.
construção egoica, que pode ser chamado de novo nascimento
psíquico. Reforçando esta questão, Anzieu sustenta que, para
a criança adotada tardiamente, a reconstrução de seu aparelho
psíquico é marcada por circunstâncias inerentes à situação da
adoção 7. Mesmo que nunca se refira à mãe biológica, a criança
mantém a representação desta viva e atuante no seu incons-
ciente e, dentro de uma certa medida, ainda segundo o autor
supracitado, a elaboração do luto pela mãe biológica seria

() autor no prefácio do livro de Ozoux-Teffaine descreve da seguinte maneira tal


situação: "a criança estaria envolta numa 'membrana' constituída pela preocupação,
espera e invesrimento parental dos candidatos à adoção. E esta 'pele continente', que
;tssumc o casal parental, funciona graças à qualidade de uma 'película' alimentada de
rmoçocs e afetos dos membros da família e do meio social. Esta representação é,
, .11.1111,·ntc, o que a criança pode esperar de uma situação originária, da qual depen-
di 1.1 t lonstrução do seu ego" (p. 14).

IH
49
~apítulo 3

realização da pesquisa
A realização da pesquisa

Muitas mudanças ocorrem quando uma criança


entra em uma nova familia [...] pouco ainda é
sabido [...] mas é importante para a pesquisa
acompanhar tais mudanças na prática de modo
que estratégias de aconselhamento possam ser
bem fundamentadas em conhecimento rele-
vante. (CRUSHTO , 1989)

Exponho aqui, de forma bem resumida e simplificada, a


metodologia da dissertação defendida no mestrado em psico-
lc >gia clínica, da qual originou este texto.
A pesquisa foi estruturada com base nos pressupostos da
pesquisa qualitativa 1, na forma de estudo de caso, que tem por
, ,bjetivo a descoberta de novos elementos, de algo singular que
lt'nha valor em si mesmo. Isso ocorre num contexto que está
, 111 permanente construção, uma vez que é a realidade humana
ill' uma ou mais pessoas numa estrutura bem delimitada) que
, busca retratar de modo mais completo e profundo possível2.
l~mbora não sejam passíveis de generalização do ponto de
1 la estatístico, as estruturas do caminho de formação de uma
11, >\ ,t relação são, na verdade, "possibilidades generalizáveis",

, ,11 ~l'ja, que, através da descrição de vários eventos e relações,

I" 11 ll· se chegar a uma estrutura básica do processo de desen-


1
' h 1111ento dessas relações e que, provavelrriente, represente
1111. 1 ~ 11 uação passível de ocorrência.

• 1 < ,11,rw, 1985, p. 9-22; Mucchieli, 1991.


' 1 1 11dkc e \ndré, 1986, p. 11 -24.

53
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

A realização da pesquisa

Os grupos acompanhados
Foram sujeitos da pesquisa crianças com idade acima de espontaneamente e a perda de um bebê d 10
e meses que
dois anos e meio, elegíveis judicialmente para colocação fami- sofrera severa lesão cerebral neonatal·,
liar por destituição do pátrio poder, que se encontravam em • Grup_o 5: composto por casal de aposentados, um filho
instituições de abrigo provisório, e as famílias que estavam adotivo de 19 anos (sobrinho biológico da mãe), avó ma-
adotando as referidas crianças. As famílias foram triadas pelo terna (em residência "temporária'') e me runa
. com 1.d ad e
serviço técnico do juizado de Campinas e convidadas a parti- a~r~~ada de cinco anos, colocada em estágio de con-
cipar, voluntariamente, como sujeitos da pesquisa. vivencia. Após permanecer três meses com a f:amíli·
. . . ~a
Das sete famílias consultadas no período de um ano, cinco meruna fo1 ret1rada devido a dificuldades demonstradas
aceitaram fazer parte da pesquisa e se constituíram em grupos pelo casal. Adotada posteriormente por família norue-
com características distintas: guesa composta por casal e filha adott·va de
sete anos
(adotada no país três anos antes).
• Grupo 1: formado por familia composta por casal e
três filhos biológicos (doze, nove e sete anos), e meni-
na de dois anos e seis meses3, colocada em estágio de A trajetória
convivência;
o~so papel, enquanto entrevistador-observador (inerente
• Grupo 2: constituído de casal sem filhos por opção, após in realizador de pesquisas), foi acrescido de uma função de
quatro anos de casamento, e menino de três anos e meio ',1 lt'ntação e suporte aos sujeitos. Então, convencionamos
com retardo psicomotor, em estágio de convivência; ' 1i,11nar d~ acompanhamento três grupos de intervenção que
1111 , 11 n mais usados a 1 d
• Grupo 3: formado por mulher divorciada, filha (biológica) o ongo os processos: 1) entrevista de
de 12 anos e menino de três anos e nove meses de idade, '111,·ta de dados; 2) preparação inicial e apoio para a criança ao
adotado após três meses de estágio de convivência; l1111po do processo; 3) orientação ao grupo quanto às situa ~es
111, 11·111 • ao pr d d - ç
• Grupo 4: formado por casal e menina de cinco anos e . ocesso e a oçao, como, por exemplo, abor-
l 1 ,, 111 da d ·
dois meses, em estágio de convivência. O casal possui origem a criança, de condutas percebidas como
1111'1t .1s no filho adotivo mas comun . , .
lústória de duas gestações de alto risco interrompidas , ' s em tais casos e as situa-
,, , 'P ·c1ficas de cada grupo, quando solicitada e pertinente.
ili ,1 amos, também, relatórios periódicos com pareceres
idade das crianças se refere à época em que estas foram colocadas em estágio de , 1,,' ,1 adap_ta?ão de cada grupo acompanhado para instru-
convivência. i , ,11 ,11/,tr o Jlllzado nos procedimentos de adoção.

14

55
A realização da pesquisa
ADOCÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível

tJue acompanhamos (na instituição) e observações das mesmas


Em cada grupo as entrevistas iniciais ocorreram num t:m atividades lúdicas.
momento diferente do processo de adoção em função da O acompanhamento da adaptação da criança-familia foi
época do encaminhamento do caso pelo juizado._ !odas as rt:alizado através de entrevistas domiciliares ou EDs4 que
entrevistas realizadas no juizado e no ambiente familiar foram <>correram
com uma frequência de uma a cada três ou quatro
. . diã
gravadas, exceto as realizadas com o grupo cmco, cu!a guar st:manas, de acordo com a disponibilidade do grupo. Os horá-
não aceitara tal procedimento. Os demais consenttram sem nos foram conciliados, a fim de garantir a presença de todos
demonstrar inibição ou desconforto com a situação. Todos < >s membros. A duração da ED foi em média de uma hora

os sujeitos receberam um pseudônimo, e dados mais ~arac- 1· tJuinze, havendo a preocupação de que todos os assuntos
terísticos e/ ou sigilosos foram ocultados a fim de evitar a l!'vantados fossem discutidos.
identificação dos mesmos.
O período de acompanhamento variou conforme a apre-
Para que O grupo fosse considerado preparado para_ o 1·nração dos casos, pois, como já mencionado, tive dificuldade
estágio de convivência, utilizamos como critério a afirmativa 1
li' onseguir os sujeitos, devido, principalmente, à escassez
a questões, tais como: 1
h- pessoas dispostas a adotar uma criança maior, inscritas
1111 juizado, que apresentassem condições de oferecer uma
• Quanto à criança: demonstra reação de agrado à visita
''' ração global adequada às necessidades, na maioria dos casos,
dos "pais"; fica a sós com os mesmos sem demonstrar
' · pvciais dessas crianças. Utilizei tais registros e mais anota-
medo ou ansiedade; demonstra vontade de ir morar com I
e ws, por tópicos, realizadas ao final de cada encontro, para
o(s) futuro(s) pai(s); , 11·sumo de cada acompanhamento. Nos grupos um e cinco
Quanto ao(s) adotante(s): aceitação da criança real em to- 11 1
·111os um relato comentado do acompanhamento, enquanto
dos os aspectos, questões de ordem prática como enxoval 11
11 • nos grupos três e quatro detivemo-nos ao resumo de cada
mínimo para a criança, acomodações/ espaço específico 111 ,1111ro. Finalmente, elegemos o grupo dois para o estudo
para ela na casa, tempo a ser dedicado nos meses de adap- IL < ,1so, cujo método de análise explicitamos na dissertação.
tação (disponibilidade de uso da licença-maternidade, por 1 1
11\·el de análise usado foi o de vivências, que trabalha
exemplo), e/ou reorganiz~_s:ão do tempo da familia. 01 11 ,l confrontação de conteúdos psicológicos próximos

Todas essas questões foram discutidas com os adotantes. 1


""' rnrnu1ci chamar desta forma para facilitar a referência e diferenciá-la das de-
Em relação às crianças, baseamo-nos, principalmente, na '" 11 < nrrcvrstas realizadas no juizado ou na instituição (de abrigo e procedência das
111
1111 ,1<) . Optei, ainda, por relatá-las separadamente, por se constituírem no acom-
observação da interação destas com a familia durante as visitas 1 11,lo 11111·11co familiar propriamente dito.

57
(i

MOÇÃO lMIOIA
Oa família sonhada à familia possível
A realização da pesquisa

à consciência, tratando, então, do fenômeno da experiência.


Esta análise de vivências está num nível intermediário (ver Figura
1) entre a análise de conteúdo - que se detém nas informa-
ções fornecidas pelo texto, e a análise do inconsciente - que o o z: o _, ~ (1)0 w CI)
busca o "não dito" através da interpretação da transferência

(FORGHIERl, 1993).
Os relatos dos acompanhamentos nos demais grupos são,
na verdade, depoimentos de uma observadora-participante
''
''
desses processos, que dados os conteúdos afetivos intensa- ''
mente mobilizados, às dificuldades e à energia "arrecadada" ...
o
~
'
de cada um dos protagonistas, podem por si só ser de grande ~
~

valia como material para quem se "inclina" sobre processos ~ ~


~
de adoção para estudá-los, ou tenha qualquer outro tipo de u
o
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interesse acerca do tema. o
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S8 59
Capítulo 4
Ric: do medo à ousadia nas
relações com o outro
Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

Um filho adotado não é um "superfilho"


nem será um "super-homem", É só um fi-
lho, um ser humano que se gesta em nos-
so coração e se alimenta aí, de todo o amor
que um casal que se ama é capaz de oferecer.
(VIDELA e MALDONADO, 1981)

Os pais adotivos não são superpais, se-


não que, essencialmente, sua responsabi-
lidade é muito grande implicando uma
longa reflexão de sua parte e uma esco-
lha da parte de quem lhe confia a criança.
(BOURISCOT, 1993)

A história de Ric
Ric fora retirado da familia em função de abandono e maus-
-tratos que motivaram o processo de destituição do pátrio
poder, concluído quando tinha quase três anos. Fora colo-
cado numa entidade de abrigo para menores aos 21 meses, lá
permanecendo até a colocação familiar. Era o terceiro filho de
uma prole de quatro, sendo que os dois meninos mais velhos
permaneceram com a avó materna, que já cuidava deles. A
irmã mais nova estava com outra familia, que providenciou
sua adoção.
Com quadro de desnutrição grave, seu nível de cresci-
mento e desenvolvimento de nove a dez meses foi afetado, na
época do ingresso na instituição. Antes disso, o ambulatório
de pediatria situado na comunidade da mãe vinha tentando

63
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh.ada à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

orientá-la quanto a aspectos básicos de puericultura, a partir A história do casal


da primeira consulta, que ocorreu quando o menino contava
Max, com 29 anos, curso secundário completo, é assis-
com 13 meses e apresentando o quadro de desnutrição grave.
tente de vendas de uma indústria multinacional, filho de mãe
Durante os 8 meses subsequentes, não foi conseguido nenhum
solteira; Ana, 26 anos, escriturária, não estava trabalhando no
progresso, segundo o relatório médico.
momento, segunda filha de uma prole de três. Estavam casados
Apesar de a mãe comparecer com mais frequência às
há cinco anos, sem filhos.
consultas, que passaram a ser "exigidas", esta não mostrava
Max e Ana contam que resolveram adotar por "opção
condições de seguir as orientações e atender às necessidades
pura". Desde a época de namorados, pensavam nisso a partir
básicas de Ric. Além disso, acabava de ter o quarto filho
de uma experiência com um menino de rua, ou foram refor-
sem um companheiro fixo, nem condições para sustentá-los.
çados por isso, não sabem ao certo quando a ideia de adotar
Segundo o referido relatório, a mãe impressionava, como defi-
surgiu. Afirmam que não é por caridade nem por religião, que é
ciente ou com "problemas mentais moderados".
simplesmente pela vontade de serem pais e saberem de crianças
Na instituição, apenas duas pessoas cuidavam da casa e de
que precisam de uma farrúlia. Foram colegas de escola, e lide-
oito a dez crianças de até seis anos, sendo que a pessoa que
ravam, juntos, movimentos estudantis - "desenvolvemos uma
efetivamente seria a responsável pelos cuidados básicos (que
consciência mais social, estudamos humanas e isso nos ajudou
residia lá) possuía uma menina de quase dois anos, que estava
muito a entender um pouco os problemas sociais". Acham que
sempre no seu colo todas as vezes que lá fomos. As demais
alguém precisa fazer alguma coisa para mudar a situação das
crianças frequentavam a pré-escola. Ric permanecia na insti-
crianças abandonadas, que muitos podem, como eles, contri-
tuição por não ter controle esfincteriano, segundo a referida
buir com um pouco, oferecendo "amor a uma criança, não
responsável, que poucas informações pôde nos fornecer a
caridade, mas afeto que envolve, que faz sofrer e serem felizes
respeito do menino. juntos".
Na época da adoção, o crescimento de Ric estava dentro
Ana parou uma vez de tomar pílula anticoncepcional "para
da média e o desenvolvimento psicomotor rebaixado em 30
descansar o organismo" e as outras precauções tomadas
a 40%. Suas dificuldades socioemocionais estavam sendo
falharam, resultando numa gravidez que foi interrompida
expressas, por exemplo, como "fobias a todos os animais"
espontaneamente no terceiro mês de gestação. Isso ocorreu há
(segundo informações colhidas no juizado).
quase dois anos. Ana refere que mesmo tendo aceitado aquela
gravidez, até agora não haviam pensado em filhos, "nunca
houve em nós aquela vontade de termos um filho, como

64 65
ADOCÃO TARDIA Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro
Da família sonh.ada à família possível

muitos casais que buscam a adoção, aquela frustração de não Dada a complexidade e o volume do material, este compor-
termos conseguido". Pretendem ter mais um filho, biológico, taria vários recortes que facilitariam a sua análise, em maior
assim que equilibrarem a situação econômica e alcançarem profundidade. Porém, ficando na linha do possível para este
uma boa integração de Ric no seu meio familiar e escolar. estudo, traço um panorama do processo de adaptação, não
pretendendo ser exaustiva nas observações, visto que, a meu
Trata-se de um casal de nível médio, que residia num apar-
ver, as mesmas continuariam incompletas.
tamento simples, de dois quartos, aluga<lo, ~1udando-se p~a
um outro adquirido pelo sistema Cohab, cmco meses apos
a adoção, com O objetivo de "oferecerem mais espaço e um
A preparação
lugar seguro para Ric".
A entrevista inicial com Max e /\m1 se deu no dia seguinte Após essa primeira entrevista, fomos conhecer Ric, que
à visita destes ao Ric na instituiçao onde o mesmo se encon- se mostrou indiferente ao contato inicial. Na segunda visita
trava. Fomos apresentados ao casal na sala <lo setor de adoção, demonstrou que nos reconhecera e interessou-se à apro-
onde realizamos a referida entrevista. Começaram contando ximação através de trocas de objetos, sem uso de qualquer
que estavam bastante ansiosos com a possibilidade _de ~erem palavra, até despedir-se solicitando uma caneta ("dá meu").
rejeitados pelo menino, cm função da "fobia" a am~ai~ que Na mesma semana, acompanhamos a visita do casal
Ric vinha apresentando e qu · provocaram a des1sten~ia de ao menino, quando observamos a interação entre eles. Ric
uma tentativa de colocação anterior, preparada pela equipe do comunicava-se com Max com desenvoltura e procurou "aloja-
juizado. mento" no colo de Ana tal qual um bebê. Estava tão envolvido
Falaram da emoção do primeiro contato ainda sob o com o casal que parecia não notar nossa presença. Quatro dias
impacto da mesma, sobre as cxp ·ctativas cm relação à adoç~o, após, entrevistamos o casal numa sala do juizado. O conteúdo
ao processo, ao acompanhamento e se colocaram m~to básico da mesma foi orientação sobre a criança e o processo,
confiantes na possibilidade de ajuda para lidarem com as difi- relato do casal sobre as visitas na instituição (realizadas diaria-
culdades já esperadas nesta fase de preparação. mente) e o "pânico" de Ana (segundo definição de Max) diante
da reação de afastamento e indiferença de Ric na última visita
Apresentarei, a partir daqui, partes mais signific~tivas das
anterior à entrevista. Solicitavam apoio, necessitavam serem
entrevistas que realizei com o grupo familiar de Ric e uma
tranquilizados quanto às dificuldades do início do processo.
discussão do que foi levantado; às vezes, remeto-me a o~tr~s
grupos para exemplificar as similaridades com as outras histo- A partir do momento que Ric percebe o interesse especial de
Max e Ana por ele, responde com indiferença. Isso preocupou
rias colhidas.

67
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível
Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

0 casal, uma vez que todas as outras crianças do grupo solici- da mesma e passou a brigar, no sentido direto do termo, pela
tavam uma atenção direta. Observamos tal conduta, também, atenção exclusiva do casal: "é meu, sai!".
nas outras crianças acompanhadas. Tais condutas podem
Quando a menina passa a se destacar no assédio ao casal, a
resultar da ambivalência entre o desejo e o temor da relação.
competir com Ric, ele passa a exibir um comportamento mais
O temor estaria na possibilidade de uma nova frustração (de
ativo, a fim de assegurar a exclusividade (posse) na relação com
outro vínculo desfeito), levando a criança a um afastamento,
Max e Ana. Parece que, aí, começava a formação do vínculo
quando percebe que há um interesse específico por ela. Sobre
afetivo (tomou, literalmente, posse do colo de Ana, verbali-
isso Bowlby (197 6) afirma que "muitas personalidades 'inca-
zando "é meu").
pazes de afeto' anseiam por afeição, mas são quase totalmente
incapazes de aceitá-la ou de retribuí-la" (p. 42). Por outro lado, Começaram, também, os passeios. Ric passou um sábado
vimos que o próprio interesse na relação leva-as a terem um na companhia de Max e Ana. O casal relatou que Ric encan-
tava-se com tudo o que via de dentro do carro; fora, mostrava
comportamento diferenciado do padrão do grupo, no caso a
medo generalizado, de tocar em qualquer coisa. Segundo
aproximação social indiscriminada.
Max, qualquer objeto em movimento causava temor a Ric e
Max e Ana referiram, ao final desta entrevista, sentirem-se
concluíram que ele não tinha uma fobia a cachorros, mas um
mais aliviados em poderem "abrir todas as dúvidas", temores
medo generalizado de se expor, de viver.
de rejeição e angústia diante da situação. Max fez um desa-
bafo: "não sabemos nada como fazer para conquistá-lo, do Ao sair pela primeira vez com o casal, Ric se sentiu confor-
que ele precisa, estamos à zero, precisando de ajuda, de orien- tável dentro do carro e completamente assustado fora dele.
Isso denota a necessidade de continuar protegido do mundo
tação". Em outras palavras, estavam nos apontando que não
se sentiam preparados para o "parto", que precisariam ser que lhe parece tão ameaçador. A dificuldade de Ric era,
também, reacional ao ambiente em que foi "abrigado". Após
assistidos, já que o mesmo estava próximo e providenciavam
brusca retirada de um meio hostil, ficou "protegido" num
conosco a garantia dessa assistência para aliviar a ansiedade
ambiente institucional, cuja realidade nos remete ao trabalho
decorrente de tal situação.
de Altoé (1990), que, em estudo detalhado de alguns inter-
No sábado seguinte, acompanhamos a visita do casal ao Ric.
natos do Rio de Janeiro, concluiu que a abertura dos mesmos
Max e Ana tinham se tornado figuras populares na instituição
para o mundo é quase inexistente, limitando as possibilidades
e eram assediados por todas as crianças e de uma menina, em
de relações sociais da criança e do adolescente. Estes ficam
especial, que disputava com Ric, o tempo todo, a atenção do
restritos a uma dinâmica institucional que os faz se sentirem
casal. Este começou a demonstrar incômodo com a presença
perdidos, desprotegidos e angustiados com a possibilidade de
enfrentarem o desconhecido ambiente externo.

68
69
ADOCÃO TARDIA Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro
Da família sonh~da à família possível

consigo definitivamente. Max também disse se sentir prepa-


O medo de Ric de enfrentar o mundo havia sido rotulado
rado para ter Ric, mas muito ansioso, pois achava que seria
como "fobia" e especificado para "fobia a cães e gatos", os
muito diferente a relação que passariam a ter dali para frente
animais que ele encontrou assim que saiu para uma primeira
e não era possível planejar muito - "temos que aguardar pra
experiência com outro casal, que substituíra a falta de filhos
viver a coisa primeiro".
por cerca de quinze gatos e alguns cães. A reação de medo de
Ric e o manejo do casal deram lugar ao pânico, que resultou Após esta entrevista, solicitamos a presença da assistente
social do setor de adoção para tratar com o casal da docu-
na desistência da tentativa de adaptação criança-familia. A
"fobia" de Ric parecia desanimar as pessoas interessadas em mentação necessária para a obtenção do termo de guarda e
responsabilidade para fins de adoção (f.G.R.A.). ncami-
sua colocação familiar. Preocupou Max e Ana nesse primeiro
momento ("saí de lá chorando, quando me contaram, me senti nhamos ao juiz um relatório do acompanhamento da fase
totalmente insegura", conta Ana), pois era um agravante na inicial da adaptação casal-criança, colocando parecer favorável
possível dificuldade de adaptação somado às dificuldades de à colocação de Ric na mesma.
desenvolvimento, as quais, quando relatadas, já haviam afas-
tado outros candidatos à sua adoção.
O acompanhamento familiar
Essa reação apresentada por Ric poderia tratar-se de uma
pseudofobia, "rótulo" mais indicado para os casos em que o As primeiras entrevistas com o casal foram pautadas por
mais temido, segundo Bowbly (1973), seja "ausência ou perda preocupações típicas de uma gravidez (sensação de estar
da figura de apego ou de alguma outra base segura, em direção à "vivendo a três", "ele não me sai da cabeça noite e dia''),
qual a pessoa portadora daquela condição (situação de perigo), acrescidas da ansiedade da futura mãe adotiva pela ausência
normalmente se dirigiria", diferentemente da fobia em que o de prazos, pois não há previsão do tempo que pode levar a
mais temido é a "presença de uma situação que a pessoa se "chegada" do filho adotivo, posto que o intervalo entre os
esforça por evitar ou da qual rapidamente se afasta", e que não prazos mínimo e máximo é muito grande (1-30 meses na
seria normalmente tão ameaçadora para outras pessoas. região de Campinas). Sentem a proximidade e mostram a
Na entrevista seguinte, Ana trouxe a preocupação que já angústia frente à situação do "parto" ("vai ser muito diferente
sentia com o "seu filho": quando ia comer ou dormir, fazia-o do que foi até agora", refere Max) 1, evidenciando que, mesmo
pensando se ele estava se alimentando direito, dormindo bem sem o componente biológico, os pais adotivos "engravidam"
agasalhado e coberto, por exemplo; que a situação já havia
Segundo Maldonado (1976), o momento do parto é "vivido como um "salto no
mudado completamente a sua vida, não eram mais um casal, escuro", um momento imprevisível e desconhecido sobre o qual não se tem con-
eram três, uma familia completa, e não via a hora de tê-lo trole [... ] cuja principal característica é a irreversibilidade". É uma situação que não

71
70
ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

emocionalmente e, durante o período de 'espera", necessitam Mantivemos contatos telefônicos durante os primeiros
ser tratados como tais, recebendo assessoria profissional dias. Ana ligou duas vezes, relatando a chegada e solicitando
que os oriente num processo claro e paulatino, de enfrenta- orientação sobre um manejo qualquer, o que entendemos
mento da angústia diante da realidade da situação. (VIDELA como uma forma de poder aliviar sua ansiedade. Recorriam
e MALDONADO, 1981). Tal situação poderia, também, estar a nós com a mesma abordagem que todo casal ansioso faz ao
revelando uma tendência à "biologização" da adoção, segundo pediatra de seu primeiro bebê.
Costa (1988). A primeira entrevista na casa da familia se deu no quarto
Todas as questões legais foram encaminhadas e cuidadas dia da chegada de Ric. Max e Ana começaram falando da segu-
pela assistente social para que tivessem um trâmite rápido e, rança do apartamento, que estavam providenciando proteção
assim, na mesma semana, Ric partia para sua nova casa em para as janelas. Passaram, em seguida, para as preocupações
companhia de seus futuros pais. Não acompanhei a ida de Ric com aspectos orgânicos que observaram em Ric, como a
para o novo lar por impedimento meu. Por outro lado, percebi respiração irregular, tosse, resfriado, dificuldade para dormir.
que o casal preferia vivenciar a situação a sós. Proibiram a Ficaram bastante tempo comentando tais dificuldades. Rela-
familia de visitá-los nos dois primeiros dias, pois temiam que taram já ter providenciado consulta com pediatra e com
todo mundo aparecesse ao mesmo tempo e invadissem o fonoaudióloga. Ana concluiu ser mais conveniente esperar um
espaço que começaria a ser ocupado por Ric e isso poderia, pouco mais para consultar a profissional. Falaram bastante,
também, assustá-lo. também, dos medos de Ric, da reação de pânico que ele teve
O casal divulgou que estava esperando um filho adotivo diante de um brinquedo que se movimentava. Qualquer objeto
para amigos e colegas e houve expectativa na familia com a diferente, colorido, como uma caneta que ganhou de brinde,
proximidade da concretização do evento. Isso possibilitou o provocava em Ric uma reação de esquiva. Mais aliviados
enfrentamento de situações temidas da adoção que, segundo passaram a falar com entusiasmo das aquisições de Ric, que
Videla e Maldonado (1981), estariam "essencialmente vincu- já sabia falar no telefone com o pai, já aprendeu a pedir água,
ladas à ausência de um espaço social que legitime a adoção trazer papel para que lhe limpassem o nariz (antes limpava na
como uma alternativa existencial". Ela é, ainda hoje, uma roupa), começava a cantarolar as musiquinhas dos desenhos a
situação marginal "valorizada" (ou denegrida) como "um ato que assistia na TV e atendia a limites, com tranquilidade. Fora
matriculado num centro de educação infantil a ser frequentado
de 'caridade' ou 'coragem"' (ibid., p. 47).
a partir do próximo ano letivo.
A primeira entrevista foi iniciada pelas preocupações orgâ-
pode mais ser evitada, mas que não possibilita a previsão de quando e como vai se nicas do casal em relação a Ric. Tais preocupações também
desenrolar (p. 48).

