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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Faculdade de Teologia

ARMINDO DOS SANTOS VAZ

ANTIGO TESTAMENTO I

Lisboa 2008
2

INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO

A importância e actualidade da interpretação do Pentateuco é evidente. Poucos livros da


Bíblia foram objecto de tanto estudo e debate como os do Pentateuco. As grandes discussões
sobre a relação da ciência com a fé e as não tão longínquas teorias evolucionistas bem como as
mais próximas do big bang tiveram como alvo quase sempre até meados do séc. XX as narrações
da criação do mundo e da humanidade nos primeiros capítulos do Génesis. O Pentateuco ocupa
uma posição de relevo no conjunto das Escrituras inspiradas. Nele encetam várias linhas de força
da religiosidade e teologia bíblica: religião bíblica, Povo de Deus, libertação deste povo por Deus,
aliança do povo com Deus, Deus criador, Deus libertador...
Acresce que a investigação científica sobre a composição literária do Pentateuco se
repercute no estudo de outros livros veterotestamentários e na própria concepção da história, da
sociedade, da cultura e da religião de Israel. A “crítica literária” e outros métodos histórico-
críticos, que nasceram em ligação com o esforço por compreender as origens literárias do
Pentateuco, aplicam-se agora com fruto ao estudo de quase todos os livros bíblicos: questiona-se
a composição em bloco dos Salmos por David, a responsabilidade de Salomão pela literatura
sapiencial que lhe é atribuída, a origem dos escritos proféticos, a génese literária dos evangelhos e
de ditos de Jesus, o autor de cartas atribuídas a Paulo, etc. A “história das formas” da literatura
bíblica começou com o comentário de H. Gunkel ao livro do Génesis em 1901; hoje é tarefa
inevitável atender na exegese bíblica à forma e ao género literário bem como ao contexto social,
histórico e cultural do texto. A maior parte da investigação crítica bíblica teve a sua primeira
verificação nos livros do Pentateuco.
Precisamente este esforço continua a ser fundamental para a interpretação global do
Pentateuco a vários níveis literários e teológicos. Aqui se concentra, pois, em primeiro lugar o
estudo do Pentateuco. Depois dum período de paragem e tranquilidade a gozar de certezas e
consensos que pareciam afiançar os estudos feitos até 1975, a partir daí reavivou-se a discussão
em torno da composição literária do Pentateuco, despertando grande interesse aos estudiosos.

1. "Pentateuco": designação e conteúdo

Os primeiros cinco livros da Bíblia são geralmente conhecidos pelo nome de Pentateuco. O
primeiro a usar este nome foi, pelo ano 160 d.C., um discípulo do gnóstico Valentino, chamado
Ptolomeu. Tal designação também se encontra no séc. II d.C. em Tertuliano sob forma grega: h(
Pentateu/xoj (bi/bloj), que traduz a divisão dum bloco literário em "5 rolos" (" teuxoj" =
“instrumento”; daí "estojo" em que se guardava um rolo de papiro ou de couro, escrito; mais
tarde passou a significar “rolo”, “volume”, “livro”). Esta expressão bem cedo aparecerá sob forma
latina masculinizada.
Naturalmente os judeus não usam esta terminologia para designar o que para eles é a parte
mais importante das Escrituras; os de expressão hebraica sempre a chamaram hfrowt (Tōrá =
"ensino, instrução"); mas depois a palavra significava correntemente "lei", e por isso também a
chamam "livro da Lei", "livro de Moisés", "livro da Lei de Moisés" 1, também porque a parte
legislativa tem um peso enorme face à parte narrativa propriamente dita. Assim podia aparecer
como a "Constituição do Povo" de Israel. É provável que nestas menções tardias

1 Ver 2Cron 25,4; 30,16; 35,12; Esd 3,2; 7,6; 10,3; Ne 8,3; 13,1.
3

veterotestamentárias já se tratasse do Pentateuco na sua forma actual, embora estas citações se


possam referir a textos particulares. A expressão hebraica "os cinco quintos da Tōrá" parece ser
de origem mais recente.
Cada um dos cinco tomos é mencionado em hebraico pelas respectivas primeiras palavras
2
:

tyi$)"r:B (bere’šît) = "No princípio..."


tOm:$ heL"):w (’elleh š môt) = e
"Estes os nomes..."
)fr:qiYaw (wayiq ra’) =
e
"Chamou..."
r"Bad:yaw = "Falou..." ou raB:dim:B (b mid bbar) = e
"No deserto..." (... raB:dim:B
e

he$om-le) hfwh:y r"Bad:yaw )


{yirfb:Dah heL") (’elleh hadd barîm) = e
"Estas as palavras..."
A divisão do conteúdo do Pentateuco em blocos, feita talvez com a finalidade de obter
secções que pudessem ter a mesma extensão dos rolos de cada um dos outros livros, assenta
numa tradição milenar e teve lugar, o mais tardar, no séc. IV a.C., ao menos desde que a
comunidade de Samaria se separou de Jerusalém, no tempo de Neemias e Zorobabel, recortando
de todo o AT só o Pentateuco como Escritura sagrada. Tal divisão já era conhecida dos LXX (que
a receberam do passado), pois até são da responsabilidade deles os títulos com que os cristãos
conhecem os 5 respectivos livros:
. "Génesis" (= "origem" do universo, do ser humano e de Israel)
. "Êxodo" (= "saída" de Israel da escravidão do Egipto)
. "Levítico" (= "referente aos levitas")
. "Números" (por conter recenseamentos nos cc. 1-4)
. "Deuteronómio" (= "segunda legislação", talvez em virtude duma interpretação errónea de
Dt 17,18, onde o TM não fala de "repetição", mas sim duma "cópia" da "Lei").
Ao contrário de "Pentateuco" (que frisa um pormenor externo), "Tōrá" atenta no conteúdo
interno. E aí se vê a deficiente e inadequada tradução de hfrowt por “lei”, muito embora reconhe-
cendo à noção hebraica maior maleabilidade do que à nossa. Efectivamente, hfrowt (Tōrá) vem
da raiz hry (yrh), que significa "ensinar", "guiar", e admite um alargado leque de sentidos, desde o
de ritual da lepra 3 até ao de preceito e sentença geral (Ex 24,12). Mas o significado primitivo é
de "instrução". De qualquer forma, este título hebraico está mais do que justificado, pois é no
Pentateuco que se encontra em massa a legislação de Israel, especialmente no Lv e no Dt: salvo Js
20,4-6 e Nm 35,9ss, só em Ez 40-48 se encontram leis. E foi com certeza a título de Lei do Povo
eleito de Deus que estes cinco livros foram separados do resto dos livros sagrados de Israel e se
lhes reconheceu um valor religioso sem igual, vendo-os como canónicos e fazendo autoridade,
tanto por parte dos judeus como dos Samaritanos. A hfrowt era vista como a base de vida e a
constituição do Povo de Deus: constituía a sua estrutura e as normas da sua vida social no meio
de outros povos 4.
A terminologia judaica foi adoptada pelo NT, onde o grego o(/ no/moj (ho nómos) já se
tinha tornado sinónimo de "Pentateuco".

2 O hábito e sistema de intitular uma obra literária pelo seu incipit ou palavra(s) de abertura era
antiquíssimo no Próximo Oriente. Por ex., a epopeia acádica da criação era referida segundo as duas primeiras
palavras Enuma eliš (“Quando lá no alto...”).
3 Lv 13,59; 14,2.54.57.

4 Cf. O. EISSFELDT, The Old Testament. An Introduction. The History of the Formation of the Old
Testament (Basil Blackwell; Oxford 1966) 155-157.
4

Porque alguns estudiosos do primeiro bloco de livros da Bíblia estenderam a sua


investigação para além ou ficaram aquém do “Pentateuco”, há que anotar a sua terminologia. O
título "Pentateuco" mantém-se no uso tradicional. Mas no fim do séc. XIX entrou em
concorrência com outra designação: a de "Hexateuco". Desde o livro de Julius Wellhausen, Die
Composition des Hexateuch 5, a teoria do Hexateuco dominou a cena da investigação veterotes-
tamentária durante algumas décadas. E o terreno parecia definitivamente ganho à causa do
Hexateuco: as fontes do Pentateuco teriam continuação no livro de Josué e mesmo para além
dele; mas ao menos até ele; aliás, a promessa da "terra" aos patriarcas em Gn só aparece realizada
em Js; por conseguinte, do ponto de vista temático haveria uma unidade desde Gn até Js. Otto
Eissfeldt é um dos campeões desta ideia: "O livro de Josué narra a realização da promessa,
repetidas vezes concedida aos patriarcas, de que a terra de Canaan havia de pertencer aos seus
descendentes 6 e com isso forma uma unidade objectiva com o Pentateuco" 7. O último corifeu da
teoria do Hexateuco foi Gerhard von Rad.
Hoje está morta e enterrada. O coveiro foi inegavelmente Martin Noth, com a esmagadora
influência e o êxito rotundo da sua nova teoria: a hipótese da "História deuteronomista". Antes de
M. Noth a lançar, argumentava-se que era incompreensível que o autor "Jahvista" se debruçasse
sobre as origens da humanidade e emudecesse completamente sobre a sua época, os reinados de
David e Salomão. É certo que Kittel preferira outra explicação para a origem do bloco narrativo
Js - 2Re, dizendo que se trataria da compilação e composição literária de várias unidades
narrativas de maior ou menor fôlego, como histórias de heróis, reis, profetas, da arca e
semelhantes. Mas o livro de M. Noth, Überlieferungsgeschichtliche Studien, fez ruir
definitivamente a simpatia pela extensão da hipótese documentária a Js - 2Re. Noth acha que o
Deuteronómio mais não é do que a base de uma grande obra histórica, que se prolonga até 2Re.
Dt 5-30 seria um documento independente do resto do Pentateuco. Um autor fortemente
impregnado de ideias deuteronomistas (donde o nome "deuteronomista" e a sigla Dtr) juntou ao
documento uma introdução (Dt 1-4) e uma conclusão (Dt 31-34), coligiu, ordenou e interpretou
narrativas e tradições dispersas nesta obra monumental. A história começaria com a tomada do
país (Js), continuaria com a vida das tribos (Jz), narraria as primeiras tentativas de monarquia e a
consolidação do trono de David (1-2Sm) e concluiria com a dissolução do reino unido e a queda
definitiva de Samaria e Jerusalém (1-2Re). Mais tarde, com certeza por ser de natureza
igualmente legal, o Deuteronómio ter-se-ia juntado ao já existente conjunto da Lei de Israel,
resultante da fusão das tradições "Jahvista, "Elohista" e "Sacerdotal" (Gn - Ex - Lv - Nm). O
lugar da inserção encontrar-se-ia em Dt 34.
Por conseguinte, recusada a teoria que propôs a existência dum "Hexateuco", falta saber em
que medida é convincente a teoria de um Tetrateuco seguido da "obra histórica deuteronomista".
Certo é que nem G. von Rad (que trabalhou com a hipótese dum Hexateuco), nem M. Noth (que
pressupôs um Tetrateuco), atentaram suficientemente no facto de que o legado da tradição judeo-
cristã e o que hoje possuímos não é um Hexateuco ou um Tetrateuco mas uma Tōrá-Pentateuco 8.
Impõe-se, pois, explicar primeiro por que os primeiros escritos canónicos da Bíblia se fecharam,

5 Em Jahrbücher für deutsche Theologie, XXI (1876) 392-450; XXII (1876) 407-409.
6 Gn 13,14-17; 15,7.18; 17,8; 26,3s; etc.

7 The Old Testament. An Introduction, p. 250.

8 S. MOWINCKEL, Tetrateuch-Pentateuch-Hexateuch. Die Berichte über die Landnahme in den drei


altisraelitischen Geschichtswerken (BZAW 90; Berlin 1964); A.G. AULD, Joshua, Moses and the Land.
Tetrateuch-Pentateuch-Hexateuch in a Generation since 1938 (Edinburgh 1980).
5

não como Tetrateuco ou Hexateuco, mas como Pentateuco. O Pentateuco, terminando com a
morte de Moisés antes de chegar à "Terra", foi visto como uma narrativa concluída em si, com a
sua própria estrutura, unidade e significação (que justificaremos ao fim desta introdução) 9. Então,
quem foi responsável por esse conjunto literário? como surgiu literariamente 10.

2. Moisés, autor do Pentateuco?

-- Na sinagoga como na Igreja sempre reinou a opinião de que Moisés era o autor da
Tōrá. O NT mostra generalizada esta opinião, sem deixar transparecer a mínima dúvida quanto a
ela. Textos como Mt 19,7ss; Mc 12,26 (“não lestes no livro de Moisés…”); Jo 1,45; 5,45-47; Act
15,21; e Rm 10,5 pressupõem até que Moisés o tenha redigido todo. Esta convicção dos
primeiros cristãos era também a dos rabinos judeus, que sobre isso deixaram numerosos
testemunhos no Talmude e nos Midrašim. Portanto, a Igreja neotestamentária assumiu geral e
suavemente a tradição judaica que via em Moisés o autor do Pentateuco e que até ao séc. XVII
só raramente foi contestada 11.

-- No entanto, a atribuição do Pentateuco a Moisés não se pode documentar, nem


deveria ser conhecida anteriormente ao séc. IV a.C. (se exceptuarmos a referência isolada de Mal
3,22, no séc. V). Deve ter surgido entre os séculos IV e II a.C., possivelmente devido a uma
interpretação extensiva e acomodatícia da referência de Dt 31,9 ("Moisés escreveu esta Tōrá e
entregou-a aos sacerdotes levitas"), embora esta referência aponte para o trecho precedente ou
para as secções poéticas que se seguem. Os primeiros vestígios de tal atribuição (embora não seja
certo que ela se refira a todo o Pentateuco) encontram-se no séc. V (Mal 3,22) e depois nos fins
do séc. IV na obra do Cronista (Esd 3,2; 7,6; 2Cron 25,4; 30,16; 35,12; Ne 13,1). A referência de
Sir 24,23 é cronologicamente muito segura: pelo 180 a.C. De resto, é evidente que o judaísmo
tardio e o NT se limitaram a exprimir a opinião comum da época e do ambiente em que se
moviam, de maneira que os seus testemunhos não podem ser considerados normativos no plano
da crítica histórica 12.
Em boa verdade, o Pentateuco não nos diz nada sobre o seu autor literário. De Moisés
fala-se normalmente em terceira pessoa. Só alguns trechos históricos e narrativos se atribuem
expressamente à sua redacção: Ex 17,14 ( depois da batalha e vitória contra os Amalecitas, Deus ordena-lhe:
"escreve-o num livro para que sirva de recordação" ); 24,4 (para a ratificação da aliança no Sinai diz-se: "então Moisés
escreveu todas as palavras de Yahvé" ); 34, 27; Nm 33,2 ("Moisés escreveu as etapas de marcha [pelo deserto] segundo a
ordem de Yahvé"); Dt 31,9.22.24 ( "quando Moisés acabou de escrever os artigos desta lei até ao fim..." ). E terão sido
estas apresentações soltas (de Moisés a escrever) o ponto de partida para a convicção de ele ser o
autor do Pentateuco. Noutros textos diz-se que "Moisés falou" ou que "Deus falou a Moisés",
sem dar a mínima notícia sobre a redacção dos escritos que hoje possuímos. Os próprios profetas
pré-exílicos, que certamente conheceram ao menos parte do Pentateuco, não falam de Moisés

9 Cf. J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 17.35-37.

10 Excelente resumo da história da investigação sobre as origens literárias do Pentateuco em A. de PURY -


Th. RÖMER, "Le Pentateuque en question: Position du problème et brève histoire de la recherche", Le
Pentateuque en question. Les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière des
recherches récentes (ed. A. de PURY) (Le monde de la Bible; Labor et Fides; Genève 1989) 9-80.

11 Veja-se, só como exemplo, a convicção de S. AGOSTINHO sobre a redacção do Génesis por Moisés:
Confissões XI,3; XII,14-17.23-26.28.30-32.

12 Cf. J.A. SOGGIN, Introduzione all'AT, p. 121.


6

(salvo Miq 6,4), embora isso viesse conferir mais autoridade à sua pregação. Aliás, o grande
corpo do Pentateuco não pretende ter sido redigido por Moisés, nem sequer transmitido
oralmente desde a sua época.

-- Pelo contrário, inventariando os contributos e resultados da crítica


histórico-literária a partir do séc. XVIII, hoje estamos em grau de poder ver com toda a clareza
como inúmeras e variadas passagens não podem de nenhum modo ser atribuídas nem à redacção
nem à locução de Moisés, deixando transparecer uma origem pós- mosaica.
 Encontramos vários e notórios anacronismos relativamente a Moisés:
+ Dt 34 descreve a morte de Moisés e, portanto, a redacção não pode dever-se a ele. Isto
era reconhecido pelos próprios que defendiam a opinião tradicional, mas justificavam-no como
explicável aditamento póstumo.
+ A frequente fórmula estereotipada "até ao dia de hoje" (Dt 3, 14; etc.) denota uma
evidente distância temporal entre o autor e o tempo de Moisés, estabelecendo um claro confronto
entre ambos.
+ Certas frases supõem anacronicamente a conquista de Canaan, posterior a Moisés, e a
instalação de Israel na Palestina, onde Moisés não entrara: "então os cananeus habitavam aquele
país" (Gn 12,6; 13,7) situa-nos antes da descida ao Egipto e do regresso que levou à ocupação da
terra dos cananeus, expulsos ou assimilados no tempo do escritor, só bem depois da morte de
Moisés; Gn 40,15 chama a Canaan "o país dos hebreus" com uma designação que não pode
remontar mais além da época filisteia (mais ou menos entre 1200-900 a.C.), em que se encontra a
mesma denominação (1Sm 13,3ss), muito posteriormente a Moisés; a expressão "além do Jordão"
(Gn 50,10s; Nm 22,1; 32,32; 35,14; Dt 1,1.5; 3,8; 4,46; etc.) mostra-nos o escritor situado a
Oeste do Jordão, onde não chegou Moisés. Aliás, os habitantes pré-israelitas de Canaan são
chamados Amorreus e Cananeus.
+ Outras frases revelam mais anacronismos, pressupondo condições políticas e geográficas
de época muito posterior a Moisés: "antes que os filhos de Israel tivessem rei" (Gn 36, 31) e a lei
relativa ao rei (Dt 17,14ss) transportam-nos ao período da monarquia, que só viria a existir dois
séculos depois de Moisés; a denominação toponímica "Dan" (Gn 14, 14; cf. também Dt 34,1)
data, ao máximo, da época dos Juízes e só é mencionada a partir daí (Jz 18,29); Gn 21,34; 26,14-
18; Ex 13,17 mencionam os Filisteus, que só ocuparam o território depois da morte de Moisés.
 Além disso, notam-se no Pentateuco repetições, "duplicados" e narrações diferenciadas,
com estilo e vocabulário notavelmente diferentes, mesmo para episódios similares, que
excluem a unicidade de autor e advogam em favor duma redacção complexa,
literariamente não linear:
+ Gn 2,4 encerra a narração da criação do universo e do homem; mas o mesmo versículo
parece ignorar tudo o que se descreveu anteriormente e apresentar de novo a terra como um
deserto, falando outra vez da origem do homem para só depois falar da da mulher, das plantas e
dos animais; Gn 1,1-2,4a usa sistematicamente para falar de Deus o nome Elohim num estilo
literário preciso e austero com fórmulas repetidas que vão cadenciando a narração, enquanto
2,4b-3,24 emprega o nome de Yahvé-Elohim num estilo amplo e livre, ágil e vivo.
+ Encontramos duas genealogias dos filhos do "’adam" primordial, Gn 4 e Gn 5, onde se
repetem alguns nomes próprios.
+ Há duas versões da Aliança de Deus com Abraão: Gn 15 e 17.
+ Temos duas descrições da expulsão de Agar (Gn 16 e 21,8-21).
+ Em Gn 47,1-12 parecem encostados um ao outro dois relatos do estabelecimento dos
filhos de Jacob no Egipto.
7

+ Verificam-se 3 narrações inspiradas no mesmo tema do rapto da mulher dum "patriarca"


por parte dos príncipes sedentários: Gn 12,10-20: Abraão no Egipto; Gn 20,1-18: Abraão no
Neguev; Gn 26,1-14: Isaac.
+ Parece haver dois relatos da vocação de Moisés: Ex 3-5 e Ex 6.
+ Fazem-se dois enquadramentos geográficos (artificiais) dos episódios do maná e das
codornizes (Ex 16 entre a saída do Egipto e a chegada ao Sinai; e Nm 11 a caminho de Cadeš),
com elementos agrupados de diferentes tradições.
+ Narra-se duas vezes, de forma semelhante no mesmo sítio, o prodígio da água a brotar do
rochedo: Ex 17,1-7 e Nm 20,1-13.
+ Encontram-se dois textos do Decálogo: Ex 20,1-17 e Dt 5,6-21.
+ Lei sobre os escravos: em Ex 21 e em Dt 15,12-28.
+ Leis sobre o homicídio: em Ex 21; em Dt 19; e em Nm 35.
+ Cinco calendários litúrgicos, catálogos diversos de festas em diferentes pontos do
desenvolvimento narrativo: Ex 23,14-19; 34,18-23; Dt 16,1-16; Lv 23,4ss; Nm 28-29.
+ Ainda se poderia referir a repetição de mais leis em Ex, Lv e Dt.
 E, além do mais, entre estas narrativas paralelas também se notam incongruências,
desordem e discordâncias justapostas ou entrelaçadas num único relato:
+ Gn 21,31 e 26,33 dão duas explicações diferentes do nome toponímico "Be'er Sheba'":
"poço do juramento" segundo a primeira; "sete poços" de acordo com a segunda.
+ O monte da revelação de Deus a Moisés é chamado "Sinai", mas também "Horeb" (sem
indícios de que se trate de montes ou cumes diferentes).
+ O sogro de Moisés é chamado Raguel em Ex 2,18, enquanto que em Ex 3,1; 4,18 e 18,1
é chamado Jetro.
+ Gn 4,26 ignora completamente a informação de Ex 6,2-3 que confirma o dito em Ex
3,13-15 - segundo o qual só a partir do Sinai é que os Israelitas passaram a dar ao seu Deus o
nome de Yahvé.
+ Há mesmo contradição entre Dt 15,12 e Ex 21,7 sobre a libertação da escrava: Dt não
distingue entre escravo e escrava, como faz Ex.
+ Gn 20,1 "E Abraão partiu dali..." não podia vir originariamente depois dos versículos que
agora o precedem.
Todos estes fenómenos, que se poderiam ainda multiplicar, são impensáveis numa obra
escrita pela mesma pessoa 13 e forçam a concluir que Moisés não pode ter sido o autor literário
do Pentateuco, tal como entendemos hoje a palavra "autor".

-- Resta, porém, explicar a razão da atribuição generalizada do Pentateuco a


Moisés, pois a longa tradição judeo-cristã, que vê em Moisés a origem do Pentateuco, exige uma
explicação. E a verdade é que essa opinião comum tem um fundamento real e histórico. Com
efeito, Moisés teve o papel de iniciador em todas as esferas da vida nacional de Israel (de política,
de direito, de ideias sociais, morais, religiosas, de organização judiciária ou militar), precisamente
consignadas no Pentateuco. Ele esteve no princípio da história de Israel e foi indubitavelmente o
seu grande legislador. A sua figura encherá a narrativa do Pentateuco desde o nascimento no
início do Ex até à morte no fim do Dt, a tal ponto que falar do Pentateuco é falar de Moisés. De
tal modo está ligado à legislação de Israel e sua promulgação que o seu nome é usado em vez da
palavra "Lei" ("como prescreveu Moisés", "a Lei e os Profetas"). Além disso, foi visto pela
tradição como o fundador da religião de Israel, como o organizador do povo e do culto, como um
chefe carismático, sacerdote, profeta. Na medida em que ele está inextricavelmente implicado no

13 Cf. R.E. FRIEDMAN, “Torah (Pentateuch)”, The Anchor Bible Dictionary, VI (ed. D.N. FREEDMAN)
(Doubleday; New Yorh – London – Toronto – Sydney – Auckland 1992) 608-616; J.L. SICRE, Introducción al
Antiguo Testamento (Verbo divino; Estella 1993) 79-81.
8

núcleo do Pentateuco, isto é, nos acontecimentos religiosos e sócio-políticos que afectaram ra-
dicalmente a concepção que Israel passou a ter de si próprio e da sua relação com Deus, pode-se
e até se deve falar de um contributo fundamental de Moisés para a origem do Pentateuco.
Bastaria pensar na libertação do Egipto, na marcha pelo Sinai e na celebração da Aliança 14.
Moisés foi o guia religioso que deu força orientadora ao significado dos acontecimentos, de que
ele é o protagonista, narrados desde o princípio do Êxodo até ao fim do Deuteronómio, sempre
do seu «ponto de vista». Ele é a clave da narração e as diversas tradições só amplificaram este seu
«papel», usando a linguagem do teatro.
E a sua acção supervisora que aparece no Pentateuco dá sentido "ao desenvolvimento
homogéneo das tradições em períodos ulteriores. Sem Moisés ou alguém comparável a ele, estes
factos ficariam sem explicação adequada. Portanto, Moisés está no coração do Pentateuco e
pode, de acordo com a aceitação comum antiga, ser chamado correctamente o seu autor" 15,
contanto que se entenda o conceito de autor que tinham os israelitas e o cristianismo nascente, os
quais partilhavam o pensamento e a palavra escrita. Além disso, ainda é preciso ter presente que
os judeus, para exprimirem a convicção religiosa de que os seus livros sagrados tinham sido
escritos sob o impulso do espírito de Deus, os relacionavam com nomes importantes do passado,
reconhecidos como instrumentos da revelação de Deus; e por isso, "não sentiram repugnância em
atribuir o Pentateuco a Moisés" 16. E isto não desdiz o anteriormente dito, antes o sanciona. Por
outro lado, a atribuição da “Lei” a Moisés pelo NT não tem valor crítico nem deve ser usada para
dirimir do ponto de vista crítico e literário a questão da sua origem.
Por conseguinte, a atribuição do Pentateuco a Moisés, que não carece de base histórica,
tem sentido teológico (Moisés é o suporte histórico-teológico da história salvífica relatada no
Pentateuco) e não literário, sendo assim falso dizer que Moisés escreveu o Pentateuco, mas não
que Moisés esteve na origem do Pentateuco 17. Bem entendida, pode-se aceitar a afirmação de
que Moisés é autor do Pentateuco, por analogia com a afirmação de Deus como autor da Sagrada
Escritura.
Não foi esta a posição da Pontifícia Comissão Bíblica, quando, no limiar do séc. XX, a
crítica histórica dava as derradeiras machadadas na origem mosaica do Pentateuco. Recentemente
criada por Leão XIII (1902), interveio em 27 de Junho de 1906, talhante e definitória, dando aos
estudiosos católicos linhas directrizes para ulteriores investigações sobre a "questão mosaica" e
impondo a ideia de Moisés-autor literário; em resumo dizia que:
. Os motivos aduzidos pela crítica não eram suficientemente comprovativos para que se
devesse duvidar de que Moisés era o autor do Pentateuco.
. Para que Moisés se pudesse chamar autor não era necessário que ele tivesse escrito
com o próprio punho ou ditado a sua obra; poderia ter-se servido de colaboradores; mas
continuaria como autor principal.
. No Pentateuco haveria fontes escritas e orais que Moisés elaborara.
. Na época pós-mosaica o Pentateuco recebera ainda variações ou adições 18.
Era a tentativa de salvar o não salvável, uma reacção oficial face ao modernismo! Mas teve
como efeito o arrefecimento dos estudos bíblicos em geral.

14 Ver ainda o contributo considerável que os estudos histórico-críticos reconhecem a Moisés para a origem
da lei e das narrativas do Pentateuco: em ROBERT - FEUILLET, Introduction à la Bible, I, pp. 345-347.

15 E.H. MALY, Jerome Biblical Commentary, p. 5.

16 R.E. MURPHY, Jerome Biblical Commentary, p. 488.

17 Foi só no tempo de Moisés Maimónides (1135-1204) que a questão da autoridade do Pentateuco se


tornou indissoluvelmente ligada à questão da autoria mosaica, dizendo que provinha de Moisés.
9

-- Dito isto, por uma parte, é preciso ser- se indulgente para com as respostas da
Pontifícia Comissão Bíblica, fazendo o esforço por nos situarmos nesse tempo. Sendo o
problema crítico só um aspecto do conhecimento da mensagem bíblica, e quando os Estados
laicos encorajavam tanto os estudos críticos, é natural que a hierarquia eclesiástica chamasse a
atenção para outros pontos. O movimento galopante do modernismo semeava a confusão,
misturando questões de filosofia e de teologia com questões de crítica, tanto mais que as
conclusões da crítica não apareciam então ainda suficientemente fundadas. Para sustentar a fé dos
simples neste período conturbado, o magistério pôs-se à defesa. Quando o desenvolvimento da
crítica histórico-literária iluminava os textos do Pentateuco de maneira tão viva e tão nova,
quando a onda da crítica liberal e racionalista ameaçava subverter todas as barreiras da tradição
até então considerada sagrada, a mensagem cristã corria o risco de esfumar-se. E então o
magistério eclesiástico tinha as suas razões para pedir aos estudiosos católicos que se agarrassem
ao essencial do cristianismo, que era em parte uma herança do mosaísmo através da história de
Israel. De resto, não foi só a Igreja católica que reagiu assim negativamente face à análise da
crítica literária. A Assembleia Geral da Igreja livre da Escócia tomou posição contra William
Robertson Smith (renomeado semiticista e primeiro seguidor de Wellhausen no Reino Unido) e os
seus "Estudos sobre as religiões semitas"; foi irradiado da sua cátedra em Aberdeen em 1881. A
Assembleia geral dos Presbiterianos da América trouxe a julgamento público o Rev. C.A. Briggs.
E para as igrejas fundamentalistas anglófonas e de outras línguas a autoria mosaica do Pentateuco
permaneceu um artigo de fé básico 19.
Mas, por outra parte, quando o horizonte da vida eclesial se clarificou nas duas décadas
imediatas, não se justificava manter o "estado de sítio" aos estudiosos católicos, obrigando-os a
continuar a falar da autoria mosaica do Pentateuco, tanto mais que as directivas da Pontifícia
Comissão Bíblica apontavam para um conceito rígido de autor, como é entendido modernamente.
Este estado de sítio só foi oficialmente levantado por Pio XII em 1943 com a sua encíclica Divino
afflante Spiritu, que felizmente abria aos católicos amplas liberdades de investigação. E quando
em 16 de Janeiro de 1948 o secretário da PCB, numa carta ao Cardeal Suhard, arcebispo de Paris,
tornava directamente sobre a questão do autor do Pentateuco, já esta estava universalmente clara.
"Hoje em dia já ninguém duvida da existência de fontes, nem recusa admitir um progressivo
acrescento das leis mosaicas, devido a condições sociais e religiosas de tempos posteriores,
progressão que se manifesta também nas narrativas históricas" - reconhecia a dita carta. Tinha-se
percorrido o longo caminho de 42 anos e também se usava uma linguagem mais desempenada.
Mas como certas particularidades redaccionais do Pentateuco ainda não estavam suficientemente
claras, os exegetas católicos eram convidados "a estudar esses problemas sem prejuízos, à luz
duma crítica saudável e dos resultados das outras ciências implicadas nestas matérias",
confiando-se que tal estudo confirmasse "sem dúvida o grande papel e o profundo influxo de
Moisés como autor e legislador" 20.
Somos assim conduzidos naturalmente ao centro da questão da origem do Pentateuco. Se o
sentido teológico e histórico da sua autoria mosaica já é claro, fica em suspenso o problema
literário: não tendo sido escrito por Moisés, quem o escreveu ou como surgiu o Pentateuco e por

18 Cf. DS 3394-3397. Para reacções a este decreto, cf. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse
documentaire", Le Pentateuque. Débats et recherches. XIVe Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P.
HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 14-17.

