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Saúde Mental

Brasília-DF.
Elaboração

Kelen Santana da Costa

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................................................... 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA...................................................................... 5

INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 7

UNIDADE I
A SAÚDE MENTAL.................................................................................................................................. 9

CAPÍTULO 1
SAÚDE MENTAL ONTEM E HOJE................................................................................................ 9

UNIDADE II
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA................................................................................... 16

CAPÍTULO 1
SAÚDE MENTAL DO BEBÊ E DA CRIANÇA PEQUENA.................................................................. 16

CAPÍTULO 2
SAÚDE MENTAL DO ADOLESCENTE.......................................................................................... 29

CAPÍTULO 3
SAÚDE MENTAL NA TERCEIRA IDADE........................................................................................ 38

PARA (NÃO) FINALIZAR....................................................................................................................... 42

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 43
Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela
interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da
Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos


conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos
da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional
que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-
tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos
básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar
sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para
aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos
e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Praticando

Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer


o processo de aprendizagem do aluno.

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Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Exercício de fixação

Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/
conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não
há registro de menção).

Avaliação Final

Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso,


que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única
atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber
se pode ou não receber a certificação.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

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Introdução
Não se pode falar de Saúde da Família sem se abordar o campo de Saúde Mental. Esta
disciplina visa fornecer aos profissionais que atuam em saúde da família noções básicas e
alguns aprofundamentos acerca da saúde mental, fornecendo, ainda, um amplo material
suplementar, com o objetivo de instigar os alunos a buscarem mais informações.

Nosso percurso está dividido em duas unidades. Na primeira, estudaremos o panorama


histórico que nos mostrará a evolução das noções e das abordagens que a loucura teve no
decorrer dos séculos. Também conheceremos alguns dos conceitos e das práticas mais
importantes em saúde mental na atualidade. Desse modo, obteremos instrumentos
para conhecer, contextualizar, refletir e questionar conceitos e abordagens da nossa
prática diária atual, como é o caso das noções de “normal” e “patológico”.

A segunda parte do nosso curso aborda a saúde mental em fases decisivas da vida:
infância, adolescência e terceira idade. Estas se configuram em momentos fundamentais,
em que ocorrem transformações psíquicas que refletem no bem-estar mental dos
indivíduos. É imprescindível que os profissionais em saúde mental compreendam
as vicissitudes de cada uma dessas fases do desenvolvimento humano que trazem
inúmeros desafios ao nosso entendimento e atuação.

No decorrer de todo o material, haverá sugestões de pesquisas complementares (por


meio de leitura de textos, artigos, livros etc.) que visam enriquecer e aprofundar os
temas trabalhados.

Desejo a todos um trabalho bastante proveitoso, permeado não só pela aquisição


de conhecimentos, mas também pelo levantamento de reflexões, inquietações e
questionamentos, pois toda grande teoria começa com grandes perguntas.

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Objetivos
»» Conhecer a evolução histórica dos conceitos e das abordagens em saúde
mental.

»» Conhecer noções e abordagens atuais em saúde mental.

»» Compreender as especificidades da saúde mental em etapas decisivas


da vida.

»» Compreender a importância de considerar a singularidade de cada


paciente e família.

»» Compreender a importância da atuação interdisciplinar em saúde mental.

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A SAÚDE MENTAL UNIDADE I

CAPÍTULO 1
Saúde Mental Ontem e Hoje

A saúde mental é um campo relativamente novo nos estudos da saúde humana. Para
melhor compreendê-la, é necessário conhecer sua evolução histórica, bem como as
noções de “normalidade” e “anormalidade”, ao longo dos séculos.

Desde a Antiguidade, as pessoas que apresentavam desvios de comportamento ou de


conduta eram segregadas do convívio coletivo, de modo a não perturbar a ordem social
vigente. Na Idade Média, os loucos eram mantidos em asilos, juntamente com outras
classes que deveriam ser excluídas da sociedade, como os ladrões, as prostitutas, os
leprosos. Por não conseguir uma explicação plausível para as causas e as consequências
da loucura, a sociedade costumava atribuí-la a crenças religiosas, ao sobre-humano.
Cabia à Igreja tratar os loucos.

Com o fortalecimento das ideias iluministas, no século XVIII,


a loucura passou a atrair o interesse da ciência e do empirismo
emergente. Segundo o novo paradigma, somente o conhecimento
resultante do uso da razão seria capaz de “libertar” o homem das
trevas do saber tradicional advindo das crenças míticas e religiosas.
Surgiram assim os primeiros hospícios, locais de abrigamento
exclusivo para os loucos, que passaram a ser assunto da medicina.
Philippe Pinel (ilustração) é tido como o pioneiro que retirou os loucos das prisões e
aplicou-lhes um tratamento médico, lançando as bases da Psiquiatria, que surgiria no
século XIX. A loucura torna-se doença mental. Tem início a era manicomial.

Com o reinado da Psiquiatria no tratamento da loucura, vieram as classificações das


enfermidades e a medicalização, práticas herdadas do paradigma médico. Surgiram os
manuais de classificação das doenças de acordo com a sintomatologia. Já no século V a.C.,
na Grécia Antiga, Hipócrates tentou criar um sistema de classificação das enfermidades
mentais. Nomes como mania, histeria, melancolia, catatonia, incorporadas ao longo dos

9
UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

séculos ao jargão médico, têm origem nessa época. Mas foi Kraepelin (1856–1926) que
desenvolveu o primeiro sistema de classificação considerado científico.

Consultar a obra História da loucura na idade clássica, de Michel Foucault.


Neste livro, o autor traça a evolução histórica da concepção de loucura, apontando
a influência da conjuntura social, histórica e cultural. A noção de loucura
sofreu grandes transformações ao longo dos séculos, tendo sido considerada
manifestação de sabedoria, possessão demoníaca, bruxaria, subversão da ordem
social e doença, o que levou igualmente a diferentes abordagens: exorcismo,
fogueira, confinamento, eletrochoque, tratamento moral, medicalização.
Foucault também discute as relações de poder que constituem e são constituídas
com o surgimento da Psiquiatria como novo campo de saber acerca da loucura.

A partir da segunda metade do século passado, surge na Europa um movimento


conhecido como Reforma Psiquiatra, que questiona as práticas psiquiátricas clássicas
em relação tanto à compreensão da loucura quanto ao seu tratamento (eletrochoque,
psicofármacos, confinamento, restrição de direitos e liberdades etc.). Dentre as ideias
apregoadas estão o fim dos manicômios e do regime asilar, a reinserção social do
doente mental, o reconhecimento da sua cidadania, o questionamento das noções
psiquiátricas de doença X sanidade e a interdisciplinariedade e horizontalização das
equipes cuidadoras.

Este movimento teve fortes correntes em países como Inglaterra, França e Itália e
grande repercussão no Brasil e, ainda que não se tenham eliminado definitivamente os
hospícios, a Reforma Psiquiátrica deixou, como legado, a conscientização da necessidade
premente de se pensar alternativas de compreensão e prática no cuidado da loucura.

Para saber mais a respeito da Reforma Psiquiátrica no Brasil, consultar:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_15_anos_caracas.pdf>

A Lei Federal no 10.216, de abril de 2001, conhecida como Lei Paulo Delgado, trata
da extinção progressiva dos manicômios e da criação de serviços comunitários
para o tratamento da doença mental. Confira o texto integral em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>.

O trabalho da psiquiatra Nise da Silveira foi pioneiro na Reforma Psiquiátrica no


Brasil e revolucionou o atendimento aos portadores de transtornos mentais, em
especial dos esquizofrênicos. Dentre suas ações, destaca-se a criação de oficinas
de terapia ocupacional, em que os pacientes expressavam suas emoções por
meio das artes plásticas. Em 1952, Nise da Silveira montou, no Rio de Janeiro, o
Museu de Imagens do Inconsciente para abrigar as peças produzidas nos ateliês

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A SAÚDE MENTAL │ UNIDADE I

de pintura e modelagem, que se mostraram de grande interesse científico e


utilidade na compreensão e no tratamento da doença mental.

<http://www.ccs.saude.gov.br/nise_da_silveira/homepage.html> e <http://
www.ccs.saude.gov.br/nise_da_silveira/homepage.html>

Até hoje os profissionais de saúde continuam utilizando predominantemente manuais


de classificação nosográficos, com destaque ao Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais – DSM, da American Psychiatric Association, que se encontra
em sua quarta versão, e ao CID ou Classificação Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, hoje na 10ª revisão.

É fundamental ao profissional de saúde instrumentalizar-se com noções e conceitos


científicos e sistemáticos que forneçam elementos de guia para uma ação terapêutica
e para a transmissão do conhecimento. Entretanto, é preciso ter uma visão crítica a
respeito de práticas que visam classificar o comportamento humano e rotular o sujeito
em categorias, a partir de um conjunto de sinais e sintomas psiquiátricos. Até porque o
profissional de saúde mental não é um mero observador de sinais corporais alterados.
Ele lida com fenômenos mais complexos, nos quais também se encontra inserido, a
saber, a linguagem e as produções simbólicas humanas, que podem ter infinitos
significados (MARTINS, 2003).

A nomenclatura dos quadros mentais vem sofrendo modificações e ampliações ao


longo dos anos. Abordaremos brevemente a nomenclatura utilizada pela Psiquiatria
até os anos 1960, da qual derivaram as classificações contemporâneas e que é adotada
por algumas linhas de pensamento em Psicologia. Sua relevância se situa no fato de se
buscar a compreensão dos quadros de adoecimento não apenas pela descrição de sinais
e sintomas, mas pelos processos psíquicos subjacentes, que remetem a uma estrutura
psíquica. Assim, a doença mental se divide em dois grandes grupos1.

»» Neurose – perturbação emocional resultante de conflitos psíquicos


internos, originalmente sem causa orgânica definida, que se manifesta
através de conversão em manifestações físicas (somatização) ou psíquica
(dissociação), de fobias ou ainda de comportamentos compulsivos, rigidez
emocional, perfeccionismo e egocentrismo. Neste grupo figuram os
transtornos obsessivo-compulsivo, fóbico e dissociativo ou de conversão
(antigamente denominado de histeria).

