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ESTUDOS

Aprendizagem, desenvolvimento e conhecimento


na obra de Jean Piaget: uma análise do processo
de ensino-aprendizagem em Ciências
Laércio Ferracioli

Palavras-chave: epistemologia
genética; ensino de
ciências; formação de
conceitos.

Apresenta uma visão geral


das idéias de Jean Piaget, diferenciação dos conceitos
seguida da abordagem de alguns piagetianos de aprendizagem,
aspectos de sua obra desenvolvimento e conhecimento,
relacionados com a construção concluindo com a apresentação e
do conhecimento através de a análise de alguns resultados de
estádios e dos fatores que os pesquisa em ensino de ciências e
influenciam. Na seqüência, são a abordagem da questão da
apresentadas a definição e a evolução conceitual em ciências.

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Introdução a observação do comportamento espon-
tâneo da criança, a observação do com-
Nascido na Suíça, Jean Piaget (1896- portamento provocado por uma situação
1980) dedicou-se inicialmente aos estudos experimental e o diálogo estabelecido en-
científicos relacionados com a natureza tre o pesquisador e a criança.
biológica, pesquisando sobre moluscos. Assim, esta perspectiva metodológica
Mais tarde, investigando a relação entre parte da premissa de que a própria criança,
organismo e o meio, passa a estudar a na- suas interpretações, seus comentários e
tureza humana. Interessa-se pela inteligên- seus questionamentos fornecem a chave
cia humana que considera tão natural como para o entendimento do pensamento in-
qualquer outra estrutura orgânica, embora fantil. Ou seja, para Piaget, a criança, e
mais dependente do meio do que qualquer não as perguntas formuladas, é a fonte
outra. O motivo está no fato de que a inte- primária de dados para o estudo de seu
ligência depende do próprio meio para sua desenvolvimento intelectual.
construção, graças às trocas entre orga- Esses estudos são relatados ao lon-
nismo e o meio, que se dão através da go de toda a obra de Piaget e seus cola-
ação. boradores, que abrange publicações liga-
Em 1924, publica A linguagem e o pen- das à Psicologia Genética, Lógica e
samento na criança, quando a questão pri- Epistemologia e Epistemologia Genética.1
meira era: para que serve a linguagem? A Ao longo de sua vida, publicou algumas
partir daí, mostra que o progresso da inte- obras-síntese nas quais expõe de manei-
ligência da criança se dá através da mu- ra clara as idéias básicas de seu projeto
dança de suas características e não, sim- sobre entendimento da construção do co-
plesmente, pela eliminação de erros. Em nhecimento no sujeito, ou sujeito
1926, publica A representação do mundo epistêmico.
na criança, quando examina o desenvolvi- Segundo Piaget, o conhecimento não
mento progressivo do pensamento infantil está no sujeito – organismo, tampouco no
em suas tentativas de explicar realidades objeto – meio, mas é decorrente das con-
tais como a do sonho ou dos fenômenos tínuas interações entre os dois. Para ele,
naturais. Neste livro, Piaget descreve o a inteligência é relacionada com a aquisi-
método clínico, que viria a ser a base ção de conhecimento à medida que sua
metodológica da Psicologia Genética, fun- função é estruturar as interações sujeito-
damentada na observação e na entrevista objeto. Assim, para Piaget, todo pensa-
clínica. mento se origina na ação, e para se co-
Após inúmeras publicações relatando nhecer a gênese das operações intelec-
a evolução de seus estudos, em 1950, tuais é imprescindível a observação da
publica Introdução à epistemologia genéti- experiência do sujeito com o objeto.
ca, que em 1970 é publicado na forma de Uma vez contextualizada a obra de
um breve resumo sob o título Epistemolo- Piaget, torna-se claro que não tem senti-
gia genética. Nesta obra, após apresentar do se referir a um método pedagógico
uma análise de dados psicogenéticos, piagetiano. Piaget não é pedagogo, não é
seguida de uma análise dos antecedentes psicólogo, e jamais formulou uma teoria
biológicos e de um exame dos proble- de aprendizagem. Seu objetivo maior é a bus-
mas epistemológicos clássicos, formaliza ca do entendimento de como o conheci-
sua epistemologia psicológica. mento é construído, e nesta perspecti-
Na busca de uma explicação científi- va ele torna-se epistemólogo. A rigor, o
ca da existência psicológica do homem, que existe são propostas pedagógicas
Piaget procura estabelecer um nexo lógi- que utilizam as idéias de Piaget como di-
co entre a psicologia e a biologia (Piaget, retrizes para uma metodologia de traba-
1973). A partir da procura de traços siste- lho didático-pedagógica visando ao pro-
máticos do pensamento de crianças que cesso de ensino-aprendizagem.
correspondessem à hierarquia biológica da Nesse sentido, este artigo apresenta 1
A apresentação completa
célula, organismo e espécie, desenvolve de forma restrita, e em alguns momentos das obras de Piaget foge ao
textuais, aspectos da obra de Piaget rela- escopo deste artigo. No en-
uma metodologia própria de pesquisa. Esta tanto, uma lista de suas
metodologia tem uma abordagem qualita- cionados com o conceito de aprendiza- obras pode ser encontrada
tiva que agrega um conjunto de técnicas gem e sua diferenciação dos conceitos de no livro Piaget e a Escola de
Genebra, da professora Luci
de investigação. Estas técnicas reúnem desenvolvimento e conhecimento. Além Banks Leite, publicado pela
simultaneamente três modos de trabalho: de contribuir para a difusão de sua obra Cortez Editora, em 1987.

