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Conceitos de Satide: Atualizagao do Debate Teorico-Metodoldgico ‘Naomar de Almeida-Filho * Jairnilson Silva Paim INTRODUGAO Se perguntarmos as pessoas 0 que é satide, eerta: le de definigoes. Al gumas poderio dizer que satide significa simplesmente sentir-se bem; outras que ter satide 6 nao estar doente. Muitas afirmardo que satide ¢ poder estar em pé, traba- Ihando, tocando a vida para a frente. Talvez haja ainda quem apele para uma filosofia espontanea e declare que satide é alegria de viver ou estar de bem com a vida, ustamente em fungio dessa diversidade de defini es de satide, os paises vinculados 4 Organizagao das Nages Unidas (ONU) que criaram a Organizagio Mun- dial da Satide (OMS) em 1949 convencionaram afirmar que saiide é 0 completo bem-estar fisico, mental e social endo apenas a auséneia de doen mente teremos uma grande quanti No fim do século passado, considerava-se que uma das tarefas intelectuais mais instigantes e oportunas seria fundamentar uma concepgao e uma pratica vinew- ladas a ideia de sade. Ainda atual e relevante, trata-se de um ambicioso projeto que visa transformar a forma hegeménica de conceitualizar a satide, desmedicalizé-la, passando a coneebé-Ia como eapacidade social para go- zara vida, ter prazer em viver e conquistar a qualidade de vida (Najera, 1992). Enfim, saiide reconhecida como qualidade de vida, solidariedade, alegria de viver, estético, prazer, axé (energia), projeto de felicidade (Paim, 1994; Mendes-Gongalves, 1995; Ayres, 2002), De fato, o termo saide! d complexo, de grande interesse filoséfico, cientifico e p ‘Gabe de pronto uma anotasdo etimolégica. No idioma portugues, termo said deriva do uma mesma raiz etimoligica provenient 4o latim Seits,em que designava o atrbuto principal das sere in teiros, intactos,integros. Dele deriva um outro radical de interesse pra © nosso tema — safe conotava a tungio de superagio de ameagas f integridade fisiea dos sujeitos tico, assim como nogdes do discurso comum, centrais para o imaginério social contempordineo, Para respon: der essa questo, podemos tomar como hipétese, apenas para inicio de conversa, que a satide é uma realidade miiltipla e complex, referenciada por meio de conceitos (pela linguagem comum e pela Filosofia do Conheci- 0), apreensivel empiricamente (pelas ciénci 6 e, em part pelas ciéncias clinicas), ana- lisivel (no plano légico-matemitico e probabilistico, por meio da Epidemiologia) e perceptivel por seus efeitos sobre o modo de vida dos sujeites (por meio das Ciéneias Sociais e Humanas). Essa questio hipétese dela decorrente se desdobram em uma si de perguntas conceituais que anima o debate atual a propésito das bases filos6ficas, cientificas e priticas do conhecimento sobre fatos e fendmenos, ideias e proces- s08 relatives a saiide. Por um lado, é preciso propriamente perguntar so- bre a natureza e as propriedades do conceito de saide em si, como objeto de conhecimento e como operador de transformagées no mundo e na vida dos sujeitos que nele habitam, Kis ai uma questo fundamental: seri a sau de uma coisa? Mas o que é uma “coisa”? Um algo com materialidade, tangivel, mensurdvel? Uma sensivel (no sentido de ser capaz de ativar nosso apa: rato sensorial)? Um ente provide de concretude? (Nao esquegamos que por muito tempo falava-se de “entida: mérbida” para designar quadros de doenga, problemas de satide ou fendmenos correlatos.) Por outro lado, & preciso questionar o sentido e o lu gar das priticas pessoais, profissionais, institucionais e is que, de modo articulado, conformam os espagos onde a saide se constitui, Seré a satide um campo cultu- ral? Campo cientifico, campo