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FF

F L O R E S T A N F E R N A N D E S

ARREMATE DE UMA REFLEXÃO:


A REVOLUÇÃO BURGUESA NO
BRASIL DE FLORESTAN FERNANDES
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

N
enhum autor foi tão exemplar do gia de face acadêmica e de cunho profissional
processo de formação da Socio mas, ao mesmo tempo, inextricavelmente li-
log i a M o d e r n a n o B r a s i l q u a n - gada à problemática da realização do capita-
t o Florestan Fernandes. Os atri- lismo no Brasil. A sociologia por ele elabora-
butos multifacetados da sua forma da dirigiu-se à apreensão das nossas particu-
ção, o escopo do seu empreendimen- laridades, enraizada numa concepção crítica
to e a sua ativa participação na esfera pública e perscrutadora de tendências futuras. No in-
brasileira conferem-lhe lugar destacado no terior das suas análises dedicadas à compre-
nosso panorama intelectual. Simultaneamen- ensão da dinâmica histórica da sociedade bra-
te, preocupou-se em construir a legitimida- sileira, a reflexão sobre a revolução burgue-
de disciplinar, para a qual devotou trabalhos sa é paradigmática e, na nossa opinião, en-
de caráter teórico-metodológico mas com- contra-se no rol das grandes obras de inter-
binados à investigação rigorosa, revelando pretação do país.
o perfil variegado da sua produção. O livro A Revolução Burguesa no Brasil é
Florestan encerrou fundamental, conco-
a expressão mais aca- mitantemente, para
bada da institucio- MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA elucidar o percurso do
é professora da Faculdade de Filosofia,
nalização da sociolo- Letras e Ciências Humanas da USP. sociólogo (1).

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Abril Imagens/Carlos Namba
O sociólogo, já cassado

pelo AI-5 em foto de

1975— no verso da

foto, aparece:

"professor aposentado

compulsoriamente

em 1969"

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Obra de grande vulto, voltada à análise do mentalidade econômica, na colônia, “estava
processo histórico de formação da socieda- sujeita a uma distorção inevitável” (5). Natu-
de burguesa no Brasil, desde a Independên- ralmente, a análise põe em tela dimensões
cia até o golpe militar de 1964. Esse texto, psicossociais, para a caracterização do “espí-
repleto de nuanças, introduziu nítida rito burguês”.
clivagem no âmbito do pensamento do au- Por isso, a construção da sociedade naci-
tor, ruptura esta manifesta no próprio corpo onal, a partir da Independência e do liberalis-
da análise. Escrito entre 1966 e 1974, encer- mo como doutrina de ação das “elites nati-
ra uma interrupção no processo de feitura, vas”, é crucial, pois é possível, daí, vislum-
de cerca de três anos, período no qual brar a emergência de novos valores
Florestan lecionou na Universidade de To- orientadores da ação. Em outros termos, o
ronto. O autor, de saída, explica o modo como liberalismo produz “formas de poder especi-
percebe o seu empreendimento: ficamente políticas e organizadas lucrativa-
mente” e, para uma parte da sociedade, exige
“É preciso que o leitor entenda que não a “livre competição” (6). Emergia, então,
projetava fazer obra de ‘Sociologia aca- “uma área na qual o ‘sistema competitivo’
dêmica’. Ao contrário, pretendia, na lin- pode coexistir e chocar-se com o ‘sistema
guagem mais simples possível, resumir estamental’” (7). O liberalismo estava na base
as principais linhas da evolução do capi- do nascimento e estruturação da sociedade
talismo e da sociedade de classes no Bra- nacional, mas, ao mesclar-se com componen-
sil. Trata-se de um ensaio livre, que não tes da história passada, nem sempre os conse-
poderia escrever se não fosse sociólogo. guiu sobrepujar (8). Aí, a especificidade da
Mas que não põe em primeiro plano as formação histórica brasileira ganha relevo, o
frustrações e as esperanças de um socia- que lhe permite discutir a problemática da
lista militante” (2). nossa revolução burguesa. Na sua acepção,

Apesar das intenções declaradas do au- “trata-se... de determinar como se proces-