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e de suas idéias, o texto apresenta a dis- mental. Então, a partir da integração de
cussão de resultados da pesquisa em en- sucessivas estruturas, na perspectiva de
sino de ciências, procurando mostrar evi- que cada uma conduz à construção da
dências empíricas que possam contribuir seguinte, Piaget dividiu esse desenvolvi-
para o avanço teórico na investigação so- mento em grandes estádios ou períodos
bre o processo de ensino-aprendizagem. que obedecem basicamente a três critérios,
que são descritos abaixo:
A construção do conhecimento
através de estádios 1. A ordem de sucessão é constante,
embora as idades médias que as carac-
terizam possam variar de um indivíduo
Quando interrogamos crianças de dife-
para outro, conforme o grau de inteligên-
rentes idades sobre os principais fenô-
cia, ou de um meio social a outro (Piaget,
menos que as interessam espontaneamen-
te, obtemos respostas bem diferentes Inhelder, 1978, p. 131).
segundo o nível dos sujeitos interroga-
dos. Nos pequenos, encontramos todas Vê-se, pois, que o desenrolar dos es-
as espécies de concepções cuja impor- tádios pode ser acelerado ou retardado,
tância diminui consideravelmente com a
dependendo da experiência do indivíduo
idade: as coisas são dotadas de vida e
de intencionalidade, são capazes de mo- e que as idades são relativas às popula-
vimentos próprios, e esses movimentos ções estudadas, e o mais importante é que
destinam-se, ao mesmo tempo, a asse- a ordem de sucessão permanece inaltera-
gurar a harmonia do mundo e servir ao da. Isso é comprovado em estudos reali-
homem. Nos grandes, não encontramos zados por psicólogos de vários países que
nada mais que representações da ordem constataram um retardamento de até 4
da causalidade adulta, salvo alguns tra-
anos em crianças em idade escolar, como
ços dos estágios anteriores. Entre os
dois, de 8 a 11 anos mais ou menos, en- afirma o próprio Piaget (1982).
contramos pelo contrário várias formas
de explicações intermediárias entre o 2. Cada estádio é caracterizado por uma
animismo artificialista dos menores e o estrutura de conjunto em função da qual
mecanismo dos maiores; é o caso parti- se explicam as principais reações parti-
cular de um dinamismo bastante siste- culares (Piaget, Inhelder, 1978, p. 131).
mático, do qual várias manifestações
lembram a física de Aristóteles, e que pro-
longa a física da criança enquanto pre- Entretanto, esse critério não significa
para as ligações mais racionais (Piaget, que cada estádio de desenvolvimento seja
1982, p. 173-174). caracterizado por um conteúdo fixo de
pensamento, mas sim, por uma certa ativi-
Desde o nascimento até a idade adul- dade potencial que é suscetível de atingir
ta, o desenvolvimento mental do indivíduo esse ou aquele resultado, dependendo do
é um processo contínuo de construção de meio no qual a criança vive (Piaget, 1982).
estruturas variáveis, que, ao lado de ca-
racterísticas que são constantes e comuns 3. As estruturas de um conjunto são
a todas as idades, refletem o seu grau de integrativas e não se substituem uma às
desenvolvimento intelectual. Para Piaget outras: cada uma resulta da precedente,
(1967), estruturas variáveis são maneiras integrando-a na qualidade de estrutura
de organização das atividades mentais, subordinada e prepara a seguinte, inte-
que englobam os aspectos motor ou inte- grando-se a ela mais cedo ou mais tarde
lectual e afetivo, tanto na dimensão indivi- (Piaget, Inhelder, 1978, p. 132).
dual como na social; já as características
"invariáveis" são as funções de interesse, E esse contínuo processo de desen-
explicação, entre outras, que não variam volvimento se dá através do restabeleci-
com o nível mental do indivíduo.
mento do equilíbrio entre a estrutura pre-
Assim, a cada explicação particular
para um certo interesse, há uma integra- cedente e a ação do meio, sendo que es-
ção com a estrutura existente, que, em um sas estruturas se sucedem de forma que
primeiro momento, é reconstruída e, em cada uma assegura um equilíbrio mais es-
seguida, ultrapassada para uma dimensão tável do que o anterior, em direção a uma
mais ampla, acarretando o desenvolvimento estrutura mais abrangente.

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Os estádios de desenvolvimento des-
sas estruturas foram descritos de maneira
resumida e explicativa por Piaget em algu-
mas de suas obras (e.g. Piaget, 1983, 1967)
e podem ser divididos em quatro períodos
principais na seguinte seqüência:

ESTÁDIO FAIXA ETÁRIA APROXIMADA


Inteligência sensório-motora Até 2 anos de idade

Inteligência simbólica ou pré-operatória De 2 a 7, 8 anos

Inteligência operatória concreta De 7, 8 anos a 11, 12 anos


Inteligência operatória formal A partir de 12 anos

Cada estádio se caracteriza pelo que, em progressivas articulações, con-


surgimento de estruturas originais que di- duzem ao limiar das operações. As ope-
ferem das estruturas anteriores pela natu- rações são ações internalizadas, ou seja,
reza de suas coordenações e pela exten- uma ação executada em pensamento so-
são do campo de aplicação. Essas estru- bre objetos simbólicos, seja pela represen-
turas correspondem a características mo- tação de seu possível acontecimento e de
mentâneas que são alteradas pelo desen- sua aplicação a objetos reais evocados
volvimento subseqüente, em função da por imagens mentais, seja por aplicação
necessidade de uma melhor organização, direta a sistemas simbólicos.
ou conforme Piaget (1967, p. 14): "cada Já no período das operações concre-
estádio (sic.)2 constitui então, pelas estru- tas, as intuições articuladas se transfor-
turas que o definem, uma forma particular mam em operações – e.g. classificação,
de equilíbrio, efetuando-se uma evolução ordenamento, correspondência – além de
mental no sentido de uma equilibração se observar o surgimento das noções de
sempre mais completa". tempo, causalidade, conservação, entre
Assim, no estádio sensório-motor ou outras. Entretanto, o pensamento ainda
pré-verbal, a criança procura coordenar e conserva seus vínculos com o mundo real,
integrar as informações que recebe pelos isto é, as operações se prendem às expe-
sentidos e, restringindo-se ao real, elabora riências concretas, não envolvendo ope-
o conjunto de subestruturas cognitivas ou rações de lógica de proposições – ou,
esquemas de assimilação, que servirão de como coloca Piaget (1967, p. 64): "... o
base para a construção das futuras estru- pensamento concreto é a representação
turas decorrentes do desenvolvimento ul- de uma ação possível..."
terior. Segundo Piaget e Inhelder (1978), Finalmente, na adolescência, é
um esquema é uma estrutura, ou a organi- alcançada a independência do real, sur-
zação de ações, que é generalizável em gindo o período das operações formais.
circunstâncias semelhantes, no momento Seu caráter geral é o modo de raciocínio,
da ação. que não se baseia apenas em objetos ou
No estádio pré-operatório, surge o que realidades observáveis, mas também em
Piaget e Inhelder denominam de função hipóteses, permitindo, dessa forma, a
simbólica, que consiste no poder de repre- construção de reflexões e teorias. O pen-
sentação de objetos ou acontecimentos, samento torna-se então hipotético-dedu-
tornando possível, por exemplo, a aquisi- tivo e, conforme Piaget (1967, p. 64), ocor-
ção da linguagem ou de símbolos coleti- re "a libertação do pensamento", quando
vos. A partir daí, há o desenvolvimento de a realidade torna-se secundária diante da 2
Embora os tradutores usem
um pensamento simbólico e pré-conceitual possibilidade. Nesse período, além da ló- o termo estágio, a palavra es-
tádio é mais apropriada na lín-
e, em seguida, do pensamento intuitivo, gica de proposições, são desenvolvidas, gua portuguesa.

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entre outras, operações combinatórias e imaginar que a criança tenha apenas de
de correlação. incorporar as informações já "digeridas",
Uma vez descritas as etapas desse como se a transmissão não exigisse uma
desenvolvimento, pode-se questionar so- atividade interna de assimilação-acomoda-
bre quais os fatores que o influenciam, e ção do indivíduo, no sentido de haver uma
Piaget responde: reestruturação e daí uma correta compre-
ensão do que foi transmitido.
Para mim, existem 4 fatores principais: O quarto fator – a equilibração – consi-
em primeiro lugar, maturação, uma vez derado por Piaget como fundamental, é o
que esse desenvolvimento é uma conti- que completa e evidencia o caráter não-
nuação da embriogênese; segundo, o apriorístico do desenvolvimento das estru-
papel da experiência adquirida no meio turas mentais do indivíduo. A evolução
físico sobre as estruturas da inteligência; ocorre sempre na direção de um equilíbrio,
terceiro, transmissão social num sentido mas sem um plano preestabelecido, assim
amplo (transmissão lingüística, educa-
"como a marcha para o equilíbrio da
ção, etc.); e quarto, um fator que freqüen-
temente é negligenciado, mas que, para
entropia em termodinâmica" (Piaget,
mim, parece fundamental e mesmo o Inhelder, 1978, p. 134), isto é, como o equi-
principal fator. Eu denomino esse fator líbrio depende da ação do sujeito ativo
de equlibração ou, se vocês preferem, sobre os distúrbios externos e, ao mesmo
auto-regulação (Piaget, 1964, p. 178). tempo, da ação desses sobre aquele. O
que se pode observar é um ponto de equi-
Vê-se que a maturação é uma condi- líbrio e não o ponto de equilíbrio.
ção necessária, na perspectiva de ser uma Por outro lado, o processo de equili-
continuação do processo de formação do bração difere do sentido que a física lhe
indivíduo, mas que não explica todo o dá, sendo entendido como um "processo
desenvolvimento, desempenhando o limi- ativo" de auto-regulação semelhante a um
tado papel de abrir possibilidades para processo cibernético, onde há uma
novas condutas que precisam ser atuali-
zadas, o que automaticamente leva à con- seqüência de compensações ativas do
sideração de outras condições, das quais sujeito em resposta às perturbações ex-
a mais imediata é a experiência. teriores e de regulagens ao mesmo tem-
Quanto à experiência, Piaget estabe- po retroativas (sistemas de anéis ou
feedbacks) e antecipadoras, que consti-
lece dois tipos distintos: a experiência físi- tui um sistema permanente de tais com-
ca, que está relacionada com conteúdos pensações (Piaget, Inhelder, 1978, p. 134).
assimilados, consiste em agir sobre os
objetos para abstrair suas propriedades, Dessa forma, o desenvolvimento se dá
partindo dos próprios objetos; e a experi- por uma constante busca de equilíbrio, que
ência lógico-matemática, que revela um significa a adaptação dos esquemas exis-
aspecto construtivo da própria estrutura, tentes ao mundo exterior.
também consiste em agir sobre os obje- A adaptação, entendida como proces-
tos para abstrair suas propriedades, mas so, é um ponto de equilíbrio entre dois
não dos próprios objetos, e sim a partir mecanismos indissociáveis: a assimilação
das ações do indivíduo sobre esses obje- e a acomodação. A assimilação diz respei-
tos. Assim, a experiência física não é um to ao processo pelo qual os elementos do
simples registro de dados, mas uma meio exterior são internalizados à estrutu-
estruturação ativa e assimiladora a quadros ra, enquanto que a acomodação se refere
matemáticos internos (Piaget, Inhelder, ao processo de mudanças da estrutura, em
1978). função dessa realização, quando há a di-
A transmissão social – pela linguagem, ferenciação e integração dos esquemas de
contatos educacionais ou sociais – é um assimilação. Assim, pode-se dizer que o
fator necessário, uma vez que a criança pensamento é adaptado a uma realidade,
pode receber uma grande quantidade de quando ele consegue, ao mesmo tempo,
informações. Entretanto, não é suficiente, assimilar às suas estruturas os elementos
pois ela só assimilará as informações que dessa realidade, acomodando essas estru-
estiverem de acordo com o conjunto de turas aos novos elementos que se apresen-
estruturas relativas ao seu nível de pensa- tam, ou, nas palavras de Piaget (1982, p.
mento. Um dos principais equívocos da 157): "a adaptação é o equilíbrio entre a
escola tradicional, afirma Piaget (1982), é assimilação da experiência às estruturas