de saberes, campo de prati- cas sociais? E que natureza, modalidades e condigdes de existéncia distinguem tais praticas de tantas outras da vida humana em sociedade? Nesse caso, designar atos eula existéncia 1B 14 de promogao, protegao, euidado e prolongamento da vida ‘como servigos de saide seria redundante? Em sintese, varias dimensdes ou facetas do conceito saiide, reconhecidas por diversos autores, representati: vos de distintas escolas de pensamento, compdem a pau ta deste capitulo: a filo al 08 refe- 1. Aquestio conceitual da saiide como problemi séfica (ou mais precisamente, epistemolégica) crui para o reconhecimento dos saberes sistemit funcionalidade, comp imento, dor, afligao, incapacidades, restrigdes vitais e morte. 2. A satide como fato, atributo, funga vital individual ou fendmeno natural, definido nega: tivamente como auséneia de doencas e ineapacidade ou positivamente como funcionalidades, capacidades, necessidades e demanda: 8. A medida da satide no sentido de avaliagao do estado de satide da populagio, indicadores demogrificos & epidemiolégicos, aniilogos de risco, competindo com estimadores econométricos de salubridade ou carga de doenga, 4. 0 valor da satide; nesse caso, tanto sob a forma de procedimentos, servigos ¢ atos regulados e legitima- dos, indevidamente apropriados como mercadoria, ‘quanto como direito soci mum, parte da cidadania global contemporinea, 5. A praxis da satide, enquanto conjunto de atos sociais de cuidado e atencao a necessidades ¢ earéncias de satide e qualidade de vida, conformados em campos e subeampos de saberes e préticas institucionalmente orginica, estado |, servigo piiblieo ou bem co- regulados, operada em setores de governo e de merca- dos, em redes sociais e institucionais. No decorrer do capitulo, cada um desses temas ser ssivamente apresentado e discutido, destacando sua diversidade de formas e realgando suas div facetas, modos e estruturas conceituais, respeitosa da complexidade dos fendm satide-doenga-cuidado, mnos, eventos & processos da QUESTAO CONCEITUAL DA SAUDE Nesta segio, apresentamos uma discussao geral di distintas facetas da satide como conceito filoséfico. Pra- ticamente todos os fildsofos clissicos, em um ou outro momento de suas obras, referem-se a temas relacio dos com a satide e a doenga em suas obras. Sem diivid: anatureza da satide constitui questiio filos6fica secular. O grande filésofo grego Platio, considerado fundador da Filosofia Ocidental, defendia uma oposigdo coneeitual entre virtude e vicio. Virtude significa “sade, beleza, boa disposigio de anime"; ao contriirio, vicio implica ‘doenca, feitira, fraqueza”. Com a intengao de demarcar uma diferenga essencial entre os conceitos, Plato poe na boca de Sécrates a seguinte afirmagio: “Engendrar a satide 6 estabelecer, conforme a natureza, relagdes de comando e submissio entre os diferentes elementos do corpo; engendrar a doenga é permitir-Ihes comandar ou ser comandados um pelo outro ao arrepio da natureza” (Plato, 2004: 146) Aristételes apresenta a diade satide-doenga como ilus o de que opostos se encontram em contradigao 1m um verdadeiro e outro falso. om ¢ sadio” significa atribuir- do mesmo modo, dizer “o The uma qualidade nente por set ele, dizer que Ihe uma qualidade afirm: homem é doente” também 6 atribui afirmativa, Nesse sentido, “doente” e a. Assim, Aristite ssadio” nao que- es conclu que: rem dizer a mesma co “por exemplo, satide e doenga silo contrérios, mas nem um nem outro é verdadeiro nem falso.