tor, o livro não escapa, integralmente, de ser sou a absorção de um padrão estrutural e
um exercício acadêmico de interpretação, em dinâmico de organização da economia, da
que as peculiaridades desse estilo encontram- sociedade e da cultura. Sem a
se sobejamente presentes. Perquirindo o sig- universalização do trabalho assalariado e a
nificado para a realidade brasileira das no- expansão da ordem social competitiva, como
ções de “burguês”, “burguesia”e “revolução iríamos organizar uma economia de merca-
burguesa”, procura “estabelecer preliminar- do de bases monetárias e capitalistas? É dessa
mente certas questões de alcance heurístico” perspectiva que o ‘burguês’e a ‘revolução
1 Florestan Fernandes, A Re- (3). O problema decisivo da obra põe-se na burguesa’ aparecem no horizonte da análise
volução Burguesa no Bra-
sil, Ensaios de Interpreta- discussão da especificidade da construção da sociológica. Não tivemos todo o passado da
ção Sociológica, Rio de Ja-
neiro, Zahar, 1975. sociedade de classes e da revolução burguesa Europa, mas reproduzimos de forma pecu-
2 Idem, ibidem, pp. 9-10. no Brasil, vistas no prisma da formação da liar o seu passado recente, pois este era parte
3 Idem, ibidem, p. 15. racionalidade burguesa, da mentalidade bur- do próprio processo de implantação e de-
4 O autor vale-se das catego-
guesa, isto é, de uma ética do “ganho”, do senvolvimento da civilização ocidental
rias de Sombart. Cf. “lucro”e do “risco calculado” (4). Vale dizer, moderna no Brasil. Falar em revolução bur-
Florestan Fernandes, op.
cit., p.16. da gênese da sociedade moderna no Brasil e guesa, nesse sentido, consiste em procurar
5 Idem, ibidem, p. 25. do desenvolvimento da sociedade de classes, os agentes humanos das grandes transfor-
6 Idem, ibidem, p. 48. questões que perpassam a primeira parte mações histórico-sociais que estão por trás
7 Idem, ibidem, p. 48. dedicada ao estudo do processo da Indepen- da desagregação do regime escravocrata-
8 Cf. idem, ibidem, p. 39.
dência e do desencadeamento da revolução senhorial e da formação de uma sociedade
Florestan Fernandes apóia burguesa. Para o tratamento desse período de classes no Brasil” (9).
a sua análise das dimen-
sões ideológicas e utópicas formador, o autor passa em revista o universo
do liberalismo em Karl
Mannheim. valorativo orientador das ações dos agentes Centrada na dinâmica social dos agentes,
9 Idem, ibidem, p. 20. envolvidos, apontando para o fato de que a a reflexão procura entender “a formação do

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chamado ‘Brasil moderno’, floração cultural tórico, para acelerar a decadência e o co-
da silenciosa revolução socioeconômica, em lapso da sociedade de castas e estamentos,
que aquela revolução política iria desdobrar- em outro momento ela irá acorrentar a
se, lentamente, ao longo do tempo” (10). Em expansão do capitalismo a um privatismo
suma, a análise procura recuperar a gênese tosco, rigidamente particularista e funda-
dessa identidade problemática, que está no mentalmente autocrático, como se o ‘bur-
coração da história brasileira, cuja combina- guês moderno’ renascesse das cinzas do
ção de elementos díspares responde pela nos- ‘senhor antigo’” (13).
sa particularidade.
A segunda parte do livro –“A Formação Visto que as atividades comerciais, volta-
da Ordem Social Competitiva” – é um frag- das ao mercado interno e de cunho capitalis-
mento. Como o próprio título alude, o autor ta, não foram capazes de se desconectar da
dedica-se a entender a formação da ordem lógica que presidia o movimento do passado,
social competitiva em países de formação os seus agentes assinalaram os mesmos crité-
colonial como o Brasil. “Nas ‘sociedades rios estamentais da ordem escravista, dese-
nacionais’ dependentes, de origem colonial, nhando um estilo de vida semelhante ao da
o capitalismo é introduzido antes da consti- aristocracia agrária (14). O produto final re-
tuição da ordem social competitiva. Ele se flete uma sociedade cujos bloqueios impedi-
defronta com estruturas econômicas, soci- ram a emergência plena da ordem social com-
ais e políticas elaboradas sob o regime colo- petitiva e dos critérios inerentes a uma estru-
nial, apenas parcial e superficialmente ajus- tura de classes, com visíveis e danosas conse-
tadas aos padrões capitalistas de vida eco- qüências para a construção de “relações soci-
nômica” (11). Novamente, aqui, Florestan ais superiores” (15).
localiza o problema da nossa história na in- Na terceira parte – “Revolução Burguesa
capacidade, ou impossibilidade, de superar e Capitalismo Dependente” – é discutida a
os princípios inerentes à ordem social ante- gênese da forma de acumulação capitalista
rior. As noções de capitalismo dependente e dependente e a especificidade da sua realiza-
ordem social competitiva estruturam a aná- ção. Florestan reitera a particularidade da
lise, permitindo-lhe compreender os limites estrutura de classes, do mundo burguês e da
do “estilo competitivo de vida social” e da burguesia no Brasil. Incapaz de autonomizar-
“mentalidade econômica racional”. O pro- se da oligarquia e de realizar as tarefas típicas
blema que se põe é detectar o agente social da sua congênere européia, como a criação da
que melhor encarna a condição burguesa nação, e de tornar-se o agente fundamental
de vida. Uma burguesia mercantil urbana, das transformações, a burguesia brasileira
denominada “estamento social intermediá- vivenciou o dilema histórico da sua situação
rio” (12), expressava os novos valores so- de classe. Amalgamou-se a forças sociais
ciais, mas, apesar disso, não pôde, ou não retrógradas e não foi capaz de implementar a
foi capaz, de romper o círculo poderoso liberal-democracia; o Estado foi a espinha
advindo do passado. dorsal das mudanças, pois a classe burguesa
não deslancha o processo de industrialização.
“Aqui, cumpre ressaltar, em especial, a Por tudo isso,
estreita vinculação que se estabeleceu, ge-
neticamente, entre interesses e valores “o capitalismo dependente é, por sua pró-
sociais substancialmente conservadores pria natureza e em geral, um capitalismo
(ou, em outras terminologias: difícil, o qual deixa apenas poucas alter-
10 Idem, ibidem, p. 71.
particularistas e elitistas) e a constituição nativas efetivas às burguesias que lhe ser-
11 Idem, ibidem, p. 149.
da ordem social competitiva. Por suas vem, a um tempo, de parteiras e amas-
12 Cf. idem, ibidem, p. 160.
raízes históricas, econômicas e políticas, secas. Desse ângulo, a redução do campo
13 Idem, ibidem, pp. 167-8.
ela prendeu o presente ao passado como de atuação histórica da burguesia expri-
se fosse uma cadeira de ferro. Se a com- me uma realidade específica, a partir da 14 Cf. idem, ibidem, p. 183.