»» Psicose – quadro marcado por uma falha no desenvolvimento psíquico,


cuja origem remonta às primeiras experiências de vida e que pode levar,

1
Há ainda uma terceira divisão utilizada sobretudo pelos psicanalistas, a Perversão, para designar um quadro estrutural de
desvios de conduta ou comportamento, em que há subversão de normas sociais, adoção de condutas não aceitáveis socialmente,
falta de empatia em relação ao outro, o que pode levar o sujeito a infligir sofrimento ao outro (ou a si mesmo), sem sentimento
de culpa. Neste grupo, estão os pedófilos, os sadomasoquistas, alguns drogadictos, dentre outros.

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UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

nas crises, a uma desintegração psíquica, que, por sua vez, causa alterações
no estado de consciência, perda do contato com o mundo, desorganização
da personalidade e incapacidade de julgamento (teste de realidade). Pode
haver ruptura das relações sociais, delírios, alucinações e demência ou
degradação das capacidades cognitivas. As esquizofrenias e os quadros
paranoicos figuram neste grupo.

Enriqueça seus conhecimentos com as seguintes leituras complementares sobre


os manuais de classificação de doenças mais utilizados.

Consultar o CID-10 em <http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm>


(cap. V, referente ao transtornos mentais e comportamentais – F00-F99) e o DSM-IV.

A drogadicção e o alcoolismo são hoje considerados problemas de saúde mental, e


não mais apenas de segurança pública, merecendo um agrupamento à parte no CID-
10, referente aos transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substância
psicoativa (F10 – F19). Segundo dados da Organização Mundial de Saúde – OMS, cerca
de 10% das populações dos centros urbanos de todo o mundo consomem de modo
abusivo alguma substância psicoativa. E essa problemática atinge todas as camadas
populacionais, independente de sexo, idade, nível de instrução e poder aquisitivo.

A drogadicção ou dependência química designa o uso abusivo e a dependência física


e/ou psicológica de um sujeito em relação a uma substância psicoativa, que pode ser
psicofármacos (benzodiazepínicos, anfetaminas), produtos comerciais (anabolizantes,
solventes) ou substância ilícitas (cocaína, maconha, LSD).

Elas são classificadas em três grupos, de acordo com o efeito que produzem no Sistema
Nervoso Central.

»» Depressoras: ópio, morfina, benzodiazepínicos, solventes e inalantes.

»» Estimulantes: cocaína, anfetamina, ecstasy.

»» Alucinógenas: LSD, maconha, haxixe, cogumelo.

Ainda dentro da questão da dependência química, o alcoolismo e o tabagismo vêm


recebendo uma atenção específica, tendo em vista serem substâncias lícitas, cujo
consumo é até encorajado em determinadas manifestações sociais e culturais, além de
terem maior prevalência em relação às outras substâncias psicoativas.

Sobre a política governamental de atenção integral aos usuários de álcool


e outras drogas:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/A%20politica.pdf>

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A SAÚDE MENTAL │ UNIDADE I

Sobre a política de redução de danos no alcoolismo:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/alcool_reducao_danos.pdf>

O que o profissional de saúde deve ter em mente é que qualquer que seja o diagnóstico ou
a causa, o adoecimento mental acomete um sujeito que sofre e o foco deve ser a melhoria
das condições da saúde global da pessoa e da família, visando a sua autonomia, a partir
da melhora ou, se possível, da eliminação do sofrimento, com redução das limitações e
consequências negativas para sua vida em geral. Para isso, o atendimento comunitário
e interdisciplinar em redes de atenção vem se mostrando uma abordagem eficaz, em
substituição ao modelo hospitalocêntrico.

Sobre a nova política de saúde mental no Brasil, que destaca, dentre outras
coisas, a construção de uma rede de cuidados comunitária:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_15_anos_caracas.pdf>

Sobre a situação da saúde mental na América Latina, novas estratégias,


iniciativas e os grandes desafios da área:

<http://www.paho.org/portuguese/gov/ce/ce128_18-p.pdf>

Hoje há um consenso cada vez maior de que a saúde mental, pela sua complexidade,
não deve ser objeto de apenas um olhar, uma disciplina, qualquer que seja ela. A
complexidade e a multiplicidade dos fatores envolvidos no adoecimento mental
requerem um acompanhamento interdisciplinar, o que não significa a mera soma de
vários saberes isolados, mas a existência de um diálogo e a troca entre eles.

A identificação de um quadro de adoecimento mental não se dá por parâmetros


objetivos, tais como nível de glicemia ou colesterol, como ocorre com outras doenças
de origem orgânica. Os sintomas possuem as mais variadas naturezas e manifestações:
depressão, irritabilidade, alcoolismo, mudanças de humor, insônia, medos exagerados,
dentre outras, que podem inclusive coexistir e se modificarem numa mesma pessoa em
diferentes momentos da vida. Ainda, uma manifestação que ocasiona grande sofrimento
para um indivíduo não necessariamente representará adoecimento para outra. Desse
modo, tanto o diagnóstico quanto o tratamento devem ser feitos de forma cuidadosa e
respeitando, mais do que nunca, a famosa máxima de que “cada caso é um caso”.

O que você entende por interdisciplinaridade? Qual a importância da atuação


interdisciplinar no trabalho com a saúde da família?

Como é organizada a atuação dos profissionais das diversas áreas no serviço


em que você atua? Quais os resultados dessa organização? Há o que melhorar?

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UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

Como? Em que você pode contribuir para a implantação da interdisciplinaridade


no seu serviço?

Outra questão que permeia o trabalho em saúde mental para qual o profissional deve
estar atento é a delimitação entre o que é saúde e doença. Vale ressaltar que a linha
entre o normal e o patológico é muito difícil de ser traçada e sua delimitação pode
variar de acordo com fatores socioculturais e históricos. Isso quer dizer que fenômenos
considerados patológicos numa certa sociedade ou época podem ser aceitáveis,
cotidianos ou até mesmo valorizados em outra e vice-versa.

O livro A Louca e o Santo, escrito pela filósofa francesa Catherine Clément, em


parceria com o psicanalista indiano Sudhir Kakar (Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1997) traz uma interessante discussão sobre esta questão. Os autores traçam um
paralelo entre as histórias de duas personalidade que apresentavam “sintomas”
semelhantes, mas tiveram destinos bastante distintos. A primeira é de Madeleine,
moça pobre, católica, que viveu na França do século XIX, e foi internada e tratada
por 22 anos pelo ilustre médico Pierre Janet, tendo sido considerada louca. A outra
história refere-se à trajetória de Ramakrishna, um hindu analfabeto de Calcutá,
também do século XIX, que se tornou uma figura importante e reconhecida
do misticismo da Índia. Ambos apresentavam manifestações parecidas: visões
alucinatórias ou místicas, prolongados jejuns e paradas respiratórias, êxtases,
dentre outras. No entanto, à Madeleine, inserida em uma sociedade dominada
pelo racionalismo e positivismo francês, não coube outro destino senão a loucura,
a internação, o tratamento médico. Já Ramakrishna, imerso em um ambiente que
valorizava o misticismo em detrimento da razão, tornou-se reconhecido e amado
como santo e guru.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud, rompeu em definitivo a fronteira entre


o normal e o patológico ao mostrar a ocorrência, na vida cotidiana de todos nós, de
fenômenos cuja estrutura é a mesma de sintomas graves, como, por exemplo, os sonhos,
os lapsos, os esquecimentos, dentre outros.

Sigmund Freud promoveu uma grande revolução nos estudos do psiquismo


humano e na forma de se conceber o homem ao postular o conceito de
inconsciente, esfera psíquica à qual nossa consciência não tem acesso direto,
onde ficam guardadas as impressões da infância, que vão mover grande parte
de nossa forma de ser no mundo e marcar para sempre nossa personalidade.
Até então, a ciência e a filosofia abordavam o homem como um ser consciente:
“Penso, logo existo”. No entanto, Freud demonstra que o ser humano é dividido
em sua essência e precisa lidar com conflitos internos entre seus desejos
inconscientes e as exigências (advindas da cultura) de seu psiquismo, dos quais,

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A SAÚDE MENTAL │ UNIDADE I

muitas vezes, não tem conhecimento consciente. “O homem não é senhor em


sua própria morada”, afirmou em um das suas célebres frases.

Para aprofundar as investigações sobre o conceito de inconsciente e a


repercussão no psiquismo humano, três livros de Freud são fundamentais:
A Interpretação dos Sonhos, de 1900, Sobre a Psicopatologia da Vida
Cotidiana, de 1901, e Três Ensaios sobre a Sexualidade, de 1905 (este último
enfocando a sexualidade humana).

Machado de Assis, em sua célebre obra O Alienista, faz uma crítica ao


cientificismo predominante da sua época (fim do século XIX), retrata, de forma
irônica e cruel, a mentalidade de internação vigente e questiona as noções de
sanidade e doença mental. Vale a pena enriquecer seus estudos com a leitura
deste clássico da literatura brasileira.

<http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf>

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A SAÚDE MENTAL EM
FASES DECISIVAS UNIDADE II
DA VIDA

CAPÍTULO 1
Saúde Mental do Bebê e da
Criança Pequena

Desenvolvimento Psíquico do Bebê


É possível realizar um trabalho em saúde mental com bebês e crianças pequenas?
Como um profissional pode intervir com seres em idade tão inicial de seu
desenvolvimento, que não falam e aparentemente não conseguem expressar
suas necessidades?

Até os anos 1950, a ciência considerava o bebê um ser passivo, cuja atividade primordial
se resumia à função da alimentação (lactente). A concepção reinante era que bastava
fornecer os cuidados básicos de alimentação e higiene, até que a criança crescesse e, a
partir dos 6 ou 7 anos, entrasse, de fato, em uma fase de desenvolvimento e aprendizagem.

Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, houve uma mudança gradual mas
decisiva na forma de conceber o bebê, quando se passou a reconhecer que a criança,
mesmo no início da vida, era muito mais que um mero “tubo digestivo” (GOLSE, em
ARAGÃO, 2004).

