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DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO:

Rui Magalhães Piscitelli


Procurador Federal e Mestrando em Direitos Fundamentais
pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA -RS

A motivação de escrever as presentes linhas se deu por ocasião da veiculação da


notícia abaixo, disponível no sítio jurídico do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=4660.

OAB DEBATE CONVOCAÇÃO DE ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE EXCLUSIVA

Brasília, 20/07/2005 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil


(OAB), Roberto Busato, anunciou hoje (20) que levará a debate a crise política por que
passa o Brasil na sessão plenária do Conselho Federal da entidade, nos próximos dias
8 e 9 de agosto. Na ocasião, Busato vai propor que a OAB se manifeste sobre o apoio à
convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva que traga um novo ordenamento
constitucional para o País. “A crise é grave e não podemos deixar que as instituições se
esfarelem como rapidamente está acontecendo neste momento”.

Esse será um dos temas de fundo que serão tratados na sessão plenária da OAB,
para que a entidade possa lançar um posicionamento quanto à crise política que tem
atingido a confiança do cidadão. Durante entrevista concedida nesta manhã, Roberto
Busato afirmou que essa pode ser a oportunidade de se buscar saídas mais agudas
para uma “refundação” da República.

“Nesse ponto, a crise nos mostra que há uma fragilidade na legislação eleitoral e
pior, há uma enorme fragilidade ética e moral por parte de pessoas que estavam acima
de qualquer sentimento de dúvida por parte da população”, afirmou Roberto Busato,
ressaltando que a crise está levando a sociedade a um descrédito total com relação ao
Poder Executivo.

Ainda na opinião do presidente da OAB, o Congresso Nacional está praticamente


tolhido, “pois seus membros mais ilustres, os que realmente se mantêm fora da crise e
honram o seu mandato, estão quase que tolhidos pelo mar de corrupção do qual
participam dezenas ou talvez centenas de parlamentares, acusados de atuarem nesse
desastre moral e ético a que os comandantes deste País deixaram chegar”.

Sobre o tema, nada melhor sobre o assunto que a obra 1 do ex-Presidente da


Corte Constitucional alemã, Professor Konrad Hesse.

1
Hesse, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. SAFE,
1.991
Traduzida por Gilmar Ferreira Mendes, atual Ministro do Egrégio Supremo
Tribunal Federal brasileiro, Hesse nos brinda em seu livro com o proferido na aula
inaugural da Universidade de Freiburg – RFA, no ano de 1.959, naquilo que Gilmar
Mendes denominou, na apresentação do livro, de “ um dos textos mais significativos do
Direito Constitucional moderno.

Inicialmente, relembremos da dificuldade da introdução da idéia de uma


Constituição normativa no continente europeu.

E isso se deveu, no campo intelectual, às idéias de Ferdinand Lassale.

Lassale, numa visão sociológica da Constituição, chegou a assentar que ela seria
simplesmente uma “folha de papel” , visto que a sociedade não poderia ser usurpada
de sua soberania em virtude de um texto a que denominavam de Maior.

Ainda, na Europa, o dogma da legalidade, legado da Revolução Francesa, reinava


absoluto, até o início do século XX, quando do advento das idéias de Hans Kelsen, das
quais se extraía a noção de que as normas têm hierarquia entre si, começando pela
fundamental, logo abaixo, a Constituição, e, abaixo, os demais atos, inclusive as leis.

Veja-se que, no continente americano, o caso Madison x Murbury, já no século


XIX, introduzira a força superior da norma constitucional sobre a lei.

Opositor, então, das idéias de Lassale, Konrad Hesse cria a idéia de “vontade da
Constituição”2 . Tal idéia remete à sua força normativa.

No entanto, para chegar a esse status, há que se entender a gênese da norma


Constitucional.

E as normas Constitucional são, sobretudo, relações de poder.

Isso quer dizer que a feitura de uma Constituição é fruto de pressão dos mais
diversos grupos sociais.

Assim sendo, não se pode olvidar, jamais, de seu caráter político, fruto das forças
da sociedade em um determinado momento.

Esquecer disso faria com que 2 Constituições vigessem no mesmo momento na


mesma sociedade: uma, a Constituição nominal, também chamada por Hesse de
jurídica; outra, a Constituição aplicável na prática, o que Hesse denominou de real.