petição concorreu, em um momento his- qual a dominação burguesa aparece como 15 Cf. idem, ibidem, pp. 196-7.

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conexão histórica não da ‘revolução naci- “O Estado adquire estruturas e funções ca-
onal e democrática’, mas do capitalismo pitalistas, avançando, através delas, pelo
dependente e do tipo de transformação terreno do despotismo político, não para
capitalista que ele supõe” (16). servir aos interesses ‘gerais’ou ‘reais’ da
Nação, decorrentes da intensificação da re-
Os impasses da burguesia são as encruzi- volução nacional” (21). É no interior dessa
lhadas de uma história dependente dos centros lógica que o autor conclui:
hegemônicos, cujas forças internas não são
capazes de romper os liames externos. A or- “No contexto histórico de relações e con-
dem capitalista esbarra na ingerência de fora, flitos de classes que está emergindo, tanto
dados os seus padrões diversos de desenvolvi- o Estado autocrático poderá servir de pião
mento que produzem, por sua vez, uma solida- para o advento de um autêntico capitalis-
riedade composta por contrários. É por esse mo de Estado, stricto sensu, quanto o
motivo que a análise da “revolução burguesa represamento sistemático das pressões e
no Brasil consiste na crise do poder burguês, das tensões antiburguesas poderá preci-
que se localiza na era atual e emerge como pitar a desagregação revolucionária da
conseqüência da transição do capitalismo com- ordem e a eclosão do socialismo” (22).
petitivo para o capitalismo monopolista” (17)
. E a partir desse momento, as clivagens mani- A estrutura dessa obra encerra o ponto de
festam-se com toda a contundência. Rupturas viragem da reflexão de Florestan Fernandes.
que dizem respeito ao andamento da análise e De um lado, o livro configura uma ruptura
das categorias que a informam. Os dois últi- entre o aparato conceitual e a orientação teó-
mos capítulos – “Natureza e Etapas do Desen- rica utilizados, visíveis na passagem da pri-
volvimento Capitalista” e “O Modelo Auto- meira parte para a terceira; de outro, o tom da
crático-burguês de Transformação Capitalis- interpretação também muda. É significativo
ta” – são elucidativos dessas mudanças. que a junção entre essas duas partes se dá
Do ponto de vista analítico, Florestan através de um capítulo (segunda parte) deno-
passa a trabalhar, predominantemente, com a minado pelo autor de “fragmento”. Essa se-
noção de padrão de acumulação e com a teo- ção parece solta no corpo do trabalho, como
16 Idem, ibidem, p. 214.
ria do imperialismo, numa clara assimilação se estivesse deslocada, como se rompesse a
17 Idem, ibidem, p. 215. de uma vertente do marxismo e num diálogo estrutura da análise. Ela desempenha, toda-
18 Idem, ibidem, p. 318. nítido com a economia. A discussão, desse via, uma função relevante no interior do tex-
19 Idem, ibidem, p. 321. modo, adquire caráter crescentemente to, pois realiza, na verdade, a ligação entre os
20 Idem, ibidem, p. 342. politizado. O drama do mundo burguês, no capítulos iniciais e finais; é, em suma, o elo
21 Idem, ibidem, p. 346. Brasil, lastreia-se na realidade de uma “in- da passagem. Quando se olha o fio condutor
22 Idem, ibidem, p. 366.
dustrialização intensiva, mantidos o subde- da interpretação da primeira parte, vê-se que
senvolvimento interno e a dominação impe- predominam as noções de racionalismo eco-
23 Idem, Capitalismo Depen-
dente e Classes Sociais na rialista externa” (18). Do ângulo político, nômico, de “consecução de fins racionais”,
América Latina, p. 94. Nes-
se livro, publicado em 1973, assiste-se ao “modelo autocrático burguês de enfim, da ação e orientação da ação. A di-
Florestan desenvolve a no-
ção de ordem social com- transformação capitalista” (19), referendado mensão da política é trabalhada no prisma da
petitiva, além de outras
idéias importantes à com- pelo golpe político de 1964. Em relação ao oposição entre autoridade (domus) e ordem
prensão de A Revolução
Burguesa no Brasil.
período histórico anterior, “passava-se, pura legal. O par comunidade-sociedade também
24 Idem, ibidem, p. 95.
e simplesmente, de uma ditadura de classe desempenha papel significativo na reflexão,
burguesa dissimulada e paternalista para uma pois serve à construção da relação entre tra-
25 Cf.idem, ibidem, pp. 63, 69,
81. ditadura de classe burguesa aberta e rígida” dicional e moderno. Concomitantemente, o
26 Idem, ibidem, p. 75. (20). Uma vez que a burguesia brasileira autor caracteriza a estrutura social, segundo
27 Cf. idem, ibidem, p. 93. não conciliou revolução econômica e revo- uma terminologia weberiana, nos termos dos
28Cabe, aqui, estabelecer
lução nacional, o Estado cumpriu o papel de estilos de vida, das relações estamentais e de
uma analogia com a noção elo econômico, minimizando o seu signifi- castas. A partir da situação de mercado opera
de mercado em Max
Weber, esfera onde se cado político abrangente, a conexão entre a com o conceito de classes sociais, caracteri-
constituem as relações
societárias classe e o poder público se concretizando. zando os enfrentamentos dos agentes, no sen-