19 Cf. ROBERT - FEUILLET, Introduction à la Bible, I, pp. 310-314; e J. BLENKINSOPP, The


Pentateuch, pp. 12-13.

20 Texto integral em DS 3862-3864.


10

meio de que etapas? Responder a esta questão supõe um estudo diacrónico com as dificuldades a
ele inerentes, pois partir à procura das origens é uma aventura com perigos.

3. Tentativas de resolver o problema da composição literária do Pentateuco.

A interpretação crítica do Pentateuco e da sua génese literária só começou no séc. XVII e


passou por muitas vicissitudes, até aos nossos dias 21. Precisamos de conhecer o desenvolvimento
histórico dessa interpretação, para aproveitarmos só o melhor que ela nos legou. Quem não
conhece a história está condenado a repeti-la, mesmo nos seus piores aspectos.

3.1. Apreciações pré-críticas

Se desde muito cedo se viram incongruências em relação à autenticidade mosaica do


Pentateuco, movendo-se dificuldades à sua unidade, as primeiras tentativas de solução foram
explicações formais e de ordem dogmatizante, e serviram, no fundo, para manter a tradição
judeo-cristã. Foi o que fizeram Fílon de Alexandria e Flávio Josefo ao pretenderem conciliar a
autenticidade mosaica do Pentateuco com Dt 34,5ss, explicando que Moisés previra a própria
morte, narrada por ele 22. Foi o que também fez o Talmude, embora por outra via, atribuindo os
últimos oito versículos da Tōrá a Josué. Aliás, qualquer divergência desta orientação seria
considerada uma infidelidade ao legado da tradição. Tal foi considerada a posição de Porfírio e
Celso, que puseram em questão a unidade e origem mosaica do Pentateuco, negando uma e ou-
tra; Celso 23 desmembrava a obra de Moisés por razões teológicas: os livros do AT dependeriam
da filosofia grega; conteriam fábulas antropomórficas da divindade, indignas do verdadeiro Deus;
e o povo hebraico nem seria tão antigo, nem oriundo de nobre origem.
Os escritores judeus careciam de conhecimentos sobre a história e a filologia dos povos
semitas para poderem fazer uma crítica literária e histórica. O mesmo se diga dos Padres da
Igreja, que rebatiam as dúvidas sobre a autoria mosaica do Pentateuco, postas por seitas heréticas
(especialmente gnósticas), por razões dogmáticas e não críticas. Além disso, a sua preocupação
era a de uma exegese espiritual e teológica. Também os autores da Idade Média consideravam
Moisés autor literário do Pentateuco 24. Isaac ben Iesus e o grande exegeta hebraico Abraham ibn
Ezra (1092 Toledo –1167 Roma?) já notavam passagens que não se podiam atribuir a Moisés,
pelas incongruências entre a opinião tradicional e a realidade dos textos e já nos aparecem
dotados da concepção dos problemas de crítica literária do Pentateuco. Ibn Ezra já apresentou
suspeitas essenciais contra a atribuição tradicional do Pentateuco a Moisés, advertindo
nomeadamente que Dt 31,9 afirma em terceira pessoa que “Moisés escreveu esta Tōrá”, quando,
se fosse ele o autor do Dt, deveria aparecer a primeira pessoa. Mas, tanto eles como outros

21 Cf. A. SUELZER – J.S. KSELMAN, “Modern Old Testament Criticism”, The New Jerome Biblical
Commentary (eds. R.E. BROWN - J.A. FITZMYER - R.E. MURPHY) (Prentice Hall; Englewood Cliffs, NJ 1993)
1114-1129; F. GARCÍA LÓPEZ, El Pentateuco. Introducción a la lectura de los cinco primeros libros de la Biblia
(Introducción al estudio de la Biblia 3a; Verbo divino; Estella, Navarra 2003) 37-45.

22 Cf. Antiquitates Judaicae, IV, 8, 48; e De Vita Mosis, II, 51.

23 No seu escrito a)leqh/j lo/goj (de 178-180±), só conhecido por citações da obra de Orígenes "Contra
Celsum", que o refutava).

24 Lemos, por ex., em Hugo de S. Victor (†1141) a propósito de “os autores dos livros divinos”: “Moisés
escreveu os cinco livros da Lei”: HUGUES DE SAINT-VICTOR, L’art de lire. Didascalion (Sagesses chrétiennes;
Cerf; Paris 1991) 163.
11

comentaristas medievais ainda estão ligados à autoria e tradição mosaica do Pentateuco e


aceitam-na 25. Alfonso de Madrigal (1410-1455±), apelidado El Tostado, no seu comentário a Dt
34 interroga-se se teria sido Moisés a escrever profeticamente a sua morte ou se foi Esdras e
Josué a descrevê-la 26. Paulatinamente viria a esboçar-se um método objectivo que tendia a
separar os problemas literários da autoria mosaica do Pentateuco. Durante a Reforma, A.B.
Karlstadt (em 1520, com uma crítica muito radical) e J. Bonfrère acrescentaram objecções contra
a autoria mosaica do Pentateuco. Todavia, ainda se tratava, afinal, de propostas e posições iso-
ladas, entre afirmações doutrinais e hipóteses sem fundamento sólido, que traíam a dificuldade de
pôr correctamente o problema; deparavam com pormenores estranhos, mas sem critérios de
orientação, e não vingavam porque logo acusadas de heresia. Esta exegese pré-crítica interessava-
se sobretudo pelas ideias teológicas subjacentes aos textos, sem se deter a discutir o problema do
autor. Só no séc. XVII é que são postas objecções sérias à atribuição do Pentateuco a Moisés,
com critérios científicos, que cresceriam em cachão até ao cabo do séc. XIX.

3.2. O trabalho da crítica literária até J. Wellhausen

Verdadeiros precursores daquilo que será a crítica literária costumam ser considerados o
filósofo holandês Baruch Espinosa e o católico Richard Simon. Espinosa (1632-1677), filho de
pais judeus, que, saídos de Portugal, demandaram a cosmopolita Amsterdão na esperança de
recompor as suas vidas destroçadas pela perseguição na Ibéria/Sefarade, é acreditado como pai
da crítica e das ciências bíblicas modernas, por ter colocado claramente argumentos contra a
autoria mosaica do Pentateuco e para a sua interpretação, com significação de longo alcance:
aponta os anacronismos, a redacção em terceira pessoa, etc. 27. Em 1670 28 põe em relevo os
duplicados, não deixando para Moisés senão as passagens que lhe são expressamente atribuídas 29.
R. Simon (1638-1712) oratoriano, erudito e sábio orientalista, armado de todos os recursos da
exegese de então, adoptou na mesma época de Espinosa atitude epistemológica análoga. Em 1678
notou tensões, repetições escusadas, a desordem cronológica e lógica e a mudança de estilos,
afirmando que Moisés não podia ter escrito todos os livros a ele atribuídos; e defende que existem
no Pentateuco fontes anteriores a Moisés, e também citações, provérbios e versículos de língua e
estilo posteriores a Moisés, como posteriores são acontecimentos nele narrados, reconhecendo

25 Cf. ROBERT - FEUILLET, Introduction à la Bible, I, pp. 291-292.

26 Cf. bibliografia respectiva em F. GARCÍA LÓPEZ, El Pentateuco, pp. 39-40. Considera-o como marca
do fim do período pré-crítico e pressentimento do início do período crítico.

27 Cf. R.D. FREEDMAN, “The Father of Modern Biblical Scholarship”, The Journal of the Ancient Near
Eastern Society 19 (1989) 31.

28 Nos capítulos VII a X do Tractatus Theologico-Politicus: texto em Tratado Teológico-Político (tradução


portuguesa, introdução e notas de D.P. Aurélio; Série universitária, clássicos de filosofia; Imprensa nacional – Casa
da Moeda 1988) 227-238.

29 “Por tudo isto, é, pois, meridianamente claro que o Pentateuco não foi escrito por Moisés e sim por
alguém que viveu muitos séculos depois”: Tratado..., p. 231. Esta recusa constitui um ponto nevrálgico na história
dos estudos bíblicos. Em 1679, Daniel HUET ainda dedicará 15 páginas da sua Demonstratio evangelica ad
Serenissimum Delphinum à defesa da autenticidade mosaica do Pentateuco, considerando que a opinião de
Espinosa destruía “os fundamentos da verdadeira religião, da teologia e de todo o cristianismo”. Cf. F.
LAPLANCHE, “La marche de la critique biblique d’Érasme à Spinoza”, La naissance de la méthode critique.
Colloque du centenaire de l’École biblique et archéologique française de Jérusalem (Patrimoines: christianisme;
Cerf; Paris 1992) 29-39.
12

Esdras como compilador do Pentateuco. Simon designou “história crítica” a aplicação do método
filológico ao estudo da Bíblia 30. A exegese histórica e crítica impunha-se à razão 31.
Mas, mesmo no séc. XVIII, quando já tinha começado o estudo científico da Bíblia,
continuou a pensar-se e defender-se que Moisés era o autor do Pentateuco 32. Só na segunda
metade do séc. XVIII, quando o Iluminismo ganhava terreno na Europa e provocou uma
mudança acentuada na consciência europeia que não aceitava acriticamente verdades tradicionais
(foi com o Iluminismo que se começaram a aplicar os métodos histórico-críticos às literaturas
clássicas), é que estavam reunidas as condições para a investigação crítica das fontes literárias
do Pentateuco. Esta teve dois pioneiros que quase simultaneamente, mas independentemente,
puseram as bases do que se irá chamar a hipótese documentária.
O primeiro foi o pastor protestante de Hildesheim, H.B. Witter (1683-1715), que em 1711,
usando como critério de distinção a alternância dos nomes divinos Yahvé e Elohim, a diferença de
estilos e as repetições, reconheceu em Gn 1,1 - 2,4a e 2,4b - 3,24 duas narrativas paralelas da
criação 33. Não estendeu a sua pesquisa a todo o Génesis, e foi logo esquecido. Pouco mais tarde,
Jean Astruc (1684-1766), filho dum pastor calvinista convertido ao catolicismo, médico de
consulta pessoal de Luís XV, partindo igualmente da diferença dos nomes usados para falar de
Deus, das diferenças de estilo e de finalidade, em 1753 34 descobriu no Génesis a presença de duas

30 Esta tese histórico-crítica foi fatal para R. Simon e para a sua obra Histoire critique du Vieux Testament
(Paris 1977) e até para a exegese bíblica: por pressão do bispo Bossuet, foi expulso da Congregação, que destruiu
no prelo a 1ª edição, parisiense, de 1678. Como para Espinosa, também para Simon as “verdadeiras leis da crítica”
são “claras e evidentes” e, como tais, independentes da fé e racionais. A severidade da Sinagoga contra Espinosa
correu paralela à oposição unânime das Igrejas católica e protestante à crítica bíblica. Os protestantes impediram
durante dez anos a impressão da obra de L. Capelle (Critica Sacra, aparecida em 1650). E Bossuet, fiel à linha
geral do seu integrismo, perseguiu de forma inflamada e implacável o desventurado Simon, uma das suas vítimas
predilectas; considerou como uma blasfémia criminosa a exegese bíblica dele (apesar da boa fé do interessado) e
falou da “audacieuse critique” do mesmo, vendo nela a “doença e a tentação do nosso tempo” (Bossuet mantinha a
validade integral da Bíblia, na sua inspiração literal); Fénelon, o amigo de Bossuet, qualificou-a de sediciosa,
lançou no tártaro os maus críticos, dizendo que seriam punidos com mais severidade do que os assassinos de pais e
de esposas. Cf. P. HAZARD, La crise de la conscience européenne: 1680-1715 (Les grandes études littéraires;
Fayard 1961) 165-198. Seria necessário esperar pelo princípio do séc. XX para a Igreja católica reabilitar este
oratoriano, que não duvidava da inspiração divina das Escrituras. Cf. prefácio de M.B. PEREIRA a F.V. JORDÃO,
Espinosa: História, salvação e comunidade (Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa 1990) 7-50, especialmente 14-
15.

31 Simon formulou a hipótese interessante de que teria havido uma cadeia de tradição desde Moisés até
Esdras (que teria registado acontecimentos da história de Israel e textos legislativos, transmitindo-os de geração em
geração até à sua definitiva compilação por Esdras), aparecendo assim não só como precursor da ‘crítica de fontes’,
mas também da ‘história das tradições’.

32Bossuet tinha vencido esta batalha. Cf. J.-R. ARMOGATHE, “Les études bibliques au XVIII e siècle: de la
lettre à la figure”, La naissance de la méthode critique. Colloque du centenaire de l’École biblique et
archéologique française de Jérusalem (Patrimoines: christianisme; Cerf; Paris 1992) 41-48. Tal defesa em toada
apologética continuou acérrima nos ss. XIX e XX no catolicismo (cf. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et
hypothèse documentaire", Le Pentateuque. Débats et recherches. XIV e Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P.
HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 11-13.

33 Ele já recolhia esta indicação essencial do calvinista ortodoxo holandês Campegius VITRINGA, que em
1683 nas suas Observationes sacrae punha em relevo a existência de dois relatos da criação, postos conjuntamente
no começo do livro sagrado.

34 Data em que, depois de muitas vacilações (não era um espírito valente), publicou em Bruxelas e sob o
véu do anonimato Conjectures sur les mémoires originaux dont il paraît que Moïse s’est servi pour composer le
livre de la Genèse. Segundo Astruc, os textos sagrados apresentariam dois relatos do dilúvio; às vezes inverteriam
13

fontes principais, que chamou "Jahveista" e "Elohista" (segundo as duas séries de textos
designavam o criador como Elohim ou com o nome de Yahvé, em conformidade com as
indicações de Witter), e de mais 10 fontes secundárias quais 'memoriais' donde Moisés teria tirado
a matéria da sua narração, que ele teria disposto em colunas que, depois da sua morte, teriam sido
misturadas, dando assim origem ao Génesis. Portanto, Moisés teria trabalhado a partir de fontes
preexistentes a ele 35.
Estavam descobertas as fontes ou documentos "J" e "E". As conclusões do médico de Paris
que se aproximavam daquilo que seria a "hipótese documentária", pouco atraíram a atenção dos
católicos (mais a dos protestantes). Como Witter, também Astruc passou despercebido 36; mas o
critério do uso dos nomes divinos, seguido por estes dois estudiosos, iria ser determinante durante
muito tempo, e ainda está a ser usado hoje pela maioria dos exegetas, sobretudo para a fonte "J".
O próprio Pentateuco corroboraria o argumento, declarando explícita (Ex 6,3) ou implicitamente
(Ex 3,14) que o nome pessoal de Yahvé só foi conhecido a partir de Moisés.
Os méritos da análise de Astruc foram reconhecidos e devidamente apreciados pelo
protestante J.G. Eichhorn (1752-1827), que em 1781 estendeu esta hipótese ao Pentateuco,
dando por absolutamente certo que todo o Pentateuco tinha sido composto por um autor na
época que vai de Josué a Samuel com a ajuda de documentos escritos por Moisés e outros seus
contemporâneos. Distinguiu duas fontes, uma Elohista e uma Jahvista 37. Descobriu o que
denominou "Priestercodex" (códice sacerdotal), donde a sigla P.
Como Eichhorn, também K.-D. Ilgen em 1798 se concentrará na chamada fonte "Elohista",
distinguindo nela duas correntes e admitindo, portanto, três documentos: "Jahvista" (J), E 1 (que
mais tarde será chamado P), e E2 (que será mais tarde simplesmente E).

Então far-se-ia outra tentativa de solução do problema literário do Pentateuco. Durante


meio século, a hipótese das fontes foi obnubilada, primeiro pela hipótese dos fragmentos,
fundada pelo católico inglês A. Geddes (1737-1802) e seguida pelo alemão J.S. Vater (1771-
1826) e W.M.L. de Wette (1780-1849), segundo a qual o Pentateuco resultaria da compilação de
trechos diversos: não haveria relatos continuados, mas fragmentos mais ou menos longos,
dispersos e desconexos, independentes entre si, compilados e reunidos depois por um redactor
(segundo Geddes, a organização actual dos textos dever-se-ia a dois grupos diferentes de
compiladores: o Elohista e o Jahvista). A teoria dos fragmentos exprime um dos dois extremos,
entre os quais se move a crítica do Pentateuco: a óbvia união das suas fontes e a igualmente óbvia
diversidade que torna imperfeita a unidade literária. De facto, a hipótese dos fragmentos nasceu

a ordem cronológica dos acontecimentos; grande número de transições pareceriam arbitrárias. a sua descoberta,
precisa e solidamente apoiada, permitiu à crítica bíblica progredir muito mais do que as engenhosas mas frágeis
hipóteses dos seus ilustres predecessores sobre o mesmo tema. A sua obra semiclandestina não passou despercebida,
mas também não suscitou o escândalo que ocasionaram os trabalhos de Espinosa e de Simon.

35 As fontes foram usadas por Astruc como argumento para defender a pretensão da autoria mosaica do
Pentateuco: porque havia duplicados e diversidade dentro do texto, não teria vindo de um autor; mas se a variedade
de fontes e tradições tivesse sido usada para juntar o texto, então poderia ter vindo de uma só pessoa, Moisés, que
teria funcionado em parte como compilador, em parte como autor.

36 Cf. R. de VAUX, "À propos du deuxième centenaire d'Astruc", VTS 1 (1953) 182-198.

37 Consideravam-se “fontes” textos de extensão ininterrupta, com continuidade narrativa e uma finalidade,
que eram combinados para formar um texto unitário. A ‘hipótese dos fragmentos’ levantará questões sobre a
natureza das ‘fontes’ e se outros materiais se lhe teriam acrescentado posteriormente. Já no início do séc. XX foi-se
vendo que as ‘fontes’ poderiam não ter sido tão unitárias como primeiramente se pensara.
14

da dificuldade de encontrar fontes contínuas fora do Génesis, sobretudo nas partes legais do
Pentateuco.
Logo a seguir, surgiu a hipótese dos complementos, defendida por Kelle (em 1812) e
impulsionada por H.G.A. Ewald (1823; viveu entre 1803-1875), mestre de Wellhausen. Porque a
Ewald se impunha como evidente a unidade da trama narrativa do Pentateuco, sustinha a
existência de um documento-base Elohista (que depois receberá a designação de sacerdotal), com
uma história continuada, desde o princípio do mundo até à entrada em Canaan. Como, porém,
não escapavam à sua consideração divergências nos textos, pensou que o “escrito fundamental”
teria sido posteriormente completado com a inserção de outras fontes ou excertos delas, por
exemplo, pelo Decálogo, o chamado livro da Aliança, e pelos textos "Jehovistas". À teoria dos
complementos aderiu W.M.L. de Wette em 1840, ele que em 1805-1807 tinha isolado o
Deuteronómio como fonte distinta, por ele identificada com o "Livro da Lei" (2Re 22-23)
descoberto no ano 18 do rei Josias e composto pouco antes 38. Mérito deste pioneiro foi também
ter utilizado o livro do Deuteronómio como base para a datação do Pentateuco. Segundo ele, a
medida da centralização do culto adoptada por Josias como consequência da descoberta do
“Livro da Lei” corresponde às leis deuteronómicas (comparar 2Re 23,4-20 com Dt 12-16).
Assim, a centralização do culto tornou-se o ‘ponto de Arquimedes’ para a datação dos textos do
Pentateuco: as leis que pressupõem a centralização do culto seriam contemporâneas ou
posteriores à reforma de Josias (622 a.C.); as que não, seriam anteriores.
Mas H. Hupfeld restaurou a teoria documentária em 1853, mostrando, mais claramente do
que os seus predecessores, a existência de 3 documentos em Gn-Nm: um escrito fundamental
Elohista (P) e outra fonte também Elohista (E), e ainda outra, Jehovista (J), que julgava a mais
recente; “E” e “J” teriam sido combinadas antes da união de ambas com o primeiro Elohista (P).
Também distinguiu o documento correspondente ao Deuteronómio (D).
O problema da relação entre as duas fontes Elohistas já tinha sido resolvido pelo alsaciano
E. Reuss em 1833, que deu um novo contributo à teoria documentária, demonstrando que o "J"
era a fonte mais antiga, seguido pelo Elohista estritamente dito ("E"), enquanto que o outro
"Elohista" (chamado mais propriamente "P", pelas preocupações sacerdotais que manifestavam os
textos que usavam esse nome de Deus) era a fonte mais recente, composta no tempo do Exílio
por obra de Ezequiel e da escola sacerdotal; precedê-la-ia o Deuteronómio (D). T. Nöldeke meteu
o livro de Js nesta composição e falou de Hexateuco.

Aí estavam os 4 documentos considerados como constitutivos do Pentateuco: J, E, D, P.


Depois, Karl H. Graf, Abraham Kuenen e Julius Wellhausen, os 3 nomes inseparavelmente unidos
à "teoria documentária" na sua formação clássica, deram-lhe a última demão. Construíram um
sistema que ordena as fontes cronologicamente, recolhendo os elementos dispersos das achegas
feitas por estudiosos anteriores. Eles situavam-se na continuidade duma pesquisa com três séculos
de idade, que desde o séc. XVII tinha posto em dúvida a autenticidade mosaica do Pentateuco 39.
Graf, discípulo de Reuss e seu cordial amigo, em 1866 confirmou que P é posterior ao D, pois os
livros de Jz a Re, escritos sob influência deuteronómica, nada sabem das determinações sacer-
dotais do Lv e dos Nm. Em 1869 o holandês Kuenen anunciou que chegara à mesma conclusão
independentemente; assumiu a cronologia de Graf para os documentos, mas aperfeiçoou-a em
correspondência com este. Assim Graf, em 1869, apresentou um esquema quase definitivo da

38 W.M.L. de WETTE, Dissertatio critico-exegetica qua Deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris


diversum (Jena 1805; reimpr. Berlin 1830). Cf. R. SMEND, Wilhelm Martin Leberecht de Wettes Arbeit am Alten
und am Neuen Testament (Basel 1958) 32ss; J.W. ROGERSON, W.M.L. de Wette, Founder of Modern Biblical
Criticism. An Intellectual Biography (JSOTSS 126; Sheffield Academic Press; Sheffield 1992).

39 Cf. P. GIBERT, "Vers une intelligence nouvelle du Pentateuque?", RSR 80 (1992) 58.
15

composição do Pentateuco, que Wellhausen difundiria (1876- 1878), já na sua forma definitiva,
com elegância e erudição, com clareza e força demonstrativa.
Agigantado sobre os ombros dos predecessores, Wellhausen (1848-1918), num certo
sentido, representou a conclusão dum período de investigação e, ao mesmo tempo, a abertura
dum novo. Entre os modelos propostos e aplicados para dar resposta à questão das origens
literárias do Pentateuco o da "hipótese documentária" levou a melhor sobre a anterior "hipótese
dos fragmentos" e particularmente sobre a "hipótese dos complementos", largamente aceites nas
décadas antes de Wellhausen. Mas não foi inventada por Wellhausen, que a recebeu
substancialmente completa e beneficiou amplamente das investigações precedentes. Os seus
contemporâneos chamavam-no "a hipótese de Graf", por ter sido este a publicá-la. Só que
Wellhausen ficou tão fascinado por ela e o seu impacto entre os estudiosos do AT foi tão
esmagador na brilhante apresentação feita por ele que durante as décadas seguintes ela se tornou
cada vez mais a hipótese de Wellhausen, como ainda hoje se considera 40.

3.3. O sistema de Wellhausen e a sua escola

Wellhausen, aplicando o método da crítica literária, de carácter histórico-diacrónico,


aflorou os problemas críticos da composição do Hexateuco (pois estendeu a investigação até ao
livro de Js) com inegável rigor. Como a sua concepção não era substancialmente diferente da dos
seus imediatos predecessores, o mérito de Wellhausen deve-se, ao menos em parte, a uma
apresentação que para então era convincente e lógica 41. Com Ewald como seu professor em
Göttingen, Wellhausen dedicou-se ao estudo da história bíblica, concebida como um processo
vital em que a religião de Israel cresceu e amadureceu. Estabeleceu a cronologia das fontes com
as seguintes razões:
- A evolução das leis mostra que para J e E há muitos lugares de culto (Ex 20,24-26) e não
se rejeitam as estelas (Jacob exige mesmo uma: Gn 28,18). Ao contrário, o Deuteronómio advoga
pela concentração do culto num só lugar (Dt 12). A legislação P ignora a polémica e pressupõe a
centralização do culto como facto estabelecido. Logo, J e E teriam leis mais antigas, seguidos de
D e, por último, de P.
- O aparecimento das primeiras tentativas de redacção dos documentos dever-se-ia ter
processado deste modo:
. No tempo dos Juízes elaboram-se as tradições em função de certos ritos ou de certas
recordações da história das tribos. No tempo de David e Salomão aparecem antologias poéticas.
Depois do cisma redige- se J, no sul. Gn 27,40 parece aludir à libertação de Edom, que em
853-841 recuperou a independência. Logo, no séc. IX, por volta do 870 a.C.
. O "E" remontaria ao séc. VIII, no reino do Norte, pois a situação de Nm 23; 21, 3
pareceria espelhar as vitórias de Jeroboão II sobre Moab (770 mais ou menos). Deixaria
transparecer influência do profetismo.

40 Cf. R. RENDTORFF, "The Paradigm is Changing: Hopes - and Fears", Biblical Interpretation Sample
Issue (1992) 1-3.10: traduzido ao espanhol como “El paradigma del Pentateuco está cambiando: esperanzas y
temores”, Selecciones de teología, 136 (1995) 301-311. Ver resumo dos dois primeiros séculos de investigação
crítica sobre o Pentateuco até Wellhausen, em J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 1-9, ou em J.L. SICRE,
Introducción al AT, pp. 82-86.

41 O seu sistema é exposto em Die Composition des Hexateuchs, Jahrbücher für deutsche Theologie, XXI
(1876) 392-450; XXII (1876) 407-409; e em Prolegomena zur Geschichte Israels (Berlin – Leipzig 1927; a 1ª
edição é de 1883) passim. Deste último possuímos agora a edição inglesa: Prolegomena to the History of Israel
(Scholars Press; Atlanta, GA 1994).
16

. O Deuteronómio (D) teria surgido por "pia fraude" dos sacerdotes em 622 a.C. no
reinado de Josias. Teria sido composto então, embora tivesse sido apresentado como
"encontrado".
. Ezequiel e a sua escola estariam na base de P, que teria sido escrito durante o Exílio e
teria continuado em tempo posterior até à redacção final do Hexateuco durante as reformas de
Esdras e Neemias; teria sido lido por Esdras em 444 a.C. (Ne 8-10).
Depois da queda de Samaria (721) J e E teriam sido fundidos por um redactor “Jehovista”
numa única redacção JE. A estes durante o Exílio um redactor deuteronomista uniu o documento
D, reelaborando-os. Finalmente, no tempo de Esdras ou depois, os três foram unidos e
acomodados ao documento P. Como Wellhausen defendia a designação de um Hexateuco, julgava
que JE e P se teriam prolongado até ao fim de Josué. Ele e os outros críticos imaginavam que o
compilador/autor/redactor final do Pentateuco teria tido diante cinco ‘rolos’ desenrolados e teria
seleccionado uma passagem deste, outra daquele, sem querer manter as características e a
integridade de nenhum dos rolos.
Os critérios literários usados pela hipótese das fontes na sua formulação clássica para a
distinção dos documentos foram: os diversos estádios da cultura religiosa, os ‘duplicados’ e a
repetição de materiais, a alternância dos nomes divinos Yahvé e Elohim, pontos de vista
contrastantes, particularidades linguísticas e literárias no texto (variação de linguagem, de
vocabulário e de estilo: vivo no J, doutrinal no E, de estudioso em P e de oratória em D) e
evidência de compilação e de redacção de narrativas paralelas 42.
Com as suas investigações filológicas, históricas e de crítica literária, Wellhausen fundou
uma escola que determinou durante mais de um século a vida da ciência veterotestamentária.
Mesmo o trabalho realizado fora de tal escola e em tempos mais recentes para a ciência bíblica do
AT teve como fundamento a crítica literária que nele culminou e que em muitos aspectos
permaneceu válida até hoje 43.
O contributo mais controverso de Wellhausen à teoria documentária foi a sua relação com a
teoria da evolução religiosa e cultural de Israel 44. Os opositores da "hipótese documentária" na
formulação de Wellhausen, postos à procura de pontos débeis, costumavam acusá-lo de aplicação
preconcebida da filosofia de Hegel à religião de Israel, o que seria um critério de avaliação
estranho a esta. E é um facto que Wellhausen estava fortemente influenciado pelas concepções
hegelianas de W. Vatke, que concebia a história religiosa de Israel em função do esquema
evolucionista de Hegel, distinguindo:
. um primeiro período de uma religião primitiva e naturalista (tese), correspondente ao
tempo dos Juízes e primeiros reis;
. o período do fim da monarquia, caracterizado por uma religião superior e espiritual do
idealismo profético (antítese);
. e finalmente o do Exílio e depois do Exílio com a Lei e a religião legalizada (síntese).