Um fator primordial para essa mudança conceitual deu-se durante a Segunda Guerra
Mundial. O alto índice de patologias mentais e mortes em crianças abrigadas em
orfanatos do pós-guerra começou a chamar a atenção dos estudiosos. Percebeu-se que,
apesar de receberem cuidados de alimentação e higiene, as crianças apresentavam
comportamentos estereotipados, apatia, desinteresse, dentre outros sintomas,
sugerindo a existência de um sofrimento que extrapolava as condições materiais e os
cuidados físicos a elas oferecidos. A partir daí, deu-se início a um período de grande
pesquisa acerca da vida mental da criança nos primeiros anos de vida.

Dentre os estudos, destacaram-se as pesquisas de René Spitz, que cunhou o termo


“síndrome do hospitalismo” para designar um quadro que acometia crianças abrigadas
16
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

que, mesmo sendo bem-alimentadas, vestidas, aquecidas, passavam a apresentar


graves prejuízos no seu desenvolvimento, com falta de apetite, baixo peso, hipotonia,
apatia e gradual desinteresse pelo ambiente e pelas pessoas, vindo, muitas vezes, a
óbito. Spitz percebeu que a privação de afeto e atenção individualizada e constante
gerava efeitos nefastos para a saúde mental das crianças.

Outro teórico que merece menção é Bowlby (1969/2002, 1976/2001), que desenvolveu
a Teoria do Apego, segundo a qual um vínculo seguro entre o bebê e sua mãe (ou
cuidador) proporciona à criança um posterior sentimento positivo de segurança em
relação ao mundo. Segundo Bowlby, o comportamento de apego, ou de vincular-se, é
um mecanismo básico do ser humano. Esse vínculo afetivo vai se formando a partir
das capacidades cognitivas e emocionais do bebê, e da responsividade e sensibilidade
dos cuidadores (a mãe, o pai ou outra pessoa que cuide dele). Assim, as primeiras
relações de apego que a criança estabelece em tenra infância afetam o estilo de apego
do sujeito ao longo de sua vida, influenciando, consequentemente, na formação de
sua personalidade.

Donald Winnicott, em sua prática como pediatra e psicanalista na Inglaterra, percebeu


que grande parte dos problemas emocionais tinha origem nas vivências dos primeiros
anos de vida da criança. A partir disso, dedicou seus estudos à investigação das fases mais
iniciais do desenvolvimento mental humano. Assim, tornou-se um dos grandes nomes
da pesquisa da relação mãe e bebê, que, para ele, fornece as bases do desenvolvimento
da saúde mental do ser humano.

Segundo Winnicott (1965/2005), o bebê, no início da vida, compõe-se de uma série de


percepções sensoriais dispersas, desorganizadas, que o colocam em um estado de não
integração, com sensações de despedaçamento, aniquilamento, tal qual a de cair num
fosso sem fundo. É a partir da ação materna (ou de um cuidador privilegiado), manifestada
nos cuidados diários dirigidos ao bebê, que vai se criando para ele um sentimento de
continuidade, segurança e a percepção de ser uma pessoa inteira, integrada.
Mas a integração não é algo automático; é algo que deve desenvolver-se
pouco a pouco em cada criança individual. Não é mera questão de
neurofisiologia, pois, para que seu processo se desenrole, há a necessidade
da presença de certas condições ambientais, a saber: aquelas cujo melhor
provisor é a própria mãe da criança. (pág. 7).

Winnicott (1958/2000) postula a existência de um estado psicológico especial que a


mulher desenvolve, principalmente ao final da gravidez e semanas depois do nascimento
do seu filho, que a torna mais sensível às necessidades de seu bebê. Esse estado de
sensibilidade exacerbada, que ele denonimou de Preocupação Materna Primária, poderia
ser comparado a um quadro psiquiátrico patológico, caso não houvesse o bebê. Winnicott

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UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

chega a descrevê-lo como uma “doença normal” e enfatiza que tal condição fornece o
contexto necessário para o início da constituição psíquica da criança.

Com sua célebre frase “um bebê sozinho não existe”, Winnicott ressaltou a importância
de a mãe (ou o cuidador) ser “suficientemente boa”, isto é, nem tão perfeita a ponto de
responder a todas as demandas do bebê, tampouco indiferente a elas. Isso significa que a
mãe, aos poucos, deve deixar de responder de imediato às demandas do filho, à medida
que vai percebendo nele uma capacidade de suportar sua falta e satisfazer-se sozinho.

A mãe (e o ambiente) será, portanto, “suficientemente boa”, ainda segundo Winnicott,


caso ofereça à criança três funções fundamentais, a saber: o holding, a forma como o
cuidador sustenta, tanto física quando psiquicamente o bebê, capacidade de a mãe se
identificar com seu bebê e assim reconhecer suas necessidades; o handling, a forma
como o bebê é cuidado, manipulado, fornecendo à criança a noção do seu próprio corpo;
e a apresentação de objetos ou elementos substitutivos ao corpo materno, o
que auxiliará a criança na tomada de consciência do mundo externo (1971/1975).

Aqui cabe abordar, ainda, que, brevemente, os quadros mentais do puerpério,


que podem acometer a mãe após o nascimento do seu bebê e, a depender das
características dos sintomas e do grau, requerer intervenção profissional:

»» Baby blues (tristeza materna ou post-partum blues) – trata-se de um


estado de humor depressivo, que costuma ocorrer alguns dias após
o parto, em que a mãe sente-se incapaz diante da responsabilidade
de cuidar do seu filho. A mulher pode apresentar crises de choro,
irritabilidade, mudança brusca de humor, dentre outros. Este estado,
que costuma ser temporário, acomete mais de 50% das puérperas.
Alguns estudos chegam a falar de 80 ou 90%. As discrepâncias se dão
em virtude da dificuldade em se identificar este estado, tendo em vista
que muitas mães escondem sua tristeza. Também as pessoas próximas
costumam não reconhecê-los em virtude da idealização que nossa
sociedade faz em torno da maternidade. Dessa forma, os sentimentos
negativos da mãe, “justamente quando deveria estar radiante”, são
peremptoriamente negados.

Este estado reflete o trabalho psíquico que a mãe deve efetuar em relação às
várias transformações que a vinda de um filho promove, tais como o encontro
com o bebê real, sempre diferente do bebê imaginado; a modificação de
sua posição na estrutura familiar – de filho para mãe; e mudança na imagem
corporal – não é mais grávida, tampouco recuperou o corpo de mulher. Ainda
que seja passageiro e reversível e não acarrete prejuízos à saúde mental do

18
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

bebê, o sofrimento pode ser atenuado quando há para a mãe a possibilidade de


compartilhar seus sentimentos sem que se sinta julgada.

»» Depressão pós-parto – este quadro se distingue do baby-blues pela


maior gravidade, duração e possíveis consequências negativas para o
estabelecimento da relação mãe e bebê. Acomete cerca de 10 a 20%
das puérperas e pode se iniciar logo após o nascimento do bebê ou até
dois anos depois. Os sintomas mais frequentes são: tristeza profunda,
irritabilidade, grande alteração de humor, sentimentos negativos em
relação ao filho. Nesses casos, é necessário um acompanhamento
psicológico e psiquiátrico com medicação. Mulheres com episódios
depressivos ou transtornos afetivos anteriores, que tiveram
uma gravidez com complicações, com história de perdas de entes
queridos ou de abortos têm maior probabilidade de desenvolver uma
depressão pós-parto.

»» Psicose puerperal – quadro que se caracteriza por desorganização


psíquica proveniente do nascimento do filho, em que pode haver
delírios, alucinações, quebra do contato com a realidade. Em muitos
casos, é preciso separar a mãe do bebê em virtude do risco de vida
de ambos. A prevalência é de menos de 1% das puérperas. Mulheres
com antecedentes de crises psicóticas estão no grupo de risco. O
tratamento deve incluir acompanhamento multidisciplinar nas áreas
de psicologia, psiquiatria, assistência social e, muitas vezes, trabalho
de apoio junto à família.

LACONELLI, V. Depressão pós-parto, psicose pós-parto e tristeza materna. In:


Revista Pediatria Moderna, jul-ago, v. 41, n. 4, 2005.

A partir desses estudos, constata-se o papel fundamental, ou mesmo fundante, que


o adulto cuidador desempenha na constituição física e psíquica da criança. O bebê
humano nasce sob uma dependência radical daquele(s) que dele se ocupa(m) e, dessa
forma, as vivências dos primeiros anos terão grande influência na construção das bases
do desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social do futuro sujeito. Assim, um
trabalho em saúde mental com bebês deve incluir a díade mãe-bebê (e/ou as pessoas
que estabelecem uma relação próxima e significativa com o bebê).

As descobertas não pararam por aí. A partir da década de 1970 e 1980, com o avanço
tecnológico dos métodos de ultrassonografia e monitoramento fetal, foi possível
demonstrar que os bebês desenvolvem capacidades e habilidades impressionantes desde

19
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

o período pré-natal. Pesquisas acerca da sensorialidade do feto, por exemplo, mostraram


que o recém-nascido prefere cheiros e gostos aos quais teve contato enquanto estava no
ventre materno, o que prova a existência de um desenvolvimento sensorial e de memória
já no período intrauterino (BUSNEL, 2002). Quanto à audição, os estudos indicam que o
feto já responde a estímulos sonoros, desde a 24ª semana de gestação.

Experimentos sobre a visão dos recém-nascidos revelaram que, logo já nas primeiras
horas após o nascimento, as crianças preferem o rosto materno ao de qualquer outra
mulher (idem). Também foram descobertas nos bebês uma capacidade de imitar os
gestos do adulto. Desse modo, constatou-se que o bebê, antes mesmo de nascer, já
dispõe de uma gama de habilidades que o tornam extremamente ativo e apto para a
interação e vinculação afetiva com o outro.

O pediatra americano Thomas Brazelton criou a NBAS (Neonatal Behavioral


Assessment Scale), conhecida por Escala de Brazelton. Seu objetivo é avaliar
o desenvolvimento comportamental e neurológico do bebê, por meio da
observação de sua capacidade em controlar e organizar os sistemas autonômico,
motor, social e os estados de consciência. A escala permite conhecer o perfil de
funcionamento do bebê, a qualidade de sua interação com os pais e cuidadores,
possibilitando a identificação de aspectos que não vão bem e a intervenção
precoce (PAULA. SILVA; ALMEIDA, 2002).