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dedutivas e a acomodação dessas estru-
turas aos dados da experiência". Um resu-
mo esquemático desse processo de desen-
volvimento descrito acima é apresentado
a seguir.

Resumo esquemático do processo de desenvolvimento intelectual

Assimilação Acomodação
processo pelo qual os processo de mudanças da
elementos do meio exterior são estrutura
internalizados à estrutura em função da assimilação

Diferenciação & Integração


dos esquemas de assimilação

Adaptação = Equilibração
quando o pensamento assimila às suas estruturas os elementos da
realidade, acomodando essas estruturas aos novos elementos que se
apresentam

Adaptação
éo
equilíbrio
entre a
assimilação
da experiência às estruturas dedutivas
ea
acomodação
dessas estruturas aos dados da experiência.

É importante acrescentar que a linea- Sendo assim, é evidente que os diver-


ridade deste resumo não reflete de modo sos escalões hierárquicos que conduzem
algum o processo de construção do conhe- da organização genética, depois embrio-
cimento pelo sujeito epistêmico. A partir da lógica, depois fisiológica ou funcional ao
comportamento e às formas elementa-
realidade biológica, o sujeito, como um
res, hereditárias ou adquiridas, às formas
organismo, procura adaptar-se continua- superiores do conhecimento, não podem
mente ao mundo, construído e reconstruí- ser distribuídos em séries lineares sim-
do o conhecimento num processo dialéti- ples, mas constituem, de maneira muito
co semelhante a uma espiral crescente, geral, em séries mais ou menos comple-
tanto na vertical quanto na horizontal, como xas de “reconstruções convergentes com
apresentado apresentado no esquema. excessos”, e com avanços de variadas
Nas palavras de Piaget (1973, p. 375): amplitudes.

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Observa-se, então, que, para Piaget Dessa forma, Piaget entende que o
(1964), o sujeito é um organismo que pos- desenvolvimento é o processo essencial
sui estruturas e que, ao receber os estímu- que dá suporte para cada nova experiên-
los do meio, dá uma resposta em função cia de aprendizagem, isto é, cada apren-
dessas estruturas. Ele chega a dizer que dizagem ocorre como função do desenvol-
"a resposta já existia", no sentido de que o vimento total e não como um fator que o
estímulo só será estímulo, se for significa- explica. Ele restringe a noção de aprendi-
tivo e será significativo somente se existir zagem à aquisição de um conhecimento
uma estrutura que permita sua assimila- novo e específico derivado do meio, dife-
ção, uma estrutura que possa integrar es- renciando-a do desenvolvimento da inteli-
ses estímulos mas que ao mesmo tempo gência, que corresponderia à totalidade
apresente uma resposta. das estruturas de conhecimento construídas.
Assim, Piaget, procurando entender
No entanto, como, para ele, o sujeito
como essa estrutura age sobre o estímulo
possui uma estrutura mental, essa visão de
para fornecer a resposta, baseia sua ex-
aprendizagem difere da idéia associa-
plicação justamente no processo de
cionista, baseada no esquema estímulo-
equilibração por auto-regulação, que é, em
sua opinião, o principal fator do desenvol- resposta. Para Piaget, o indivíduo assimila
vimento intelectual. o estímulo e, após uma interação ativa, emite
uma resposta, ou seja, o conhecimento
adquirido não é devido a uma ação unilateral
Aprendizagem, desenvolvimento do meio (estímulo) sobre o sujeito passivo,
e conhecimento mas sim a uma interação nos dois sentidos:
do estímulo sobre o sujeito e ao mesmo
Piaget se propõe a estudar a gênese tempo do sujeito sobre o estímulo. Vê-se,
do conhecimento centrado na ação do su- também, que o conceito piagetiano de
jeito, ou de como se dá o desenvolvimen- aprendizagem é diferente da maneira como
to de sua inteligência, essa última enten- o termo é utilizado no quotidiano escolar.
dida não como a faculdade de saber, mas Em sua obra Aprendizagem e conhe-
como um conjunto de estruturas mentais cimento (Piaget, 1974), ele delineia de
momentaneamente adaptadas – "toda in- modo mais claro esses conceitos, classifi-
teligência é uma adaptação" (Piaget, 1982, cando e discutindo os diferentes modos de
p. 162). Em função disso, surge o questio- aquisição do conhecimento – percepção,
namento sobre o que é a aprendizagem compreensão imediata, aprendizagem no
para a psicologia genética. Essa pergunta sentido restrito (s. str.), indução, coerência
é respondida por ele, quando diferencia pré-operatória ou equilibração e dedução
desenvolvimento e aprendizagem: – sob o ponto de vista genético. Desses, a
aprendizagem no sentido restrito (s. str.) é
Primeiro, eu gostaria de esclarecer a di- a única forma de aquisição de conhecimen-
ferença entre dois problemas: o proble- to que se constitui forma de aprendizagem.
ma do desenvolvimento e o da aprendi- A partir daí, chega aos conceitos de apren-
zagem. (...) desenvolvimento é um pro- dizagem no sentido restrito (s. str.), apren-
cesso que diz respeito à totalidade das
dizagem no sentido amplo (s. lat.) e
estruturas de conhecimento. Aprendiza-
gem apresenta o caso oposto. Em geral, desenvolvimento.
a aprendizagem é provocada por situa- A aprendizagem s. str., que correspon-
ções – provocada por psicólogos expe- deria à maneira como a aprendizagem é
rimentais; ou por professores em relação entendida no senso comum, é definida por
a um tópico específico; ou por uma situ- Piaget (1974, p. 52) como aquela cujo "re-
ação externa. Em geral, é provocada e sultado (conhecimento ou desempenho) é
não espontânea. Além disso, é um pro- adquirido em função da experiência (...) do
cesso limitado – limitado a um problema tipo físico, do tipo lógico-matemático ou
único ou a uma estrutura única. Assim,
dos dois". Entretanto, nem todo resultado
eu penso que desenvolvimento explica
aprendizagem, e essa opinião é contrá- adquirido pela experiência se constitui
ria à opinião amplamente difundida de aprendizagem, pois, como ele diz na se-
que o desenvolvimento é uma soma de qüência, é necessário "reservar o termo
experiências discretas de aprendizagem aprendizagem s. str. a uma aquisição em
(Piaget, 1964, p. 176). função da experiência, mas se desenvolvendo