42 Apareceram estudos que continham listas de palavras e características de estilo, consideradas específicas
de cada uma das quatro fontes. Bom exemplo é S.R. DRIVER, An Introduction to the Literature of the Old
Testament (T. & T. Clark; Edinburg 1891). Com o tempo reconhecer-se-á que embora algumas palavras possam ser
típicas de uma fonte numa ou noutra narração, não se restringem a essa fonte em todos os contextos. A confiança
nessas listas desvaneceu-se, com excepção para o material deuteronómico e sacerdotal. Nenhum grupo tem o
monopólio no vocabulário duma língua. O que se torna característico é o uso de palavras específicas ao serviço de
ideias específicas (como na linguagem deuteronomista).

43 Cf. H.-J. KRAUS, Geschichte der historisch-kritischen Erforschung des Alten Testaments (Neukirchen-
Vluyn 19823) 258-259.

44 Cf. F.W. GOLKA, “German Old Testament Scholarship”, A Dictionary of Biblical Interpretation (eds
R.J. COGGINS - J.L. HOULDEN) (SCM Press - Trinity Press International; London - Philadelphia 1990) 258-260.
17

Mas, na segunda metade do séc. XIX e nos princípios do séc. XX, a filosofia imperante
nas universidades alemãs baseava-se, de um modo ou de outro, na dialéctica evolucionista de
Hegel. Além disso, essa acusação não diminui por si só o valor da tese de Wellhausen, porque:
- naturalmente todos vivemos sob a influência mais ou menos acentuada de algum
pressuposto ideológico, o que também pode acontecer num estudioso;
- a "descoberta" de que o sistema de Wellhausen fosse influenciado pela filosofia de Hegel
foi feita só em 1931 por J. Pedersen 45, difundindo-se depois com sucesso, sem ser submetida a
uma verificação crítica; mas antes ninguém tinha reparado nisso; a própria Pontifícia Comissão
Bíblica, na sua resposta de 1906, não motiva a sua posição contra os contestadores da autoria
mosaica do Pentateuco com a origem hegeliana da hipótese documentária, o que teria sido
argumento decisório e contundente;
- "estudos recentes demonstraram sem sombra de dúvida que em Vatke só a 'moldura
externa' era hegeliana, enquanto Wellhausen se libertou bem depressa mesmo dessa" 46; o máximo
que podemos dizer é que ele assimilou conceitos de Hegel correntes no ambiente do seu tempo,
mas, ao que parece, sem o seguir conscientemente 47.
A teoria de Wellhausen é realmente criticável, como se verá, mas não por este motivo.

3.4. Influência e pontos débeis do sistema de Wellhausen

“Certamente, todo o sistema continuou a ser mera hipótese. Mas a aceitação geral tornou-a
quase uma certeza. Ninguém tinha de dar razões para construir em cima desta teoria, mas
questioná-la era, e ainda é, quase como negar um facto” 48. A teoria documentária colheu cada vez
mais êxitos entre os estudiosos que faziam uma aproximação livre, científica e crítica ao AT. Ela
dominou a crítica literária do AT depois de 1890. O grande culpado do triunfo da já velha teoria
foi Wellhausen. A enorme influência do seu sistema ficou a dever-se em parte aos seus dotes de
orador e escritor brilhante e de pensador arguto. O seu artigo Israel na Encyclopedia Britannica
conquistou-lhe a admiração do grande mundo anglo-saxónico. Realmente, o sistema
apresentava-se como genial pela simplicidade da sua estrutura e pela seriedade com que
posicionava os problemas.
Mas devemos reconhecer os limites dos princípios da teoria proposta por Wellhausen:
-- Desbordando de erudição, ignorando as dimensões religiosas da Bíblia e negando
que ela pudesse conter uma palavra de Deus para o homem, o sistema poderia parecer destruidor
da tradição e da fé, dados essenciais para dar razão da Bíblia. O erro fundamental da escola
wellhausiana é querer reconstruir a evolução da autêntica religião de Israel a partir de elementos
que representam desvios religiosos populares. Mesmo admitindo que a religião de Israel sofreu
uma evolução profunda no curso da sua história, não se podem comprovar na história de Israel 4
estádios religiosos sucessivos: - religião pré-mosaica: animismo, fetichismo, totemismo,
polidemonismo; - religião mosaica: monolatria; - religião profética: monoteísmo ético; religião
pós-exílica: nomismo. Nem existe nenhuma antítese entre a religião patriarcal e a profética ou

45“Die Auffassung vom Alten Testament”, ZAW 49 (1931) 161-181.

46J.A. SOGGIN, Introduzione all'AT, p. 127.

47Cf. J.A. SOGGIN, Appunti per un'introduzione al Pentateuco, pro manuscripto (Roma 1970-71) pp.
19-20. Cf. resumo do sistema de Wellhausen em A. de PURY - Th. RÖMER, "Le Pentateuque en question: Position
du problème et brève histoire de la recherche", Le Pentateuque en question (ed. A. de PURY) 22-29, ou em J.
BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 9-12.

48R. RENDTORFF, "The Paradigm...", p. 4 (cf. p. 3).


18

pós-exílica. Dos Patriarcas à comunidade pós-exílica o Jahvismo evoluiu certamente, mas sempre
homogeneamente, embora por vezes com recuos na diversidade de correntes teológicas.
Deve-se, por esta razão, distinguir na teoria o aspecto literário do histórico, o método do
sistema wellhausiano: o método de trabalho crítico era legítimo e poderia ser esclarecedor para a
própria religião de Israel; o sistema ideológico aparecia, neste aspecto, redutor e insuficiente para
explicar toda a evolução de Israel.
-- Deixava transparecer a ignorância, aliás compreensível, do antigo Próximo
Oriente, tanto em literatura como em arqueologia: a luz que viria a jorros dos textos
mesopotâmicos, egípcios e outros, muito mais afins ao Antigo Testamento do que o mundo árabe
pré-islâmico, bem conhecido de Wellhausen, ainda não iluminava o seu trabalho, porque as
descobertas epigráficas siro-palestinenses e a interpretação da imensa literatura cuneiforme e
hieroglífica estavam a iniciar-se. A Bíblia era estudada pela crítica literária como produto literário
autónomo de Israel. "Os profetas apareciam como as figuras marcantes do desenvolvimento
literário e religioso de Israel; a Lei não era mais do que o registo feito pela comunidade, dos
progressos morais e teológicos adquiridos graças aos profetas" 49. Atribuindo os escritos
proféticos a um período anterior à composição do Hexateuco, Wellhausen mudou radicalmente o
conceito da missão dos profetas: tornaram-se os originadores do monoteísmo, não os seus
renovadores. Esta inversão era um ponto-chave na teoria de Wellhausen e o seu impacto sentia-se
em todos os campos do estudo do AT.
Ora, as descobertas arqueológicas realizadas na segunda metade do séc. XIX e no princípio
do séc. XX, possibilitadas pela criação de institutos arqueológicos na Palestina, foram
desenterrando um mundo que quebrou o encanto da opinião de Wellhausen sobre o sublime
isolamento de Israel. Elas situariam Israel nos avatares históricos do antigo Próximo Oriente,
mostrando-o condicionado pelas civilizações ambientes, a assimilar ou a rejeitar elementos das
mesmas em nome de imperativos nacionais; demais, mostrariam a ligação da Lei de Israel a uma
série de legislações do antigo Próximo Oriente, muito anteriores ao movimento profético.
Portanto, a "teoria documentária", concebida mesmo no princípio das grandes descobertas
arqueológicas da literatura e da cultura do antigo Próximo Oriente (que viriam iluminar a história,
a religiosidade e os textos da Bíblia com tantos paralelos), era impotente para explicar a origem
da Lei, como pretendia fazer, vendo-a como o fim dum processo evolutivo. A arqueologia
desvelou códigos legais muito mais antigos e semelhantes (como o de Hammurabi, do séc. XVIII
a.C., encontrado em Susa em 1901/2, os dos Assírios...) 50. E as leis do Pentateuco não
precisavam de ser pós-exílicas, como Wellhausen pretendia. Aliás, mesmo que se possam
reconhecer no Pentateuco leis mais antigas do que outras relativamente ao culto, isso ainda não
prova só por si que pertençam ou se devam atribuir a quatro sucessivos «documentos»,
preconcebidos ou imaginados.
-- Igualmente hoje não se pode patrocinar a ideia de que os sacrifícios levíticos (Lv
1-7) tenham sido instituídos somente durante o Exílio ou depois dele. Na medida em que não
reconheceu nenhum mérito ao culto pós-exílico, Wellhausen também era filho do seu tempo. O
protestantismo do séc. XIX era totalmente cego a respeito do significado de acções cultuais. A
influência do Iluminismo e do seu racionalismo tinha reduzido a religião a um mero passatempo
intelectual. Enquanto o Pietismo acentuava a «espontaneidade» da religião, ambos falharam em
dar sentido ao simbolismo do culto.

49H. CAZELLES, "La Torah ou Pentateuque", Introduction à la Bible, I, pp. 304-305.

50Texto em R. BORGER et al., "Rechtsbücher", Texte aus der Umwelt des Alten Testaments, I/1 (ed. O.
KAISER) (Gütersloher Verlaghaus; Gütersloh 1982) 39-80; ou em E. BOUZON, O código de Hammurabi (Vozes;
Petrópolis 19986).
19

-- Outra insuficiência podia detectar-se na falta de determinação do "género


literário" dos vários trechos do Pentateuco. As tradições de Israel foram descritas à maneira de
outros documentos escritos de povos circunvizinhos.
-- Confundia a ideia dos documentos-fonte com as suas informações históricas, sem
ter em conta os dados sociais que comandavam a transmissão oral dos factos até à sua redacção.
As contínuas descobertas arqueológicas literárias em campo orientalístico "viraram" a posição dos
críticos relativamente à cronologia dos documentos, que aparecia mais difícil devido à tendência
dos vários géneros literários a repetirem-se no tempo com fórmulas estereotipadas 51. Assim a
datação dos "documentos" por Wellhausen perdia interesse: um "documento", embora tardio,
poderia ter por trás um longo filão de tradições antigas, de modo a dar-lhe um grande valor
histórico.
-- Não há francamente argumentos para provar (como pretendeu Wellhausen) que
tenha havido uma ficção jurídica ou até mesmo uma "piedosa fraude" em relação ao Dt: que tenha
sido apresentado como "descoberta" o que em realidade seria uma criação (cf. 2Re 22-23).

Por estas razões, se até fins da década de 1970 o problema da composição literária do
Pentateuco se resolvia quase unanimemente lançando mão da "hipótese documentária", que,
mesmo tal como formulada por Wellhausen e seus colegas, continuava a ser o obrigatório ponto
de partida para qualquer pesquisa séria sobre o Pentateuco, muitos estudiosos católicos tinham-na
rejeitado. Alguns enveredaram por outros caminhos só para respeitar as directivas da Pontifícia
Comissão Bíblica em 1906 (tempo da crise modernista, em que era difícil avaliar com
objectividade a teoria e fazer a necessária destrinça entre verdades dogmáticas e questões críticas
52
). Mas outros encontravam mais razões. O impacto causado pela "teoria documentária" tinha
sido enorme e constituía uma terrível ameaça à segurança religiosa e dogmática do catolicismo,
que até ali eram garantidas pela autoria mosaica do Pentateuco. A renitência contra a teoria de
Wellhausen estava forte e largamente generalizada 53. Até a proposta do dominicano M.-J.
Lagrange de reconhecer mais amplamente a solidez dos trabalhos da Escola Literária e de aceitar
elementos valiosos da nova teoria encontrou cerrada resistência por parte de todos os católicos 54.
Esta posição de Lagrange até foi considerada por alguns sacerdotes católicos um "concessionismo
perigoso" 55. As acirradas discussões provocadas pelas declarações de Lagrange no congresso
católico de Friburgo na Suíça (16-20 de Agosto de 1897) e pela publicação (em 1903) das seis
conferências pronunciadas em Toulouse em 1902 sobre “o método histórico" 56 foram
abruptamente silenciadas pela PCB em 27 de Junho de 1906.

51Cf. E. TESTA, Genesi. Introduzione – Storia primitiva (La Sacra Bibbia; Marietti; Torino – Roma 1969)
13.

52 Cf. Ch. THEOBALD, “Le père Lagrange et le modernisme”, La naissance de la méthode critique.
Colloque du centenaire de l’École biblique et archéologique française de Jérusalem (Patrimoines: christianisme;
Cerf; Paris 1992) 49-64.

53 Nota-se, por ex., em J. ENCISO, Praelectiones biblicae, I (Vitoria 1932) 89-116, onde defende vincada
e afincadamente a autoria mosaica do Pentateuco, rechaçando firmemente a teoria das quatro fontes.

54Cf. L.H. GROLLENBERG, A nova imagem da Bíblia (S. Paulo 1970; orig. hol. 1968) 17-l9.

55Cf. H. CAZELLES, "La Torah ou Pentateuque", Introduction à la Bible, I, pp. 309-310. Em 1898 o
patriarca latino de Jerusalém, Mons. Piavi, denunciava Lagrange a Roma, acusando-o de “racionalismo” e até de
desvios “protestantes”; a revista Civiltà cattolica em 1899 chamava a Lagrange “rebelde e traidor”: J. GUITTON,
Portrait du père Lagrange. Celui qui a réconcilié la science et la foi (Robert Laffont; Paris 1992) 50; cf. pp. 46-63.
20

Mas a rejeição da "hipótese documentária" em ambientes católicos, promovida pelo decreto


da PCB, veio-se debilitando cada vez mais na prática, até se transformar em total aceitação depois
da Divino afflante Spiritu de 1943. Em 1953 o comentário da Bíblia de Jerusalém em fascículos,
La Genèse, de R. de Vaux, já consagrava no fundo esta aceitação da teoria documentária. O
próprio R. de Vaux chegou mesmo ao ponto de reivindicar para o catolicismo a glória de ter dado
ao mundo a figura de J. Astruc, o primeiro, independentemente de Witter, a propor algo que se
aproximava da "hipótese documentária" 57.
Ao cabo de cem anos de trabalho aturado da crítica católica e não católica já não se sentem
as boas razões que a PCB tinha em 1906 para impor o "status quo"; o ambiente conturbado de
então passou e, com ele, passou a força vinculativa das directivas tácticas do magistério
eclesiástico, que tinham uma função importante, mas pontual 58. Só que, entretanto, foi
desaparecendo a suficiência e o "peso" dos "argumentos aduzidos pelos críticos" para sustentar a
"teoria documentária". Uma certa distância, reservas e críticas de maior ou menor vulto
relativamente à teoria sempre acompanharam pari passu os seus desenvolvimentos e afinações.
Vamos seguir umas e outros.

3.5. Reacções dissidentes e novos contributos à "teoria documentária".

A teoria clássica de Wellhausen não foi refutada só pelas Igrejas. Não lhe faltaram ataques
também por parte da crítica independente, não católica. Dados os preconceitos do Judaísmo a
respeito do estudo histórico-crítico do Pentateuco, tal estudo recrutou poucos adeptos entre os
judeus já no séc. XIX. Posteriormente estes tomaram posição directa contra Wellhausen. A
reacção mais radical foi a de U.M.D. Cassuto, da escola hebraica 59. Conhecedor profundo do
hebraico e das línguas semitas, especialmente do ugarítico, rejeita rotunda e totalmente o sistema
de Wellhausen, atacando- o nos seus próprios fundamentos: na existência dos quatro
documentos. Critica todas as "constantes" que levaram à descoberta e sistematização da teoria:
. A distinção dos nomes divinos explicar-se-ia com o sentido diferente destes nomes e com
o seu uso, que deveria variar necessariamente segundo os matizes que se quisessem exprimir.
. As divergências de vocabulário e de estilo dependeriam do contexto, do uso dos
sinónimos, do género literário.
. Os duplicados explicar-se-iam pela diversidade dos particulares, suficientes para justificar
a inserção pelo redactor que, com esses particulares, queria legitimar a repetição com uma
intenção específica. Assim explicaria o carácter composto da Tōrá. Mas como nasceu esta
antologia? Um redactor de grande talento, provavelmente contemporâneo de David, teria
seleccionado, ordenado e redigido algumas das inúmeras tradições orais antiquíssimas que
circulavam durante séculos a respeito da origem do homem e dos antepassados do povo hebreu,
intervindo com várias transformações que não tocavam a unidade da Tōrá (esta teria precedido o

56 Cf. B. MONTAGNES, “La méthode historique: succès et revers d’un manifeste”, La naissance de la
méthode critique. Colloque du centenaire de l’École biblique et archéologique française de Jérusalem (Patrimoines:
christianisme; Cerf; Paris 1992) 67-88; IDEM, Le père Lagrange (1855-1938). L’exégèse catholique dans la crise
moderniste (Cerf; Paris 1995) 77-121.

57Em "À propos du deuxième centenaire d'Astruc", VTS 1 (1953) 182-198. Em Histoire ancienne d’Israël,
I (Paris 1971) 157 reconhecia que “a opinião mais comum continuava ligada à teoria documentária”, confessando
que “os próprios fundamentos da crítica [literária do Pentateuco] são postos periodicamente em questão”.

58Cf. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? (Petrópolis 1975) 103-105.

59J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, p. 13, resenha mais opositores judeus.


21

profetismo, não só cronologicamente, mas também idealmente, pois constitui o fundamento em


que se apoia a profecia). Com esta compilação o redactor teria harmonizado e sincronizado os
duplicados. A sua obra teria sido tão harmoniosa que hoje seria difícil reconstruir as tradições
orais originais 60.
A explicação de Cassuto, no fundo, é uma variante da "hipótese dos fragmentos". Mas esta
negativa absoluta à "teoria documentária" foi, no seu tempo, isolada e excepcional, nem
conseguiu perturbar o consenso geral dos estudiosos, por ser difícil de aceitar a unidade da Tōrá
que ele propunha. Nem se lhe podem equiparar as tentativas dissidentes dos mais moderados P.
Volz, W. Rudolph e S. Mowinckel, que negaram liminarmente a existência do "E" como fonte:
enquanto Volz vê E e P apenas como produtos duma reelaboração de J, Rudolph estima como
independentes, não só P, mas também certos trechos de E, que ele interpreta como interpolações
introduzidas em J; e Mowinckel considera o material de E como ampliações e reformulações
posteriores de J, feitas com base no material das variantes surgidas no decorrer do tempo 61.

Ao lado das críticas feitas à hipótese documentária na formulação de Wellhausen,


foram-se-lhe introduzindo muitas modificações em várias direcções que, sem negar a validade dos
princípios relativos à destrinça das fontes, conduziram ao aperfeiçoamento do método, a novos
conhecimentos e a uma nova percepção para a reformulação dos conceitos de "hipótese" e de
"documento". A divisão literária do texto só em quatro fontes parecia insuficiente para explicar
todas as questões que continuamente se levantavam, e o acrescento dum quinto elemento, o
redactor, não era a panaceia que resolvesse todos os problemas. Surgia, portanto, a necessidade
de distinguir dentro de cada fonte diversos estratos tradicionais, porque uma análise literária mais
intensa revelou que os documentos não tinham sido compostos "ex nihilo" por um autor num
preciso momento, mas que eram uma obra composta e complexa. Este problema já tinha sido
posto, aliás, por Kuenen, embora não o tivesse desenvolvido. E o próprio Wellhausen já se tinha
apercebido de estratos dentro de "P" (a fonte crítica para ele), que datava de épocas sucessivas 62.
Isto não surpreende, pois a fonte "P", como se viu acima, teria emergido de uma fonte Elohista
(E) originariamente indiferenciada. E houve quem achasse em "P" dois fios literários, designados,
por ex. por G. von Rad, Pa e Pb. Mas também as fontes mais antigas J e E, mediante uma análise
mais profunda, mostravam uma realidade interna bem mais complexa do que aquilo que parecia à
primeira vista. Otto Procksch (1874-1947) 63, na esteira de elementos já notados por Kuenen,
propunha uma subdivisão de "E" em dois filões, que chamava E 1 e E2. Mas, dada a exígua
consistência do "E", os estudos moveram-se antes em direcção contrária, como mostram os

60Cf. U. CASSSUTO, La questione della Genesi (Pubblicazioni della R. Università degli studi di Firenze...
Facoltà di lettere e filosofia, serie III, V.1; Firenze 1934); The Documentary Hypothesis and the Composition of the
Pentateuch (Magnes Press, the Hebrew University; Jerusalem 1961: orig. heb. 1941); A Commentary on the Book
of Genesis. Part I. From Adam to Noah. Genesis I-VI,8. Part II. From Noah to Abraham. Genesis VI,9 - XI,32
(Jerusalem 1961 e 1964).

61Cf. P. VOLZ - W. RUDOLPH, Der Elohist als Erzähler - Ein Irrweg der Pentateuchkritik? (BZAW 63;
Giessen 1933); W. RUDOLPH, Der "Elohist" vom Exodus bis Josua (BZAW 68; Giessen 1938); S. MOWINCKEL,
Tetrateuch, Pentateuch, Hexateuch (BZAW 90; Berlin 1964); IDEM, Erwägungen zur Pentateuch Quellenfrage
(Oslo 1964) 59ss.

62 Wellhausen, como outros críticos do seu tempo, reconheceu que as fontes não eram os produtos unitários
de autores individuais. Ele julgou que J e E teriam sofrido três edições sucessivas e que P tinha sido
complementada por material legislativo.

63 Das nordhebräische Sagenbuch: die Elohimquelle (Leipzig 1906).


22

citados ensaios de Volz, Rudolph e Mowinckel, tendentes a negar ao "E" o carácter de fonte
autónoma.
Mais complexa era a situação do "J", que se manifestou especialmente vulnerável a esta
espécie de fragmentação. R. Smend 64 admitia que "J" não era um documento unitário, nem fora
ampliado com acréscimos, mas antes constava de duas fontes ou correntes paralelas, que chamou
Jl e J2. Continuando a desmembrar o "J" em dois filões, O. Eissfeldt distinguiu uma corrente mais
primitiva no "J", à qual atribuiu a sigla L em vez do Jl de Smend e substituiu J2 de Smend pelo
simples J (L = fonte "Leiga", por parecer pouco interessada em problemas teológicos e porque
menos dominada por tendências clericais e cultuais, em contraste com P) 65. E R.H. Pfeiffer 66
subdivide "J" em J e uma corrente Edomita S (= surgida em Seir [= Edom] ou no Sul da Palestina
no séc. X a.C.).
A necessidade de multiplicação das siglas para as «fontes» foi um forte abanão à ‘teoria das
fontes’. Querendo aperfeiçoá-la, mostrava a sua impotência e minava-a.

As tentativas para detectar as fontes subjacentes ao texto e a multiplicação das siglas dão
uma ideia da complexidade da investigação. Uma aplicação mais rigorosa dos critérios usados
para identificar as fontes - lexicográficos, estilísticos, temáticos - conduziu vários críticos a ver
fontes dentro de fontes. O critério da distribuição dos nomes divinos (Yahvé e Elohim) era difícil
de aplicar com coerência. Essa dificuldade traduzia-se em que quanto mais rigorosamente se
aplicavam os critérios tanto mais o fio narrativo de cada fonte tendia a desfazer-se, dando como
resultado pluralidade de fontes secundárias.
A tese de Wellhausen e seus colegas estava destinada a evoluir. Assentava princípios para
resolver o problema fundamental da composição literária do Pentateuco, mas não esgotava a
investigação. Pelo contrário, sendo realmente uma meta atingida, tornava-se o ponto de partida
para pesquisas ulteriores. Porque, uma vez isoladas as principais componentes duma fonte,
continuava a ignorar-se como se tinha formado, com que finalidade os redactores teriam
seleccionado o material à sua disposição, em que ambiente teriam nascido as colecções, que
relação havia entre a tradição oral e o texto escrito (em que medida e por quanto tempo a
tradição oral precedera a redacção e continuara a existir paralelamente).
Assim, a "hipótese documentária" era levada subtilmente às suas lógicas, embora extremas,
consequências, encontrando-se numa espécie de aporia, que acabava por pôr em dúvida a sua
própria credibilidade. A subdivisão de “fontes” conduzia a uma nova teoria dos fragmentos. Uma
investigação mais pormenorizada dos critérios utilizados para individuar as fontes ameaçava
subverter a hipótese documentária por dentro. Para sair do beco sem saída foi em larga medida
determinante o contributo de Hermann Gunkel (1862-1932).

3.4.1. "História das Formas", "História das Tradições" e "História da Redacção"

A crítica literária não é senão a primeira etapa de um processo, que com o tempo desaguou
noutros métodos histórico-críticos: a "história das formas", a "história das tradições" e a "história
da redacção". Dos estudiosos de nomeada, nascidos da escola de Wellhausen, que foram pioneiros
nesse trabalho, é obrigatório mencionar três grandes mestres: H. Gunkel, M. Noth e G. von Rad.

64 Die Erzählung des Hexateuch auf ihre Quellenuntersucht, 1912.

65 Cf. Hexateuch-Synopse, 1922; The Old Testament. An Introduction, pp. 169-170; Die Genesis der
Genesis (Tübingen 19612).

66 Em Introduction to the Old Testament (New York 19482) 159ss; e em A non-Israelitic Source of the
Book of Genesis (ZAW 48; 1930) 66-73.
23

Sem quebrarem a linha vertebral traçada por Wellhausen, souberam inovar em questões essenciais
67
.
No princípio do séc. XX, um novo arranque com uma nova direcção afectaria a formulação
da "hipótese documentária" reinante, não pondo-a em causa mas indo para além dela e
conduzindo ao fim de contas a desviar-se dela. Foi a problemática da Formgeschichte ou
"História das formas", graças aos trabalhos de Hermann Gunkel e Hugo Greßmann. Enquanto no
fim do séc. XIX os estudiosos do AT não se interessaram muito pela possibilidade duma
abordagem comparativa dos textos bíblicos e o próprio Wellhausen não se esforçou por explorar
o material literário do antigo Próximo Oriente já conhecido, Gunkel marca a diferença neste
ponto. Embora não questionando a existência de "fontes" e aceitando a hipótese de quatro
documentos, o seu interesse (no comentário ao Génesis na 1ª ed. de 1901) incide antes na sua
pré-história, enraizada na cultura não-literária de Israel antes da monarquia. Ele estava muito
influenciado pela "Escola da História das Religiões", um movimento que dava grande importância
ao estudo comparativo de textos religiosos. Pró isto, o seu Comentário ao Génesis era dos mais
acertados e fecundos, embora ainda seja incoerente na terminologia.
Gunkel parte da determinação do "género literário" do trecho. Prestando atenção aos
conteúdos e às características literárias de breves narrativas independentes no Génesis, pensou ser
possível estabelecer os seus respectivos géneros literários (“Gattungen”) e identificar as situações
sociais que os geraram, porque ambos, forma e conteúdo, possuem um ponto de relação definido,
uma determinada "situação vital" (Sitz im Leben) 68. A par das "formas" (ou imediatamente
depois), o pesquisador deveria procurar a "situação vital" originária onde teria brotado
espontaneamente determinado género literário ou, melhor, tal tipo de tradição pré-literária. Tal
"situação" não seria propriamente um determinado facto histórico desconexo de outros similares
mas qualquer coisa comum e habitual, que poderia ser de variada ordem: guerras, festas
populares, liturgias, peregrinações, conquistas de poços...
Com Gunkel a atenção voltou-se do aspecto qualitativo e específico das fontes para os
materiais narrativos em particular, a fim de captar a fase pré-literária, o nascimento e o
desenvolvimento da tradição oral e a sua situação histórico-vital. Um postulado básico era que
estas narrativas chegaram à forma actual por um processo de composição e transmissão orais.
Portanto, a "história das formas" valoriza grandemente a tradição oral e dá especial atenção à
"forma" do documento (oral ou escrito), à sua vida própria (tradição) e ao "ambiente vital" em
que nasceu (elementos que resumem esta teoria, que deixa por resolver o problema de como
determinar a base oral duma obra literária). A partir daí as fontes revelam-se, não como obras
literárias de grandes personalidades e compostas segundo um plano bem determinado, mas como
compilações de elementos populares, transmitidos desde tempos imemoriais e recolhidas, não por
indivíduos, mas por escolas; o peso deslocava-se de documentos em grande escala (J e E) para
pequenas unidades, de textos para tradições, de autores individuais para produtos anónimos duma
sociedade pré-literária. Segundo Gunkel, a tradição oral primitiva constava de pequenas unidades
de base ou "formas": cantos, poesias, salmos...; por exemplo, a "história patriarcal" revela-se
como uma colecção de “sagas” ou pequenas "histórias" de família e de pequenos factos sem
importância "histórica" em sentido moderno, histórias populares. Estas "sagas" poderiam ser
cultuais, etimológicas, etnológicas, etiológicas... Daí resulta evidente que todas as fontes, mesmo

67 Cf. J.-L. SKA, “Le «Sitz im Leben» de Julius Wellhausen, Hermann Gunkel et Gerhard von Rad”,
Mémoires d’Écriture. Hommage à Pierre Gibert (DIR. Ph. ABADIE) (Le livre et le rouleau 25; Lessius; Bruxelles
2006) 187-206.

68 H. GUNKEL analisa os "géneros literários" na 3ª edição do seu Comentário ao Génesis: Genesis


(Göttingen 1910; Vandenhoeck & Ruprecht in Göttingen 1977 9) VII-C. A expressão fará furor em certos meios
católicos depois da encíclica "Divino afflante Spiritu" em 1943; mas então já não era nenhuma novidade.
24

as mais recentes, contêm material antigo, constituindo conjuntos ou blocos de natureza mais
complexa do que se supunha. Salientando a importância das narrações breves de Gn como contos
independentes, as chamadas ‘fontes’ podiam ser consideradas mais afins a antologias escritas de
unidades menores.
Chamando a atenção para "formas" literárias primitivas que estariam na raiz do texto actual,
o método da "história das formas" deu um grande contributo para o estudo do Pentateuco,
permitindo ver o longo percurso do texto até à forma literária actual, que passou por "formas"
pré-literárias escritas e orais. Mas, mesmo onde se pode demonstrar que material oral foi
incorporado numa obra escrita, o que possuímos é afinal uma obra literária que merece ser
estudada de acordo com os cânones da análise literária. À morte de Gunkel a oficializada
explicação literária da origem do Pentateuco, que tinha dominado os estudos do AT no séc. XIX,
foi sendo questionada em crescendo.

