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UFRJ-PPGAS/MN

MNA824 – Sociedades Camponesas – 2018/2


Ellen Fernanda Natalino Araújo

Os Milton: de camponeses caboclos a indígenas Kuntanawa

Os Milton constituem um grupo familiar que vive na região do Alto Juruá no Estado do
Acre. Os membros dessa família ficaram conhecidos na literatura antropológica a partir
da etnografia da antropóloga Mariana Ciavatta Pantoja Franco (FRANCO, 2001) que
viveu entre eles no final da década de 1990. Naquela época implantava-se a Reserva
Extrativista do Alto Juruá e a autora foi para a região para trabalhar no assessoramento
técnico da implantação do órgão. O contexto era de mudança das dinâmicas de trabalho
e políticas e o grupo familiar de Seu Milton estava ativamente engajado. De sua relação
com diversos membros dessa família, a antropóloga reconstituiu o histórico da região e
dos seringais, além das trajetórias de vida. Sua tese proporciona uma descrição da
dimensão positiva e criativa da vida nos seringais e permite conhecer as dinâmicas sociais
específicas desse grupamento humano constituído a partir do final do século XIX. Aqui,
tomo como base a tese de Mariana Franco e a vida dos Milton para caracterizar a
sociedade do seringal, naquilo que esta se aproxima da sociedade camponesa. Ademais,
a partir da auto-afirmação dos Milton como povo indígena (Kuntanawa) ocorrida a partir
de 2004, e tratado pela autora em posfácio de sua tese, tento pensar como as demandas
étnicas constituem um novo fator a infletir na caracterização das sociedades seringueiras.
Na introdução da coletânea, Peasant Society, George M. Foster (1967), apresenta
uma definição e o desenvolvimento da categoria camponês no âmbito da disciplina
antropológica. Para além de um fenômeno socioeconômico histórico do continente
europeu, o autor busca mostrar como a sociedade camponesa constitui-se em um tipo
social com características próprias presente em diversas regiões do globo. A
conceituações, geralmente partem da formulação de Kroeber (1948 apud Foster, 1967) e
caracterizam a sociedade camponesa como parte de uma outra sociedade englobante
(party-society). Firth (1950 apud Foster, 1967) considera que o termo camponês tem
como principal referente o aspecto econômico; trata-se portanto de um tipo de unidade
produtiva, independentemente da natureza da atividade econômica, podendo ser
agricultura, pesca, artesanato, etc.
Já Redfield (1953:31) considera o camponês como um tipo humano que surgiu a
partir do desenvolvimento das cidades e que está relacionado ao núcleo urbano pela chave
da dependência intelectual, religiosa, política e social. Por sua vez, para Worth (1966
apud Foster, 1967) os camponeses são definidos pela sua relação de integração com
sociedades estatais que os tornam sujeitos a demandas e sanções dos centros de poder
externos ao seu estrato social. Para Foster (1967:6) o critério de definição deve ser
estrutural e relacional. Quando um grupo de pessoas rurais submetem à troca externa uma
parte do que produzem por itens que eles não podem produzir, num mercado translocal,
então este grupo pode ser considerado camponês.
Ao longo do desenvolvimento da disciplina antropológica e a produção de
etnografias relacionadas a grupos categorizados, de saída, como camponeses, as
definições sobre esse tipo social foram adensadas e complexificadas, levando-se em
conta, não apenas sua relação integrativa com uma sociedade englobante, mas também
aspectos peculiares à sua constituição. O aspecto econômico é um dos mais relevantes
para a definição dos tipos de grupo social, e a sociedade camponesa, a princípio, foi
tomada como uma unidade produtiva simples baseada na subsistência e na troca pontual.
Desde que Polanyi (2012 [1957]) marcou a diferença entre as acepções substantiva e