BRAZELTON, T. B.; NUGENT, K. J. Neonatal Behavioral Assessment Scale. London:


Mackeith Press, 1995.

A partir das pesquisas sobre a constituição psíquica na primeira infância, foi possível
constatar que as vivências dos primeiros meses e anos de vida são fundamentais e
estruturantes para a saúde mental do indivíduo. E os efeitos de tais vivências poderão
ser positivos e/ou negativos a depender da qualidade e intensidade delas. Assim,
desmistifica-se a ideia segundo a qual pouco ou nada se pode fazer em termos de saúde
mental do bebê ou da criança pequena. Ao contrário, cada vez mais os profissionais
que lidam com a primeira infância – enfermeiros e auxiliares de enfermagem de UTI
neonatal, neonatologistas, pediatras, educadores de creche, psicólogos infantis, entre
outros – tornam-se conscientes da importância do cuidado da saúde psíquica da criança
em seus primeiros anos, meses, dias e até mesmo já no ventre materno.

Em vista disso, é crescente o número de experiências e práticas nessa área, como,


por exemplo, o incentivo ao parto humanizado, cujo objetivo é não só a redução
dos partos cirúrgicos e a mudança de uma visão meramente biológica e médica do

20
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

processo, como também a conscientização dos profissionais e dos usuários de que


a mulher (e o bebê) é a protagonista do parto e, dessa forma, deve ter necessidades,
valores, dignidade e individualidade respeitados (BRASIL, 2001). Outro exemplo é a
crescente preocupação de implementar nas UTIs neonatais rotinas adequadas para as
necessidades psíquicas do recém-nascido, muitas vezes prematuro, como diminuição
de estímulos excessivos (iluminação, barulho) (SILVA, 2002), e a implementação
de um trabalho de apoio na formação dos laços afetivos entre mãe (pais) e bebê
(ANDRADE, 2002; SZEJER, 1999).

Que práticas e atitudes um profissional que atua no âmbito da família pode


adotar visando a contribuir para o desenvolvimento da saúde mental da criança
pequena?

Como é possível detectar dificuldades psíquicas e emocionais em um estágio


tão precoce do desenvolvimento?

O ser humano não nasce falando. A palavra “infância” vem do latim infans e significa
“aquele que não fala”. A introdução na linguagem, que antecede o sujeito, dá-se aos
poucos. Dessa forma, o bebê expressa que algo não vai bem no seu psiquismo por
meio de sintomas no seu corpo, como, por exemplo, dificuldades de alimentação ou
de sono sem causas orgânicas, choros frequentes sem motivo aparente, evitação do
olhar, entre outros. A forma como a mãe “concebe” e cuida de seu filho, o que pode ser
percebido por sinais não verbais e pelo seu discurso, também fornece indícios de como
está caminhando o desenvolvimento da relação entre aquela mãe e seu bebê. Assim,
um trabalho em saúde mental com bebês e crianças pequenas deve considerar o que se
passa na díade mãe-bebê, abrangendo desde a observação dos sinais não verbais até a
escuta do discurso da mãe em relação ao seu filho.

Quanto mais cedo melhor


Para especialistas na área de saúde mental, a intervenção precoce pode diminuir ou mesmo eliminar o risco de
instalação de distúrbios psíquicos. Abaixo alguns marcadores psíquicos importantes, dignos de observação pelos
profissionais e cuidadores que acompanham o bebê de 0 a 6 meses.
A mãe é capaz de transformar as necessidades fisiológicas do bebê em demanda dirigida a ela, supondo um sujeito?
Ela consegue afastar-se do bebê, alternando presença e ausência?
A mãe é capaz de diferenciar tipos de choro de seu filho?
Ela espera a reação da criança depois de realizar uma ação? Há ligação entre os olhares dela e do bebê?
O bebê apresenta indícios de comunicação: olhar, sorriso social, balbucios, experiências orais não alimentares como
chupar o dedo, por exemplo?
Ele faz movimento em direção aos objetos?
A mãe fala com o bebê de um jeito particular? E ele, responde com vocalizações?
O bebê tem alterações de sono e vigília, de alimentação ou distúrbios intestinais?
Fonte: Degenszajn, R. D. “Sinais preditivos de risco psíquico”. Em: Revista A mente do Bebê. (2006).

21
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Caso sejam constatadas dificuldades em alguns desses itens, é necessária uma investigação
mais aprofundada por parte de um profissional especializado em saúde mental infantil.

Ainda assim, é preciso cautela a fim de evitar correlações advindas de um raciocíonio


de causalidade linear, do tipo: mães deprimidas geram filhos hiperativos, por exemplo.
Sabemos que tal lógica pode funcionar bem para problemas matemáticos ou físicos. Mas
quando se trata de saúde mental, as coisas não são tão simples assim, tendo em vista a
multiplicidade de fatores envolvidos, aos quais não se tem acesso integralmente. Diante
disso, é fundamental ao profissional considerar cada caso como único, singular. E isso só
é possível por meio de um olhar e escuta atentos, sem “préconceitos”.

Graças aos avanços nos estudos e nas pesquisas, não é mais possível pensar a primeira
infância apenas como uma fase anterior à infância propriamente dita ou de preparação
para a vida adulta. Torna-se mister pensar o bebê como um sujeito em constituição, que,
em sua especificidade, já conta com uma singularidade, com uma história, vivências,
cujos primórdios se encontram nas fantasias de sua mãe a respeito do filho imaginado,
na experiência da gravidez e no encontro e no estabelecimento das primeiras relações
com o bebê real.

É preciso estarmos atentos ainda ao outro lado da moeda, ou seja, ao fato de que as
impressionantes descobertas acerca das capacidades dos recém-nascidos podem gerar
uma euforia desmedida, levando profissionais a desenvolverem práticas que buscam o
desenvolvimento precoce da criança, no furor de produzir superbebês, alinhando-os aos
valores de competividade e alta produtividade apregoados pela sociedade moderna. Aqui
fica a pergunta: não corremos o risco de negar às crianças o direito a uma infância digna,
que respeite seu tempo, seus limites e sua singularidade como sujeito em formação?

Desenvolvimento Psíquico da Criança

Aquarela
(Toquinho)

Numa folha qualquer A voar no céu... Tudo em volta colorindo Não tem tempo, nem piedade
Eu desenho um sol amarelo Com suas luzes a piscar... Nem tem hora de chegar
E com cinco ou seis retas Vai voando Sem pedir licença
É fácil fazer um castelo... Contornando a imensa Basta imaginar e ele está Muda a nossa vida
Curva Norte e Sul Partindo, sereno e lindo E depois convida
Corro o lápis em torno Vou com ela Se a gente quiser A rir ou chorar...
Da mão e me dou uma luva Viajando Havaí Ele vai pousar...
E se faço chover Pequim ou Istambul Nessa estrada não nos cabe
Com dois riscos Pinto um barco a vela Um menino caminha Conhecer ou ver o que virá
Tenho um guarda-chuva... Branco navegando E caminhando chega no muro O fim dela ninguém sabe
É tanto céu e mar E ali logo em frente Bem ao certo onde vai dar
Se um pinguinho de tinta Num beijo azul... A esperar pela gente Vamos todos
Cai num pedacinho O futuro está... Numa linda passarela
Azul do papel Entre as nuvens De uma aquarela
Num instante imagino Vem surgindo um lindo E o futuro é uma astronave Que um dia enfim
Uma linda gaivota Avião rosa e grená Que tentamos pilotar Descolorirá...

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A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Como nos fala este trecho da música de Toquinho, ser criança é descobrir o mundo, por
meio da fantasia. Coisas simples, como “uma folha qualquer”, podem virar seres e objetos
fantásticos. É a idade do faz de conta, das fadas e bruxas, dos mocinhos e bandidos. É
a idade do brincar, das descobertas, mas também do aconchego do colo. Que, um dia,
findará. Mas marcará para sempre nosso futuro, nossa forma de ser no mundo.

Como vimos no item anterior, o trabalho com a primeira infância possui um grande
caráter preventivo. A prática clínica mostra que, quando as dificuldades psíquicas que
apontam nesses primeiros anos não são devidamente cuidadas, elas podem surgir
de forma mais grave nas etapas seguintes do desenvolvimento, como dificuldades de
aprendizagem, de relacionamento interpessoal, entre outros. Partiremos agora ao
estudo da saúde mental das crianças maiores.

Nem sempre a criança e a infância gozaram do estatuto e do interesse dos


dias atuais. Conforme nos mostra Ariès (1981), durante a Idade Média, havia
um sentimento de indiferença em relação à essa fase da vida, tendo em vista
a alta mortalidade infantil. As crianças permaneciam no anonimato até uma
certa idade – em torno dos 7 anos – quando, então, passavam a frequentar o
mundo adulto, inserindo-se no trabalho e nos jogos coletivos, como miniaturas
de adulto.

Assim, o sentimento e a concepção moderna da infância, segundo a qual a


criança é um ser precioso, que necessita de amor e cuidado, foi algo construído
ao longo dos séculos. Da mesma forma, a noção de família dos dias de hoje, de
instituição nuclear e privada, formada e mantida a partir de laços afetivos, é uma
conquista relativamente recente.

ARIÈS, P. A História Social da Criança e da Família, 1981.


BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno, 1985.

Freud, já postulava, no início do séc. XX, que a criança (moderna) ocupa um lugar
privilegiado no narcisismo, ou amor-próprio inconsciente, dos pais, ou seja, ela recebe
todo o tipo de aposta e esperança no sentido de realizar os desejos frustrados dos pais:

[Os pais] se inclinam a reivindicar para a criança o direito a privilégios


aos quais eles, os pais, há muito tiveram que renunciar. A criança
deve ter melhor sorte que seus pais, não deve ser submetida aos
mesmos imperativos que eles tiveram de acatar ao longo da vida.
Doença, morte, renúncia à fruição, restrições à própria vontade

23
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

não devem valer para a criança; as leis da natureza, assim como


as da sociedade, devem se deter diante dela, e ela deve realmente
se tornar de novo o centro e a essência da criação do mundo. His
majesty, the Baby, tal como nós mesmos nos imaginamos um dia.
(1914, p; 110)

Após o período da primeira infância, a criança entra em uma fase de gradual abertura
para o mundo. O núcleo familiar deixa de ser suficiente para as crescentes capacidades
da criança e ela passa a frequentar outros ambientes, engajar-se em diversas atividades:
visita a casa de parentes, brinca com coleguinhas, vai à escola etc.

