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Fabiano Engelmann, Lígia Mori Madeira

A CAUSA E AS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Fabiano Engelmann*
Lígia Mori Madeira**

Pretende-se analisar a emergência e consolidação da causa dos direitos humanos no Brasil nas últimas dé-
cadas. O argumento principal é que o movimento dos direitos humanos emerge, como em outros contextos
da América latina, a partir da contestação do regime militar-autoritário e consolida-se a partir de marcos
institucionais após a redemocratização do país. A análise do perfil das causas e dos trajetos dos principais
líderes do movimento no Brasil permite afirmar que os direitos humanos transformam-se, ao longo da dé-
cada de 90, em uma “causa de Estado”. Um dos indicadores mais forte dessa transformação é a articulação
entre os movimentos militantes e a burocracia governamental e a expansão de programas de direitos huma-
nos principalmente nas regiões sul, sudeste e norte.
Palavras-chave: Brasil. Direitos Humanos. Ativismo. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO na promoção de políticas públicas de direitos


humanos.
A análise sociopolítica da construção da Este artigo pretende se fixar com mais
causa dos direitos humanos no espaço público detalhamento em duas dimensões. Em pri-
brasileiro envolve um conjunto de dimensões meiro lugar, os fatores que circundam o apa-
inter-relacionadas. Pode-se mencionar como recimento do ativismo em torno dos direitos
relevantes, em um primeiro momento, os efei- humanos no Brasil como uma das estratégias
tos de conjuntura favoráveis ao ativismo inter- de enfrentamento político e jurídico do regi-
nacional1 e às estratégias de sobrevivência de me militar. Aqui se busca contextualizar o
grupos políticos frente ao regime militar. Em fechamento da ordem jurídico-política que

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um segundo período, temos a proliferação do legitimou o poder das elites militares a partir
ativismo onde se destacam a defesa de apena- de 64 e restringiu os grupos políticos. A emer-
dos, grupos sociais minoritários e a proteção gência da causa dos direitos humanos apare-
da infância. A agenda militante também passa ce estreitamente relacionada a este contexto e
a se ancorar fortemente nas duas últimas dé- coadunando-se com as trajetórias de ativismo
cadas em burocracias estatais especializadas de um grupo de advogados vinculados à Igreja
Católica. A segunda dimensão enfoca a redefi-
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Fi- nição da agenda militante nas décadas de 90
losofia e Ciências Humanas. Departamento de Ciência Política. e 2000 com a consolidação de estruturas ins-
Av. Bento Gonçalves, 9500 – Prédio 43311. Campus do
Vale. Cep: 91501-970. Porto Alegre – Rio Grande do Sul – titucionais que projetam os direitos humanos
Brasil. Caixa Postal 15055. fabengel@gmail.com.
** Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto
como uma “política de Estado” com variantes
de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Ciên- regionais. Descreve-se como esse processo deu
cia Política.
Av. Bento Gonçalves, 9500 – Prédio 43311. Campus do origem, nos anos 1980, aos primeiros movi-
Vale. Cep: 91501-970. Porto Alegre – Rio Grande do Sul –
Brasil. Caixa Postal 15055. ligiamorimadeira@gmail.com mentos que reivindicavam mais nitidamente a
1
Sobre a emergência dos movimentos de direitos na Amé- promoção dos direitos humanos, desembocan-
rica latina e as iniciativas de organizações americanas em
direção ao sul, ver Dezalay & Garth (2001). do nas estruturas institucionais que proliferam

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015000300011 623
A CAUSA E AS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