formal do termo econômico, postulando o caráter restrito do segundo, abriu-se espaço
para a compreensão da economia empírica, ou seja, dos processos instituídos
particularmente, por cada sociedade, a fim de satisfazer suas necessidades materiais
através dos meios disponíveis.
Levando em conta essa perspectiva polanyiana, Bohana e Dalton (1965),
analisando economias de mercado em diferentes sociedades africanas, por exemplo,
chamaram atenção para a peculiaridade dessas economias originariamente não
capitalistas, fornecendo um arcabouço para pensar distintas situações que envolvem
trocas e mercados mas que não são regidas pelo princípio de mercado capitalista. Há
diversas variáveis (parentesco, relações pessoais, normas tradicionais, etc.) em jogo para
além da lei da oferta e da procura. Preço de mercado não aloca fatores de produção, nem
o valor de troca é o que determina a priori o que se irá produzir.
Abaixo sumarizo alguns aspectos da sociedade seringueira naquilo que esta se
aproxima de uma sociedade do tipo camponês, buscando ressaltar as peculiaridades que
possibilitam caracterizá-la desde esse viés, ainda que a atividade econômica vigente neste
tipo de grupo social encarne dispositivos muito próprios.
***
Pelo menos virtualmente, pode-se dizer que as seringueiras (Siphonia elastica)
sempre existiram sob a densa vegetação das terras baixas da floresta amazônica; e que os
grupos humanos originários desta região a conheciam, coletavam e a utilizavam para
finalidades próprias de suas sociedades1. Já os seringais, unidades produtivas
estabelecidas para a exploração da borracha em grande escala, é um empreendimento
ocidental que remonta à segunda metade do século XIX. Naquela época, a borracha
amazônica era bastante requisitada nos mercados americanos e europeus para produção
industrial de bens manufaturados, tais como, pneus de bicicletas e automóveis. Tal
demanda comercial provocou a expansão da exploração da borracha desde ilhas e terras
pantanosas a oeste do estado do Pará até floresta adentro em regiões cortadas pelos rios
Solimões, Madeira, Purus e Juruá (FRANCO, 2001, p.87-90; BATES, 1979 [1863] apud
FRANCO, 2001, p.89).
Habitada mormente por populações indígenas (mas onde, naquela época, já se
podia encontrar um pequeno contingente de migrantes, brancos, negros, funcionários do
governo, etc.) a região do Alto Juruá fora percorrida por “exploradores”, na década de
1880, cujo objetivo era ocupar e delimitar áreas para abertura de seringais. Os índios
pareciam também ser, para os brancos que chegavam, seres de uma humanidade diferente,
havendo relatos entre 1770 e 1840 sobre a existência de povos anões e com caudas - filhos
de mulheres com o macaco coará, por exemplo (FRANCO, 2001, p.137). A chegada
desses novos ocupantes, vindos de outros países, como Itália, e principalmente da região
nordeste do Brasil, era seguida “da tomada de posse e auto-proclamação de propriedade”
como descreve Mariana Franco (2001, p.94), que também conclui: “o maior obstáculo à
expansão dos seringais era com certeza a presença indígena contra a qual se investiu com
determinação” (FRANCO, 2001, p.95). Tal determinação verteu-se, na maioria dos
casos, no emprego da violência para a expulsão da população habitante naquela porção
territorial que passava a ser considerada adequada e desejada para a criação dos seringais,
resultando no extermínio completo de variados grupos indígenas.
Além do massacre, nas correrias também se davam a captura e escravização dos
indígenas para trabalho nos seringais, constituindo-se um assim um tráfico de mão de
obra humana, com a venda de mulheres e crianças. Em alguns seringais havia trabalho de
indígenas, como os do povo Kaxinawá do rio Jordão. Ao contrário do que ocorreu nos
cauchais colombianos do Putumayo estudados por Michel Taussig, a mão de obra