Uma aquisição importante desta fase é a apropriação da linguagem. Seria errôneo


dizer que a criança adquire linguagem quando começa a falar. A criança encontra-se,
desde sempre, inserida na linguagem. Desde quando seus pais já lhe antecipavam
os primeiros traços: vai ser levado igual ao pai, tranquila tal qual a irmã… Estudos
comprovam que os balbucios que as crianças desenvolvem em torno dos 6 meses já
apresentam características da língua materna. O que ocorre é que a criança se apropria
da linguagem e passa a se utilizar dela. Ou seja, a criança deixa de ser falada pelos pais
(“ela) deve estar com fome”) para ela própria falar (“estou com fome”).

Esta é uma virada importante e dificuldades nessa área devem ser diagnosticadas,
investigadas e tratadas, pois entre outras coisas, o uso da linguagem diz da capacidade
de simbolização da criança, imprescindível para um bom desenvolvimento de sua
saúde mental. A capacidade de simbolizar permite à criança prescindir dos objetos
concretos. Daí é que derivará a capacidade de apreender operações lógicas cada vez
mais complexas, além do pensamento abstrato.

O pesquisador suíço, Jean Piaget, interessou-se pelo desenvolvimento da


linguagem e do pensamento infantil e realizou experimentos sistemáticos com
crianças das mais variadas idades que visavam a investigar a percepção e a lógica
infantis. Segundo ele, o desenvolvimento da inteligência ou cognitivo dá-se por
etapas sucessivas de crescente complexidade:

»» Sensório-Motor: do nascimento aos 2 anos – a criança adquire


conhecimento acerca do mundo por meio de suas ações (motoras) e
percepções (sensoriais). Tal conhecimento é prático, direto e imediato,
sem representação.

»» Pré-Operatório: dos 2 aos 7 anos – desenvolvimento de uma


inteligência simbólica, ou seja, intermediada por símbolos. Surge o
faz de conta, o jogo simbólico, em que um objeto qualquer pode
se transformar em outro (um pedaço de pau vira uma espada). A

24
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

criança continua egocêntrica, ou seja, centrada em si mesma, não


conseguindo se colocar no lugar do outro. É também a fase dos
“por quês”, tendo em vista o desejo de encontrar relações entre
os fenômenos.

»» Operatório-Concreto: dos 7 aos 11 anos – a criança adquire noções


de tempo, velocidade, espaço, desenvolvendo a capacidade de efetuar
correlações entre diferentes fatores e de abstrair dados da realidade,
ainda que necessite de suporte no concreto.

»» Operatório-Formal: dos 11 anos em diante – o adolescente atinge


o último estágio do desenvolvimento da inteligência, adquirindo
pensamento hipotético-dedutivo ou lógico-matemático, que
lhe permite efetuar relações hipotéticas entre fatores totalmente
abstratos, sem apoio em dados concretos.

PIAGET, J. O Nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar,


1982.

Outro aspecto importante do desenvolvimento infantil relaciona-se à sexualidade.


Quando mencionamos esse assunto, a primeira coisa que costuma vir à mente das
pessoas é a sexualidade adulta, cuja manifestação máxima é a relação sexual, sob a
primazia dos órgãos genitais. Sob tal modelo, realmente fica estranho falar de uma
sexualidade infantil. Entretanto, sabemos que, desde os estudos de Freud, a sexualidade
humana é muito mais do que isso. Refere-se aos desejos, à busca de prazer e satisfação
que, no ser humano, dá-se por diferentes modos e que ultrapassam a necessidade
fisiológica e o instinto. Assim, o homem encontra prazer em várias atividades como
comer, trabalhar, estar com amigos, nas conquistas pessoais etc. Um exemplo de como
o homem subverte o instinto e o biológico se encontra na alimentação. O homem não
come só por conta da fome (necessidade biológica), mas também pelo prazer que ele daí
retira. Como explicar então os transtornos alimentares?

As mães já constatam, desde muito cedo, que seus bebês buscam não apenas o leite
quando amamentam, mas o aconchego, o olhar, as palavras, o toque, os carinhos
maternos. Freud nos fala de uma manifestação da sexualidade infantil já presente aí, e
a amamentação seria seu primeiro protótipo.

25
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Dessa forma, a sexualidade humana, contrariamente ao que a corrente moralista


gostaria de acreditar(!), não nasce na puberdade, mas está presente desde o início da
vida. E mais, ela é constitutiva do desenvolvimento psíquico do sujeito.

Freud postulou que o desenvolvimento da sexualidade infantil segue fases de


organização da libido (energia sexual). Em cada uma dessas fases, a fonte de
excitação vinda do organismo (pulsão) volta-se predominantemente a uma
região ou função do corpo que adquire o status de zona erógena. Cada criança
vai passar de forma única por cada uma das etapas, que não são necessariamente
sucessivas. A forma como se dará essa(s) passagem(ns) deixará marcas no
desenvolvimento posterior do adulto. Assim, crianças que permaneceram,
de certa forma, “fixadas” na fase oral tenderão a buscar prazer em atividades
relacionadas à oralidade: alimentação, tabagismo, alcoolismo, por exemplo.

No quadro abaixo, podemos ver as etapas da organização sexual infantil:

Idade 0 a 18 meses 18 meses a 3 anos 3 a 6 anos


Fase Oral Anal Fálica
Objeto Boca, seio Fezes, urina Órgãos genitais
Tipo de Autoerótico, toma todos os Narcísico, Investe os objeto Fantasístico, atualiza os desejos
prazer objetos de incorporação como destacáveis do corpo com orais e anais nas fantasias de
partes do próprio corpo. valor simbólico de troca. sedução e castração.
O que Há equivalência sujeito-meio; Reter ou expulsar as fezes Há um interesse pelas zonas
ocorre saciedade oral e afeto equiparam-se: equivale à passividade ou genitais e, simultaneamente,
ser alimentado é ter o amor materno e atividade com relação a dar ou um investimento afetivo (de
ser privado de alimento é sucumbir à receber objetos: é a medida de amor e ódio) dirigido às figuras
angústia de aniquilamento. troca de afeto com os pais. parentais (complexo de Édipo).

Fonte: Zornig, S. A-J. (2006). Pelo viés do corpo. Revista A mente do bebê. (com adaptações).

A partir dos 6 anos, a criança entra num período que Freud denominou de latência,
em que a energia sexual é direcionada para a aprendizagem, o desejo de saber e de
descobrir o mundo. Esta fase coincide com a idade escolar e o período de alfabetização.

Na puberdade, o sujeito entra na fase genital, marcada por uma sexualidade que se
aproxima à adulta, havendo o predomínio das pulsões em torno da zona genital. O
prazer se encontra dividido entre a ternura (amor) e a paixão (desejo), dirigido às
relações sociais, aos parceiros sexuais, que podem ser do mesmo ou outro sexo.

Existem alguns quadros que são descritos com mais frequência no campo da saúde
mental infantil. Porém, antes de abordá-los, vale ressaltar que não devemos utilizá-los
para rotular os pequenos pacientes, o que pode ter efeitos nefastos para o seu futuro.
Sabemos que a palavra de um especialista tem um peso muito grande para a criança
e sua família. Deste modo, é fundamental adotarmos uma postura ética no sentido de

26
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

não influenciarmos negativamente o desenvolvimento da criança, sob um “pretenso


saber”, a partir do que comunicamos, das palavras que utilizamos.

Sabemos que fazer um diagnóstico extremamente cedo, em um tempo


em que não se pode fazer, acaba por fabricar aquilo que se supõe evitar.
Se alguém introduz o diagnóstico, se ministra a medicação precocemente
e se trata um criança como se fosse um “TDAH”, ao final, podemos ter
razão. (Jerusalinsky, 2003, em conferência proferida na Fundación
para el Estudio de los problemas de la Infancia, Centro Lidia Coriat,
Buenos Aires – link citado a seguir).

Os quadros mais graves descritos são:

»» A Psicose infantil é caracterizada por uma desorganização psíquica, que,


na criança, manifesta-se como dificuldade de se separar da mãe e atraso na
aquisição do pensamento abstrato, do faz de conta, podendo gerar prejuízos
no desenvolvimento cognitivo, da linguagem e nos relacionamentos
interpessoais. Pode haver ainda alucinações e/ou delírios, comportamentos
estereotipados e ecolalia. Este quadro, conforme compreendido pela
Psicanálise, tem sua origem nas primeiras vivências da criança e aponta
para uma dificuldade de se separar psiquicamente da mãe.

»» O Autismo é uma patologia grave que surge até os três anos de idade.
A criança apresenta comprometimento (e às vezes impossibilidade)
na interação com o meio. Os sintomas principais são movimentos
estereotipados, respostas inadequadas a estímulos visuais ou auditivos,
grande desorganização em situações que saem da rotina, dificuldade no
desenvolvimento da linguagem e na comunicação, agressividade, distúrbios
no sono e na alimentação. Não existe consenso em relação à etiologia do
autismo. Prefere-se pensar que é uma doença multifatorial, em que fatores
genéticos, hereditários e também psíquicos estejam em jogo.

Psicose Infantil

< ht t p : / / w w w. s c i e l o. b r / s c i e l o. p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t tex t & p i d = S 0 1 0 3 -


65642000000100012>

Autismo

<http://www.fundamentalpsychopathology.org/art/v08_03/02.pdf>

Diagnóstico diferencial da psicose X autismo

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642000000100006&script=sci_
arttext&tlng=es>

27
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Atualmente, os serviços de saúde vêm recebendo um grande número de crianças


diagnosticadas com TDAH ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade.
Os sintomas utilizados para definir a síndrome são:

Do grupo do Deficit de Atenção.

»» Desatenção.

»» Dificuldade de concentração.

Do grupo da Hiperatividade.

»» Agitação.

»» Impulsividade.

Algumas crianças podem apresentar sintomas de um grupo ou combinar ambos. O


TDAH pode levar a dificuldades no relacionamento familiar e social e no desempenho
escolar.

