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Coleção

Memória Atlântica

Tratado sobre Medicina


que fez o Doutor Zacuto para seu filho levar
consigo quando se foi para o Brasil

Ana Carolina de Carvalho Viotti


Gabriel Ferreira Gurian
TRATADO SOBRE MEDICINA
QUE FEZ O DOUTOR ZACUTO PARA SEU
FILHO LEVAR CONSIGO QUANDO SE FOI
PARA O BRASIL
Realização
Escritos sobre os novos mundos

Apoio institucional
Academia Portuguesa da História
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Universidade Estadual Paulista, Franca
Susani Silveira Lemos França
Universidade Estadual Paulista, Franca
MEMÓRIA ATLÂNTICA

TRATADO SOBRE MEDICINA


QUE FEZ O DOUTOR ZACUTO PARA SEU
FILHO LEVAR CONSIGO QUANDO SE FOI
PARA O BRASIL

Edição, estudos e notas de Ana Carolina de


Carvalho Viotti e Gabriel Ferreira Gurian
© 2018 Ana Carolina de Carvalho Viotti e Gabriel Ferreira Gurian

Cultura Acadêmica
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Viotti, Ana Carolina de Carvalho.


Tratado sobre medicina que fez o Doutor Zacuto para seu filho
levar consigo quando se foi para o Brasil/ Ana Carolina de Carvalho
Viotti e Gabriel Ferreira Gurian (Edição, estudo e notas). – São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2018. (Coleção Memória Atlântica, I).

205 p.
ISBN: 978-85-7249-001-6

1. História. 2. Brasil - História. 3. Medicina – História.


I. Título.
CDD – 981

Imagem da Capa: Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida


Projeto Gráfico: SaHis – Serviços Avançados em História
MEMÓRIA ATLÂNTICA

A
coleção Memória Atlântica, uma iniciativa do Grupo
de Pesquisa Escritos sobre os Novos Mundos (FAPESP),
em parceria com a FEU (Fundação Editora da Unesp)
e com a Academia Portuguesa da História, tem como propósito
oferecer gratuitamente ao público, especializado ou não, acesso
a edições digitais de documentos e obras raras da cultura luso-
brasileira. É um pequeno contributo ao sempre polêmico mas
necessário processo de construção da memória e da identidade
nacionais, deste e do outro lado do Atlântico. As edições, que
abarcam documentos inéditos, obras nunca antes publicadas em
português e obras cujas impressões estão hoje inacessíveis, são
precedidas por uma introdução histórica, composta por um ou
mais especialistas, e seguida da versão integral do escrito, anota-
da e com ortografia e pontuação modernizadas.
SUMÁRIO

Percursos de um médico e de um livro ................................ 9


Ana Carolina de Carvalho Viotti e Gabriel Ferreira Gurian

Tratado sobre medicina que fez o Doutor Zacuto para seu


filho levar consigo quando se foi para o Brasil ....................... 39
As doenças que os filhos de Zacuto encontrariam ............ 129
Ana Carolina de Carvalho Viotti

Zacuto e os ingredientes de além mar .............................. 157


Gabriel Ferreira Gurian

Glossário de ingredientes, doenças,


procedimentos e termos médicos ..................................... 179
Abreviaturas e referências................................................. 199
Parâmetros portugueses de pesos e medidas ..................... 203
Sobre os autores............................................................... 205
PERCURSOS DE UM MÉDICO E DE UM LIVRO

Ana Carolina de Carvalho Viotti


Gabriel Ferreira Gurian

“Àquele nome ilustríssimo, e um dos maiores, senão o


maior da medicina antiga portuguesa, já não há exalçar lou-
vores que lhe não tenham sido contados. Nós apontamo-lo
como uma glória nacional, os estranhos aclamam-no luz da
medicina e honra venerada dos médicos”:1 é nesses elogiosos
termos que o nome de Zacuto Lusitano aparece no volume
décimo quinto d’O Instituto, jornal científico e literário dado
à prensa pela Universidade de Coimbra, em 1872. Pouco
antes, em 1867, mas na distante Nova Goa, no Archivo de
pharmacia e sciencias accessorias da India Portugueza, o médi-
co é referendado com a distinção de “magnífico intérprete da
medicina clássica”.2 Tais passagens, cotejadas entre as diver-
sas menções ao doutor Lusitano já bastante tempo depois de

1
O INSTITUTO. Jornal scientifico e litterario. Volume décimo quinto.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1872, p. 203.
2
ARCHIVO de pharmacia e sciencias accessorias da India Portugueza.
Publicado e redigido por Antonio G. Roberto. Nova Goa: Imprensa
Nacional, 1867, p. 14.

9
TRATADO SOBRE MEDICINA

sua morte, não são menos elogiosas que as registradas por


seus coetâneos – ou os que viveram num período mais
próximo àquele em que exercia a medicina e que, em grande
medida, partilhavam de suas práticas e dos saberes por ele
divulgados.
Para nos determos em apenas um exemplo entre os dou-
tos que se valeram diretamente das prescrições de Zacuto no
além-mar, distante, pois, de sua terra natal, na feitura de seus
próprios manuais de medicina, observemos rapidamente as
indicações de João Ferreira da Rosa sobre ele. Autor do Trat-
tado unico da constituiçam pestilencial de Pernambuco (1684),
Rosa foi um dos primeiros doutores a escrever, em vernáculo,3
sobre as doenças e os doentes do Brasil. É significativo, por-
tanto, haver, nessa obra dedicada à descrição, identificação e
combate ao “flagelo de mortífera pestilência”, uma “epidemia
dos males, corrupção dos ares”, ou simplesmente “bicha” –
porque apresentava todos “os sintomas da mordedura da cobra
ou venenosa bicha” –, as ponderações e recomendações de
Zacuto Lusitano em pelo menos oito momentos. Seus ensi-
namentos são tomados como autoridade para reafirmar o uso
da sangria, “principalmente nos primeiros dias da febre”,4 da

3
DUARTE, Eustáquio. Tratado único da constituição pestilencial de
Pernambuco. In: MORÃO, ROSA e PIMENTA. Notícia dos três primeiros
livros em vernáculo sobre a medicina no Brasil. Estudo crítico de Gilberto
Osório de Andrade. Introduções históricas, interpretações e notas de
Eustáquio Duarte, prefácio de Gilberto Freyre. Pernambuco: Arquivo
Público Estadual, 1956.
4
ROSA, João Ferreira da. Trattado unico da constituiçam pestilencial de
Pernambuco: offerecido a ElRey N.S. por ser servido ordenar por seu
Governador aos Medicos da America, que assistem aonde ha este conta-

10
MEMÓRIA ATLÂNTICA

pedra bazar,5 aparecem na íntegra na fórmula do “Epithe-


ma6excelente de Zacuto”7e na indicação de uma bebida feita de
caldos de capão, galinha, água de flor, gema de ovos8 e um
unguento de água de flor de laranjeira, sândalos, diamagaritão,
jacintos, entre outros,9 todos com as medidas dispostas com
precisão, para eventuais desmaios na ocorrência da febre.
Mas quem era, afinal, esse célebre Zacuto Lusitano, des-
tacado como médico ilustre, glória nacional e autoridade entre
seus pares?