O trabalho da "História das formas" não se pode dissociar objectivamente do da


Traditionsgeschichte ou "História da tradição", a qual indaga em especial que instituição ou que
círculo de indivíduos participou na transmissão, tradição e evolução do material recebido, como
as várias tradições cresceram umas com as outras e como, finalmente, surgiram as mais amplas
fontes, antologias e livros conservados no AT e, em definitiva, todo o AT como tal; interroga-se
sobre a existência e "história duma tradição" ou dum tema e conteúdo (por exemplo, tradições
sobre o Êxodo, o Sinai...) transmitido mediante os diferentes géneros literários e na sua história
própria e evolução da oralidade à escrita. Esta metodologia abandona ao terreno seguro do texto
escrito e aventura-se no âmbito dificilmente controlável mas real das tradições orais, cuja
existência se pressupõe como meio para conservar o património cultural. Enquanto Gunkel foi o
precursor da "História das formas", A. Alt, G. von Rad e M. Noth foram-no da "História das
tradições". Seria justo dizer que G. von Rad e M. Noth ofereceram a obra mais significativa e
englobante sobre o Pentateuco no estudo bíblico moderno. Tanto um como o outro declararam
explicitamente que a sua obra era um ulterior consistente desenvolvimento do trabalho de Gunkel
e estavam profundamente influenciados por ele, cuja ênfase na tradição oral se reflecte na obra de
G. von Rad. Este usou o termo Formgeschichte em sentido lato 69, enquanto M. Noth introduziu
o termo (e guiou a pesquisa pelos caminhos da) Überlieferungsgeschichte ("história da tradição")
70
. G. von Rad partilha com Noth um interesse nos primeiros estádios das tradições do
Pentateuco. Em particular Noth tratou principalmente o estádio pré-literário das tradições antes
de estas se configurarem como narrativas ou outros géneros 71.
G. von Rad, diferentemente de Gunkel, acentua de modo especial a "situação vital" cultual e
litúrgica do Pentateuco, situando a origem social da narrativa no culto do Israel primitivo. Diz que
foi o narrador Jahvista enquanto grande teólogo do princípio da monarquia que conferiu ao
Pentateuco a forma actual: assumindo a linguagem "canónica" da recitação cultual, esta
transformou-se em literatura, tendo sido catalisador da transformação o "Iluminismo salomónico".
As edições das fontes posteriores E, D e P não teriam alterado essencialmente o padrão literário
fundamental da obra imposto pelo génio do Jahvista. Partindo do muito antigo "pequeno credo

69 Das formgeschichtliche Problem des Hexateuch (Kohlhammer; Stuttgart 1938), reimpresso em


Gesammelte Studien zum Alten Testament (Kaiser; München 1958), trad. esp.: "El problema morfogenético del
Hexateuco", Estudios sobre el Antiguo Testamento (Biblioteca de estudios bíblicos 3; Sígueme; Salamanca 1982)
11-80.

70 Überlieferungsgeschichtliche Studien: Die sammelnden und bearbeitenden Geschichtswerke im Alten


Testament (Niemeyer; Halle 1943).

71 Cf. R. RENDTORFF, "The Paradigm...", pp. 6-7.


25

histórico" ("kleine geschichtliche Credo") e cultual de Dt 26,5-9, que ele considerava base e
resumo de toda a história da salvação e de toda a literatura de Israel ("por forma e conteúdo é
uma oração muito mais antiga do que o contexto literário em que agora está inserida"), diz que o
J teria sabido fundir numa narração orgânica grandes complexos de tradições particulares, por ele
encontrados já feitos e que, por sua vez, teriam por trás um longo processo de formação (um
complexo de tradições, harmónico seria Ex 1-14, a saída de Israel do Egipto; outro seria a história
de Balaam). Vê desenvolvido em quatro fases o trabalho de incorporação de antigos materiais
pelo J: a conexão básica (existente no "credo histórico") do êxodo de Israel do Egipto com a
tradição da conquista/estabelecimento na Terra prometida, a inserção da tradição do Sinai, o
desenrolar e aperfeiçoamento da história patriarcal, e finalmente a colocação da história das
origens no princípio de todo o edifício 72, transformando-as todas numa grandiosa história de
salvação. Teria sido a partir deste "credo" que se desenvolveram essas narrativas, recordadas no
culto e nas festas 73. A elas se teriam juntado outros elementos: mandamentos, exortações,
tradições ligadas à conquista da Terra prometida, divisão da mesma pelas tribos...
A hipótese de G. von Rad - que assim deu à figura e obra do “Jahvista” o máximo relevo na
história da investigação veterotestamentária - engloba as tradições mais primitivas e só acaba na
conquista da Terra no Livro de Josué (daí que apoie a teoria do Hexateuco). Mas a "forma" de
"credo histórico" é mais um sumário, resumo ou recapitulação teológica no ponto final do
processo de desenvolvimento das tradições do que uma antiga afirmação de fé que desde o
primeiro momento afectou esse processo como estrutura de base, raiz e ponto de partida de todo
o "Hexateuco". Essa hipótese lisonjeira de von Rad, desde há muito abandonada pela exegese,
assenta em pressupostos duvidosos (por exemplo, se é possível que uma narração tenha lugar no
culto, não explicou como é que o culto gera a narração). A maior parte dos estudiosos hoje
concorda em que o estilo e vocabulário de Dt 26,5-9 sugere uma composição deuteronómica em
vez de uma formulação litúrgica antiga.
M. Noth é o máximo representante da "História da tradição" ao analisar o Pentateuco sob o
prisma de cinco grandes tradições ou "temas" (promessas aos patriarcas, saída do Egipto,
caminhada pelo deserto, revelação do Sinai, entrada em Canaan), cada uma das quais estaria
ligada a grandes personagens e agruparia em torno de si outras tradições ou "temas" menores
(genealogias, pragas do Egipto, murmuração do povo, o episódio de Baal Peor...). Todo este
material, juntamente com as diversas ligações dos factos, constituiria o material fundamental; a
interacção gradual dos cinco temas desaguou na formação duma narrativa alargada, que Noth
intitulou “G” (gemeinsame Grundlage = base comum) e teria traçado as linhas gerais do
Pentateuco actual numa redacção definitiva e relativamente tardia. Esses "temas" representariam
um depósito de tradição oral muito primitiva. A "situação vital" em que estas tradições se
aglutinaram e tornaram fixas teria sido a federação tribal anfictiónica e o seu culto, à semelhança
do que acontecera com as antigas anfictionias gregas.
Neste ponto, Noth aproxima-se de von Rad. A diferença está em que para Noth o conteúdo
essencial, os "temas" e a sequência da história se fundiram antes de ser escrito qualquer
"documento": enquanto Noth considera que a fusão foi anterior ao Jahvista, durante o período da
ocupação de Canaan, com as tribos alinhadas em forma de anfictionia num contexto cultual, von
Rad atribuiu essa mudança decisiva à composição do próprio Jahvista. A emergência do
Pentateuco total teria sido obra de pura redacção, sem ter contribuído com novo material de
tradição e sem pontos de vista substanciais na reelaboração ou interpretação dos materiais. Por
outras palavras, Noth aceita a existência dos documentos J, E e P, atribuídos a autores individuais;

72 Cf. "El problema morfogenético del Hexateuco", pp. 55-71.

73 Cf. L. ROST, Das kleine Credo und andere Studien zum Alten Testament (Quelle & Meyer; Heidelberg
1965).
26

mas dá-lhes um papel de pouco relevo, pois, na sua opinião, com raras excepções não
acrescentaram nada essencial ao que já existia: marcaram fases da actividade de coleccionar, que
serviram para reunir as unidades menores. Portanto, a abordagem da “história da tradição” era
uma forma de retorno à ‘hipótese dos fragmentos’ 74. Noth, porém, também insistiu em que a
elaboração das tradições fundadoras de Israel não cessou com a produção de fontes escritas. Cada
fonte foi submetida a elaboração e a expansão, à medida que a tradição da qual emergia
continuava a desenvolver-se. Este processo tem parecenças com a ‘hipótese dos complementos’.
Segundo ele, ‘P’ teria sido a base para a compilação do Pentateuco, enriquecida com mínimos
ajustamentos pelas fontes J e E já combinadas (JE); praticamente ‘P’ ter-se-ia mantido intacto
dentro do Pentateuco. ‘P’ poderia comparar-se a um laço ligado com pérolas, em que a textura do
laço estaria feita de genealogias, itinerários e uma linha narrativa concisa, com forte interesse pela
cronologia (traços considerados durante muito tempo como característicos desta fonte), e em que
as pérolas narrativas maiores, colocadas em pontos estratégicos do fio (narrativas da criação e do
dilúvio, aliança com Abraão e enterro de Sara, as pragas e a Páscoa, história do maná em Ex 16,
história das espias em Nm 14). Também a narrativa Jahvista teria sido usada como base para a
combinação das fontes J e E, neste caso, porém, as duas fontes seriam semelhantes e a fonte E só
teria sido usada quando completava J ou oferecia verdadeira alternativa ao material J; por isso,
pouco teria sobrevivido do E. Para Noth, uma fonte seria uma destilação da tradição numa fase
do seu desenvolvimento. Desta maneira, os métodos da ‘história das formas’ e da ‘história das
tradições’ estavam em grau de oferecer uma explicação plausível dos fenómenos literários que
tinham obrigado anteriores críticos a postular fontes adicionais ou múltiplas edições de J e E, com
a consequente introdução de uma pesada complexidade na hipótese das fontes. Noth trouxe ao
estudo das fontes do Pentateuco uma nova visão do processo da sua compilação.
Até Noth e von Rad as fontes eram vistas principalmente como pedreira para reconstruir a
história da religião e sociedade israelita; para Wellhausen a formulação da hipótese das fontes
seria prolegómenos para escrever a história de Israel. Em contraste, von Rad e Noth enfatizaram
que as fontes eram afirmações teológicas, confissões da fé de Israel em etapas particulares da sua
história. Para G. von Rad e M. Noth a história do crescimento do ‘Pentateuco’ teria sido um
processo vivo, por vezes oral, uma actualização e reinterpretação, um processo de legitimação em
que uma geração recebe as tradições do passado e tem a oportunidade de as reafirmar ajustando-
as ao presente antes de as passar à seguinte geração. Estas tradições teriam que ver com assuntos
de vital importância para a fé, a sociedade e a auto-compreensão dos israelitas. G. von Rad e M.
Noth reuniram uma síntese crítica que influenciou duas gerações de biblistas. Importante é a sua
atitude hermenêutica: o significado ou a intencionalidade de um texto na sua origem e durante o
seu desenvolvimento dentro da Bíblia tem grande relevo para a sua compreensão na forma actual
75
.

Como complemento e a modo de reparação dos exageros da Traditionsgeschichte (que não


é uma escola propriamente dita mas uma especialização da Formgeschichte, interessada
especialmente pelas "tradições") surgiu a escola da Redaktionsgeschichte, "História da redacção",

74 Resumo e crítica do contributo de Gunkel, von Rad e Noth para a compreensão das origens literárias do
Pentateuco, em J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 14-20; B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as
Scripture, pp. 120-127; R.E. CLEMENTS, “Pentateuch, Pentateuchal Criticism”, A Dictionary of Biblical
Interpretation (eds R.J. COGGINS - J.L. HOULDEN) (SCM Press - Trinity Press International; London -
Philadelphia 1990) 527-531; e A. FANULI, “Le «tradizioni» nei libri storici dell’A.T.: Nuovi orientamenti”,
Problemi e prospettive di scienze bibliche (ed. R. FABRIS) (Queriniana; Brescia 1981) 13-40.

75 Cf. D.A. KNIGHT, “The Pentateuch”, The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters (eds. D.A.
KNIGHT & G.M. TUCKER) (Society of Biblical Literature 1; Fortress Press - Scholars Press; Minneapolis –
Atlanta 1985) 263-296.
27

que atenta no texto escrito na globalidade, tal como o possuímos hoje, ou em grandes conjuntos
textuais. Não se interessa tanto pelas "formas" primitivas, desligadas umas das outras, quanto pela
significação dos conjuntos textuais. Não se interessa tanto pela oralidade e pela "situação vital"
de tais "formas" quanto pelo texto escrito, sem investigar a sua história. Enquanto para a
Formgeschichte não haveria verdadeiros autores mas apenas coleccionadores de "formas" e para
a Traditionsgeschichte haveria verdadeiros autores que imprimiram o seu cunho bem pessoal ao
texto, a Redaktionsgeschichte vem a dizer que a forma mais antiga do texto não é
necessariamente a mais autêntica, porque ela só tem sentido quando chega a um determinado
estado evolutivo: os estratos não oferecem um sentido integral do texto. A teoria dos estratos ou
fontes deixa então de ser operatória, porque faz do texto actual uma manta de retalhos, deixando
em aberto muitas questões literárias e sobretudo a do sentido do texto 76. A "História da
redacção", depois de várias observações feitas por intérpretes antigos sobre problemas de
redacção dos livros do AT, foi retomada de modo sistemático e científico por G. von Rad com
Das formgeschichtliche Problem des Hexateuch em 1938. Seguidamente M. Noth, com
Überliefrungsgeschichtliche Studien em 1943 e Überlieferungsgeschichte des Pentateuch em
1948 detinha-se no estudo de Dt-2Re, demonstrando que o “Deuteronomista não era só um
‘redactor’ mas o autor dum trabalho histórico” que tinha juntado tradições, articulando-as
segundo um plano bem definido. Embora Noth fale sobretudo de “história da tradição”, em
realidade também faz “história da redacção”. Distancia-se da exegese tradicional, que considerava
o Pentateuco e os livros históricos como fusão de tradições que teriam sido ligadas com palavras
de união sem finalidade precisa; para ele, o Pentateuco actual, composto depois do Exílio pelo
ano 562, seria originariamente um Tetrateuco, com autores, objectivos e teologia e visão de
conjunto diferentes. Depois de Noth, o método difundiu-se e muitos livros do AT foram estudados
sob esse ponto de vista 77. A “história das formas” contribuiu para a mudança na perspectivação
das origens literárias do Pentateuco. Com a sua ênfase peculiar, o Pentateuco já não é olhado e
abordado como uma compilação de documentos paralelos mas como uma colecção básica de
tradições que foi continuamente completada e mais tarde extensamente editada por diferentes
redactores-autores. Sob a influência da "História da redacção" a exegese tende a partir das
redacções mais recentes e daí descascar os níveis redaccionais, estrato por estrato; ao cabo dessa
análise poderia achar algo que se poderia chamar, com grandes reservas, um "documento". Em
contraste com a prática da clássica "hipótese documentária", um estrato redaccional separado não
é visto necessariamente como a obra duma única pessoa mas possivelmente como o resultado de
mudanças feitas por um grupo com propósito análogo, uma vez que a sua obra reflecte o mesmo
meio; logo, deveria ser visto como níveis de redacção e não tanto como obra dum único redactor
com as suas visões pessoais. Com esta percepção das redacções, a ideia de 4 fontes paralelas
incorreu no desfavor de muitos e divisou-se uma nova história literária do texto 78.
Assim, o paradigma da “teoria documentaria” foi continuamente minado pela "história das
formas", pela sua continuação na "história da tradição" e, em certo sentido, pela "história da
redacção" - desenvolvimento que afinal conduziu a um novo interesse pela forma final de livros e
mais amplas unidades dentro do AT 79.

76 Cf. R. RENDTORFF, Introduction à l'AT (tr. fr.: Cerf; Paris 1989).

77 Cf. F. GUILLEMETTE - M. BRISEBOIS, Introduzione ai metodi storico-critici (Borla; Roma 1990)


394-404.266-269.

78 Cf. P.J. van DYK, "Current Trends in Pentateuch Criticism", pp. 194-195. Resumo sobre a "História das
Formas" e a "História das Tradições", em B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture, pp. 114-
116.124-127.
28

3.4.2. A novidade da escola escandinava

Enquanto Gunkel e A. Alt, bem como os seus discípulos von Rad e M. Noth, consideravam
compatíveis a "hipótese documentária" com o método da "História das formas", para os
estudiosos da escola escandinava (dentro da qual coexistia a ‘escola de Uppsala’, um grupo
distintivo mas não totalmente coerente com a mais alargada escola escandinava) os dois métodos
não são complementares mas mutuamente exclusivos. Por isso, como corrente importante da
"História da tradição", rejeitavam a "hipótese documentária" nos termos em que a tinham
proposto Wellhausen e os seus discípulos, considerando-a incompatível com o método da
"História das tradições".
Dentre os seus representantes (S. Mowinckel, J. Pedersen, H.S. Nyberg, H. Birkeland, E.
Nielsen, A. Bentzen, C.J. Lindblom e G. Widengren) sobressai Ivan Engnell, o fundador da escola
de Uppsala e seu máximo expoente, que rejeita a crítica literária tradicional como "interpretatio
europeica moderna": não se pode imaginar que o Pentateuco tenha nascido como resultado de
cortar ou unir documentos escritos anteriormente. No 1º vol. da sua Introdução histórico-
tradicional ao AT (1945) lança um vigoroso ataque aos critérios comummente usados pelos
críticos literários na identificação e datação das fontes da “hipótese documentária”. Para Engnell
nunca existiram "fontes" continuadas e paralelas no Tetrateuco, no sentido proposto pela
"hipótese documentaria". A presença de duplicados, de repetições e até de contradições seria algo
perfeitamente normal, tanto no âmbito da tradição oral em geral como, em todo o caso, naquele
estádio da literatura hebraica. As narrações paralelas supostas pela "hipótese documentária"
explicar-se-iam como círculos de tradição, dos quais um teria preferido o nome divino de Yahvé,
outro o de Elohim. E muitos outros casos de conflito seriam, de resto, simplesmente o produto da
nossa insuficiência ocidental no plano psicológico, incapazes como somos de entender a
mentalidade oriental antiga, ou mesmo no plano linguístico-gramatical (mas para esta última
acusação só apresentou o mínimo de provas).
Segundo esta escola nórdica, o Tetrateuco não proviria de fontes, mas de estratos de
tradições, que formaram secções maiores ou conjuntos, anteriores ao Êxodo e procedentes de
círculos diferentes. Como os oráculos dos Profetas foram conservados e completados pelos
discípulos, assim as tradições do Pentateuco teriam sido conservadas e adaptadas dentro de
círculos de tradições. Estas narrativas, que no último estádio oral teriam assumido uma certa
forma fixa, teriam sido exploradas fielmente pelo redactor do Tetrateuco. O princípio fundamental
da escola é que os livros do AT não são 'livros mortos', mas o tesouro vivo de Israel. É, pois,
natural que a tradição oral e a escrita reagissem uma sobre a outra, modificando e enriquecendo
continuamente o tesouro da revelação. Assim, diz Pedersen, é muito difícil delimitar com precisão
e datar as fontes, pois todas têm ao mesmo tempo elementos pré-exílicos e pós-exílicos. Na
peugada de Pedersen, Engnell pensa que há no Pentateuco duas linhas ou círculos de tradições
orais: ponto de cristalização e elemento central das tradições do Tetrateuco (Gn - Ex - Lv – Nm,
que ele chama “obra P”, separada da “história deuteronomista”) teria sido a lenda da Páscoa de
Ex 1-15, primeiro como cultual e depois em forma de história (o que se contava no culto teria
sido depois ‘historicizado’, reconhecido como acontecido realmente). As porções narrativas da
“obra P” podem ter provindo essencialmente da tradição oral e não de documentos continuados,
na forma como os críticos literários imaginam que teria sido o J e o E. As partes legais da “obra
P” receberam forma escrita numa fase antiga. P é simplesmente o último transmissor e editor da
“obra P” ou Tetrateuco e imprimiu o seu cunho teológico em toda a obra. Um 2º círculo, o do

79 Cf. ACEBAC, “«De bien des manières»”, La recherche historique biblique aux abords du XXI e siècle
(Lectio divina 163 ; Cerf ; Paris 1995) ; Th. RÖMER, “La formation du Pentateuque selon l’exégèse historico-
critique », Les premières traditions de la Bible (eds. C.B. AMPHOUX – J. MARGAIN) (Zèbre ; Lausanne 1996):
apresentação pedagógica da “nova crítica” do Pentateuco.
29

deuteronomista, teria transmitido oralmente os relatos de Dt até 2Re. E só no tempo de Esdras e


Neemias é que o Tetrateuco e D (Dt - 2Re) receberam redacção escrita definitiva 80. Engnell nega
totalmente a existência de fontes pré-exílicas, mantendo só uma obra P englobante pós-exílica ao
lado do corpo Deuteronomístico. A forte ênfase na importância da tradição oral e no seu carácter
de fidedigna é uma característica distintiva da escola de Uppsala. Nyberg defendeu que o texto
hebraico do AT depende duma tradição oral fidedigna e que o AT na sua forma escrita é na maior
parte produto da comunidade judaica pós-exílica. No tempo pré-exílico, saga, lenda, leis e
profecia teriam sido transmitidas essencialmente de forma oral.
Como Engnell não pôde levar a bom termo a sua obra, possuímos dele uma série de
importantes afirmações de fundo e de método, mas falta-nos uma síntese final, capaz de constituir
uma verdadeira alternativa à "hipótese documentária", que entretanto afinou, por sua vez, o
próprio método, tornando-se capaz de uma forte autocrítica, graças também ao contínuo
confronto com a literatura oriental antiga 81.
A escola escandinava teve o mérito de acentuar a importância e fomentar o estudo da
tradição enquanto tradição oral, precedente e subjacente a todas as composições escritas do
antigo Próximo Oriente, tentando trabalhar na base de uma história de tradições em vez de com
"fontes"; seria a tradição oral que daria origem e estrutura ao documento escrito, o qual seria
apenas a fixação da tradição oral; visto que o texto refere a palavra oral que pode ter sido
transmitida através de muitas gerações, resulta que um texto relativamente recente pode conter
um património literário antiquíssimo. Foi uma reacção contra a "crítica literária" e a "teoria
documentária", que se interessavam unicamente pelo documento escrito e só analisavam este.
A sua fraqueza foi talvez o ter exagerado o processo de tradição oral. O Pentateuco na sua
forma final é de certo produto do pós-exílio, mas Engnell não demonstrou como as tradições em
questão poderiam plausivelmente ter sido transmitidas por um período de ao menos 5 ou 6
séculos exclusivamente de forma oral. Assim, uma diferença importante entre a escola da história
da tradição e a da crítica literária é a recusa dos escandinavos em admitir obras narrativas escritas
de certo tomo antes do Exílio ou a sua desconfiança dos documentos escritos. Certo, a primeira
fase das tradições que viriam a cristalizar no texto escrito do Pentateuco foi a de uma longa
transmissão oral. A julgar também pelo que conhecemos da história literária dos povos do antigo
Próximo Oriente, só pouco a pouco se fixaram por escrito (embora se conheçam outrossim casos
de criação literária pura e simples, a não minimizar). Os extensos corpos literários de Ugarit (Ras
Šamra, do período do Bronze tardio) e da Mesopotâmia (pelo menos desde a metade do II
milénio) demonstram ao menos a possibilidade de que obras literárias substanciais podiam ter sido
produzidas no primeiro período da história israelita. Além de a escrita ser mais antiga em Canaan
do que a sua ocupação por Israel, conhece-se o processo corrente no antigo Próximo Oriente da
contínua reelaboração e releitura em espiral de documentos escritos anteriores: por ex., os contos
sobre Gilgameš na epopeia sobre o mesmo 82, a "Descida de Inanna ao mundo subterrâneo" na
"Descida de Ištar ao mundo subterrâneo"... É o que se verifica em textos da própria Bíblia
relativamente a outros anteriores. O nosso conhecimento da cultura do antigo Próximo Oriente
torna muito improvável que algumas tradições de Israel não tivessem sido escritas antes do Exílio.

3.5. Críticas actuais à "teoria documentária"

80 Cf. E. TESTA, Genesi, pp. 15-16.

81 Cf. G.W. ANDERSON, “Scandinavian Old Testament Scholarship”, A Dictionary of Biblical


Interpretation (eds R.J. COGGINS - J.L. HOULDEN) (SCM Press - Trinity Press International; London -
Philadelphia 1990) 609-613; J.A. SOGGIN, Appunti per un'introduzione al Pentateuco (PIB 1970-71) 20-22.

82 Ver, por exemplo, J.H. TIGAY, The Evolution of Gilgamesh Epic (Philadelphia 1982).
30

A investigação sobre a composição literária do Pentateuco caiu e está numa profunda crise e
encontra-se num dos momentos mais complicados da sua história 83. E se nunca houve total
acordo sobre a formação do Pentateuco, jamais houve tanto desacordo como desde a década de
1970, altura em que a teoria de Wellhausen começou a perder solidez e a sua imutabilidade e
fortaleza se revelou quebradiça 84. Problemas e factores de vária ordem estão na raiz da crise e
ocasionam-na.
Já desde 1965 se convidava a um “novo exame dos fundamentos” da teoria documentária 85
e se vaticinava um “futuro incerto” para a crítica literária do Pentateuco 86 com ataques
substantivos contra a tradicional hipótese dos documentos 87. Sempre houve entre os que a
assumiam quem dissentisse subtilmente nalgum aspecto. Mas essas vozes discordantes tinham
sido dispersas e raras ou confessionais (tradições judaica e católica). Nem todas juntas
representaram alguma vez um sério perigo para a teoria documentaria. Mas, desde a década de
1980 as vozes críticas aumentaram tanto o coro e o tom que se está a assistir à ruptura com a
crítica das fontes e a voltar, em parte, aos antigos modelos representados pelas hipóteses dos
fragmentos e dos complementos.
H. Gunkel parece pertencer aos que seguiram sem hesitação os seus princípios. Mas, no
fundo, a sua análise era incompatível com a ideia de "fontes" ou "documentos" literários. Na
introdução do seu comentário ao Génesis ele fala de transmissão oral de "sagas" que só
posteriormente terão atingido o estádio literário. Aí menciona documentos ou fontes, que, porém,
para ele, são colecções de tradições orais, cujos autores não seriam indivíduos mas escolas de
narradores. Até se afirmou que "Gunkel, pelo seu esforço metodológico de dissolver os contextos
mais amplos e remontar aos círculos mais pequenos de sagas e a cada uma das sagas como
unidades primárias, é responsável pela queda da hipótese documentária" 88. Gunkel inaugurou
uma metodologia que se moveu numa direcção diferente da estabelecida por Wellhausen.
Igualmente G. von Rad e M. Noth parecem fiéis seguidores do reinante sistema das
"fontes", pois usaram os resultados da "hipótese documentária" no sentido comummente
adoptado. Mas o seu principal campo de pesquisa estendia-se para além da área das hipóteses de
Wellhausen 89. O comum interesse de todos era a questão da origem do material do Pentateuco.
Mas nomeadamente Noth, embora no fim do seu livro sobre o Pentateuco 90 fale ortodoxamente
de "fontes" com indivíduos como autores e até acredite na existência duma fonte mais primitiva,

83Bom apanhado em A. de PURY - Th. RÖMER, "Le Pentateuque en question: Position du problème et
brève histoire de la recherche", Le Pentateuque en question (ed. A. de PURY) (Labor et Fides; Genève 1989) 48-
67, e, dependente destes, R. MICHAUD, Débat actuel sur les sources et l'âge du Pentateuque (Médiaspaul;
Montréal - Paris 1994) 13-47.

84 Cf. F. GARCÍA LÓPEZ, “De la antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52
(1994) 7-8.13-25; U. BERGES, “Lectura pragmática del Pentateuco: Babel o la fin de la comunicación”, Estudios
bíblicos 52 (1994) 63-64.

85 F.V. WINNET, “Re-examining the Foundations”, JBL 84 (1965) 1-19.

86 N.E. WAGNER, “Pentateuchal Criticism: No Clear Future”, Canadian Journal of Theology 13 (1967)
225-232.

87 R. RENDTORFF, “Traditio-Historical Method and the Documentary Hypothesis”, Proceedings of the


Fifth World Congress of Jewish Studies I (Jerusalem 1969) 5-11.

88P. HUMBERT, citado por R. RENDTORFF, "The Paradigm...", p. 6, a quem se deve esta reflexão sobre
as relações de Gunkel, von Rad e Noth com a "hipótese documentária" (pp. 5-20).
31

anterior às outras fontes, a "G" (gemeinsame Grundlage), na parte central do livro tratou
assuntos que ultrapassavam o campo da crítica das fontes. Por sua vez, von Rad puxou muito
mais longe e modificou a linha iniciada por Gunkel, nomeadamente até ao estádio final da
configuração do Pentateuco (ou do Hexateuco, na sua opinião). Enquanto o interesse de Gunkel
se concentrava nas unidades mínimas e ao máximo em unidades mais alargadas que pudessem ser
entendidas como colecções de outras originariamente mais pequenas (não se preocupando pelo
processo literário que pode ter eventualmente levado ao livro ou aos livros actuais), o ponto de
partida de von Rad foi precisamente a questão de como o Pentateuco (ou Hexateuco) alcançou a
forma final.
O principal resultado desta nova aproximação foi deslocar o foco dos problemas literários
internos para uma compreensão das estruturas organizadoras e ideias dos livros. O próprio G. von
Rad pôs reservas à análise crítica das fontes, reconhecendo que lhe somos devedores de toda uma
série de importantes conhecimentos, mas “sem que se possa dizer que os problemas suscitados
[por essa análise crítico-literária] tenham tido uma resposta satisfatória” 91. E não é mero acaso
que, cinco anos depois, Noth tenha posto a mesma questão para os "Profetas anteriores", dando
origem a outro paradigma: a "Obra histórica Deuteronomista" 92. O método da "história das
tradições", rebento da "história das formas", conduziu à questão da configuração final dum livro
ou duma unidade mais dilatada como a "Obra Deuteronomista". Noth declarou que o Dtr "não era
só um 'redactor', mas o autor duma obra histórica que combinava os materiais transmitidos pela
tradição, de carácter muito diferente uns dos outros, ligando-os segundo um plano definido.
Dessa maneira, Dtr deu geralmente a última palavra às fontes que ele tinha à sua disposição e só
articulou os trechos individuais por um texto de conexão" 93.
Poderíamos compreender de modo semelhante e paralelo a formação/redacção literária do
Pentateuco 94. Os ensaios novos que a tentam explicar estão mais ou menos aparentados com
velhos modelos que tinham sido relegados pela teoria documentaria.

3.5.1. Recuperação da «hipótese dos fragmentos»?

É aí que se colocam os ensaios de Rolf Rendtorff, sucessor da cátedra de G. von Rad em


Heidelberg, que, porém, reconhece não poder traçar-se uma linha recta desde Gunkel através de
von Rad e Noth até à presente discussão, pois há óbvios elementos de descontinuidade,
especialmente desde metade da década de 1970. Ele está convencido de que a crítica das fontes

89Cf. crítica de ambos por D.J.A. CLINES, The Theme of the Pentateuch, pp. 9-10.61-79.81-83.