1
Como descreveu Lévi-Strauss, em O Pensamento Selvagem, os ameríndios são grandes conhecedores da
flora e fauna das regiões que habitam..
indígena não foi predominante nos seringais amazônicos – a maioria dos seringueiros
eram trabalhadores emigrados da região nordeste do país.
A primeira grande onda migratória do Nordeste brasileiro para os seringais
amazônicos desenrolou-se ao longo de 40 anos e seu contexto foi principalmente o dos
anos de auge da borracha (1870 a 1912), e não o da seca nordestina. Havia o impulso pela
ilusão de liberdade (não proporcionada pelos cafezais do sul), a ilusão do enriquecimento
fácil e os incentivos e facilidades concretos para migração para o norte. As viagens eram
incentivadas e providenciadas por casas aviadoras e proprietários de seringais que
enviavam emissários às cidades nordestinas. Mas a motivações também obedeciam a
determinações individuais como a curiosidade e o desejo de conhecer novos lugares (cf.
testemunho de Alfredo Lustosa Cabral).
Pois bem, é diante desse contexto histórico, pelo encontro de diferentes
populações e a exploração comercial de uma commodity, que podemos pensar os seringais
como eixo aglutinador em torno do qual constituiu-se um modo específico de vida, a
sociedade seringueira. Muitos aspectos relativos à composição social, econômica e
política dos grupos sociais deste tipo o aproximam daqueles que a literatura antropológica
reconhece como sociedades camponesas.
O mercado da borracha conheceu, ao longo do século XX, diferentes crises2, e os
seringueiros precisaram diversificar suas atividades econômicas para obterem sustento
nos períodos em que a seringa se desvalorizava. Ao lado da extração do látex, os
habitantes foram se empenhando, com o passar dos anos, no corte de madeira, na caça de
animais silvestres para extração e venda da pele, além de se dedicarem a agricultura:
produtos como farinha de mandioca, açúcar mascavo e tabaco começaram a ser plantados
e exportados para o baixo Juruá e mesmo para Manaus. Contudo a autora irá destacar
que nos seringais dos altos rios, a borracha, bem ou mal paga, era a moeda vigente. Os
seringueiros produziam os bens essenciais para viver, em especial alimento (farinha,
açúcar, caça etc), e produziam borracha para adquirir insumos: sal para conservação da
carne de caça, por exemplo, e bens industrializados, como ferramentas de trabalho
(FRANCO, 2001, p.128-129).