Um médico português

Manuel Álvares de Távora10 parece ter sido o nome


comumente usado em público pelo doutor Abraão – às vezes

gio, que o compusessem para se conferirem pelos coripheos da Medicina


aos dictames com que he trattada esta pestilencial febre / composto por
Joam Ferreyra da Rosa Medico formado pela Universidade de Coimbra,
& dos de estipendio Real na ditta Universidade, assistente no Recife de
Pernambuco por mandado de Sua Majestade que Deos guarde, Lisboa:
na Officina de Miguel Manescal, impressor do Príncipe Nosso Senhor,
1694, p. 66.
5
ROSA, João Ferreira da. Trattado único, p. 102.
6
Segundo Raphael Bluteau, um tipo de “remédio, cordial”, “remédio
confortativo que se põe sobre a parte”. EPITHEMA. In: BLUTEAU,
Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. Coimbra: Collegio das Artes
da Companhia de Jesu, 1712 ‑1728. v. 8, p. 180-181.
7
ROSA, João Ferreira da. Trattado único, p. 215.
8
ROSA, João Ferreira da. Trattado único, p. 188.
9
ROSA, João Ferreira da. Trattado único, p. 189.
10
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano: a sua vida e a sua obra. Porto:
Eduardo Tavares Martins, editor, 1909, pp. 95-96.

11
TRATADO SOBRE MEDICINA

grafado como Abraham – Zacuto, também conhecido como


Zacutus Luzitanus, no período em que residiu e clinicou em
Portugal. O médico nasceu em Lisboa, em 1575, no seio de
uma família de judeus, mas, tendo sido batizado, portava-se e
apresentava-se como cristão-novo. Outros membros de sua
família, aliás, já haviam galgado fama algumas gerações antes
de seu nascimento, notadamente seu bisavô – ou trisavô,11 há
alguma discussão entre seus biógrafos sobre a genealogia mais
precisa –, responsável pela escritura de obras de referência
para o manejo dos caminhos do mar.
Trata-se de Abrahão Ben Samuel Zacuto, ou simples-
mente Abraão Zacuto, natural de Salamanca, nascido na
década de 1450. Entre tantos predicados, acumulou os de
rabino, astrônomo, matemático, catedrático na Universidade
de sua cidade natal, historiógrafo da corte Portuguesa, além
de algumas incursões pelas artes médicas.12 Embora tenha
obtido grande reconhecimento em Portugal,13 para onde
imigraria após o decreto promulgado pelos Reis Católicos

11
Maximiano Lemos registra Zacuto Lusitano como trineto do “célebre
matemático” Abraão Zacuto, ao passo que Benjamin Teensma afirma
serem, respectivamente, bisneto e bisavô. Cf. LEMOS, Maximiano.
Zacuto Lusitano, 1909, p. 30; TEENSMA, Benjamin N. “Os filhos do
Doutor Zacuto. Identificação de Isaac Russon”. In: GALINDO, Marcos
(org.). Viver e morrer no Brasil holandês. Recife: Fundaj; Editora Massan-
gana, 2007, p. 50.
12
Para maiores informações, ver: ALBUQUERQUE, Luís de. Zacuto,
Abraão. In: Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa:
Círculo de Leitores, 1994. v. II.
13
Cf. FAINGOLD, Reuven. Judeus nas cortes reais portuguesas. Sefarad.
Revista de Estudios Hebraicos, Sefardíes y de Oriente Próximo, v. 55. Fasc.1.
Madrid, pp. 77-104, 1995.

12
MEMÓRIA ATLÂNTICA

(1492) e a consequente expulsão dos judeus daquelas terras,


seu nome já figurava, antes, em meio a importantes círculos
letrados castelhanos. Entre suas obras, o Almanach Perpe-
tuum,14 reeditado diversas vezes ao longo dos séculos XV e
XVI, é, sem dúvidas, a mais destacada: ali constam as primei-
ras tábuas quadrienais do Sol, utilizadas na navegação,15 so-
bretudo, mas também para o cálculo dos eclipses – e a pre-
venção dos efeitos corporais oriundos deste fenômeno16 –,
para a agricultura, a meteorologia, a medicina e outros cálcu-
los astrológicos.17 Dessas tábuas, crê-se, foram deduzidas
todas as solares quadrienais até as publicações de Pedro Nu-
nes (1537, 1542, 1567, 1573),18 tamanho o grau de precisão
dos cálculos divulgados. Ainda assim, Abraão Zacuto viu-se
compelido a sair de Portugal, apenas seis anos após estabele-
cer morada naquelas paragens, pelas mesmas razões que o
levaram a sair de Castela.19 Morreu provavelmente em 1522,

14
Cf. ZACUTO, A. Almanach Perpetuum. Introdução de Luís de Albu-
querque. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.
15
CRESPO, Victor. Abraão Zacuto e a Ciência Náutica dos Descobri-
mentos Portugueses. Oceanos, Lisboa, n. 29, jan-mar. 1997, pp. 119-128.
16
ALBARES, Roberto A; CASTILLO, Pablo G; MIGUEL, Cirilo F. La
Ciencia del Cielo. Salamanca: Europa artes gráficas, 1989, p. 58.
17
Embora o livro não trate especificamente da aplicação das tábuas nesta
matéria, a posição dos astros na esfera celeste poderia ser utilizada, de
forma determinante, na previsão de acontecimentos e no comportamento
dos corpos. Cf. ALMEIDA, Simone F. G. Influxos do céu. Uma história
das previsões. São Paulo: Editora Unifesp, 2018.
18
ALBUQUERQUE, Luís. Nunes, Pedro. In: SERRÃO, Joel. Dicioná-
rio de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1981. v. IV, pp. 407-408.
19
Cf. ALCALÁ, Á. (ed.). Judíos. Sefarditas. Conversos. La expulsión de
1492 y sus consecuencias. Madrid: Ámbito Ediciones S. A, 1995.

13
TRATADO SOBRE MEDICINA

em Damasco, não sem antes passar por Tunes e pela Tur-


quia, deixando alguns descendentes que podem tê-lo acom-
panhado à África ou mesmo terem permanecido na Penínsu-
la Ibérica como cristãos-novos.20
Voltemo-nos, no entanto, à trajetória do nosso ilustre
doutor, o bisneto ou trineto do astrônomo castelhano. Desde
cedo, foi entregue à tutela de um professor, com o qual estu-
dou gramática e retórica. Essa instrução preliminar o levou a
Salamanca21 e a Coimbra,22 onde cursou filosofia e medicina,
saber este com o qual se ocuparia até o fim da vida. Contu-
do, não chegou a completar os estudos nessas que, naquele
tempo, figuravam entre as mais destacadas universidades da
Europa. Teve de transferir-se para Siguenza, estudando em
um colégio-universidade, instituição híbrida, de ensino limi-
tado, e que gozava de pouquíssimo prestígio acadêmico à
sombra das grandes universidades de Salamanca e Alcalá,23
provavelmente em decorrência de problemas financeiros en-
frentados por sua família com a morte de seu pai.24 Ali, con-
cluiu sua formação, recebendo a borla doutoral aos 21 anos
de idade, mas não criou raízes. Tão logo finaliza seus estudos,

20
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 28-29.
21
Sobre as instituições de ensino, consultar: OBRADÓ, M. del Pilar
Rábade. Las Universidades en la Edad Media. Madrid: Arco Libros, S. L.,
1996.; RAÍZ, Carlos Mateo Martínez. La Construcción de la ciencia en la
Universidad medieval. Córdoba: Brujas, 2005.
22
Cf. JANOTTI, Aldo. Origens da Universidade: a singularidade do caso
português. São Paulo: Edusp, 1992.
23
Cf. CHARLE, Chistophe; VERGER, Jacques. História das Universida-
des. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Ed. Unesp, 1996.
24
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 52.