90Überlieferungsgeschichte des Pentateuch (Kohlhammer; Stuttgart 1948).

91 Deuteronomio (Antico Testamento 8; Paideia Editrice; Brescia 1979) 11; cf. pp. 11-12.

92 No seu Überlieferungsgeschichtliche Studien: Die sammelnden und bearbeitenden Geschichtswerke im


Alten Testament (Niemeyer; Halle 1943). De facto, a assunção da redacção deuteronomista de Jos-2Re, geralmente
aceite durante décadas, tornou-se a questão da estrutura organizadora desta série de livros como uma gigantesca
obra literária e teológica, de modo que Dtr pode ser considerado como a 2ª grande entidade literária ao lado do
Pentateuco.

93Überlieferungsgeschichtliche Studien, p. 11.

94Cf. R. RENDTORFF, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch (BZAW 147; 1977) 168;
IDEM, "The Paradigm...", pp. 9-10; H.H. SCHMID, "In Search of New Approaches in Pentateuchal Research",
JSOT 3 (1977) 37.
32

do Pentateuco estandardizada é incompatível com o método da "história da tradição",


exemplificado pela obra de von Rad. A aparente compatibilidade de von Rad e Noth com a "teoria
documentária" estaria no facto de a fidelidade deles a Wellhausen os ter impedido de levar o
método da "história da tradição" às suas consequências lógicas. Argumenta que, procedendo das
unidades mais pequenas aos conjuntos maiores da tradição e daí para a forma final da obra, não
haveria lugar para hipotéticas fontes literárias 95.
Portanto, a crise da "teoria documentária" é uma consequência da crise das suas
implicações históricas. A base de "história da tradição" para a datação antiga do J fornecida por
von Rad e Noth tornou-se suspeita. A crise e queda da hipótese da "anfictionia" de M. Noth (hoje
só aceite por poucos) fez que esta deixasse de fornecer o ponto de apoio para a estrutura básica
das origens da história de Israel narrada no Pentateuco, em que se dava a sequência narrativa
temática do Pentateuco 'de todo o Israel' e onde se tinha o pilar duma teoria do texto. Com isso
coloca-se de novo a questão de quando, onde e como se chegou pela primeira vez à auto-
compreensão desse "todo Israel", que pressuponha ou reflicta uma apresentação histórica desde
as origens até à ocupação da Terra. Por outro lado, resultou sem fundamento e improcedente o
pressuposto literário-sociológico da pesquisa sobre o Pentateuco das últimas décadas: que a
teologia da história do "J" salomónico de G. von Rad não se pode explicar como desenvolvimento
dum já existente "pequeno credo histórico" cultual (em Dt 26,5-9). Com estas considerações, a
datação do J no tempo de David-Salomão deixou de ser convincente. Portanto, um novo modelo
sobre a composição do Pentateuco deveria ter nova plausibilidade literária e sociológica 96.
De facto, um dos pontos de distanciamento actual em relação ao esquema de Wellhausen /
von Rad / Noth é o da datação das "fontes", especialmente do "J", em que os três coincidiam e
recolhiam o consenso dos estudiosos até à década de 1970. Desde então, a datação do "J" no
princípio da monarquia tem vindo a ser abandonada, fazendo-a descer para o período do Exílio ou
pós-Exílio 97. Esta datação tardia, que cada vez colhe maior consenso e provocou a maior viragem
nos estudos da composição do Pentateuco, danifica a teoria de Wellhausen tanto como a geral
negação da existência de "fontes". Um "J" exílico não tem nada a ver com a posição de
Wellhausen e ainda menos com a de von Rad, dissipando a distância temporal entre "J" e "P" e
assim um dos principais argumentos para a funda discrepância entre o primitivo Israel,
reconstruído no tempo da monarquia com a ajuda do documento "J", e o "Judaísmo" tardio, a
qual fora de grande importância para Wellhausen. Por isso, Rendtorff questiona em absoluto a

95 Cf. R. RENDTORFF, “Traditio-historical Method and the Documentary Hypothesis”, Proceedings of the
Fifth World Congress of Jewish Studies, I (Jerusalem 1969) 5-11.

96Veja as considerações de E. ZENGER, em "Auf der Suche nach einem Weg aus der Pentateuchkrise",
Theologische Revue 78 (1982) 353-355, e em "Wo steht die Pentateuchforschung heute? Ein kritischer Bericht
über zwei wichtige neuere Publikationen", BZ 24 (1980) 101.110-112.

97 Assim J. van SETERS, Abraham in History and Tradition (Yale University Press; New Haven 1975),
aluno de F.V. Winnett (pela crítica literária de Gn 12-25 descobre que aí só poucos versículos são datáveis no
período pré-exílico); IDEM, The Life of Moses. The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers (Contributions to
Biblical Exegesis and Theology 10; Kok Pharos; Kampen 1994); H.H. SCHMID, Der sogenannte Jahwist.
Beobachtungen und Fragen zur Pentateuchforschung (Theologische Verlag; Zürich 1976) (cf. sua recensão por G.J.
WENHAM, em JSOT 3, [1977] 57-60); IDEM, "Vers une théologie du Pentateuque", Le Pentateuque en question
(ed. A. de PURY) 361-386; M. ROSE, Deuteronomist und Jahwist. Untersuchungen zu den Berührungspunkten
beider Literaturwerke (Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments 67; Theologischer Verlag;
Zürich 1981). R. RENDTORFF, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch (BZAW 147; Walter de
Gruyter; Berlin - New York 1977), e "Pentateuchal Studies on the Move", JSOT 3 (1977) 43-45, negando um "J"
no sentido entendido até ali, não atribui nenhuma redacção abrangente do Pentateuco até ao período pré-
Deuteronómico.
33

existência da unidade da fonte "J" e, com isso, a existência do próprio "Jahvista": "não há lugar
[nas narrações patriarcais] para a ideia do 'Jahvista' como um teólogo. Não existe tal pessoa" 98.
Para essa conclusão usara a seguinte argumentação. O tema das promessas feitas aos
patriarcas, tão proeminente em Gn 12-36 e que liga os vários elementos narrativos destes
capítulos num todo, é retido geralmente como um tema fundamental que encontraria o seu
cumprimento no resto do Pentateuco e governaria a totalidade da obra "J" ao longo do
Pentateuco. Mas este tema teológico não se encontra no material pretensamente pré-sacerdotal de
Ex e Nm nem tem aí papel correspondente ao que tem no Gn, o que provaria que este ponto de
vista expresso pelo "J" em Gn 12-36 não se estenderia para além desses capítulos mas se confina
ao "tema" dos patriarcas 99 (não tendo papel significativo no resto do Pentateuco); diz que os
acontecimentos do Êxodo marcam efectivamente o início da realização das promessas, mas que as
promessas em si não se mencionam depois de Gn 36 e que a doação divina da terra a Israel se
exprime depois de modo diferente 100. Ex 3,6.15-17; 4,5 dariam força ao argumento de Rendtorff:
ligam os patriarcas a Moisés sem usar e (presumivelmente) desconhecendo o tema da promessa.
Ele tenta mostrar que a interpretação teológica claramente presente nas porções pré-sacerdotais
do Gn não é levada a cabo nos livros que seguem e que, logo, os editores de Ex e Nm não eram
os mesmos que os editores do material do Gn. As "unidades maiores" (história das origens,
narrativas patriarcais, narrativas do Êxodo, peregrinação pelo deserto, perícope do Sinai,
ocupação da terra) só vagamente estariam ligadas uma à outra e teriam tido desenvolvimento
separado e crescimento individual, cada uma com perfil próprio e história independente. A ligação
duma à outra terá acontecido num estádio relativamente tardio, depois de as "unidades maiores"
terem sido submetidas a um longo processo de transmissão e redacção: a primeira narrativa
extensiva ao Pentateuco actual teria sido o produto de uma redacção deuteronómica tardia.
Portanto, não terá havido "J" ou um teólogo na base do Pentateuco. Nem haveria uma 'teologia'
particular de uma "fonte" a correr ao longo de todos os livros, mas antes muitas teologias
diferentes que teriam nascido de meios produtores diferentes; e cada "tema" (= "unidade maior")
do Pentateuco teria sido construído com a sua própria 'teologia' e a reelaboração teológica do
material patriarcal teria sido concluída em várias fases (e não numa só operação); essas 'teologias'
é que se deveriam procurar na exegese. Só no estádio final sacerdotal do Pentateuco teriam sido
combinados esses temas em ordem à formação do todo monumental que possuímos hoje 101.
Quanto à existência de um "P", baseada especialmente na sequência de diversas notícias
cronológicas habitualmente imputadas a "P", Rendtorff relativiza e contenta-se com dizer que são
muito menos uniformes na natureza e no uso do que aquilo que se tem reivindicado; julga
impossível imputá-las a uma única mão e atribui-as (bem como os considerados textos-"P") à

98 R. RENDTORFF, "Der 'Yahwist' als Theologe? Zum Dilemma der Pentateuchkritik", Edinburgh
Congress Volume (VTS 28; E.J. Brill; Leiden 1975) 166. Cf. IDEM, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des
Pentateuch, pp. 111-112, e "Pentateuchal Studies on the Move", JSOT 3 (1977) 43-44.

99Entende "tema" no sentido de M. Noth, como conjuntos de material tradicional ou como elementos
breves duma afirmação confessional sobre a história primitiva de Israel que foram alargados por material narrativo
mais extenso (cf. D.J.A. CLINES, The Theme of the Pentateuch [JSOTSS 10; The University of Sheffield;
Sheffield 1984] 17).

100 Como Rendtorff, também H.C. SCHMITT, Die nichtpriesterliche Josephsgeschichte. Ein Beitrag zur
neuesten Pentateuchkritik (BZAW 154; Berlin 1980), considera que as promessas patriarcais são tardias e
remontam, quando muito, ao tempo do Exílio. A esta datação tardia opõe-se K. BERGE, Die Zeit des Jahwisten.
Ein Beitrag zur Datierung jahwistischer Vätertexte (BZAW 186; Berlin - New York 1990), atribuindo Gn 12,2-3 a
uma data antiga.

101 Cf. R. RENDTORFF, "Der 'Yahwist' als Theologe?", pp. 158-166, tradução em JSOT 3 (1977) 2-10.
34

reelaboração dum "estrato redaccional" sacerdotal, "que já completou e interpretou de


determinado modo um conjunto textual existente", notando que o importante é evitar reclamar
uma narrativa sacerdotal como ‘fonte’ distinta, pois esse estrato sacerdotal só é constatável até ao
início da história de Moisés; depois "torna-se irreconhecível no Pentateuco" 102.
Esta argumentação é fundamentalmente convincente para alguns críticos 103. Mas não
convence outros, que refutam Rendtorff, mostrando que o nexo entre a história patriarcal e as
tradições de Ex-Nm estaria feita antes da redacção sacerdotal do Pentateuco 104.
Como terá surgido então para Rendtorff o Pentateuco? Ele vê a origem do Pentateuco em
termos dum processo crescente de compilação de vários blocos de tradição por um redactor
exílico, depois de estes terem permanecido autónomos por certo tempo. Exemplifica com as
narrações sobre os diferentes patriarcas no Gn, originariamente autónomas e que teriam crescido
em cadeias de sagas; estas, por sua vez, terão sido encadeadas numa "maior unidade" das
histórias patriarcais e elaboradas teologicamente; o meio predominante da elaboração e
interpretação terá sido o das promessas divinas, que perpassam as histórias patriarcais como uma
rede literária e teológica que falta no resto do Pentateuco e que, logo, constituiria um processo de
crescimento próprio das histórias dos pais e independente dos restantes blocos do Pentateuco 105.

102 Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch, pp. 142.162 (cf. p. 131). A tese de
Rendtorff foi aplicada aos patriarcas pelo seu aluno E. BLUM: Gn 12-50 teria sofrido um longo processo
redaccional antes de ser ligada às outras "unidades maiores" do Pentateuco. Os materiais mais antigos seriam os
referentes ao ciclo de Jacob. A união com o resto do Pentateuco fez-se no pós-Exílio pelos estratos redaccionais "D"
(que pressupõem a historiografia Dtr) e "P": cf. Die Komposition der Vätergeschichte (Neukirchen 1984; e ETR
61, 580-582). Há um certo acordo em que de facto existem "trechos sacerdotais". O desacordo começa na sua
datação (exílicos ou pós-exílicos?) ou em saber se "P" seria uma obra autónoma ou um estrato redaccional.

103 Por ex., R.N. WHYBRAY, "Response to Professor Rendtorff", JSOT 3 (1977) 11-14; H.H. SCHMID,
"In Search of New Approaches in Pentateuchal Research", JSOT 3 (1977) 33-42; G.W. COATS, "The Yahwist as
Theologian? A Critical Reflection", JSOT 3 (1977) 28-32; R.E. CLEMENTS, recensão em JSOT 3 (1977) 45-47; e
ainda N.E. WAGNER, "A Response to Professor Rendtorff", JSOT 3 (1977) 20-23: aluno de F.V. Winnett, sustenta
uma compilação "Jahvista" (escritor e teólogo pós-exílico e pro-judaico, não mero editor) que seria responsável por
um livro do Génesis pré-P, que seria o livro actual sem as adições "P" (pp. 23-26). Cf. também F. CRÜSEMANN,
"Le Pentateuque, une Tora. Prolegomènes à l'interpretation de sa forme finale", em Le Pentateuque en question
(ed. A. de PURY) 339-360. F. CRÜSEMANN aplicou o modelo de Rendtorff aos relatos de Gn 1-11: seriam uma
reflexão de camponeses judeus do tempo da monarquia sobre a condição humana e nada teriam a ver com os outros
relatos (mas veremos que essa interpretação das "narrações de origem" é insustentável). Gn 12,1-3, pelo contrário,
seria uma ligação com o ciclo dos patriarcas feita depois do Exílio e traduziria o convite dirigido à gôlah
("diáspora/exílo") para voltar ao país (cf. Mélanges H.W. Wolff, [Neukirchen 1981]).

104 Assim J. van SETERS, "The Yahwist as Theologian? A Response", pp. 16-19, que, porém dá razão a
Rendtorff em ver uma tensão entre a história patriarcal e a tradição do êxodo neste sentido: a terra à qual Deus
conduzirá o povo diz-se uma terra desconhecida e ao mesmo tempo uma terra prometida aos seus pais, à qual só
regressam. Resistindo aos ataques contra a "teoria documentária", H. SEEBAß, tentando perfilar mais nitidamente
o peso das narrações atribuídas a "E", diz que se se nega a existência dum "E", logo seguirá a negação do "J" (em
Le Pentateuque en question [ed. A. de PURY] 199-230). J. VERMEYLEN, "Les premières étapes littéraires de la
formation du Pentateuque", Le Pentateuque en question (ed. A. de PURY) 149-197, oferece argumentos a favor da
divisão das fontes e para uma datação do clássico "J" cedo (com David-Salomão; mas em "La formation du
Pentateuque à la lumière de l'exégèse historico-critique", RTL 12 [1981] 324-346 apresenta agora um J cuja obra
cabe numa folha de papel).

105Há que objectar, porém, que o modo de ele detectar as diferentes fases de desenvolvimento do texto
segundo o qual as promessas foram acrescentadas às narrações dos patriarcas é, no fundo, o da crítica literária das
fontes, considerando certas palavras ou trechos ligados ao tema das promessas uma adição posterior ou apêndice ao
texto original, supondo que originalmente, por ex., a promessa foi feita só ao patriarca, tendo sido acrescentado
depois "...e à tua descendência" (cf. Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch, pp. 42-65). Mas
essa suposição é gratuita ou subjectiva (cf. a crítica de J.A. EMERTON, "The Origin of the Promises to the
35

A narração patriarcal, a do Êxodo, a do Sinai, a da passagem pelo deserto e da ocupação da Terra


terão crescido como uma série de "maiores unidades", cada uma com a sua teologia própria e sem
ligação à de outras. A sua articulação na narrativa do Pentateuco teria sido obra dum redactor
Deuteronómico ou Deuteronomista, depois do Exílio, e teria nexos com a forma como surgiu a
História Deuteronomista. Ou seja, segundo a "escola de Heidelberg" há no Pentateuco grandes
conjuntos literários; mas o Pentateuco como obra de conjunto seria o resultado dum esforço
redaccional da época pós-exílica.
Esta visão do crescimento do Pentateuco ou o novo modelo proposto por Rendtorff inspira-
se no método da "história das tradições", segue de perto o modelo da "hipótese dos fragmentos" e
evoca a proposta de I. Engnell, deixada incompleta. A diferença está em que Rendtroff não se vale
das virtudes e possibilidades da tradição oral, que deve ter sido um modo de transmissão de
materiais da tradição durante os primeiros tempos; Rendtorff enfatiza a fase escrita da
transmissão, porque, segundo ele, a fase oral é demasiado incerta para poder ser reconstruída
positivamente 106. Os ciclos de tradições ter-se-ão formado a partir de narrações mais breves; e a
obra do editor teria sido rematar e arredondar as narrações ligadas e unir as cadeias mais longas
numa épica sobre os primórdios de Israel. Não teria havido “fontes” contínuas no sentido de
esboço abrangente de materiais que viriam a formar o Pentateuco, como os estudiosos viram em J
e P durante um século. Esta negação também se apoia na falta de consenso dos críticos sobre a
extensão precisa e as características de J e P e ainda na falta de evidência sólida para tais
documentos no Pentateuco. Aliás, aceite a formação de “unidades maiores” como fase intermédia
para a compilação final do Pentateuco, as fontes J e P já não são necessárias.
Naturalmente poderia objectar-se que configurar e organizar tão largas colecções de
material é uma empresa original e criativa que merece o nome de "autor", podendo-se discutir as
funções atribuídas ao "redactor" 107. A aproximação de Rendtorff ao problema da composição
literária do Pentateuco não fornecerá a explanação satisfatória de todos os seus dados 108. Mas
não se pode pôr totalmente de parte o seu contributo de desmantelar o estabelecido e inovar.

3.5.2. Regresso à «hipótese dos complementos»?

Patriarchs in the Older Sources of the Book of Genesis", VT 32 [1982] 24-32).

106"Rendtorff sees this transmission primarily in terms of written transmission. This need not be the case.
Oral and written transmission probably co-existed for a very long time" (P.J. van DYK, Current Trends...", p. 199).
A simpatia para com a proposta de Engnell é manifestada por vários estudiosos. Cf., por ex., F.V. WINNETT: "It
has been recognized for some time that a purely documentary approach to the Pentateuch is not enough. Greater
allowance must be made for direct borrowing on an author's part from oral tradition, as Engnell and others have
contended" ("Re-examining the Foundations", JBL 84 (1965) 3; cf. p. 1).

107 Cf. resumos de R.E. CLEMENTS, na recensão em JSOT 3 (1977) 50, e de E. ZENGER, "Wo steht die
Pentateuchforschung heute?", pp. 108-109. Mas é verdade que a maior parte dos textos não-sacerdotais é atribuída
a vários redactores Dtr; e quase todos os estudiosos do Pentateuco insistem hoje na importância do(s) redactor(es)
Dtr. Esta "tradição" tornou-se a pedra de toque da solução do problema da composição literária do Pentateuco.

108Cf. H. SEEBAß, "Vor einer neuen Pentateuchkritik?", Theologische Revue 88 (1992) 181.184-186.
36

Em 1976 H.H. Schmid aponta as baterias contra a datação tradicional do “J”; diz que não é
da época de Salomão, como pensava von Rad; analisando o estilo, o género literário e a temática
dos textos a ele atribuídos, conclui que têm estreitas afinidades com a teologia do Dt, com a
história deuteronómica e com os últimos profetas, datando-o na última parte do séc. VII; a óbvia
relação entre o espírito/religião da literatura Dt-Dtr e o do "J" seria até um forte argumento a
favor duma datação exílica do "J". A catástrofe do Exílio teria dado azo em Israel a repensar e a
escrever. Este trágico acontecimento precisaria de explicação em amplas obras literárias,
históricas e teológicas 109. A origem duma obra literária como o "J" seria plausível em tal situação
110
. Essa datação tardia resolveria uma série de dificuldades da história da tradição, insolúveis na
pressuposição dum "J" no cedo (por exemplo, o silêncio dos profetas pré-exílicos sobre o Sinai e
as ideias do "J" sobre o "Israel todo"). Este "J" tardio já não é o grande teólogo tal como
concebido por G. von Rad. "J" seria uma sigla para um processo de redacção e interpretação
Jahvista com claras ligações ao pensamento Dt/Dtr 111, aproximando-se, neste ponto, da posição
de Gunkel. Se o intento principal de Schmid é demonstrar que o J é tardio, também proclama a
inadequação dos métodos da crítica das fontes, considerando-os um "quadro absurdo" 112.

109 Cf. N. LOHFINK, Les traditions du Pentateuque autour de l’exil (Cahiers évangile 97; Cerf ; Paris
1996): três estudos sobre o escrito sacerdotal, o Dt e o movimento deuteronomista.

110É também a opinião de B.J. DIEBNER, "Bibelwissenschaft", I/2, TRE 6.Bd; cf. P.J. van DYK, "Current
Trends in Pentateuch Criticism", p. 197. F.V. WINNETT, "Re-examining the Foundations", pp. 3-5, defende que a
situação natural para a composição "J" da história das origens seria o período exílico ou pós-exílico (muito
apropriadamente no tempo do Dêutero-Isaías ou mais tarde, propondo que esta fonte tardia se basearia num J
anterior completado por "E" e então incorporado na redacção P final ao fim do s. V a.C.), fundado na visão
universalista e monoteísta do autor e convencido de que o J da história primordial não é a mesma pessoa que teria
escrito as narrações patriarcais. Ele pensa que foi na datação e autoria da história das origens que a crítica literária
do Pentateuco se extraviou em primeiro lugar.

111 Cf. H.H. SCHMID, Der sogenannte Jahwist, p. 175; e recensão e resumo de E. ZENGER, "Wo steht
die Pentateuchforschung heute?", pp. 101-103. Para a controvérsia sobre a existência do Jahvista, cf. também H.-
Ch. SCHMITT, “Die Hintergrunde der ‘neuesten Pentateuchkritik’ und der literarische Befund der Josefsgeschichte
Gen 37-50”, ZAW 97 (1985) 161-179.

112 Der sogenannte Jahwist, p. 171; cf. G.J. WENHAM, recensão em JSOT 3 (1977) 57.
37

O seu discípulo Martin Rose, professor de AT na Universidade de Neuchâtel, no trabalho


escrito de habilitação continua a tese de Schmid para responder a uma questão que este tinha
deixado pendente: que relação existe entre o “J” deuteronómico/Dtr e a grande “história
deuteronomista” Js-Re; chega à conclusão de que J é o artífice do Tetrateuco, uma obra que não é
autónoma mas se compôs como prólogo à “história deuteronomista”. Segundo ele, a teologia da
história de Israel só tem origem por primeira vez na crise que segue o ano 587; só a perda da
identidade de Israel até então, que mantinha os dons salvíficos e as instituições, provoca as
perguntas radicais e angustiantes dos teólogos da capital em ruína por Yahvé como Deus da
história: Deus abandonou definitivamente o seu povo? Porquê rompeu a sua aliança e suprimiu os
dois sacramentos essenciais da sua presença entre o povo, o rei e o templo?; a resposta a estas
perguntas literariamente capta-se pela primeira vez na "Obra histórica Deuteronomista" Dt-2Re;
os autores Dtr terão insistido demasiado na obediência à Lei, fazendo depender desta a ocupação,
possessão e perda da Terra e a salvação; mas esta visão simplista de DtrG ter-se-á mostrado
demasiado optimista e irrealista, pois a exigida e esperada renovação interior de Israel não
acontecia: uma viragem só poderia ser pensada como novo acto salvífico do próprio Yahvé; estes
pressupostos para a continuação da história de Yahvé com o seu povo seriam precisamente os
temas do "Jahvista" exílico, pós-deuteronomista, que antes de Dt-2Re terá colocado o conteúdo
fundamental "Jahvista" de Nm-Ex-Gn (nessa sucessão), tornando-se assim o 'pai' da história
teológica do Tetrateuco: a inabilidade do povo de ser "o parceiro humano da obra de salvação
divina" despregá-la-ia o "J" na história do peregrinar pelo deserto, apresentada na perspectiva da
murmuração e rejeição, que ele faz contrastar e contrabalançar com a descrição antecipada do
Êxodo (o novo acto salvífico) e da promessa da Terra aos pais (a oferta da salvação). Desta
forma, o J anteporia os ciclos dos patriarcas e o Êxodo (= graça, diferente da lei) aos grandes
conjuntos legislativos que vêm depois, pondo o acento na intervenção gratuita e misericordiosa de
Deus para inflectir e contrabalançar a teologia dos Deuteronomistas, demasiado concentrados na
obediência à Lei.
Este "J" exílico ou pós-exílico seria o primeiro [!] teólogo, o verdadeiro autor do
Tetrateuco, que teria unido as diversas narrações no conjunto narrativo Gn-Nm não-sacerdotal,
para dar ao conjunto DtrG uma introdução teológica adequada. Portanto, o "J" nunca terá sido
uma obra autónoma prévia ao Tetrateuco, mas só uma parte da obra histórica exílica ou pós-
exílica abrangendo Gn-2Re, desenrolada especialmente sob o influxo de Dt 1-3, em que o núcleo
original do Tetrateuco teria sido - retomando a teoria de von Rad - o credo de Dt 26,5-9 (com a
diferença de que a sua datação difere 5 séculos da de von Rad!). Resumindo, M. Rose compara os
textos do início da história Dtr (Dt 1-3) com textos do Tetrateuco que referem as mesmas
tradições e chega sempre às mesmas conclusões: os textos "Jahvistas" supõem o Dt e, portanto,
são mais tardios do que a primeira edição do Dtr. E quê dizer da fonte "P"? Partindo da hipótese
do seu "J", também "P" não seria uma obra autónoma mas uma análoga introdução teológica a
Dt-2Re, que teria nascido noutro quadro geográfico, cultural e teológico, talvez mesmo em
concorrência com o "J", com o fim de defender o sistema sacerdotal. "J" e "P" seriam duas
reacções diferentes a Dtr 113. O “J” seria uma reacção tardia ao movimento deuteronómico 114.

113 Deuteronomist und Jahwist, pp. 325-328 (cf. ETR 58 (1983) 253-255). Cf. também IDEM,
"Empoigner le Pentateuque par sa fin! L'investiture de Josué et la mort de Moïse", Le Pentateuque en question (ed.
A. de PURY) pp. 129-147.

114 Este juízo pessimista sobre a historicidade do Tetrateuco é largamente exagerado, na opinião de vários
exegetas, e.g., J.-M. van GANGH, “Les origines d’Israël et de la foi monothéiste. Apports de l’archéologie et de la
critique littéraire”, Revue théologique de Louvain 22 (1991) 476.
38

Em linha com Rose, J. van Seters numa nova obra de 1983 115 sustém que o Pentateuco não
é o fundamento da grande história que vai desde a criação do mundo até à queda de Jerusalém
mas antes a ampliação da “história deuteronomista”; primeiro ter-se-ia composto a história desde
a conquista até à perda da Terra (Js - Re) e, depois, para preencher o vazio histórico prévio e
como prólogo à história deuteronomista, ter-se-ia composto o ‘J’ e o Pentateuco. O autor da
“história deuteronomista” seria um grande historiador nacional, comparável a Heródoto para a
história da Grécia. Também van Seters advoga para o J uma data tardia, o Exílio. O J teria feito
adições apropriadas e teria incorporado amplas unidades episódicas. Baseia a sua argumentação
para uma datação tardia na evidência proveniente da comparação entre literaturas do antigo
Próximo Oriente e outras do AT. Nomes, costumes e instituições nas narrativas ancestrais têm
cerrados paralelos nas sociedades do antigo Próximo Oriente do I milénio a.C. J. Van Seters
defende que a obra do J se parece à do historiador grego Heródoto, factor que sustentaria a sua
proposta de uma data tardia para o J 116.
Embora com diferenças, as tentativas de van Seters, de Schmid e de Rose por redefinir o
Jahvista produzem o mesmo efeito: conduzem ao desmantelamento desta componente da hipótese
das fontes. Porque o Jahvista teria sido composto como prólogo à ‘história deuteronomista’,
nunca teria existido como fonte independente.
Esta ideia foi recolhida por R.N. Whybray 117, que a aplicou ao Pentateuco: este seria o
produto dum único autor exílico, verdadeiro historiador nacional que aí teria empregado técnicas
de composição similares às de Heródoto. Este autor teria usado fontes, que não seriam
documentos como os que se supõem sob as siglas J, E e P. Esta obra sobre a composição do
Pentateuco é uma síntese das objecções antigas e novas que se podem fazer à teoria
documentária. Passa em revista os pressupostos em que se fundava a hipótese: língua, estilo,
repetições, duplicados e contradições, diferenças na ordem da cultura, da religião e da teologia. O
leitor não avisado poderia ficar com a impressão de que a exegese desde Wellhausen se enganou
redondamente.

115 In Search of History. Historiography in the Ancient World and the Origins of Biblical History (Yale
University Press; New Haven - London 1983).