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no tempo, quer dizer, mediata e não imedi- experiência mediata, mas, juntamente com
ata como a percepção ou a compreensão o processo de equilibração, assume a di-
instantânea" (Piaget, 1974, p. 53). Isto é, mensão do próprio desenvolvimento da
trata-se de uma aquisição que evolui no estrutura cognitiva, que significa o cresci-
tempo, no sentido de que o sujeito pode mento biológico e intelectual do indivíduo.
chegar a compreender um evento, inferir
sua lei de formação através de assimilações
e acomodações, construindo novos esque- Concepções do senso comum e
mas, mas que não são generalizáveis a evolução conceitual em ciências
qualquer situação nova.
Já a aprendizagem s. lat. é definida A partir da conceituação piagetiana
como "a união das aprendizagens s. str. e sobre a aprendizagem, será feita uma
desses processos de equilibração" (Piaget, análise de alguns resultados de uma
1974, p. 54). Assim, a aprendizagem s. lat. pesquisa em ensino de ciências sobre
ocorre quando há uma aquisição de conhe- concepções do senso comum em
cimento em função da experiência de for- termodinâmica básica (Ferracioli, 1986)
ma mediata, havendo, ao mesmo tempo, o visando à busca de possíveis contribuições
processo de auto-regulação, onde o sujei- da Epistemologia Genética para a questão
to procura ter sucesso na sua ação ou ope- da aprendizagem, desenvolvimento,
ração. Como, pelo processo de equilibra- conhecimento e evolução conceitual no
ensino de conceitos científicos.
ção, o sujeito procura adaptar a sua estru-
O estudo desenvolvido enquadra-se
tura cognitiva à realidade que o cerca – o
na linha de pesquisa da área de ensino
que, em essência, significa o desenvolvi-
de ciências, caracterizada pela investiga-
mento mental – quando ocorre a aprendi- ção sobre como os estudantes explicam
zagem s. lat., ela tende a se confundir com o mundo físico que os rodeiam, com en-
o próprio desenvolvimento. foque no entendimento desses estudan-
Essas idéias são resumidas por Piaget tes sobre conceitos científicos (e. g. Mon-
(1974, p. 85-86), quando afirma: tangero et al., 1993; Driver et al., 1994).
Estes estudos têm revelado que quando
Encontramos assim (...) a distinção neces- os estudantes chegam à idade escolar já
sária entre a aprendizagem no sentido desenvolveram seu próprio conhecimen-
amplo e a aprendizagem no sentido res- to o qual, muitas vezes, revela-se bastan-
trito. O que é aprendido s. str. nada mais te diferente do conhecimento científico
é do que o conjunto das diferenciações
ensinado nas escolas. Essa maneira pró-
devidas à acomodação, fonte de novos
pria de o aluno entender os conceitos ci-
esquemas em função da diversidade cres-
entíficos tem sido denominada de concep-
cente dos conteúdos. Em compensação,
o que não é aprendido s. str. é o funcio-
ções do senso comum (Ferracioli, 1986,
namento assimilador com suas exigências 1994, 1995) e a articulação destas con-
de equilibração entre a assimilação e a cepções constituiria o que é denominado
acomodação, fonte de coerência gradual de conhecimento baseado no senso co-
dos esquemas e sua organização em for- mum ou simplesmente senso comum (Fer-
mas de equilibração nas quais já discer- racioli, 1994). Dois importantes resultados
nimos o esboço das classes com suas dessas investigações são que concepções
inclusões, suas intersecções e seus agru- sobre determinado conceito científico são
pamentos como sistemas de conjunto. compartilhadas por um grande número de
Mas devido a essas interações entre assi- alunos e que têm se mostrado resistente
milação e a acomodação, a aprendizagem à instrução formal. Dessa forma, estes re-
s. str. e a equilibração constituem esse sultados constituem a base de dados para
processo funcional de conjunto que po- a investigação sobre o processo de ensi-
demos chamar de aprendizagem s. no-aprendizagem que objetive a promo-
lat. e que tende a se confundir com o ção da evolução conceitual pelo aluno, do
desenvolvimento. conhecimento do senso comum para o
conhecimento científico (Ferracioli, 1995).
Vê-se, pois, que, para Piaget, o con- A pesquisa foi desenvolvida com 16
ceito de aprendizagem é muito mais alunos do curso de Física e Química, ma-
abrangente do que o significado com que triculados em uma disciplina de Física
é normalmente utilizado no contexto esco- Básica da Universidade Federal do Rio
lar. Ela não se esgota no sentido restrito da Grande do Sul (UFRGS). A instrução foi