14
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ruma aos territórios a oeste da Península e retorna à terra


natal.
Por ter se diplomado em universidade estrangeira, to-
davia, Zacuto Lusitano não possuía direito imediato de exer-
cício clínico em Portugal. Para isso, precisava passar por um
exame de habilitação perante o físico-mor do reino,25 além
de, como era previsto na época, praticar o ofício por dois
anos antes de ser habilitado.26 Há notícias que em 1597 esta-
va em Coimbra levando essas atividades a cabo. Ali, foi pró-
ximo dos padres da Companhia de Jesus e dos lentes da Uni-
versidade.27 Feito o exame, estabeleceu-se em Lisboa, em
1598, onde atuou contra uma grave epidemia que assolou a
Europa na virada do século XVI para o XVII.28 A experiência
seria seu batismo de fogo como médico, pois o douto foi
instrumental na recuperação de diversos indivíduos, alguns
ilustres, inclusive, o que lhe rendeu créditos como clínico,29

25
Para mais informações sobre a legislação relacionada à atuação dos
físicos-mores, ver ABREU, Eduardo de. A Physicatura-Môr e o Cirur-
gião-Môr dos Exercitos no Reino de Portugal e Estados do Brazil. Revista
Trimensal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro,
v. 63, n. 101, pt. I, p. 154-306, 1900.
26
DUTRA, Francis A. The practice of medicine in early modern Portu-
gal, In: KATZ, Israel J. (Ed.) Libraries, history, diplomacy and the perform-
ing arts. Essay in honor of Carleton Sprague Smith. Stuyvesant: Pendrag-
on Press in cooperation with the New York Public Library, 1991, p. 159.
27
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 59-63.
28
Cf. RODRIGUES, Teresa Maria Ferreira. As Crises de Mortalidade em
Lisboa: séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestrado. Universidade Nova
de Lisboa, Lisboa, 1987. pp. 138-146, 153-162, 213.
29
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 94.

15
TRATADO SOBRE MEDICINA

atividade que continuou a exercer em Lisboa por mais de


vinte anos.
Com o recrudescimento da perseguição aos cristãos-
novos na Península Ibérica,30 um Zacuto receoso se viu obri-
gado a abandonar Portugal, por volta de 1625,31 movimento
que o levou a Amsterdã, cidade que serviu de reduto a mui-
tos judeus e cristãos-novos peninsulares, além de ser um cen-
tro médico de notável importância no decorrer do Seiscen-
tos.32 Assim, o doutor, então com cinquenta anos, levou con-
sigo ao exílio a mulher, três filhos e duas filhas, deixando em
Lisboa a mãe viúva e duas irmãs. Lá, circuncisou-se – o que
não parece ter sido regra entre os doutores que se radicaram
em outras paragens depois de deixarem Portugal33 – e adotou

30
Cf. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Portugal,
Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
31
Benjamin N. Teensma aponta para o ano de 1614 como a data em que o
doutor Zacuto deixa Portugal, baseando-se no registro do cronista setecen-
tista David Franco Mendes e nas entradas do Livro de Bet Haim do Kahal
Kados de Bet Yahacob, o Registro do Cemitério da Santa Comunidade da
Casa de Jacob. Cf. TEENSMA, Benjamin N. Os filhos do Doutor Zacuto,
pp. 50-54.
32
Cf. COOK, Harold J. Matters of exchange: commerce, medicine and
science in the Dutch Golden Age. New Have; London: Yale University
Press, 2007, pp. 133-174.
33
Destacamos apenas os casos mais conhecidos de doutores que não se
converteram ao judaísmo após esse movimento: Stephan Rodrigues de
Castro, que jamais professou essa religião, mesmo depois de emigrar para
a Itália, e Henrique (Jacob) de Castro Sarmento, que viveu como católico
em Portugal, emigrou para a Inglaterra, onde professou o judaísmo e,
depois, passou a professar o anglicanismo. Cf. D’ESAGUY, Augusto. A
Page from the Portuguese History of Medicine, Dr. Jacob or Henrique de
Castro Sarmento. Coimbra: Institute de Coimbra, 1946; FRIE-

16
MEMÓRIA ATLÂNTICA

o nome judaico Abraão Zacuto, o mesmo de seu ancestral


célebre, sendo mais tarde conhecido como Zacuto Lusitano,
alcunha acrescentada em referência à pátria da qual se orgu-
lhava, apesar dos impasses enfrentados por ele e por sua fa-
mília.
É razoável supor que o doutor não fosse encontrar uma
conjuntura de vida fácil logo que chegasse à Holanda. Há,
inclusive, queixas do próprio Zacuto em relação à penúria
que enfrentou nos primeiros tempos de residência nos Países
Baixos, na dedicatória do primeiro volume de De medicorum
principum historia libri sex. Mas, ao que tudo indica, logo lhe
apareceu uma boa clientela, formada em larga medida por
conterrâneos expatriados, comunidade que, na Amsterdã de
1623, já somava cerca de 1500 indivíduos, e que provavel-
mente o procurava, de início, graças à reputação que havia
construído como clínico em Portugal.34 Aqueles primeiros
infortúnios não o impediram, contudo, de dar início a uma
intensa atividade de escrita – ainda que, em cerca de 25 anos
trabalhando em sua terra natal, não tenha publicado nada
sobre medicina. Zacuto chega a afirmar ter escrito todos os
dias de sua vida a partir dessa época,35 esforço cujo primeiro
fruto, o volume I de De medicorum principum [...], seria im-
presso já em 1629.

DENWALD, Harry. The Jews and Medicine. Essays. Baltimore: The


Johns Hopkins Press, 1944.
34
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 193-194.
35
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 198; CARVALHO, Francis-
co Moreno de. “Zacuto Lusitano e um tratado de medicina dirigido ao
Brasil”. In: MILGRAM, Avraham. Em nome da fé. Estudos in memoriam
de Elias Lipiner. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 62.

17
TRATADO SOBRE MEDICINA

Beneficiado, pois, pela atmosfera dos Países Baixos –


onde, além do bem-sucedido exercício clínico, tornou-se
comum o interesse na publicação e na leitura de obras médi-
cas, com uma rede de trocas de referências, elogios e críticas
entre doutores –, o médico português travou diálogos e rela-
ções virtuosas com muitos de seus pares, entre eles o célebre
Nicolaes Tulp (1593-1674). Tais contatos, que não se res-
tringiram àquelas fronteiras, serviram para alargar o repertó-
rio de conhecimentos de Zacuto complementando suas pró-
prias experiências clínicas e fundamentando grande parte do
que registrou em suas obras.
Tudo indica que o doutor era versado em diversos idi-
omas. Mais especificamente, lia bem em grego e um pouco
em árabe; escrevia em latim, língua na qual redigiu pratica-
mente todas as suas obras, com exceção do Tratado sobre
medicina [...]; sabia o hebreu, língua da sinagoga, lugar esse
que atuou como um dos centros gravitacionais de sua vida
em Amsterdã; e, entre os idiomas modernos, conhecia o es-
panhol, o flamengo, o alemão, provavelmente o francês e o
inglês, além de dominar o português, sua língua materna.36
Em 1634, com algumas dificuldades na publicação dos
volumes subsequentes de De medicorum principum historia
libri sex, o médico lança a primeira edição de De praxis medi-
ca admiranda libri tres. Passados os entraves editoriais, na
segunda metade da década, o De medicorum principum [...]
voltou à agenda de publicações do doutor, esforço que o
absorveu completamente.37 O segundo volume desta obra

36
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 341.
37
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 219.

18
MEMÓRIA ATLÂNTICA

saiu em 1636, com lançamentos aos pares em 1637, 1638,


1641 e 1642, finalizando-a em dez tomos. Foram, pois, os
anos que demarcaram o auge de sua reputação, com reedi-
ções de alguns de seus volumes e sua disseminação para além
das fronteiras dos Países Baixos. Três anos após registrar sen-
tir-se “com o espírito vivo para suportar trabalhos”,38 no en-
tanto, Zacuto vem a falecer, em 22 de janeiro de 1642, aos
67 anos de idade.