72 73
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

apareceram nas primeiras entrevistas da quase totalidade dos Ana começa relatando na segunda ED 2 que Ric estava
grupos. Constatamos o fascínio do casal com qualquer avanço muito resfriado, teve bastante febre naquela semana, tosse e
observado na relação com Ric, mas ambos se mostravam, amigdalite. Passou a pedir colo, também. Ana pensa que é por
naturalmente, muito inseguros diante de possíveis reações de causa da atenção constante que vem recebendo. Toda a hora
desagrado ou afastamento do menino. Os contatos físicos tem que medir a febre, dar remédio, então tem mais contato
(fazer "coceguinha", abraçar, fazer carinho, por exemplo) físico, e ele também está mais carente, mas ainda não os chama
ocorreram com frequência, assim como os banhos, que eram de pai e mãe. Por outro lado, eles consideram que agora é que
solicitados por Ric a toda a hora, além do estímulo direto do ele está começando a entrar num ritmo normal de criança,
casal. As brincadeiras referidas como "de nenê" facilitaram o começando a mexer nas coisas, fazer bagunça. Max observa
ingresso de Ric nessa relação, onde a maternagem pôde ser que, no início, Ric parecia muito educadinho, contudo não era
exercida desde os primeiros contatos. "educação"; o que ele tinha mesmo era medo, para tudo o que
Nos grupos 1 e 3, também foram referidos os banhos ia fazer pedia permissão. Ana complementa que eles querem
frequentes e a preocupação das mães em passarem creme que Ric comece a tomar atitudes certas ou erradas e não ficar
(Cláudia), perfume e "talquinho" (Pedro), após cada banho, na dependência deles - "eu quero que ele tenha as opiniões
assim como as referências aos "probleminhas" na pele dos dele, mexer ou não mexer, mas descobrir, ser espontâneo (...]
mesmos, usadas para justificarem um contato/cuidado cons- eu quero mesmo que ele desperte curiosidade, que ele ques-
tante, durante as primeiras semanas de adaptação. Relacio- tione, que pergunte por que (...]" .
namos tal situação à primeira fase do processo psíquico de Ana acha que Ric tem dificuldade de assimilação, pois, por
regressão vivido pela criança adotada tardiamente. As mães mais que ela explique ou pergunte algo, ele só repete o que ela
estariam, através do contato pele a pele (dificultado, em tais fala. Por outro lado, manifesta dúvida se ele não entende ou
casos, pela falta de intimidade e, por isso, então, a necessidade não quer responder por medo ou vergonha. Salienta que tem
de objetivar concretamente o mesmo), facilitando, segundo dado tempo para que ele fique brincando sozinho ou assis-
teoria de Anzieu (1987), o estado psíquico da díade mãe-filho tindo à Tv, mas Ric logo vem atrás dela.
recém-nascido quando o estar entre os braços um do outro Observamos, também, que Ric se esforçava muito para
faz ressurgir em ambos o sentimento de "envelopar" e estar agradar, ser um menino "bonzinho" e garantir assim sua
' '
"envelopado". Esse desejo de inclusão recíproca, resultante do aceitação pelo casal, que considerou "muito fácil lidar com
trauma da separação ocorrida no parto, pode ser visto, aqui, ele". A questão da dificuldade no vínculo é referida por Max
como um desejo de inclusão que só se concretiza quando
recíproco.
Ver nota 3, p. 54.

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Da família sonh.ada à família possível

e Ana pelas negativas de Ric em chamá-los de "pai" e "mãe". ao quarto do casal e mostra "cama de mamãe e papai, roupa
Mostraram-se ansiosos, entretanto tentaram neg:U' a situação, de mamãe ..." para voltar em seguida ao seu quarto e recomeçar
relacionando-a a aspectos cognitivos, de compreensão, ao novamente.
invés dos afetivos. Márcia e Elza também referirar:n (com desa- Ric descobria a posse, isto é, estava maravilhado em ter
pontamento) que Cláudia e Pedro, respectivamente, não se tantas coisas só para si. Ficava enumerando e reafirmando
dirigiam a elas chamando-as de mãe e negavam-se a fazê-lo todas as coisas que lhe pertenciam (como os "seus pais").
quando incentivados nas primeiras semanas. Concordamos Procurava ampliar, a cada vez, o seu donúnio.
com Diniz (1994) que, a respeito, diz o seguinte: "Na medida Estavam fazendo um trabalho de aproximação sucessiva
em que a paternidade e a maternidade são uma relação e uma dos objetos que lhe provocavam medo e o resultado era consi-
função, é preciso que a criança as possa viver e reconhecer derado positivo: nessa época já se aproximava do cachorro dos
antes de as poder designar" (p. 18). avós, dava ordens para ele. Ana comenta, em seguida, que eles
Tal questão é um importante ponto de referência para têm recebido muitas visitas dos familiares que vêm conhecer
avaliarmos a adoção como um processo que é muito mais o Ric, e que têm ouvido cada observação "cabeluda" que ela
difícil para a criança, que vem de outros vínculos desfeitos, já nem escuta: "têm umas que dizem que a gente não pode
que precisam ser elaborados (no sentido da perda). Segundo dizer 'não' a ele, porque ele já sofreu tanto e vai fazê-lo sofrer
Anzieu (1987), a criança não poderá renascer de sua mãe mais ainda". Max salienta que muitas pessoas veem no Ric um
adotiva sem antes elaborar o luto (que nunca seúa completo) "coitadinho", e eles têm procurado evitar isso, mostrando que
pela perda da mãe anterior ou biológica, e, paradoxalmente, só ele está tendo uma vida normal, como qualquer outra criança
poderá fazer isso a partir da identificação com a mãe adotiva. feliz. Por outro lado, as comparações dos amigos, em especial
Contam que receberam a visita de outra crümça, de dois das mães, com os próprios filhos é inevitável. Às vezes, isso as
anos, e foi muito difícil para Ric. A menina queria pegar seus deixa chocadas com o "atraso" do Ric. Fazem observações do
brinquedos e ele ficava desesperado, não reagiu diante da tipo: "mas ele ainda não faz isso?, a minha filha de um ano e
menina, chorava agarrado em Ana, para que est::t intercedesse pouco já faz".
por ele, o que a deixou frustrada diante da expectativa de que O casal lidava, com certo espanto, com o preconceito social
ele dividisse, e não fosse tão passivo diante das dificuldades. e até com o próprio preconceito em relação à escolha de adotar
. .
Discutimos a questão da posse, que ele começava a entender uma criança maior.
agora, do "meu" fazendo sentido para ele. Max lembra que Ric Perguntamos ao casal como eles estavam sentindo a atitude
vem reafirmando constantemente isso: chama-os no quarto das outras pessoas em relação ao fato de terem adotado o Ric.
para mostrar o "meu cama, meu armário, meu.,., meu ...", vai Max e Ana responderam que quase ninguém admite; que a

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- pegaram um b eb e.
primeira pergunta que surge é: por que nao ' ;l em muito a possibilidade de encontrarmos mais sujeitos com
Tais pessoas argumentam que seria mais fácil educar, etc. tais características, quando a proposta de trabalho está em
O casal resolveu não explicar mais, argumentando que as sintonia com uma postura preventiva.
pessoas não têm o mesmo princípio que eles. Ana acredita que Comentam sobre a dificuldade que estão tendo com o
qualquer criança nesta idade tem condições de ser educada, treino de toalete. Ric não controla o esfíncter anal, teve um
que "todo o mundo tem condições e o direito de ser educado, progresso, mas regrediu. Por outro lado, ele vai tranquilo,
de viver". A questão de ser mais difícil a educação não é impor- cantarolando, quando colocado no vaso. Em relação aos
tante: "quando você tem a chance de ver uma criança renascer, limites, ele vem aprendendo a esperar e respeita os espaços
você está levando uma criança para o mundo e é 'gostoooso' dos pais ("não abre a boca durante o Jornal Nacional").
quando você vê a criança descobrindo as coisas, feliz da vida". Continuava se comportando como o "menino bonzinho",
Observamos que Max e Ana fazem parte de um grupo de que agrada a todos por esse seu comportamento exemplar e
pessoas que se sentem socialmente responsáveis em questões pela "espantosa mudança", que o tornava cada vez mais pare-
como abandono e marginalização de crianças na comunidade; cido com a família.
sentem uma "culpa", que os leva a buscar formas (sublimadas) Identificamos, nessa fase da adaptação de Ric, padrões
de alívio, de resolução. Partiram para a adoção como resposta a típicos da segunda fase do desenvolvimento emocional
esta necessidade, tentando minimizar o problema que também proposto por Anzieu (1985). O "fantasma da pele comum"
os atinge. entre mãe-filho que revela a existência de dois psiquismos
Tais características levaram-me a questionar, na época de distintos, mas juntos e em comunicação estreita e direta, de
apresentação ao casal, os motivos pelos quais pessoas jovens, onde a criança alimenta os sentimentos narcísico-heroicos de
bem adaptadas na relação, com prováveis condições de gerar onipotência e invulnerabilidade, o que pode ser exemplificado
os próprios filhos (tendo a intenção de tê-los), optassem por com o "tornar-se parecido com a família" e aprender tudo tão
adotar uma criança mais velha com atraso significativo no depressa (de forma heroica).
desenvolvimento, além de "fóbica". Procuramos detectar Ao encerrarmos a ED, Ana lamenta que o Ric esteja tão
no casal problemas graves, dificuldades específicas quanto ruim de saúde e que não tenhamos podido observar como ele
à gestação e maternagem, enfim, algo que justificasse tal vem evoluindo. Comentamos que Ric pareceu bastante tran-
escolha, que contrariava os dados encontrados na literatura quilo, alegre e com ótima disposição para o estado de saúde
a respeito das características dos postulantes à adoção. Eles dele e que isso era um bom indício de que tudo estava em boa
não se enquadram em nenhum grupo descrito pelos autores evolução. Ana refere ainda que fica ansiosa para saber a nossa
pesquisados e concluo que uma cultura da adoção facilitaria avaliação do desenvolvimento do Ric, pois todas as questões

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Da família sonhada à família possível

que surgem são trazidas para nós. Conclui: "você realmente Ele nos apresentou novamente para todos os seus brinquedos,
nos dá segurança de que alguma coisa realmente tá errada, ou caminhões, carrinhos, jogos, várias folhas cheias de "pinturas",
realmente tá certa, porque existem muitas dúvidas na gente, etc. Ric mostrava-se pleno de si, imerso no prazer de ter as
e a gente precisa conversar com outras pessoas, só que não suas coisas. Por vezes, envolvia-se na brincadeira, penetrando
tem ninguém que entenda, que possa ajudar". Ana reforça na fantasia até esquecer nossa presença. Outras, incluía-me
ainda a vontade de ter um ftedback sobre o desenvolvimento para ajudá-lo ou acompanhá-lo, brincando paralelamente com
motor e da fala, por exemplo. Quer que lhe respondamos se o brinquedo "permitido" por ele.
seria necessário ou não procurarem um atendimento especia- Pudemos, assim, avaliar a dificuldade, relatada por Ana, do
lizado para Ric. Max, por sua vez, achava que esta era uma contato de Ric com outras crianças e conversar com ela sobre
preocupação bem típica de mãe, que Ric vai recuperando com a fase do desenvolvimento socioafetivo que o menino estava
tempo e que só mais tarde vai ser hora de pensarem nisso. vivendo no momento. Em seguida, Max chegou do trabalho e
Reforçamos a ideia de Max, mas mostramos a importância de fomos para a sala conversar com o casal, enquanto Ric perma-
estarem abertos para perceber a necessidade de ajuda espe- necia no seu quarto envolvido com os seus brinquedos. O
cializada para Ric. Encerramos a entrevista oferecendo apoio conteúdo da entrevista girou sobre aspectos do desenvolvi-
para discutirem todas as dúvidas que surgissem e reforçando mento global de Ric, relato da visita ao pediatra, a dificuldade
o manejo adequado do casal das condutas apresentadas por de montar um diagnóstico das dificuldades dele pela carência
Ric, que se mostrava plenamente satisfeito com o que vinha de dados de anamnese. No relatório médico fornecido pela
recebendo. entidade de abrigo, não consta se ele tomou todas as vacinas
Observamos muita ansiedade de Ana com relação ao obrigatórias e ninguém sabia informar o paradeiro do seu
progresso global de Ric, principalmente psicomotor. As cartão de vacinação.
dificuldades referidas, neste momento, estão mais em nível Fica evidenciado que, em todos os sentidos, a história de
pedagógico do que orgânico. O casal estava atento a qualquer Ric tem uma lacuna, um vazio intransponível pela via infor-
evolução, usada como reforçadora no processo de estimulação. mativa, e que só através da via afetiva, do vínculo com os pais,
Solicitou-me uma "avaliação informal" do desenvolvimento poderá refazer sua trajetória. Sua história clínica pediátrica
de Ric, vista por nós como uma tentativa de se apoiar em algo mostra um exemplo claro disso: terá que começar do zero,
mais concreto sobre as dificuldades do menino, além da neces- fazendo todas as vacinas, para que haja segurança de que está
sidade de ter alguém que lhe desse parâmetros de ação. protegido. A utilidade do resgate de uma história fragmen-
Assim que cheguei para a terceira ED, acompanhei Ric até tada para garantir-lhe a possibilidade de um desenvolvimento
seu quarto, fiquei com ele durante meia hora de jogo livre. saudável passa a ser nula. Foi também comentada a situação de

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batismo. Ana referiu que o padre local concordou em batizá-lo iniciado o acompanhamento, havia "uma enorme diferença"
tendo apenas o termo de guarda como documento, mas eles na relação com o filho, dizendo se sentir mais segura para lidar
possuem dúvidas se devem ou não fazer o batismo antes da com ele e observando a recíproca. Na pesquisa de Bohman e
adoção. Sigvardsson (1990), a questão do registro de adoção aparece
O "meu" continuava sendo o centro de interesse para Ric favorecendo uma relação pais-filho mais segura e constru-
na época da terceira ED, entretanto já começava a permitir tiva. Isso nos leva a pensar que o processo de adaptação que
uma terceira pessoa na relação com os seus objetos. A ausência ~companhamos poderia ter sido diferente se todos os grupos
de história passada na vida de Ric era evidenciada, e a impossi- tivessem obtido o registro com o mesmo tempo de convi-
bilidade de resgate pela via informativa reforçava a necessidade vência que o grupo três.
do "refazer", partindo dos novos vínculos. Constatamos que Estavam todos muito animados, contagiados ainda pelas
tanto nesse caso quanto nos outros acompanhados a questão festas de fim de ano. Ric corria para nos mostrar a árvore de
do passado da criança era tratada como uma incógnita a Natal, enquanto Max contava as últimas "novidades" e Ana,
ser decifrada e, na maioria das vezes, encampando todos os ao ~esmo tempo, estimulava Ric a buscar os presentes que
fantasmas da farrúlia biológica, das questões da origem da havia ganhado, para que nós também admirássemos. O casal
criança, que muitas vezes se revelaram como ameaçadoras estava ainda sob o efeito da emoção que experimentara diante
para os futuros pais adotivos, conforme apontam as sínteses do brilho nos olhos de Ric com a festa de Natal, com as luzes,
dos acompanhamentos, bem como a literatura. presentes, fotos, abraços ... tudo absolutamente novo para ele.
O batismo, por outro lado, pareceu-me ser um ponto Todos os familiares (de primeiro grau) do casal reuniram-se no
importante dessa reconstrução. Em todos os grupos, os apartamento deste para a ceia. Ana refere que não dava para
padrinhos, escolhidos pelos guardiões até mesmo antes de se mexerem lá dentro, mas que foi superimportante que Ric
obterem a guarda, "ansiavam", segundo estes, por batizá- passasse seu primeiro Natal na sua casa e já que todos queriam
-las, demonstrando o investimento numa ligação importante estar com ele ... . Comentavam que Ric, a estrela da festa, era a
para a inserção das crianças nos seus novos meios sociais. A própria "luzinha faiscando de contentamento". Foram feitas
questão do batismo aparece em todos os grupos como uma observações sobre a rapidez com que Ric vinha perdendo os
forma de oficializar a relação pais-filho, através do testemunho medos e a desenvoltura que tinha no relacionamento com tios
dos padrinhos, afumando a necessidade dos guardiões de e primos. Tem saído com estes, sozinho, o que provoca até
tomarem posse e não apenas a guarda da criança durante o ciúme sem Ana.
estágio de convivência. Como assinalou Elza, mãe de Pedro, Tentavam, com muitas palavras, traduzir a emoção de
que obteve o registro do menino pouco tempo depois de terem passado juntos datas importantes, comemorando, com

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com tanta garra o período ruim de discriminação e solidão que


o Natal, o nascimento de uma nova família. Ri.e foi o ponto
fora a sua infância, que aprendeu muito com ele sobre "esse
de referência em torno do qual girou toda a festa. Ele corr~s-
outro lado de familia", que houve muitas trocas de "experiên-
pondeu plenamente ("sendo a própria_ luzinha'') à expectativa
cias familiares".
de todos que vieram (tais como os reis magos), ~azendo-lhe
presentes de boas-vindas. Segundo os relatos, Ri.e desabr~- Ana fez, em seguida, uma análise das características de sua
chava renascia em pleno Natal. Perdia os medos e constrwa familia, fala da emotividade de todos, da força dos laços que
' . . os mantêm quase aglutinados, do empenho de todos por um.
laços mais extensos na familia - com tios e primos'. mcorpo-
rando, também, o papel de "neto mimado". Abria-se para Considera que são características muito típicas de familias de
novas experiências enquanto ia entendendo e atendendo aos imigrantes italianos.
1 limites colocados pelos pais, ainda de uma forma a agradar e Entendemos que Max fora, na verdade, adotado pela familia
garantir aceitação social, de acordo com a 2ª fase do processo de Ana. A forma como Ana sempre se referiu à relação deste
1
de desenvolvimento do "eu-pele" proposto por Anzieu (19~5) com os sogros, parece haver, aí, um vínculo de pais e filho.
1 descrito em Ozoux-Teffaine (1987) e Robert (1989), já refenda Para Ana, a evolução da sociedade está permitindo uma maior
também para Pedro. O Natal significou um momento_ e_xtre- abertura, que facilita o diálogo e a compreensão de situações
\
mamente especial de assumir coisas só para si, como a bicicleta e mudança de conceitos. Assinala que ser mãe solteira perdeu
encomendada ao Papai Noel. o estigma, passou até a ser valorizado e poderá ser assim
O casal estava vibrante, no início da quinta ED, com as também, daqui a algum tempo, com a questão das origens
primeiras frases formuladas por Ri.e. Inves~gamos a respeito biológicas ("com tantos bebês de proveta!''), que passem a não
da abordagem, pelos pais, da origem de Ri.e e de que fo_rma ter mais o significado que ainda têm hoje.
estava sendo passada esta questão para o menino. Conteudos Foi especialmente na quinta ED que a adoção de Ri.e
da história familiar de cada um foram trazidos. Ana relembrou remeteu o casal às próprias raízes. Max e Ana puderam analisar
. ( famili' ar) de não ser filha as características de suas familias de origem, retomando até à
que teve fantasias e temores romance -
biológica da sua mãe. Max referiu não ter uma n~ça~ clara de vinculação entre eles, fortalecida na troca das diferentes expe-
pai, refere o quanto fora difícil para ele, nos primeiros an~s riências que trouxeram. Mostraram, assim, como é esta nova
de escola, ser "filho de mãe solteira"' da vergonha que sentta familia de Ri.e, as expectativas para cada membro. Partem daí,
diante dos colegas, todos com os seus pais. Max relat~u a para uma inserção social, esperando mudanças em conceitos,
história de sua infância e adolescência solitária. Quando tinha tabus enfrentados hoje com a adoção que, de certa forma,
17 anos, nasceu sua primeira irmã (sua mãe casou-se e teve é sentida como mais leve do que foi para Max enfrentar o
duas filhas). Ana refere orgulho do marido, por ter superado estigma de ser filho de "mãe solteira".

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O trabalho com o casal mostrou que a "troca de experiên- revela de maior importância do que para os pais biológicos. É,
cias familiares" foi, num sentido mais profundo, a "adoção" de também, importante para a avaliação das condições de adap-
Max por Ana e sua família, os quais lhe passaram padrões d_e tação da criança real à criança idealizada. Robert (1989) afuma
identificação parental, ainda que tardios, além de uma convi- que quanto mais bem "trabalhados" os fantasmas familiares
'
vência compensadora com um grupo familiar numeroso e mais flexível poderá ser a criança idealizada, ou seja, mais
extremamente coeso. Parece-nos que essa "troca de experiên- passível de se amoldar às características da criança real.
cias" abriu espaço para a inclusão de um terceiro com uma Ric começava a frequentar a escolinha. Quando ligamos
outra condição - a de adotivo. para confirmar o horário da sexta ED, fomos informadas de
No grupo 3, Pedro aparece "revirando" as raízes de Elza - que Ana começara a trabalhar. Ric fica com uma irmã de Max
"sei que um filho vem nos revelar coisas muito profundas [...] no período da manhã e à tarde na escolinha. Ana retornou a
e é uma coisa bem real, que ele está mexendo com as minhas ligação e já nos contou como tinham sido os primeiros dias
raízes, com os significados que as coisas têm para mim" -, de jardim: "foi uma festa, precisa ver o orgulho dele com a
também nos grupos 1 e 4, embora não de forma tão explí- lancheira, vai para a escola todo empinado". No início da entre-
cita os casais remeteram-se às próprias origens, resgatando vista conversamos só com Ana, pois Max chegaria um pouco
nas ' suas histórias familiares elementos importantes para uma mais tarde, trazendo Ric da casa da avó (materna), onde fica
leitura mais profunda dos motivos da adoção, além daqueles esperando após o horário da escolinha. Ana fala que gostaria
explicitados no momento da primeira entrevista em que foram de ter ficado junto com o Ric nos primeiros dias de jardim "só
questionados por nós. Para Márcia, a adoção de Cláudia é, por precaução", que gostaria de estar acompanhando mais de
também, uma forma de reeditar (e resolver) com seus filhos sua perto, e admite que se sentiu insegura com as mudanças. O
própria condição de irmã adotiva, enquanto que para Neusa trabalho surgiu de repente, um contrato temporário de três
aparece a necessidade de ter a sua própria filha, aliviando um meses, na semana anterior ao ingresso de Ric na pré-escola
pouco O peso de viver de forma invertida este papel com s~a "é a primeira vez desde que ele está aqui que passa tanto
mãe ("ela diz que eu sou mais mãe do que filha dela, [...] nao tempo longe". Em seguida, refere-se muito "zelosa" com o
filho, que a irmã vinha sempre com os sobrinhos buscar o Ric
quero mais saber disso").
para tomar sorvete, banho de piscina, passear... "Eles chegam
De acordo com o trabalho de Caramuru (1990), onde esta se
aqui só atrás do Ric, já vão convidando e saindo, e o 'danado'
reporta a vários autores, o nascimento de um filho leva os pais,
pergunta: 'póxo, mãe', lá da porta já. Cortei um pouco isso,
especialmente a mãe, a reviver sua própria história, a to~nar
porque eles mimam demais e isso não é bom".
mais claro O papel ou função reservada para o filho fantasiado
no contexto familiar e que, nos processos de adoção, isso se