116 Cf. J. van SETERS, “Joshua 24 and the Problem of Tradition in the Old Testament”, In the Shelter of
Elyon: Essays on Ancient Palestinian Life and Literature. In Honor of G.W. Ahlström (ed. W.B. BARRICK – J.R.
SPENCER) (JSOTSup 31; JSOT; Sheffield 1984) 139-158

117 The Making of the Pentateuch. A Methodological Study (JSOTSS 53; Sheffield Academic Press;
Sheffield 1987) 225ss [tradução espanhola: El Pentateuco. Estudio metodológico (DDB; Bilbao 1995)]. Cf.
também R.N. WHYBRAY, Introduction to the Pentateuch (Eerdmans; Grand Rapids 1995).
39

Entretanto, E. Blum, discípulo de Rendtorff, analisou com profusão de pormenores Gn 12-


50, chegando à conclusão de que seria uma “grande unidade” com um longo processo de
formação; só mais tarde se teria unido “redaccionalmente” a outras unidades para formar o
Pentateuco. Em sintonia com Schmid e van Seters, pensa que o ciclo de Abraão não se constituiu
até à época exílica 118. Numa segunda obra, Blum estendeu a análise aos textos narrativos de Ex-
Nm. Nestes não haveria fontes paralelas e independentes no sentido da hipótese documentária,
nem “grandes unidades” no sentido dado por Rendtorff, mas sim duas “composições” tardias, que
teriam recolhido e elaborado textos ou tradições mais antigas: uma composição de tipo
deuteronómico, posterior ao Dt (em torno ao ano 530 a.C.), e uma composição ulterior, de tipo
sacerdotal, pós-exílica. A composição de tipo deuteronómico começaria com a história de Abraão
(Gn 12ss) e pressuporia a existência da “história Dtr” (ambas se enlaçariam nos últimos capítulos
do Dt); a sua datação remontaria à primeira geração do retorno do Exílio. A composição de tipo
sacerdotal, que andaria à volta do tema da comunidade, pressuporia tradições antigas e seria da
época persa. O Pentateuco seria o resultado dum compromisso entre as duas tendências
reflectidas nas duas “composições” 119. “A obra de Blum representa o esforço mais sólido e
completo dos últimos tempos em vista a oferecer uma solução global ao problema da composição
do Pentateuco” 120.
Inspirado em J. van Seters e em E. Blum, Th. Römer (da Faculdade autónoma de Teologia
Protestante, Universidade de Genebra) dá por bastante certo que a Tōrá como documento oficial,
teria surgido no contexto duma política persa, chamada “autorização imperial”. A perspectiva da
publicação do Pentateuco, sancionada pelo poder persa, implicaria no interior do Judaísmo a
procura dum compromisso entre as diferentes correntes ideológicas, nomeadamente entre as
“sacerdotais” e as “deuteronomistas”. Nesse contexto situar-se-ia provavelmente a separação do
Dt da “história Dtr” e a sua anexação ao Tetrateuco. Para assinalar a pertença do Dt a este novo
corpo da Tōrá, a “redacção final”, solícita da harmonia de conjunto, teria harmonizado alguns
dados, incluindo a inserção dos nomes dos patriarcas no Dt em aposição ao uso de “pais” pelos
deuteronomistas (segundo ele, para a corrente Dtr os “pais” mencionados no Dt não seriam os
patriarcas do Génesis mas a geração do êxodo ou os antepassados em geral, segundo os textos).
Que a identificação de “pais” com “Abraão, Isaac e Jacob” seria obra duma redacção do
Pentateuco aduz o facto de que nem em Js-Re nem em Jer os “pais” são assemelhados aos
patriarcas. Num documento de compromisso seria inevitável enfrentar-se com uma “coabitação”
das duas tradições, a patriarcal e a do êxodo. O Dt na sua função de “elo de união” reflectiria bem
esta “coabitação”: lendo-o como final do Pentateuco são as origens patriarcais a ter a última
palavra; tomando-o primeiro como introdução à “história Dtr” são as origens do êxodo que
recobram toda a sua importância 121.

118 Cf. E. BLUM, Die Komposition der Vätergeschichte (WMANT 57; Neukirchen-Vluyn 1984); IDEM,
em Biblica 80 (1999) 564-569, recensão de D.J. WYNN-WILLIAMS, The State of the Pentateuch. A Comparison
of the Approaches of M. Noth and E. Blum (BZAW 249; Walter de Gruyter; Berlin – New York 1997).

119 Cf. E. BLUM, Studien zur Komposition des Pentateuch (BZAW 189; Berlin - New York 1990).

120 F. GARCÍA LÓPEZ, “De la antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52
16-17. J.-L. SKA, da mesma opinião, até se interroga se não estaremos perante “um novo Wellhausen”: “Un
nouveau Wellhausen?”, Biblica 72 (1991) 253-263.

121 Cf. Th. RÖMER, “Le Deutéronome à la quête des origines”, Le Pentateuque. Débats et recherches.
e
XIV Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P. HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 95.97-98 (ver pp. 65-98); e
Israels Väter. Untersuchungen zur Väterthematik im Deuteronomium und in der deuteronomistischen Tradition
(OBO 99; Freiburg - Göttingen 1990).
40

3.5.3. Combinação da hipótese documentaria com a dos fragmentos e a dos complementos

Apesar de as hipóteses dos fragmentos e dos complementos nunca terem conquistado a


adesão geral dos críticos, segundo alguns, se a pesquisa sobre a composição do Pentateuco
devesse enveredar por um novo modelo, "este deveria ser uma combinação do modelo dos
documentos, dos fragmentos e dos complementos". Assim propõe E. Zenger 122, que defende um
(reduzido) "J" e um abrangente JE (Jehovista), renuncia à existência de "E" e considera "P"
autónomo 123.

Como se vê, nestes estudos de Schmid, van Seters, Rendtorff, Blum, etc., a corrente crítica
que considera os textos J como deuteronómicos ou próximos da escola deuteronómica é uma
tendência hoje forte 124: a redacção Dtr desempenharia papel determinante na composição do
Pentateuco. Mas esta suposição requer análise mais aturada, pois ainda não se definiu com
precisão a natureza e o alcance da redacção Dtr no Pentateuco. E mesmo que se encontrem lá
elementos literário-teológicos semelhantes aos da “história Dtr”, ainda não seria absolutamente
certo que se deveriam a uma redacção Dtr, pois no âmbito restrito da mesma fé seria natural que
autores ou redactores diversos coincidissem pontualmente nos conteúdos expostos ou na forma
de os expor. Um dado importante para repensar ou aprofundar estas teses é Oseias 12, onde se
apresenta o ciclo de Jacob como coisa bem conhecida dos seus ouvintes e revestindo a forma
duma gesta completa da vida do antepassado (“no seio materno..., chegado à maturidade...”: v.
4). Esta gesta parece já fixada nas suas grandes linhas em meados do séc. VIII a.C. (entre 750 e
722). Isto poderia fragilizar a tese de R. Rendtorff, que não vê nenhuma ligação entre as tradições
patriarcais e as do Êxodo do Egipto antes de Gn 50,24 e Ex 33,1-3a, qualificados por ele como
textos de colorido deuteronómico e situados ao menos um século e meio depois de Oseias; a
fortiori, invalidaria as teses de H.H. Schmid e J. van Setters, que julgam posteriores ao Exílio
para Babilónia (587-538 a.C.) a redacção dos textos patriarcais e o seu relacionamento com o
ciclo do Êxodo 125. Mas também é razoável pensar que Oseias se refira a uma tradição escrita da
gesta de Jacob um pouco diferente da de Gn 25-35 ou até a uma tradição oral, conhecida da
memória colectiva de todo o Israel no séc. VIII, à qual o profeta teria feito simples alusões para
suscitar na mente dos ouvintes cenas inteiras da vida do patriarca.
Daqui resulta que o paradigma de Wellhausen estava minado a grande alcance 126 e que se
requer uma metodologia mais adequada e mais complexa no estudo do Pentateuco. A actual

122 Em "Wo steht die Pentateuchforschung heute?", p. 115 (cf. pp. 113-114, onde faz nova proposta, não
muito diferente da tradicional "teoria documentária"); e IDEM, "Auf der Suche nach einem Weg aus der
Pentateuchkrise", 362).

123 "Le thème de la 'sortie d'Egypte' et la naissance du Pentateuque", Le Pentateuque en question (ed. A.
de PURY) (Labor et Fides; Genève 1989) 301-332.

124 Mesmo os que mantêm a hipótese documentária, reconhecem, como E. ZENGER, “Le thème de la
‘sortie d’Égypte’ et la naissance du Pentateuque”, Le Penteuque en question, pp. 328-329, que o texto atribuível ao
J se deve reduzir.

125 Esta crítica é de J.-M. van GANGH, “Les origines d’Israël et de la foi monothéiste. Apports de
l’archéologie et de la critique littéraire”, Revue théologique de Louvain 22 (1991) 482-484.487.

126Cf. P.J. van DYK, "Current Trends...", pp. 198-200.


41

discussão sobre a configuração final do texto 127 e a sua “abordagem canónica” 128 poderiam ver-se
como continuação dessa tendência.

127Cf. D.J.A. CLINES, The Theme of the Pentateuch, passim.

128Proposta por B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture (SCM Press; London 1979)
41-106.127-135.145-157 e passim; e Old Testament Theology in a Canonical Context (SCM Press; London 1985)
passim.
42

3.6. Balanço e desafios futuros na investigação sobre a composição do Pentateuco

Estas novas abordagens do problema da origem do Pentateuco desferem um rude golpe na


"teoria documentária", lançam-lhe um sério desafio e põem-na em questão. Algumas dizem-lhe
‘adeus’ como necessária libertação "de uma hipoteca que se apresenta cada vez mais como um
grande peso". É o que faz Rendtorff, considerando J e P (até há pouco, colunas portantes da
exegese do Pentateuco) "fantasmas" desencantados 129. “Está aberta de novo a questão sobre a
origem do Pentateuco” 130. A ele, que lançou o ataque mais frontal contra a “teoria documentária”
e os seus máximos expoentes 131, juntou-se um crescente coro de vozes dissonantes relativamente
à "teoria documentária" 132. Ela sempre teve críticos e vozes discordantes desde a sua exposição
sistematizada no fim do séc. XIX. Mas eram dispersas, raras ou situadas (escola nórdica de
Uppsala e tradições judaica e católica). Agora a oposição é maciça, restando só alguns exegetas
entrincheirados no pretenso carácter inexpugnável da “teoria documentária”. A sua relativização
aparece ainda mais radical quando pensamos que se opõe a uma espécie de dogma da exegese
moderna 133. Assim, o panorama dos estudos sobre o Pentateuco mudou substancialmente. A
teoria documentária, na forma que se lhe deu desde Wellhausen, que descobre na base do
Pentateuco quatro documentos JEDP, teve o seu tempo, que está para chegar ao fim. Se até à
década de 1980 as conclusões da “hipótese documentária” podiam ser consideradas frágeis, a
partir daí foram combatidas com argumentos de maior peso, tornando aflitivo o panorama das
certezas sobre a composição literária do Pentateuco. A “nova crítica” questiona sistematicamente

129 Expressão de R. RENDTORFF, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch, p. 150 (cf.
pp. 143-144.148).

130 E. OTTO, “Del libro de la alianza a la ley de santidad. La reformulación del derecho israelita y la
formación del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52 (1994) 195 (cf. pp. 195-199); IDEM, “Stehen wir vor einem
Umbruch in der Pentateuchkritik?”, VuF 22 (1977) 82-97.

131 Critica, por exemplo, G. von Rad e M. Noth por saltarem injustificadamente da história da tradição
para a hipótese dos documentos.

132Por ex., I.M. KIKAWADA - A. QUINN, Before Abraham Was. The Unity of Genesis 1-11 (Abingdon
Press; Nashville 1985), demonstrando com uma nova análise a unidade de Gn 1-11 (secção escolhida pelo papel
central que ela teve no desenvolvimento da "teoria documentária" e porque tantas gerações de estudiosos
demonstraram a sua falta de unidade), argumentam pela visão do Pentateuco como obra dum único autor,
atribuindo a aparência de contos dissoltos à inabilidade do leitor moderno em perceber as subtilezas duma
composição antiga; o pressuposto central do seu livro é que um leitor do antigo Próximo Oriente teria visto unidade
onde hoje vemos falta de unidade; e provam tal pressuposto pondo Gn 1-11 em confronto com várias composições
literárias antigo-orientais, desaguando na conclusão de que muitas das peculiaridades de Gn 1-11 estão presentes
nalgumas dessas narrações e partilham o seu padrão ou estrutura abrangente (a mais convincente é a do mito de
Atrahasis). A argumentação a favor dum único autor não é concludente, pois também se pode pensar que essa
estrutura ou esquema foi imposto a Gn 1-11 pelo último editor ou redactor de diversas narrações de origem (cf. P.K.
McCARTER, "A New Challenge to the Documentary Hypothesis", Bible Review 4/2 (1988) 34-39, que mantém a
opinião de que "the Pentateuch contains within it diverse sources joined together by editors seems as sound today
as it did a century ago. In fact it seems more sound, because we can now cite both biblical and extra-biblical
evidence that shows that it was precisely in this manner - by the combination and editing of documentary sources -
that sacred literature was composed in biblical times" (por ex., 1 e 2Cron). J. BARTON, The Future of Old
Testament Study. An Inaugural Lecture Delivered Before the University of Oxford on 12 November 1992
(Clarendon Press; Oxford 1993), pp. 9-13, diz que o estranho é que o questionamento do "paradigma histórico-
crítico" (referido à teoria das fontes) recorre em cada geração, como um 'tópico' entre os estudantes de Bíblia.

133 Cf. P. GIBERT, "Vers une intelligence nouvelle du Pentateuque?", RSR 80 (1992) 56-61.
43

as conclusões a que conduziu o trabalho aturado de gerações de exegetas, mesmo anteriores a


Wellhausen 134.
Os crescentes inúmeros enigmas e a frustração que produzem exigem uma nova forma de
enfrentar a questão das origens literárias do Pentateuco. “A leitura do Pentateuco foi
profundamente alterada pela pesquisa exegética de há cerca de vinte anos a esta parte” 135. A partir
da década de 1970 observamos uma crescente tendência para entender a história literária de cada
bloco narrativo separada e independentemente de qualquer tese sobre fontes primitivas contínuas
136
. O debate não gerou novo consenso 137. Se até à década de 1980, mesmo os exegetas que
denotavam notáveis diferenças na explicação da génese literária do Pentateuco trabalhavam com a
mesma hipótese de conjunto, no início do séc. XXI ainda não há uma hipótese que colha o
consenso comum; como vimos, propõem-se diferentes modelos como ensaios explicativos da
génese literária do Pentateuco. Mas nenhuma teoria conseguiu descobrir convincentemente e
responder satisfatoriamente ao problema da génese literária e proveniência do texto. A nova
perspectivação da origem, formação e natureza do Pentateuco reconhece que ele é demasiado
complexo para se poder explicar simplesmente por uma única teoria e como resultado das obras
criativas e de compilação de quatro autores. Não há método, por perfeito e rigoroso que seja, que
resolva todos os problemas literários dos textos do Pentateuco e explique os seus muitos dados
díspares 138. A complexidade das suas origens literárias é tão grande que a investigação produzirá
resultados tanto mais seguros quanto mais os mantiver nas grandes linhas, sem pretender
determinar a proveniência de sentenças e palavras 139.
Se, porém, ainda é cedo para um balanço completo dos resultados obtidos e para avaliar
correctamente o impacto dos estudos críticos contra a "hipótese documentária" (conduzidos a
partir duma base demasiado estreita de textos e não de uma análise de conjunto do Pentateuco),
eles mostram ao menos que, depois de ser testada durante mais de um século, ela não pode ser
considerada tese comprovada e absolutamente válida ou indispensável para entender a génese
literária do Pentateuco. Nunca tendo passado de mera “hipótese” elaborada para tentar explicar
um conjunto de factos literários, esquecendo o seu estatuto de hipótese, tornou-se também
demasiado assertiva, talvez por falta de perspectivas para a sistematização duma alternativa 140.
Apesar de ela assentar na escrupulosa observação de características literárias dos textos,
especialmente narrativos, do Pentateuco (de vocabulário, estilo, sintaxe, repetições e tensões),
tentando responder a dados objectivos e explicar a formação do Pentateuco inteiro, tem muitos

134Boa apresentação deste "inventário provisório" em A. de PURY - Th. RÖMER, "Le Pentateuque en
question: Position du problème et brève histoire de la recherche", Le Pentateuque en question (ed. A. de PURY)
67-80.

135 Introdução de GRUSSON à obra de O. ARTUS, O Pentateuco (Cadernos bíblicos 81; Difusora bíblica;
Fátima 2003) 1.

136 Cf. J. BLENKINSOPP, “El Pentateuco”, La interpretación bíblica, hoy (ed. J. BARTON) (Presencia
teológica 113; Sal Terrae; Santander 2001) 218-219 [original: The Cambridge Companion to Biblical
Interpretation (Cambridge University Press; Cambridge, U.K., 1998)].

137 Cf. R.E. MURPHY, “Introduction to the Pentateuch”, The New Jerome Biblical Commentary (eds. R.E.
BROWN - J.A. FITZMYER - R.E. MURPHY) (Prentice Hall; Englewood Cliffs, NJ 1993) 3-7.

138Cf. F. GARCÍA LÓPEZ, “De la antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52
(1994) 24-25.35; ele motiva a sua justa afirmação: a exegese, em definitivo, não é tanto uma ciência quanto uma
arte com fundamentos científicos. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse documentaire", p. 10,
propondo-se mostrar os limites das teorias novas e velhas, conclui que "une solution globale... n'existe pas".
44

pontos débeis, que passamos a anotar, em paralelo com o ensaio de perspectivas alternativas para
o futuro.
A distribuição do texto do Pentateuco por quatro "fontes " consideradas obras de autores
ou escolas é metodologicamente um trabalho falaz. Porque presumo que uma série de textos
pertence a este documento, atribuo-a a ele na base de afinidade, diferença ou variedade de ideias,
temas, características ou estilos literários. Mas só se pode afirmar a existência de uma ‘fonte’
depois de ela ser ‘descoberta’ pouco a pouco e formada hipoteticamente pelo transporte
acumulativo de materiais do Pentateuco para ela. Por outras palavras, as dependências literárias e
temático-teológicas só se podem marcar e um texto só se pode atribuir a uma "fonte" quando
conhecida a sua delimitação e autoria. Ora, só ao chegar a esta conclusão é que a "teoria
documentária" sabe isso! Estamos perante um círculo vicioso.
O critério da variedade de estilo é vago. Autores diversos podem usar estilo parecido e o
mesmo autor pode usar estilos diversos, adaptando-se às convenções que governam a literatura
que ele compõe. Os argumentos baseados no uso e na estatística do vocabulário são
insatisfatórios, muito discutíveis e sem valor na determinação do autor 141. Mais importantes para
marcar as diferenças de género, estilo ou autor são os contextos; mas precisamente esses não são
usados pela "teoria documentária" como critério para a definição de "fontes". O vocabulário,
como o estilo e a estrutura das frases é determinado pelo tema.

139 Cf. J.L. McKENZIE, “Pentateuch”, Dictionary of the Bible (Macmillan Publish.; New York - London
1965) 653-657.

140 “O problema dos projectos que a investigação do Pentateuco debate na actualidade, na época posterior
à hipótese documentária, é que hoje se carece de um critério tão convincente como o que J. Wellhausen engendrou
com a história do culto nos Prolegomena... Se o trabalho de J. Wellhausen e dos demais artífices da hipótese
documentária partiu do que tinha realizado W.M.L. de Wette sobre o Deuteronómio com o fim de conseguir
critérios claros para reconstruir a história literária do Pentateuco, hoje é preciso centrar o trabalho nos corpos
legais do Livro da Aliança, do Deuteronómio e da ‘Lei de Santidade’ (Lev 17-26)... Se conseguimos esclarecer
como se uniram os corpos legais com os estratos narrativos do Pentateuco, obteremos um avanço duradoiro na
análise do Pentateuco”: E. OTTO, “Del libro de la alianza a la ley de santidad. La reformulación del derecho
israelita y la formación del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52 (1994) 198-199 (cf. pp. 195-217).

141Esta mesma observação deve ser feita à posição oposta que defende a unidade de Gn baseada em
estatísticas de vocabulário, do artigo definido, do waw consecutivo, de conjunções subordinadas, fornecidas por
computador: "with all due respect to the illustrious documentarians past and present, there is massive evidence that
the pre-Biblical triplicity of Genesis, which their line of thought postulates to have been worked over by a late and
gifted editor into a trinity, is actually a unity" (Y.T. RADDAY - H. SHORE et alii, Genesis: an Authorship Study in
Computer Assisted Statistical Linguistics [Analecta Biblica 103; Biblical Institute Press; Roma 1985] 190; cf.
IIDEM, "Genesis, Wellhausen and the Computer", ZAW 94 [1982] 467-481). Querendo verificar a validade da
teoria de Wellhausen, concluiram que estatisticamente não se encontra diferença entre "J" e "E", enquanto um
abismo divide "P" de J+E, explicado como diferenças de género, de forma literária e de conteúdo, sem razão para
considerar "P" como fonte separada ou de autor diferente; com isso afirmam que a hipótese documentária em Gn
deveria ser rejeitada ou ao menos totalmente revista. Apesar de julgarem inexpugnáveis a objectividade do método
e a exactidão dos dados (pp. 480-481), o problema está na interpretação dos resultados. Ora, o seu estudo tem erros
de terminologia estatística e de metodologia na aplicação de estatísticas à averiguação de autoria, a qual requer um
corpo de escritos reconhecidos como obra dos autores em consideração (que falta na análise do Gen): um certo
número de palavras usadas num escrito pode não equivaler ao estilo particular dum autor; deduzir diferença ou
identidade de autor pela frequência de palavras é falaz, pois tal método poderia ver diferença de autores na obra
dum único autor e mascarar diversidade de autores num dado texto; a frequência de certas palavras usadas pode
variar de escrito para escrito independentemente da autoria; ou seja, semelhanças e diferenças estatísticas no
vocabulário não se podem traduzir imediatamente em afirmações sobre autoria; identidade de estilo não prova em
si identidade de autor, mas só identidade de género (cf. a crítica de S.L. PORTNOY - D.L. PETERSEN, "Genesis,
Wellhausen and the Computer: A Response", ZAW 96 [1984] 421-425; e a de G.J. WENHAM, "Genesis: An
Authorship Study and Current Pentateuchal Criticism", JSOT 42 [1988] 3-18).
45

Não se pode provar que algum dos supostos quatro "documentos" tivesse existido completo
durante algum tempo antes de ser incorporado no actual Pentateuco. Se existiu completo (tendo
presente sobretudo o extenso "J", abrangente de todo o Pentateuco), porquê não foi integrado
assim no Pentateuco, sem ser entrelaçado com outros? Qual o interesse de tal entrançado? E se
interesse havia, porquê não se entrançaram também as narrativas "duplicadas", detectadas pela
“teoria documentária” (por exemplo, a de Gn 1,1-2,4a com a de Gn 2,4b-3,24)? Efectivamente, a
teoria documentaria viu esse entrançado na narração do dilúvio! De resto, o zelo extremo e a
pretensão de que quase tudo no Pentateuco pode ser encaixado no âmbito de quatro
"documentos" é um extremismo que contribui para delatar maior debilidade na "teoria
documentária".
Frequentemente perícopes, que segundo um critério se poderiam atribuir a um documento,
segundo outro critério poderiam atribuir-se a outro documento: Gn 12-13 pelo uso do nome
divino Yahvé costuma atribuir-se ao J, mas o estilo e o vocabulário são bem diferentes dos de Gn
2,4b-4,26, igualmente atribuído ao J. De resto, certos conjuntos literários, quando privados de
alguma parte retirada para outro documento, já não fazem sentido: Gn 6,9-22 é atribuído a P,
enquanto 6,1-8 e parte de 7 seriam J; mas, se assim fosse, o relato J do dilúvio não contaria nada
da construção da arca; e 6,1-4 (considerado J) não faz sentido se for despegado de Gn 5
(reputado P), porque determina a idade humana, que em Gn 5 ainda era sobre-humana e em 6,1-4
é redimensionada para a duração normal.
As diferenças entre as várias explicações dentro da "teoria documentária" distanciam-se
tanto umas das outras que deixam supor a fragilidade dos próprios pressupostos. Ela vê tantas
adições secundárias e glosas, deixando nos livros Gn-Ex-Lv-Nm tanto material textual fora do seu
controlo que são compreensíveis os novos questionamentos à capacidade de sucesso desta teoria.
Praticamente nunca houve por parte dos estudiosos o consenso total a respeito das posições
fundamentais e em todos os aspectos da teoria (extensão/limites, datação, sequência narrativa,
proveniência histórico-tradicional e finalidade teológica de cada "documento"), o que se pode ver
como expressão de profunda insegurança metodológica. Iguais incertezas encontram-se ao
pretender detectar a mão do(s) redactor(es) que teria(m) combinado as eventuais fontes na sua
forma actual e com que amplitude de intervenção. A extensão e os limites dos "documentos" não
podem passar de meras hipóteses. Por isso, não coincidem nem sequer em dois exegetas e
tornaram-se quase um jogo esotérico. A atribuição de certos textos a um documento pelos críticos
é tão fraccionada que qualquer solução proposta, sobretudo para os conjuntos legislativos,
permanece pouco credível e indecisa 142. Aliás, sempre houve trechos do Pentateuco que resistem
a qualquer tentativa de encaixá-los numa das quatro "fontes", fazendo reinar a confusão e o
desconcerto entre os estudiosos 143. A subdivisão das "fontes" em "sub-fontes" levanta um
problema sério à "teoria das fontes": se se faz pressão para ter absoluta coerência e constância
literária em cada "fonte", estas correm o risco do colapso e da desintegração em múltiplas
componentes ou correntes (e então enveredamos por outra linha de explicação que se afasta da
"teoria documentária"); se, ao contrário, se admite como natural numa mesma composição
literária - antiga como moderna - uma certa possibilidade de variação estilística, ficamos a um

142Cf. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse documentaire", Le Pentateuque. Débats et


recherches. XIVe Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P. HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 22-29.

143"Il est... significatif de détecter ce qu'une théorie comme la théorie documentaire laisse de côté, car c'est
la meilleure preuve qu'elle n'a pas pu prendre en compte la totalité du texte. Ce qui est écarté se présente alors
comme une limite, sans doute difficile à dépasser": J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse
documentaire", Le Pentateuque. Débats et recherches. XIVe Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P.
HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 22 (cf. p. 20, onde confessa que a teoria documentária "ne rend pas compte de
tout").
46

passo de questionar a necessidade de três ou quatro documentos paralelos e distintos,


identificados pelas características peculiares de cada um. “As siglas quase mágicas das quatro
fontes, que exerciam uma atracção pouco menos do que irresistível nos exegetas, têm vindo a
perder a sua força e a adquirir nova dimensão. Certamente deixaram de ser o ponto de partida da
investigação do Pentateuco” 144.
O processo de 'limar' e afinar a coerência de cada "fonte" de Wellhausen em diante mostra
que a "hipótese documentária" é mais vulnerável do que os seus adeptos do séc. XIX pensavam
145
. Os argumentos para a existência do "E" são e sempre foram inconsistentes, dado o carácter
fragmentário do material a ele atribuído (por isso, foi abandonado pela maioria dos investigadores
que o transformaram num estrato literário redaccional do "J" clássico ou de outro, conforme as
teorias); hoje reconhece-se que nunca terá existido o documento “E”, pelo menos de forma
verificável 146. Isto não impede pensar que tenham existido tradições, eventualmente de origem
diversa, onde se usa sistematicamente “Elohim” para falar de Deus (bem diferente de pensar na
existência dum ‘documento E’, posteriormente repartido ou fragmentado no actual texto do
Pentateuco pelo seu redactor final) 147.
Se a fonte "P" tem aguentado melhor o exame a que elas têm sido submetidas, é por se
presumir que tem vocabulário, estilo (abstracto e redundante) e ideologia distintivos (dos
sacerdotes do templo de Jerusalém). Mas continua a debater-se se um eventual "P" significaria
uma composição, uma "fonte" narrativa distinta ou uma fase na redacção dum corpo narrativo
existente ou várias redacções sacerdotais 148. E também haveria vários modos de explicar a
proporcionalmente grande quantidade de legislação cultual e ritual sem ser como uma narrativa
"P", originariamente contínua. Aliás, se ela tivesse existido continuada, por que não se conservou
assim, como um bloco de leis à guisa de outros espalhados pelo Pentateuco? Estudos recentes já
concedem que inteiros blocos de material (por exemplo, colecções de leis ou listas) só terão sido
inseridos no Pentateuco num estádio tardio do seu crescimento e nunca terão feito parte de
nenhum suposto seu estrato literário. A importância dos textos sacerdotais (narrações e leis) na

144 F. GARCÍA LÓPEZ, “De la antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52
(1994) 21-22.

145Cf. J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, p. 14.

146"Aujourd'hui peu d'exégètes acceptent l'existence d'un tel document; ils préfèrent parler de fragments
élohistes. De fait, la présence d'un document élohiste qui court tout au long du Pentateuque est difficile à
démontrer": J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse documentaire", pp. 20-21; e exemplifica con Gn 14,
não atribuível a nenhuma das 4 "fontes" do Pentateuco. Cf. IDEM, “La composition du Pentateuque entre hier et
aujourd’hui”, La naissance de la méthode critique. Colloque du centenaire de l’École biblique et archéologique
française de Jérusalem (Patrimoines: christianisme; Cerf; Paris 1992) 197-204, e “La ‘crise’ du Pentateuque”,
Revue de l’Institut catholique de Paris 29 (1989) 55-57. “Neste momento praticamente ninguém defende a
existência de uma fonte elohista”: F. GARCÍA LÓPEZ, El Pentateuco. Introducción a la lectura de los cinco
primeros libros de la Biblia (Introducción al estudio de la Biblia 3a; Verbo divino; Estella, Navarra 2003) 64.

147 Mas ainda há quem continue a acreditar no “E”: S. McEVENUE estuda Gn 20-22, atribuindo esses
três capítulos, qual trilogia, ao “E”: Interpretation and Bible. Essays on Truth in Literature (The Liturgical Press;
Collegeville, Minnesota 1994) 123-141; IDEM, “La obra del Elohísta”, Selecciones de teología 98 (1986) 145-
155.