nas décadas de 90 e 2000. Ao longo da déca- do regime militar e a diminuição do espaço po-
da de 90, há uma diversificação nas políticas lítico e jurídico para parte das elites políticas
de direitos humanos, o que fica evidenciado civis. O fechamento do Congresso Nacional,
a partir da maior articulação entre movimen- a proibição de associações, a restrição da li-
tos militantes e a burocracia governamental, berdade de imprensa e intensificação à perse-
resultando na expansão regional de programas guição de adversários têm por consequência a
específicos ancorados na esfera estatal. reconversão das causas políticas e métodos de
A continuidade das políticas específi- “fazer política”.
cas articuladas, assim como das iniciativas e No espaço judicial, a intervenção no
dos movimentos ancorados fora da burocracia Supremo Tribunal Federal (STF) em janeiro
governamental são uma importante dimensão de 1969, consequência do AI-5, tem um con-
para a análise da consolidação política e sim- teúdo simbólico extremamente forte e que, em
bólica dos direitos humanos no Brasil. alguma medida, pode ser tomado como marco
da reformulação das lutas jurídicas contra os
militares. Durante o período 1964-1968, o STF
CONTESTAÇÃO DO REGIME MILI- concedeu habeas corpus às demandas propos-
TAR E A EMERGÊNCIA DA CAUSA tas pelos advogados dos presos políticos pelo
DOS DIREITOS HUMANOS regime, tendo prevalecido as condições insti-
tucionais de ação previstas na Constituição de
O estreitamento do espaço político e jurídi- 1946, último marco institucional democrático
co pelos militares anterior ao regime militar. Entretanto, já com
a edição do AI-2 em 1965, a intervenção dos
A edificação da “ordem jurídica” do re- militares na cúpula do Judiciário brasileiro é
gime militar inicia-se logo após a deposição do iniciada, sendo ampliado o número dos seus
presidente civil João Goulart em 1964, com a integrantes de 11 ministros para 16. Com base
edição dos Atos Institucionais que visam cons- nesta possibilidade, Castello Branco, o pri-
truir a legitimidade jurídica das ações políticas meiro presidente do regime militar, nomearia
dos militares. A sucessiva edição de atos insti- oito ministros do STF até o final do seu man-
tucionais e da Constituição de 1967 é orienta- dato em 1967, e seu sucessor, Costa e Silva,
da pela Doutrina de Segurança Nacional, cons- nomearia outros quatro novos integrantes. Em
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truída para enquadrar potenciais inimigos do janeiro de 1969, poucos meses antes do final
Regime. Esse “efeito de instituição” do regime do mandato de Costa e Silva, três ministros
atinge o espaço judicial enquanto garantidor do STF são aposentados compulsoriamente.
de direitos políticos através de dois eixos fun- Tal retaliação, destinada aos ministros Victor
damentais. De um lado, restringe as garantias Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e
dos magistrados, assim como as prerrogativas Silva, deu-se porque estes, em votação no STF,
do exercício da advocacia sobrepondo a Lei de haviam se pronunciado contra a cassação do
Segurança Nacional às demais garantias dessas Deputado Federal Marcio Moreira Alves, que
funções. Em outro sentido, fortalece e redefine teve o mandato revogado por atacar o governo
as funções da Justiça Militar, que se torna um militar na Câmara Federal. Em solidariedade
espaço de julgamento dos “crimes políticos”.2 aos ministros aposentados, o presidente do
O Ato Institucional n. 5 (AI-5), promulgado no STF, Antônio Gonçalves Oliveira, e o ministro
final do ano de 1968, marca o endurecimento mais antigo do Tribunal, Lafayette de Andra-
2
Sobre a redefinição institucional da Justiça Militar a par-
da, pediram aposentadoria.
tir da Lei de Segurança Nacional, ver Pereira (2005) e sobre Os três ministros aposentados fazem
os processos por crime político ver relatório Brasil: nunca
mais, originalmente publicado em 1985. parte de uma geração de juristas-políticos que,

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no período anterior ao regime, atuou alinha- propostos por organizações ou famílias de ví-
da com forças políticas opostas aos militares timas da repressão militar, visando indeniza-
golpistas. São juristas e políticos em final de ções e o reconhecimento da culpabilidade do
carreira. Evandro Lins e Silva, fundador do Estado.
Partido Socialista Brasileiro em 1947, ocupou
diversos postos políticos, entre os quais, o de
Ministro de Relações Exteriores do presidente A causa dos direitos humanos na década
civil deposto em 1964, João Goulart. Já Victor de 1970: a recuperação do direito à política
Nunes Leal, jurista e ensaísta político, ocupou
o cargo de Chefe da Casa Civil do governo do A emergência da causa dos direitos hu-
presidente Juscelino Kubitschek. Finalmente, manos no Brasil dá-se a partir da década de
Hermes Lima fora primeiro-ministro durante o 1970, no cenário da articulação de grupos po-
curto período de parlamentarismo atravessado líticos em torno das reivindicações pelo resta-
pelo Brasil, além de aliado do presidente de- belecimento de direitos. Dentre os vários seg-
posto João Goulart. mentos envolvidos com a causa, destacam-se
Em outro sentido, o governo autoritário as diferentes organizações católicas.3 Nos mo-
investe no fortalecimento da Justiça Militar, mentos que antecederam o movimento militar
criada ainda durante o período colonial em de 1964, bem como na sua consolidação, se-
1808 e utilizada pelo aparelho de repressão tores do catolicismo promoveram uma suces-
política montado no Estado Novo de Getúlio são de marchas, manifestando apoio ao novo
Vargas em 1937. O Ato Institucional n. 2 modi- regime. Com a realização do Concílio Vaticano
fica o número de juízes militares de 11 para 16, II, é iniciado, no interior da Igreja Católica lati-
com a maioria nomeada pelo presidente Cas- no-americana, um ciclo no qual a preocupação
telo Branco, como já mencionado. Conforme com as causas sociais ganharia destaque. A re-
Pereira (2005), a instância superior da Justiça percussão mais clara dessa orientação no Bra-
Militar, o Superior Tribunal Militar, afirma-se sil é a Comissão de Justiça e Paz, fundada em
como um espaço de discussão do sentido da 1969, que se afirma como um dos marcos da
Lei de Segurança Nacional e com capacidade articulação da causa dos direitos humanos no
para centralizar os processos envolvendo “cri- Brasil. A Comissão foi criada como uma subse-
mes políticos”. ção da comissão de Roma, visando, assim, es-