[ tempo bom e nao mau” (Aristételes, 1985: 164). Na época moderna, o filésofo francés René Descartes desenvolve duas ideins centrais sobre s ‘cem contestar a visio contempo toma seu pensamento como mecanicista, reducionista ¢ dualista, Por um lado, defende que as sensagdes da enfer: midade (dor, sofrimento) e das necessidades (sede, fome) ~e, conforme indica implicitamente, de smide e de feli- ade ~ resultam da unio e da con-fusio mente-corpo. Por outzo lado, pretende demonstra fide que pare nea predominante que racionalmente a existéncia da alma ao duvidar que um mecanismo feito miisculos, veias, sangue e pele possa de ossos, nervos, funcionar pela mera disposi¢io de 61 (Descartes, 2004), No final do séeulo XVIII duas interessantes que: saiide. Primeiro, postula um ‘evapéutica (clinica, referida a doenga) e dietética (pre tiva, referida a satide). Segundo, define o sentimen ide como uma das faculdades privadas do ser Immanuel Kant levant ivas ao conceito de lética entre oposiglio di humano, Na perspectiva terapéutica, a satide no tem qualquer relevncia, pois o que se pretende é a supre sfo ou elimin: priticos, busea io da doenga por fatores e procedimentos Na perspectiva da dietética como prevengao, aplicar a racionalidade cientifiea para pro teger a satide, reduzindo a possibilidade de ocorréncia de doengas. Ei m relagio ao segundo ponto, o sentimento de satide nao pode deixar de ser ilusério, uma aparéncia fugaz, jd que a sensagio de bem-estar nfo implica q doenga esteja efetivamente ausente. O sentimento da doenca, este sim, seré indubitavel e inapelivel: sentir-se mal significaria sempre auséncia de side (Kant, 1993), Grandes fil6sofos contemporaneos se notabilizaram justamente por eserever sobre temas de satide e correla tos, como Canguilhem, Heidegger, Gadamer e Foucault, 0 filésofo francés Georges Canguilhem, em sua obra inaugural O Normal eo Patolégico (2006 (1943)), argu. Capitulo 2 * Conceitos de Saude: Atualizagao do Debate Tedrico-Metodolégico 15 menta que nio se pode considerar a doenga como fato objetivo, poste que os métodos da ciéneia clinica s6 tém a capacidade de definir variedades ou diferencas, dest mente. Nessa perspectiva, o patolégico corresponde diretamente ao coneeito de doenga, implicando 0 contra rio vital do sadio. As possibilidades do estado de satide sio superior: fas capacidades normais: a saitde institu reafirma uma certa eapacidade de ultrapassar determinadas pelas forgas da doenca, permitindo dessa maneira instalar uma nova ordem fisiolégica. Canguilhem (2006) toma a normalidade como categoria mais ampla, que engloba a satide e 0 patolégico como subcategorias dis- tintas. Nesse sentido, tanto satide como doenga sito nor malidade, na medida em que ambas implicam uma norma de vida, sendo a saiide uma norma de vida superior ¢ a doenga uma norma de vida inferior. A satide transcende a perspectiva da adaptagao, superando a obediéncia ir restrita ao modo de vida estabelecido, Bla é mais do que isso, na medida em que se constitui justamente pela nsgressiio de normas e pela transformagio das fun. des vitais. Ainda assim, a tese desse autor limitou-se aos aspectos fisicos, recorrendo em sua argumentagio ‘a exemplos de patologias como diabetes. Evitou, por exemplo, problematiz: satide mental. fa questiio mais complexa da grande pensador francés Michel Foucault (2011), considerado diseipulo e herdeiro de Canguilhem, ini- cialmente buscon estudar 0 surgimento dos padrdes de normalidade no fimbito da medicina. No contexto de r construgao cultural do século XVIIL, buscava-se intervir sobre o individuo humano, seu corpo, sua mente, e nao apenas sobre o ambiente fisico, para com isso recuperd -lo para a produgio. Listar as possibilidades normais de rendimento do homem, suas eapacidades, bem como os pariimetros do funcionamento social normal extrapola. ram o campo médico e passaram a zna