A medicina por escrito

Zacuto Lusitano, como mencionado de passagem,


produziu duas obras principais, fragmentadas em diversos
volumes e publicadas em sua totalidade entre 1629 e 1642, a
saber, De Medicorum Principum Historia Libri Sex e De Pra-
xis Medica Admiranda Libri Tres. Chama atenção a quanti-
dade de trabalhos e a frequência com que os publicava, todos
escritos em latim e dados à prensa após seu estabelecimento
em Amsterdã – sem falar nas contribuições, em formato de
cartas e prefácios, para publicações de colegas e amigos.39
Entre 1636 e 1641, já sexagenário, lançava pelo menos um
livro por ano, de maneira que a reunião póstuma de seus
textos, sob o título de Opera Omnia e dividida em dois to-
mos, soma, in-fólio, cerca de duas mil páginas. A organização

38
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 253.
39
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 262.

19
TRATADO SOBRE MEDICINA

da coletânea se dá, grosso modo, com base nessas duas prin-


cipais obras do autor.
Os vários volumes de De Medicorum Principum Histo-
ria [...], reunidos no primeiro tomo da Opera Omnia, consis-
tem em uma coleção de observações e casos médicos, reto-
mando autores clássicos, como Hipócrates, Celso e Galeno,
ordenados a partir das
regiões do corpo e suas
afecções: dores de cabe-
ça; doenças das partes
vitais e naturais; doen-
ças das genitálias e dos
membros inferiores;
febres; venenos, doenças
tóxicas e seus antídotos;
e, por fim, “doenças
diversas”. Os aponta-
mentos são complemen-
tados pelas próprias
experiências e observa-
ções de Zacuto e de seus
contemporâneos, mos-
tra de sua erudição.40 Ao
fim de sua publicação, a
obra somava envergadura notável, conjugando tanto seletas
diretrizes da medicina antiga quanto doutrinas correntes e
respeitadas no tempo de seu autor.

40
LEMOS, Maximiano. História da medicina em Portugal: doutrinas e
instituições. Lisboa: Manoel Gomes Editor, 1899. v. II, p. 31.

20
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Já De Praxis Medica
Admiranda [...], presente
no segundo tomo da Ope-
ra Omnia, é construída
como uma coletânea de
relatos de casos curiosos e
raros, sobre doenças, re-
médios, curas e situações
inusitadas – as que Zacuto
testemunhara no exercício
de seu ofício e as que reco-
lheu de colegas, marinhei-
ros, viajantes e aventurei-
ros. Segue, de maneira
similar a outra obra, uma
organização a partir das
partes do corpo acometi-
das pelos males que descreve e comenta. Vale ressaltar, con-
tudo, que tal obra, apesar da heterodoxia dos casos que a
compõem, não foi formulada no sentido de “avançar” os
conhecimentos médicos ao registrar situações não observadas
pelos antigos e, assim, coloca-los em xeque. Esse ímpeto de
retratar o novo e o curioso parece ter sido apenas uma decor-
rência do tempo e do mundo em que Zacuto viveu, cujas
fronteiras haviam sido alargadas drasticamente havia pouco
mais de um século.41 O médico português era um herdeiro
declarado do conhecimento dos antigos, um defensor do

41
CARVALHO, Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano, p. 74.

21
TRATADO SOBRE MEDICINA

galenismo42 que, por meio da publicação de suas notas e ob-


servações, buscava somar-se ao coro dos mestres e divulgar os
saberes que tanto prezava.

Uma obra de pais para filhos

Além dessas obras publicadas em Amsterdã, o médico


português dedicou-se à escritura de um pequeno livro, numa
empreita bastante particular e a ele cara, mas que nunca co-
nheceu a prensa. Tal obra, produzida essencialmente em
língua portuguesa, é encontrada como Libro de diversos remé-
dios para varyos acidentes composto pelo muy docto y eminente
Doctor Zacutus Lusitanus, Libro de diversos remedios composto
pelo mui docto Sr. Doctor Zacutus Lusitanus y tresladado pello
original do mesmo author ou Tratado sobre medicina que fez o
doutor Zacuto para seu filho levar consigo quando se foi para o
Brasil, portanto, em três cópias conhecidas,43 salvaguardadas,
respectivamente, pela Biblioteca Nacional de Israel (Frie-
denwald Collection),44 pela Fundação Biblioteca Nacional

42
“Galenismo moribundo”, nas palavras de Maximiano Lemos. Cf. LE-
MOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, p. 340.
43
Diferentemente do que afirma Francisco Moreno de Carvalho, que
identificou a existência de apenas dois exemplares do livro em seu Zacuto
Lusitano e um tratado de Medicina dirigido ao Brasil. Cf. CARVALHO,
Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano, p. 67.
44
ZACUTUS Lusitanus. Libro de diversos remedios : para varyos acçiden-
tes / composto pello ... Doctor Zacutus Lusitanus. The National Library
of Israel, Jerusalem, Israel, Ms. Fr. 1000. 24,5x19,0 cm. 62 p.

22
MEMÓRIA ATLÂNTICA

(Rio de Janeiro)45 e pela Ets Haim Bibliotheek – Livraria


Montezinos (Amsterdã).46 Mesmo com títulos diferentes, o
confronto dos manuscritos revela que se trata, com diferen-
ças bastante pontuais, de cópias do mesmo livro.
Outras informações podem ser obtidas com a leitura e
comparação das obras. Fica evidente, por exemplo, que o
Tratado de medicina que fez o doutor Zacuto [...] é uma cópia
do livreto original, solicitada, como consta em seu subtítulo,
“por ordem de Ishack Matatia Aboab”,47 no ano 5450 do
calendário judaico, pelo copista Benjamin Godines.48 Feita,

45
LICITANUS, Zacutus. Livro de diversos remedios. Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Manuscritos - I-13,02,031. 59 f.
46
TRATADO/ sobre Medecina que/ fez o Doutor Zacuto/ para seu filho
levar consigo/ quando se foy para o Brazil./ Disposto e Copeado/ por hor-
dem de/ Ishack de Matatia Aboab./ Anno 5450/ Escrito por B. Godines.
Ets Haim Bibliotheek. 15,3 x 9,7 cm. 116 p.
47
Ishack de Matatia Aboad – não confundi-lo com o rabino Isaac Aboad
da Fonseca, seu contemporâneo – parece ter sido um próspero mercador e
proeminente membro da comunidade judaica de Amsterdã. Nascido na-
quela cidade em 1631, casou-se aos 37 anos com sua sobrinha Sarah Curi-
el, então com 16 anos, tendo com ela quatro filhos: Matatia, David, filho a
quem se destinava a cópia do Tratado de Zacuto, Moshe e Emanuel. Foi
uma espécie de “repositório vivo de toda a memorabilia literária a respeito
dos judeus portugueses de Amsterdã”. Em 1690, compilou um tratado
sobre o uso medicinal de pedras preciosas, e, no mesmo ano, comissionou a
Benjamin Godines a edição e cópia do tratado sobre medicina do doutor
Zacuto. Cf. MCGAHA, Michael D. (org.). The Story of Joseph in Spanish
Golden Age Drama. Lewisburg, Pennsylvania: Bucknell University Press,
1998, pp. 227-228.
48
Pouco se sabe sobre Benjamin Senior Godines. Foi membro da comu-
nidade luso-judaica de Amsterdã, editor e um conhecido gravador de

23
TRATADO SOBRE MEDICINA

portanto, em alguma data entre 1689 e 1690 do calendário


gregoriano, a cópia seria quase meio século posterior ao fale-
cimento de Zacuto, em 1642. A mesma certeza sobre o perí-
odo de feitura da cópia, no entanto, não paira sobre a elabo-
ração e finalização do livro – ou mesmo se algum dos dois
outros manuscritos, os Libros de diversos remédios [...], é o
original da obra.
Há, nos dois exemplares quase homônimos, uma pista
mais explícita de sua possível datação: um retrato de Zacuto
Lusitano, aqui reproduzido. A imagem, ao que parece, pauta-
se em uma efígie do doutor
feita ainda em 1634, por S.
Saveri, e que já aparecia nas
edições da Opera Omnia.
Diferentemente desse, po-
rém, a figura estampada nos
Libros [...] vem com um texto
em latim de Nicolaus Fon-
tanus,49 também médico,
que, além de enaltecer Zacu-
to, corrige a data para 1642, a
mesma da morte do douto.
Nos volumes que foram efe-
tivamente impressos na Ho-

frontispícios, que também trabalhou como copista de manuscritos, mui-


tas vezes encomendado por Ishack de Matatia Aboab.
49
LINDEBOOM, Gerrit Arie. Dutch Medical Biography. A biographical
dictionary of Dutch physicians and surgeons 1475-1975. Amsterdã:
Rodopi, 1984. v. 8, p. 611