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Relatos sobre mudanças marcam a nova etapa no processo motivo de ter voltado tão de repente a tiabalhar, que a compra
de adaptação, como o ingresso de Ric na escola, que foi viven- do apartamento, além de ser um "achado", foi precipitada pelo
ciado sem crise, em clima festivo de descoberta, segundo o término do contrato de aluguel e a necessidade de terem uma
casal, mesmo tendo coincidido com outras mudanças, como a estabilidade, "um lugar nosso com espaço para oferecer ao
saída de Ana para trabalho e o projeto de nova moradia. Assim Ric". Passam a explicar em detalhes como é o apartamento,
Ric tem feito desde que chegou para sua nova vida: conquista que não está acabado ainda, as modificações que pretendem
de espaços, adaptações heroicas, num ritmo tão intenso de fazer.
crescimento e aprendizagem que supera, paulatinamente, as Quanto à reação de Ric, Ana conta que se espantou, pois ele
expectativas, aproximando-se dos heroísmos referidos por repetia "não quero não, não quero não". Depois, ela concluiu
Ozoux-Teffaine (1987) e Robert (1989), típicos da segunda que Ric fez relação entre o parquinho que referiu ter no novo
fase do processo de adaptação do adotivo. prédio com a instituição de onde saiu - "lá tem um parque bem
Perguntamos se ela temia perder o menino para a irmã ou grande". Comentamos essa relação mudança-casa, mudança-
parentes. Ela riu e logo começou a falar da mãe biológica de -instituição. A té pela questão temporal, instituição e casa eram
Ric, de como ela estaria sem os filhos, de como poderia estar muito próximas para Ric e o medo de voltar pode também
sendo feliz com "eles" hoje como ela mesma tem sido com ser relacionado ao vínculo parental, à insegurança, ao medo
Ric. Questionamos se ela se sente culpada em relação à mãe de perda dos objetos ainda em conquista. Ao encerrarmos a
biológica. Ana nos responde que não, mas, "se dá pra definir, entrevista, o casal comentou que a próxima já seria, provavel-
é pena o que eu sinto dela, isso, pena", e argumenta: "porque mente, no apartamento novo.
ela não abandonou o filho, não teve essa intenção, ele foi reti- Ana mostra, por outro lado, que existe insegurança na
rado porque ela não sabia criar". Ana volta um pouco atrás família diante da nova situação; que as perspectivas de mudança
referindo que já sentiu raiva da mãe biológica, principalmente suscitam o medo de perdas e revelam o temor da perda do
quando o pediatra "decifrou" a ficha médica que veio com Ric. vínculo mãe-filho, que está em plena construção. Aparece o
Não admitia que uma mãe deixasse seu filho naquele estado "fantasma" da mãe biológica como "atuante" entre eles, assim
de carência. Relembra que a raiva foi aliviando e dando lugar como o " or1anato
e »
que, d e certa 1orma,
e a representa como o
à pena. local ainda mais próximo e temido para Ric. Observamos os
Max e Ana relatam que estão para efetivar a compra de fantasmas da mãe (ou pais) biológica(os) atuantes nas famílias
um apartamento, que estão precisando vender algumas coisas, de Pedro e Luciana. Elza se viu competindo, sem possibilidade
trocar de carro e apertar ao máximo o orçamento, para levantar de êxito, com a figura do pai (onipresente) e com as várias
o dinheiro da "poupança". Ana explica que esse foi o principal figuras de mãe que fazem parte da história de Pedro, e viveu

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uma intensa culpa em relação a esses fantasmas. Já para Neuza brevidade. Anotam, ainda, que o neurologista se referiu a uma
e José, a figura dos pais biológicos era tão ameaçadora que provável macrocefalia, encaminhando para raio-x e tomografia
decidiram "matá-la" na história contada a Luciana, colocando computadorizada.
como motivo - "e se depois ela resolvesse ficar com eles?", tal Não demonstraram apreensão diante dos possíveis resul-
como nos apontaram Caramuru (1990), Garma et ai. (1983), tados. Quanto a isso, Max comenta que "é normal, a gente
Hartman e Laird (1990) e Videla e Maldonado (1981). sempre pretendeu fazer todas as avaliações necessárias" e
O tema central da sétima entrevista foi o desenvolvimento Ana completa dizendo que tendo um diagnóstico preciso vão
de Ric e a discriminação sentida pelo fato da adoção. Logo poder oferecer o melhor atendimento a Ric. Como sempre
ao chegarmos, Ana nos recebe contando que fizeram uma souberam que ele tinha atraso, o mais importante é saber até
consulta ao neurologista, que encaminhou Ric para uma série onde podem ir trabalhando o menino, o que esperar dele para
de exames. Um deles, o E.E.G., realizado no decorrer desta não "puxar de mais nem de menos".
semana, fora muito trabalhoso e engraçado, ao mesmo tempo Max acha surpreendente o desenvolvimento de Ric, diz que
pela impossibilidade de fazer Ric permanecer de acordo com está muito satisfeito com tudo o que este apresenta. Acredita
as instruções. Pede para aguardarmos Max (quem acompa- que ele pode fazer muito mais ainda, que "não 'ligou' tudo na
nhou) contar os detalhes (obs. Max chegou uns 15 minutos cabeça dele", porém concorda com Ana em fazer todos os
depois do horário, trazendo Ric). Ana relata que ficou muito exames para "a gente se ver livre disso".
chateada com a reação do neurologista, ao saber que o menino Ana acha que sua preocupação não é excessiva de "mãe
era adotivo, fazendo observações, como: "ele é tão boni- adotiva, que quer recuperar o que menino perdeu". Comenta
tinho, tão claro, não parece adotivo" ou, "vocês são corajosos, que ficou indignada com a postura "alienada, discriminatória
parabéns!". e pequeno-burguesa" do médico, famoso pela competência
Retomamos o assunto com a presença de Max, enquanto técnica. Passamos, então, a discutir o problema da discriminação
Ric fazia um lanche e depois brincava no seu quarto. O casal sofrida pelo fato de não terem adotado como consequência
relatou, também, a visita ao oftalmologista, que diagnosticou de esterilidade ("o que seria mais normal", segundo alguns
miopia e leve estrabismo bilateral convergente com necessi- comentários citados) e, mais ainda, por terem adotado uma
dade de uso de óculos corretivos e, após, reavaliação para o criança "grandinha", o que é triplicado, quando percebem
uso de lentes de grau. que esta criança "não é como as outras da sua idade". Ana
O casal estava levando Ric para todos os exames soli- assinala ainda que não esperava tanta discriminação por parte
citados, através do convênio médico, acelerando o que era de algumas pessoas, como uma colega de trabalho que reagiu
possível para a obtenção das condutas necessárias, com de forma bastante agressiva ao fato, e do desconhecimento

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de tantas outras pessoas que os veem como "heróis", por na casa da avó pela manhã (esta o leva e busca da escolinha) e
anda desobedecendo e reclamando pela mãe durante a manhã.
exemplo.
Ana referiu achar estranho, pois ele está bem acostumado com
Através dos relatos de busca de orientação técnica e trata-
os avós, gosta da escolinha.
mento para as dificuldades neuropsicomotoras e visuais
observadas em Ric e do esforço no sentido de recuperação Refletimos depois com o casal que a dificuldade de Ric,
do tempo que este perdeu, o casal se mostra mais consciente como Ana já havia relatado, não devia estar na escola nem com
do que preocupado com a busca de um tratamento adequado os avós, mas sim com as mudanças todas que ocorreram. Em
para as necessidades do filho (sétima entrevista). Ana e Max tão pouco tempo ingressou na escola, a mãe passou a ficar o
mostram, ainda, a dificuldade em lidar com o preconceito dia todo fora, mudaram de casa, mudou sua rotina, tendo que
de pessoas de rúvel social igual ou mais elevado que o seu. sair dormindo ainda e passar o dia todo fora, sem o seu quarto,
Constatam que a discriminação com relação a não esterilidade sem os seus brinquedos.
deles e à idade "avançada" de Ric é maior do que supunham Max e Ana concordaram, dizendo que Ric voltava da escola
e redobrada por este apresentar atraso significativo no desen- exausto, dormindo no carro, e que estavam, ainda, em processo
volvimento. Max e Ana salientaram ter sofrido a discriminação de mudança. Mostram-se, porém, confiantes que a situação se
que aparece, com mais frequência, no sentido de considerá- resolva para melhor do que antes.
-los "heróis samaritanos", tal como está referido na literatura Percebendo que estavam todos cansados, Ric precisando
(ROBERT, 1989; VIDELA e MALDONADO, 1983). de atenção, chegar, de fato, a casa, e que não haveria nada
Encerramos a entrevista deixando em aberto o assunto em mais a ser tratado especialmente naquele dia, sugerimos
pauta, a ser retomado numa próxima. Segundo a nossa agenda, encerrar a entrevista trinta minutos mais cedo e marcarmos a
retomaríamos a encontrar a família já no seu novo endereço. seguinte para um sábado, quando estariam todos em casa, mais
Combinamos com Max e Ana aguardarmos em frente do descansados.
apartamento antigo, para segui-los até o novo endereço num Observamos, na oitava entrevista, que Ric estava estressado,
bairro bem distante e desconhecido para nós, a fim de reali- que a familia ainda procurava um novo ritmo para atender
zarmos a oitava entrevista. Encontrava-me exatamente na às novas demandas surgidas com a mudança recente. Max e
hora marcada, Ana quis vir conosco, enquanto Max levava Ric Ana estavam sem condições de uma percepção mais crítica
e sua professora, que é "vizinha de porta" deles. Demoramos da situação, mostrando-se preocupados com as mudanças
cerca de vinte minutos no trajeto e enquanto isso Ana falava no comportamento de Ric, sem conseguirem associá-las ao
das dificuldades de Ric na escola. Andava "brigando e fazendo contexto atual. Em meio a tanta desordem, precisavam de um
muitas birras, chorava também com facilidade". Ele tem ficado tempo real e interior para arrumar a nova casa. A agressividade

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ADOCÃO TARDIA
Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro
Da família sonh~da à família possível

de Ric na escola e as "manhas" e birras que vinha apresen- vez, já sabia emprestar suas coisas, reafirmando sempre "mas
tando com os avós apareceram como reações de ajustamento é meu, né ... é meu tá".
ao ambiente conturbado. Ana não permitiu que os meninos continuassem frequen-
Chegamos à casa da familia, para a nona entrevista, com tando sua casa só para usarem os brinquedos de Ric. Assinalou
uns quinze minutos de atraso (perdi-me no caminho). Ric que percebe progressos na fala, avaliando que tiveram vanta-
estava brincando tranquilo no seu quarto e o casal já se preo- gens na adoção de Ric, porque ele não tinha uma figura de mãe
cupava com o meu primeiro atraso, imaginavam o que de fato a ser substituída, uma relação que se iniciou do começo como
ocorreu. se não existisse nada antes (pai, mãe, avós, etc.). Refere, ainda,
que estão conscientes que Ric pode voltar a regredir, mas,
Max começa relatando que Ric já dava ordens para o
como ele tinha um nível de desenvolvimento de uma criança
cachorro dos avós, que perdeu totalmente o medo. Retomamos
de um ano e pouco, a adaptação foi mais fácil do que seria a de
o assunto da entrevista anterior sobre o comportamento de
uma criança com mais vivência, mais consciente da situação,
Ric, e é Max que fala que com eles não acontece nada de dife-
como a menina que os abordava na instituição.
rente, é só quando está longe que fica chorão; se dorme pela
manhã na casa da avó, está mais tranquilo na escola e volta Max acha que o nível de desenvolvimento de Ric está se
mais desperto no final do dia. igualando ao nível cronológico e discorda com Ana em relação
ao nível de consciência do mesmo na época da adoção, consi-
Ana acha que Ric está sendo muito mimado pelos fami-
derando que o problema maior era na expressão. Explicou
liares, que fazem todas as vontades dele de uma maneira
que se colocou na situação de vários pais (colegas) biológicos
"excessiva". Sua irmã está de férias e aproveita para "carregá-lo
que enfrentam problemas com os filhos de três, quatro anos,
para todo o lado': fazendo tudo o que ele quer; 'bda vez que
e se sentiu mais preparado para ser pai do que a maioria deles,
sai com ela, ele volta manhoso, confiado". Ana pediu para sua
"talvez por nós começarmos a coisa de uma forma diferente·
mãe mantê-lo mais em casa, cortando as manhas e excessos '
parece que o pai biológico aprende com o passar do tempo,
de mimo; brincando, diz que mimo de avó é inevitável, mas
as coisas vão caindo mais natural para ele e o pai adotivo não,
como já é uma instituição não é nocivo como o de outros
tem que estar mais atento e aprender mais rapidamente, pois
parentes. É inevitável deixá-lo lá. Ric vem para a sala pedindo
atua mais".
para jogar bola, Max pede que espere, brincando, um pouco
mais no quarto. Passamos a falar, então, sobre o brinquedo Comentamos que Max esteve tão presente quanto Ana
com outras crianças. Ana comenta que, por duas vezes, dois desde o início da relação e isto facilitou o desenvolvimento
vizinhos subiram para brincar com Ric e que só se interes- de uma "paternidade meio maternal" na divisão por igual dos
savam nos brinquedos dele, deixando-o de lado; ele, por sua

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ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

cuidados básicos desde a chegada de Ric. Lembramos que ele integração entre eles evitou entrarem em disputas, como o
viveu a ansiedade inicial de forma típica a uma puérpera. observado no caso "Cláudia", ou trocarem de papéis, como
no caso de "Luciana".
Ana, no segundo mês de trabalho, sentia-se perdendo o
controle na educação de Ric (nona entrevista). Estava preocu- Ana começa falando, na décima entrevista, da dificuldade
padacom os excessos de mimo da irmã (o que nos sugere uma de deixar o trabalho, despedir-se dos colegas, de ficar desem-
possivel competição entre elas) e, ao mesmo tempo, aparecia pregada. O contrato trimestral que cumpriu numa grande
no papel de superprotetora, cuidando para que Ric não fosse empresa venceu na semana passada, pretende voltar a traba-
"usado" pelos meninos vizinhos. A presença do pai na relação lhar logo, pois não pode ficar sem aquele salário. Refere que
com o filho é avaliada positivamente por Max, que se consi- ficou com Ric no dia anterior pela manhã e ele brincava no
dera mais presente e seguro na relação com Ric do que tinha parquinho, quando sofreu a primeira queda desde que está
observado do desempenho de seus colegas e amigos com os com eles. Foi um tropeço com levíssimas escoriações, mas
filhos (biológicos) da mesma idade que Ric. O resultado dessa bem aproveitadas, para que ela cuidasse com remédio, afagos...
maior segurança é, segundo ele, a sua participação mais ativa, e para Ric mostrar, todo orgulhoso, o ferimento "curado" pela
desde o irúcio da relação; estando mais atento, aprendeu mais mamãe.
rapidamente a atuar desde o irúcio de forma mais significativa Observamos que, nessa volta de Ana para casa, mesmo
para a criança. A triangulação se faz desde o irúcio da relação "forçada", tinha muito de reparação. Ao fazer curativo no filho
pais-filho. Lembramos com o casal a ansiedade inicial de Max, machucado pela sua ausência, que aproveita a sua presença
que se assemelhava à ansiedade referida em Maldonado (1976) para obter os reparos, o "curtir ao máximo" este momento foi
3 bastante significativo. Observamos, também, que Ric, apesar da
como a síndrome de "couvade" •

Pudemos avaliar como a participação de Max enquanto dificuldade na marcha, no equilibrio, não sofria quedas; ques-
figura de pai foi importante, também, na relação que Ana esta- tionamos se isso era resultado do cuidado que ele tem consigo,
beleceu com Ric, pois ele funcionava como suporte de Ana ou da proteção de todos para com ele. Max chamou atenção
nos rnomentos em que esta ficava mais vulnerável. Estando para a forma com que Ric enfrenta qualquer enfermidade, não
sempre próximo, foi importante elo na relação mãe-filho. A demonstrando sentir dor, nunca se queixando, mesmo quando
estava com aftas ou bronquite com crises fortíssimas de tosse.
.\ síndrome da co11vade é uma designação para um conjunto de sintomas de or- Falou uma vez que doía a barriga e, quando foram consultar
dem psicogênica, que se assemelham à sintomatologia comum na gravidez, parco o pediatra, foi constatada uma verminose de tipo grave, para
e puerpério, só que experimentado pelos maridos. Abrange desde estados simples
de ansiedade até estados dissociativos de conversão. Segundo Maldonado (1976), ser eliminada, que costuma provocar muitas dores abdominais.
ci srem três hipóteses que tentam explicá-la. Uma delas, observada em Max, seria o
resultado de fortes sentimentos de identificação e empatia com a esposa e filho.

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Da família sonh~da à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

Discutimos com o casal que a situação de abandono em Tais situações nos parecem, também, relacionadas ao esforço
que Ric vivia não lhe permitia queixar-se, recorrer a alguém, das crianças para continuar agradando aos pais adotivos e
pelo fato de não ter a quem recorrer, e que todas as queixas garantir a aceitação deles.
e pedidos de ajuda seriam resultantes da relação de confiança Max ainda não havia chegado com Ric, e Ana estava à nossa
estabelecida com o interlocutor. espera, na ocasião marcada para a décima primeira entrevista.
O retorno de Ana à vida doméstica, pelo término de seu Explicamos a ela que gostaria de saber mais sobre a motivação
contrato temporário, serviu como facilitador da expressão deles para a adoção, que, escutando as gravações, sentimos
\
de necessidades mais regressivas em Ric. Ana, por seu lado, falta de mais detalhes. Ana passou, então, a relatar a sua história
demonstra necessidade de exercer a maternagem, o que é por si com Max, desde o tempo de namoro, situações que os levaram
1 um estímulo e/ ou reforço a condutas complementares de Ric, a pensar, muito vagamente, em adoção. Refere que ficou muito
que não havia feito nenhuma queixa de dor ou pedido de ajuda, impressionada quando um menino de uns oito anos apareceu
li por exemplo, para suas dificuldades motoras. Sempre muito drogado na frente de sua casa e, mordido por um cachorro do
cuidadoso consigo mesmo, embora ativo, Ric não sofrera, até vizinho, necessitou de ajuda; lembra que queria ficar com ele
então, nenhuma queda, nenhum ferimento. Parece-nos que a e que foi muito triste vê-lo ser espancado pelos policiais que
\I
situação de abandono de Ric fez com que não tivesse queixas, foram buscá-lo. Conversaram muito depois desse episódio,
que a angústia pelas perdas o tornou insensível às dores físicas que se tivessem condições teriam, naquela época (faz mais de
citadas por Max. Mas já aparecem sinais de sensibilização a 10 anos), intercedido para ficar com a guarda do menino.
partir dos cuidados, por sua vez, reparadores, de Ana. Ana nos entregou as respostas de um questionário que nos
Foi observado, também, em Pedro e Luciana o compor- fora enviado por colegas pesquisadores e discorre sobre as
tamento de não chorar ou se queixar de dor. Elza referiu questões; comenta, também, sobre a importância do trabalho
estranhar que Pedro não sabia chorar ou reclamar de dor de acompanhamento e sobre o material que lhe fornecemos,
quando caía e se machucava ("parece que ele não sabe chorar, o qual, segundo a própria, tem lhe ajudado muito através do
dá só um grunhidinho, bem baixinho [...] fiquei preocupada ..."). conhecimento da experiência de outros pais, e está servindo
Semanas depois de estarem convivendo, de ter recebido como incentivo para participar mais ativamente num processo
cuidados de "mamãe", é que Pedro começou a fi car "doen t e,, , de trocas e divulgação de sua experiência, que resume não ser
chegando depois a "curtir" (ganhos secundários) uma semana "o céu nem o inferno, mas tem um pouco dos dois".
na cama por causa de um resfriado. Neusa também refere que O assunto continuou, após a chegada de Max, girando em
Luciana teve crises de amigdalite com febre altíssima e parecia torno da importância que está tendo para eles o acompanha-
tranquila O tempo todo ("nunca disse um 'ai' para se queixar"). mento recebido, da carência, sentida, de informação sobre o

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Da família sonhada à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

tema, que não sabiam ser tão necessária para lidarem adequa- mãe e segw·u rabiscando numa outra folha. Solicitamos então
damente com as situações específicas surgidas. Assinalaram, ' '
que desenhasse uma família e ele fez uma "cada qui" (traduzido
ainda, a importância de reuniões, grupos de pais adotivos para pela mãe como "escada do apartamento"), e foi rabiscando em
a troca de experiências. várias folhas com o objetivo de preencher até a última e usando
Traduzimos, para o casal, o tom de término do acompa- todas as cores disponíveis. Logo se distraiu brincando com os
nhamento que estava tendo esta entrevista. Houve tentativas lápis e deixou de desenhar; quando solicitamos para guardar
de negar a perda - "mas você vai continuar vindo nos ver, o material, resolveu, então, voltar a desenhar. Representa sua
não?", "mas a gente vai poder contar com você para nos família - desenha o "papai... essa mamãe" e o Ric represen-
orientar sempre que a gente precisar?". tado como uma bola em cima do papai. Solicitamos, depois,
Sentimos que a dificuldade de lidar com a iminência da que ele escolhesse uma cor para pintar o papai- "é vemelho",
perda levou o grupo a ampliar os "horizontes" do acompa-
nhamento, diluindo esse espaço dos nossos encontros em Figura 1
outros eventos mais abertos, sem a perda do vínculo. Quando
pontuamos a situação, houve a negação da mesma por parte RIC
do casal, que via, na possibilidade de orientação, a continuação,
por tempo indeterminado, do nosso acompanhamento.
Ric veio correndo para abrir a porta, estava nos esperando
para a última entrevista. Quis logo saber o que tínhamos na
pasta que portávamos. Explicamos que, além do gravador,
fitas e objetos habituais, estávamos trazendo muitas folhas e I
/4
lápis de todas as cores para ele desenhar. Deu pulos de alegria
e, imediatamente, colocou-se pronto para desenhar. Desenhou
uma "banana" enorme, uma casa, uma cidade. Solicitamos
que desenhasse uma pessoa e ele perguntou: "um menino?".
Respondemos "pode ser" e, então, ele desenhou "o Super-
-Homem" (cf. fig. 1), segundo tradução de Ana, que também
explica que lhe deu uma lancheira estampada com uma figura
do "Super-Homem". Ela pedia-lhe que desenhasse melhor
"como você já sabe". Ric não tomou conhecimento da fala da
Desenho do Super-Homem feito por Ric.
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Da família sonhada à famíl ia possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

a mamãe - azul-claro e para si escolheu um azul escuro. Ric vezes com um colega e dizia, cheio de raiva, que iria bater
pegou outra folha e fez três traços horizontais em toda a sua bastante no menino da próxima briga. Falava do jeito tatibi-
extensão (com a mesma cor azul selecionada para si), represen- tate, com frequência ("parece que aumenta, quando a gente
tando os três. Fez, depois, um "outro Ric" e falou que "papai e chama a atenção"), e apresenta outras condutas regredidas
mamãe", também, são Ric. Pedimos que nos explicasse como ("pede colo e faz manha toda a hora"). Ana admite que está
era isso, mas ele já estava em outra situação, brincando com a permitindo e alimentando essa necessidade dele, pois, como
nossa pasta. Encerramos os desenhos, guardando o material, fora orientada que poderia acontecer, é a primeira vez que Ric
e sugerimos a ele que fosse brincar, enquanto conversássemos apresenta esses comportamentos tão tipicamente regressivos.
com seus pais. Ele concordou, imediatamente, dirigindo-se ao Questionaram por que só agora Ric está se portando assim, e
seu quarto para brincar com "fuquinhas" (carrinhos). foi levantada a hipótese de que ele já chegara bastante "defa-
A identificação de Ric com os pais adotivos é observada sado", era como neném, no começo. Foi num ritmo rápido
através da representação destes no desenho da família, em que de aquisições, incorporando muitas experiências de maneira
todos aparecem com a mesma forma. Ric coloca a figura da mcessante.
mãe, assumindo uma importância maior, ao mesmo tempo em Ric vinha apresentando comportamentos com caracterís-
que a figura do pai está referida como base da sua própria. ticas mais regressivas. Suas necessidades afetivas eram expres-
O desenho de Super-Homem feito por Ric nos remete à sas num comportamento de "querer ser bebê", que aparecem
constatação feita por alguns autores (Garma et aL, 1985; Videla principalmente em brincadeiras com a mãe, que se sentiu satis-
e Maldonado, 1981) de que o referido herói é o mais passível feita em poder desempenhar esse papel com ele. Este, porém,
de identificação pelas crianças adotivas, por suas caracterís- colocava limites de acordo com a sua satisfação ("agora não
ticas onipotentes e maníacas, as quais lhe permitem feitos quero mais brincar disso"), mostrando que não queria estar
que ultrapassam as possibilidades humanas. A lancheira que regredido, mas experimentar a regressão como possibilidade
continha a figura do personagem com o qual Ric se identificou para reconstrução dos vínculos primários.
foi presenteada pela mãe. Isso nos sugere que a figura do herói Passava, no momento, por um período de estabilidade,
continua sendo, como já afumava Garma et aL, uma "tentativa Ana voltou a ficar em casa com ele, começou o período de
cultural de elaboração da situação traumática para o psiquismo férias, ficando os dois mais próximos; e, como Ana refere, sua
humano" (ibid, p. 128). atenção está voltada para "curtir" o Ric exercendo a mater-
Ana nos contou que o progresso dele na escolinha foi nagem ("mesmo sem tratá-lo como bebê") de forma mais
grande, que estava tudo tranquilo quanto à aprendizagem, mas, "solta", despreocupada por já entendê-lo bem, o que não só
quanto ao comportamento, andava "terrível". Brigou algumas "permite" como pode estar incentivando/"alimentando" as