Entretanto, é preciso cautela em relação a esse diagnóstico e ao seu tratamento


(geralmente medicamentoso), pois ainda existem muitas lacunas que necessitam de
mais investigações. Algumas questões permanecem sem respostas, tais como: a idade a
partir da qual é possível fazer um diagnóstico seguro, tendo em vista que o psiquismo
infantil se encontra em formação e o diferenciamento do sofrimento neurótico ou ainda
traços de personalidade do transtorno. E o que dizer de crianças que apresentam os
sintomas da TDAH em determinados ambientes e em outros não? Até que ponto as
dificuldades de atenção e/ou a agitação não são tentativas de se ajustar a um mundo cada
vez mais, ele próprio, hiperativo? (haja vista a velocidade e quantidade das informações
a que se tem acesso nos meios de comunicação, na internet etc.)

A infância é, portanto, uma fase de formação do psiquismo e, felizmente, com


tratamentos adequados, é possível obter grandes melhoras e até mesmo reverter alguns
quadros. Assim, não se deve trabalhar com “diagnósticos fechados”, nem aí focalizar a
intervenção, mas, sim, na criança, que é única e singular, inclusive no seu sofrimento
ou adoecimento.

Este site traz uma conferência proferida pelo psicanalista Alfredo Jerusalinsky,
em 2003, na qual ele levanta importantes questionamentos acerca do
diagnóstico do TDAH e o tratamento medicamentoso <http://www.appoa.com.
br/noticia_detalhe.php?noticiaid=35&PHPSESSID=bbea8b84cbb064f37445c2e
5eac26344>.

28
CAPÍTULO 2
Saúde Mental do Adolescente

Xote das meninas


Luís Gonzaga

Mandacaru O pai leva ao dotô


Quando fulora na seca A filha adoentada
É um siná que a chuva chega Não come, nem estuda
No sertão Não dorme, não quer nada

Toda menina que enjôa Ela só quer


Da boneca Só pensa em namorar
É siná de que o amor Ela só quer
Já chegou no coração Só pensa em namorar

Meia comprida Mas o dotô nem examina


Não quer mais sapato baixo
Chamando o pai do lado
Vestido bem cintado
Lhe diz logo em surdina
Não quer mais vestir chitão
Que o mal é da idade

Ela só quer Que prá tal menina


Só pensa em namorar Não tem um só remédio
Ela só quer Em toda medicina
Só pensa em namorar
Ela só quer
De manhã cedo já tá pintada Só pensa em namorar
Só vive suspirando Ela só quer
Sonhando acordada Só pensa em namorar

A canção Xote das Meninas, de Luís Gonzaga, ilustra uma mudança por que passa
a menina numa determinada fase da vida. Os esforços do pai de curar o “mal” que
acomete a filha, ao levá-la ao médico, são em vão, pois o doutor bem sabe do que se
trata e lhe adianta: “o ‘mal’ é da idade” e acrescenta que para ele “não há um só remédio
em toda a medicina.”

Eis que mudanças surgem. O corpo cresce... A voz já não é a mesma. Ora engrossa, ora
afina… Os órgãos sexuais ganham volume e pelos. Não se quer mais saber da boneca...
ou do carrinho. Aquela criança, até então desenvolta com seu corpo, depara-se com
uma nova imagem corporal e novos interesses.

Mas, antes de falar do adolescente, vamos conhecer um pouco sobre como surgiu esse
conceito ou fase.
29
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

A palavra “adolescer” deriva do latim e significa “crescer, desenvolver-se” (DICIONÁRIO


MICHAELIS).

A adolescência nem sempre foi reconhecida como uma etapa do desenvolvimento. Isso
se deu relativamente há pouco tempo, a partir do século XIX, com o surgimento das
famílias nucleares modernas.

Hoje, na nossa sociedade, a adolescência é vista como uma fase específica, ainda que haja
divergências quanto à sua delimitação. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS),
a adolescência é um período que vai de 10 a 19 anos. O nosso Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) estabelece o período de 12 a 18 anos.

De qualquer forma, esta é uma fase de grandes transformações. Em poucos anos, um


adolescente pode chegar a engordar 30 kg e crescer 50 cm. E não se trata de um mero
aumento do corpo infantil. Este adquire novas formas, novas características e atributos,
às quais é preciso ajustar-se.

Adolescência, Corpo e Sexualidade


Segundo Rassial (1999), o adolescente precisa lidar com uma nova imagem corporal,
que é afetada em quatro modos complementares.

»» Pela modificação dos atributos: pelos, silhueta, seios, tamanho etc.

»» Pela modificação em seus funcionamentos: menstruação, mudança de


voz, marcha, ereção etc.

»» Pela semelhança com o corpo adulto, do genitor do mesmo sexo.

»» Pela importância para o olhar do adolescente e do adulto do outro sexo.

Há também o enfraquecimento das referências identificatórias. Se até então, o pai


e a mãe eram as principais figuras das quais a criança retirava suas referências, na
adolescência, esses ideais caem ou se enfraquecem. O jovem começa a perceber que o
pai do vizinho é mais rico que o seu, que a mãe da amiga é mais bonita que a sua etc. Ou
seja, as falhas dos pais, como seres humanos que são, saltam aos olhos antes cegos para
elas. O adolescente parte em busca de outras referências. A adoração e a idealização dos
ídolos surgem.

A sexualidade é constitutiva do desenvolvimento psíquico do ser humano. Na


adolescência, há uma espécie de uma “segunda grande onda” da energia sexual que, no
período anterior, de latência, estava deslocada para outras atividades (a aprendizagem,

30
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

o brincar, o desejo de saber). Com isso, o adolescente vai deparar-se com questões
que se encontravam em suspenso e/ou que não puderam ser enfrentadas (até pela
imaturidade do aparelho psíquico infantil).

O Adolescente e a Loucura
Por ser uma fase que coloca para o jovem uma série de desafios (físicos e psíquicos) aos
quais ele tem que responder sem o até então habitual apoio dos pais, a adolescência é
um período propício para a eclosão de psicopatologias nos sujeitos que possuem alguma
fragilidade psíquica. O sujeito é convocado a realizar escolhas e posicionar-se diante das
várias exigências colocadas pela vida, principalmente no campo do amor e do trabalho.
Isso coloca para o adolescente, de forma veemente, a questão do desamparo, de que
todo ser humano padece, mas que, nesta fase, surge em tons mais intensos. Os jovens
conseguirão atravessar esse período de forma mais ou menos turbulenta, a depender de
uma multiciplicidade de fatores como suas vivências infantis, características pessoais,
circunstâncias sociais, ambientais e culturais. Quando há uma fragilidade herdada da
infância, as exigências da vida podem ser maiores que a capacidade do aparelho psíquico
de enfrentá-las e o jovem sucumbe e adoece, seja por meio de um surto psicótico ou
do surgimento de sintomas neuróticos graves. A psicose configura-se num quadro
onde há uma desorganização psíquica, com possibilidade de quebra com a realidade,
desenvolvimento de pensamentos delirantes (paranoia) e deterioração das capacidades
cognitivas (esquizofrenia).

O texto a seguir, de autoria de Fernando Cembranelli, psiquiatra e psicanalista,


coordenador médico do hospital-dia A Casa, em São Paulo (Revista O olhar
adolescente, 2006), expõe algumas questões relevantes a respeito do
tratamento da psicose.

Breves notas sobre a psicose


Proposta de tratamento: Animados pela descoberta de novas drogas e pelo
discurso das neurociências, muitos querem fazer crer que há uma chave biológica
para explicar todos os males da alma humana. Porém, a história dos tratamentos
mostra algo bem diferente. Quando a explicação orgânica prevalece, o objetivo
do tratamento passa a ser o de suprimir sintomas e de devolver o indivíduo a
um estado de adaptação e normalidade aparente por meio de fármacos. As
narrativas sobre a própria vida e o próprio sofrimento perdem então qualquer
valor; aos poucos, o paciente acaba renunciando a falar de si, caindo num vazio
de sentido que é o primeiro passo para a cronificação de seu estado.

31
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Mas o medicamento é muito útil em certas situações. Por exemplo, quando se


trata de restaurar o acesso à palavra, nos casos em que a psicose parece impor um
estado de silência, de opacidade e paralisia ante o contato humano. Ele, então,
faz ressurgir a palavra e a torna disponível para esta tarefa de “reconstrução” e a
que o psicótico se dedica.

Um modelo possivelmente eficaz de tratamento é o que se constrói caso a


caso, quando necessário, aliando os benefícios dos fármacos à psicanálise ou
psicoterapia. Modelo que, na prática, não é simples, mas parte do reconhecimento
de que a vida psíquica está sob influência de um duplo determinismo, natural e
cultural, que não a impede de emergir como criação singular.

Depressão na Adolescência
A depressão é um estado patológico em que há perda de vitalidade, falta de estratégias
de busca de prazer, desânimo exagerado a ponto de abandonar atividades que antes
proporcionavam grande prazer. Aqui é necessário estar atento a duas questões: não
confundir depressão com tristeza, que é um sentimento temporário e natural do ser
humano, ou com o desinteresse dos jovens por atividades antes prazerosas, já que o
adolescente tende mesmo a abandonar interesses da infância.

Acesse os endereços eletrônicos para mais informações.

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-166X2006000100003&script=sci_
arttext&tlng=pt>

<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/307/30701007.pdf>

Transtornos Alimentares
A anorexia e a bulimia são doenças que acometem principalmente jovens do sexo
feminino. A anorexia (do grego an, ausência e órexis, apetite) caracteriza-se por uma
perda de peso excessiva devido à recusa em se alimentar. Há distorção na imagem
corporal, com a busca incessante pela magreza, podendo causar sérias complicações
orgânicas, como alterações ou até mesmo interrupção do ciclo menstrual. Mesmo
estando extremamente magras, as jovens se veem gordas e persistem em dietas muito
restritivas. A bulimia (do grego bou, grande quantidade e limos, fome) é caracterizado
por episódios de ingestão exagerada de alimentos, seguidos de atos que visam
eliminar o risco de engordar, como a indução de vômito, o uso de laxantes, jejum e a
prática excessiva de exercícios físicos. Em geral, na bulimia, a imagem corporal não

32
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

se encontra tão distorcida como na anorexia e as meninas não atingem uma magreza
tão extrema.