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tido de criar posições diferenciadas. É na si- distintos de desenvolvimento econômico, soci-
tuação de mercado, entendida por essa via, que al e cultural, cada um comportando, por sua
se localiza a gênese e o desenvolvimento da vez, padrões correspondentes de funcionamen-
ordem social competitiva, noção central da to e de crescimento da economia, da sociedade
obra. Se a situação de classe produz estilos de e da cultura” (26). Por isso, a ordem social
vida, isto é, a condição do mercado redesenha competitiva, em sociedades capitalistas como
o plano do social, a ordem social competitiva a brasileira, é fluída, do ponto de vista das di-
“é a ordem da ‘sociedade aquisitiva’; ou da ferenças e solidariedade de classes, além de
‘civilização burguesa’” (23). No seu entendi- diversificar aspirações e valores sociais (27).
mento, a noção adquire um hibridismo do ponto No livro A Revolução Burguesa no Bra-
de vista teórico, ao combinar a tradição sil, a noção de ordem social competitiva ins-
weberiana e marxista: “essa configuração da titui, propriamente, o plano do social (28).
ordem social competitiva constitui um produ- Aí, ocorrem o funcionamento e a diferencia-
to das funções classificadoras do mercado e
estratificadoras do sistema de produção” (24).
Vale dizer, a situação de mercado entrecruza-
se com critérios forjados no âmbito da produ-
ção. Numa análise marxista clássica, o merca-
do é a aparência de momentos anteriores e,
nesse sentido, é determinado pelos mecanis-
mos da produção. É no interior da ordem soci-
al competitiva que as classificações positivas
e negativas ocorrem, análise de clara inspira-
ção em Max Weber (25). Ao mesclar as duas
tradições, acentuando a sociologia compreen-
siva, Florestan pôde formular uma questão fun-
damental para o entendimento do capitalismo
no Brasil: a da persistência “de três padrões