148 Cf. “Le Pentateuque”, de La Bible de Jérusalem (Cerf; Paris 1998) 24-31. Depois de considerar o Dt
uma obra de escola dentro do mesmo espírito (embora não totalmente homogénea do ponto de vista literário),
admite a “tradição sacerdotal”. Quanto à existência dos documentos/fontes “Yahvista” e “Elohista” que a crítica
clássica afirmava, diz que “hoje se deve falar antes de tradições; se têm documentos/fontes no sentido preciso do
termo, o conjunto parece ter-se formado de maneira progressiva”.
47

formação do Pentateuco ninguém a nega. O problemático são as etapas de redacção ligadas a uma
evolução das instituições 149. Se mesmo os exegetas mais críticos admitem a existência duma
escola sacerdotal, hesita-se muito sobre a existência de um documento “P” 150 e sobre a forma
como teria sido usado e incorporado no universo do Pentateuco 151. É difícil decidir se tal tradição
‘sacerdotal’ tenha alguma vez tido existência independente como obra literária ou se, de forma
mais verosímil, um ou mais redactores representantes desta tradição uniram os seus elementos às
tradições já existentes e, mediante um trabalho editorial, deram ao Pentateuco a sua forma
definitiva. Mesmo os críticos que coincidem em afirmar a existência de um Escrito sacerdotal (P)
no Pentateuco, discutem a natureza, a extensão e a teologia de tal escrito. É uma fonte
independente ou antes uma composição que integra outros materiais não sacerdotais? Que relação
existe entre as secções narrativas e as legais dentro desse hipotético Escrito sacerdotal? Onde
começa e termina tal fonte/redacção sacerdotal? Qual é o centro da sua teologia? Nem há acordo
entre esses críticos sobre a datação de tal escrito e sobre a sua relação com a ‘lei da santidade’
(Lv 17-26).
Também a presença e a extensão das inserções deuteronómicas ou deuteronomistas no
Tetrateuco continuam a ser objecto de debate. “Nesta altura em que a imagem que alguns têm do
Jahvista está muito próxima dos textos deuteronomistas, talvez seria preferível distinguir no
Tetrateuco dois géneros de materiais: os sacerdotais, que são os que estão mais bem definidos, e
os não-sacerdotais” 152.
Além disso, o valor de textos do Pentateuco não pode depender da sua datação, como
quiseram Wellhausen e outros, ou da sua utilidade como fontes históricas. Problemas de análise
filológico-literária puseram em questão a antiguidade de certos textos, pois autores mais recentes,
num fenómeno de imitação de textos antigos, podem escrever à maneira de autores antigos. Por
isso, é pacífico considerar tardia a redacção final do Pentateuco, supondo a reconstrução do
Templo (em 515) e o novo culto (pós-exílico) com influência sacerdotal. Hoje ousa-se dizer ainda
mais. “Demo-nos conta de que os critérios a partir dos quais se julgava poder datar os textos [do
Pentateuco] e fazê-los remontar a uma época muito antiga – a salomónica – eram falazes. Hoje a

149 Cf. J. BLENKINSOPP, “An Assessment of the Allegged Pre-Exilic Date of the Priestly Material in the
Pentateuch”, ZAW 108 (1996) 495-518.

150 W.H.C. PROPP, “The Priestly Source Recovered Intact?”, Vetus Testamentum 46 (1996) 458-478,
conclui interrogando-se: “Have I recovered the intact Priestly Source and thereby proven part of the Documentary
Hypothesis? Not really. Because my evidence is a disputed reading, the analysis has both the virtue (internal
consistency) and liability (untestability) of any circular argument... Rather a Redactor combined non-P with pre-
existing Priestly versions of the Creation, the Flood, the Patriarchs, the Liberation from Egypt, Sinai, the
Tabernacle and Israel’s adventures in the wilderness and most likely the Settlement, in addition to genealogies and
miscellaneous cultic ethical and legal materials. While we cannot absolutely prove that these formed a continuous
document, ideological, linguistic, stylistic and thematic consistency, along with internal cross references, narrative
flow and a sense of overall structure, suggest there really was a Priestly narrative document. But until it is truly
recovered intact, we shall not know for sure” (p. 476). Na p. 477 elenca as passagens por ele atribuídas ao estrato
sacerdotal da Tōrá.

151 G.J. WENHAM calcula que o chamado material “sacerdotal” no Génesis foi mais uma fonte de que se
serviu o J para produzir a sua obra e não uma inserção tardia numa composição essencialmente Jahvista; corrobora
esta sua tese na suposição largamente admitida de que o J não produziu o seu material a partir do nada mas usou
fontes anteriores orais ou escritas, incluindo genealogias (como Gn 4,17-26; 22,20-24) e narrativas (como Gn 2-3;
18-19 e 22): “The Priority of P”, VT 49 (1999) 240-258. Cf. D.M. CARR, Reading the Fractures of Genesis.
Historical and Literary Approaches (John Knox Press; Louisville, KY 1996) 43-140 [ver recensão deste em
Biblische Zeitschrift 43 (1999) 100-103].

152 F. GARCÍA LÓPEZ, El Pentateuco. Introducción a la lectura de los cinco primeros libros de la Biblia
(Introducción al estudio de la Biblia 3a; Verbo divino; Estella, Navarra 2003) 64; cf. pp. 62-66.
48

questão da datação deve pôr-se com grande circunspecção para cada texto”. Quanto aos
“projectos literários de grande envergadura, embora se possa manter a ideia de que alguns textos
são relativamente antigos, perdeu-se toda a confiança na existência, já numa época antiga, de
grandes sínteses históricas ou extensas obras literárias, como eram, por exemplo, na perspectiva
de von Rad, a obra do Jahvista e a do Elohista... O resultado mais importante do abalo registado
nos estudos sobre o Pentateuco deixa-se compendiar na seguinte afirmação: a história de Israel,
na sua forma ‘canónica’, isto é, constituída pela sucessão das épocas que aparecem no Pentateuco
- patriarcas, descida ao Egipto, nascimento de Israel, saída do Egipto, travessia do deserto,
conquista - encontra a sua primeira forma literária o mais cedo na época do desterro e,
provavelmente, mesmo na época pós-exílica... As construções históricas de vários estratos, as
grandes sínteses, não são imagináveis antes dos séculos VI e V” 153. Pelo menos, as primeiras
obras literárias de uma certa extensão não podem remontar a um época anterior ao séc. VIII a.C.
154
.
Não obstante, a datação tardia dos textos constitutivos do Pentateuco também é
problemática: por exemplo, como preencher o vazio deixado no período anterior ao Exílio sem
qualquer escrito? seria preciso dar uma explicação alternativa do desenvolvimento da tradição
oral ou escrita ou de ambas 155. A tarefa que enfrentam os que transladam para o período exílico
ou para mais tarde a compilação do conteúdo narrativo de Gn-Ex-Nm não pertencente a P é a de
proporcionar uma explicação alternativa plausível das elaborações literárias levadas a cabo
durante o período da monarquia. Há indícios arqueológicos que apontam para um volume
considerável de actividade literária desde Ezequias até Josias 156. “A datação [das fontes], cedo ou
tarde, continua a ser neste momento uma das questões mais polémicas no âmbito dos estudos do
Pentateuco” 157. Não sendo facilmente datáveis, os textos devem ser tomados seriamente por si
mesmos e pelo seu significado teológico, seja qual for o período histórico da sua proveniência 158.
O princípio de (e a tendência para) detectar multiplicidade de "fontes" dentro dum
determinado texto do Pentateuco pretendia resolver os problemas postos pela então constatação
de contradições, inverosimilhanças, repetições, duplicados, digressões e diversas 'incongruências',
afinidade, diferença ou variedade de ideias, temas ou estilos literários no texto. Mas hoje verifica-
se que tais fenómenos em certos casos são só aparentes e se devem à incompreensão do
significado e da função dos elementos literários e temáticos: não são tais e têm outras explicações
que não a de esses textos provirem de quatro "fontes" diversas, entrançadas umas nas outras
(interrompidas aqui e retomadas além) numa fase final de redacção do Pentateuco. Em alguns

153 A. de PURY, “Las dos leyendas sobre el origen de Israel (Jacob y Moisés) y la elaboración del
Pentateuco”, Estudios bíblicos 52 (1994) 96.97-98. Cf. também o interessante J. BLENKINSOPP, “An Assessment
of the Alleged Pre-Exilic Date of the Priestly Material in the Pentateuch”, ZAW 108 (1996) 495-518.

154 Cf. D.M. CARR, Reading the Fractures of Genesis. Historical and Literary Approaches (John Knox
Press; Louisville, KY 1996) 297-335.

155J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, p. 26.

156 Cf. D.W. JAMIESON-DRAKE, Scribes and Schools in Monarchic Judah (Almond Press; Sheffield
1991).

157 Cf. J. BLENKINSOPP, “El Pentateuco”, La interpretación bíblica, hoy (ed. J. BARTON) (Presencia
teológica 113; Sal Terrae; Santander 2001) 214.119 [original: The Cambridge Companion to Biblical
Interpretation (Cambridge University Press; Cambridge, U.K., 1998)].

158Cf. R. RENDTORFF, "The Paradigm...", p. 17 (cf. pp. 16-18).


49

casos podem dever-se à transmissão viva oral/livre do texto 159. As repetições tinham uma função
narrativa, por exemplo, de recapitular elementos-chave duma narração em pontos estratégicos ou
de produzir um desejado efeito literário, como o de gerar tensão abrandando momentaneamente o
andamento da narrativa. E dado que a ‘crítica das fontes’ assentava na observação de tais
repetições, um resultado da análise literária é reivindicar que alguns dos pretensos fundamentos da
crítica das fontes não tinham consistência.
Também é evidente que textos onde universalmente se assumia a existência de diversas
"fontes" ou diversidade de materiais são em realidade perfeitamente unitários e coesos do ponto
de vista literário e temático: por exemplo, Gn 2,4b-3,24 160, a narração do dilúvio 161 e Gn 27 (que
a "teoria documentária" clássica assumia ser um entrançado das versões J e E, e que, todavia, se
pode justificar como unidade literária e dramática 162). Por outro lado, essas características
narrativas, que induziram os críticos a identificar fontes justapostas, talvez não sejam mais do que
aquilo que se poderia esperar numa obra antiga. Fenómenos literários semelhantes observam-se
em obras historiográficas gregas primitivas, especialmente de Heródoto (aproximadamente 484-
425 a.C.) e dos seus quase contemporâneos Hecateu de Mileto (séc. VI a.C.) e Helânico de
Lesbos (séc. V a.C.) e também eles justapõem unidades narrativas e incorporam fontes nos seus
escritos, por vezes em grande escala e geralmente sem atribuição, ligadas por frases como "depois
destas coisas", "por aquele tempo" e semelhantes; em ambos os casos há uma significativa
componente de ficção, com discursos e diálogos postos na boca de personagens, procedimento
normal na historiografia antiga, e adoptando livremente motivos folclóricos; ambas se
caracterizam por digressões, algumas longas 163. O interesse desta colação aumenta, se se
considera que as datas desta historiografia grega são as frequentemente propostas para a redacção
final do Pentateuco. Um dos ingredientes do fracasso da “hipótese documentária” é a sua
incapacidade ou relutância em compreender e interpretar como o texto foi interligado; o mais que
conseguiu descortinar foram ‘costuras’ e ‘junções’. O magnífico manto foi visto como manta de
retalhos, sem atender primeiro à questão de como o manto foi tecido. Será preciso entender a
trama do tecido/texto.
A revisão da análise de trechos mais breves e a sua precisa delimitação literária desaguará,
também ela, na necessária superação da "teoria documentária": a percepção da unidade interna
desses trechos (coerência temática, sintáctica, estilística, semântica) e da função literária e
temática dos seus elementos dentro de cada trecho faz-nos progredir no conhecimento da sua
composição e mostra que dentro deles não é preciso falar de fontes (não as há lá) e que a
atribuição documentária habitual não se impõe. A unidade abrangente em contextos mais amplos e
mais englobantes, a articulação de pequenas unidades a outros contextos anteriores e seguintes
dentro do universo do Pentateuco manifestará o encadeamento unificador de diversas narrações,
cuja amplidão será preciso descobrir.

159Cf. P.J. van DYK, "Current Trends...", pp. 199-200.

160 Na medida em que demonstra a unidade literária dessa narrativa, o nosso estudo A visão das origens
em Génesis 2,4b-3,24 contribui também para a recusa da teoria documentária clássica e da crítica literária
fracturante e levada ao excesso.

161 O consenso dos críticos sobre a repartição desta narração por “fontes” era tão grande que o comentário
de G. Von RAD, Genesis, apresenta separadamente as duas versões (J e P).

162Cf. U. CASSUTO, The Documentary Hypothesis and the Composition of the Pentateuch, pp. 84-97; e
F.V. WINNETT, "Re-examining the Foundations", pp. 7-8.

163Cf. J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 34.37-38.


50

Tal unidade poderia às vezes deixar transparecer tensões, que talvez não terão passado
despercebidas aos últimos redactores e compiladores ou que para eles não constituíam
propriamente tensões. Isso supõe tomar a sério "o texto em si mesmo", sincronicamente, na sua
configuração final 164, iluminado por ambientes culturais e literários extrabíblicos similares. Não
podemos deixar endurecer as teorias das fontes de modo a tratar o texto conforme as nossas
hipóteses em vez de serem as hipóteses a ter em conta o texto 165. Uma teoria sobre a composição
do Pentateuco esclarece bem pouco a questão do crescimento do seu texto se não for antes uma
interpretação dele (que é a tarefa essencial da exegese) 166.
Convirá, portanto, para melhorar os resultados, conjugar e caldear uma análise sincrónica
nova com aspectos da tradicional análise diacrónica, em diálogo, interacção e colaboração
complementar entre os métodos históricos e os literários, pois até agora, lamentavelmente, os
estudos histórico-críticos relegavam para segundo plano os aspectos literários dos textos,
enquanto os estudos literários sincrónicos fazem o inverso 167. Ambos os enfoques são legítimos e
necessários. Nem há razão para não coexistirem pacificamente. Na articulada descoberta da
origem literária do Pentateuco, é de fomentar a coexistência entre diferentes sistemas
interpretativos, pois há aspectos da experiência religiosa e níveis de significado dos textos que só
são acessíveis também por meio duma aproximação histórico-crítica. Só assim poderão captar-se
os diferentes ecos do texto em toda a sua riqueza. É cada vez mais óbvio que o exclusivismo de
um método relativamente a outros prejudica a análise da complexidade dos temas e põe a nu a
fragilidade das hipóteses. Não se pode esquecer que o Pentateuco produz o seu significado como
um todo e através da articulação das suas partes na forma final existente. Como mínimo, o
tradicional estudo sincrónico não pode desviar a atenção do texto como uma entidade literária
com sentido enquanto totalidade, tal como foi reconhecida por Judeus, Samaritanos, Cristãos e
Muçulmanos.
Acima de tudo, é com a sua unidade complexa que o intérprete tem de se confrontar numa
abordagem literária e visão englobante, começando a análise pela forma final do texto 168. A
solução dos problemas não pode passar, nem por uma exegese que divide um texto de modo a
perder-se a relação das partes com o seu todo, nem pela concepção do Pentateuco como obra de
arte que seria fruto de um só autor. É que a combinação dos eventuais diversos materiais hauridos

164 Cf. R. RENDTORFF, "The Paradigm...", pp. 19-20.

165É uma justa queixa de H.H. SCHMID, Der sogenannte Jahwist, p. 12.

166 Uma revisão da recente investigação sobre o Pentateuco é oferecida por S.J. De VRIES, “A Review of
Recent Research in the Tradition History of the Pentateuch”, Society of Biblical Literature Seminar Papers (ed.
K.H. RICHARDS) (Scholars Press; Atlanta 1987) 459-502.

167 Cf. J.-L. SKA, Introduzione alla lettura del Pentateuco. Chiavi per l’interpretazione dei primi cinque
libri della Bibbia (EDB; Roma 1998) [versão portuguesa: Introdução à leitura do Pentateuco. Chaves para a
interpretação dos primeiros cinco livros da Bíblia (Loyola; S. Paulo 2003)]; IDEM, The Pentateuch (The
International Bible Commentary; Liturgical Press; Minesotta, Collegeville 1998); F. GARCÍA LÓPEZ, “De la
antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco”, Estudios bíblicos 52 (1994) 17-22.24-25.35; D.L. PETERSEN,
“The Formation of the Pentateuch”, Old Testament Interpretation: Past, Present, and Future. Essays in Honour of
Gene M. Tucker (eds. J.L. MAYS - D.L. PETERSEN – K.H. RICHARDS) (T & T Clark; Edinburgh 1995) 39-44;
cf. 31-45. Esta necessidade convida a tomar consciência dos limites de cada método e da complementaridade de
diferentes metodologias para interpretar o texto da forma mais perfeita possível.

168 Cf. T.C. ESKENAZI, “Torah as Narrative and Narrative as Torah”, Old Testament Interpretation: Past,
Present, and Future. Essays in Honour of Gene M. Tucker (eds. J.L. MAYS - D.L. PETERSEN – K.H.
RICHARDS) (T & T Clark; Edinburgh 1995) 13-30: “O livro da Torah como narração unificada está largamente
por estudar” (p. 28).
51

do tesouro da tradição oral e escrita não foi um processo mecânico que não tivesse permitido uma
nova configuração do material tradicional; por meio de novas conexões narrativas e com mínimas
interferências literárias, originou uma perspectivação teológica nova e remodelou o impacto total
do material, que transcende as fontes individuais e o seu conteúdo particular, de maneira que em
definitiva o todo se tornou maior do que a mera soma das suas partes 169. Esta consideração é
corroborada pela proposta de abordagem da "análise narrativa" do texto bíblico, que também
contribui para a crescente desilusão dos intérpretes relativamente às "técnicas de escavação" da
‘crítica das fontes’ e dos métodos que concentram os seus esforços na procura da
correspondência do narrado pelo texto a factos objectivamente sucedidos 170.
No AT somos confrontados com obras anónimas e não é sempre claro se elas têm origem
em personalidades criativas singulares (autores), grupos ou círculos de tradição (oral ou escrita)
171
. Nyberg e Engnell, da escola escandinava, diziam que o processo de transmissão oral tinha um
efeito parecido ao de ‘forno de fundição’, fazendo que a tradição que desaguava num certo texto
se tornasse tão fundida dentro de si que quaisquer estratos de significado provenientes de diversos
períodos não se poderiam distinguir um do outro. A implicação metodológica desta realidade
deveria ser a cautela no uso da “crítica das fontes” em favor da “história das tradições”.
O conjunto de dados literários que enfrentamos ao ler o Pentateuco (os duplicados, as
repetições, os paralelos de material legal e narrativo, as constantes e disparidades de estilo, de
língua, de vocabulário, de exposição, de conceitos e de inspiração teológica caracterizantes)
delatam, por uma parte, estreito parentesco, por outra, incongruências entre os diversos blocos de
material literário. E estes dados e constatações, tomados em conjunto, deixam-nos concluir que
os redactores ou últimos compiladores da obra se serviram de várias tradições preexistentes em
estado escrito ou oral.
Não se nega, pois, que a "hipótese documentária" assente na observação de factos
objectivos. Quando usou uma crítica sã, pôs em relevo não só a dimensão histórica mas também a
existência de ambientes portadores de fé e de esperança. Aceitando esse olhar crítico no âmbito
dum novo clima e movimento do estudo da Bíblia, a sua compreensão só ganhou, podendo evadir
o concordismo e literalismo e valorizando os seus aspectos literários e humanos. A proposta de
etapas na composição do Pentateuco dava a este conjunto literário uma espessura histórica que
não podia ter no quadro da autenticidade mosaica entendida em sentido estrito 172. Se a "hipótese
documentária" aparece hoje claramente como imperfeita e só poderia sobreviver muito alterada,
isso não significa que se possam ignorar os resultados da investigação crítico-literária dos dois
últimos séculos 173. Dominou os estudos do Pentateuco até à década de 1990 e mantém a sua
validade em muitas observações e decisões, dependendo da sua manipulação e das consequências
que delas se tirem 174. Nem tudo o que defendeu a crítica literária no passado está superado e foi

169Cf. D.J.A. CLINES, The Theme of the Pentateuch, pp. 9-12.22-23.82. Ver abaixo.

170Cf. J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, pp. 27-28.

171Cf. P.J. van DYK, "Current Trends in Pentateuch Criticism", Old Testament Essays 3 (1990) 194.

172Cf. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse documentaire", Le Pentateuque. Débats et


recherches. XIVe Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P. HAUDEBERT) (Cerf; Paris 1992) 19-20.

173Cf. J. BLENKINSOPP, The Pentateuch, p. 28.

174"...The historical-critical method... like the genetic method, is quite unexceptionable - in its place; that
is, provided it recognizes and respects its limitations" (D.J.A. CLINES, The Theme of the Pentateuch, p. 14).
52

negativo, nem tudo o que propõe hoje pode ser aceite. De facto, nenhum exegeta sincrónico
contestaria a evidência de que Gn 1-2,4a foi escrito por um autor diferente do que redigiu 2,4b-
3,24 e que constituem duas "narrações de origem" originariamente diversas, fechadas e com
sentido completo em si mesmas, das quais a segunda não seria o seguimento narrativo da
primeira; e se se sente que o critério que atende aos nomes divinos para a divisão de
"documentos" paralelos está ultrapassado 175, pode valer para ajudar a delimitar certos blocos de
tradição unitários; e até é indiscutível que o Pentateuco seja um amálgama de materiais
variegados. Ora, isso é mérito e resultado dos trabalhos da "teoria documentária". O que se
contesta é que cada uma dessas duas narrações em Gn 1-3 seja o início de uma "fonte" ou
"documento" que depois teria continuidade e descontinuidade por aí fora ao longo do Pentateuco.
Mérito da "teoria documentária" também é o ter evidenciado decisivamente que o
Pentateuco não é uma obra literária e historicamente unitária. Aparece antes como "o produto
dum processo redaccional extremamente complexo", longo e enredado 176; usando um trocadilho
(que deve ser bem entendido!) pode-se dizer que literariamente o Pentateuco não é Mosaico: é
antes um mosaico de várias narrações concatenadas ao longo de muitas gerações. Era, pois,
justo pensar em 1979 que “qualquer intento de oferecer uma abordagem diferente ao estudo do
Pentateuco, sem ter em consideração as conquistas positivas dos métodos histórico-críticos nos
últimos duzentos anos, é ingénuo e arrogante” 177. Nem admira, portanto, que a teoria tenha
chegado a conquistar a simpatia dos estudiosos de todas as confissões religiosas.
O que se discute é a base para a diferenciação, designação e existência de (só) quatro
"fontes/documentos" paralelos originariamente autónomos com estilo literário e vocabulário
próprio e dos quais se pudesse descobrir o fio ou a sequência narrativa, literária e temática
continuada, supondo que (em sentido lato) contassem a mesma história e/ou factos relacionados e
comparáveis e que tivessem a amplidão de todo o Pentateuco já antes do Exílio, com um
esqueleto estrutural (presentemente entrelaçado e interrompido) e as conexões ou a continuidade
teológica desenvolvida entre os vários temas ao longo dos vários livros em diversos pontos do
Pentateuco 178 e dos quais até se pudessem individualizar as características literárias e teológicas
próprias, bem como a intenção dos respectivos autores 179. Esse problema põe-se particularmente

175Cf. U. CASSUTO, The Documentary Hypothesis..., pp.15-41; F.V. WINNETT, "Re-examining the
Foundations", pp. 8-10.

176 Cf. J.A. SOGGIN, Introduzione all'AT, p. 124.

177 B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture, p. 127 (cf. pp. 39-41.119-128).

178Contra J. van SETERS, "The Yahwist as Theologian? A Response", JSOT 3 (1977) 15-16.

179Diversos intérpretes expuseram-nas amplamente com aprovação geral. Por exemplo, E.H. MALY,
Jerome Biblical Commentary, pp. 3-4; H. CAZELLES, "La Torah ou Pentateuque", Introduction à la Bible, I, pp.
348-380; J.A. SOGGIN, Introduzione all'AT, pp. 145-203; W.H. SCHMIDT, Introducción al AT, (Sígueme;
Salamanca 1983) 97-200; E. TESTA, Genesi, pp. 3-9; J. BRIEND, Une lecture du Pentateuque (Cahiers Évangile
15; versão esp.: El Pentateuco [Cuadernos bíblicos 13; Estella 1976]; versão port.: Uma leitura do Pentateuco
[Difusora bíblica, nº 14]); G. von RAD, El libro del Génesis (Sígueme; Salamanca 1977) 17-35; IDEM, Estudios
sobre el AT, pp. 55-76.421-444; J. SCHREINER (ed.), Parola e messaggio (Paoline; Bari 1970) 147-177.178-
194.265-287.363-390; D.A. KNIGHT, “The Pentateuch”, The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters (eds. D.A.
KNIGHT & G.M. TUCKER) (Society of Biblical Literature 1; Fortress Press - Scholars Press; Minneapolis –
Atlanta 1985) 263-296, contendo uma síntese da evolução da ‘teoria documentária’ e da sua dissolução. Particular
relevo às características de cada uma das supostas 4 “fontes” dá R.E. FRIEDMAN, “Torah (Pentateuch)”, The
Anchor Bible Dictionary, VI (ed. D.N. FREEDMAN) (Doubleday; New Yorh – London – Toronto – Sydney –
Auckland 1992) 609-618. O estudo de H.W. WOLFF, “The Kerygma of the Yahwist”, Interpretation 20 (1966)
131-158 [original em Evangelische Theologie 24 (1964) 73-97] tornou-se tão influente nos estudos subsequentes
53

para a existência do "J", que – julgava-se – teria um esquema global, repleto de trechos de ligação
e com trama ou tema coerente, já no princípio da monarquia. Hoje não se pode aceitar a ‘teoria
documentária’ sem introduzir-lhe modificações que tocam os seus fundamentos. Ora, isso é o
mesmo que dizer que ela é uma excessiva simplificação da composição literária do Pentateuco e
insuficiente para dar conta da sua complexidade 180. Atendendo ao longo tempo que certamente
durou a variada redacção dos textos do Pentateuco, seria irrealista vê-lo como resultado de só
quatro fontes.
Sem pretender gizar uma explicação alternativa à da ‘hipótese documentária’, podemos
concluir genericamente. O texto actual do Pentateuco tem por trás de si uma história literária, mas
não se podem explicar adequadamente todos os seus passos. Conhecemos a forma definitiva do
texto, mas não possuímos dados seguros ou suficientes para pormenorizar o percurso completo
das complexas etapas para a fixação definitiva, até porque para os mesmos fenómenos literários
há diferentes modelos explicativos. Apesar de uma unidade temática facilmente perceptível e de
um fio condutor do tema geral através de múltiplos materiais tradicionais que compõem o
Pentateuco, salta aos olhos a grande desproporção relativamente à exposição do mesmo: uma
acumulação prodigiosa e uma intricada combinação de diversos materiais ao serviço deste
pensamento linear e desta única finalidade.
Semelhante modo de organizar esses materiais denota um estádio terminal, um ponto de
chegada. Esta apresentação barroca do tema central no quadro dum imenso amontoamento de
elementos heterogéneos não pode ter sido feita de jacto, e literariamente não pode ser
considerada o fruto dum amadurecimento homogéneo. É uma realidade literária que conheceu
uma história lenta e complexa com etapas sucessivas de formação e compilação. Se, a título
exemplificativo, atentamos nas tradições patriarcais de Gn 12-50, percebe-se suficientemente que
são narrações de acontecimentos com um fundo histórico, primeiramente, durante séculos,
transmitidos por via oral. Cada grupo ou tribo patriarcal foi conservando a recordação longínqua
do seu antepassado e das personagens ilustres da sua história. Durante a progressiva fusão de
distintos grupos num só povo/nação, estes relatos foram ensamblados e organizados por escrito,
para remontar às origens do povo e assim consciencializá-lo das suas raízes e ascendência. Nesse
trabalho de montagem, factos, episódios, personagens, figuras foram excluídos, acrescentados,
ampliados; e em todos os períodos da história israelita, as tradições, orais e escritas, foram
comentadas, combinadas, cruzadas, alargadas e retocadas, para se adequarem a novas situações.
Por outras palavras, o Pentateuco não é obra de um só autor nem o produto duma só época, mas
uma construção edificada através dos séculos sobre a base de diversas tradições,
conservadas por e dentro de variados círculos de fé (culturais, religiosos e geográficos) do povo
de Israel, e com a incorporação de fontes literárias plurais (muitas mais do que quatro), em que
tomaram parte sucessivas gerações de pensadores, escritores, compiladores e redactores israelitas
181
.
O dado mais importante desta trajectória pela investigação crítica da composição literária
do Pentateuco é o de evidenciar que estes textos não são obras solitárias do rasgo genial de
quatro ou mais autores mas têm carácter histórico e reflectem as origens da história e cultura
concreta dum povo: são pedaços da vida de muitas pessoas e de vários grupos, recolhidos,
interligados e incorporados no conjunto do Pentateuco, em forma de história da relação do povo

do Pentateuco que era citado em todas as bibliografias de relevo e traduzido para um círculo mais alargado de
leitores.

180Cf. J. BRIEND, "Lecture du Pentateuque et hypothèse documentaire", p. 10.

181 Para a evolução histórica da crítica literária das fontes do Pentateuco, cf. A.F. CAMPBELL – M.A.
O’BRIEN, Sources of the Pentateuch. Texts, Introductions, Annotations (Fortress Press; Minneapolis 1993) 1-20.
54

com Deus, por pessoas preocupadas em conservar viva a memória do povo. Dir-se-á que isto é
hoje um dado adquirido na compreensão dos textos bíblicos. Sem dúvida. Mas é mérito e fruto
gostoso do longo e sofrido trabalho de análise histórico-crítica e literária dos textos,
nomeadamente do Pentateuco.