É certo que uma baixa autoestima, insatisfação com a imagem corporal e os padrões
modernos de beleza que cultuam a magreza contribuem para o desenvolvimento e o
aumento dos transtornos alimentares nas adolescentes. Entretanto, pesquisas têm
demonstrado que a anorexia e a bulimia estão relacionadas à forma como a jovem
vivencia as alterações em seu corpo que adquire formas femininas, aproximando-o
ao de sua mãe. As investigações psicanalíticas têm mostrado que a origem desses
transtornos remonta a relação precoce mãe e filha (primeira infância) e os processos de
identificação (da filha com a mãe), apontando uma dificuldade de separação psíquica
nos primórdios da vida. Assim, a magreza excessiva (e também a obesidade) se configura
numa tentativa de apagamento da feminilidade, da eliminação de qualquer traço que
represente uma indiferenciação com a mãe.

FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa


do Psicólogo, 2006.

Trecho da dissertação de mestrado de Goulart, M. T. A. Anorexia Nervosa: uma


leitura psicanalítica. Rio de Janeiro: PUC, 2003.

<http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115556_03_cap_03.pdf>

Vale ressaltar que situações reais adversas, como violência na família, alcoolismo,
doenças crônicas, podem agravar o adoecimento do jovem, mas não são os únicos
fatores determinantes. O adoecimento mental decorre não só de fatores graves, mas
também de elementos sutis, os mais diversos a que talvez jamais se tenha acesso. Assim,
o sofrimento de um adolescente que aparentemente “tem tudo” não pode ser, de forma
alguma, desvalorizado e taxado como “frescura”.

Por outro lado, muitas das manifestações dessa fase da vida podem ser confundidas com
sintomas patológicos, tendo em vista que, tal como na psicose, por exemplo, a realidade é
modificada: o corpo muda tanto de imagem quanto de estatuto (RASSIAL, 1999).

Por tudo isso, a melhor conduta de um profissional é ter uma postura cautelosa na
hora de diagnosticar, abordar e tratar o adolescente, considerando a singularidade e
especificade de cada jovem, cada história, cada família.

Gravidez e Adolescência
O texto, a seguir, de Diana Dadoorian, doutora em Psicologia Clínica, levanta uma
interessante questão a respeito da gravidez na adolescência. Mostra que a gestação
33
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

nesta fase da vida não ocorre necessariamente por falta de informação, e que um desejo
inconsciente de ter um filho pode estar em jogo, como forma de se afirmar socialmente
como mulher.

Desejo de Ser Mãe


A maternidade precoce faz parte de histórias familiares recorrentes e relaciona-se
à afirmação subjetiva e social da feminilidade.

A maioria das abordagens sobre gravidez aponta a desinformação sexual das


jovens como principal causa das preocupantes estatísticas relacionadas ao tema.
Mas será que essa explicação ainda se sustenta? Mesmo com as limitações e as
dificuldades que o nascimento de um filho possa infligir à vida de uma jovem, é
bastante comum ouvir a adolescente dizer que está contente por estar grávida
e que quer ter o filho.

A contextualização histórica mostra a influência da cultura na percepção desta


questão. A sociedade do século XIX, por exemplo, relacionava puberdade a
casamento; naquela época, a mulher só era valorizada pela possibilidade de
tornar-se mãe. Com o tempo, o papel social feminino ampliou-se e os estudos
e profissionalização passaram a adiar o casamento e a maternidade. Por que,
então, as adolescentes continuam engravidando?

Este foi o foco da pesquisa que realizei, em 1993, com adolescentes grávidas de
classes populares no Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro. Nesse estudo,
publicado no livro Pronta para voar (Rocco, 2002), privilegiei o discurso das
jovens sobre seu estado e as conclusões foram surpreendentes: a gravidez é
desejada por elas. Na investigação do significado da gestação, destacam-se entre
os principais fatores os biológicos e os não biológicos, nos quais se inserem os
aspectos culturais e psicológicos.

Com as transformações orgânicas da puberdade, surge o interesse pelo sexo


genital e o impulso de testar a fertilidade, assim como o risco da gravidez que
denomino “hormonal”. Quando isso ocorre, dois desfechos colocam-se para a
jovem: o desejo de não ter o filho, expresso no aborto, e o de tê-lo, situado na
maternidade. O destino da gestação está relacionado, de forma intrínseca, aos
aspectos psicossociais de cada família.

No Brasil, a gravidez na adolescência não parece ser considerada um problema


tão grande para as garotas de classes populares, como o é, em geral, para a
classe média. No caso das primeiras, o desejo de ter o filho é predominante.

34
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

A repetição da maternidade na adolescência é uma constante na história das


famílias das entrevistadas. Para muitas jovens, ser mulher ainda equivale a ser
mãe. Surge, assim, o trinômio adolescente-mãe-mulher, em que a gravidez é via
de acesso à feminilidade. O tornar-se mãe passa a ser uma forma de afirmação
social e psicológica, uma espécie de maternidade social.

Durante a investigação, as jovens mães relataram que o filho representa “tudo”


para elas. A criança é, portanto, depositária de muitas expectativas: terá o que elas,
em sua maioria, não tiveram, como estudo completo, perspectiva de trabalho e
até mesmo uma família. A relação mais intensa, contudo é a estabelecida entre as
adolescentes e a própria mãe. As garotas repetem o modelo feminino, segundo
o qual ser mulher está associado a ser mãe jovem.

Quanto às adolescentes de classe média, observa-se, em geral, maior resistência


ao desejo de ter um filho nesta fase da vida. A pressão social familiar expressa-se
de forma mais enfática do que nas de classes populares, sob os argumentos do
estudo, do ingresso em uma universidade, da garantia de um bom emprego futuro
etc. Isso lhes possibilita viver de modo mais prolongado sua adolescência, ao
contrário das de classes mais baixas em que a maternidade interfere nesse ciclo.
Logo, surgem para elas outros objetos de desejo capazes de suprir a carência
afetiva, e o desejo de ter um filho pode ser adiado para a vida adulta.

Com esta análise, é possível dizer que as causas da gravidez na adolescência


não se referem de maneira exclusiva à desinformação sexual, mas ao desejo
inconsciente de ter um filho, aliado aos valores, às demandas e às fantasias
socioculturais. Ele está inscrito no projeto de vida de cada mulher, com variadas
formas de expressão, sendo o produto da elaboração individual dos modelos
e representações próprias de sua cultura. Bertrand Cramer, no livro Segredos
femininos de mãe para filha (Artes Médicas, 1996), descreve a transmissão
subjetiva da feminilidade de modo universal. As mães transmitem para as filhas,
desde o berço, um complexo sistema de valores e sua forma de ser mulher.

Fonte: Revista O olhar adolescente, 2006.

O Adolescente e as Drogas
A dependência química tem sido tratada como uma questão de saúde mental. Por estar
num período de transição identitária – nem criança, nem adulto –, o adolescente parte
em busca de novos lugares subjetivos e sociais, fora da família. E o álcool e a droga
podem configurar-se como uma tentativa de encontrar um lugar, ainda que temporário
e ilusório.
35
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Segundo dados da OMS, cerca de 1,7 milhões de adolescentes morrem anualmente no


mundo, principalmente por causas evitáveis, como, por exemplo, acidentes, suicídio,
complicações decorrente de gravidez, violência, uso de droga e álcool. O consumo
do álcool é particularmente preocupante por se tratar de uma substância lícita que,
muitas vezes, representa um “ritual de passagem” para a vida adulta. Na maioria dos
casos, o uso do álcool/droga dá-se por curiosidade, experimentação, entretanto, muitos
jovens acabam desenvolvendo um padrão de consumo abusivo, que pode chegar a uma
dependência.

Às vezes, é difícil distinguir o uso recreativo do abusivo. Em geral, considera-se uso


abusivo quando há algum tipo de prejuízo à saúde física e mental do sujeito, às relações
sociais, às atividades e obrigações do cotidiano. Já a dependência caracteriza-se pela
falta de controle em relação ao uso da substância, ou seja, há o consumo compulsivo
mesmo quando os efeitos nocivos são importantes, com o abandono de atividades e
interesses antes valorizados em prol do uso da droga.

O uso crônico de substâncias psicoativas pode causar tolerância: necessidade de


consumo de doses cadas vez maiores, para obter o efeito desejado, e síndrome de
abstinência: surgimento de sintomas físicos e psíquicos quando o uso da droga é
reduzido ou interrompido.

Não é possível falar de um padrão de evolução do uso que, supostamente, começaria


de um consumo recreativo, passando pelo uso abusivo até chegar à dependência. Cada
pessoa estabelece uma relação particular com o álcool/droga, que vai ser influenciada
por uma série de fatores, como história e características pessoais, aspectos sociais e
propriedades farmacológicas da substância.

O tratamento que tem se mostrado mais eficiente é o ambulatorial realizado por equipe
multidisciplinar em centros especializados, com a adesão do paciente. No caso específico
do adolescente, é fundamental um trabalho de apoio e suporte com as famílias, que
muitas vezes, também precisam de tratamento. A internação só é indicada nos casos de
desintoxicação, risco de suicídio, agressividade ou, ainda, para preservar a vida/saúde
quando a pessoa se encontra muito debilitada.

Sobre concepções e práticas atuais em torno da questão do adolescente e


dependência química:

<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC000000008200500020
0066&script=sci_arttext>

Sobre o adolescência e violência – a importância da canalização da violência


e o papel dos adultos.

36
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

<http://www.scielo.br/pdf/agora/v9n1/a09v9n1.pdf>

LEVINSKY, D. L. (org.) Adolescência: pelos caminhos da violência. São Paulo:


Casa do Psicólogo, 1998.

Sugestão de filmes:

»» Diário de um adolescente (Direção: Scott Kalvert, 1995, EUA) – aborda


a história de um jovem que abandona o basquete, mergulha no
mundo da droga e, para manter seu vício, comete delitos e se prostitui.