Dois momentos

acadêmicos: acima,

Florestan e Gilberto

Freyre em Münster,

Alemanha, 1967; ao

lado,1948, Florestan

Fernandes recebe o

prêmio Fábio Prado

— da esquerda para

a direita: Dona

Miriam Fernandes,

Florestan, Herbert

Baldus, Fernando de

Azevedo, Mílton da

Silva Rodrigues,

Aroldo de Azevedo

(atrás, de óculos) e

Emilio Willems

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ção do sistema produtivo e as suas modalida- palavras, a ação do imperialismo limita o
des de adaptação às potencialidades econô- desenvolvimento da ordem capitalista no país,
micas e socioculturais. As formas de uma vez que impõe a convivência de padrões
integração e de afastamento entre essas di- diferenciados de desenvolvimento. A combi-
mensões respondem pela historicidade, ao nação de elementos históricos díspares ofe-
produzirem padrões típicos de estruturação. rece a especificidade desse capitalismo que,
No caso do capitalismo dependente, a parti- mesmo na fase monopolista, “terá de adap-
cularidade dessa relação impediu o tar-se para coexistir com uma variedade de
florescimento da ordem social competitiva, formas econômicas persistentes, algumas
isto é, de posições sociais e de condutas ori- capitalistas, outras extracapitalistas. Não
entadas segundo os padrões correntes do “ca- poderá iluminá-las por completo, pela sim-
pitalismo como estilo de vida” (29). Nessa ples razão de que elas são funcionais para o
linha de pensamento, outras identificações são êxito do padrão capitalista-monopolista de
pertinentes, conferindo originalidade à análi- desenvolvimento econômico na periferia”
se realizada pelo autor, a saber, a da forte (32). Nesse universo, precisa-se a revolução
presença do estrutural funcionalismo. Ou seja, burguesa no Brasil, enquanto um modo de
a compreensão da sociedade capitalista de- combinação singular de formas não
pendente é feita levando-se em conta certos homólogas e como um processo que envolve
modos especiais de estruturação das posições agentes modernizadores, mas cujo raio de ação
sociais no sistema. Nesse passo, o constructo limita-se a certas esferas da vida social, sem
parsoniano emerge com contundência, atra- a capacidade de atingir o conjunto da socie-
vés do privilegiamento dos status-papéis que dade. Por isso, a revolução burguesa ocorre
engendram inovações e atribuem novos sig- na medida em que se institui o “regime de
nificados à conduta, ou, então, assimilam classes sociais”, vale dizer, a sociedade de
orientações de outros posicionamentos. Quan- classes, mas exclui os componentes políticos
do analisa a ação econômica do imigrante, e socioculturais característicos do processo
enquanto modo de expressão de uma menta- na sua “vertente clássica”. Daí o caráter auto-
lidade, mostra as hesitações desses agentes, crático e autoritário da “dominação burguesa
por causa da inexistência de um sentido capi- no Brasil” (33). Dessa forma, depreende o
talista institucionalizado. Conseqüentemen- papel da burguesia como agente modernizador
te, as escolhas racionais derivavam “dos fins que, na realidade, limita-se ao âmbito exclu-
e dos meios do agente econômico considera- sivamente econômico-empresarial e atrela-
do individualmente, e em condições que pri- se à dominação burguesa, que se associa a
vavam tanto a ordem senhorial quanto a or- procedimentos autocráticos que marcam ni-
dem competitiva de intervirem regularmente tidamente sua fase contemporânea (34). Esse
29Expressão utilizada por
Florestan Fernandes. A
de maneiras positivas ou negativas (ou seja, processo típico de transformação capitalista
Revolução Burguesa no estimulantes ou restritivas) na graduação na periferia construiria, então, o caminho au-
Brasil, op. cit., p. 146.
societária de seus amigos e fins econômicos” toritário dessas sociedades (35). A análise
30 Idem, ibidem, pp. 136-7.
(30). Em suma, a análise estrutura-se a partir das mudanças políticas envolve os entraves
31 Idem, ibidem, p. 274.
das categorias centrais acima referidas. estruturais presentes no desenvolvimento do
32 Idem, ibidem, p. 269.
O tom da interpretação da terceira seção capitalismo periférico, aproximando as suas
33 Ver capítulo 7 da obra. do livro, se não abandona as noções funda- reflexões de uma determinada concepção do
34 José Albertino Rodrigues, mentais que tecem a primeira parte, sofre uma materialismo histórico. Apesar disso, não se
“Uma Síntese Original”, in
Maria Angela D’Incao inflexão. Nos últimos capítulos, Florestan abandonou integralmente os princípios e ca-
(org.), O Saber Militante.
Ensaios sobre Florestan passa a pensar a dinâmica do capitalismo tegorias correntes na primeira parte. Para o
Fernandes, Rio de Janei-
ro, Paz e Terra, 1987, p. brasileiro com referência ao padrão de acu- autor, essas peculiaridades históricas “culmi-
233.
mulação e ao imperialismo, uma vez que o naram em processos de auto-afirmação e de
35 Para Paulo Roberto de
Almeida, Florestan parece
crescimento interno faz-se, em larga medida, autoprivilegiamento das classes e estratos de
querer “provar... a ‘tese’ do
autoritarismo inerente às
sob os influxos externos. Daí afirmar que no classe burgueses que em nada contribuíram,
burguesias periféricas”. “O “capitalismo monopolista, o imperialimo tor- positivamente, para a diferenciação e a rein-
Paradigma Perdido”, idem,
p. 219. na-se um imperialismo total” (31). Em outras tegração da ordem social competitiva vigen-