4. Valor teológico do Pentateuco como unidade canónica

O Pentateuco é o resultado não só de uma composição literária e de um devir histórico, mas


também de um processo espiritual e canónico. Por conseguinte, é necessária uma leitura integral,
que atente na sua mensagem teológica. Como produto literário da civilização do antigo Próximo
Oriente, o Pentateuco tem valor histórico, arqueológico, topográfico e filológico. Todas as
variadas formas de expressão literária conservadas no actual Pentateuco têm paralelos em
semelhantes géneros de literatura do antigo Próximo Oriente: mitos, lendas, contos populares,
epopeia religiosa, teofanias, leis, regras cultuais, discursos exortativos... Ao leitor crente, porém,
interessa sobretudo do ponto de vista teológico, enquanto força inicial da religião do Deus
verdadeiro. Da questão sobre a autoria e as origens literárias do Pentateuco desemboca-se
espontaneamente noutra, porventura mais interessante: qual o sentido teológico dos textos do
Pentateuco ao serem coligidos pelo seu redactor ou compilador final, que é o responsável pelo
texto actual e, portanto, o seu autor? O Pentateuco é o pórtico do AT, enquanto reflecte a fase de
formação do Povo consciente de ser eleito de Deus e mediador de salvação para todos os povos.
Porque não veicula meramente informação mas apela para o assentimento religioso, tem de ser
também abordado e entendido na sua forma final, ‘canónica’, no seu papel único para as
comunidades, para as quais o texto tem autoridade 182.
Como resulta da análise literária do texto, a teologia de Israel, devido à sua íntima ligação
com a história, permaneceu sempre viva e vivificadora de novas situações. As várias teologias do
Pentateuco, testemunhadas nos diversos círculos de tradição e nas respectivas narrações,
reflectem o diálogo vivo e progressivo de Israel com o seu Deus 183. E apesar da ênfase específica
de cada teologia e de cada tradição, justificadas pelas diferentes situações históricas, geográficas,
sociais e circunstanciais, do todo emerge e afirma-se uma unidade que transparece nalguns filões
mais relevantes - povo, promessa, terra, libertação, eleição, aliança, lei - que vão ligando a um
determinado tema os vários materiais literários e conferem ao Pentateuco uma razoável coerência
interna. O Pentateuco é um todo que faz sentido e tem no conjunto um significado próprio.
Mais concretamente, este factor que define e caracteriza a unidade e o sentido do
Pentateuco é o íntimo nexo entre Lei e história 184. O judaísmo chamou ao Pentateuco Tōrá. Mas
esta palavra hebraica diz muito mais do que Lei. É história de salvação. Para a Tōrá, a salvação
não está num código de exigências. É o dom de Deus ao seu povo, que se sente corresponsável
correspondendo com o cumprimento da vontade divina dentro da aliança 185. A teologia da Lei do
povo estava determinada pela sua teologia da história. Diferentemente do que conhecemos nos
povos vizinhos do antigo Próximo Oriente e nos códigos modernos, Israel não tinha um código
legal com existência autónoma e apresentado num quadro sistemático; inseriu-o harmónica e

182 Cf. J.-L. SKA, “La structure du Pentateuque dans sa forme canonique”, ZAW 113 (2001) 331-352.

183 Cf. E.H. MALY, Jerome Biblical Commentary, p. 4.

184 Cf. F. GARCÍA LÓPEZ, “Narración y ley en los escritos sacerdotales del Pentateuco”, Estudios
bíblicos 57 (1999) 271-287; Equipes de recherche biblique, La Loi et les lois dans l’Ancien Testament. Pour
parcourir l’AT, III (Paris 1997).
185 Cf. H. CAZELLES, “Pentateuque”, Supplement au Dictionnaire de la Bible, 7 (1963-1964) 736-858.
55

organicamente num amplo quadro histórico 186. A “Lei” de Israel era concebida e apresentada
como parte da sua história salvífica 187. Para o comprovar, basta ter presente que o material
legislativo aparece sempre integrado em textos narrativos históricos. Além disso, os textos
legislativos são pouco numerosos até ao meio do livro do Êxodo (e o primeiro corpo de leis é
precisamente o Decálogo e o "código da aliança" em Ex 20-23), onde se narram as origens da
humanidade, a história dos "Patriarcas'' e de Moisés como grande introdução à Lei de Moisés. A
narrativa interfere constantemente no enunciado das leis, de tal modo que o entrelaçado das
narrações e das leis é o traço mais característico do Pentateuco. A "Lei" implicava e supunha a
história de forma interactiva e só se entendia na história concreta do povo para a iluminar. A Tōrá
serviu a Israel para encontrar a sua identidade ao longo da história enquanto povo de Deus, num
caminho aberto por Deus 188.
As prescrições legais vinculadoras para Israel representavam a sua resposta à intervenção de
Yahvé na sua história e em seu favor. E como esta intervenção histórica se repetiu, as prescrições
legais, estando 'situadas' dentro deste quadro histórico, tomaram um carácter dinâmico: eram uma
parte da vida nacional de Israel. Por isso, apesar do papel quantitativamente menor que
desempenham as secções narrativas do Pentateuco, e apesar do seu carácter episódico, estão na
base da auto-concepção de Israel nas suas relações com Deus. A história ilustrava a eleição divina
de Israel como uma nação teocrática, cuja constituição é a "Lei". Desta forma, a lei está para a
história como a palavra para os factos. A Lei aparece com a função da palavra que responde aos
factos ou os interpreta. O Pentateuco relata as origens da história de um povo, impregnada pela fé
da presença de Deus e à qual quis corresponder com o cumprimento duma Lei atribuída a Deus
189
. Efectivamente, o Pentateuco é um tecido de factos e de palavras que explicam os factos:
.. é a história sincronizada com a sua interpretação pela palavra e pela Lei;
testemunha a intervenção de Deus na história e a resposta do homem a Deus pelo
cumprimento da Lei 190.
A Lei sem narrativa é difícil de cumprir. A narrativa sem a Lei tem menos conteúdo. A
narrativa justifica a necessidade da Lei.
Todavia, a este ponto conviria saber: porquê o corte do primeiro bloco canónico de Israel
foi feito pela tradição no fim do Deuteronómio?
Do ponto de vista da sequência histórica, teria sido porventura mais lógico incorporar o
livro de Josué na Tōrá e inseri-lo entre Números e Deuteronómio; e até se poderia ajuntar Juízes
e excluir Deuteronómio. Sob certos aspectos, o Deuteronómio integra-se mal no Pentateuco e é
óbvio que o núcleo central dos três discursos mais a bênção de Moisés originariamente terá sido
autónomo 191. O seu estilo típico em tom de pregação não se encontra noutros livros da Tōrá. O
seu conteúdo não se apresenta como sequência mas como retomada do que precede. É um

186 Cf. H. CAZELLES, "La Torah ou Pentateuque", Introduction à la Bible, I, pp. 281-282.

187Ao contrário da tradição judaica, a tradição cristã sempre admitiu que a Tōrá era mais história do que
lei (esta estaria inserida na história). Sobre este assunto B.J. DIEBNER, Le roman de Joseph - un midrash sur la
Torah du judaïsme postexilique (1989) afirma que o Pentateuco terá começado com núcleos jurídicos, que depois
foram crescendo em forma homilética (discursos), como há muito se pensa para a formação do Dt; a maior parte
dos textos de Gn seriam midrašim pós-exílicos sobre a Tōrá.

188 Cf. Th.W. MANN, The Book of the Torah. The Narrative Integrity of the Pentateuch (John Knox Press;
Atlanta 1988).

189 Cf. H.-J. KRAUS, “Gesetz und Geschichte”, EvTh 11 (1951/52) 415-428.

190 Cf. G. von RAD, Teología del AT, I (Sígueme; Salamanca 1969) 177-379.
56

concentrado da Lei, feito de narração e de mandamentos. Por aí, os compiladores não seriam
levados a inseri-lo na série dos primeiros quatro livros, mas a pô-lo à parte. Parece, porém, que se
deixam encontrar no texto as costuras do processo de inserção do Deuteronómio no Pentateuco:
o seguimento normal e esperado de Nm 27,12-23 (anúncio da morte de Moisés e investidura de
Josué) seria Dt 34, que conta a morte de Moisés. Ora, esta passagem não tem o estilo geral do
Deuteronómio. Então poderíamos pensar que entre Nm 27,23 e Dt 34 (que primitivamente
poderia pertencer a Nm) foram intercaladas as prescrições legislativas de Nm 28-36 (que visavam
a condição futura de Israel na Palestina) e o Deuteronómio todo, como desenvolvimento desta
primeira inserção. É um acrescento narrativo e simultaneamente legislativo. Se o processo de
articulação do actual conjunto aconteceu assim, a influência do Deuteronómio na redacção da
‘obra histórica deuteronomista’, conforme à hipótese de M. Noth, poderá ter sido exercida nos
compiladores, seja antes, seja depois da posição que o Dt ocupa actualmente.
O corte entre Josué e o que precede está marcado pela travessia do Jordão, acompanhada
pelo fim do maná. Os compiladores dos escritos canónicos neste corte terão seguido como
critério histórico e teológico o período fundador constituído pelo tempo anterior à entrada na
Terra onde Israel viria a ser sedentário e a viver com uma identidade nacional. A história narrada
no Pentateuco não é toda a história de Israel, mas só o seu princípio. É a história das origens de
Israel entroncada na história das origens da humanidade. Quer justificar teologicamente a vida e
história do Israel actual narrando as suas origens antes de – e até ao momento de – entrar na Terra
onde passará a viver, concentradas na história dos "pais" (Gn) e de Moisés (Ex-Lv-Nm-Dt), de
modo que as origens de Israel apareçam como fundamento teológico da vida do Povo que se
sentia eleito por Deus. O Pentateuco enquanto narrativa apresenta-se como promessa aberta ao
futuro, sem cumprimento, como um programa a preencher 192.
Mas os compiladores terão tido outra grande razão para fazerem o grande corte no fim do
Dt. Se queriam fazer o corte no fim da vida de Moisés, é verdade que a nível histórico e literário o
Dt não é de Moisés. Mas eles terão querido que todos os materiais legislativos fossem anteriores
à entrada em Canaan e gozassem da autoridade de Moisés. É por demais sabido que em Israel se
compuseram leis em todos os períodos. Mas, como o material legislativo é considerado muito
santo, foi todo integrado no Pentateuco, para lhe conferir a autoridade de Moisés. Isso permite só
por si compreender a ausência de leis nas narrativas sobre Josué, Samuel e David, apesar de o Dt,
que é, pelo menos, da época do Exílio, ter sido redigido depois do tempo histórico dessas
personagens. Que todo o material legislativo se concentre na Tōrá indica o seu carácter
normativo. Se o Pentateuco é um programa aberto ao futuro, o seu aspecto legislativo –
indissociável do narrativo – indica como viver essa espera e essa esperança. À espera do
cumprimento das promessas, há uma tarefa a desenvolver. E o Dt constitui um modelo novo para
uma situação nova: as mesmas exigências que no Sinai, mas relidas a uma luz nova. Ao regresso
do Exílio não era o templo que constituía o motor da identidade do povo, tanto mais que muitos
israelitas estavam na diáspora. Era preciso, então, encontrar uma «força espiritual» mobilizadora,
capaz de se sobrepor à decadência e de inverter o movimento de desânimo. Onde encontrar esta
força? A resposta veio sob a forma da Tōrá. Ela não incluía a conquista de Canaan por Josué, nem

191 Segundo a hipótese de M. Noth, que continua a resistir à crítica literária, o Deuteronómio terá servido
de fundamento e critério literário-teológico à ‘obra histórica Deuteronomista’. Alguns exegetas supõem que a
tradição judaica separou a um dado momento a Tōrá dos Profetas anteriores. Ver a explicação que desse corte dá
J.A. SANDERS, Torah and Canon (Philadelphia 1972) 44-53 [tradução francesa: Identité de la Bible. Torah et
canon (Lectio divina 87; Cerf; Paris 1975)].

192 Cf. J. TRUBLET, "Constitution et clôture du canon hebraïque", Le canon des Écritures. Études
historiques, exégétiques et systématiques (dir. Ch. THEOBALD) (Lectio divina 140; Cerf; Paris 1990) 85-92. Ele
recusa a ideia de um ‘Tetrateuco’, bem como a do ‘Hexateuco’ de G. von Rad.
57

a conquista de Jerusalém por David. Ela sugeria que o que o povo não podia perder nunca era o
Sinai 193.
A Tōrá deveria ser a Constituição ou Lei fundamental deste povo eleito, que regulava o seu
relacionamento com Deus e dos membros uns com os outros. Se, pelo anúncio de acontecimentos
que têm a plena realização só fora dele e pelo esqueleto cronológico ou por alguns temas que
apontam para um termo fora dele, se poderia deduzir que o Pentateuco é o início duma ambiciosa
história nacional, a decisão de criar um corpo literário distinto com o final na morte de Moisés
implica a designação da idade mosaica como uma narrativa constitutiva e normativa, com um
status autorizado superior aos Profetas e aos Escritos no Judaísmo e único na comunidade
samaritana (os Profetas foram vistos como os arautos da importância central e da seriedade da
Tōrá) 194. A natureza canónica desta criação literária distinta do que segue parece marcada pela
pessoa de Moisés. A afirmação no fim do Pentateuco de que desde a morte de Moisés não surgiu
em Israel nenhum profeta como ele (Dt 34,10) sugere uma preocupação de definir a revelação
mosaica como qualitativamente diferente e primariamente normativa. Ver os confins do primeiro
texto canónico de Israel do Gn ao Dt é sublinhar como ideia essencial a promulgação da Lei de
Moisés como resposta à aliança com Deus. A configuração canónica do Pentateuco que deixa
Israel fora e no limiar da Terra põe a ênfase na proeminência da Tōrá mais do que no território.
Com a morte de Moisés diante do Jordão, ao fim da Tōrá, ficava constituído o povo: este podia
continuar na terra prometida a história começada fora dela. Isto significaria que, para os editores
da Tōrá com os actuais confins, esse texto constituía os fundamentos da vida de Israel diante de
Deus e fornecia uma instância crítica de como deveria ser entendida pelo povo da aliança a
relação com o seu Deus.
Assim significava-se que o período fundador, das origens da história de Israel até entrar na
Terra, narrado na Tōrá, tem importância especial: o tempo vivido dentro da Terra e os escritos
canónicos posteriores já são outra coisa; o mais importante e essencial são as raízes. Em
consonância com esta interpretação, verificamos que o corpus canónico dos N biîm/Profetas, que
e

inclui a colecção dos profetas escritores unida à dos chamados ‘profetas anteriores’, aparece, no
seu estádio final, encaixilhado por Js 1,7 e Mal 3,22, numa ‘inclusão semítica’, em que o princípio
e o fim do corpus remetem para a Lei de Moisés: “tem cuidado em cumprir toda a lei (tōrá) que
te prescreveu o meu servo Moisés” e “lembrai-vos da lei (tōrá) de Moisés, meu servo, a quem
prescrevi no Horeb preceitos e normas para todo o Israel”. Segundo isto, toda a história pós-
mosaica de Israel e todo o corpus profético, que resultou de um processo de canonização,
deveriam ser lidos como uma unidade orientada para a Tōrá de Moisés, precedente. A ‘inclusão
semítica’ mencionada não só assinala os limites do corpus profético, mas também o liga à Tōrá.
Uma vez que a Tōrá constituiu Israel como povo escolhido de Deus, o corpus profético que a
segue comenta, na parte histórica (“profetas anteriores”), que Israel fracassou no seu papel
especial de povo de Deus, e mostra, como consequência, na parte profética (“profetas
posteriores”), como Deus o castigou por meio dos povos pagãos, mas que se aproximava um
tempo de mudança em que Israel seria reunido e os pagãos julgados: muitos deles adeririam ao
povo eleito e ao seu Deus 195.

193 Cf. J.A. SANDERS, Identité de la Bible. Torah et canon (Lectio divina 87; Cerf; Paris 1975) 72-78.

194 Nessa triple divisão da Bíblia hebraica vai-se do mais importante ao menos importante. Dito de outra
maneira, no seio deste corpus reina uma certa hierarquia: os livros destes três conjuntos estão organizados em
círculos concêntricos, tendo ao centro a Tōrá e na periferia textos que gozam de autoridade menor.

195 Cf. H. SIMIAN-YOFRE, “I profeti di fronte a Mosè (alla Torah)”, Torah e kerygma: dinamiche delle
tradizioni nella Bibbia. XXXVII Settimana Bíblica Nazionale, Roma 9-13 Settembre 2002 (eds. I. CARDELLINI –
E. MANICARDI), Ricerche storico-bibliche 16 (2004) 25-43.
58

Ver a conclusão do Pentateuco na morte de Moisés até permite a sua leitura como biografia
de Moisés, com a longa introdução do livro do Génesis 196. O prestígio de Moisés, pouco em
evidência nos escritos pré-exílicos fora do Pentateuco, é claramente relacionado com a
importância das leis como constituição do novo Estado de Israel recentemente fundado após o
regresso do Exílio 197. Se, na sua forma definitiva, a Tōrá foi constituída e promulgada nas
circunstâncias históricas e políticas da Judeia como província do império persa, após o regresso
do Exílio (538 a.C.), no intuito de também essa província ter um texto normativo com força de
lei, a Tōrá resulta outrossim da procura de identidade do povo, como um texto onde os israelitas
diziam a própria identidade: a Judeia não gozaria de autonomia política, pois residiam lá
estrangeiros 198. Daí que todas as leis, independentemente de quando foram promulgadas, são
feitas remontar à época normativa do deserto. E o arranjo do Pentateuco em cinco livros, com o
Lv como painel central, longe de ser um traço formal ditado pela conveniência de adequação à
capacidade ou extensão material dum rolo, tem significado estrutural e de conteúdo, reflectindo a
grande importância da lei ritual neste período tardio 199.
Esta parece uma justificação para o facto de o judeo-cristianismo ter como primeiro bloco
canónico uma Tōrá-Pentateuco e não um Hexateuco ou um Tetrateuco.
Aqui deve-se precisar que na Bíblia hebraica o Pentateuco é chamado Tōrá, que
originariamente significava “ensinamento, instrução, orientação” (o conteúdo da revelação de
Deus ao povo, tudo o que emana de Deus, a sua Palavra criadora e tudo o que a exprime,
especialmente os escritos) e não “lei” como se traduz habitualmente 200. Os preceitos e mandatos
contidos na Tōrá deviam ser entendidos como linhas normativas e orientadoras sobre como os
israelitas podiam moldar a própria vida nas práticas rituais, cultuais, sociais, morais e económicas,
para ela estar em conformidade com a vontade de Deus libertador:
Quando todo o Israel comparecer diante do Senhor, teu Deus, no lugar por Ele escolhido, proclamarás esta lei/instrução
a todo o Israel. Congregarás o povo, homens, mulheres e crianças e o estrangeiro que estiver nas tuas cidades, a fim de
escutarem, aprenderem e reverenciarem o Senhor, vosso Deus, e cumprirem todas as palavras desta lei/instrução. Os filhos
deles, que ainda não a conhecem, hão-de ouvi-la e aprenderão a reverenciar o Senhor, vosso Deus, enquanto viverdes na
terra de que ides tomar posse (Dt 31,10-13).
Os primeiros cinco livros canónicos são Tōrá válida para qualquer momento da história.
Contando o passado normativo o povo da aliança dava testemunho de quem é Yahvé e de como
se pode responder à sua acção salvífica. O caminho do deserto para a posse da terra torna-se
desta maneira o espaço simbólico apropriado para esclarecer o significado da “Lei”, que deve

196 Cf. D.T. OLSON, Deuteronomy and the Death of Moses. A Theological Reading (OBT; Fortress;
Minneapolis 1994).

197Cf. P. BEAUCHAMP, "Le Pentateuque et la lecture typologique", Le Pentateuque. Débats et recherches.


XIVe Congrès de l'ACFEB, Angers (1991) (dir. P. HAUDEBERT) (Lectio divina 151; Cerf; Paris 1992) 241-259.

198 Cf. O. ARTUS, Le Pentateuque (Cahiers évangile 106 ; Cerf ; Paris 1998) 7-12.

199Se se poderia pensar que razões práticas terão ditado a divisão em vários rolos (o manejo de todo o
Pentateuco num só rolo, que rondaria os 33 m, tornar-se-ia difícil), não parece tratar-se duma divisão puramente
mecânica de acordo com a extensão dos rolos, pois Lv não é muito mais do que a metade de Gn. É possível que Gn
e Dt existissem num tempo como textos independentes, embora talvez não na sua forma actual. Mas isso não pode
ser pressuposto para os outros três, que não dão a impressão de composições autónomas: Lv e a primeira parte de
Nm (até cap. 14) continua a narração dos acontecimentos do Sinai encetados no Ex (cf. J. BLENKINSOPP, The
Pentateuch, pp. 42-47.51-52).

200 Cf. G. LIEDKE – C. PETERSEN, “Tōrā Instrucción”, Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, II (eds. E. JENNI – C. WESTERMANN) (Cristiandad; Madrid 1985) 1292-1306.
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entender-se como Tōrá, isto é, como ensino revelado. Por isso é que em Ex, Lv, Nm e Dt foram
recolhidos os diversos corpos legislativos que se tinham formado em diferentes épocas 201.
Só quando se fizeram cumprir à risca esses preceitos é que o termo Tōrá assumiu o
significado erróneo de “lei”. A tradução de Tōrá por “Lei” também oculta o seu carácter
narrativo. Mesmo as leis e cânticos estão acuradamente incorporados numa narrativa e recebem a
sua significação do contexto narrativo, que tem valor de arquétipo ou modelo narrativo: o género
legislativo está incluído no género narrativo, o narrativo explica o legislativo, a história serve de
fundamento à lei 202. Assim, o entendimento (secundário) de Tōrá como “Lei”, como prescrição a
pôr em prática, está cheio de armadilhas para a compreensão da revelação divina na tradição de
Israel. Já a sua tradução nos Setenta por nómos, “lei”, despista o leitor; induz a incluir dentro da
ideia de lei divina a ideia dum imperativo a partir de cima 203. Se, além disso, lhe associamos
conceitos modernos de moral (por exemplo, a filosofia moral de Kant), encostamos a ideia de
heteronomia à de revelação e corremos o risco de entender a experiência do povo bíblico como
submissão a um comando superior, externo. Nada mais desorientador do que isto para perceber a
significação e a ideia que ele teve da Tōrá divina. A finalidade da Tōrá não é fazer um povo
eticamente perfeito, mas levar o povo a descobrir quem é o seu Deus ou simplesmente que o seu
Deus é Yahvé, o seu Senhor.
Para fazer-lhe justiça, não basta dizer que é mais extensa do que um mandamento moral
(alargando-se a todos os domínios da vida do indivíduo e da comunidade, sociais, morais,
jurídicos, cultuais...) e que se aplica a todo o sistema legislativo que a tradição do AT associou a
Moisés. Não é irrelevante o facto de os textos legislativos do AT serem colocados na boca de
Moisés e no quadro narrativo da permanência no Sinai. Isto significa que a “instrução” é vista
como organicamente em conexão com os acontecimentos fundadores, simbolizados pelo Êxodo
do Egipto. E, sob este ponto de vista, a fórmula introdutória ao decálogo constitui uma ligação
essencial, relacionando a história do Êxodo com a proclamação da “Lei” que segue
imediatamente: “Eu sou Yahvé, teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, da casa da escravidão”
(Ex 20,2). O qual significa que a memória da libertação qualifica intimamente a “instrução”: o
decálogo foi visto como a lei dum povo redimido. Tal ideia associa-se mais à dependência (da
vontade de Deus) e é alheia a qualquer conceito de heteronomia. O primado da Lei acentuava o
que regulava as relações entre pessoas que adoravam o mesmo Deus. Dificuldades em
compreender este matiz podem provir da tendência para entender o relacionamento com Deus
como submissão da vontade em vez de como abertura da inteligência e do coração a Deus. O
apelo que brota da experiência libertadora do Êxodo não é de deveres morais ou obrigações de
cumprir leis, mas de orientação do coração e da mente para o Deus visto como Libertador (Dt
6,1-13). O testemunho histórico, expresso literariamente pela narração de factos interpretados
religiosamente, também se dirige à mente.
“Lei”, enquanto caracteriza o imperativo entre alguém que manda e alguém que obedece, só
é um aspecto concreto da relação mais abrangente, traduzida também imperfeitamente pelo termo
“aliança” e que envolve a ideia de eleição, promessa, compromisso e juramento gratuitos por
parte de Deus. A ideia de “aliança” abarca um complexo conjunto de relações entre Deus e Israel,
desde a meticulosa obediência a leis até à ponderação meditativa com o coração e à veneração da

201 Cf. G. BRAULIK, “Die Ausdrücke für «Gesetz» im Buch Deuteronomium”, Biblica 51 (1970) 39-66,
especialmente 64-66; B. LINDARS, “Torah in Deuteronomy” Words and Meanings. Essays Presented to David
Winton Thomas (eds. P.R. ACKROYD – B. LINDARS) (Cambridge 1968) 117-136.

202 Cf. C. CARMICHAEL, Law and Narrative in the Bible. The Evidence of the Deuteronomic Laws and
the Decalogue (Cornell University Press; Ithaca 1985).

203 Cf. L.M. PASINYA, La notion de nomos dans le Pentateuque grec (Analecta biblica) (Roma 1975).
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Lei por parte dum contemplativo: “amarás Yahvé, teu Deus, com todo o teu coração...; que estas
palavras que eu te dito hoje fiquem escritas no teu coração” (Dt 6,5-6). O respeito da lei só seria
um aspecto (e talvez não o mais significativo) do que significa aliança. Lei não se opõe de forma
simplista a espírito profético; a reunião de múltiplas prescrições num grupo de mandatos
originariamente estava orientada para a perfeição da santidade. Era mais uma expressão da
relação amistosa do povo com Deus e um aspecto da sua revelação ao povo. A ideia de
heteronomia é, pois, muito inadequada para circunscrever a riqueza de significado incluída no
conceito da Tōrá. O aspecto mais impressionante desta legislação é o seu carácter religioso e a
compenetração do sagrado e do profano. Isto encontra-se também em códigos do antigo Próximo
Oriente, mas em Israel a lei diz-se ditada por Deus e as suas prescrições são motivadas com
considerações religiosas 204.
A forma final do Pentateuco não resultou da mera combinação de fontes literárias: evidencia
uma leitura ‘canónica’ do todo na fase derradeira da sua redacção. As várias partes foram mais
estreitamente unidas por meio de referências cruzadas, seja às promessas do passado, seja a uma
antecipação do futuro. Uma linha de força teológica, que pressupôs o conhecimento dos cinco
livros ou de todo o material do Pentateuco, deu-lhe a arrumação e unidade final 205.
A própria reclamação da autoria mosaica do Pentateuco pela tradição pré-crítica judeo-
cristã, entendida em sentido teológico contribui para entender esta inicial unidade canónica do
Pentateuco, com a divisão no fim do Dt e antes de Js. A negação crítica dessa autoria em sentido
literário e moderno - como fizeram os métodos histórico-críticos - não atende à totalidade de
sentido dessa atribuição; a própria investigação conservadora - judaica, protestante e católica -
defendia a autoria mosaica por motivos estritamente históricos (embora apelando para a tradição
religiosa) para defender a autoridade da Sagrada Escritura com base na sua historicidade, pondo a
composição dos livros o mais perto possível dos acontecimentos neles narrados. Mas nem uns
nem outros fizeram justiça à função e compreensão ‘canónica’ do relacionamento de Moisés com
o Pentateuco; só atendendo a ela fica correctamente formulada a autoria mosaica do Pentateuco e
a sua pretendida unidade 206.
O significado de Moisés a escrever a Lei 207 recebe a sua mais clara formulação em Dt 31. O
contexto é o da iminente morte de Moisés e da sua incumbência de redigir a Lei. E justamente por
isso tem pontos cruciais para entender a extensão da Tōrá até (só) ao fim do Dt. A lei, entendida
como locução de Deus a Moisés, obriga todas as futuras e sucessivas gerações de Israel (31,11-
13) e vale como testemunha da vontade de Deus (31,28); em forma de livro escrito, é colocada
junto da arca da aliança para ser lida periodicamente ao povo (31,10ss.24-26). A função original
de Moisés como o maior profeta de Deus (Dt 34,10) que proclama a palavra de Deus como
testemunha d’Ele será exercida pelo “livro desta lei” no futuro 208. Moisés morre, mas a sua
formulação da vontade de Deus continuará. O AT identificará a lei divina com a sua consignação

204 Cf. H.-J. KRAUS, “Zum Gesetzesverständnis in nachprophetischer Zeit”, Biblisch-theologische


Aufsätze (ed. H.-J. KRAUS) (Neukirchen-Vluyn 1972) 179-194; J. GAMBERONI, “Das «Gesetz des Mose» im
Buch Tobias”, Festschrift W. Kornfeld (hrg. G. BRAULIK) (Wien 1977) 227-242.

205 Cf. F. CRÜSEMANN, “Le Pentateuque, une Tora: Prolégomènes et interprétation de sa forme finale”,
e H.H. SCHMID, “Vers une théologie du Pentateuque”, ambos em Le Pentateuque en question, pp. 339-360.361-
389.

206 Cf. E. ZENGER, “Der Pentateuch als Tora und als Kanon”, Die Tora als Kanon für Juden und
Christen (hrg. von E. ZENGER) (Herder biblische Studien 10; Herder; Freiburg im Brisgau 1996) 5-34.

207 Ex 24,3-4; 34,27.


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escrita por Moisés num livro 209. A autoria de Moisés relativamente ao Pentateuco teve uma
função normativa dentro do processo de canonização desde muito cedo (embora falte evidência
histórica para tal); leis atribuídas a Moisés foram julgadas como tendo autoridade e, vice-versa,
leis com autoridade foram atribuídas a Moisés.
A consequência desta compreensão da autoria mosaica do Pentateuco é que na questão da
autoridade da Lei de Israel estava em causa um juízo teológico e não histórico em sentido
moderno. A reivindicação da autoria mosaica era uma afirmação teológica importante dentro da
comunidade para estabelecer a continuidade da fé de sucessivas gerações com a Lei ‘canónica’
que tinha sido dada a Moisés no Sinai 210. Foi isso o que se quis, ao pôr fim ao principal bloco de
escritos sagrados no termo da vida de Moisés, isto é, até ao fim do Deuteronómio.
Este dado de facto conduz-nos a uma reflexão mais genérica. Os leitores modernos e
contemporâneos do Pentateuco por mor da sua cultura estabelecem uma relação estreita entre a
mensagem religiosa e a exactidão material ou historicidade dos acontecimentos relatados.
Todavia, em vez de impormos ao texto a nossa perspectiva e categorias de história, deveríamos
situar-nos na perspectiva dele. Esse texto era o património vivo de um povo e o suporte da sua fé;
dava-lhe o sentido de unidade, ao ligar todos os membros a antepassados comuns; era como um
espelho, onde o povo se contemplava nas situações mais diversas. Ao estabelecer a “Lei”, o
Pentateuco constituía uma mensagem obrigatória que ajudava a configurar e preservar o povo tal
como o povo tinha moldado e conservado essa literatura religiosa. Não se pode pedir aos textos
informação histórica, porque não foi esse o seu objectivo. Eles não constituem um livro de
história, independentemente do valor que possam ter para uma história do povo bíblico. Estão
impregnados de carácter religioso: são o testemunho da fé de um povo ao longo de numerosas
gerações. O importante para os escritores não era relatar o passado de forma fidedigna, mas
remontar ou fazer uma referência ao passado longínquo como fundamento para iluminar a vida
presente e tirar lições para ela. Considerar os escritores do Pentateuco (e bíblicos em geral) como
biógrafos ou historiadores em sentido moderno não é a melhor posição para captar o que eles
quiseram dizer.

208 Dt 31,26-29. Cf. F. CRÜSEMANN, Die Tora. Theologie und Sozialgeschichte des alttestamentlichen
Gesetzes (Christian Kaiser Verlag; München 1992).

209 2Cro 25,4; Esd 6,18; Ne 13,1. Cf. G. ÖSTBORN, Tōrā in the Old Testament. A Semantic Study (Lund
1945).

210 Cf. B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture, pp. 127-128.132-135.

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