24
MEMÓRIA ATLÂNTICA

landa, ou seja, naqueles que compunham a Opera Omnia, a


dedicatória que acompanha a ilustração foi assinada por C.
Sponius, amigo do médico português e seu colega de profis-
são, estabelecido em Lyon.50
É preciso considerar a alteração do título da obra en-
comendada por Aboab para avançar nas elucubrações sobre
quando Zacuto resolveu anotar e organizar seus “diversos
remédios”. Ali, consta indicada sua possível motivação para
compor o livro: “para seu filho levar consigo quando se foi
para o Brasil”. Ao que tudo indica, três deles ali estiveram:
Jacob, Isaac e Moisés. Não se sabe, contudo, quando vieram,
se juntos, se em distintas travessias, em quais condições. O
primeiro estaria nos territórios conquistados pelos holande-
ses51 pelo menos desde 1638, ano em que adquiriu um con-
junto de fazendas remetido pelas câmaras de Amsterdã e da
Zelândia.52 No Brasil, ainda se casou com Sara, teve, em
1644, uma filha chamada Esther,53 e, segundo inventário

50
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 210-211.
51
Para mais informações sobre o domínio holandês no Brasil, ver, entre
outros: BOXER, Charles. Os holandeses no Brasil (1624-1654). Tradução
de Olivério Mário de Oliveira Pinto. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1961. (Coleção Brasiliana, v. 312).; MELLO, Evaldo Cabral
de. O Brasil Holandês (1630-1654). 1ª reimpressão. São Paulo: Penguin
Classics, 2010; MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamen-
gos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do
Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
52
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação: cristãos-novos e
judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
Editora Massangana, 1989, p. 461.
53
EMMANUEL, Isaac S. “Seventeenth-century Brazilian jewry: a critical
review”. American Jewish Archives Journal, Cincinnati, v. 14, n. 1, 1962, p. 47.

25
TRATADO SOBRE MEDICINA

feito por oficiais da Real Fazenda Portuguesa em 20 de feve-


reiro de 1654, após a expulsão dos batavos do Recife, Jacob
foi proprietário de “duas moradas de casas da mesma banda
do rio [Capibaribe] com as fronteiras para a rua dos Judeus,
com a serventia por uma mesma escada”, sendo que “uma
delas tem dois sobrados, e ambas suas lojas por baixo”.54
Sobre Isaac, há uma menção pontual à sua presença
nos trópicos entre 1636 e 1637. Contudo, consta que o
mesmo seria credor da Coroa portuguesa, em 1672, de uma
quantia de mais de 12 mil florins, por ter sido proprietário
de bens de raiz em Pernambuco em 1654.55 No que diz res-
peito a Moisés, constava para a administração neerlandesa no
Recife, em 1649, que ele havia fugido para a Holanda, sem
licença ou passaporte, devendo grandes quantias à Compa-
nhia das Índias Ocidentais, pendências que já se acumula-
vam há alguns anos.56 Ao contrário dos irmãos, o desfecho da
trajetória de Moisés nos trópicos indica que sua experiência
no Brasil não tenha sido economicamente favorável, como
deveria ter esperado o pai ao enviar sua prole para tal emprei-
tada. Jacob e Moisés ainda constam como membros da co-
munidade da Congregação Zur-Israel, no Recife, segundo o

54
INVENTÁRIO dos prédios edificados ou reparados pelos holandeses na
cidade do Recife até 1654. Biblioteca Pública de Pernambuco. Recife:
Imprensa Oficial, 1940, p. 4.
55
Cf. EMMANUEL, Isaac S. Seventeenth-century Brazilian jewry, p. 52;
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação, p. 446.
56
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação, pp. 349-350, 499.

26
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Livro de Atas da mesma, relativo ao período entre 1648 e


1654.57
Se tomarmos como verdadeiro um depoimento de
Gaspar Bocarro Francês ao Santo Ofício, onde se lê que Za-
cuto tinha um filho de nome Jacob, estabelecido no Brasil
com 30 anos na década de 1630,58 poderíamos considerar ter
sido ele o portador do livro e que este teria sido concebido
nessa terceira década do Seiscentos. Mesmo se cogitarmos
que o destinatário de seu tratado de medicina fosse Isaac, é
ainda esse decênio o mais provável para a arribada de um
Zacuto com referências médicas no Brasil. E se fosse Moisés
o receptor do livreto, de todo modo isso teria acontecido
antes da morte de seu pai, ou seja, nos primeiros anos de
1640, já que, em 1649, acumulava dívidas há vários anos.
Tudo isso faz supor que um de seus filhos teria chegado ao
Brasil na segunda metade de 163059 e que, portanto, a feitura
do livro antecedia em pelo menos cinco – talvez mais – anos
sua morte.
Estimado “quando” o texto fora redigido, passemos a
outros pontos chave que orbitam a obra: por que fora feita e
sobre o que versava. Ou, em outros termos, do que se trata o
livreto? Quais os “diversos remédios” que mereciam sua

57
WIZNITZER, Arnold. Judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria
Pioneira Editora; Editora da Universidade de São Paulo, 1966, p. 122.
58
RÉVAH, Israel Salvator. “Une Famille de Nouveaux-chrétiens: les
Bocarro Francês”, Revue des Études Juives, n. 166, 1957. pp. 81-82; Elias
Lipiner, “Notas para Nova Leitura da Biografia de Zacut", Carta de
Jerusalen 64, julio-deciembre 1993, pp. 11-20.
59
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no
Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 94-106.

27
TRATADO SOBRE MEDICINA

atenção e, ao que parece, deveriam ser conhecidos de seu


filho? Como esse livro teria chegado a Matatia Aboab, e por
que ele decide providenciar uma cópia dele?
À primeira questão, parece termos adiantado algumas
respostas. No Tratado [...], consta explicitamente que a mo-
tivação do doutor era reunir as receitas mais necessárias para
que seu filho, que rumava ao Brasil, pudesse manejar. Ainda
que se possa questionar se o manuscrito seria para uso (exclu-
sivo?) de seu filho, é certo que se destinava a alguém que
deveria cuidar dos corpos alhures, muito provavelmente para
lá da Europa, já que se lê, logo em sua primeira página, a
seguinte indicação: “os climas das terras variam as doenças, a
cura e os remédios. Em terra quente, é necessário sangrar
mais”. Logo adiante, refere que “no Brasil e terras de Guiné,
Angola, Peru,60 todo o toque das febres é em purgar pouco e
em sangrar copiosamente”. Além disso, um capítulo todo – o
mais extenso de todo o livreto, vale dizer – fora dedicado às
câmaras de sangue, uma doença, de acordo com Zacuto,
“particular no Brasil”. O suposto destinatário valer-se-ia do
manual, de acordo com o anunciado por seu autor, para “go-
vernar em tempo que não haja médico” – uma situação, co-
mo veremos, bastante comum no Brasil daqueles tempos –, e
nele encontraria “a cura de todas as doenças que acontecem
no corpo humano”. Esses elementos corroboram com a ideia
anunciada no Tratado [...] que o portador da obra tinha os
trópicos como destino e local de aplicação daquelas diretri-
zes.