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Os efeitos da construção institucional do capar da repressão política do regime militar.
regime militar com a restrição do espaço polí- Em 1972, é criada uma seção no Estado de São
tico encolhem o campo estatal para as elites Paulo e, em 1973, no Estado do Rio Grande do
civis contrárias ao regime e contribuem para a Sul. O envolvimento de setores da Igreja com
emergência da “causa dos direitos humanos” as famílias de presos políticos contribuiu para
através da articulação fora do espaço estatal de a articulação, em São Paulo, de um núcleo de
grupos políticos, religiosos e de juristas em tor- defesa jurídica dos perseguidos pelo regime.
no da contestação do regime. A causa coletiva, Essa articulação favoreceu a entrada em
que advém das mobilizações contra o regime cena de um grupo de advogados com atuação
militar, prossegue após a transição, sendo re- política prévia ao golpe militar, que voltam à
definida de diversas maneiras. Seja em direção cena pública engajados na defesa de presos po-
à defesa dos direitos dos presos comuns, ou líticos, projetando-se como mediadores junto a
de movimentos sociais, como os trabalhadores 3
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), Comissão
sem-terra, seja nas mobilizações pela revisão Brasileira de Justiça e Paz, Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo, Conselho Indigenista Missio-
da Lei da Anistia na década de 2000, ou, ainda, nário (CIMI), Centros de Educação Popular, Comunidades
Eclesiais de Base, Juventude Operária Católica (JOC), Ju-
nos processos judiciais individuais e coletivos ventude Universitária Católica (JUC), Pastorais.

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redes internacionais de ativistas, assim como, da Igreja Católica e tem um papel importan-
após o fim do regime militar, para postos de te na institucionalização da causa dos direitos
poder político e direção de organizações iden- humanos ao longo das últimas décadas. Tanto
tificadas ao movimento de direitos humanos. na participação militante, através da defesa de
Este grupo, formado, predominantemente, de presos políticos e nas tomadas de posição pú-
advogados católicos reunidos em torno da Co- blica de contestação ao regime militar, quanto
missão de Justiça e Paz, pode ser identificado na batalha intelectual, com a publicação de
a uma geração de juristas paulistas que teve textos e livros com doutrinas jurídicas que en-
suas carreiras políticas abreviadas pelo golpe fatizam os direitos humanos e repercutem na
militar. Diferentemente de uma primeira gera- formatação institucional dos direitos e garan-
ção em fim de carreira, à qual pertencem os tias individuais presentes na Constituição de
ministros aposentados compulsoriamente do 1988.4 Em sua maioria, o grupo é contempo-
STF – todos cariocas e formados em direito râneo de estudos de direito na USP, formados
entre 1917-1935 na faculdade de direito do entre 1954 e 1959 e com percursos comuns
Rio de Janeiro – esta segunda geração de ju- como professores da USP e atuação na advoca-
ristas, ancorada na advocacia, terá um papel cia. Ocupam, também, postos públicos impor-
mais ativo após o final do regime militar, o que tantes na década de 90, no momento em que
fica evidenciado pela comparação das trajetó- começam a ser construídas as estruturas bu-
rias políticas. No Quadro 1, são destacados os rocráticas que promovem a causa dos direitos
trajetos de quatro casos representativos deste humanos como uma “causa de Estado”.
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grupo, Hélio Bicudo, Dalmo de Abreu Dallari,


Fábio Konder Comparatto e José Carlos Dias. 4
Integrantes do grupo têm papel ativo na produção de
Este grupo de advogados participou doutrinas constitucionais que repercutem na discussão do
“papel político” da Constituição de 1988. Para maior deta-
como fundador da Comissão de Justiça e Paz lhamento ver Engelmann (2006 ) e Engelmann (2016b ).

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OS DIREITOS HUMANOS COMO sinatos de dissidentes. No período posterior,


POLÍTICA DE ESTADO no entanto, com a eclosão, durante o processo
democratizante, de altas taxas de criminali-
Dos anos 1980 aos anos 2000: movimentos dade, emerge uma visão conservadora que se
em direção ao poder e novas agendas contrapõe à diminuição da função repressora
do Estado. Conforme acentuam Paulo Sergio
Já no final dos anos 70, ocorre uma pro- Pinheiro e Paulo Mesquita Neto (1997, p. 121):
gressiva autonomização da pauta dos direitos Nos anos 60 e 70 a violência arbitrária do Estado
humanos em relação às organizações católicas. e o desrespeito às garantias fundamentais fez com
A partir desse momento, a causa atinge uma que indivíduos e grupos se voltassem contra o re-
perspectiva mais ampla, voltada à preservação gime autoritário em nome da defesa dos direitos
humanos. As primeiras comissões de direitos hu-
de direitos coletivos, sendo as áreas prioritá-
manos foram instituídas a partir da década de 70 e
rias de ação, a violência policial, o saneamen- chamaram a atenção para a tortura e os assassinatos
to básico, as creches, a orientação trabalhista de dissidentes e presos políticos revelando as con-
e a organização de grupos de saúde (Vieira, dições gritantes das prisões brasileiras. Nos anos 80
2005, p. 49). É desta fase a formação do Gru- e 90, entretanto, o aumento da criminalidade e da
po Tortura Nunca Mais, em 1985, fundado insegurança, agora sob o regime democrático levou
indivíduos e coletividades a se voltarem contra a
por ex-presos políticos, familiares de mortos
defesa dos direitos humanos, os quais alegavam que
e desaparecidos ao longo do regime militar. tais direitos serviam mais aos criminosos e aos de-
Durante a transição para a redemocratização, linquentes do que às vítimas.
os movimentos lutaram pela incorporação de
direitos na nova Constituição Federal, estimu- Adorno (2010) também aponta para a
lando a institucionalização de entidades da demora da legitimação da agenda dos direitos
sociedade civil. Nessa fase, “[...] parte dos an- humanos no Brasil, justamente em função de
tigos militantes ou lideranças dos movimentos que “[...] temas de direitos humanos suscita-
passaram a participar da esfera governamental vam reações depreciativas frequentemente
[...]” implicando um “refluxo dos movimentos associadas pela opinião pública, à defesa dos
contestatórios” (Scherer-Warren, 2008, p. 12). direitos de bandidos, à utopia de militantes
Já ao longo dos anos 1980, os ativistas de que imaginavam uma sociedade despida de
direitos humanos encontraram vários canais violência ou ainda à sede de vingança por par-