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do tipo tradicional com aulas expositivas A discussão pode
e exercícios, e os alunos foram entrevista- ser iniciada pela reto-
dos antes e depois da instrução. As entre- mada de um aspecto
vistas foram baseadas no procedimento fundamental do pensa-
piagetiano e versaram sobre situações- mento piagetiano: o in-
problema relacionadas com os conceitos divíduo, diante de uma
de temperatura, calor e energia interna e realidade que provoca
foram gravadas em fitas cassetes. um desequilíbrio em
Os dados obtidos com a primeira en- sua estrutura cognitiva,
trevista foram analisados qualitativamen- sempre procura a coerência no sentido de
te e foi possível o estabelecimento de ca- assimilá-la e acomodá-la, na busca de su-
tegorias que traduzissem concepções do cessivas formas de equilíbrio, pelo proces-
senso comum dos alunos. Essas concep- so de equilibração. Essas formas de equi-
ções foram representadas pelas categorias: líbrio são atingidas somente em caráter pro-
visório, não representando um estado de-
Temperatura é a sensação térmica/clima; finitivo e são estabelecidas de acordo com
Temperatura é confundida com quantida- o nível de desenvolvimento intelectual do
de de calor; indivíduo.
Temperatura é a medida de calor dos cor- Assim, pode-se observar, por exemplo,
pos; os casos de dois alunos, que inicialmente
Temperatura é a medida da agitação das apresentaram concepções relacionadas
moléculas. com "Temperatura é a medida de calor dos
corpos" e, a partir de suas respostas à se-
gunda entrevista, apresentaram concep-
Essas categorias traduzem uma cer-
ções relacionadas com a "Temperatura é
ta hierarquização no sentido de que a pri-
confundida com calor". Vê-se, pois, que,
meira reflete uma concepção primitiva
após a instrução, houve uma certa regres-
baseada na experiência quotidiana, e a
são em suas concepções, uma vez que,
última traduz uma visão mais elaborada
se inicialmente possuíam uma concepção
dentro da evolução do conhecimento
clara sobre temperatura, ainda que diferen-
científico. te da conceitualização científica, após a
O mesmo procedimento foi adotado instrução passaram a confundi-la com calor.
com os dados da segunda entrevista, e Esse fato pode ser um indicativo de
chegou-se a resultados semelhantes, que que, para esses alunos, a instrução tenha
foram as concepções representadas pe- desempenhado o papel de um elemento
las categorias: desequilibrador de esquemas não-adapta-
dos, sem que tenha conseguido levá-los,
Temperatura é confundida com calor; por meio de seus processos de equilibra-
Temperatura avalia o calor do corpo; ção, a uma nova forma de equilíbrio. Nes-
Temperatura é a medida da agitação das sa nova forma de equilíbrio, a concepção
moléculas. de temperatura seria formulada de manei-
ra diferenciada de sua concepção de ca-
A semelhança dos resultados das lor e teria atributos próprios. O que houve,
entrevistas antes e depois da instrução talvez, foi o restabelecimento de um equilí-
evidenciou que, conforme relatado pela brio que evidencia a tomada de consciên-
literatura, as concepções do senso comum cia, por parte dos alunos, de suas confu-
se mostraram resistentes a alterações ante sões entre esses conceitos. Nesse senti-
a instrução recebida, Este fato revela um do, Piaget (1977a) afirma que a passagem
forte indicativo de que a evolução concei- do porquê ou das razões funcionais para o
tual em uma disciplina, ao longo do pro- como ou do mecanismo efetivo que torna
cesso de ensino-aprendizagem, é um lon- consciente os elementos que permaneci-
go e progressivo co-processo que vai além am até aquele momento inconsciente, não
da instrução tradicional. é um processo que se reduz a uma sim-
A partir deste quadro, adotou-se o ples eliminação que os torna perceptíveis,
procedimento de discutir alguns resulta- sem com isso modificá-los, mas consiste
dos a que se chegou com a segunda en- numa conceituação propriamente dita, ou
trevista, relacionando-os com os obtidos seja, em uma passagem da assimilação
a partir da primeira entrevista. prática ou assimilação do objeto a um