60
Diferenças sobre os nomes das localidades indicadas podem ser consul-
tadas na edição do Tratado, apresentada neste livro.

28
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Na altura em que são anunciados os contornos do tal


“compêndio”, há uma diferença sutil, mas significativa. Nos
Libros, é dito que se tratava dos remédios “com que se po-
dem governar [...]”, enquanto no Tratado [...], consta “com
que te saberás governar [...]”. O mesmo ocorre no supra in-
dicado capítulo sobre as câmaras de sangue: lê-se no Tratado
[...] “onde el Dio te leve e te conserve, louvando-o e agrade-
cendo-o”, menção a Deus que não tem par nos Libros. Seri-
am adições solicitadas por Aboab? Um toque de pessoalidade
que havia no original e foi retirado pelos copistas posteriores?
Se os Libros seriam os originais usados por Godines para
produzir o Tratado [...], ou se havia um livro destinado para
o grande público e uma cópia diferenciada para seu filho, é
difícil precisar. O que podemos sinalizar com alguma segu-
rança, ao observar os três exemplares em conjunto, é que as
duas cópias dos Libros apresentam uma grafia muito seme-
lhante, ou, possivelmente, feitos pelas mesmas mãos, e que o
Libro [...], hoje depositado na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, de acordo com seu próprio título – “tresladado pello
original do mesmo author” –, seria derivado do original, su-
postamente o exemplar disposto na Friedenwald Collection.
No que se refere ao acesso de Matatia Aboab ao livro,
há uma pista na versão que encomenda sobre seu contato
com a família do ilustre médico luso. Após o texto completo
do “compêndio de medicina”, ele faz constar, em uma espé-
cie de anexo, mais algumas indicações para o cuidado das
rânulas – um tipo de “tumor que nasce na língua, junto ao

29
TRATADO SOBRE MEDICINA

freio”61 –, das alporcas – um “tumor cirroso, que ocupa as


glândulas do pescoço”62 – e uma carta direcionada a seu fi-
lho, David Aboab Curiel. Entre os conselhos paternos, os
casos exemplares e o manifesto desejo de que seu herdeiro se
tornasse um respeitável médico, ele anota: “esta receita [con-
tra as alporcas] é segredo que nunca descobriu o dito Zacuto,
senão a seu filho, de cuja mulher e filha eu o aprendi”. En-
trevê-se, aí, certa proximidade entre os Aboab e os Zacuto, já
que os segundos, na pessoa da nora e da neta do autor do
Tratado [...], confiaram aos primeiros uma receita e um pro-
cedimento que guardavam. De maneira semelhante, é plausí-
vel considerar que havia uma cópia do livro sob guarda dos
aparentados ao doutor, e que com esse texto – e os segredos
medicamentosos – em mãos, foi possível ao mercador provi-
denciar o manual que seria útil, também, a seu próprio filho.
Observemos mais de perto o conteúdo desses úteis
conselhos. O texto é iniciado com algumas advertências de
como o “governo” do médico – aqui, no sentido de que se
usa Antonio Morais Silva, “dirigir física e moralmente”63 –
seria levado a cabo, detalhando suas ações considerando o
clima e suas implicações, com especial atenção ao ar, a con-
dição diferenciada das mulheres, o comportamento dos ho-

61
RÀNULA. In. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua por-
tugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda
edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typographia
Lacerdina, 1813, p. 550.
62
ALPÓRCA. In. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua
portugueza, p. 104.
63
GOVERNAR. In. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua
portugueza, p. 94.

30
MEMÓRIA ATLÂNTICA

mens com o “jogo de Vênus” – a masturbação –, quais seri-


am os momentos certos de curar, purgar e sangrar, como
utilizar acertadamente ventosas, sanguessugas, clisteis e ba-
nhos, quais seriam as virtudes e os limites dos exercícios físi-
cos. Nessas primeiras recomendações, Zacuto Lusitano for-
nece um panorama, uma explicação sumarizada, das princi-
pais observações e direcionamentos que deveriam ser respei-
tados para que as curas fossem bem sucedidas.
A forma como expõe essas primeiras diretrizes transita
dos princípios mais básicos às receitas e operações mais espe-
cíficas, entre definições técnicas e juízos sobre os comporta-
mentos que contribuíam ou causariam determinadas enfer-
midades. É possível – e, talvez, fosse mesmo desejável –, que
aquele que manejasse o compêndio guardasse, de antemão,
alguns conhecimentos basilares sobre o cuidado com os cor-
pos e a melhor forma de agir sobre eles, como, por exemplo,
dominar os princípios da teoria humoral, fundamental, co-
mo se vê, em Zacuto, ou saber identificar as veias do corpo
para aplicar as sangrias.
Seguem-se a esses aspectos gerais os remédios para o
que ele julgava como os principais achaques a serem tratados
pelos médicos: a dor de cabeça, o frenesi, a modorra, os va-
gados, a gota coral, a melancolia, a apoplexia, a paralisia, a
inflamação dos olhos, a belida e névoa dos olhos, a dor e
inflamação de ouvido, o fluxo de sangue dos narizes, a dor de
dente, a esquinência, o catarro, a asma, a prioris, o escarro de
sangue pela boca, o tísico, o tremor do coração, a fraqueza do
estômago, os vômitos, as já indicadas câmaras de sangue, os
puxos, a cólica, a inflamação e opilação do fígado, a icterícia,

31
TRATADO SOBRE MEDICINA

a hidropsia, a opilação do baço, a retenção e o ardor na uri-


na, as pedras nos rins, as lombrigas e almorreimas, além de
doenças essencialmente femininas – falta do mês, afogação
da madre, meses brancos e supérfluos –, doenças das juntas –
como a gota e as boubas – e doenças de pele, como sarnas,
licensos, pruridos, as citadas alporcas, as bexigas, sarampo, a
peste, e toda sorte de febres e de venenos. São quase sessenta
capítulos, de diferentes extensões, dedicados à apresentação
didática e ao tratamento tido como mais eficaz pelo doutor
Zacuto dos males que acabamos de listar.
Esse formato de livro, um breve manual de medicina,
não seria propriamente uma novidade, e vinha ganhando
popularidade desde meados do século XVI, com a difusão da
imprensa64 e o relativo aumento do público leitor.65 As estra-
tégias de apresentação do texto, por seu turno, tem algumas
peculiaridades. Isso porque Zacuto, mesmo considerando
que seu filho – ou quem acessasse e lesse seu manual – obra-
ria em locais com poucos médicos – locais, portanto, menos
afortunados –, e que possivelmente necessitasse de informa-
ções bastante básicas sobre os cuidados com a saúde, não se
furtou a utilizar os cânones médicos para respaldar suas indi-
cações.
Ali, optou por registrar as informações sobre as doen-
ças, as explicações de como identifica-las, as características
manifestas nas diferentes gentes, os ingredientes e procedi-
mentos necessários para curar meia centena de achaques,

64
CAVALLO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental. São
Paulo: Ática, 2002, p. 48.
65
CAVALLO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental, p. 97.