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de articulação com o Estado brasileiro, seja te de quem havia sido perseguido durante a
através da montagem de Comissões de Direitos ditadura militar” (Adorno, 2010, p. 5). Apesar
Humanos no âmbito dos poderes legislativos, de a Constituição Federal de 1988 afirmar-se
seja pela fundação do Movimento Nacional de no marco legal originário para tal processo, é
Direitos Humanos (MNDH) em 1982. Se a cau- em 1996, com a edição do I Plano Nacional de
sa de direitos humanos no Brasil foi constituí- Direitos Humanos (PNDH), e no ano seguinte,
da ainda sob a égide da ditadura militar, tendo com a criação da Secretaria Nacional de Direi-
como marca a luta contra o regime autoritário tos Humanos no Ministério da Justiça, durante
e suas frequentes violações às garantias fun- o primeiro mandato do Presidente Fernando
damentais, é no retorno ao regime democráti- Henrique Cardoso, que a temática assume,
co que assume, progressivamente, um viés de efetivamente, relevância como “assunto de
“causa de Estado”. No entanto, o processo de Estado”. Conforme Pinheiro & Mesquita Neto
institucionalização não implica uma legitima- (1997), o plano nacional foi elaborado incor-
ção social no mesmo ritmo. Ao longo do regi- porando contribuições de organizações não go-
me militar, as batalhas por direitos tinham en- vernamentais e contemplando um ciclo de se-
tre seus centros a denúncia da tortura e assas-

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minários regionais em seis capitais brasileiras, ça as orientações do primeiro e amplia os di-


constituindo-se no primeiro programa de pro- reitos a serem protegidos, especialmente men-
teção aos direitos humanos na América Latina. cionando direitos de identidade de gênero, en-
O conceito de direitos humanos assumi- fatizando a violência intrafamiliar, o combate
do pelo primeiro PNDH reconhece o papel e a ao trabalho infantil e a luta pela inclusão de
obrigação do Estado como órgão promotor dos pessoas portadoras de deficiências. Conforme
direitos humanos, bem como a universalidade Adorno (2010), enquanto o I PNDH privilegiou
e indivisibilidade de tais direitos. A adoção de os direitos civis e políticos, o II PNDH avança
um conceito largo de direitos humanos, que na proteção dos direitos sociais, econômicos
engloba direitos civis e políticos, mas, tam- e culturais. Esse avanço, detalhado pelo au-
bém, econômicos, sociais e culturais – pelo go- tor, inclui a “[...] proteção de direitos à edu-
verno brasileiro – reforça perspectivas defendi- cação, à saúde, à previdência e à assistência
das por organismos internacionais. (Pinheiro; social, à saúde mental, aos dependentes quí-
Mesquita Neto, 1997, p. 123). Não houve refe- micos e portadores de HIV/AIDS, ao trabalho,
rência aos direitos à livre orientação sexual e ao acesso à terra, à moradia, ao meio ambiente
identidades de gênero, tendo sido privilegiada saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer”
a preocupação com a redução da violência e do (Adorno, 2010, p. 12). Outro foco é a inclusão
crime através de medidas ligadas à segurança de medidas protetivas dos afrodescendentes,
pública. Dentre essas medidas, destacam-se a através de políticas de ações afirmativas.
transferência de julgamento de crimes dolosos Em 1º de janeiro de 1999, a SNDH foi
contra a vida cometidos por policiais militares transformada em Secretaria de Estado dos
para a justiça comum, a tipificação do crime Direitos Humanos – SEDH, com assento nas
de tortura, a criminalização do porte ilegal de reuniões ministeriais. Dentre os secretários
armas e a criação do Estatuto dos Refugiados. da SEDH, durante os mandatos de Fernan-
do Henrique Cardoso, estiveram José Gregori
(1997/2000), (2000/2001) e Paulo Sérgio Pi-
“Estatização” da causa, planos e (re) con- nheiro (2001/ 2003). José Gregori e Paulo Sér-
versão dos ativistas gio Pinheiro também se destacaram em outras
funções, o primeiro como Ministro da Justiça
A montagem da Secretaria Nacional de (2000/2001) e segundo como redator dos PNDH
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Direitos Humanos em 1997 no âmbito do Mi- I e II. Além deles, José Carlos Dias também ob-
nistério da Justiça teve por propósito a coor- teve destaque nas políticas estatais de direitos
denação das ações de execução do Programa humanos quando Ministro da Justiça entre os
Nacional de Direitos Humanos-PNDH. Como anos 1999 e 2000. A análise dos trajetos dessas
parte da construção das estruturas governa- lideranças políticas e intelectuais indica se tra-
mentais, essa iniciativa foi imprescindível tar de um grupo de advogados que participou
para a implementação da política de direitos da resistência ao regime militar e que, mesmo
humanos no Brasil. Ainda durante o governo ocupando postos no governo, adquire relativa
do presidente Fernando Henrique Cardoso, no autonomia frente à coalizão governamental:
seu segundo mandato, em 2002, é lançado o
A bem da verdade, os governos civis pós-redemo-
II PNDH, resultado da revisão e do aperfeiço- cratização deram início à incorporação de direitos
amento do primeiro programa e incorporando humanos nas políticas governamentais. Todavia, foi
as recomendações da IV Conferência Nacional no governo FHC que o tema entrou definitivamente
de Direitos Humanos, ocorrida em 1999 (Ador- para a agenda política nacional, em parte graças a
no, 2010, p. 10). uma conjuntura internacional favorável, em parte
devido à presença mais destacada no governo de li-
O conteúdo do segundo Programa refor-