mental, da psicologia e das ciéncias sociais aplicadas. Posteriormente, Foucault antecipa uma definigio poli de como capaci sr tarefas da medici le adaptatis es ow submisso dos corpos ao que designa como biopoderes, No tiltimo trabatho de sua vida, Canguilhem (1990) retoma a obra de Kant que, como vimos, teria funda- mentado # posi 10s poderes de que a satide 6 um objeto fora do -ampo do saber e que, por esse motivo, nunea poderia ser um conceito cientifico, Canguilhem propde que a saiide é uma questio filoséfica na medida em que esta fora do al da ciéncia, Esta “saiide filoséfica” recobriria, sem com -ance dos instrumentos, protocolos e aparelhos confundir, a satide individual, privada e subjeti- va. Trata-se nesse easo de uma satide sem coneeito, que emerge na relagio praxiea do eneontro médico-paciente, validada exclusivamente pelo sujeito doente e seu médi co (Coelho & Almeida-Filho, 1999). A ideia de que a satide ¢ algo individual, privado, singular e subjetivo tem sido recentemente defendida pelo filésofo ak io Hans-Georg Gadamer. Segundo, autor, 9 mistério da satide encontra-se em sua inte ridade radical, em seu cardter rigorosamente privado (Almeida-Filho, 2011). A satide im se abritia a instrumentos de medida, m outros gradientes biol6gicos. Por e: ia sentido pensar em uma distingfo entre satide e en. dade, Trata-se de uma questiio que diz respeito s0- mente & pessoa que esta se Jo enferma e que, por nao poder mais lidar com as demandas da vida ou com os temores da morte, decide ir ao médico. A conclusio de Gadamer é singela: por seu cardter privado, pessoal radicalmente subjetivo, a saide nao constitui questa fi loséfica e nunca poderd ser reduzida a objeto da eiéncia. E certo que a perspectiva gadameriana em defesa da satide privada, inerente, enigmitica, radicalmente subje tiva, justificaria considerar a inviabilidade de uma abor- dagem cientifica da satide, Entretanto, uma das prin. cipais proposigdes de Gadamer resulta crucial para 0 avango de uma formulagio alternativa do objeto cien: tifico da satide. Apoiando-se, como Ihe é caracteristico, em um argumento etimolégico, defende a idei saiide é inapelavelmente totalizante porque seu concei- to india diretamente integralidade ou totalidade. Por essa via, como veremos adiante, a nogao gadameriana do “enigma da satide” termina por abrir caminho a uma abordagem holistica do conceito de satide Apesar disso, Canguilhem (1990) opGe-se a exelusio da satide como objeto do campo cientifico, antecipando uma posigaio antagonica a de Gadamer. Ele considera que a sade se realiza no genétipo, na histéria da vida do sujeito e na relagio do individuo com o meio, dai por- que a ideia de uma satide filosética a satide como objeto cientifico. Enquanto satide filoséfiea compreende “satide individual’, satide “sade publica’ uma salubridade que se constitui em oposigao a ideia de morbidade. Com base nesse argumento, a satide fi loséfica nfo incorpora apenas a saide individual, mas 10 se revelaria as ou- tras pessoas io contradiz tomar cientifica seria a ‘ott seja, saide dos coletivos humanos, também seu complemento, reconhecivel como uma sat de ptiblica, ou melhor, publicizada (ou melhor ainda, po: litizada) que, no Brasil, chamariamos de Saiide Coletiva (Paim & Almeida-Filho, 2000). SAUDE COMO FENOMENO NATURAL Independentemente da perspectiva filoséfica assu: mida, satide como fendmeno pode ser entendido tanto em termos da positividade de sua existéncia como em re- agio aos niveis de sua referéncia como objeto de estudo. Desse ponto de vista, a saiide pode ser conceituada como fato, evento, estado, situagao, condigdo ou processo.

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