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te. Ao contrário, eles fortaleceram processos permeada por essas relações complexas (41).
que sociólogos como Max Weber considera- Quando caracteriza os produtores coloniais,
riam negativos para a consolidação e ulterior denomina-os “capitalistas” mas num senti-
desenvolvimento dessa ordem; ou que soció- do muito preciso e bem distinto do que se
logos positivistas como Durkheim e os espe- atribui à burguesia agrária européia, pois
cialistas em sociologia aplicada norte-ameri- eram também senhores. Sua especificidade
canos qualificariam como ‘patológicos’ ou e caráter contraditório resultam do modo...
‘sociopáticos’” (36). Em síntese, a tendência pelo qual se inseriam no sistema capitalista
em acentuar, na terceira parte do livro, as mundial. Demônios bifrontes, se se quiser,
contribuições do marxismo não faz da obra duplamente contraditórios, excrescências
um modelo de análise materialista histórica necessárias para o avanço, no centro do sis-
(37). A grande originalidade reside, segundo tema, da acumulação e da potenciação das
nossa opinião, na combinação de tradições forças produtivas; entraves estruturais para
teórico-metodológicas diversas, que resultam a etapa seguinte do desenvolvimento gerado
numa interpretação densa, de grande magni- pela acumulação que eles próprios em parte
tude, tornando esse texto altamente fecundo propiciaram” (42). Na presença de refle-
e inovador à compreensão da sociedade bra- xões dessa ordem, é possível caracterizar
sileira (38). Ou, em outros termos, não se tra- uma “escola paulista de Sociologia”.
ta de assimilação indiferenciada das contri- O caráter original da obra de Florestan
buições, mas do estabelecimento de uma sín- Fernandes manifesta-se, além do mais, na
tese própria capaz de render frutos no proces- forma como tratou os temas. Do ângulo da
so de interpretação, permitindo ao autor che- pesquisa, predomina material histórico, mas
gar a conclusões originais. Talvez porque “em que se combina com modalidades de investi-
Florestan o que importa fundamentalmente gação de natureza vária. No trabalho Bran-
36 Florestan Fernandes. A Re-
são os procedimentos de análise da realidade, cos e Negros em São Paulo, realizado em volução Burguesa no Bra-
sil, op. cit., p. 356.
os modos de se enfrentar a realidade pela via parceria com Roger Bastide, dados quantita-
37 Carlos Águedo N. Paiva
do pensamento analítico... As questões tivos convivem com as histórias de vida e constrói uma interpretação
da obra de Florestan nessa
metodológicas subordinam a si as questões com documentos históricos. O mesmo é vá- vertente: Capitalismo De-
propriamente teóricas da construção dos gran- lido para a tese de cátedra A Integração do pendente e (contra) “Revo-
lução Burguesa no Brasil”:
des arcabouços conceituais” (39). Indepen- Negro na Sociedade de Classes. Por essa ra- um Estudo sobre a Obra de
Florestan Fernandes, dis-
dentemente dos procedimentos adotados, o zão, podemos afirmar que o sociólogo aliou sertação de mestrado,
Campinas, Unicamp, 1991.
resultado é elevadamente profícuo. Florestan uma sólida formação teórica a técnicas diver-
38 Gabriel Cohn chama a aten-
Fernandes consegue nesse texto, provavel- sas de pesquisa. Nos textos em que o material ção para a particularidade
do ecletismo na obra de
mente mais do que em outros, elucidar as histórico é exclusivo, a forma de explicação Florestan. “O Ecletismo
bem Temperado”, in O Sa-
relações contraditórias subjacentes a uma é tipicamente sociológica, demonstrando as ber Militante, op. cit., pp. 48-
totalidade composta de elementos em si mes- diferenças no estilo de exposição do sociólo- 53.

mos diversos. E aí aproxima-se de sugestões go e do historiador. O próprio Florestan ex- 39 Idem, ibidem, p. 49.

presentes em obras como Raízes do Brasil de plica essas distinções: “de modo a impedir 40 Cf. Antonio Candido, “Pre-
fácio”, in Sérgio Buarque de
Sérgio Buarque de Holanda, pois, no prefá- que a descrição sociológica se confundisse Holanda, Raízes do Brasil,
4ª ed., Brasília, Editora da
cio da obra, Antonio Candido chama a aten- com a explanação histórica propriamente dita: Universidade de Brasília,
1963.
ção para essa capacidade do autor em romper ela não lida com ocorrências ordenadas no
41 A esse respeito: Fernando
uma visão dicotômica e trabalhar tempo, mas com leis que explicam a ordena- Henrique Cardoso, Capi-
dialeticamente com as oposições (40). ção de tais ocorrências” (43). A noção de lei, talismo e Escravidão no
Brasil Meridional, São Pau-
Em ambos, a mesma presença dessa iden- se distingue a sociologia da historiografia, lo, Difusão Européia do Li-
vro, 1962.
tidade problemática, de difícil também constrói uma disciplina de qualida-
42 Idem, “Classes Sociais e
enquadramento, restritiva quanto à realiza- de superior, dado o estatuto de ciência. Em História: Considerações
Metodológicas”, in Autori-
ção dos processos mais típicos. Nesse terre- larga medida, essas oposições, estabelecidas tarismo e Democratização,
Rio de Janeiro, Paz e Ter-
no, aliás, formou uma maneira de interpretar por Florestan, prendem-se à superioridade, ra, 1975, p. 111.
a sociedade brasileira e que marcou a obra atribuída por ele, da sociologia. Todo o seu 43 Florestan Fernandes, En-
dos seus discípulos. Fernando Henrique Car- empreendimento fica ininteligível, caso não saios de Sociologia Geral e
Aplicada, 3ª ed., São Pau-
doso constrói, em larga medida, uma análise se considere a importância que ele confere ao lo, Pioneira, 1976, p. 27.