32
MEMÓRIA ATLÂNTICA

enfim, uma miríade de questões clínicas,66 em língua verná-


cula, o português, portanto mais acessível. No entanto, as
fórmulas – ou “receitas” – estão presentes em latim: essa es-
tratégia, de um lado, reiterava o compromisso do doutor
com a escrita especializada e médica de então, ao passo que
poderia facilitar a identificação de determinados elementos e
quantidades pelos boticários que os comerciariam.67 Diante
disso, seu compêndio breve pode ser enquadrado entre um
manual de divulgação, digamos, mais “popular”, e um texto
técnico, que mantinha e respeitava a normativa então vigente
entre os doutores.
Há quem afirme que esse teria sido o primeiro texto
médico dirigido ao Brasil, assertiva que encontra respaldo se
se considerar que a cópia encomendada por Aboab era, de
fato, bastante posterior à feitura primeira da obra.68 De todo
modo, não foram muitos os livros médicos produzidos sobre
ou para o Brasil nos primeiros séculos após a chegada e do-
mínio dos lusos69 – basta lembrarmos de João Ferreira da

66
Alinhado ao restante de sua obra, Zacuto não aborda, no Tratado [...] /
Libros [...], questões de natureza cirúrgica. A única exceção, ou as men-
ções a procedimentos menos “clínicos”, seria a aplicação das sangrias.
67
É difícil precisar se Zacuto tinha alguma notícia sobre as boticas do
Brasil para prescrever determinados ingredientes. Ainda assim, ele men-
ciona que esse ou aquele produto viria “da botica” em pelo menos quatro
momentos de seu tratado. Sobre os boticários e as boticas do Brasil, ver,
entre outros: MARQUES, V. R. B. Natureza em boiões. Medicinas e
boticários no Brasil setecentista. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999.
68
Cf. MORÃO, ROSA e PIMENTA. Notícia dos três primeiros livros.
69
Sobre a medicina praticada no Brasil colonial, ver, entre outros: VIO-
TTI, Ana Carolina de C. As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial
(1677-1808). São Paulo: Alameda, 2017.

33
TRATADO SOBRE MEDICINA

Rosa, que escreveu em finais do Seiscentos, um dos princi-


pais e pioneiros textos sobre os achaques tropicais. Assim, o
livro organizado por Zacuto Lusitano configura-se como um
significativo exemplar do conhecimento médico partilhado
naqueles tempos, dos tipos de produtos creditados como
valorosos ou danosos à saúde, de aspectos da dieta indicada
aos adoentados, dos males mais comuns, das técnicas de tra-
tamento bem quistas, do vocabulário, pesos e medidas pró-
prios dos doutores, e dos conselhos de um pai para um filho
– senão do doutor, do mercador que viu naquele manual
uma fonte estimada de conhecimentos. É, pois, a inédita
transcrição e edição desse manuscrito, que o leitor encontrará
neste volume.

Uma palavra sobre a edição

A partir do confronto dos três manuscritos supracita-


dos – o Libro de diversos remédios para varyos acidentes com-
posto pelo muy docto y eminente Doctor Zacutus Lusitanus, o
Libro de diversos remedios composto pelo mui docto Sr. Doctor
Zacutus Lusitanus y tresladado pello original do mesmo author e
o Tratado sobre medicina que fez o doutor Zacuto para seu filho
levar consigo quando se foi para o Brasil –, mas tomando esse
último texto como base, apresentamos a primeira edição do
compêndio de medicina seiscentista elaborado pelo famoso
médico português Zacuto Lusitano. Sobre as opções e crité-
rios utilizados para a feitura do livro, cabem algumas consi-
derações.

34
MEMÓRIA ATLÂNTICA

A escolha do Tratado [...] como “coluna vertebral” do


texto não é fortuita. Em primeiro lugar, trata-se de um do-
cumento que pode ser caracterizado, sem dúvidas, como uma
cópia, o que dirime dúvidas ou afirmações precipitadas sobre
pautar-se no dificilmente identificável “original” da obra para
produzir esta edição. Tal cópia, vale dizer, é a única datada
entre os manuscritos, permitindo localizar sua feitura no
tempo e também o responsável por coloca-la em papel e tin-
ta. Depois, é ele, entre os três exemplares conhecidos do li-
vreto de Zacuto, o que reúne um duplo esforço de divulga-
ção médica: o do próprio doutor, ao fazer o compêndio, e
daquele que manda copia-lo, Ishack Matatia Aboab. Por fim,
ao considerar o texto reproduzido por solicitação do merca-
dor, somos apresentados à íntegra do manual de Zacuto e às
adições feitas a ele, nada desprezíveis.
Embora os três textos sejam apresentados majoritaria-
mente em língua portuguesa, chama a atenção que os dois
manuscritos que não o Tratado [...] tenham seus títulos gra-
fados em espanhol. Isso – e a ocorrência de alguns termos na
língua de Cervantes ocasionalmente no texto – pode se justi-
ficar pela origem do copista, talvez, ao contrário de Benjamin
Godines, não-lusófono. Na feitura da presente edição, os
termos que poderiam causar alguma dúvida foram traduzidos
e referendados. Essas e outras informações de caráter explica-
tivo, de definição ou que ressaltem as diferenças entre o texto
base, o Tratado [...], e as outras duas edições, aparecem como
notas dos editores [N.E.], em rodapé.
Ainda em relação ao idioma da obra, anunciamos que
Zacuto, para legitimar algumas de suas fórmulas e torna-las

35
TRATADO SOBRE MEDICINA

inteligíveis a supostos boticários e outros doutores, optou por


utilizar-se do latim. Aqui, decidimos não alterar essa diretriz
do doutor, mantendo também em latim as sínteses das recei-
tas que ele recomendava. No entanto, como o leitor poderá
observar, essa opção em nada prejudica a leitura e o enten-
dimento das receitas e das prescrições contidas no livreto –
nem a nós, contemporâneos, nem sempre leitores do latim,
nem, imaginamos, aos destinatários e usuários da obra outro-
ra –, haja vista que o autor do compêndio sempre indica, na
língua de Camões, as plantas, sementes, líquidos, etc. de que
se vale, antes ou depois da fórmula. Como nessas sintéticas
receitas há, muitas vezes, uma unidade de medida em forma-
to de símbolo, nem sempre referendada como os ingredien-
tes, indicamos qual seria a quantidade recomendada pelo
douto entre colchetes (por exemplo, [onça]). Mantivemos,
ali, os recuos de parágrafo estipulados pelo copista. Imbuídos
dessa mesma preocupação – tornar a métrica e a posologia
utilizada por Zacuto e seus coetâneos inteligível e mais aces-
sível ao leitor –, acrescentamos, após o texto, uma tabela com
os parâmetros portugueses de pesos e medidas então vigentes.
Cabe destacar, ainda, algumas alterações promovidas
no processo de transcrição: as abreviações que eventualmente
constavam no texto foram alteradas para o termo completo,70
a paginação original do manuscrito foi anotada entre parên-
teses, de modo a localizar o leitor na obra; empreendemos a
modernização da grafia e licenciamo-nos a promover altera-

70
Foi-nos de grande valia a obra de FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abre-
viaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2008.

36
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ções na pontuação – facilitando, cremos, o entendimento das


receitas e prescrições –; padronizamos a citação de nomes
que apareciam grafados em mais de uma forma (como em
fleima, freima, fleuma); todos os termos relacionados à doen-
ças e elementos, mesmo que tenham caído em desuso, foram
mantidos, respeitando o vocabulário da época. Cientes da
dificuldade em compreender muitos desses termos, confecci-
onamos um glossário, respaldado em dicionários e obras mé-
dicas coevas aos manuscritos, para auxiliar o consulente a
melhor perceber o universo do qual Zacuto partilhava.
Além da integralidade do texto de Zacuto, transcrito,
atualizado e anotado, de uma lista de pesos e medidas e de
um glossário dos ingredientes e procedimentos constantes no
Tratado [...], esta edição conta com dois estudos sobre temas
anunciados, de alguma forma, nos documentos, e que mere-
ciam atenção especial para compreender onde o manual seria
possivelmente aplicado e com quais ferramentas. Dedicamo-
nos, nesses dois capítulos que fazem as vezes de posfácio da
obra, a apresentar um panorama das doenças descritas e as
possibilidades de cura no Brasil do século XVII, As doenças
que os filhos de Zacuto encontrariam, a partir, também, do
olhar de médicos, e a compreender, nesse Brasil e na obra do
ilustre médico português, quais as relações entre Zacuto e os
ingredientes de além-mar.