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deranças reconhecidas e identificadas com direitos pelo militantismo anterior à chegada ao gover-
humanos, como os ministros José Gregori e Paulo no e, também, com passagens pelos poderes
Sérgio Pinheiro. Ainda assim, é bom lembrar, não
legislativos. A trajetória mais marcante na luta
se pode dizer que a composição de forças e alianças
de sustentação do governo FHC fosse inteiramente
contra as violações de direitos humanos nes-
simpática à agenda, sobretudo quando em pauta es- sa nova fase é, sem dúvida, a do ex-ministro
tavam iniciativas que visassem exercer férreo con- Vannuchi, cuja atuação na formulação do III
trole civil sobre as forças policiais militares, ou que PNDH marcou a história recente da consolida-
pretendessem reparação diante das graves violações ção dos direitos humanos no Brasil.
de direitos humanos ocorridas no curso da ditadura
Os dados dos trajetos políticos e de par-
militar. (Adorno, 2010, p. 9).
ticipação em organizações e comissões nacio-
Com a ascensão de Luís Inácio Lula da nais e internacionais de direitos humanos in-
Silva e do PT ao governo, inicia uma nova fase dicam a relativa autonomização da agenda dos
no processo de institucionalização dos direitos movimentos em relação à esfera da política
humanos no Brasil. Se, por um lado, há conti- representativa e partidária. Independente da
nuidades apontadas pela manutenção da pre- trajetória de exercício de mandato parlamentar
ocupação em implementar direitos e garantias e vínculos partidários, os dirigentes da Secre-
previstas constitucionalmente, por outro, per- taria possuem, ao menos até 2011, uma forte
cebem-se mudanças na expansão dos direitos imbricação com o espaço do militantismo, in-
a serem protegidos a partir da elaboração do cluindo organizações de resistência ao regime
III Plano Nacional de Direitos Humanos, como militar anteriores aos organismos de promoção
exposto mais adiante. Outro fator que chama dos direitos humanos (Anexo I).
a atenção é a alteração do perfil dos dirigentes O III PNDH amplia o rol de direitos ao
em postos-chave nas burocracias relacionadas incorporar demandas oriundas das conferên-
à causa, que deixam de ser originários das áre- cias ocorridas ao longo do período da década
as jurídicas, assumindo perfis com diferentes de 2000, percebe-se a continuidade e o apro-
formações, cuja característica unificadora é a fundamento da preocupação com direitos civis
militância política vinculada ao Partido dos e sociais. A inovação do plano aparece no res-
Trabalhadores (PT). guardo das liberdades individuais ao propor a
Durante os mandatos dos presiden- descriminalização do aborto, a união civil de
tes Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rouseff pessoas do mesmo sexo, o direito de adoção

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(2010 a 2013), passaram pela Secretaria, Nil- por casais homoafetivos e a efetivação da lai-
mário Miranda, Mário Mamede Filho, Paulo de cidade do Estado. Mas é nas feridas abertas
Tarso Vannuchi e Maria do Rosário. Com di- pelo regime autoritário, com a proposição da
ferentes formações, os secretários destacam-se Comissão Nacional de Verdade para investigar

