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Temas de Literatura Portuguesa

Livros para beber


José Eduardo Agualusa

Volta e meia num debate qualquer sobre literatura lá surge a questão: “o que
pensa dos livros eletrónicos?”. A pergunta é quase sempre um simples pretexto para
que todos os presentes manifestem grande horror pelas novas tecnologias e
reafirmem a sua fé na longa vida do livro em papel. [...] Aqueles que, como eu,
defendem o livro eletrónico têm alguma dificuldade em fazer-se ouvir.
Aproveito o facto de neste espaço ninguém me conseguir interromper [...]
para explicar melhor a minha posição. Em primeiro lugar, o que me interessa nos
livros não é a matéria de que são compostos, mas a informação que está contida
neles. Se tal informação me chegar amanhã através de um copo de água, tanto
melhor – eu bebo-o.
Houve resistências, certamente, quando na Mesopotâmia as placas de argila
cozida começaram a ser substituídas pelo papiro. “Que absurdo”, devem ter
exclamado escandalizados os adeptos do velho sistema: “Como é possível que
alguém pretenda fixar a palavra num material tão efémero? Um pequeno incêndio e
lá se vão séculos de sabedoria”. (neste aspeto particular, a história deu-lhes razão).
Alguns nostálgicos defenderam com vigor, tenho a certeza, a superioridade do cheiro
das placas de argila cozida. Não falo em cheiro por acaso. Muita gente aprecia os
livros de papel, convém lembrar, porque é possível cheirá-los. [...]
Conheci um jornalista, já veterano, que não conseguia trocar a máquina de
escrever pelo computador porque lhe fazia falta o matraquear do teclado e aquela
campainha irritante no final de cada linha (ainda alguém se lembra?). Então, um
amigo arranjou-lhe um programa de computador que imitava com perfeição as
velhas máquinas de escrever. Existe muita gente assim e é por isso que os fabricantes
de livros eletrónicos se esforçam por os tornar semelhantes aos livros de papel:
objetos retangulares, com uma capa e, inclusive (fazem-se experiências nesse
sentido), que se possam folhear. Ao contrário do que afirmam os seus detratores, é
possível escrever anotações nas margens das folhas, e levá-los para a cama ou para a
casa de banho. Evidentemente, ainda custa um pouco ler um livro num écran de
computador. Mas reparem: estamos apenas no princípio; os atuais livros eletrónicos
hão de fazer-nos rir, de tão ingénuos e arcaicos, daqui a quatro ou cinco anos. Pode
até acontecer que nessa altura existam realmente livros bebíveis, isto é, produtos que
tenham rompido radicalmente com o modelo do livro em papel, assumindo formatos
e propriedades que neste momento não somos sequer capazes de imaginar.
Nos últimos anos tenho vivido sempre em viagem. Os meus livros,
infelizmente, estão dispersos por diversos países, em caixotes, nas casas de amigos e
familiares. Este percalço levou-me a descobrir arquivos e bibliotecas disponíveis na
grande rede. É cada vez mais fácil encontrar em poucos minutos uma referência
qualquer, um verso, uma citação, um texto antigo, naquele infinito território virtual;
uma pesquisa idêntica numa biblioteca material demoraria muitíssimo mais tempo.
A ideia de transportar num único volume, pequeno e leve, todas essas bibliotecas,
todos os livros do mundo (será assim um destes dias, quando nos for possível baixar
para um livro eletrónico, a partir da Internet e a preços reduzidos, qualquer título que
desejarmos) seduz-me particularmente enquanto viajante.
Para além do espaço que ocupam, do alto preço, da dificuldade de consulta,
e de serem ecologicamente danosos os atuais livros em papel apresentam um defeito
maior e menos conhecido – têm uma esperança de vida extremamente reduzida. Ao
contrário dos livros antigos, confecionados a partir de trapos, que continuam a
demonstrar grande resistência, os volumes atuais, em papel ácido, não duram mais
de setenta anos.
Que me desculpem, portanto, os bibliófilos românticos e todos os amáveis
cheiradores de livros. Também eu gosto dos livros em papel e tenciono continuar a
colecioná-los, mesmo quando os deixarem de fabricar – simplesmente o Livro não
termina neles. Muito menos a Literatura.

17 dez. 2000

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