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Da família sonh ada à família possível Ric: do medo à ousadia nas relações com o outro

condutas supracitadas, assinala, contudo, que esses compor- social faria constar no seu relatório a ótima adaptação de Ric à
tamentos não são constantes, "são episódios"; que, no geral, família, parabenizando-os pelo sucesso alcançado.
ele continua evoluindo, escolhe suas roupas e se veste prati- Para exemplificar o desenvolvimento de Ric, no referente
camente sozinho, cria histórias e as conta, conversa com ao crescimento, aumentou 4 cm, 4 kg (segundo ficha médica
seus personagens... "está bem moleque, um molecão (risos) ... dos dias 23/11/93 e 20/07 /94) e cinco números de calçado.
agora é o cachorro (coisa pior que existia no mundo para ele, As observações feitas por amigos e vizinhos que o conhecem
segundo Max) que corre dele". desde o começo são do tipo "ele já está conseguindo fazer
Referem que o resultado dos exames solicitados pelo isso!". A linguagem, também, mostra uma evolução signi-
neurologista não acusou nada. Por outro lado, Ana se diz preo- ficativa: de palavra-frase passou a exibir um vocabulário
cupada em como lidar com as condutas agressivas de Ric. compatível como de uma criança de três anos. Mesmo com
Desde que um colega apareceu com um revólver, na uma articulação deficitária, que, às vezes, nos impedia o enten-
escolinha, pede para ter o seu, e qualquer objeto transforma- dimento, sua desinibição e nível de compreensão possibilitam
-se numa arma, para brincar de matar todo mundo. Max e exercícios (informais) até se aproximar do inteligível.
Ana contam que entram no jogo e "morrem" toda a hora, Sempre existiu uma preocupação do casal, segundo Ana,
mas Ana não gostaria de comprar um revólver de brinquedo, no sentido de saber se ele estava bem, de como melhorar as
porque sempre foi contra e tirou da mão de seus sobrinhos. coisas para ele e, para isso, estão indo fundo nas avaliações e
Quando pedem orientação, respondo que tenham os manejas nos tratamentos de que ele precisar. Para quem comenta que
que forem possíveis para eles, que o mais importante é serem ela "batalha demais por ele", defende que é uma preocupação
espontâneos, e aproveito para questionar a repressão dessa normal de mãe, que não está querendo retomar tudo o que Ric
agressividade de natural. Ana parte daí para argumentar que perdeu, no sentido de eliminar o passado dele, como o pediatra
meu acompanhamento não poderia terminar já ("falta muita sugeriu, mas que estará sempre fazendo tudo o que estiver ao
coisa ainda"). Usamos sua fala para fazermos uma retrospec- seu alcance, o que for melhor para ele, como se fosse um filho
tiva do que foi para eles esse acompanhamento. biológico que tivesse uma sequela de parto, por exemplo.
Ana comenta a visita de uma assistente social do juizado Max finaliza dizendo que já tinham comentado, entre
para a avaliação de rotina, que esta ficou bastante surpresa eles, a respeito do acompanhamento, tendo concluído que:
com o desenvolvimento de Ric e disse que, mesmo com "é estritamente essencial, fundamental, indispensável para as
os meus relatórios, não imaginava tanta mudança para uma situações de adoção de crianças maiores". O casal enfatiza,
criança "cheia de problemas, com uma história complicada" também, a necessidade de uma preparação, antes de conhecer
como a dele; completa o comentário referindo que a assistente a criança, assinalando que: "por mais preparado que você

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Da família sonhada à família possível Ri c: do medo à ousadia nas relações com o outro

pensa que esteja, você não conhece, não imagina, 1/10 do e seus pais, a qual muitas pessoas tentavam negar com Ric, em
que vai acontecer. (...] É uma coisa fantástica, é uma caixinha virtude do preconceito - "não parece adotivo" -, tornou-se
de surpresas ...". Refere, ainda, que o relacionamento humano mais incomum ainda. Ric se mostra muito orgulhoso de ter
("conhecer, entender o outro") é algo complicado, e quanto "ganhado o seu irmão (que já fez um ano e não perde os seus
mais ajuda, mais esclarecimentos, mesmo teóricos, são "luzes" passos) conforme a encomenda; de ele ter vindo da barriga da
importantes, principalmente quando "se tem uma criança, sua mãe e de ter ficado "chocando" junto com esta (podendo
com uma história que não se conhece, para educar". reviver/refazer o seu próprio nascimento) e de se sentir em
condições de "ensinar muitas coisas" ao seu irmão, já que é o
Pensam que os adultos precisam mais de acompanhamento
mais velho.
do que a criança, que tem o esforço maior no processo de
adaptação - "sem dúvida, o mérito é deles, do que eles conse- Nesse início de ano, a família estava envolvida com os
guem ser, de como eles conseguem viver, aprender com a preparativos para o ingresso de Ric na primeira série, motivo
gente, a gente só fica se preocupando, correndo atrás que de muita comemoração na história deles. Ric pretende enco-
nem galinha choca, tentando acompanhar [...]", fala Ana, que mendar mais um irmão no próximo ano, continua preferindo
pergunta, na despedida: "mas a gente marca outras, a gente se menino, alegando que menina "dá mais trabalho quando
vê ainda, né?". cresce e só quer namorar".

Continuamos mantendo contato. A cada seis meses, faço


uma visita à família. Eles entram em contato regularmente
para "contar as novidades", como o anúncio da gravidez de
Ana, três anos após a adoção de Ric; a chegada do irmão-
zinho, que foi "encomendado ao papai do céu" por este que
acompanhou tudo de perto entre "enciumado e deslumbrado"
(sic). Ana preocupou-se em preparar Ric para ter um irmão
bem diferente dele, pois sendo louro de olhos azuis e os
pais morenos, de olhos pretos, principalmente o pai que tem
parentes mulatos e ninguém de olhos claros na rede familiar
mais próxima, a probabilidade era quase nula de nascer um
menino conforme Ric anunciava para todo o mundo: 'hieu
irmão vai ter os olhos que nem eu". E assim aconteceu. O
irmão de Ric tem os olhos tão azuis, que a diferença entre eles

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Capítulo 5
A travessia de Cláudia
A travessia de Cláudia

Quando vocêfoi embora fez-se noite em meu viver


Forte eu sou, mas não tem jeito, hqje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha e nem é meu este lugar [...]
Vou querer amar de novo, e se não der, não vou sofrer
(Travessia, de Milton Nascimento)

Os primeiros passos
Estávamos na sala do serviço de psicologia da instituição,
Cláudia e eu, a abrirmos e fecharmos caixinhas vazias, quando
nos foi avisado que o casal que pretendia adotá-la acabava
de chegar. Assim que os viu, Cláudia agarrou-se a mim aos
prantos. Ao invés de introduzi-los na sala, saímos para o plcry-
ground No meu colo Cláudia enroscava-se, escondendo-se
como um bichinho acuado pelo casal; negou-se a brincar, mas
já não chorava, e voltamos, então, para a sala. Durante jogos,
ela foi permitindo a aproximação do casal, Márcia e Pedro,
que, por sua vez, necessitavam ser contidos no desejo de
tomarem logo posse da menina. Ao final da entrevista, Cláudia
já estava bem instalada no colo de Márcia e a despedida se deu
sob lágrimas de ambas.
Foi muito intensa a emoção experimentada por todos nesse
encontro. Percebi minha função como a de dar passagem,
facilitar. Era como se eu fosse uma ponte onde Cláudia perma-
necia, muito receosa de atravessar até Márcia e Pedro. Como
eles vinham apressados ao seu encontro, ela recuava, segu-
rando-se fortemente com medo de "cair" e perder o encontro
que ela temia e desejava ao mesmo tempo.

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ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível A travessia de Cláudia

Percebia-se que os filhos vinham sendo preparados já há


A história de Cláudia
algum tempo para receber um irmão adotivo. A adoção faz
A intervenção do Estado na vida de Cláudia se deu através parte do histórico da família de Márcia, que tem quatro irmãos
de uma irmã mais velha, deficiente mental profunda, internada adotivos, além de três biológicos, como ela. O "querer" adotar,
num hospital com evidências físicas de abandono e maus- desde o tempo de namoro, independentemente dos filhos
-tratos. Como a história de maus-tratos estava se repetindo biológicos que pudessem ter, parece-se muito com um "ter
com Cláudia, 2 anos e 7 meses, que tinha um desenvolvimento que", para continuar a tradição familiar e atender a convicções
considerado normal, ela foi colocada na instituição onde se morai e religiosas. Márcia participava, como voluntária, de
encontrava há um ano e três meses na época da adoção. A uma instituição de abrigo de crianças mantida por uma comu-
irmã fora encaminhada para uma instituição especializada em nidade religiosa. Lá ela se apegou a uma menina que tentou
deficientes profundos. adotar, não tendo conseguido por ainda não estar cadastrada
Cláudia apresentou inicialmente dificuldade de adaptação no juizado.
na instituição devido ao desnível existente entre ela e o grupo Considerando-se que a maioria dos autores que pesquisaram
em que foi colocada. Sendo uma menina que já vivia na rua, o tema aponta estreita relação entre adoção e esterilidade dos
não suportou o espaço restrito de um berçário, onde as demais adotantes, Márcia e Pedro são atípicos. o entanto, há referên-
crianças ainda não andavam. Fugia da sala o tempo todo e, cias a um grupo de adotantes (pequeno) para os quais a adoção
mostrando muita simpatia, logo se tornou bastante popular se constitui numa das respostas possíveis a seu desejo huma-
na instituição. Nunca se referiu à família e seus pais, que nitário. São geralmente casais que, já possuindo filhos maiores,
eram usuários, dependentes de drogas, nunca foram visitá-la. procuram adotar para "ajudar uma criança abandonada" numa
Quando recebia visitas da avó e de outra irmã sob a guarda atitude, muitas vezes, fundamentada numa convicção social e/
desta, agia com indiferença, segundo informação de funcioná- ou religiosa (ROBERT, 1989). O que nos pareceu ser o caso
rios que a acompanhavam. Estabeleceu uma relação mais dife- dessa família, que está intimamente relacionada com a cultura
renciada com uma atendente, que chamava de mãe (mediante familiar.
estímulo desta, que pretendia adotá-la), e no grupo estava
A decisão de adotar uma criança de mais de dois anos foi
sempre "colada" nos monitores homens.
questionada e tivemos como resposta do casal que até prefe-
riria uma criança menor, mas como é muito demorado para se
conseguir um recém-nascido e como estão há quase dois anos
A família inscritos no juizado, quando foram chamados, resolveram
Pedro, 39 anos, Márcia, 36, casados há 14 anos, com conhecer a menina, e a identificação dela como filha foi quase
três filhos: Teodoro, 12; Rafael, 9; e Maria Laura, de 7 anos.

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AOOCÃO TARDIA A travessia de Cláudia
Da família sonh~da à família possível

Pudemos observar aqui a relação dos fantasmas do filho


imediata. Disseram-se surpreendidos, pois a criança que encon-
imaginário com a criança real, uma vez que, ora ela é muito
traram superou as expectativas, segundo palavras de Márcia:
idealizada, "perfeitinha", linda e inteligente; ora ela pode ser
"ela é tão perfeitinha, tão meiga e com olhar tão vivo e tem um
portadora de vários problemas estigmatizantes trazidos de sua
quê de familiar que já a vejo como minha filha". Mesmo assim,
família biológica e do meio em que se encontram, tais como a
mostravam-se muito preocupados com possíveis sequelas
Aids ou atraso mental.
dos maus-tratos e do tempo de institucionalização da criança.
Solicitaram, também, o teste de HIV e muitos detalhes de sua
família biológica, o que nos revela o medo pelo risco assu-
mido com a incorporação de um "estranho" à família, que,
Resumo do acompanhamento
segundo Costa (1988), abala uma "ordem lógica" estabelecida Decorridos dois meses do primeiro contato e após uma
pela herança genética na seleção de parentes. semana de visitas diárias e com a documentação necessária
O casal mostrou claramente sua ambivalência afetiva, expedida pelo juizado, foi chegado o momento de Pedro e
natural em qualquer gravidez (MALDONADO, 1976), Márcia levarem Cláudia para casa. Com a atenção diferenciada
quando manifestou querer muito adotar Cláudia logo, mas que vinha recebendo, em função do nosso acompanhamento
só após o resultado do teste de HIV negativo, que não tinha e das visitas do casal, Cláudia destacava-se do grupo, tinha um
uma previsão de tempo para o resultado. Enquanto aguar- nível de atividade e liderança especial e ela se percebia como
davam, Márcia e Pedro se revezaram em telefonemas ansiosos "vede te", principalmente enquanto eu documentava, com
e exigentes, queriam contatos com a menina, enquanto afir- fotos, o evento. Ela não cabia em si de excitação, enquanto
mavam a impossibilidade de adotá-la, caso o resultado do vestia a roupa trazida pelos "novos pais". Sua saída foi o
exame fosse positivo, alegando a dificuldade que traria a convi- acontecimento do dia para a instituição, todos queriam vê-la
vência dela com os três filhos (biológicos) do casal. Teodoro de roupa e "identidade" novas. Pedro guardava no carro uma
era O mais reticente em relação à adoção, questionando-a pelo boneca de pelúcia, que Cláudia abraçou fortemente e manteve
fato de a mãe poder gerar outros filhos; Marcelo estava intei- apertada junto a si durante todo o trajeto até sua nova morada.
ramente envolvido com "suas coisas", como o campeonato de Fomos recebidos por Maria Laura, que introduziu Cláudia
hipismo para o qual se preparava com enorme entusiasmo e na casa e a levou por todos os aposentos, efusivamente. A
achava "tudo legal"; Maria Laura mostrava-se a mais empol- casa estava em clima de festa. Havia uma mesa preparada de
gada em ter uma companheira e um reforço para seu "time doces para um "chá com a madrinha", que acabava de chegar
de mulheres". Com ar professoral, dizia ter muita coisa para trazendo um par de brincos de presente para a "afilhada".
Cláudia percorria todos os cantos da casa levando-me consigo,
ensinar à futura irmã.

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível A travessia de Cláudia

examinava com um misto de curiosidade e euforia cada objeto. situação de gravidez (entrava no sétimo mês do segundo filho)
O vínculo estabelecido comigo e a minha presença era um e tive muito medo naquele momento. Pude entender que uma
ponto de referência importante para Cláudia nessa transição, adoção pode significar sempre um parto prematuro, uma vez
embora brincando com os irmãos e inspecionando animada- que os futuros pais não têm uma previsão de quando ele vai
mente a casa, ela controlava minha presença com olhar que acontecer e, na adoção tardia, por mais preparados, sempre é
parecia lhe dar a segurança necessária para ir em frente, na uma situação de risco que requer cuidados especiais na fase
exploração do novo território. crítica de adaptação.
Ao final do período que durou minha permanência (uma Quando realizei a primeira visita a Cláudia e família, estavam
hora), o casal mostrava-se preocupado com as próximas etapas Márcia, Cláudia, Fábio e Maria Laura. Enquanto Maria Laura
do processo. Fizeram perguntas como: "E agora, daqui pra brincava com a filha dos caseiros numa casa de brinquedos ao
frente como a gente procede?", "Como será seu acompa- fundo do quintal, Fábio assistia à TV e aguardava a condução
nhamento?", ''A gente pode buscar a sua ajuda sempre que que o levaria para o curso de inglês, e pouco participaram da
precisar?", "O que você está achando de tudo até agora?". entrevista. Cláudia circulou o tempo todo pela casa e jardim,
Combinamos que, dentro de oito dias, voltaria para uma às vezes ia à casa de brinquedos, sendo logo trazida por Maria
visita/ entrevista. Ao sair, Cláudia começou a chorar pedindo Laura, que reclamava não poder brincar com a amiga tendo-a
que eu permanecesse consigo. Parecia acuada novamente, "colada" em si o tempo todo.
quando todos se aproximavam, tentando acalmá-la. Levei-a Márcia referiu que estava sendo particularmente difícil
para o jardim e conversamos sobre ser essa a sua nova casa, a para Maria Laura a inclusão de Cláudia na família. Na verdade,
sua nova família, só se ela quisesse, mas que teria que ficar ali estava reagindo como qualquer criança ante o nascimento
um tempo com todos a quem ela já conhecia, os quais eram de um irmão, regredindo em alguns aspectos para conti-
seus amigos. Perguntou se eu voltaria lá e, mediante minha nuar ocupando o espaço "pretendido" pela irmã; requeria a
afirmativa, parou de chorar e atendeu correndo ao chamado mesma atenção que a mãe dava para a outra. Como tal reação
para comer os doces que estavam sendo servidos. de Maria Laura era esperada por Márcia, não se configurava
Senti uma espécie de sobressalto, como se tivesse deixado um problema para esta lidar, que, no entanto, referia dificul-
algo importante para trás ou por fazer. Chovia muito e perdida/ dades para atender às necessidades de atenção de todos: "às
presa no trânsito, senti-me muito deprimida. A emoção que vezes, tenho que me virar em quatro, são todos à minha volta
me assaltara naquele momento em que tinha deixado Cláudia querendo algo de mim". Por outro lado, o mais difícil para ela
tão apreensiva, era a de ter tido um parto difícil e de a criança é sentir Cláudia indiferente: "ela não me considera como sua
inspirar cuidados especiais, o que se misturava com a minha mãe ainda [...], não sei se vai considerar um dia. Tem dias que

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ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível A travessia de Cláudia

ela parece me ignorar [...]". Márcia percebe que Cláudia está ciúmes, falando sobre a situação de modo que pudesse reorga-
bem ligada ao pai, só que não permite que ele a veja nua, lhe dê nizar seu espaço sem se sentir prejudicada e pudesse perceber
banho, por exemplo, e isso ela acha que é uma consequência a presença de Cláudia, não como alguém que a perseguia,
do trabalho de alguns monitores ou meninos na instituição mas a aliada que esperava ter, como alguém que a tinha como
que a deixaram com pudores diante dos homens. Como tinha modelo necessário no momento, para depois poder assumir o
dados a respeito de que a menina se relacionava bem com os seu próprio espaço, sem necessitar mais invadir o dela.
"tios", pensei se tratar de aspectos típicos da relação triangular,
Cláudia passou a frequentar o Jardim I na escola onde
já que estaria, também, competindo com a mãe.
estudavam os irmãos, já na semana seguinte à sua chegada.
Discutiu-se a dificuldade natural de uma criança recém- Teve dificuldade inicial de adaptação, passou a descontrolar
-adotada estabelecer vínculos, e que isto poderia estar aconte- os esfíncteres principalmente na escola, o que era um fator
cendo com Cláudia. Havia necessidade de ela ter mais tempo importante de impedimento para que continuasse frequen-
para adotá-los, mas a expectativa frustrada de Márcia de suprir tando-a. Márcia referiu que a professora não vinha mostrando
todas as necessidades básicas de Cláudia, exercendo materna- muita disponibilidade para trabalhar a adaptação de Cláudia.
gem como se ela fosse um bebê, reforçava naquela um senti- Contou que Teodoro, o irmão mais velho, viu Cláudia pedindo
mento de rejeição que dificultava o vínculo. A imagem da filha para fazer "xixi" e não ser atendida prontamente pela profes-
esperada, desejada, era de alguém muito mais dependente e sora, que repreendeu a menina quando ela já estava molhada.
demonstrando carência do que a filha real. Márcia, considerando que a professora estivesse discriminando
Márcia queria mostrar-me a evolução de Cláudia tentando Cláudia, não tanto por ser adotiva, mas por ser mulata, havia
que ela exibisse suas novas aquisições, como a compreensão solicitado uma reunião para a semana vindoura, com a diretora
verbal para ordens simples como buscar determinados brin- e professora, a fim de discutir o assunto. Achava importante
quedos. Entretanto, Cláudia estava mais interessada em que Cláudia continuasse frequentando a escola, numa maneira,
acompanhar os movimentos da irmã, apesar (ou por causa) dos também, de integrá-la ao grupo de irmãos. Como Márcia conti-
protestos desta. Além do início de competição entre elas, era nuou trabalhando, era uma forma de manter Cláudia ocupada
evidente o interesse de Cláudia em Maria Laura como modelo por um período do dia. Observa-se nesse movimento de
de identificação, como ponto de referência dentro da casa. Márcia em "manter Cláudia ocupada" (sic), uma ambivalência
Márcia refere que: Cláudia cola na irmã e tenta imitá-la em tudo, em relação ao exercício da maternagem. Ao mesmo tempo em
o que acaba sendo muito complicado para Maria Laura. Discu- que desejava uma filha adotiva frágil, dependente, junto a si,
timos, então, a respeito da necessidade de liberar Maria Laura insiste para que Cláudia se adapte à escola e acompanhe os
dos cuidados com Cláudia; de permitir-lhe as expressões de irmãos, já independentes.

118 119
-

1 ...... ~- • .. -
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível A travessia de Cláudia

Em relação à evolução de Cláudia, estava mais falante, com Na primeira entrevista domiciliar após a interrupção,
uma aquisição significativa no vocabulário (mais de 100%) e estavam presentes Márcia, Maria Laura e Cláudia, mais tarde
movimentava-se com desenvoltura. Sentava-se no sofá com chegaram a madrinha de Cláudia com os filhos para visitá-las.
uma postura de "dona do seu espaço", interpretado por Márcia mostrava que não havia reservado o horário só para
Márcia como: "vê como eu sou importante!". Percebi que a nossa entrevista, como combinado. Havia observado ainda
durante todo o tempo, mesmo quando parecia mais distante e que os outros filhos não estavam por falta de empenho de
interessada nos seus brinquedos, Cláudia manteve-se atenta a Márcia na presença deles.
tudo, principalmente quando o assunto eram suas mudanças. O assunto central foi o desenvolvimento acelerado de
De vez em quando, interferia nas interlocuções da mãe, pare- Cláudia em todos os sentidos, até na manifestação de preferên-
cendo tentativas explícitas de controle. cias mais sofisticadas na alimentação, no uso de perfumes, etc.
A segunda visita foi realizada duas semanas após, numa Márcia resume com as seguintes palavras a opinião da familia:
tarde de sábado, a fim de lhe garantir a presença de toda a "ela parece que sempre comeu morangos ao invés de bananas,
familia. Estavam todos à minha espera, exceto Teodoro, que os meninos dizem que ela mais parece uma madame".
havia ido para um acampamento. Havia uma mesa repleta Por solicitação do casal, que alegou dificuldade na conci-
de bolos e doces, preparada para um chá "para o término liação do horário, foram realizadas, num intervalo de três
da reunião". Sentamo-nos ao redor de outra mesa na sala de semanas, duas entrevistas somente com Márcia e Pedro no
jantar e solicitei que expressassem como estavam se sentindo seu local de trabalho. A dificuldade de estabelecimento do
com a nova situação, que mudanças a presença de Cláudia vínculo mãe-filha foi tema principal da primeira entrevista. A
estava provocando em cada um. Pedro foi o primeiro a se possibilidade de uma discussão mais profunda sobre o assunto
manifestar, mas em nome dos filhos, que a experiência estava também foi fechada com Márcia, assumindo ser uma dificul-
sendo muito importante para eles em termos de crescimento dade mais sua.
pessoal. Logo depois, chegaram visitas e o casal não continuou Na semana seguinte, Márcia liga para saber se Cláudia
no setting estabelecido no começo da reunião. Márcia e Pedro teria o mesmo direito que seus filhos à herança dos avós e,
se revezaram "fazendo sala" para as visitas, que permaneciam no caso afirmativo, queria saber da possibilidade de continuar
no jardim quando da minha saída. com a sua guarda "por uns tempos", alegando que era para
Antes que pudesse fazer a entrevista seguinte, interrompi ter certeza da adoção e porque os avós não estavam aceitando
o acompanhamento por dois meses em função do nascimento muito bem a ideia de dividirem seus bens com quem pudesse
do meu filho. vir a não merecê-las. Marcamos um encontro para discutir
essa questão, que consideramos bastante séria, informando

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ADDCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível A travessia de Cláudia

que iria antes conversar com a equipe de adoção para ter mais falar com Márcia, que afirmou continuar confusa não tanto
subsídios a respeito do procedimento nesse caso. Dois dias com relação ao vínculo com Cláudia, mas com as coisas que
após esse contato, Márcia volta a ligar dizendo-se indignada estavam acontecendo naquele momento por doença de parente,
com a visita inesperada que recebera de uma assistente social acúmulo de trabalho, etc., que estava se sentindo sobrecarre-
do juizado para uma "tal avaliação de rotina" (sic), querendo gada, sem tempo e desorganizada na sua vida pessoal. Ficou
saber de que forma eu teria levado ao conhecimento do juiz as bastante tempo falando da rotina da familia, das "novidades"
dúvidas que havia me exposto. Como ainda não tinha conver- de Cláudia e passou a solicitar orientações de manejo, por
sado com a equipe do juizado e não era do meu conhecimento telefone. Ao colocar-me à disposição para tratar das questões
essa visita, solicitei um tempo para esclarecer a situação. Soube pessoalmente, sugerindo a marcação de um horário, ela recuou
então que entrevista era agendada independente do setor de novamente, usando as seguintes palavras: "me dá um tempo,
adoção e tinha por objetivo fazer um relatório com o parecer não estou pronta ainda e, também, não estou tendo nenhum
final antes da homologação do processo de adoção (o que de tempo agora, quando eu tiver tomado fôlego, eu te ligo, eu
fato ocorreu na semana seguinte). prometo, deixa assim por enquanto [...] mas você pode me
No encontro marcado, o casal reafirma o desejo de adotar dizer agora, Marlizete, o que eu faço com [...]", voltando com
Cláudia, independentemente da questão da herança, colocando insistência ao pedido de orientação quanto ao manejo de situa-
a mesma como definitivamente resolvida. Voltou-se a discutir ções específicas.
a dificuldade de Márcia na relação com Cláudia, pelo fato de Em outro contato telefônico, Márcia mencionou dados
se sentir rejeitada ou não tão amada como gostaria. Conclui-se sobre a conduta de Cláudia que causavam preocupação:
que o sentimento mais intenso de Márcia naquele momento andava "aprontando" com frequência, fazendo, constante-
era frustração por não ver em Cláudia a filha fantasiada, muito mente, alguma coisa para atingir alguém, como quebrar algo
mais frágil e indefesa, e de esta estabelecer vínculos com o pai da irmã, esconder algum objeto que a mãe estivesse preci-
e irmãos com mais facilidade do que consigo. Márcia pede um sando muito e, quando questionada a respeito, respondia que
tempo para examinar melhor a situação, um tempo só para "fazia porque era ruim"; procedia da mesma forma quando
si, pois não se achava pronta para discutir esta questão que não conseguia realizar alguma atividade ou vencer qualquer
estava "muito doída" (sic). Argumenta ainda que, por não estar obstáculo. Ao ressaltar a importância de procurarem psicote-
conseguindo clareza, no momento, gostaria de avaliar sozinha rapia para o grupo familiar, a resposta foi: "agora não vai dar".
pruneiro.
Mesmo tentando refazer pontos do contrato, como o sigilo
Após aguardar dois meses, voltei a fazer contatos telefô- e independência do acompanhamento em relação ao processo
nicos com a familia. Depois de algumas tentativas, consegui legal, e restabelecer o vínculo, não foi possível retomar esse

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ADOÇÃO TARDIA
Da famíl ia sonhada à fam ília possível

acompanhamento. Meses depois do término da pesqwsa,


tornei a fazer contato com o casal, que se colocou à dispo-
sição para me receber, mas, em virtude de estarem mudando
a empresa da familia, pediram algumas semanas. Tive a infor-
mação, tempos mais tarde, de que haviam se transferido para
t
outra cidade. Pude concluir que, sem a concorrência de fatores
como a quebra da continuidade pela interrupção de cerca de 4 '
três meses no acompanhamento; ter assumido o papel de
intermediária na comunicação familia-juizado, cuidando inclu-
sive da orientação quanto às questões burocráticas, como o
preenchimento da documentação com o casal; a quebra do
acordo pela ocasião da visita de rotina de uma assistente social
do juizado sem que eu estivesse informada a respeito, prova- Capítulo 6
velmente teria levado um pouco mais adiante este trabalho,
entendendo melhor a familia nas suas resistências e podendo
acompanhar mais de perto as dificuldades sentidas por Cláudia
Luciana: quando refazer
nessa travessia para se integrar nesta familia que a queria,
que batalhou por ela, mas que também resistia em recebê-la,
impondo uma série de condições, para que correspondesse às
, .
e preciso
expectativas de todos, aos fantasmas da filha e irmã adotiva
ideal; que "compartilhasse" desde que não tomasse posse de
nenhum espaço que implicasse perda para nenhum dos outros
membros.