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as violações de direitos ao longo do regime mi- Políticas para a Promoção da Igualdade Racial
litar, que o plano suscitou críticas mais duras – SEPPIR. Entre as entidades financiadas pelos
dos setores tradicionais da sociedade. convênios há uma variação significativa nos es-
Indicativo complementar do perfil de tados. Enquanto o estado de São Paulo tem nas
demandas abrigadas no guarda-chuva das de- entidades da sociedade civil as maiores pro-
finições de direitos humanos pode ser obtido motoras de ações, restando alguns convênios
ao se analisar o amplo leque de revistas espe- com prefeituras, o estado do Rio de Janeiro tem
cializadas que proliferam ao longo da década uma clara divisão entre convênios promovidos
de 2000. Articuladas por associações, observa- por organismos da sociedade civil, por secreta-
tórios e, também, por programas de pós-gradu- rias estaduais, geralmente de assistência social
ação que se formam no espaço acadêmico em e direitos humanos e prefeituras. Já no caso de
torno das questões relacionadas à temática. Minas Gerais, novamente, a maior incidência é
de convênios promovidos pela sociedade civil.
Enquanto no Espírito Santo são as secretarias
Políticas e programas de direitos humanos estaduais quem mais promovem ações.
no Brasil: arranjos entre as entidades sub- As ações de promoção a direitos hu-
nacionais manos financiadas pela SEDH, pela SEPM e
SEPPIR na região sudeste reproduzem os eixos
Tendo em vista o panorama descrito so- de atuação nacional. As ações financiadas pela
bre a institucionalização de políticas de direi- SENASP também têm essa característica, pro-
tos humanos pelo governo federal, o objetivo movendo prevenção, capacitação de agentes
desta seção é a análise das ações em curso en- e implementando programas voltados ao pú-
tre as entidades federais e entes subnacionais – blico em vulnerabilidade criminal. Apesar da
estados, municípios e organismos da socieda- importância desses convênios, seu número é
de civil – buscando verificar quais os tipos de muito inferior aos promovidos por outras Se-
programas e políticas de direitos humanos im- cretarias, como a SEDH e a SEPM.
plementados, quais as temáticas mais encon- No caso da implementação de políticas
tradas e a relação entre o perfil das temáticas e federais, encontramos o Programa Nacional
as regiões do país. Os dados foram construídos de Enfrentamento à Violência Sexual, o Pro-
a partir dos convênios da União federal no Por- grama de Erradicação do Tráfico de Pessoas, o
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tal da Transparência, selecionados pelo termo Sistema de Garantias de Direitos das Crianças
direitos humanos. A União realizou 405 con- e Adolescentes, o Plano Nacional de Políticas
vênios com entes subnacionais e entidades da para as Mulheres, os Centros de Referência em
sociedade civil entre os anos de 2009 e 2012. Direitos Humanos e os programas da Política
Neste trabalho, são considerados os convênios de Segurança Alimentar promovida pelo Mi-
da região Sul, Sudeste e Norte. nistério do Desenvolvimento Social e combate
à Fome (MDS).
A análise dos convênios na região Su-
Região Sudeste deste permite inferir que regiões com tradição
em políticas e programas de direitos humanos
Os convênios na região Sudeste têm desenvolvem arranjos nos quais atores como
como órgãos concedentes prioritários a Secre- municípios e sociedade civil têm um grande
taria Especial de Direitos Humanos – SEDH, o peso, em oposição a regiões com menor tra-
Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, dição, como a região norte, em que as ações
a Secretaria Especial de Políticas para as Mu- ainda se restringem a atores estaduais. Assim,
lheres – SENASP e a Secretaria Especial de é interessante perceber o quanto as ações da

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região Sudeste privilegiam atores da sociedade vínculo entre políticas para as mulheres e polí-
civil e mesmo municípios, havendo uma me- ticas de segurança pública, tendo como objeto
nor prevalência de convênios com secretarias ações de direitos humanos.
estaduais. No âmbito das políticas de direitos hu-
Outra inferência interessante, a par- manos envolvendo a área de segurança públi-
tir da análise comparada entre as regiões sul, ca, destacam-se ações de capacitação em direi-
sudeste e norte, é perceber o quanto regiões tos humanos de policiais, guardas municipais
com tradição em políticas de direitos humanos e agentes de segurança, financiadas pela SE-
costumam implementar programas federais se- NASP, e os tradicionais projetos de construção
guindo o modelo de outras áreas como a saúde e ampliação de vagas prisionais, financiados
e a assistência social, em que programas são pelo Departamento Penitenciário Nacional,
formulados pela União para serem implemen- desenvolvidos com secretarias estaduais de
tados por entes subnacionais. Diferentemente justiça ou de segurança. Em termos de imple-
desse panorama, regiões com menor tradição mentação de políticas federais, estão o Plano
costumam ter um maior protagonismo na for- Nacional de Políticas para as Mulheres, o Pro-
mulação de políticas, como veremos, especial- grama de Ações Integradas e Referenciais de
mente, em relação à região Norte. Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Ju-
venil no Território Brasileiro, o PAIR, e a capa-
citação em direitos humanos de mulheres tra-
Região Sul balhadoras rurais pertencentes aos Territórios
de Cidadania, política do Ministério da Agri-
Na região sul, há uma diversificação cultura. Na área de segurança, há implementa-
maior entre os órgãos concedentes, encon- ção de programas como o Mulheres da Paz. As
trando-se convênios financiados pela SEDH, ações do Fundo Nacional Antidrogas preveem
SEPM, SEPPIR, Secretaria Nacional de Juven- a implantação de Conselhos Estaduais Anti-
tude, o Fundo Nacional da Criança e Adoles- drogas, ações de conscientização de famílias
cente, o Ministério da Educação, o Ministério de usuários, ações de inclusão digital, através
do Esporte e o Ministério da Justiça, através de da atuação de Conselhos Tutelares e Conselhos
ações financiadas pela SENASP, pelo Depar- Municipais de Políticas sobre Drogas. Assim
tamento Penitenciário Nacional e pelo Fundo como em outras regiões, a implementação de