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modo de interpretação do sociólogo. A noção Esses sociólogos enfrentavam, de outro modo,
de “ordem social competitiva”, por exemplo, problemas semelhantes aos dos chamados
resulta, na opinião de Gabriel Cohn, “não intérpretes do Brasil dos anos 30. Possivel-
apenas das suas concepções metodológicas mente, o livro exemplar da idéia de formação
fundamentais, mas também da modalidade seja Os Sertões de Euclides da Cunha, onde
da sua inserção intelectual no âmbito das parte-se da geologia. Dentre os autores da
Ciências Sociais, quando visa dar conta de geração de Florestan Fernandes, talvez o mais
aspectos fundamentais da sociedade por um próximo da tradição seja Antonio Candido,
viés específico, que é o viés do sociólogo, com a notável Formação da Literatura Bra-
diferente do viés do político, do economista, sileira. Há grande reinvenção e um quê de
do historiador” (44). E, de fato, a interpreta- persistência na obra de Florestan Fernandes.
ção sociológica afasta-se, substancialmente, Ao caminhar, de alguma maneira, na mesma
da análise em história, pois a ênfase nas rela- senda, está dialogando com trabalhos anterio-
ções sociais introduz o primado das configu- res. “É como se a partir de certas crises, rup-
rações abrangentes, da busca de conexões turas, ou mesmo revoluções, as interpreta-
gerais. As distâncias entre sociologia e histó- ções conhecidas envelhecessem. Podem ser
ria eram maiores, no período, uma vez que substituídas por outras; ou as antigas são re-
essa última se encontrava, predominantemen- criadas parecendo originais. Mas não há dú-
te, preocupada com a história política duran- vida de que quando se rompem um pouco, ou
te os anos 50 (45). Diversamente, os cientis- muito, os vínculos entre o passado e o presen-
tas sociais, ao elaborarem trabalhos a partir te, este é levado a pensar o novo, novamente”
de material histórico, centravam as reflexões (49). E o novo a sociologia produzida por
nos problemas da estrutura e da organização Florestan buscou contemplar: a emergência
social: classes, estamentos, castas, relações de atores sociais recentes e, com eles, o apa-
raciais, etc. O objetivo último era compreen- recimento das camadas subalternas. Empre-
der os mecanismos dos processos de mudan- sários, negros, índios, operários, imigran-
ça, as especificidades da sociedade urbano- tes, os desclassificados em geral adentram o
industrial (46), de cuja tradição dimanam os panorama da sociologia brasileira. A persis-
44 Gabriel Cohn, op. cit., pp. trabalhos subseqüentes sobre o desenvolvi- tência manifesta-se, de um lado, na inces-
50-1.
mento e a teoria da dependência, envolvidos sante busca das especificidades da socieda-
45 Cf. Gláucia Villas Boas,
Visões do Passado (Co- num claro debate com as idéias cepalinas (47). de brasileira e, de outro, nos desdobramen-
mentários sobre as Ciênci-
as Sociais no Brasil de 1945 Nesse sentido, esses sociólogos vocalizam os tos que reflexões dessa natureza contêm,
a 1964), trabalho apresen-
tado ao G.T. Pensamento problemas emergentes do Brasil de então, qual sejam, os referentes à problemática de
Social no Brasil, XI Encon-
tro Anual da Anpocs, Águas
estabelecendo um diálogo com a tradição uma identidade particular, recorrente no
de S. Pedro, 1987, p. 21. intelectual brasileira. pensamento social brasileiro.
46 Cf. idem, ibidem, p. 14. O relacionamento com a tradição Na visão de Florestan Fernandes, a ma-
47 Cf. Fernando Henrique Car- explicitava-se na idéia da gênese da socieda- neira de captar as particularidades da
doso e Faletto Enzo, De-
pendência e Desenvolvi- de. Melhor dizendo, articulavam as noções estratificação social no Brasil reside no em-
mento na América Latina,
Ensaio de Interpretação So- de fundamento e de formação, para entender prego simultâneo dos conceitos de casta, de
ciológica, Rio de Janeiro,
Zahar, 1970. Fernando as nossas especificidades e os impasses do estamento e de classe. O aperfeiçoamento da
Henrique Cardoso, Mudan-
ças Sociais na América
processo de mudança. Por isso, trabalham em categorização exige, segundo a opinião do
Latina, São Paulo, Difel,
1969.
outro patamar e de um modo muito próprio a autor, aprofundar as investigações empíricas,
noção da identidade brasileira. Se a forma de no sentido de “uma melhor exploração das
48 Karl Manheim, Ensayos de
Sociologia de la Cultura. entendê-la é diversa, através de trabalhos teorias existentes sobre as sociedades
Hacia uma Sociologia del
Espiritu el Problema de la monográficos e não de ensaios e buscando o estratificadas e, em particular, para suscitar
“Inteligentsia”, la Democra-
tización en la Cultura, 2ª ed., rigor conceitual no interior de uma disciplina um quadro teórico integrativo, capaz de ren-
Madrid, Aguilar, 1963, p. 49.
determinada, o tema a ser enfrentado é seme- der conta da complexa situação brasileira’’
49 Octávio Ianni, A Idéia do lhante. “É, geralmente, sabido que, apesar do (50). Por isso, acaba optando pelo uso
Brasil Moderno, São Pau-
lo, Brasiliense, 1989, p. 7. livre fluir das idéias por sobre as fronteiras concomitante dessas categorias, diferencian-
50 Florestan Fernandes, Cir- políticas, determinados temas reaparecem só do-as no bojo da análise. Ao tratar da socie-
cuito Fechado, São Paulo,
Hucitec, 1976, p. 34. no pensamento organizado de cada país” (48). dade do século XIX em seu conjunto caracte-