124
Luciana: quando refazer é preciso

Manhã, no peito de um ''ser" cansado de esperar [...] só.


Foi tanto tempo que nem sei das tardes tão vazias por
onde andei [...]

[...]já desponta, aos olhos da manhã


pedaços de uma vida, que abriu-se em flor [.. .]
Luciana, Luciana, sorriso de menina [...].
(adaptada de Cantiga por Luciana, de Edmundo
Souto e Paulinho Tapajós)

A história de Luciana
Quando tinha um ano e cinco meses, Luciana foi deixada
pela mãe na casa de uma conhecida que morava com um filho
de onze anos e uma empregada, que tomariam conta dela
enquanto ela, mãe, tentaria conseguir um emprego em São
Paulo. O pai, ex-companheiro da mãe, cumpria pena por este-
lionato e estava sendo processado por tráfico de drogas. Um
ano depois, Luciana fora internada (mediante denúncias de
vizinhos) com traumatismo craniano, queimaduras de cigarro
pelo corpo e outros sinais de sofrimento de maus-tratos. Do
hospital, foi levada judicialmente para uma instituição. Pouco
tempo depois, foi novamente internada com diagnóstico de
prolapso retal. Somente após um mês dessa segunda inter-
nação, a mãe, voltando para buscar a filha, soubera do ocorrido.
No mês seguinte, o pai, que fora libertado em condicional,
acompanhou a mãe numa audiência, tentando demonstrar
condições para reaver a posse da menina. O processo tramitou
por três anos (sendo que, nesse meio tempo, o pai fora preso
novamente e a mãe ficara desaparecida por vários meses),

127
ADDCÃO TARDIA Luciana: quando refazer é preciso
Da família sonh~da à família possível

Não estava nos planos do casal adotar um bebê (devido


tendo sido concluído quando Luciana estava com cinco anos,
ao trauma com a situação de nascimento e perda do filho)
e pôde, então, ser preparada para colocação familiar.
nem uma criança maior de dois anos ("no máximo três"), mas,
quando foram chamados pelo setor de adoção com a proposta
de conhecerem, "sem nenhum compromisso", uma menina de
A história da família cinco anos que se parecia muito com eles, aceitaram e se apai-
José e Neuza estavam cadastrados no juizado e ~sperand~ xonaram "à primeira vista por ela"; "não teve retorno" (sic),
para adotar há quase dois anos. Queriam uma me~a de seis tentou explicar Neuza, que ficou preocupada por alguns dias -
meses até dois anos. Foram apresentados, antenormente, a "será que vamos dar conta de uma criança já tão grande para
outra criança e mostraram rejeição em função de sua cor (parda educar?". Fizeram visitas e passeios durante um mês e meio e
clara) ser diferente da que desejavam (branca, como eles) . foi tudo bem. A primeira semana que Luciana passou em sua
Estavam em acompanhamento pela psicóloga do setor de casa foi de encantamento de ambas as partes, segundo Neuza,
adoção do juizado quando foram encaminhados. Segundo mas, em seguida, começaram os problemas de comportamento
informações colhidas com a mesma, requeriam "cuidados da menina que deixavam o casal" estarrecido". Ainda segundo
especiais" pela tentativa de devolução da menina dois mes~s palavras de Neuza,
após ter iniciado o estágio de convivência. O casal alegara nao
ter condições para lidar com as condutas apresentadas_ por [...] ela tinha maneiras muito ruins: no primeiro
Luciana nesta fase. Foi recomendada terapia para a cnança dia, pegou nos genitais de José, levamos o
com orientação familiar (que não foi seguida), e deu-se conti- maior susto", "jogava-se no chão, esperneava,
nuidade ao acompanhamento pelo setor de adoção do juizado, gritava, dava pontapé [...] parecia um bichinho
1\ enquanto não fosse iniciada a terapia. mal domado". Procuraram, então, a psicóloga
O casal se mostrou disponível a participar da pesquisa, o para pedir orientação. "Ligamo várias vezes

que foi facilitado pelo contato já travado na ocasião da :e_nta- para a psicóloga, pedindo para ela nos dar uma
tiva de adoção da outra menina, ocasião em que explicitara direção, porque estávamos perdidinhos.

0
motivo de buscar a adoção: o de querer ter um filho e não
poderem pela via biológica. Neuza tem dificuldade em l~var Um mês e meio depois, resolveram devolver Luciana:
uma gravidez ao término (três abortos) e parto de alto nsc~ "chegamos ao limite, não tinha mais saída". Conversaram com
por problemas cardíacos. Perdeu um filho com lesões cere~rais a psicóloga, Luciana também, e estava tudo acertado para deixá-
graves, devido a complicações no parto. O mesmo sobreviveu -la, porém, como não tinha vaga na entidade na qual esteve

por um ano.
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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Luciana: quando refazer é preciso

abrigada antes e já era quase noite, voltaram com Luciana para uma mamadeira e a situação se resolveu. Em pouco tempo,
casa. Não trocaram nenhuma palavra, os três, durante todo Luciana deixava a mamadeira de lado também.
o trajeto. Depois do jantar, Neuza chamou Luciana para lhe Em relação à fantasia de Luciana de ter "vindo da barriga"
dar uns conselhos de como se portar na outra família para de Neuza, esta, diante do inesperado da pergunta, assustou-se
onde ela fosse, colocou a situação de tristeza deles e dos fami- concordando inicialmente, "até encontrar outra história mais
liares - avós, tios, primos que gostavam dela. Perguntaram adequada", explicara. Contudo, resolveram contar a Luciana
se ela gostaria de tentar mais uma vez, e,. com ª. afirm~tiva que ela tivera outros pais, que morreram e estavam enterrados
de Luciana a sua mala foi desfeita. A partir do dia seguinte, junto com o "vô X." (pai de Neuza). Antes de qualquer ques-
Luciana m~dou radicalmente. Eles desistiram de devolvê-la e tionamento ou comentário meu, Neuza argumenta que jamais
não se tocou mais nesse assunto. concordaria em contar a verdade para Luciana: "pode descer
A primeira entrevista com José e Neuza foi realizada quinze o Papa aqui na minha frente, em hipótese alguma alguém vai
dias após fumado o contrato, em uma sala do juizado. O tema me convencer que eu tenha que contar para Luciana que seus
da entrevista girou em torno da expectativa com o ~com~a- pais estão vivos [...], é um suicídio (grifo meu) contar para essa
nhamento _ passarem sua experiência e receberem onentaçao; criança a situação familiar anterior [...], eu vou até o fim com
expectativa com relação à criança desejada: uma me~a como essa história".
a sobrinha _ "toda delicada, cheia de dengo, corpinho bem
feitinho" (sic); confronto com a criança que "receberam" ~
"nos primeiros dias era uma maravilha, uma santinha, de~o1s Resumo do acompanhamento
começou a mostrar as garras, queria mandar em tudo, tinha Ao final da primeira entrevista, José e Neuza solicitaram
maneiras horríveis, fazia gestos obscenos [...] ", o que os que começássemos as entrevistas um mês e meio após aquela,
deixava "chocados". quando estariam terminando as reformas na casa, que inviabi-
Relataram a situação da devolução, do retorno - "parece lizavam de me receber antes disso.
que ela levou uma ducha fria e acordou" - e da "calmaria que Quando lá cheguei para a primeira entrevista, José e
reina até hoje" na relação. Neuza contou sobre a fantasia de Luciana estavam à minha espera. Pela dificuldade em conciliar
Luciana de ter vindo da sua barriga e o "susto" que esta lhe um melhor horário, marcamos o início da ED para meia hora
deu pedindo para mamar no seu seio. Pedi~ _ime_dia~mente antes da chegada de Neuza do trabalho. Luciana levou-me ao
orientação para a psicóloga, contudo não adm1t1u a ideia de dar seu quarto, detendo-se bastante ao mostrar-me todas as suas
o seio para uma menina daquele tamanho. E, já !~e
a mesma coisas, impecavelmente arrumadas, "arquivadas" em caixinhas
continuava insistindo apesar das negativas, decidiu comprar

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Da família sonh.ada à família possível Luciana: quando refazer é preciso

e pastas. Comentei, depois, com José esse fato e ele não clari- "só escutando, não diz um 'a', mas entende bem". Ela acha
ficou se era uma característica sempre presente em Luciana ou importante começar as orientações desde logo, porque já na
resultado de treinamento deles. Fomos para a mesa da cozinha escola tem muita coisa como drogas, etc., que podem "desviar
e ficamos lá desenhando, enquanto José saía para encontrar a a criança do caminho do bem".
esposa. Com a chegada de Neuza, Luciana se fechou um pouco, Comentam que Luciana é muito cuidadosa com suas coisas,
estávamos brincando na varanda e, quando Neuza começou não empresta para ninguém e não admite a perda de nada,
a conversar, ela foi para dentro amuada - "Não brinco mais chorou quando o pai vendeu um carro velho. Já sabe quando
agora". Neuza sugere que eu anote "um depoimento impor- está fazendo coisas erradas e logo pede desculpas. O tempo
tante" sobre o processo de adaptação em adoção: "com a inteiro fica beijando os pais e fazendo ou declarando carinho,
Luciana não funcionou muito carinho, muito denguinho, foi o que antes não aceitava. Para José, o fato de ser chamado de
preciso um chacoalhão bem forte para ela acordar, reagir"; pai lhe provocava uma emoção muito especial no começo e,
pelo fato de ser uma criança institucionalizada, ficaram cheios mesmo acostumado, acha muito bom.
de "dedos" para tratar com ela no começo e ela não aceitava Ao ser retomada a questão da origem de Luciana conforme
nada. a história que lhe fora contada por euza,José reforçou a ideia
Hoje, para eles, "corre tudo normal", dividiram as obriga- expressada na primeira entrevista: achava uma pena ter que
ções da seguinte forma: durante o dia José fica com Luciana, contar para uma criança que ela é adotiva, mas, como estava
leva-a para a escola e a atende nas suas necessidades básicas. claro desde o início que tinham que contar, isso estava resol-
Esta já sabe que as suas são dobrar e guardar o pijama, vestir- vido. Demonstravam que a necessidade de negar a situação,
-se quando levanta, escovar os dentes e atender ao que o pai tão dolorosa para todos, suplantava qualquer consideração dos
pede. Para Neuza, fica a "parte de dar orientação". Todas as dados de realidade como a idade de Luciana e suas condições
noites deita-se com ela e ensina-lhe a rezar, a agradecer a Deus de lembrar dos fatos passados. Neuza continuava taxativa:
por tudo o que Ele lhe deu e "mostra-lhe as coisas" (sic), como "não queremos falar que ela tem pais vivos de jeito nenhum,
exemplifica: "Luciana, você vê aquelas crianças que ficam na de jeito nenhum. Não consigo entender, M., não entra na
rua, abandonadas, quando a gente passa de carro nos semá- minha cabeça de jeito nenhum. Para que despertar um negócio
foros, elas não têm ninguém por elas. Por isso que você tem desses -você não é realmente filha biológica e os fulanos estão
que ser obediente, tem que entender, e quando você crescer lá vivinhos". Neuza acabou assumindo que não era possível a
tem que ajudar essas crianças também". Ao ser questio- revelação da verdade por conflitos pessoais - "vai acender uma
nada sobre a reação de Luciana diante dessas "orientações", fogueira desse tamanho em mim" -, fechando possibilidades
Neuza responde que é muito boa, ou seja, ela fica calada, de questionamento. Insisti, perguntando se eles achavam que

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Luciana não desconfiava de nada (ela passeava em volta, de agressão à figura dos pais que abandonaram e não aos pais
bicicleta, enquanto isso). Neuza responde que já investigara reais, que passam, também, a serem testados "ao limite", como
"mais de mil vezes" e não obtivera nada, que Luciana foge do eles foram - estava podendo observar agora, pela contribuição
assunto. Ela nega, como Neuza o fez, diante de nosso comen- deles, como isso tudo acontece na prática. Após minhas pala-
tário de que parecia existir um pacto de silêncio entre eles. vras, fez-se uma pausa, um momento de silêncio que percebi
Passaram, em seguida, a tratar do assunto do batizado de como importante reflexão do casal sobre minha intervenção.
Luciana. Queriam saber se ela já era batizada, se poderia ser Em seguida, focalizei a atenção em Luciana, acompanhando
batizada novamente, comentaram que já haviam escolhido suas brincadeiras. No final da entrevista, percebi que come-
a madrinha - avó paterna - e que esta está ansiosa para a çava a se estabelecer a confiança necessária para continuarmos
concretização do ato. Sugeri que tais informações poderiam o trabalho.
ser obtidas na paróquia que frequentam, pois dependendo Na segunda entrevista, Luciana pergunta, logo na minha
das orientações do padre poderiam ou não realizar o batismo, chegada, se eu a levaria embora, caso ela falasse "coisa elada".
como já acontecera em outros casos. Seguiram então falando Tentei esclarecer o que seriam essas "coisas erradas" mas
sobre as mudanças físicas de Luciana, depois comentaram '
Luciana foge do assunto. Voltei a ela na presença do casal,
sobre os "socorros" (sic) que pediram para a outra psicóloga que também diz não entender, e Luciana explica que, se ela
- "nada do que aconteceu aqui ficou sem ser passado a ela, não fizer as coisas direito seria levada embora por mim. Neuza
nada mesmo". Neuza fez questão de assinalar, então: "qual- interfere dizendo que ela nunca mais iria embora, acentuando:
quer coisa que você quiser saber você pode perguntar para "só vai se você quiser... já falamos isso, você quer? (- não)
ela, que ela te conta". Confrontei a situação de ter que buscar Então pronto! Você é nossa filha!". Reforcei o esclarecimento
com outra pessoa informações que só eles poderiam passar '
que não estava ali para fiscalizá-los, mas para aprender com
(reforçando a questão do sigilo), comentei que percebia estar eles. Temos aqui um exemplo contundente do caráter perse-
se instalando uma situação de fuga e mostrei o entendimento cutório que o acompanhamento pode adquirir para a família.
sobre a dificuldade que estava criando para eles ao insistir em A criança, tanto quanto os pais, teme que a relação que eles
assuntos delicados e "já resolvidos". Reforcei que foi muito estão a estabelecer não "seja aprovada" pelo judiciário, e que
importante ter ouvido sobre a emoção de se perceberem pais ela seja retirada daquela família. No caso de Luciana, a situação
de fato, a evolução no comportamento de Luciana de agressiva se apresentava ainda mais ameaçadora, ao somar-se aos dados
para doce; que já tendo lido bastante a respeito das mudanças de realidade, da tentativa de devolução por parte da família,
no comportamento das crianças que são adotadas já maiores que se via impotente diante das dificuldades "apresentadas
- da agressividade que aparece, muitas vezes, como forma de pela menina".

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Da família sonh~da à família possível Luciana: quando refazer é preciso

Luciana interessou-se pelo gravador - "sai foto também?". ponto Luciana se recorda de seu passado ou nega-o fantasiando
Fiz uma demonstração do funcionamento, explicando o obje- outra situação, e refere que sua reação inicial foi de espanto,
tivo do aparelho. Enquanto isso, José contava para Neuza que mas depois concordou com a versão da menina, justificando
Luciana aprendera a dizer "escola" e me pergunta, depois, se que precisava encontrar algo melhor para dizer. Foi quando
eu havia notado diferença em Luciana, comentando que acha resolveu "consertar", contando a história dos pais mortos.
seu desenvolvimento bem acelerado, que faz birras, "coisas de Ao argumentar com o casal a importância de construírem a
criança", conclui. Aproveitei para assinalar a importância de relação em cima da verdade, do contrário estariam sempre
não se associar problemas de conduta, de fala, de adaptação indo atrás de outras mentiras para encobrirem a primeira, que,
escolar com a situação de adotiva. Exemplificaram, então, que nesse momento, a fantasia de ser filha biológica era uma neces-
alguns parentes estão enfrentando problemas muito sérios sidade natural de Luciana, enquanto adotiva que ainda não
com filhos biológicos, como distúrbios neurológicos e de consegue lidar com a realidade de ter sido abandonada, Neuza
comportamento, mais sérios do que a adaptação de Luciana. contra-argumentou dizendo que, contando a verdade, temia
Neuza considera que o gênio forte de Luciana, de ser ouvir de Luciana: "muito obrigado, vocês foram maravilhosos,
birrenta, insistente, quando quer uma coisa, será muito posi- mas agora eu vou cuidar lá do meu pai e da minha mãe...".
tivo no futuro dela, se continuar a persistência, para seguir E incitou José a se pronunciar - "fala alguma coisa, defende
uma carreira, por exemplo. Luciana pede para N euza fazer um o teu ponto de vista". A que José, calmamente; responde:
"furaco" num papel e esta se emociona por ter ouvido Luciana "vendo desse ângulo a coisa muda de figura". Depois de mais
pronunciar o "r" - "filha, você conseguiu, conseguiu falar o algum tempo de argumentações, os dois acabam concordando
'r"'. Luciana responde que não conseguira, e Neuza espera que falar a verdade é a melhor solução e pedem orientação de
que ela lhe peça novamente para fazer o "furaco". Sentimos qual a melhor maneira de fazer isso. Salientei que a maneira e···
a vibração do casal com a "conquista" de Luciana - "incrível, o momento mais adequado iriam surgir naturalmente, quando
hoje é o dia", exclama Neuza. Em seguida,José comenta sobre estivessem seguros, tranquilos sobre a informação que iriam
o novo negócio que estão montando e Neuza ajuda a dar deta- passar, para que a mesma fosse recebida também de forma
lhes sobre o assunto, falam sobre as mudanças que terão que segura e tranquila pela menina.
fazer para se reorganizarem nos cuidados com Luciana, já que Ficou combinado que começaríamos a terceira entre-
precisarão ficar os dois fora o dia todo. vista com a presença de todos os membros da familia.
Neuza retoma o assunto da história contada por Luciana de Luciana esperava empurrando um carrinho com uma grande
ser filha biológica do casal, que precisou deixá-la na "creche" boneca, contando, afeitamente, que ganhara na "surpresa".
por um tempo para que pudessem trabalhar. Questiona até que Neuza relata em detalhes a festa que fizera para Luciana: no

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Luciana: quando refazer é preciso

precisara resolver negócios urgentes e se atrasaria um pouco. esquerdo, a única figura sem rosto (cf. fig. 2) . Após fazermos a
Luciana ficou desenhando e fazendo algumas perguntas como: observação do fato, explica que "não deu tempo" e pede para
"por que você não fica lá na creche, ajudando as outras crianças fazer o seu rosto. Ofereci outra folha para que se desenhasse
a esperarem as outras mães delas?". Anunciou que desenharia novamente, mas preferiu encher a folha de corações emoldu-
a sua mãe, e, no meio da execução, resolve que "essa é você"; rados em quadrados. Diz que está fazendo para mim, quer
depois apaga o cabelo e transforma na prima, modelo de filha recortar, guarda para recortar depois, durante a entrevista com
idealizada pela mãe. Faz um outro desenho - uma casa, árvore seus pais e, quase ao final da mesma, acaba o trabalho. Vem
cheia de frutos e me pede para que eu desenhe passarinhos; com as mãos cheias de pedaços de papel, recortados, como
não aprova o meu desenho e faz um pássaro grande, dizendo: se fossem fichas com corações, e deposita-as no colo da mãe,
"não, essa sou eu". que agradece sem entender direito. Esta pedia orientação para
Depois, incentivada, desenha a família - as duas avós, o terminar de responder a um questionário que encaminhamos
pai, a mãe, e quase não sobra lugar para si; coloca-se no canto a eles por solicitação de uma colega pesquisadora. José estava
deprimido, vivendo o luto pelas perdas do pai e da tia. Durante
todo o tempo, ia para a cozinha e voltava, distante; pratica-
Figura 2
mente não participou. euza relatou os detalhes da festa de
Luciana aniversário de Luciana, mostrando insatisfação de não ter
correspondido à sua expectativa. Fazia comparações com a
festa-surpresa: o bolo não estava tão bonito quanto o outro,
a família estava de luto e acabaram não tirando nenhuma foto
"Avó E." "Pai" (ninguém costuma fotografar nem gosta de ser fotografado).
Luciana
Ao rememorar a primeira fase de adaptação da adoção de
Luciana, Neuza avalia que, mesmo sabendo que iria enfrentar
"um monte de coisas", não estava preparada para o que
enfrentou, que ficaram traumatizados, pois foi "o avesso" do
que pensavam que seria e não passariam tudo de novo com
outra adoção, mesmo reconhecendo que não seria nunca igual.
Em relação ao vínculo com Luciana, Neuza considerou que
toda a "luta" inicial, embora traumática, serviu para fortalecê-
-lo. Se antes pensou em desistir, devolvendo-a, hoje "vira" o
Desenho feito por Luciana.

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Luciana: quando refazer é preciso

mundo por ela, "ninguém tira ela de mim", fazendo questão de preferidos da casa para ser fotografada. No meio dos pais, que
acentuar cada palavra. se diziam desajeitados para fotografias, mostrava-se assumida
Em relação à atitude protecionista das pessoas, ao saberem no papel de protagonista central. Logo depois de um último
que Luciana é adotada, Neuza refere que fica muito brava e diz contato para a entrega das fotos, a família se transferiu para
que Luciana não tem nada de coitadinha, é uma criança que outra cidade por motivos profissionais. Retomaram, cerca
tem tudo o que qualquer criança normal tem ou deveria ter. E, de um ano após, para o bairro onde viviam. No contato que
quanto aos projetos para o futuro, estão esperando um pouco tive com José, as notícias eram de que, apesar dos problemas
"para ver onde vamos investir a Luciana" (sic). Os projetos feitos financeiros que estavam enfrentando, a relação entre eles
antes de adotá-la, como as aulas de balé, inglês, etc., acham que estava tranquila, que Luciana estava ótima e só dava motivos
não têm nada a ver com ela no momento, que o caminho de de satisfação para eles. Cada vez mais parecida com a família,
Luciana vai ser traçado de forma diferente, de acordo com as ela tem o "mesmo sangue da mãe", conforme costumam
aptidões e escolhas dela - "se sair do jeito que favoreça, bene- brincar seus familiares. Segundo suas palavras - a gente nem
ficie a ela, tudo bem". Ao avaliar o relacionamento mãe-filha, lembra mais que ela é filha adotiva, parece que sempre foi
Neuza acaba se autoavaliando: considera-se chata, exigente, nossa -, pode-se entender que o processo de filiação ocorreu
que tem um gênio difícil e não consegue mudar isso, mas que, de maneira profunda, inscreveu-se no inconsciente, não tem
outro dia, Luciana, conversando com ela, a surpreendeu com mais o antes e se estende indefinidamente para o futuro, o
o comentário: "a gente se dá tão bem, né, mãe". que só foi possível após uma verdadeira guerra para superar as
,
Neuza acha que, além de muito chata e exigente, é meti- barreiras/ defesas que cada um levantara no início da relação.
culosa, tem um gênio difícil; na relação com sua própria mãe Um elemento fundamental para o "desarmamento" de todos
sempre fez mais o papel de mãe do que de filha e aprendeu foi o amor que surgia feito "uma mudinha de jojoba cres-
muito cedo a organizar e controlar as situações para não se cendo no sertão". Nutriu a todos da força necessária para
colocar em posição de risco. Considera que os conflitos atuais continuarem tentando, até que se perceberam uma família de
entre ela e a filha se devam à teimosia de ambas - "ela não verdade e puderam seguir sem sustos pelas trincheiras da vida.
nega que é minha filha mesmo", porém, a imensa tranquili-
dade de José garante paz e estabilidade na relação familiar.
Encerramos esta entrevista e o acompanhamento com
uma sessão de fotos planejada durante a entrevista anterior, da
família. Luciana trocou de roupas e fez várias poses junto aos
presentes que ganhara no aniversário, escolhendo os lugares

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1

Capítulo 7

Alice: do país do sonho


para a realidade de uma
família
Alice: do país do sonho para a realidade de uma família

Um sonho que se sonha só


É um sonho que se sonha, só!
Mas sonho que se sonha junto
É realidade.
(Pre/tídio, de Raul Seixas)

A história de Alice
Quando a conheci, Alice, cinco anos (presurrúveis), estava
há mais de um ano na instituição de abrigo provisório. Fora
recolhida na rua em companhia de um andarilho que afumava
estar vindo do Nordeste e se dizia seu pai. Este forneceu ende-
reços de pessoas de outros Estados que seriam seus paren-
tes, desaparecendo em seguida. Contatos mantidos com tais
pessoas confirmaram suas informações, exceto a existência de
Alice como filha dele. Não sendo mais possível chegar-se à
origem da menina, o juizado providenciou a avaliação de sua
idade por especialistas da Unicamp e providenciou-lhe um
registro em que consta uma data de nascimento arbitrada. Esta
é toda a sua história.