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Nacional Antidrogas. As entidades conceden- políticas federais costuma se dar pela atuação
tes têm distribuição equânime entre secreta- de secretarias estaduais.
rias estaduais, prefeituras e entidades da so- É interessante perceber o quanto as
ciedade civil. ações da região Sul estão distribuídas entre
As temáticas e ações objeto dos convê- atores da sociedade civil, secretarias estaduais
nios também são mais diversificadas na região. e prefeituras. Em comparação com a região Su-
Dentre os convênios voltados à promoção de deste, a implementação de programas federais
direitos humanos do público prioritário da ocorre em número reduzido na região Sul. En-
SEDH, destacam-se, também, ações para indí- quanto na região Sudeste há uma preocupação
genas e quilombolas, idosos e mulheres víti- mais ampla com a segurança pública, na região
mas de violência. As ações da SEPM também sul as ações são mais diversificadas. Chama a
inovam ao enfocar direitos sexuais e reprodu- atenção, também, que estão englobados sob
tivos, formação de promotoras legais popu- a bandeira de “direitos humanos” convênios
lares, bem como a qualificação de servidoras diversos, firmados com órgãos distintos dos
penitenciárias para atuar no fortalecimento encontrados nas outras regiões, ampliando o
dos direitos humanos de mulheres presas, um conceito de direitos humanos rumo à política

631
A CAUSA E AS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

social, muito embora o número de ações pro- ciedade civil ou mesmo dos municípios, a re-
movidas pela SEDH continue muito superior gião destaca-se, também, pela implementação
aos demais órgãos do governo federal. de programas federais, sendo a região onde o
Reproduzindo o que sustentamos em re- modelo de coordenação do federalismo bra-
lação à região Sudeste, regiões com tradição na sileiro é mais bem caracterizado. Ou seja, em
luta e na implementação de políticas de direitos regiões com pouca tradição de luta e de im-
humanos demonstram uma ampliação no foco plementação de políticas de direitos humanos,
das ações, permitindo um viés mais amplo do ainda é muito reduzido o papel de outros ato-
que tradicionalmente está englobado pela te- res que não os estados.
mática. Em termos de atores, regiões com de- Esse mapeamento das regiões sul, su-
senvolvimento histórico na área também reve- deste e norte permite inferir sobre o padrão de
lam uma maior diversificação, permitindo que desenvolvimento de políticas e programas de
a sociedade civil e os municípios sejam prota- direitos humanos no Brasil, tendo em conta o
gonistas dessas ações. desenho e a forma de exercício do federalismo
Veremos, agora, o quanto esse panorama brasileiro. Diferentemente de outros setores de
se altera quando tomamos como objeto de aná- políticas públicas, como a saúde e a assistên-
lise a região Norte do país. cia social, em que há uma clara coordenação
das ações e políticas no governo federal, com
o desenvolvimento de sistemas e políticas for-
Região Norte muladas no âmbito da união e executados por
estados, mas, principalmente, pelos municí-
Nesta região, caracterizada por níveis pios, a área de direitos humanos revela-se bas-
mais baixos de desenvolvimento humano, ve- tante esparsa.
rifica-se uma tendência mais estatalizada na Uma análise nacional dos convênios,
promoção de ações de direitos humanos, uma tendo em conta os eixos prioritários de atuação
vez que, praticamente, todos os convênios são da SEDH, SENASP, SPM e SEPPIR, somada à
promovidos por secretarias estaduais. Como análise dos principais eixos de violação de di-
órgãos concessores, novamente, estão a SEDH, reitos humanos, demonstram uma sobre repre-
a Secretaria Especial de Políticas para as Mu- sentação de determinadas áreas, como crian-
lheres e o Ministério da Justiça, através do De- ças, adolescentes e deficientes, e uma carência
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partamento Penitenciário Nacional e do Fundo de ações em outras, como políticas para ido-
Nacional Antidrogas. sos. Chama muito a atenção, também, a inexis-
Pelas características da região, verifi- tência de programas relativos ao primeiro eixo
cam-se ações voltadas a violações de direitos da SEDH, cuja preocupação são as violações de
humanos, pouco encontradas nas outras duas direitos humanos de especial gravidade, com
regiões analisadas, como os mutirões de ações abrangência nacional, como chacinas, exter-
de cidadania, especialmente voltados a erra- mínio, assassinatos de pessoas ligadas à defesa
dicar o sub-registro civil (SEDH). Outro pro- dos direitos humanos, massacres, abusos pra-
blema objeto de ações é o tráfico de pessoas, ticados por operações das polícias.
especialmente mulheres (SEPM). As ações do Temas-chave de violação de direitos hu-
Departamento Penitenciário Nacional também manos ainda não são contemplados com ações
voltam-se a problemas locais, como a falta de promovidas pelos entes investigados. Outra
vagas prisionais femininas. característica das ações encontradas é a ten-
Em sendo a maioria das ações desenvol- dência ao financiamento de ações formuladas
vidas entre os órgãos federais e as secretarias pelos entes subnacionais ou da sociedade ci-
estaduais, não havendo protagonismo da so- vil, e a ainda reduzida implementação de polí-