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riza-a a partir das noções de estamento e de presentes. Vale dizer, subjaz a imagem de
casta. Estamental na apreensão dos senhores modernidade travada, ou da persistência do
rurais; regime de castas quando se refere à arcaico no novo.
relação com os escravos. A forma de domina- Nesse andamento de análise, outras re-
ção política é patrimonial-estamental. As fra- lações poderiam ser aventadas. Interessan-
ções dirigentes são as elites. À categoria clas- te notar que o nascimento da sociologia nos
ses confere utilização livre, servindo tanto países capitalistas avançados conecta-se à
para analisar camadas sociais, sem preten- modernidade, mas a um processo que, efe-
sões diferenciadoras, quanto as relações so- tivamente, se realiza. No caso brasileiro , a
ciais baseadas no trabalho assalariado (51). sociologia liga-se ao bloqueio do moderno,
A incorporação híbrida das categorias analí- aos impasses do movimento e, por aí, pode,
ticas surge discriminada, portanto, quer por inclusive, comportar a crítica da moderni-
natureza do discurso (descritivo, analítico), zação (54). Quer dizer, os entraves e a
quer ainda pela exclusividade das camadas marcante exclusão social propiciam a emer-
sociais (senhores, frações dirigentes, escra- gência de posturas céticas; talvez, por esse
vos), ou pela natureza do vínculo que as une. motivo, o marxismo tenha ganhado corpo
Por essa via, é possível estabelecer as na sociologia paulista. Diferentemente do
conexões entre a produção de Florestan, a Iseb, onde, pelo menos na primeira fase, a
tradição intelectual brasileira e as questões aposta no desenvolvimento nacional fora a
suscitadas pelo momento social, sabendo que tônica, a sociologia paulista exercitou uma
tais correlações jamais são imediatas, ou que postura de distanciamento frente ao clima
possa ocorrer identidade simples entre obra e de otimismo que permeou a sociedade bra-
classe ou determinantes de vária natureza (52). sileira, a partir de meados dos anos 50. É
De um lado, havia uma sintonia apurada en- significativo, de outro lado, que os isebianos
tre o trabalho do sociólogo e o processo de se reconheciam como formuladores de uma
transformação da sociedade brasileira. De consciência crítica da realidade, sem a
outro, a própria existência do tipo de reflexão qual não haveria desenvolvimento (55).
e da carreira que desenvolveu eram sintomas Evidentemente, estamos no terreno de
de mudança. No prefácio do seu livro A compreensão discrepante a respeito da
Integração do Negro na Sociedade de Clas- visão crítica, porque foi construída se-
ses, Florestan precisa essas idéias: gundo pressupostos diversos.
Nos pressupostos da sociologia de 51 A análise respalda-se prin-
cipalmente em Sociedade
“A escolha de São Paulo como unidade da Florestan Fernandes encontra-se presente de Classes e Subdesenvol-
investigação explica-se naturalmente. Ela a tensão entre o conhecimento rigoroso e vimento (São Paulo, Na-
cional, 1968).
não só é a comunidade que apresenta um as imposições de natureza prática. “Aliás, 52 Cf. Raymond Williams, Cul-
desenvolvimento mais intenso, acelerado é dele a idéia de que, na impossibilidade tura e Sociedade, São Pau-
lo, Nacional, 1969, espe-
e homogêneo quanto à elaboração da experimentação nas Ciências Sociais, a cialmente p. 330.

socioeconômica do regime de classes. É, verificação da validade do conhecimento 53 Florestan Fernandes, A


Integração do Negro na So-
também, a cidade brasileira na qual a re- sociológico se dá na prática” (56). Ao ciedade de Classe, São
Paulo, Dominus, 1965, p.
volução burguesa se processou com mai- exigir a prova da realidade como critério XII.
or vitalidade, segundo a norma do traba- decisivo do julgamento, constrói uma so- 54 Devo a Fernando Novais a
lho livre, na Pátria livre. Além disso, em ciologia engajada, na qual as suas posi- idéia da relação entre mo-
dernização e pensamento
virtude de peculiaridades histórico-soci- ções alojam-se no “cerne mesmo da sua sociológico.

ais, nela o ‘negro’ só adquire importância obra, no interior das suas construções 55 Cf. Caio Navarro Toledo ,
ISEB: Fábrica de Ideologia,
econômica real tardiamente e sofre, em metodológicas, no interior da sua incor- São Paulo, Ática, 1977,
especialmente pp. 34-9.
condições sumamente adversas, os efei- poração das aquisições teóricas e, portan-
tos concorrenciais da substituição to, está no interior de seus próprios esque- 56 José de Souza Martins, “O
Professor Florestan Fer-
populacional” (53). mas analíticos” (57). O livro A Revolução nandes e Nós”, in Tempo
Social., 7 (1-2), São Paulo,
Burguesa no Brasil encerra esses dilemas Universidade de São Pau-
lo, outubro de 1995, p. 185.
As noções de classe social, de exclusão e e arremata, finalmente, todo um processo
57 Gabriel Cohn, op. cit., p.
de mudança do padrão societário acham-se aí de reflexão sobre a sociedade brasileira. 53.

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