E, em se chegando a tal situação, aí sim, Lassale teria razão, uma vez que a
Constituição jurídica fatalmente sucumbiria frente à Constituição real, aquela se tornaria
uma simples “folha de papel”.

2
Em alemão, Wille zur Verfassung.
Tal desenho deve ser ao máximo evitado, pois desmoralizaria o sentimento de que
a Constituição rege, daria a imagem da fraqueza total de seus propósitos.

Mas, como fazer para evitar isso ?

Na expressão de Hesse:

“ A radical separação, no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser


(Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como
anteriormente observado, essa separação pode levar a uma confirmação, confessa ou
não, da tese que atribui exclusiva força determinante às relações fáticas. Eventual
ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma
norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de
qualquer elemento normativo.”

Fundamentalmente, é necessário que a Carta Maior e a sociedade estejam


permanentemente, ainda que não de forma absoluta, envoltas numa situação
harmônica.

Hesse faz questão de nos advertir de que, para isso, a Constituição não deve ser
mudada ao sabor do vento, em qualquer quebra da harmonia acima referida.

Pelo contrário, nesses momentos é que a Constituição deve mostrar que é


possível de unificar uma sociedade, de ser sua Norma Maior, resolvendo, dentro de
suas previsões, a crise instalada.

Mas, por outro lado, não deve ser negado o poder de reformá-la por parte do
constituinte derivado.

Ressalvadas normas que o próprio Constituinte originário deve arrolar como


preserváveis daquele poder derivado, deve haver, no seu próprio corpo, um processo
disciplinando o poder de reformá-la. E, também, devem ser previstos ordenamentos
para os denominados na nossa Carta de 88, estados de defesa e de sítio, conhecidos
na doutrina internacional como estados de emergência, com vista a que, mesmo
nessas situações, a força normativa seja preservada, e, no momento oportuno, soerga-
se o Estado democrático de direito em sua plenitude.

Nas palavras de Hesse:

“Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão
constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre
norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação construtiva é
sempre possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na
interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da
Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-
se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.”

E acrescentamos nós, com o risco de que o desarranjo social antecedente à tal


movimento revolucionário causa marcas muito doloridas à própria sociedade.
Assim, estaria preservada sua força normativa para uma sociedade, uma vez que
a Constituição não poderia, sozinha, tentar manter um desenho que a própria
comunidade não mais reflete.

Isso nos remete à conclusão de Canotilho, sobre sua Constituição dirigente 3: “ a


Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como
normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações
emancipatórias.”

Ou como magistralmente professa Hesse: “ A norma constitucional somente logra


atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente.”

Essas ponderações devem ser levadas em consideração nas sociedades


contemporâneas.

Fatores econômicos e políticos acabam por acabar redesenhando o formato de


uma sociedade.

Tomemos como exemplo a norma do originário artigo 192 da Constituição Federal


brasileira.

Nela, havia previsão de que a taxa de juros real praticada na economia não
poderia ser superior a 12 % anuais.

Contudo, a realidade da economia brasileira nunca permitiu que tal norma fosse
efetivamente implementada.

Primeiramente, a própria Corte Suprema de nosso País declarou que tal


dispositivo tinha eficácia limitada, ou seja, dependente de regulamentação, a qual,
nunca foi editada. Em efeitos práticos, ocasionou que os juros nunca foram limitados a
tal percentual.

Mas, como havia ainda, Magistrados que tomavam tal dispositivo como auto-
aplicável, então, o constituinte derivado, via a emenda constitucional nr. 40, de 2.003,
veio a suprimir, textualmente, tal ordem do seu texto.

À reflexão: deveria tal comando permanecer na Carta, ainda que, após


pronunciamento da Corte Maior, vigesse apenas de forma figurativa ? Isso não estaria
levando a um descrédito na força normativa da Constituição ?

Resposta positiva à primeira questão acima nos levaria ao seguinte


questionamento: por si só, tal preceito constitucional seria capaz de mudar o
comportamento dos agentes econômicos ?

Concluindo, fazemos remessa à serena reflexão, com a observação de Hesse de


que “ ... o Direito Constitucional deve preservar, modestamente, a consciência dos seus

3
Streck, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2.002.
limites. Até porque a força normativa da Constituição é apenas uma das forças de cuja
atuação resulta a realidade do Estado.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :

Hesse, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira


Mendes. Porto Alegre. SAFE, 1.991;

Streck, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Porto Alegre,


Livraria do Advogado, 2.002.

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