»» O bicho de sete cabeças (Direção: Laís Bodansky, 2000, Brasil) –


inspirado numa história real dos anos 1970, mostra a vida de um
adolescente e sua conturbada relação com os pais. O jovem é internado
em um manicômio por conta do uso de maconha e lá testemunha
atrocidades cometidas contra os pacientes, como o uso abusivo de
medicamentos, violência e maus-tratos.

»» Traffic (Direção: Steven Soderbergh, 2000, EUA) – retrata a indústria


do tráfico de drogas, da produção ao consumidor final, a partir de três
histórias interligadas.

37
CAPÍTULO 3
Saúde Mental na Terceira Idade

Epitáfio
(Sérgio Brito)
Devia ter amado mais Devia ter complicado menos
Ter chorado mais Trabalhado menos
Ter visto o sol nascer Ter visto o sol se pôr
Devia ter arriscado mais Devia ter me importado menos
E até errado mais Com problemas pequenos
Ter feito o que eu queria fazer... Ter morrido de amor...

Queria ter aceitado Queria ter aceitado


As pessoas como elas são A vida como ela é
Cada um sabe a alegria A cada um cabe alegrias
E a dor que traz no coração... E a tristeza que vier...

O acaso vai me proteger O acaso vai me proteger


Enquanto eu andar distraído Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar... Enquanto eu andar...

A canção anteriormente retrata as reflexões de uma pessoa que, ao fazer um balanço


de sua vida, chega à conclusão de que poderia ter vivido mais intensamente. O tempo
verbal que predomina é o pretérito imperfeito (do latim im+per+feito: não feito): “devia
ter, queria ter”, no sentido do expressar uma situação hipotética irreal, não realizada.
E quando há um verbo no futuro, este se relaciona ao acaso: “o acaso vai me proteger”.

A terceira idade, ou velhice, é uma fase da vida geralmente associada com iminência da
morte, improdutividade, adoecimento, falta de sexualidade. Entretanto, com os avanços
na medicina, a informação e a conscientização da importância de se ter bons hábitos
(alimentação, atividade física, combate ao stress), as pessoas estão vivendo cada vez
mais e com mais qualidade de vida.

Felizmente a terceira idade não é necessariamente um tempo de epitáfio, de se lamentar


pelas coisas não realizadas, de pretéritos imperfeitos ou de um futuro incerto. Cada
vez mais, temos visto exemplos de pessoas idosas que usufruem de uma satisfatória
qualidade de vida.

Como em qualquer período da vida, o envelhecimento implica perdas e ganhos. Perde-se


o vigor corporal, ganha-se em experiência de vida e maturidade. Perde-se a potência
38
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

sexual, ganha-se na seletividade dos relacionamentos afetivos e sociais, na ternura.


Perde-se a produtividade laboral, ganha-se tempo para a dedicação a outros interesses:
família (netos), autocuidado, voluntariado, hobbies etc.

Não é fácil delimitar a terceira idade. Quando começa a velhice? O que a define? Segundo
Secco (1999), apesar de haver algumas mudanças biológicas evidentes, o conceito de
envelhecimento também é marcado por determinantes culturais, que variam entre
diferentes indivíduos, culturas e períodos históricos.

A OMS instituiu a idade de 1960 anos para designar o início do envelhecimento,


ressaltando que
… é importante reconhecer que a idade cronológica não é um marcador
preciso para as mudanças que acompanham o envelhimento. Existem
variações significativas relacionadas ao estado de saúde, participação e
níveis de independência entre pessoas mais velhas que possuem a mesma
idade. Fazer vigorar políticas sociais abrangentes baseadas somente na
idade cronológica pode ser discriminatório e contraproducente para o
bem-estar da terceira idade. (OMS, 2005, p. 6).

O aumento da população de idosos é um fenômeno que vem ocorrendo principalmente


nos países desenvolvidos e também no Brasil. Segundo a OMS, entre 1980 e 2000, a
população de pessoas com 60 ou mais anos cresceu em 7,3 milhões, acompanhado pelo
aumento da expectativa de vida que é atualmente de 72 anos, segundo dados do IBGE.
Para 2025, a previsão é que o Brasil ocupe o sexto lugar dentre os países do mundo em
número de idosos e que, pela primeira vez na história, haja mais idosos do que crianças
no planeta. Dessa forma, é fundamental que as autoridades e os serviços de saúde se
preparem para oferecer um atendimento de qualidade e que atenda às necessidade
dessa faixa da população, pois não basta viver muito, é preciso viver bem.

Estudos (NOVAES, 1995) postulam que a velhice não acrescenta aspectos à personalidade
da pessoa, apenas favorece e reforça os mecanismos defensivos já existentes. Assim,
a forma como uma pessoa lida com as limitações advindas com a idade (doenças,
aposentadoria, redução ou perda do vigor físico e sexual, morte de amigos e familiares)
vai depender das características pessoais (orgânicas, psíquicas, sociais). É claro que
uma pessoa com idade avançada tende a passar por mais situações adversas. Ainda
assim, isso não leva necessariamente a um quadro patológico. Desse modo, talvez seja
melhor falar de envelhecimentos, ou terceiras idades, tendo em vista que cada sujeito
envelhecerá a seu modo.

De acordo com Novaes, o que diferencia os idosos é a capacidade de manter uma vida em
relação, ou seja, continuar estabelecendo laços sociais e afetivos: “O investimento fora
39
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

do EU seria a condição de manutenção de continuidade subjetiva, envolvendo atividades


afetivas e cognitivas que levam à procura de interesses, motivações e de razões para
viver.” Quando a manutenção dos laços encontra-se prejudicada, há o enrijecimento
psíquico, com o fortalecimento de mecanismos defensivos primitivos, que pode levar à
dependência afetiva, o recolhimento narcísico (isolamento), a idealização da infância e
do passado, sentimentos de frustração, depressão, dentre outros.

Os principais quadros de adoecimento mental que atingem os idosos são a depressão e


a demência. Em geral, as demais patologias (psicose e transtornos) costumam aparecer
na adolescência ou idade adulta, sendo pouco comuns nessa fase. O que geralmente
pode ocorrer é uma piora num quadro já existente, quando não tratado adequadamente,
ou pelo surgimento de dificuldades que surgem ou sou intensificadas na terceira idade
(problemas de saúde, aposentadoria, morte de entes queridos etc.).

O mesmo ocorre em relação à dependência química. Pode haver aumento no uso de


álcool (ou do fumo) mas dificilmente (o que não quer dizer que seja impossível), uma
pessoa que não tinha o costume de ingerir bebidas alcoólicas (ou fumar) iniciará um
uso compulsivo nesta fase. De qualquer forma, os indivíduos que fazem uso abusivo
ou que são dependentes de álcool, drogas ou fumo, costumam ter que lidar com os
comprometimentos à saúde que essas substâncias produzem. Vale lembrar ainda que o
alcoolismo, o tabagismo e a drogadicção contribuem para a redução da expectativa de
vida do indivíduo. Assim muitos não atingem a terceira idade.

Com o surgimento de doenças físicas ou psíquicas, muitos idosos passam a tomar


medicamentos de forma abusiva, o que pode desencadear uma dependência química
nesta fase da vida.

Envelhecimento e Depressão
Muitas vezes, um quadro de depressão na terceira idade pode ser confundido com
preconceitos ou manifestações tidas como próprias desse período, como, por exemplo:
sintomas somáticos, hipocondria, desinteresse, desânimo, alterações no sono, na
alimentação, dentre outros. Assim, apenas uma equipe especializada, a partir de
uma investigação cuidadosa e dirigida, terá condições de melhor avaliar o quadro
daquele paciente.

Envelhecimento e Demência
A demência caracteriza-se por um quadro de perda cognitiva, em geral, gradual e
irreversível, cujos sintomas mais comuns são alterações em funções como memória,
40
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

linguagem e orientação tempo-espacial, confusão mental, além de comportamentos


inadequados (agressividade, inquietação, impulsividade, desinibição sexual, dentre
outros). Os casos mais graves podem levar a problemas na fala, na marcha, nas funções
motoras, o que pode levar a uma falta de autonomia e a necessidade de cuidados 24 horas
por dia. As pessoas idosas têm mais chances de desenvolver um quadro demencial, que
pode estar relacionado com patologias neurológicas como doenças de Alzheimer, de
Parkinson e esclerose múltipla.

Política de Saúde para a Terceira Idade da OMS:

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_ativo.pdf>

Site da Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio


de Janeiro (UERJ):

<http://www.unati.uerj.br>

Artigo que aborda o trabalho com encontros transgeracionais como forma de


incrementar a integração social do idoso:

<http://www.unati.uerj.br/tse/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
59282002000200002&lng=pt&nrm=iso>

Política de Saúde do Idoso (Portaria 1395/GM)

<http://www.ufrgs.br/3idade/portaria1395gm.html>

Livro que fala do impacto na família que cuida de um idoso em processo de


demência – Caldas, C. P. (2002). O idoso em processo demencial: o impacto
na família. Em Minayo, M. C. S. & Coimbra Jr., C. (org.) Antropologia, saúde e
envelhecimento, pp. 51-71. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

41
Para (não) finalizar

Vimos que a saúde mental é um campo muito complexo. Em vista disso, não é possível
atuar nessa área com instrumentos estanques e acreditando em fórmulas milagrosas.
Ao contrário, a atuação em saúde mental é uma eterna construção, reatualizada a cada
paciente, a cada família, tendo em vista que cada ser humano é único e singular.

Aprendemos, também, que uma visão, uma disciplina não dá conta desse vasto
campo. Desse modo, é cada vez mais evidente a importância da atuação de equipes
interdisciplinares, cujos membros não só acrescentem suas visões, mas efetuem trocas
de conhecimento, promovendo verdadeiros diálogos.

A disciplina não pretendeu, de forma alguma, esgotar o assunto, mas teve o objetivo
de apresentar um panorama introdutório, com alguns aprofundamentos, no intuito de
fornecer algumas noções essenciais e, ao mesmo tempo, instigar ao aprofundamento
das questões abordadas e incentivar futuras pesquisas, pois o limite do aprendizado é
você, aluno, quem traça.

Agradeço pela participação e o empenho de todos.

42
Referências
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FILHO, L.; CORRÊA, M. E. G.; FRANÇA, P. S. (Orgs.). Novos olhares sobre a
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