A família
Carlos, 54 anos, metalúrgico, aposentado desde 1991 . Maura,
51 anos, servente aposentada do funcionalismo público, refere
estar sempre em atividades recreativas com as crianças do
bairro, organizando teatros, danças, etc. Possuem uma filha,
biológica, de 23 anos, casada, mãe de um menino de dois anos

147
ADOCÃO TARDIA Alice: do país do sonho para a realidade de uma família
Da família sonh.ada à família possível

preservada dos acontecimentos recentes e remotos e "prefere


e um sobrinho (filho de uma irmã de Maura) criado e consi-
ficar no seu canto, sossegada e tentando não atrapalhai' (sic).
derado como filho, de 19 anos, estudante do segundo grau - a
Maura demonstra que não tem bom relacionamento com a
quem chamamos de Giovane. Quando tinha quatro anos, a
mãe, considera-a um peso e acha que ela interfere na sua vida
mãe de Giovane, que morava junto com a família, casou-se e
conjugal ao apoiar Pedro quando há qualquer conflito.
ele não aceitou viver com a mesma, voltando definitivamente
para a casa de Maura. Tem duas irmãs do casamento da mãe,
mas pouco contato tem com as mesmas. Dá a impressão de
Resumo do acompanhamento
um rapaz mimado, no início da adolescência, com poucos
movimentos para independização da mãe adotiva, que o Na instituição, Alice fez uma boa identificação com a
diretora, que também lhe dispensava uma atenção especial.
superprotege.
Entre 1991 e meados do ano passado, Maura criava um Recordava-se da "mainha" que tinha ficado "lá longe" e não
menino de nove anos, que lhe fora confiado pelo pai (que se referia ao pai ou à figura deste. Todas as pessoas que visi-
cumpria pena no presídio local). Pretendia adotá-lo e refere ter tavam a instituição eram assediadas por ela. Quando recebeu
sido muito difícil devolvê-lo à mãe, quando esta veio buscá-lo. a primeira visita especial para si, não aceitou despedir-se,
Procurou O juizado para não ter mais esse tipo de problema. jogando-se ao chão aos prantos, necessitando de contenção.
Quer uma menina que possa ser sua "companheirinha" em , a cada visita de Maura e Carlos, a dificuldade de separação
passeios e brincadeiras, visto que o marido e o filho não tornava-se maior.
a acompanham, acha-se muito jovem para ficar só em casa Quando tive acesso ao caso, a família estava mantendo
"curtindo" a aposentadoria. Tem contato diário com seu neto, contato com a criança há duas semanas. A reação de Alice
pois sua filha mora na mesma quadra, e até poucos meses atrás com a minha visita foi a mesma que tinha com todas as visitas,
deixava-o com os avós para trabalhar; agora ele frequenta um ou seja, veio para o colo, aconchegando-se, toda sorridente,
maternal. Pensa que a relação de Alice com seu neto será como como que tomando posse do espaço. Após colocar nossa
de primos, dada a pouca diferença de idade. Maura mostrou- função e objetivo, ela relata que tem um pai e uma mãe que
-se nas entrevistas uma pessoa expansiva, prolixa, parecendo vêm visitá-la e que irá "embora pá casa" (sic) com eles. Em
usar a fala para controle do ambiente e de sua ansiedade. seguida, quer saber se vou levá-la comigo e não aceita despe-
Refere que sua mãe sempre tem algum problema de saúde, dida, agarra-se, chora muito, não aceitando ser consolada pelo
que requer um cuidado constante das quatro filhas, que se monitor, que refere ser sempre esta a sua atitude ao término
revezam para levá-la ao médico e cuidar do tratamento. Sua das visitas que tem recebido.
mãe é independente nos cuidados pessoais, tem uma memória

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ADDCÃD TARDIA
Da família sonh.ada à família possível Alice: do país do sonho para a realidade de uma família

Enquanto isso, o casal já se mostrava bastante seguro de criança-familia nesse caso e que seria importante uma visita
que tudo iria dar certo na adaptação com a menina, tratavam- surpresa, que não houvesse tempo para preparativos de Maura
-na de "minha filha", tratamento o qual era correspondido, não para novo "show". Fui, então, até a casa da familia no dia ante-
aceitando discutir a possibilidade do surgimento de qualquer rior ao agendado. Carlos, ao me receber, pediu que voltasse no
dificuldade. Por se dizerem incomodados com o gravador, outro dia, porque Maura não estava em casa. Insisti em que
mesmo depois de explicados o objetivo e a importância para gostaria de aproveitar a viagem conversando um pouquinho
a pesquisa, decidiu-se que as nossas entrevistas seriam apenas com Alice, que estava na companhia dele e da avó. O cons-
trangimento inicial cedeu lugar a bastante descontração de
relatadas.
todos, chegando até a brincadeiras inadequadas de Carlos,
Durante a época do carnaval, Alice foi passear com a
querendo saber, com ar malicioso, para onde eu iria ao sair
familia, e na sexta-feira seguinte passou a morar com eles.
de lá. Dona Carmem conversou comigo, pela primeira vez,
Decorridos dez dias dessa mudança, realizei a primeira visita
relatando aspectos de sua vida passada com o pai de Maura,
domiciliar. Maura havia preparado um "show" para Alice
dos problemas que tiveram com o alcoolismo deste. Referiu,
estrelar, mostrando tudo o que já aprendera, o que provocou
também, que gosta muito de Carlos, que é muito bom para
uma das únicas verbalizações de Carlos: "você quer que a
ela, que o apoia, "apesar dele ser assim". Não obtive escla-
menina faça tanta coisa ao mesmo tempo que não dá jeito, é
recimento dessas suas palavras, pois Alice interrompeu-nos.
melhor ir com mais calma".
Observei, no entanto, pela diferença no comportamento
As duas visitas subsequentes transcorreram da mesma
e pelo forte hálito, que Carlos estava alcoolizado. Indagada,
forma, com Maura, num fôlego só, relatando tudo o que já
depois, se o mesmo costumava beber, D. Carmem confirmou
havia ensinado a Alice. Com um caderno em punho, Maura '
explicando que ele era "diferente" de seu ex-marido, porque
ia mostrando os "deveres" que eram feitos diariamente, com
não amolava ninguém.
assinalamentos de tudo o que Alice não sabia e já aprendera.
Enquanto nossa preocupação era como levantar e discutir
Não consegui observar, nessas visitas, características do rela-
com o casal as dificuldades observadas na familia, surgiu
cionamento familiar e do processo de vinculação entre os
uma denúncia de maus-tratos no balcão de atendimentos
membros. Maura procurava controlar a visita, não deixando
do juizado. O denunciante apresenta dados da história e da
espaço para manifestações livres de Alice nem para os demais
rotina da familia. Rico em detalhes, informa que Maura grita
membros da familia, que eram dirigidos, interrompidos ou
muito com Alice, às vezes lhe dá palmadas quando esta não lhe
corrigidos pela mesma.
obedece, geralmente quando o marido bebe e a deixa irritada
Concluí, após tais visitas, que os dados não ofereciam '
onde "desconta" na menina. O referido pediu para não ser
subsídios suficientes para avaliar o processo de adaptação
identificado.

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Alice: do país do sonho para a realidade de uma família

O trabalho de investigação da veracidade da denúncia foi Na data e horário marcados, chegamos à casa da família
realizado pela assistente social do setor de adoção. Poucos e encontramos apenas Maura e Alice. Maura alegou que não
dados puderam ser colhidos, uma vez que familiares e vizi- sabia que era importante a presença dos outros; que Giovane
nhos forneceram poucas informações ou se negaram a fazê- estava dormindo (passava do meio-dia) e não podia ser acor-
-lo. Participei de duas entrevistas com o casal, realizadas no dado, porque estudara até tarde na noite anterior, que sua mãe
juizado, em conjunto com a assistente social. A primeira foi estava na casa de uma outra filha e Carlos acabara de sair para
para informar da existência da denúncia e colher um posi- fazer umas compras no centro e iria demorar muito.
cionamento do casal quanto aos detalhes da rotina da família Quando abordamos o assunto levantado na última entre-
fornecidos pelo denunciante. Foi muito difícil a condução da vista no juizado sobre a questão do vínculo mãe-filha, do
entrevista, pois o casal, que já se dizia informado do motivo da fato de ela sentir-se, às vezes, rejeitada por Alice, Maura nos
mesma, usou como defesa o ataque. Agia como se fôssemos afumou que este já era um assunto resolvido, que foi apenas
nós as denunciantes, não abrindo a possibilidade de discutir uma questão de momento, sem mais importância. Relatou,
conosco a situação. em seguida, um episódio ocorrido naquela semana: que Alice
Na segunda entrevista, foi possível retomar várias ques- havia feito "cocô" na calça, de propósito, dando uma expli-
tões, como: a delimitação de papéis do setor de adoção, do cação ao fato: que dias antes havia falado à menina que ela
pesquisador, e do Juizado. O casal foi orientado quanto ao poderia usar o banheiro da área de serviço, quando estivesse
processo de defesa da denúncia a ser encaminhado através brincando no pátio, e que esta entendeu que seria para ser
de um advogado contratado pela família. Foi estabelecido usado sempre e por isso "sujou" na calça, enquanto brincava
um novo contrato de acompanhamento, onde foi explicado no seu quarto. Quando questionada sobre como havia chegado
que a opção de não aceitá-lo não iria interferir no trabalho a tal conclusão, Maura respondeu: "só pode ser isso, não tem
do setor de adoção, que daria continuidade ao acompanha- outra explicação para ela fazer o que fez, foi assim que ela
mento do processo de adaptação de Alice na família. Salientei deve ter entendido o que eu falei pra ela". Ao levantar a possi-
a importância da disponibilidade do casal às visitas, esclare- bilidade de ter usado o cocô como um recurso para chamar
cendo questões que fossem levantadas sem recorrerem a atenção, Maura logo interrompeu, dizendo que já resolvera o
tantas defesas, subterfúgios, como vinham fazendo. Como o assunto: que depois de "todo o escândalo", da "cara de nojo"
casal verbalizou estar disposto a colaborar no processo, ficou que fizera, da ridicularização na frente de todos e de ter lavado
combinada a primeira visita dessa nova fase para quatro dias sozinha toda a sua roupa suja, Alice, com certeza, tinha apren-
após a entrevista, em horário que facilitasse a presença de dido a lição, ou seja, "sujeira na calça nunca mais".
todos os membros da família.

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Da família sonhada à família possível Alice: do país do sonho para a realidade de uma família

Tentamos retomar a questão para o possível pedido de roupa. Diante da minha negativa, Maura mesma o fez, orde-
Alice para ser cuidada como neném e de ter sentido como nando: "fala, fala aí pra tia, por que você fez 'cocô' na calça,
agressiva a resposta da mãe ao seu pedido. Maura volta a argu- vamos, vai, fala!". A resposta que Alice deu foi: "porque eu
mentar que Alice já era muito grande para isso, se fosse o seu quis", seguida de tal comentário de Maura: "tá vendo só, isso
neto tudo bem - mas até ele já entende tudo e é uma criança é resposta que se dê!". Interferimos, questionando Alice sobre
"limpinha" (fazendo uma observação de que o menino, de sua resposta, e ela explicou que: "deu vontade de fazê cocô, aí
dois anos, é muito mais esperto que Alice); afirma, também, ele saiu ... só".
que sua reação foi a única possível, pois ela gosta de resolver Tentei ainda discutir com Maura a forma que ela vinha
os problemas de uma vez por todas, logo que eles aparecem e usando para entender Alice, as associações que usava, partindo
que a situação já estava resolvida, que só estava relatando o que de seu próprio referencial e chegando a conclusões através de
tinha acontecido na semana. Numa nova tentativa de retomar um raciocínio indutivo, onde dois eventos eram associados,
ainda O assunto para refletirmos sobre o conteúdo do mesmo, por ocorrerem numa sequência de tempo próxima, mas sem
Maura fecha questão, dizendo que ela entende muito mais uma relação lógica de causa-efeito. Citei como exemplo os
de criança do que imaginamos, que criou dois, ajudou a criar elementos que ela reunira para concluir que Alice ficara muito
uma sobrinha e ficou bastante tempo com seu "afilhadinho", chateada por não ter tido atenção exclusiva durante um passeio
que seria seu filho adotivo hoje, se não tivesse sido "maldosa- no final de semana, onde se divertiu e brincou bastante: ao ter,
mente" retirado pela mãe. Conclui que agiu da maneira mais no dia seguinte, deixado de responder imediatamente a Maura
correta possível com Alice, que tem sido assim todo o dia, que a amava, sendo que suas conclusões não foram conferidas.
que tem ensinado muita coisa para a menina, que veio para Percebendo que Maura não entendera minhas intervenções,
sua casa sem saber nada de nada e já sabe as cores, o nome de encerrei a entrevista com a sensação de impotência diante de
muita coisa, distinguir tamanho, formas, desenhar em limites, tal situação, de não ter conseguido que as necessidades de Alice
etc ... mostramos o caderno onde passam lições diárias para a fossem mais bem compreendidas e manejadas por Maura, que
menina, reafirmando o quanto esta vem evoluindo. a família fosse participante desse trabalho.
Após tais assertivas, restou-nos encerrar o assunto por Observamos que Alice estava num processo de culpabili-
indisponibilidade da interlocutora em fazer reflexões, expli- dade, pelo que não sabia, que poderia estar incorporando o
citando que via muitas questões não resolvidas, que ficariam papel de "bobinha" , incompetente, que lhe estava sendo desig-
em aberto para voltar a discuti-las num outro momento. Soli- nado nessa família. E que a relação de Maura com Alice se
citei a presença de Alice, que brincava no seu quarto. Maura estabeleceu a nível pedagógico e não maternal, isto é, Maura
pediu para que eu perguntasse a ela por que fez "aquilo" na empenhou-se, desde o início, em dar aulas para a meruna,

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AOOCÃO TARDIA Alice: do país do sonho para a realidade de uma família
Da família sonh~da à família possível

como primo, e alvo de constantes comparações.


estabelecendo regras, horários, e mantendo uma rotina tal qual
A plena satisfação de suas necessidades básicas
o papel de uma professora; em situações que exigiriam mater-
promoveu nela rápidas mudanças, melhorando
nagem, negou-se a fazê-lo.
seu aspecto físico com o aumento de peso, e
Após análise das entrevistas realizadas e de todo o processo vestimentas mais adequadas. Modeirando-se
de colocação e estágio de convivência familiar que acom- sempre alegre, falante e bem-humorada, num
panhamos, chegamos às seguintes conclusões, enviadas num contato superficial, Alice impressionava como
relatório ao juiz conforme segue: uma criança bem adaptada e feliz.

Por outro lado, percebe-se que a situação caren-


MM.juiz
cial, no aspecto afetivo, persiste. Alice não esta-
Rej Processo Nº beleceu vínculos significativos com Maura e
Criança: "Alice da Silva" DN: Carlos. A conduta de "colar-se" em qualquer
Após análise das entrevistas realizadas e de todo pessoa que dela se aproxime e de não apre-
o processo de colocação e estágio de convi- sentar dificuldade em deixar o casal para acom-
vência familiar que acompanhamos, chegamos panhar desconhecido , por exemplo, atesta tal
às seguintes conclusões: afirmativa.

Alice vinha fazendo visíveis esforços para se A relação que Maura estabeleceu com Alice
adaptar à nova situação. Ela não possuía uma foi de nível pedagógico e não maternal, isto é,
vivência em situação familiar como referencial, Maura empenhou-se desde o início em dar aulas
o que facilitou a identificação com os papéis para a menina, estabelecendo regras, horários e
que lhe foram designados como membro mantendo uma rotina tal qual o papel de uma
daquela família, não fazendo confronto com professora. Em situações que requeriam mater-
figuras parentais internalizadas, por exemplo, nagem, se negava a fazê-lo, mostrando repulsa
por não as ter de forma consistente. o seu pelas condutas regredidas que a menina apre-

esforço para desempenhar as funções que lhe sentava como um recurso natural para refazer
sua trajetória no processo de desenvolvimento
estavam sendo incumbidas, aceitava sem con-
psíquico a partir dos novos referenciais. Isso,
dições de crítica as designações de «bobinhia",
mesmo após orientação sobre tais necessidades
«atrasada" e a defasagem em relação ao neto (de
que toda a criança em processo de adoção
dois anos) do casal, que lhe fora apresentado

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ADOCÃO TARDIA
Da família sonh~da à família possível Alice: do país do sonho para a realidade de uma família

tardia apresenta 1• Carlos, por sua vez, pouco de encobrimento de Maura se estendiam aos
participou do acompanhamento que pres- demais membros da familia. Fez comentários
tamos. Mesmo nas entrevistas iniciais, como sobre a situação de incapacidade mental de sua
mencionamos em outro relatório, permanecia mãe - "não dá para confiar em nada do que ela
calado, manifestando-se só para reforçar afir- diz" - quando referimos que havíamos conver-
mativas da esposa. as visitas era uma figura sado com esta na sua ausência. Os filhos não
ausente e concluímos que foi levado por Maura participaram das visitas e, mesmo sendo chama-
a se ausentar. Esta dizia não ter ele condições dos pelo setor de adoção, não compareceram,
de prestar informações sobre Alice, já que configurando uma decisão isolada da guardiã
não estava acompanhando-a de perto e que a em relação à adoção de Alice.
educação das crianças sempre fora de respon-
Maura mostrou-se sem condições de entender
sabilidade dela.
as necessidades de Alice e de poder atendê-
Concluímos também que Maura procurava -las. Mostrou-se ainda sem disponibilidade para
manter Carlos afastado para que não observás- receber orientações a respeito. Fechou questão
semos a inadequação de posturas e verbaliza- no sentido de que já sabia tudo a respeito de
ções (inconsequentes) deste. Por duas vezes, educação infantil, enquanto demonstrava não
ela o repreendeu quando este se manifestou reconhecer necessidades básicas da menina de
por ocasião da primeira visita, nas seguintes ele amor e atenção.
estava "fazendo a sesta" ou ausente. Só conse-
Diante do exposto, levamos nossa opinião à
guimos um contato direto com Carlos quando
equipe de sugerirmos a vossa excelência a reti-
fizemos a visita no dia anterior ao agendado e o
rada da menina em tela da familia em questão.
encontramos com visíveis sinais de estar alcoo-
Acompanhamos a retirada, que não foi tão trau-
lizado. Em relação a isso, foi confirmado pela
mática para Alice como temíamos, salvo pela
sogra seu "hábito de beber um pouquinho",
expressão dela ao falarmos da instituição para
Maura também confirmou que Carlos bebe
onde iria: "você vai arrumar logo um pai e uma
"uns aperitivos" diariamente, negando, porém,
mãe pra mim, não vai, tia T.?". Diante da afir-
o alcoolismo. Vimos ainda que as tentativas
mativa de que iríamos trabalhar para que fosse
logo, exclamou: "oba, que legal!", Estamos
Conforme Ozoux-Teffaine. Adoplio11 T11rdi11e - D' une naissance à lautre, 1987. visitando-a semanalmente na instituição onde

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ADOCÃO TARDIA Alice: do país do sonho para a realidade de uma família
Da família sonh.ada à família possível

está abrigada e temos observado nela um eles retomaram e as mudanças de Alice eram patentes, a cada
processo de retraimento e regressão preocu- novo contato. Já não ficava pulando no colo de todo mundo
pantes por estarem marcando-a definitivamente já conseguia manter uma certa distância e passou a ter um~
caso Alice permaneça lá por mais alguns meses p~stura mais feminina, um pouco mais recatada, porém sempre
sem a possibilidade de trabalharmos com ela o brincalhona. O casal estava feliz por terem, além de outra
ingresso numa outra familia. filha, a irmã ideal para a mais velha, que embora parecidas e,
com a mesma origem, eram muito diferentes culturalmente
Sendo assim, esperamos que o processo se
apesar dos poucos três anos que as separavam. A despedid~
desenrole com a máxima brevidade (URGÊN-
de Alice foi carregada de muita emoção para toda a equipe. O
CIA) que esta situação requer, para podermos
casal levou nosso endereço, prometendo entrar em contato
ainda trabalhar preventivamente pela saúde
mandando notícias da adaptação de Alice na sua nova reali~
mental de Alice.
dade. Soube apenas, através de profissionais ligados à agência
de adoção, que ela estava falando muito bem o norueguês e se
Logo depois, pude acompanhar a adoção de Alice por uma comunicando com a irmã pela linguagem de sinais.
família norueguesa.
Figura 3

A outra família
O casal com idade de 42 e 40 anos tinha uma filha de sete
anos, adotada no Brasil há três anos. A menina recebia aten-
dimento especializado pela sua surdez bilateral. Frequentava a
pré-escola e usava a linguagem de sinais com a mãe. As duas
(
meninas se pareciam bastante, tinham quase a mesma altura,
os mesmos traços, a mesma cor (parda escura). Ao se encon-
trarem pela primeira vez, logo se deram as mãos e saíram para (
brincar. Na hora de ir com eles, Alice recuou, queria que a
assistente social fosse com ela, mas depois de um tempo de
conversa, aceitou ir para São Paulo, ficar o período proba-
tório com a família. A cada semana, durante três semanas,

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Capítulo 8
Pedro: em busca de raízes
Pedro: em busca de raízes

[...] um filho, uma criança, vem revelar coisas


muito profundas na nossa alma [...] e é algo
bem real que ele está mexendo com as minhas
raízes, com os significados que as coisas têm
para mim[...]

ELZA

A história de Pedro
Pedro, 5 anos, estava há três meses de "retorno" numa
instituição após cerca de oito meses de convivência com uma
família que pretendia adotá-lo, sendo a mesma composta pelo
casal e um filho biológico dois anos mais velho que ele. O
casal, que buscara a adoção por não poder ter outros filhos
biológicos, separou-se uns seis meses após receber a guarda
de Pedro. O guardião compareceu à instituição "devolvendo"
o menino e dizendo-se sem condições de continuar com a
guarda do mesmo. Fechou, na ocasião, qualquer possibilidade
de reconsiderar a decisão tomada (segundo relatório que consta
no processo) . Foi uma separação bastante traumática para o
menino, que entrou em depressão e estava sendo atendido por
uma psicoterapeuta na época do nosso primeiro contato.