2A partir de 1912, após o ápice da exportação da borracha, o mercado interno sofre com a crise no preço
da borracha provocada pela produção de cultivo de seringa na Malásia por parte dos ingleses. No começo
da década de 1940 há novo florescimento da produção da borracha devido a segunda guerra mundial, ao
domínio dos japoneses sob a produção inglesa, o que obrigou os Estados Unidos a buscarem uma alternativa
para a sua produção. Novamente considerou-se a Amazônia como um polo fornecedor. Em 1943, o
comércio da borracha tornou-se monopólio estatal, e o governo brasileiro empreendeu diferentes
campanhas para o deslocamento de trabalhadores da região do nordeste para a região de extração da seringa.
Tomando os relatos do padre Tavestin (1926, apud FRANCO, 2001), Mariana
Franco (2001, p.123) irá destacar a importância para a sobrevivência material de se
integrar uma família numerosa com pessoas suficientes para trabalhar na seringa, na caça,
na pesca e nos roçados. A necessária diversificação da atividade econômica a que se
empreendia nos seringais é um dos principais fatores que leva a transformação dos
seringueiros de “coletores especializados” em um “campesinato florestal”. “As
colocações [de seringa] funcionavam como unidades de produção e consumo eficazes do
ponto de vista de sua sustentabilidade” (FRANCO, 2001, p.128).
Outra característica da sociedade do seringal semelhante a das sociedades
camponesas são as relações intrínsecas com um centro comercial e administrativo que se
encontra fora de seu núcleo interno. Em cada colocação, unidades que reuniam um
conjunto de famílias para o trabalho em diferentes estradas de corte da seringa, a figura
do patrão e os barracões representavam o núcleo externo a que as sociedades seringueiras
estavam ligadas. O patrão, ou seu representante, que tem a propriedade do seringal possui
direito pela comprar da borracha extraída pelos seringueiros que residem em sua
colocação e, como contrapartida, fica encarregado de abastecer os barracões com
mercadorias produzidas nas cidades. A sociedade seringueira, apesar de sua autonomia
relativa à subsistência básica erige-se a partir dessa relação com o fora. Nela também
intervinham, por exemplo, delegados e juízes, que atuavam em mediação de conflitos,
casamentos, etc.
A centralidade das relações de parentesco na organização e interação sociais para
a sociedade seringueira (FRANCO, 2001, p.330) é outra característica compartilhada com
as sociedades camponesas. Nos seringais o grupo familiar é geralmente composto por
pais e filhos, solteiros e casados que vivem, geralmente, em uma mesma colocação de
seringa e cooperam uns com os outros. Os Milton, por exemplo, focalizados por Mariana
Franco, foram reconhecidos como um grupo de parentela a partir do final dos anos de
1980 (FRANCO, 2001, p.366). Na tese da autora, há a descrição minuciosa da relação
que cada um dos filhos possuía à época com a casa dos pais. Na fase adulta, enquanto os
filhos homens solteiros, cooperavam, durante certo tempo, com a extração da seringa, se
tornando o principal cortador de borracha da casa, em diversas ocasiões o único, as filhas
mulheres solteiras cooperavam com serviços domésticos, ficando responsáveis pela
arrumação e cozinha. Cada grupo familiar se desenvolve e reproduz a partir de um ciclo
temporal particular, em que sucessivos filhos se revezam na colaboração com os pais até
se casarem.
Os casamentos, que geralmente se realizavam entre homens e mulheres de uma
mesma colocação, não engendravam regras de residência fixa e nem a herança da terra,
de pai para filhos, se constituía como um fator determinante. Diferentemente da situação
que se passa em zonas rurais, a terra não era um recurso escasso, o casamento não
obrigava, portanto, uma mudança de região para constituição de um novo grupo familiar.
As escolhas de residência do novo casal, assim, eram motivadas por diferentes fatores
materiais, sociais e individuais. Quando um homem raptava a mulher com quem
pretendia se casar, por exemplo, o costume é que se fixassem inicialmente na casa de seus
pais. Herdar estradas de extração de seringa em alguma colocação pertencentes ao pai ou
ao sogro exercia algum peso em relação à localidade de moradia do novo casal, mas não
era determinante. Geralmente, as escolhas variavam entre neolocalidade, uxorilocalidade
e virilocalidade e não eram fixas, sendo comum o casal se mudar de acordo com as
circusntâncias.
A instituição do compadrio, muito frequente no campo, também era frequente
entre os membros da sociedade do seringal. Trata-se de uma espécie de “parentesco
ritual” em que pessoas se ligam a seus compadres e comadres (em batismo conhecido
como de fogueira) e mantém relações de reciprocidade, solidariedade e ajuda mútua.
Geralmente, o compadrio se constitui entre pessoas que possuem laços de vizinhança ou
algum grau de parentesco. A mãe de Dona Mariana, esposa de Seu Milton, por exemplo,
viveu junto com a filha, em diversos momentos de sua vida, em casa de compadres, uma
vez que esteve solteira em muitos períodos e cortava borracha sozinha. Na falta de marido
e familiares (ela era uma indígena raptada durante uma correria no começo do século XX)
pôde sempre contar com uma rede de pessoas a que se ligou durante sua trajetória de vida.