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esquema para uma assimilação por meio universitário, ainda tem a necessidade da
de conceitos, quando o sujeito construiria realidade observável ou de objetos para
os conceitos de temperatura e calor sepa- construir suas reflexões ou teorias, não
radamente. conseguindo raciocinar em termos de hi-
Análise semelhante talvez possa ser póteses e deduções, tão importantes nas
feita para mais três alunos, em relação ao disciplinas universitárias. Pode-se citar, por
conceito de temperatura, e para outros três, exemplo, os estudos de Renner e Lawson
em relação ao entendimento do ato de (1973), nos Estados Unidos; Braga (1983),
chacoalhar a garrafa térmica.3 no Chile; e Ure (1982), no Brasil.
No caso dos três primeiros, se na pri- Outro resultado que se pode discutir
meira entrevista eles evidenciaram concep- é o obtido através das respostas de um
ções bem definidas sobre temperatura re- aluno em relação à tarefa da seringa.4
lacionadas com a medição da agitação das Esse aluno, que na primeira entrevista de-
moléculas, na segunda, após a instrução, monstrou entender que o ato de compri-
eles foram analisados em separado, por mir o êmbolo significa o fornecimento de
não apresentarem de forma consistente energia, na segunda, não mostrou enten-
atributos que pudessem delinear alguma dimento da situação contrária, quando o
concepção do senso comum específica. êmbolo era puxado. Isso mostra que o alu-
Para os três últimos, observa-se uma no consegue entender os mecanismos de
regressão no entendimento do chacoalhar: um caso específico que ele estudou ante-
se na primeira entrevista eles evidenciaram riormente a esta pesquisa, evidenciando
um entendimento de que o ato de chacoa- talvez uma aprendizagem s. str., no senti-
lhar a garrafa térmica representava uma do de que ele construiu novos esquemas
ação de um agente externo que fornece de assimilação com os quais consegue di-
energia que causa a modificação da tem- ferenciar situações. Entretanto, a instrução
peratura, na segunda entrevista, após a
que ele recebeu durante a realização des-
instrução, eles afirmam que o ato de cha-
te estudo parece não lhe ter oferecido
coalhar é o próprio causador da modifica-
possibilidade de agir e combinar os es-
ção da temperatura do sistema.
quemas existentes de modo a evidenciar
As causas dessas constatações po-
uma aprendizagem s. lat. Essa aprendi-
dem ser as mais diversas. Para Piaget, os
zagem teria permitido a sua construção
resultados da aprendizagem, seja no sen- 3
de um sistema de esquemas com o qual As entrevistas antes e depois
tido restrito ou amplo, são função do nível da instrução incluíam uma
conseguiria ter claro o esboço de classes
inicial do desenvolvimento do sujeito, isto situação em que o aluno era
é, os resultados estão ligados diretamente de fenômenos com suas operações de questionado sobre o que po-
deria ocorrer com a tempe-
aos esquemas de assimilação já construí- inclusão e interseção, que permitiriam a ratura de uma quantidade de
dos. Assim, esse fato ocorrido com esses generalização do conteúdo aprendido a água colocada em uma gar-
rafa térmica, após esta ter
alunos poderia estar ligado aos seus níveis qualquer caso específico. sido chacoalhada fortemen-
iniciais de desenvolvimento, evidenciando Análise semelhante pode ser feita te por um longo período de
com outro aluno que na primeira entrevis- tempo.
uma possível ausência de esquemas de
assimilação compatíveis com a instrução. ta, ao ser questionado sobre o conceito 4
A entrevista antes da instru-
de energia interna, relacionou-a com a ção incluía a situação em que
Uma outra explicação estaria relacionada o aluno era questionado so-
com resultados encontrados por Inhelder energia cinética das moléculas, sem evi- bre o que ocorreria com a
et al. (1977), que relatam a regressão ocor- denciar uma concepção propriamente dita temperatura do ar no interior
de uma seringa ao se com-
rida em um processo de aprendizagem sobre aquele conceito. Na entrevista após primir rapidamente o êmbo-
com crianças que apresentam uma condu- a instrução, ele não consegue analisar a lo. Na entrevista, depois da
instrução, o aluno era questio-
ta intermediária entre o julgamento de não- tarefa da seringa, e na tarefa da garrafa nado sobre o que ocorreria
conservação e de conservação, em expe- térmica, aplica a Primeira Lei da Termodi- com a temperatura do ar no
interior de uma seringa ao se
rimentos piagetianos. nâmica5 de maneira a evidenciar um cer- descomprimir rapidamente o
Em relação ao fato de o aluno não to entendimento do conceito de energia êmbolo.
apresentar esquemas de assimilação ade- interna. Em seguida, ao ser questionado 5
A Primeira Lei da Termodinâ-
quados no nível de instrução, há vários sobre a relação entre energia interna e mica pode ser expressa de
maneira simplificada por dU
estudos que, utilizando tarefas piagetianas, temperatura, retoma então a tarefa da se- = dQ - dW, onde U é a ener-
mostraram que grande parte dos estudan- ringa, conseguindo analisá-la através da gia interna, Q é o calor e W o
trabalho, sendo que a letra d
tes, ao ingressarem na universidade, ainda Primeira Lei. Esse resultado talvez tradu- representa variações infinite-
não atingiu um nível de raciocínio formal ou za o fato de a instrução recebida pelo alu- simais das grandezas. A Pri-
meira Lei traduz o Princípio
hipotético-dedutivo previsto por Piaget. Isso no ter-lhe proporcionado condições para da Conservação de Energia
quer dizer que o aluno, ao iniciar o curso uma aprendizagem s. str., através da qual na Termodinâmica.