A família
Elza, 39 anos, orientadora pedagógica de pré-escola, divor-
ciada, uma filha. Sempre quis uma família grande como a sua
de origem, demorou muito para ter a filha e depois não mais
engravidou. Vinha alimentando há tempos a vontade de adotar

165
ADOCÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Pedro: em busca de raízes

um menino até que, diante de insistência de Anne, telefonou de logo conhecerem um menino que poderia "ser ele"; emoção
para o juizado solicitando informações. Anne, 12 anos, refere ao encontrarem Pedro, ao acharem-no parecido com Anne;
ter uma ótima relação com o pai, casado pela segunda vez e ao se prepararem para a possibilidade de estarem juntos no
pai de três meninos. Considera-se um pouco mimada e atribui Natal. Era tanta emoção que muitas lágrimas rolaram do rosto
o mimo ao fato de ser mais velha e única mulher. Participou de Elza algumas vezes nas nossas primeiras entrevistas. Nosso
ativamente da decisão da mãe de adotar, pois acha que ficam papel foi de dar apoio, continente de toda a carga emotiva que
muito sós, as duas, e que é "legal" Elza ter outros filhos. aflorava descontroladamente nesse primeiro momento. Essa
fase pode ser sintetizada pelas seguintes palavras de E lza:

Resumo do acompanhamento [...] estou à beira de um parto, só que ao invés


de voltar da maternidade com um bebezinho,
Após explicar nosso objetivo com a visita, ouvtmos de
eu vou levar para casa um menino que já tem
Pedro, ainda cabisbaixo, a pergunta: "votê vai aumar uma mília
cara, tem o seu jeito de querer ou não, vou
pá eu, vai sim?". Com a resposta de que estávamos procu-
estar levando um filho que ainda tenho que
rando, mas que seria ele quem decidiria a escolha, levantou a
conquistar como meu, mas é sempre a emoção
cabeça estampando um largo sorriso acompanhado da excla-
de um filho.
mação "oba!" e afastou-se, em seguida, para brincar com as
outras crianças.
Na visita seguinte que acompanhamos, a presença de
Nas duas visitas seguintes não permitia outras crianças por
Elza era importante para Pedro, contudo ele procurava não
perto, querendo a minha atenção com exclusividade. Quando
demonstrar, controlando-a a distância, enquanto brincava
lhe foram apresentadas E lza e Anne, só deu atenção para a
com Anne, só se aproximando quando outra criança estava
última. Manteve-se um pouco afastado de nós, evitando o
muito perto dela. Demonstrou desagrado ao término da visita,
contato com Elza, que se ressentiu ao se ver rejeitada. Trabalhei
resistiu a despedir-se. Depois, chorou pedindo para Anne ficar
com ela tal questão para que entendesse a dificuldade de Pedro
mais. Quando questionado se aceitaria as duas como mãe e
e pudesse ajudá-lo na aproximação, colocando-se no papel de
irmã, respondeu "eu vou sim".
ser observada/escolhida por ele (como até lhe havíamos dito).
Ao despedir-se, Pedro perguntou a Anne quando elas volta- Na primeira entrevista que realizamos, em 10 de janeiro,
riam, formulando o pedido: "manhã cês voltam?". Pedro mostrou-nos a casa, seus brinquedos (entre eles, uma
bicicleta que ganhara no Natal) e as demais dependências da
As primeiras entrevistas com Anne e Elza foram carregadas
chácara, com ar de orgulho das suas coisas. Cria atrito com a
pela emoção de ambas. Emoção ao saberem da possibilidade

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ADOCÃO TARDIA Pedro: em busca de raízes
Da família sonhada à família possível

irmã por causa da cachorra desta, que ele insiste em dizer que Ao final desta entrevista, Pedro me levou para conhecer
é sua. Observou-se que a voracidade dele pela posse de espaço a chácara e redondezas. Mostrou suas flores do jardim, sua
acabava requerendo a colocação de limites por parte de Elza; árvore preferida, falou dos amigos que moram ao lado, pare-
limites quanto ao espaço da irmã, que não podia ser tomado cendo um nativo do lugar. Ficou bem tranquilo, contudo
por ele; limites quanto ao uso da casa e pertences comuns, pareceu estar negando que me conhecia da instituição, agia
para que pudesse ter a real dimensão do "seu" espaço, distinto como se eu fosse uma amiga da sua mãe, que ele acabava de
1 conhecer. Diante do meu comentário de que agora ele estava
daquele a ser compartilhado. Pedro interrompeu as colocações
de Elza por algumas vezes, até que ela solicitou a Anne que bem mais alegre do que antes, ele concorda, tentando demons-
1 fossem brincar, enquanto continuávamos a entrevista. Logo trar indiferença.
em seguida, Pedro estava de volta, solicitando a atenção de Na segunda entrevista ocorrida no dia 3 de fevereiro , Pedro
\ Elza. Esta colocou a dificuldade que vinha sentindo em conci- passou todo o tempo envolvido com o parto da cachorra de
liar a necessidade de atenção do menino com as solicitações Elza, enquanto esta comentava suas anotações (diário) dos
\ de Anne, que já estava expressando ciúme e competindo com fatos mais importantes ocorridos desde a entrevista anterior.
o irmão. Começara pelos problemas, dizendo-se preocupada com as
1 Segundo queixa de Anne, Pedro não tem aceitado dividir mentiras/fantasias que Pedro passou a apresentar, mas muito
a mãe e ao mesmo tempo fica distante desta, quando ela mais em vê-lo se mostrar satisfeito em conseguir enganar e
não está por perto, repetindo o comportamento que obser- considerar normal a mentira. Quando repreendido ou casti-
1 1 vamos durante as visitas na instituição. Observamos, também, gado, costuma "recorrer 'ao pai' - chama por ele e diz que
que Pedro está em pleno processo de adoção de sua nova vai embora". Faz isso desde que chegou. Elza vê que esse pai
\
família, testa constantemente os vínculos com as pessoas mais "invisível" é algo muito sério na vida dele. Conta, também,
significativas. Com a "madrinha" repete o mesmo padrão, que vendo a irmã pegar um cinto, ele correu dizendo que ela ia
\
demonstrando, deliberadamente, indiferença para com ela, bater e aí referiu - "mamãe bate de cinto". Confrontado com
mas controlando sua atenção a distância. Testa limites, o que a nova realidade, reformulou: "a outra mamãe batia". Elza
1 explica que a figura do papai foi confundida com a do "papai
Elza já interpretou como uma forma de, também, testar acei-
tação, afeto. Há muita receptividade a nossa presença, muita do céu" da reza ensinada por ela; às vezes, refere que quer voar
\
espontaneidade nos relatos de Anne e Elza, que vem fazendo para ver o papai lá no céu.
anotações diárias desde a chegada de Pedro, atendendo à A representação de pai para ele é muito "maternal",
sugestão que lhe fiz. As transcrições das mesmas estão reunidas adotou um ursinho ("sou o papai dele'') e lhe dá banho, veste,
no anexo. alimenta com um tratamento muito carinhoso. Quando é a

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ADOCÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Pedro: em busca de raízes

mãe que cuida, bate nos brinquedos, joga longe. Começou a num cavalo de pau. Anne nos conta seu passeio na casa do
agredir Anne fisicamente, esta lhe devolveu um tapa recebido, pai, descreve seus "outros irmãos", acha-se a "mimosa" do
depois sentiu-se muito culpada, mas, na maior parte do tempo, pai, que deu sorte de ser a única mulher, seus 3 irmãos têm,
compete com Pedro no mesmo nível. Sente que está perdendo em torno de 1O, 7 e 2 anos. Fala do quanto admira seu pai,
o colo de sua mãe, o seu espaço junto a ela para o irmão, que, dos livros que ele escreveu, das dedicatórias que faz a ela ...
percebendo isso, se sente vitorioso ("venci a Anne''). Elza traz Iniciou os estudos numa escola de elite, através de uma bolsa
a saudade que sentia: "daquela coisa de maternagem, de toque, concedida ao pai, professor de lá, acha que no começo não vai
de abraço toda a hora". Refere que a ansiedade/voracidade ser fácil, mas que seu pai estará sempre por perto para ajudar.
de Pedro parece sem limite, está sempre querendo algo para Quanto à sua relação com Pedro, acha que está complicada, às
comer ou beber, o que Elza atribui ser "uma forma de preen- vezes porque ele quer tudo o que é dela e "fica tempo todo
cher um vazio, aliviar a ansiedade", e observa que quando ele atrás, diz que gosta muito dele e refere a rc ponsabilidade tL1

chegou não era assim. 'escolha"'.

O sono de Pedro tem sido muito agitado. Acorda todas as Terceira entrevista - Pedro tem agora urna cachorrinha (,
madrugadas e fica um tempo sentado na cama; na primeira meses) pastora alemã só para ele e estava todo importante;
semana gritou durante o sono. Elza pede mais informações correu pelo pátio com ela durante o tempo da entrevista, a
sobre o passado dele, quer saber mais sobre os outros guar- cadelinha cansava e ele a ficava puxando para que ela o acom-
diões, conta que tivera informações na "creche" de que, por panhasse. Anne estava em atividades na escola. Elza começa
duas vezes, um homem falou com Pedro no portão e passava perguntando sobre as diferenças na educação entre menino
a mão na sua cabeça e que na última o referido dissera "adeus, e menina. Conclui que dando um modelo bem discriminado
filho!". Quer saber como está isso na cabeça de Pedro e para de mãe, o do pai ficaria mais fácil para Pedro. Diz que está
tal recorre aos "arquivos". Ao ser questionada a respeito, diz faltando maternagem para ele. Refere que o medo de ser
querer muito saber quem eram esses "pais" que não ficaram "roubada", de perder para os pais biológicos, continua. A
com ele e por quê. Admite, também, sentir-se insegura e teme fantasia de Elza confunde os pais biológicos com os adotivos
a eventualidade de um encontro entre eles. Volta depois para anteriores - "Meu primeiro pensamento é: se ele vir o pai, é
as dificuldades de Pedro e quer orientação quanto a iniciar uma lógico que ele vai querer ir com ele". Em seguida conta que
terapia. Ela mesma conclui que é muito cedo ainda para avaliar Pedro fantasia voar para ver o pai e levar Elza consigo; ele
suas dificuldades, que mais uma pessoa seria complicado para também mencionou que a "outra mãe tem o cabelo assim".
ele. Fomos depois para o jardim onde estavam Anne e Pedro, Pedro teve, além da mãe biológica, mãe de criação e mãe
que corre o tempo to d o com os cac h orros, b em " mon td"
a o adotiva antes de Elza. Esta nos pede para contar mais detalhes

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ADOCÃO TARDIA Pedro: em busca de ra ízes
Da família sonhada à família possível

sobre a destituição do pátrio poder, comentando que "queria Quarta entrevista- Pedro tem reagido mal às saídas de Elza1
saber se foi um processo justo". Fala que "lembrou-se de e desconta fazendo muitas birras com a empregada. Outra dia,
supetão" sobre a origem de sua família, que sua avó materna, jogou areia no meio da sala que a mesma acabara de varrer,
com a qual tem sonhado, criou os filhos sozinha (conta deta- nos relata Elza, que disse ter explicado para ele a situação, mas
lhes da vida de sua mãe e irmãos que pede absoluto sigilo) e que ele não entendeu e tem reagido sempre com agressividade.
que, pensando nisso, passaram umas coisas pela sua cabeça Acha que Pedro anda muito nervoso e nos pergunta se é caso
como: "será que estou errando, ele pertence àquela família, de consultar um neurologista. Devolvida a pergunta, acha que
foi arrancado... será que estou tirando Pedro de um caminho não, pelo menos no momento.
tão bonito, tão amoroso... não sou eu que estou tirando, né". Fizeram a festa de aniversário de Pedro na escola. Todas as
Fizemos, aqui, o seguinte comentário: se "eles" vêm tomar de crianças levaram presentes, ficou super feliz. Elza queria tirar
volta, seria porque o menino foi roubado, não é seu, não é muitas fotos para iniciar o álbum dele, só saíram duas. Pedro
justo. Repetindo as palavras "não é um processo justo", Elza não fala mais no pai, nem em ir embora. Quando fez algo
refere a sensação que tem de estar tirando o filho de alguém. errado, fantasiou que tinha "apanhado no bumbum".
Discutimos, então, a questão arraigada na nossa cultura, de a Elza diz se irritar, às vezes, com o "jeito falso dele con-
via biológica ser a única via "legítima" de se ter filhos, que os quistar as pessoas e largá-las assim que aparece outra", diz
pais, as mães adotivas, em especial, carregam-se de culpa por que isso já foi notado por várias pessoas que ele seduziu e
estarem "tirando" o filho adotivo de alguém, de um fantasma. depois desprezou. Acha que: "o vínculo dele é superficial, não
Esse pode se tornar muito perseguidor e estar quase que mate- se liga em ninguém", embora agrade todo o mundo. Sonhou
rializado, quando a criança adotada teve uma convivência por que Pedro tinha virado com uma enxada todo o seu jardim,
tempo significativo com a família biológica e pode ser reco- que seus canteiros de margaridas estavam todos com as raí-
nhecida por esta ao passar na rua, por exemplo. zes para cima; quando viu aquilo, chorava, perguntando quem
Elza continuou trazendo a hlstória de sua infância na roça, tinha feito, e Pedro estava com a enxada na mão sorridente
a doença mental de sua mãe, a luta de todos para se manterem e continuando a fazer. Batia muito nele e acordou chorando.
juntos, a situação atual de todos os seus irmãos, o seu casa- Trabalhamos a questão das raízes que estavam sendo mexidas
mento com uma pessoa de "posses" que lhe possibilitou
estudar, crescer em todos os sentidos e poder ajudar alguns Três vezes por semana, ele frequenta a mesma escola em que a mãe faz orientação,
e numa outra manhã Elza tem outro compromisso e não pode levá-lo, devido às
irmãos, e conclui que a hlstória de Pedro a remeteu à sua grandes distâncias entre a escola, a chácara e o curso que freq uenta. Desde o início
própria hlstória. discutiu-se a situação de Pedro frequentar a mesma escola em que a mãe faz orien-
tação apenas nos dias em que essa vai, mas Elza não conseguiu resolver isso até o
momento.

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172
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Pedro: em busca de raízes

com a adoção de Pedro. E a fala de Elza se revela muito sig- Marcamos a quinta entrevista na escola de Pedro, onde a
nificativa deste processo: "as margaridas representam a minha mãe era orientadora, a pedido desta, com o argumento que
mãe [...] nossa como que eu não vi isso antes [...] estava me queria que eu o observasse no ambiente escolar. Ao chegar,
fazendo tão mal esse sonho (suspiros) ..., entendi muita coisa no horário marcado, fui informada que ela estava em reunião.
agora ... estou emocionada, aliviada". Não havia aula e a escola estava cheia de pais para a avaliação
bimestral. Um pouco depois, Elza nos recebe em sua sala,
Elza tenta lembrar que alguma coisa provocou uma
desculpando-se por não poder nos atender naquele horário,
mudança significativa na expressão de Pedro... "não sei se fui
porque tinha pais marcados. Lembrei-lhe de que estava no
eu que mudei ..." e aí lembra que ligaram do juizado, avisando
horário que havíamos combinado e que também ligara uma
que saíra a adoção, que fizeram a maior festa. Achamos impor-
hora e meia atrás para confirmar, e a pessoa que atendeu disse
tante usar as próprias palavras de Elza para o relato de tal
que passaria o recado, já que ela estava ocupada no momento.
situação, tão importante no processo todo:
Só então Elza percebe que esquecera o compromisso comigo:
Brincava com ele, agora você é meu, me deu uma "mas não era na próxima semana?". Desculpou-se pela
sensação de poder, porque, até então parece que confusão, explicando que marcara na agenda de casa, etc.
eu só estava guardando-o. Existe uma diferença etc. Convidou-nos para sentar, querendo mostrar todos os
entre aquilo que é seu e aquilo que você guarda "trabalhinhos" de Pedro e, animada, falava do seu rendimento
(para outro).[...) Acho que o registro é uma coisa pedagógico. Interrompi a fala de Elza para pontuar a situação:
importante, dá uma sensação de alívio como se que o objetivo da nossa presença era observar Pedro, conforme
tivesse sido aprovada. Só senti isso depois - seu pedido e o combinado com ele, de que o próprio nos
de estar sendo avaliada, cm suspense, parece mostraria os seus trabalhos; dada a situação, espaço/tempo
que eu não era capaz. Juro que pensei isso: ai necessário para conversarmos, sugeri o agendamento de outro
que bom, agora a T. não precisa vir mais aqui, horário. Foi muito difícil conciliar outro horário na escola.
vir ver o Pedro. Você fazia parte do conjunto, Marcamos, então, para cerca de vinte dias, na casa.
foram muitas visitas, entrevistas [...) Você foi No dia marcado, recebemos o recado (na secretária eletrô-
a quarta pessoa que entrou nas nossas vidas nica) que Pedro estava gripado, com febre, e seria levado ao
para a adoção do Pedro, e eu misturei tudo. o médico. Ligamos para sua casa e ninguém atendeu. Tivemos,
desenrolar da relação isso foi diferenciando-se, depois, três contatos telefônicos com Elza, que se dizia muito
mas sempre representa uma pressão, agora fica atarefada com as atividades de final de semestre, depois da
tudo mais claro. gripe que colocou a todos na cama. Passava-nos informações

174 175
I

ADOCÃO TARDIA Pedro: em busca de raízes


Da família sonhada à família possível

sobre a semana em que Pedro ficou acamado e achou ótimo numa criança daquela idade, de repente apa-

"estar doente", as mudanças de comportamento dele, de recem - como o cocô na calça, só quando eu

muito calmo para muito agitado, de doce para agressivo, por estava por perto.

exemplo. Pediu um tempo para terminar seus trabalhos do


curso, entrar em férias... quando, então, marcamos a última Elza sempre atendeu aos comportamentos regressivos

entrevista que foi realizada. de Pedro, ofereceu mamadeira, alimentou na boca, ninou no
colo, ajudou em tarefas simples para ele, porém só quando
Começamos falando sobre a diferença sentida entre os
solicitada, e a necessidade de tais condutas foi se resolvendo
vínculos estabelecidos com a filha biológica e Pedro. Elza acha
logo, também, incentivada por ela, como na seguinte situação
que não é, nem nunca vai ser igual ao da filha, como, também,
que presenciamos na segunda entrevista: Pedro pede para ela
seria diferente de outra gravidez; talvez se pareça um pouco
abrir uma bala já praticamente aberta. Comentamos "você
mais ao vínculo estabelecido com o pai. Mais tarde voltou a
não consegue sozinho?" e ele balbuciou algo como neném;
falar disso:
daí Elza traduz que ele é "neném" agora, contudo da próxima
Fui preparada lá no juizado, para assumir uma vez já vai estar bem crescido, já que ele está crescendo muito
criança, tendo por ela o mesmo sentimento que rápido. Ele concorda se mostrando: "olha como eu já estou
eu tenho pela minha filha. É como se sentisse gande". Elza refere que desde que ele chegou foi mais agres-
que as pessoas buscavam em mim uma imediata sivo, testa limites o tempo todo, às vezes chega até a propor:
identificação materna com a criança, mas isso "por que você não bate em mim?". Uma vez ela bateu ele
'
não é verdade! Como posso sentir essa identi- ficou em paz por uns dias e "voltou a toda, muito pior", e
ficação se não vivi com a criança, não enfrentei ela viu que a questão de bater era um referencial anterior que
precisaria ser reformulado com ele.
com ela certas coisas.
Elza acha que o perfil de Pedro é complicado, "uma insegu-
Quanto à maternagem durante o processo de adaptação, rança profunda, só se identifica com as figuras más, só espera
reações de desagrado, castigos", acha, também, que seu amor
Elza considera que:
não é o suficiente para curar tudo isso, e comenta a respeito
É bobagem você não pegar um neném achando da responsabilidade no desenvolvimento do filho: "nossa
que pode excluir a maternagem [...] é uma mater- responsabilidade é parcial, limitada. A gente dá o que pode
nagem até mais difícil de ser feita, porque [...] dar e a criança vai fazer a representação dentro da liberdade
coisas que você já está acostumada a descartar dela", mas que se sente "surpreendendo os mecanismos de

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível
Pedro: em busca de raízes

ruindade dele, frustrando-o" . Falou depois sobre o despo- a prevenção do abandono, segundo explica. As confusões a
tismo de Pedro, querendo saber o porquê de ele ser assim. respeito da família biológica/ família "adotiva" continuaram.
Observo para Elza como tem investido do papel de pedagoga As disputas entre Pedro e Anne estavam mais polarizadas
nos momentos mais difíceis com o filho, exemplifico com a e de difícil resolução, já que Elza tendia para protegê-la dos
linguagem jargão que costuma usar conosco, quando se refere "ataques retaliadores de Pedro", segundo suas palavras. Não
às dificuldades, colocando-se distante na relação e dificultando seguiram a orientação de buscar ajuda em terapia, e a resis-
mais a formação dos laços entre eles. tência para orientação estava mais fortalecida. Os sucessivos
Pergunta sobre a memória de Pedro, o que ele se lembra rompimentos dos vínculos afetivos sofridos por Pedro provo-
do passado. Pondero sobre a importância de pesquisar com caram ferimentos profundos no seu narcisismo, deixando
ele, dando oportunidades para que fale, na medida em que abalada a sua capacidade de confiança básica para estabelecer
ela própria não se sinta mais perseguida pelos fantasmas novos vínculos significativos. Avalio, aqui, que a escolha desta
dos "outros" pais, e acentuando que não há outra forma de família não foi adequada para atender às suas necessidades
sabermos sobre o passado dele além dos registros do processo, '
principalmente a de confrontar o fantasma dos pais que o
como vinha solicitando sempre. Orientamos sobre a necessi- abandonaram com outra figura real, que lhe oferecesse um
dade de Elza e Anne se colocarem mais refratárias aos ataques novo modelo passível da identificação de que necessitava para
de Pedro, de não reprimirem a agressividade, mas darem um o desenvolvimento de sua identidade.
continente a ela, mostrarem que os limites são dados porque ele
precisa, não porque provocou, com raiva ou outro sentimento
que ele tenha provocado. Salientamos que o que fora perce-
bido, as diferenças entre os irmãos não devem ser negadas e
sim trabalhadas, para que não fiquem polarizadas. Coloquei-
-me à disposição para continuar a acompanhá-los, orientando
sempre que sentissem necessidade, salientando, porém, que
era de fundamental importância um acompanhamento tera-
pêutico, se possível do grupo familiar.
Tivemos mais dois contatos com Elza, sempre marcados
fora de sua casa. Estava inteiramente envolvida na obra assis-
tencial mantida e coordenada pela comunidade religiosa à qual
presidia. O atendimento às famílias carentes tem como meta

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179
Anexo

Anotações feitas por Elza nos pnme1ros dias após a


chegada do menino:

Alegria de receber meu filho! Fez muito silêncio,


olhava tudo [...], durante a noite afastou-se para
o canto da cama acordou na cama de minha
filha, dei bom dia aos dois filhinhos, recebi
alguns sorrisos.

2° dia: tomou café conversando. Não me chama


de mãe ... diz "ô" e me puxa. Muito ligado à irmã,
chama-a de tia, ela diz: "sou irmã". Percebi que
Pedro cai muito facilmente, não chora, levanta-
-se com ar indiferente como se não houvesse
acontecido nada. Almoçou bem. Para dormir,
afastou-se.

3° dia: recebeu meu abraço ao acordar, consen-


tiu, abraçou, também. À tarde foi passear com a
madrinha e Ana, voltaram à noite. Fui recebê-lo
e no portão, veio para meu colo.

4° dia: fui trabalhar e ele ficou dormindo com


a irmã. Anne ligou para meu trabalho, porque
ele perguntava pela mãe, falei bastante com
ele, chamou-me de mãe pelo telefone. Quando
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Anexo

cheguei, ao meio-dia, veio correndo e me pegá-lo do colo dele, e ele não quis vir - insisti
abraçou. Me chamou de mãe e me deu um beijo. retirando-o e explicando que já íamos embora.
Fomos ao supermercado e Pedro falou com Intimamente senti tristeza por esta rejeição dele.
todos os "tios". Percebo o quanto se apega à A cada dia isto vai crescendo dentro de mim
'
figura masculina. toda vez que ele pula em um "tio". Sinto que ele
faz isso e olha para mim [...]
5º dia: o pai da irmã veio visitá-la e ele ficou o
tempo todo atrás, disputava o pai com a irmã. 8º dia: sábado, 25.12 - O dia foi bom, almo-
çamos com alegria, dormiu contente.
6° dia: a mesma coisa que o anterior, atrás do
pai da irmã. Já me chama normalmente de mãe. 9º dia: exige atenção constante, já mexe em
Ao dormir, abraça-me, ainda o coloco para tudo, tomando conta do espaço. Quando
dormir comigo. ponho limite, abaixa a cabeça e chora. Atende

7º dia: continuo a perceber que ele cai muito e o telefone com alegria.. . "é pra mamãe..." e me

se bate nas coisas, não as vê. Os "tios" conti- chama. Ficou um tempo lá fora na areia brin-

nuam... com os amigos que vieram visitá-la cando. Eu arrumava a cozinha, a casa, de vez

corre para o colo pedindo atenção. Falo com ele em quando vem me ver. Segue afetivo, abraçou-

e ele não atende. Percebi que começou a chorar -me várias vezes. Percebo que, às vezes, se faz

quando cai, primeiro chorou bem baixinho de incapaz, para comer pede para eu pôr na

há dois dias, hoje chorou mais forte, muitas boca, mas hoje, diante do primo, quis comer

lágrimas... socorri, afaguei ... , já se abre mais sozinho [...] Para fazer xixi (pede) "có colo".

com a irmã, eles se indispuseram e ele mostrou Atendo a tudo, meu coração diz que ele expe-

a língua para ela. Ela não o deixou mexer no rimenta se é amado [...] Adora tomar banho
'
piano e ele bateu pé, ficou brabo. pede vários banhos por dia, gosta de se olhar
no espelho (isso desde o segundo dia, após 0
Natal - coloquei para deitar, fizemos a rezinha
banho), pentear o cabelo, passar perfume. Hoje,
para o anjinho. Ele pediu uma bicicleta para o
olhando-o de longe, percebi que já engordou
Papai Noel - Ao acordar deu pulos de alegria,
um pouquinho. Estamos felizes, a cada dia ele
gritos de alegria (quando viu o presente).
conquista mais um pedaço do meu coração,
Depois fomos visitar uma família vizinha. Só
parece que ele sempre esteve nessa casa, sempre
passeamos. Pedro se apegou a outro "tio" - fui
andou por aqui, como Anne. É gostoso olhar

182 183
ADOÇÃO TARDIA Anexo
Da família sonhada à família possível

para ele aprendendo a andar de bicicleta, só


Figura 4
olha para os pés ... ainda não dirige. Espero que,
do mesmo modo, eu esteja conquistando mais PEDRO

um pedacinho do coração dele. Lembrei que já


"Meu pai"•
me olha mais ... , no começo tinha dificuldade de
"Minha mãe" •
olhar nos olhos, de falar diretamente. Percebi, já Pedro :;;

lá no juizado, que há um foco nos olhos ... como


se abrisse para os lados; ele, às vezes, fecha um
dos olhos, o olho direito [...]