***
Um estudo mais detido, que se atém aos pormenores da vida seringueira, como de
Mariana Franco, obtêm o êxito de demonstrar que as pessoas, na maioria dos casos, são
capazes de viver apesar, e para além, de toda fatalidade, não podendo ser reduzidas a
vítimas da história e de processos sob os quais têm pouco controle As trajetórias de vida
de Seu Milton e sua esposa Dona Mariana deixa entrever uma interação entre as
populações que deram origem aos seringais (nordestinos e indígenas) para além do
conflito. Dona Mariana, esposa de Seu Milton, é filha de uma mulher indígena que fora
retirada do convívio com o seu povo, os Netanawa, no começo dos anos 1920, enquanto
percorria a floresta. Sua captura resultou de um ataque de um grupo de seringueiros que
realizavam as correrias contra os indígenas a fim de liberar o território em que estes
viviam para ocupação e exploração exclusiva da borracha. O pai de Seu Milton, de quem
não foi possível descobrir muito mais do que a etnia pertencente, possivelmente
Kuntanawa, também fora retirado quando menino do convívio com os seus, num ato
coetâneo a dizimização da população restante. Ambos são filhos de pais indígenas com
nordestinos da primeira geração migratória.
Caboclo é o termo de referência para os filhos dessas uniões entre grupos
diferentes, no estado do Acre, de uma forma geral, e era assim, como os Milton, eram
reconhecidos no interior da sociedade do seringal. Tal acepção carrega em si uma carga
pejorativa ao marcar aqueles que são assim denominados não apenas com sua origem
étnica, mas também com características negativas, tais como preguiça e desonestidade.
Desde que se engajaram nas lutas políticas dos seringais, a partir do final dos anos 80,
participando da administração da associação civil criada no Alto Juruá, os Milton
passaram a conjurar a identificação com a identidade de caboclo que muitas vezes era
mobilizada contra eles por seus adversários políticos.
Na década de 2000, em meio a intensas mudanças na região do Alto Juruá, com a
extinção da propriedade dos seringais e a criação de uma Reserva Extrativista, controlada
pelo governo federal, os Milton, passaram a se auto-afirmar não mais como seringueiros,
mas como indígenas descendentes do povo Pano Kuntanawa – que foi dizimado no início
do século XX. Poucos anos após a publicação da tese de Mariana Franco, esse grupo
familiar se engajou em um processo de subjetivação étnica, por meio do qual, negavam a
identificação como caboclos e passaram a requerer do estado brasileiro o reconhecimento
de sua indianidade e de direitos específicos (como demarcação de terra, acesso à saúde e
escola diferenciadas, etc.). O trabalho da autora, de reunir e contar a trajetória de vida dos
Milton e seus ascendentes, configurou-se, nessa nova empreitada da família, como um
documento comprobatório da ascendência indígena daquele grupo familiar.
Na avaliação de Mariana Franco, a emergência dos Kuntanawa enquanto grupo
étnico pode ser compreendida por distintas vias. Uma delas leva a questões políticas
remetidas a disputa por poder, recursos e territórios no interior da Reserva Extrativista
recém-criada à época do estudo da autora e do processo de auto-identificação dos Milton.
Desde a criação da Reserva, a associação formada pelos seringueiros passou a ser gerida
por representantes ligados a partidos políticos, como Partido dos Trabalhadores (PT). Os
antigos dirigentes, como Seu Milton, perdiam espaço na posição de liderança e, cada vez
mais, o controle da área onde ficavam os antigos seringais passava às mãos de pessoas
alheias ao grupo. Além disso, contribuía para a insatisfação dos antigos moradores, a
expansão demográfica ocorrida naquela região, em virtude da infraestrutura que se criou
nos arredores dos antigos seringais. Muitas pessoas migraram para lá e passaram a utilizar
os recursos florestais de maneira inapropriada, derrubando a mata, para construção de
casas, praticando caça com cachorros, etc. A reivindicação dos Milton passava, assim,
pela aquisição de uma porção de terra a ser demarcada no interior da Reserva onde eles
poderiam preservar os recursos florestais de maneira apropriada.
A emergência dos Kuntanawa também se relaciona com a prática de toma de
ayahuasca que Seu Milton e seus filhos homens passaram a tomar com frequência, na
década de 1990. Comum entre povos indígenas do Acre, e também entre citadinos
daquela região (local de surgimento, por exemplo, de cultos como o Santo Daime), a
experiência com a bebida preparada a partir de um cipó (Banisteriopsis caapi) e de uma
folha (Psychotria viridis) proporciona acesso a dimensões intangíveis de onde eles dizem
trazer para o seu povo, pinturas corporais, cânticos e conhecimentos mágicos e
etnobotânicos. Há também um trabalho de recuperação ou reinvenção da língua
Kuntanawa realizado a partir da recordação de alguns vocábulos utilizados pela mãe de
Dona Mariana, e, principalmente, pela interação com outros grupos pano que vivem na
região.
Os outrora Milton, e agora Kuntanawa, colocam questões interessantes para
pensarmos a categoria de camponês. Se tal categoria foi forjada pela antropologia para
pensar as peculiaridades de grupos resultantes de grandes transformações históricas, o
que vemos em cena com a guinada identitária dos Milton é outra dobra estrutural no
tempo que nos mostra o quanto a antropologia precisa manter sua capacidade de repensar
continuamente seu arcabouço teórico de modo a dar conta dos fenômenos sociais, sempre
em transformação.
***

Referências Bibliográficas

BOHANNAN, P. & DALTON, G. - "Introduction”. In: Markets in Africa. Londres,


Anchor Books, 1965, pp. 1-32.
FOSTER, George - "What is a Peasant?” In: Potter, J.M. et al. Peasant Society: a Reader.
Boston, Little Brown, 1967, pp.2-14.

FRANCO, Mariana. Os Milton: cem anos de história familiar nos seringais. Campinas,
SP: 2001
__________ Pós-escrito sobre os Kuntanawa. Disponível em: www.neip.info. Acessado
em 05/11/2018

POLANYI, Karl - "The Economy as an Instituted Process”. In: Polanyi, K. et al. - Trade
and Market in the Early Empires. New York, The Free Press, 1957.

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