632
Fabiano Engelmann, Lígia Mori Madeira

ticas federais, especialmente em regiões como militantismo, ancorados em parâmetros insti-


a Sul, onde o protagonismo de municípios e tucionais consolidados e na chegada ao poder
sociedade civil é maior, distanciando-se do político de ex-militantes da década de 70. A
modelo federalista descrito acima. Outra cons- transformação dos direitos humanos em uma
tatação se refere à abrangência das ações tidas “política de Estado”, com a concretização de
como de direitos humanos, constituindo um políticas em diversos caminhos, acompanha
guarda-chuva sob o qual todo o tipo de ação um avanço de novos perfis de reivindicações
pode se enquadrar. em torno dessa causa, com maior articulação
Percebe-se, também, o quanto o modelo com as burocracias públicas nacionais e regio-
federalista, que concedeu autonomia aos mu- nais.
nicípios, tem diferentes formas de implemen- Também fica evidenciada a relativa au-
tação, tendo-se em conta as regiões do país. tonomia obtida pelas estruturas burocráticas,
Em primeiro lugar, é interessante perceber o marcos legais e agentes que ocupam posições
quanto a temática e a promoção de políticas e públicas nesse espaço em relação às oscilações
programas de direitos humanos restringem-se eleitorais e às conjunturas dos governos. A
à esfera estadual, aos estados, especialmente continuidade das políticas específicas articu-
nas regiões de menores índices de desenvol- ladas, assim como das iniciativas e movimen-
vimento humano, enquanto nas regiões mais tos ancorados fora da burocracia governamen-
desenvolvidas encontra-se uma maior partici- tal são uma importante dimensão para a aná-
pação dos municípios nas ações de promoção lise da consolidação política e simbólica dos
a direitos humanos. direitos humanos no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Recebido para publicação em 18 de novembro de 2013


Aceito em 30 de julho de 2014

No processo de emergência da causa dos


direitos humanos até a consolidação de políti-
cas de Estado abrigadas sob essa perspectiva REFERÊNCIAS
transcorreram três décadas. Nesse histórico, ADORNO, Sérgio. História e desventura: O 3º Prograna
percebe-se a migração de um ativismo con- Nacional de Direitos Humanos. Novos Estudos CEBRAP,

Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 75, p. 623-637, Set./Dez. 2015


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633
A CAUSA E AS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

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Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 75, p. 623-637, Set./Dez. 2015

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Fabiano Engelmann, Lígia Mori Madeira

HUMAN RIGHTS CAUSES AND POLICIES IN LA CAUSE ET LES POLITIQUES DES DROITS DE
BRAZIL L’HOMME AU BRÉSIL

Fabiano Engelmann Fabiano Engelmann


Lígia Mori Madeira Lígia Mori Madeira

This study analyzes the emergence and L’article se veut d’analyser l’apparition et la
consolidation of the human rights cause in Brazil consolidation de la cause des droits de l’homme
over the last decades. The main argument is that the au Brésil au cours des dernières décennies. Le
human rights movement emerged, as in other Latin principal argument est que le mouvement des droits
American contexts, from the fight against totalitarian de l’homme surgit, comme dans d’autres contextes
regimes, and was consolidated with institutional en Amérique latine, de la contestation du régime
achievements after the re-democratization of the militaire autoritaire et qu’il s’est consolidé dans le
country. Analyzing the profile of the causes and cadre institutionnel après la re-démocratisation du
trajectories of the main leaders of the movement in pays. L’analyse du profil des causes et de la trajectoire
Brazil enables us to state that the human rights have des principaux leaders du mouvement au Brésil nous
become, over the 1990s, a “cause of the State”. One permet d’affirmer que les droits de l’homme se sont
of the strongest indicators of this transformation is transformés au cours des années 90 en une “cause
the articulation between militant movements and d’État”. L’un des indicateurs les plus forts de cette
the government bureaucracy, and the expansion of transformation est le rapport entre les mouvements
human rights programs across Brazil, especially in militants et la bureaucratie gouvernementale ainsi
the South, Southeast and North. que l’expansion de programmes de défense des droits
de l’homme, surtout dans les régions sud, sud-est et
nord du pays.

Keywords: Brasil. Human Rights. Activism. Public Mots-clés: Brésil. Droits de l’Homme. Activisme.
Policies. Politiques Publiques.

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Fabiano Engelmann – Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento e do Programa de Pós-


Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Bolsista de
Produtividade do CNPq. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político da UFRGS-
NEJUP, Áreas de Pesquisa: Instituições Judiciais e Política, Elites e poder político e Sociologia Política.
Lígia Mori Madeira – Doutora em Sociologia. Professora adjunta do Departamento e do Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Suas pesquisas
enfocam os temas: instituições jurídicas comparadas, políticas sociais e desenvolvimento, violência,
criminalidade e políticas públicas de segurança. Recentemente realizou estágio de pós-doutorado como
Visiting Senior Fellow no Departamento de Politica Social da London School of Economics and Political
Science. Bolsista da CAPES

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A CAUSA E AS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Fabiano Engelmann, Lígia Mori Madeira

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Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 75, p. 623-637, Set./Dez. 2015

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