11 ° dia: muito amoroso, acariciando meu rosto,


quando acordou. Passou o dia alegrinho, foi
passear na casa da madrinha, voltou às 3 horas
da tarde, estava no banho e ouço o chamado
desde a varanda: "mãe ... mãe ... ", Saí rapidinho
do banho, pulou no colo... , momento bonito
de afeto. Percebo que vem testando limites Figura 5
já há alguns dias - não tem o hábito de pedir
permissão para nada ... (esqueci de anotar isso), PEDRO
"Irmã"
vai pegando tudo. Quando falo para ele pedir as
coisas, daí ele pede.

A família
"Eu"

çj
185
Conclusões e
considerações finais

Ao analisar todo o material colhido, constatei que cada


grupo acompanhado me trouxe um universo inteiro, singular,
de trajetórias realmente únicas de cada criança rumo à inte-
gração familiar, o que vai ao encontro das palavras de Ombline
Ozoux-Teffaine (1987): "Em matéria de adoção tardia, cada
situação é excepcional, cada experiência é singular, cada
trajetória de criança, inteiramente única, isto a tal ponto que
nenhuma generalização seria possível" (p. 212).
Ofereceu-me, também, a possibilidade de observar pontos
de similaridade encontrados em todos os processos de
adaptação criança-família acompanhados. Destacaram-se os
seguintes:

a) Enfrentamento do preconceito social- a maioria dos pais (75%)


relatou situações em que depararam com o preconceito em
relação à prática da adoção e, mais especificamente, pelo fato
de a criança adotada ser "já tão grande".
b) Necessidade de preparação e acompanhamento específico no
processo - a maioria dos pais referiram como necessária a
preparação para a adoção, bem como a orientação e acompa-
nhamento específicos durante o estágio de convivência.
ADOCÃO TARDIA Conclusões e considerações finais
Da família sonhada à família possível

c) Esforço da criança para se identificar com as novas figuras paren- coragem a sua!". Alguns, por terem a prática como algo inse-
tais, evidenciado de forma significativa na imitação do padrão rido na cultura familiar e na fé religiosa, consideram-na bem
de comportamento familiar e buscando o estabelecimento de aceita dentro deste contexto. Por outro lado, todos os guar-
laços significativos. diões, em algum momento do acompanhamento, expressaram
de forma quase idêntica: "parece que ele(a) sempre viveu aqui,
d) Comportamento regressivo, ou seja, típico de estágios anterio-
sempre foi nosso(a) filho(a)".
res do desenvolvimento, que não fariam, normalmente,
parte do repertório de uma criança maior e que não era Pudemos acompanhar o quão sofrido pode ser para os pais
esperado pelos pais adotivos. adotivos lidar com esse preconceito, principalmente quando
ele vem se somar à sensação de impotência, ao sentimento
e) Agressividade - que aparecia em algum momento do
de menos-valia relacionado à não procriação do filho. Ele é
processo, geralmente logo depois da primeira fase, de
negado, comumente, desta forma: "parece que ele sempre foi
encantamento mútuo.
nosso filho", como uma tentativa de identificar o filho adotivo
f) llitmo de desenvolvimento global da criança bastante acele-
como biológico. Poderia, por outro lado, estar significando
rado se comparado aos padrões considerados normais.
o resultado da efetivação da adoção no inconsciente atem-
poral, mas é uma possibilidade que acabo de levantar e que
proponho para ser discutida. A dificuldade para lidar com tais
O enfrentarnento do preconceito questões apareceu de forma mais intensamente manifestada
A questão do preconceito é levantada pela maioria dos no acompanhamento da familia de Luciana, em que seus pais
autores de diversas formas, desde a pouca disponibilidade das verbalizaram, algumas vezes, "é realmente uma pena que a
pessoas para a adoção até a carência de publicações no nosso gente tenha que dizer que ela é adotiva".
meio. A adoção continua sendo mais aceita quando atende a Parece-me que só a questão do preconceito já justifica a
uma necessidade "natural" de um casal, com impedimentos necessidade colocada pelos pais de serem preparados para o
para gerar filhos, desde que estes sejam bebês e "passíveis de processo de adoção. Estes deveriam ser acompanhados por
serem educados". profissionais que deem suporte ao grupo familiar (criança-
A maioria dos pais referiu ter sido ou estar sendo alvo de -familia), que os orientem não só quanto ao processo, mas
perguntas ou observações do tipo: "por que não adotaram que, principalmente, abram-lhes espaço para falar dos tabus
um nenenzinho?"; "deve ser muito difícil educar uma criança que envolvem a prática.
'assim', não pode contrariar nem nada, né?"; ou, "puxa, que A maioria dos guardiões consideraram, também, impor-
tante a troca de experiências em grupos específicos de pais

189
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Conclusões e considerações finais

adotivos - "é importante saber como os outros lidaram ou paulatino de enfrentamento das angústias diante da realidade
estão lidando com isso [...] "(Carlos) ou "os adultos precisam da situação. Quando se fala em mãe ou casais grávidos, em
mais de acompanhamento do que a criança" (Ana). Prepa- gestação, associa-se que eles estejam vivendo um período de
rados, teriam se sentido mais seguros para enfrentarem as preparação para a maternidade-paternidade que dura nove
situações que são comuns na adaptação à criança maior. meses, que tem fases determinadas e procedimentos es1 e
A troca de experiências em grupos de pais adotivos, sentida cíficos de cada uma durante o pré-natal. Se fizermo , uma
como muito importante na prevenção de dificuldades maiores comparação com futuros pais adotivos, a gravidez psicológica
e alivio da ansiedade, comuns no processo, também possibilita deste grupo seria sempre de risco, pois não há previsão do
aos pais flexibilizarem quanto às características da criança fanta- tempo que pode levar a "chegada" do filho adotivo. O inter-
siada, para que esta seja o mais "maleável" possível (ROBERT, valo entre os prazos mínimo e máximo é muito grande (1 a 30
1989), a fim de permitir uma superposição com a criança real. meses na região de Campinas).
Como que seria feito isso: informações e depoimentos de pais Às vezes, a espera é tão longa para os pais, que o inves-
sobre as possibilidades de satisfação nas adoções de grupo de timento afetivo (sem retorno) já sofre um desgaste e outros
irmãos, tardias, inter-raciais ou de crianças com necessidades interesses tomam conta da vida da pessoa no momento em que
especiais despertam, muitas vezes, nos postulantes uma possi- são chamados para conhecerem o possível filho. Costumam,
bilidade nunca pensada antes. porém, agarrar-se a essa possibilidade, mesmo que as carac-
Por outro lado, uma vez pensada, a opção precisa ser discu- terísticas da criança não atendam ao desejo e estejam em
tida, avaliada, evitando que se torne uma adoção "de segunda desacordo com as possibilidades atuais do casal, fazendo uma
categoria", como exemplificado na seguinte fala, que resume adoção de "segunda categoria".
o pensamento de três das mães acompanhadas: "Eu queria No trabalho de preparação da criança, o rompimento dos
menorzinha, até dois anos tava bom, mas como é tão difícil laços familiares anteriores e a vivência do luto pelas perdas dos
conseguir, aceitamos conhecer a Lia sem compromisso e, aí, mesmos são questões iniciais a serem abordadas com profun-
bum, não teve jeito. [...] É essa mesmo". didade. Para Bowlby (1979), uma criança retirada judicialmente
Mesmo sem o componente biológico1, os pais adotivos de sua família sofre profundamente a ruptura e não está
"engravidam" emocionalmente e, durante o período de facilmente pronta para aceitar outros pais, para refazer laços
"espera", necessitam de ser tratados como tais, recebendo afetivos. Sua resistência, suas dúvidas precisam ser respeitadas,
assessoria profissional que os oriente num processo claro e o que não costuma acontecer no âmbito das instituições, que,
também, não oferecem continente para expressão do luto pelas
De acordo com Videla e Maldonado, 1981.
perdas sofridas. Lá, ela é incentivada a idealizar uma situação,

190 191
ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Conclusões e considerações finais

que irá para uma familia perfeita e serão felizes para sempre. O comportamento agressivo
Mas, caso não ocorra dessa forma, a criança é completamente
Caracteriza-se por atitudes ou ações consideradas hostis
responsabilizada, porque não "soube aproveitar a chance que
pela familia, como exemplificam as falas a seguir: "passados os
teve".
primeiros dias em que era uma 'santinha', Luciana começou a
Ao ser adotada, a criança maior de três anos que tem rela-
mostrar 'as garras', parecia um bichinho mal domado, gritava,
ções sociais estabelecidas com o grupo sofre ao saber que vai
esperneava, jogava-se no chão, xingava todo mundo[...]"
sair da instituição, e que os colegas continuarão lá. Sente-se
(Neuza).
culpada ao achar que, ao ter sido escolhida, os outros foram
''Pedro jogou areia no meio da sala, logo depois que tinha
mais uma vez rejeitados ou esquecidos.
sido limpa", cortou com estilete o roupão da irmã (Elza);
"quando saio de casa, Cláudia vira um 'bicho', a empregada já
veio pedir a conta por causa dela" (Márcia); "Ric anda muito
O comportamento regressivo
brigão na escola, bateu num menino e diz que vai bater de
Para exemplificar tipos de comportamentos elencados novo" (Ana).
como regressivos, selecionamos as falas de algumas mães:
O comportamento regressivo e a agressividade são ampla-
Ana - "[...] Ric inventou de falar que nem bebê, vem para o mente referidos como parte do processo de adaptação,
colo e balbucia igual a um bebê [...]"; de acordo com o que aponta a literatura2, e foram objeto
Neuza - "[...] No começo (Luciana) queria mamar em mim, de discussão na orientação aos pais, preparando-os para a
ela insistia até que lhe demos uma mamadeira e, depois de um possibilidade de eles serem apresentados pela criança ou
mês ela largou [...]"; para trabalharem no momento da ocorrência. Ambos apare-
Elza - "[...] Pedro pediu para brincar de 'mamãe' e 'nenê', ceram na totalidade dos casos acompanhados. Uma questão
coloquei-o no colo e ele fez: 'agora nenê vai mamar' [...] e que se levanta aqui é o quanto o conhecimento teórico desta
tentou abrir a minha blusa [...] como outras brincadeiras (do questão teria interferido na minha observação. Entretanto, a
tipo), essa também já está passando [...]"; possibilidade de uma observação completamente isenta, ou
seja, desvinculada tanto dos conhecimentos teóricos como
Márcia - "[...] Eu não entendo, disseram lá na instituição
da própria experiência pessoal de quem observa, com total
que ela (Cláudia) não fazia mais xixi na calça e, desde que
chegou, tem feito todo o dia [...]";
Maura - "[...] Alice, de repente, fez cocô na roupa[...]".
Anzieu, 1985; Montel-Girod, 1992; Pilotti, 1988; Ozoux-Teffaine, 1987; Robert,
1989.

192 193
ADOÇÃO TARDIA Conclusões e considerações finais
Da família sonhada à família possível

neutralidade, conforme postulada por algumas correntes de como tais capacidades da mãe se revelam uma condição básica
pesquisa, fica impossível de se pensar. no processo de adaptação criança-familia na adoção tardia.

Constatamos que os pais adotivos precisam ser flexíveis


para atenderem às necessidades mais regressivas em momentos
menos esperados e, ao mesmo tempo, fumes e refratários o
Ritmo de desenvolvimento global da criança
bastante para suportarem os ataques retaliadores da criança, A cada entrevista, observava-se, além do relato da família
frequentemente dirigidos às figuras que a abandonaram, con- a respeito das novidades apresentadas pelos filhos, um vasto
forme apontado por vários autores. repertório de aquisições e de mudanças adaptativas de todas
Percebi como fundamental para a evolução das condutas as crianças acompanhadas. As mudanças mais visíveis, que
das crianças, principalmente as regressivas, a capacidade da se operavam no aspecto físico, ocorreram num ritmo muito
mãe de ser continente das necessidades do filho, de exercer acima da média, o que era constatado no acompanhamento
a maternagem. Tal maternagem difere da que é feita com um pediátrico realizado por todas as famílias.
recém-nascido, onde as necessidades básicas são satisfeitas de Quando a criança alcança, no novo ambiente familiar, a
uma forma quase que automática pela mãe, que já se antecipa satisfação de suas necessidades fundamentais para reconstruir
às mesmas. No caso da criança maior, urge, antes de tudo, estar sua trajetória a partir dos novos modelos, ela, rapidamente,
disponível, não se antecipar a nada. Elza, no seu depoimento, pode evoluir para estágios posteriores. Observamos em todos
traduz essa situação: "é bobagem você não pegar um nenê, os casos que realmente acontecia assim. Além do aspecto de
achando que pode excluir a maternagem [...] é uma mater- estar regredida emocionalmente, havia uma necessidade muito
nagem até mais difícil de ser feita, porque coisas que você já intensa para aprender, como ouvimos de Pedro quando lhe
está acostumada a descartar numa criança daquela idade de perguntamos se ele não conseguia abrir uma bala: "hoje não,
repente aparecem [...]". eu sou neném, amanhã eu já vou saber", como uma forma de
Isso me leva a salientar os riscos que a colocação de uma atender às expectativas familiares (pressão social?) e garantir
criança junto a uma adotante que a tenha escolhido justamente aceitação ("vejam como estou crescendo!" ou, "vejam como
por já ser maior, pretendendo, assim, evitar a maternagem, sou bom!"). A cada mês havia um vasto repertório de novas
pode acarretar para o desenvolvimento psicológico dessa aquisições.
criança. A experiência que tivemos no caso de Alice, em que Ric trouxe o exemplo mais contundente. Durante os
Maura, investida de educadora, revelou-se incapaz de entender primeiros oito meses, evoluiu de um comportamento típico
as condutas regressivas daquela e, através da maternagem, de um bebê, que estava começando a andar e que não falava
atendê-la nas suas necessidades mais básicas é um exemplo de além de algumas palavras-frase, para outro mais compatível à

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Conclusões e considerações Finais

sua faixa etária, não se diferenciando muito do grupo com o medida, refratária aos novos vínculos, estabelecendo, porém,
qual convive na pré-escola. Embora vá precisar de um acom- com facilidade, relações superficiais.
panhamento a longo prazo, provavelmente de uma terapia Vimos, com esse trabalho de acompanhamento e pesquisa,
de linguagem, ou mesmo apresentar outras dificuldades que que a dificuldade, ou não, da criança de estabelecer novos
só um acompanhamento longitudinal poderia esclarecer, Ric vínculos estaria, basicamente, relacionada com a possibilidade
.
livrou-se d o esttgma d e " atrasa d o " ou d e ter " pro blemas ..." , de expressão e atendimento, pelos pais adotivos, de suas neces-
que se somava à sua condição de adotivo e de ser tratado de sidades emocionais mais primitivas, ou seja, de ser gestada
maneira ainda mais "especial" (ou, diga-se, preconceituosa) novamente, de se mostrar indefesa, de requerer atenção, de
pela sociedade. Observamos processos de adoção tardia possi- renegar essa atenção... Enfim, de refazer todo o caminho
bilitando o desenvolvimento e integração social da criança que para a construção de seu novo eu a partir dos novos modelos
esteve institucionalizada de uma forma que nenhuma outra parentais.
intervenção seria capaz.

O acompanhamento preventivo na adoção


O esforço da criança para se identificar com tardia
as novas figuras parentais
Mesmo não tendo este trabalho um delineamento passível
É um aspecto fundamental no processo de desenvolvi- de generalização, podemos considerar que todo esse processo,
mento da criança que, a princípio, pode parecer óbvio. Penso que implica rupturas dolorosas e que se caracteriza por um
que é necessário, primeiramente, argumentar o destaque para período de intensa instabilidade, chamado estágio de convi-
o mesmo como um item deste capítulo. Reportando-me às vência, requer um trabalho de acompanhamento técnico
respostas obtidas a respeito\ a partir das inquietações que específico à familia. Segundo as próprias familias, este não
suscitaram o primeiro trabalho com crianças institucionali- deveria se limitar ao período do estágio probatório como uma
zadas, seria extremamente difícil, tanto para estas como para avaliação requerida pelo judiciário, mas ser um suporte técnico
aquelas abandonadas ou retiradas da familia tardiamente, que atenda à necessidade da familia.
reconstruir vínculos primários, identificar-se com novas figuras
De acordo com Brodzinsky (1990), uma boa porcentagem
parentais. A criança adotada tardiamente estaria, numa certa
de crianças adotivas e seus pais experienciam como estres-
sante o período que se segue após a colocação, o que aumenta
a vulnerabilidade da criança para problemas emocionais e
Bowlby (1976); Winnicott (1965).

196 197
ADOCÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Conclusões e considerações finais

comportamentais. Segundo o autor, a ideia de que a adoção familias como uma alavanca para o crescimento de todos os
é estressante contraria vários mitos e estereótipos prevalentes seus membros.
sobre esta situação, que tem sido vista, tipicamente, como uma
solução da sociedade para o estresse que envolve as três partes
do triângulo da adoção: O intermediário
Consideramos de necessidade fundamental, para o trabalho
1) a dos pais biológicos, que não desejam ou não podem
de preparação e acompanhamento das familias em processos
ficar com o filho;
de adoções tardias, um estudo sobre o papel que os opera-
2) a infertilidade ou ausência de filhos por parte dos pais
dores da adoção exercem enquanto intermediários na adoção
adotivos (acrescentaríamos, aqui, o desejo de ter outros
legal. A pesquisa de Costa (1988) aponta que há até bem pouco
filhos); e
tempo (em alguns lugares ainda perdura) este papel costu-
3) um estado de ausência de lar e insegurança por parte da mava ser exercido por "senhoras da sociedade" investidas de
criança a ser adotada. anjo Gabriel (interpretação nossa) a colocar os "anjos aban-
donados" nas familias indicadas por Deus para recebê-los.
A situação de crise da familia em processo de adoção, Na maioria das vezes, tal prática estava envolta em mistérios,
não recebendo o atendimento adequado, pode resultar muito segredos, principalmente para proteger os protagonistas de
traumática, ou desencadeadora de situações traumáticas, mais uma prática ilegal que é a "adoção à brasileira". A partir do
regressivas, pode vir a ter implicações maiores e a necessitar de momento do encontro, criança e familia seguiam sozinhas, à
uma intervenção terapêutica. sua própria sorte. Hoje, a denominação está carregada de cono-
O acompanhamento dos processos de adoção tardia, tações pejorativas, que inclui até o tráfico de crianças, e precisa
quando respeitadas todas as suas fases, pode representar uma ser reabilitada, dada a sua importância para os processos legais
solução terapêutica preventiva para a crise que pode instalar-se de adoção tardia.
no momento da adoção. Tal processo não é linear, homo- Nabinger e Crine 4 consideram que o intermediário, durante
gêneo, desenrola-se de acordo com a dinâmica de cada grupo o acompanhamento posterior à colocação, encontra-se no
familiar. Requer muito trabalho de todos os envolvidos. Desde
que o estabelecimento de regras seja simples e claro e as mani-
Uma denominação 9ue só encontramos cm Nabinger e Crinc (1990). As autoras
festações de agressividade, às vezes intensas do filho adotivo, referem-se aos membros de agê ncias ou associações, além dos representantes do
sejam catalisadas, a experiência pode ser aproveitada por estas poder legal constituído, intermediários do encontro pais- filh o adotivo na adoção
internacio nal, mas 9ue pode ser per feitamente aplicado aos processos de adoção
nacional.

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ADOÇÃO TARDIA
Da fam ília sonhada à família possível Conclusões e considerações finais

centro de um jogo complexo de projeções cruzadas, onde indignada quando apareceu aquela assistente social do juizado
as suas próprias projeções não são as menos importantes. lá em casa me perguntando tudo de novo. Eu disse: estamos
Propõem como necessária a capacitação profissional destes sendo acompanhados pela T., converse com ela" (Márcia); 2) o
para se sustentarem numa posição de "equilibrio inconfor- poder legal constituído - "[...] uma amiga comentou que se eu
tável" entre dois polos de projeções ambivalentes do grupo dissesse tudo o que se passa, as complicações, as dificuldades
familiar. Representa, ao mesmo tempo, principalmente para os para você, o juiz não nos daria a adoção" (Márcia). Tais ques-
pais, "a doadora de vida (da criança)" e uma ameaça em função tões foram sentidas, pela maioria dos grupos, como elementos
do contato com a origem da criança. persecutórios no acompanhamento.
Muitas outras questões sobre o trabalho do psicólogo, Ao término do relatório da pesquisa, veio-me a imagem
como intermediário nas adoções, precisam ser levantadas, para de Alice com as fotos da família norueguesa que, na época,
que possamos dirimir muitas dúvidas que envolvem o papel. pretendia adotá-la. A casa, numa paisagem coberta de neve, que
Observa-se, atualmente, que ainda existe certa resistência para ela nem imaginava o que fosse, revelava um mundo comple-
o acompanhamento profissional especializado em processos tamente estranho ao seu ... Mas, enquanto lhe falávamos das
de adoção mesmo dentro de certos juizados. Vivi isso na diferenças de clima, língua, costumes, etc., observamos Alice
prática, tendo recebido várias negativas por parte de juízes de distante, agarrada às fotos (segundo a funcionária da insti-
algumas comarcas do interior do Estado de São Paulo, que tuição, não as largava nem para dormir), como se fosse uma
justificaram o "segredo de justiça" como impedimento para tábua de salvação. Perguntava-me qual é esse "mundo" para
pesquisa; ou que alegaram ter um trabalho voluntário (damas Alice. Ela não tinha, literalmente, referências, e precisava com
da sociedade) ótimo, não querendo, por isso, a "interferência" urgência de uma, não importando de onde viria (nem para
(sic) de psicólogas ou pesquisadoras no trabalho com adoção. onde a levasse), desde que fosse para ter a família por que
Uma autoridade do judiciário chegou a sugerir a indicação de tanto esperava, como centenas de outras crianças como ela,
adotantes para serem contatados "por fora" da instituição (não "sem chances de adoção no país".
se quebraria no caso o segredo de justiça?), parecendo que a Reportei-me à dificuldade que tive, juntamente com a
cultura da adoção "à brasileira" continuava arraigada, dentro equipe do juizado, em dizer para Alice que ela voltaria para
do próprio sistema que estaria a combatê-la. uma instituição, quando a primeira colocação não deu certo.
Ainda em relação ao papel do intermediário, destacamos Ela foi simples e direta: "você vai encontrar outra família
duas questões detectadas nas falas dos sujeitos: 1) a intervenção para mim, né?". E, então, pronto, estava "resolvido". Para ela
de vários profissionais no processo - "é muita gente entrando parecia mais simples do que para nós, que subestimávamos,
nas nossas vidas, representa uma pressão" (Elza); "fiquei de certa forma, a sua capacidade de acreditar, de se empenhar

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ADOÇÃO TARDIA
Da família sonhada à família possível Conclusões e considerações finais

para reconstruir vínculos em outra familia, de amar e, princi- é muito importante quando se pensa que, para a criança, a
palmente, de ser amada, apesar de suas características, que a importância de ter uma familia e de ser amada, protegida, pode
colocavam, a priori, no rol dos não adotáveis. superar barreiras que pareçam intransponíveis. Pensamos,
E Alice acreditou e exigiu de todos um trabalho rápido, entretanto, que, como último recurso para o atendimento de
em conjunto. Logo sua terceira nova chance surgia através de um direito garantido à criança nas Declarações Universais, a
uma familia de um lugar bem distante (tanto geográfica como adoção tardia internacional vem sendo usada com muita fre-
culturalmente), mas que estava muito próxima para entender quência no nosso país. A explicação estaria, a meu ver, na
e atender a suas necessidades mais básicas, o que não tinha ausência de postulantes dispostos a enfrentarem todas as difi-
encontrado aqui. O sorriso e o brilho nos olhos de todos no culdades que o processo implica, somada aos tabus, que ainda
momento do primeiro encontro sinalizavam que o caminho são mantidos também, pela carência de trabalhos que divul-
fora encontrado. Mas, a partir dali, quase nada poderia ser feito guem as possibilidades de adoções bem-sucedidas.
para ajudá-la nessa caminhada, já que os trinta dias determi- Tanto na adoção tardia como na vida, as chances de sucesso
nados pela lei não significam muita coisa, quando a criança ou fracasso das relações que se estabelecem dependem da capa-
ainda não ingressou no meio em que passará a viver. Havia, cidade de suporte, de entrega, de trocas afetivas profundas,
também, outra questão que me punha angustiada, que era a verdadeiras, entre os protagonistas.
impossibilidade de manter Alice no seu meio cultural.
Sua familia se tomou uma realidade. Alice agora é uma
cidadã norueguesa, como sua irmã, adotada também no Brasil,
como tantas outras que já seguiram caminho semelhante. Mas,
com quantas perdas ainda ela teve que lidar para alcançar a
nova identidade? Quão dispendioso foi para todos em termos
de desgaste emocional, que consequências essa mudança tão
radical - de certa forma imposta a ela - trará para Alice no
futuro?
Enquanto não temos resposta, continuarei tentando ame-
nizar, com trabalho, com estudo, pesquisas, divulgação desses
escritos, as barreiras que a adoção tardia encontra no nosso
meio. Não quero que essas declarações sejam consideradas
um posicionamento desfavorável à adoção internacional. Ela

202 203
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