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conseguiu construir esquemas de assimi- novo e específico derivado do meio, além
lação que não só lhe permitiram compre- de ser um processo limitado a um proble-
ender o mecanismo de uma situação es- ma único ou a uma estrutura única, dife-
pecífica – garrafa térmica –, mas que tam- renciando do desenvolvimento da inteligên-
bém lhe abriram a possibilidade para al- cia, que corresponderia à totalidade das
guma generalização, possibilitando-o a estruturas de conhecimento construídas.
resolver uma nova situação específica – Nesse sentido, a instrução deveria não
seringa. só objetivar a promoção da aprendizagem
s. str. como também da aprendizagem s.
lat. A primeira corresponderia a uma aqui-
Processo de ensino- sição em função da experiência, de forma
aprendizagem, evolução mediata, no sentido de que o sujeito pode
conceitual e epistemologia chegar a compreender um evento, inferir
sua lei de formação através de assimila-
genética ções e acomodações, construindo novos
esquemas, mas que não são generalizáveis
A análise de resultados da pesquisa, a qualquer situação nova. Já a aprendiza-
na área de ensino de ciências, baseada gem s. lat. definida como a união das
no referencial piagetiano, procurou mos- aprendizagens s. str. e do processo de
trar evidências empíricas de que a Episte- equilibração constituiria um processo fun-
mologia Genética pode estabelecer dire- cional de conjunto, quando haveria uma
trizes para a pesquisa do processo de aquisição de conhecimento em função da
ensino-aprendizagem em ciências visan- experiência de forma mediata, havendo, ao
do à busca de formas de promoção de mesmo tempo, o processo de auto-
evolução conceitual pelo aluno em dire- regulação, onde o sujeito procura ter su-
ção ao conhecimento ensinado no con- cesso na sua ação ou operação. Como,
texto escolar. pelo processo de equilibração, o sujeito
Neste contexto, a evolução conceitual procura adaptar a sua estrutura cognitiva
é entendida como um possível co-proces- à realidade que o cerca – o que, em
so de reconstrução do conhecimento pelo essência, significa o desenvolvimento
sujeito epistêmico que envolveria a articula- mental –, quando ocorre a aprendizagem
ção de aspectos já discutidos neste texto. s. lat., ela tende a se confundir com o pró-
Assim, o primeiro a ser considerado prio desenvolvimento o que, em última ins-
é o desenvolvimento intelectual do sujei- tância, corresponderia à evolução das es-
to, no sentido de este apresentar esque- truturas de conhecimento. Esta evolução
mas de assimilação adequados no nível poderia significar a reconstrução do conhe-
de instrução a ser ministrada ou de se cimento pelo sujeito e que poderia ser en-
adaptar à instrução no seu nível de desen- tendida, no contexto educacional, como a
volvimento intelectual. própria evolução conceitual em uma área
O segundo aspecto é a tomada de de conhecimento específico.
Assim sendo, a articulação dos aspec-
consciência, entendida como processo de
tos piagetianos relacionados com a apren-
conceituação que reconstrói e depois ul-
dizagem, tomada de consciência, desen-
trapassa, no plano da semiotização e da
volvimento e conhecimento pode significar
representação, o que era adquirido no pla-
o estabelecimento de diretrizes básicas
no dos esquemas de ação (Piaget, 1977b). para um programa de pesquisa sobre o
Assim, a tomada de consciência seria a processo de ensino-aprendizagem cujo
passagem do porque para o como, análo- foco principal seria a evolução conceitual
ga à transição da física aristotélica para a em ciências.
física galileana (Baptista, Ferracioli, 1999),
quando haveria a passagem da assimila-
ção do objeto a um esquema para a assi- Considerações finais
milação por meio de conceitos, e o sujeito
construiria os conceitos abordados na Este texto procurou mostrar que atra-
instrução. vés da pesquisa no campo da Epistemolo-
O próximo aspecto a ser considera- gia Genética, Piaget aprofunda a questão
do é a noção piagetiana de aprendizagem sobre o que é desenvolvimento, como se
ligada à aquisição de um conhecimento dá a construção do conhecimento pelo

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sujeito e do significado de aprendizagem,
além de mostrar que a articulação destes
aspectos pode estabelecer diretrizes para
a investigação do processo de ensino-
aprendizagem baseada no referencial
piagetiano. Os resultados dessa investi-
gação podem contribuir para a amplia-
ção do debate sobre os objetivos do pro-
cesso de ensino-aprendizagem, bem como
sobre sua fundamentação teórica, para
subsidiar o estabelecimento de diretrizes
educacionais.
Esses aspectos são de interesse de
professores envolvidos na prática pedagó-
gica diária, além de professores que este-
jam também envolvidos na sistematização
dos resultados dessa prática através da
pesquisa educacional e, em particular, da
pesquisa em ensino de ciências relaciona-
da à investigação sobre evolução concei-
tual em ciências entendida como proces-
so de reconstrução do conhecimento no
contexto escolar.

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R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 80, n. 194, p. 5-18, jan./abr. 1999. 17


Recebido em 30 de março de 1999.

Laércio Ferracioli, doutor em Educação em Ciências pelo Instituto de Educação da


Universidade de Londres, é professor adjunto do Departamento de Física da Universi-
dade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador da área de concentração Ensino
de Física, do Programa de Pós-Graduação em Física dessa universidade.

Abstract
Initially, this paper presents an overview approach on Jean Piaget's ideas, followed
by a description of issues related to knowledge construction based on stages and related
factors. Secondly, a discussion on definition and differentiation among the concepts of
learning, development and knowledge in Piaget's work is presented. Finally, the
presentation and analysis on some research results on science teaching, focusing on the
conceptual changing in sciences.

Key-words: genetic epistemology; science education; conceptual change.

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