*
Antes de o leitor passar adiante, não poderíamos deixar
de registrar nossos agradecimentos às instituições e pessoas

37
TRATADO SOBRE MEDICINA

que contribuíram, de forma decisiva, para que este livro,


quase quatrocentos anos após sua escritura, conhecesse a
prensa. São eles: os membros do grupo de pesquisa vincula-
dos ao Projeto Temático Escritos sobre os novos mundos: uma
história da construção de valores morais em língua portuguesa,
projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo – FAPESP (Processo: 2013/14786-6),
especialmente à Janaína Cardoso, que colaborou diretamente
com a revisão da obra, a Fundação Editora UNESP, a Fun-
dação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e a Academia
Portuguesa da História – que, de formas distintas, viabiliza-
ram a coleção Memória Atlântica, inaugurada com este vo-
lume –; e a Biblioteca Nacional de Israel e a ETS Haim Bi-
bliotheek – Livraria Montezinos, cujos esforços de digitaliza-
ção e divulgação da memória judaica em muito contribuíram
com o acesso aos documentos.

38
TRATADO sobre MEDICINA que fez o Doutor
ZACUTO para seu filho levar consigo quando se
foi para o Brasil.

Disposto e copiado
por ordem de
Ishack de Matatia Aboab

Ano 5450

Escrito por B. Godines


.1.

COMPÊNDIO BREVE NO QUAL SE CONTÉM A


CURA DE TODAS AS DOENÇAS QUE ACONTE-
CEM NO CORPO HUMANO, COM QUE TE SA-
BERÁS GOVERNAR EM TEMPO QUE NÃO HAJA
MÉDICO:

Capítulo primeiro, da cura

Da dor de cabeça, anema du cisper1 gerais, tocante a todo o


gênero de doenças2

Primeiramente, os climas das terras variam as doenças,


a cura e os remédios. Em terra quente, é necessário sangrar

1
N. E. No Libro de diversos remedios para varyos acsidentes composto pello
muy docto y eminente doctor Zacutus Lusitanus (Friedenwald Collection,
The National Library of Israel), uma das versões do Tratado de medicina
[...] aqui confrontadas – e doravante indicado como Libro FC –, lê-se
“animadversões gerais tocantes a todo gênero de doenças”.
2
N. E. No Libro de diversos remedios composto pelo mui docto Sr. Doctor
Zacutus Lusitanus y tresladado pello original do mesmo author (Fundação
Biblioteca Nacional), outra versão do Tratado aqui confrontada – e dora-
vante indicado como Libro BN –, não há referência a este título. Quando
as duas obras – o Libro FC e o Libro BN – coincidirem em alguma varia-
ção em relação ao Tratado, serão referenciadas como Libros.

43
TRATADO SOBRE MEDICINA

mais. E se a febre aperta e há dor da cabeça e carregume do


corpo duas vezes ao dia, o purgar é danoso no princípio,
como se costuma em terras frias. Assim que, no Brasil e terras
de Guiné,3 Angola, Peru,4 todo o toque das febres é em pur-
gar pouco e em sangrar copiosamente. A purga se fará no fim
da doença, estando a febre rendida, e com medicamentos
brandos e frescos, como são canafístola, catolicão, tamarin-
dos ou ajudas (p.2) frescas e temperantes, a que chamam de
ameixoada,5 cuja forma se porá nas febres.6 Nas mulheres, se
terá muita conta em seu mês, porque, em lhe faltando ou
diminuindo, e perseverando a febre, é necessário sangrar no
pé, e não havendo forças, pôr sanguessugas no sesso ou fun-
damento sobre as veias que aí se terminam, que chamam
almorreimas. E pondo 2, 3 ou 4 conforme for a idade, tira-
rão sangue e irão lavando o sesso com água morna e depois

3
N. E. O termo “Guiné” consta grafado como “China” nos dois Libros.
4
N. E. O termo inexiste nos Libros.
5
N. E. Não há, nos Libros, menção a um nome para a dita purga. Embo-
ra o termo esteja grafado como “ameijoada” no Tratado, vocábulo que
aparece em obras como a Polianthea medicinal de João Curvo Semedo
[tratado 2, capítulo 102] com a virtude de sarar amargores na boca –
“[...] ajudas de ameijoada, feitas de cozimento de cevada, ameixas, alface,
violas, malvas, frangão, saião, claras de ovos, água rosada e farelos lavados
[...]” –, optou-se por alterar a palavra por “ameixoada”, sobretudo por se
referir a preparos compostos por ameixas – e não amêijoas. SEMMEDO,
Joam Curvo. Polyanthea medicinal. Noticias galênicas, e chymicas, repar-
tidas em tres tratados [...]. Lisboa: Na Officina de antonio Pedrozo Gal-
ram, 1727, p. 545.
6
N. E. Nos Libros, consta a fórmula da receita da referida purga. A mes-
ma receita é elencada na página 72 do Tratado, no capítulo 48, “Da febre
de sangue inflamado”.

44
MEMÓRIA ATLÂNTICA

com sebo. Como fazem as ventosas, untarão os buracos don-


de sai o sangue e, quando não se quiser estancar, lhe porão
um pano de clara de ovo ou pós restritivos, que chamam
estanca sangue.

R. pulver restrictivor Ʒj7

Ou pós de caparrosa queimada, que chamam vitríolo,


ou pó de goma arábica queimada, ou pó de papelão queima-
do com clara de ovo. A coisa que se faz no ano preservativa se
fará no verão,8 e para (p. 3) doenças velhas é necessário esco-
lher bom tempo no verão ou outono, que é setembro,9 no
qual se sangrará o doente se a doença o pedir, e tomará xaro-
pes e se purgará ou apozemará.
A purga nas febres e outras inflamações interiores sem-
pre se fará a todo o tempo, pelo perigo que corre na dilação.
Mas, na preservação, no verão ou outros tempos, em doenças
velhas e largas, sempre se dará a purga ou sangria fora de lua
cheia ou nova ou eclipse, que, nestes tempos, se altera o cor-
po muito10 e, assim, é necessário esperar dois dias depois ou
antes.

7
N. E. Símbolo referente a oitavas.
8
N. E. Esta parte da frase foi omitida nos dois Libros.
9
N. E. Mesmo fazendo um tratado para medicar no Brasil, a indicação
das estações do ano se mantém pautada pela referência europeia.
10
N. E. O trecho “que, nestes tempos, se altera o corpo muito” inexiste
nos Libros.

45
TRATADO SOBRE MEDICINA

Da sangria

A sangria é uma evacuação que evacua todos os humo-


res como estão nas veias. É excelente para evacuar o sangue
que peca em quantidade e por muito, e o podre. Refresca,
descarrega, aviva e esforça. É singular remédio para as infla-
mações interiores, como pleuris frenesis,11 modorra, (p. 4)
febres agudas, dores interiores, inflamações do corpo, sarna,
comichão, para câmaras de sangue e sem sangue, que são de
humor quente e com puxos, e dor de barriga, de modo que,
para febres, é singularíssimo remédio. Nas terçãs contínuas,
na hora da temperança e remissão da febre, e nas que folgam
um dia, faça-se no dia de folga. É boa em todas as dores e
pontadas interiores causadas por humor quente. Três veias
há no corpo mais célebres que se sangram no braço: veia de
todo o corpo, e se sangra nas doenças que afligem do pescoço
para riba; outra da arca, quando as doenças estão do pescoço
para baixo; outra da cabeça, que sangra no último quando as
outras não bastam e se sangra em doenças da cabeça, frenesis,
inflamações antigas nos olhos, de ouvidos, que vêm de hu-
mor quente. Mas sempre em falta de meses é bom sangrar do
pé da veia da madre, da parte de dentro, e, se depois aperta o
mal, (p. 5) sangrar-se-á o doente no braço, fazendo primeiro
umas esfregações nas pernas. Sangra-se na mão, entre o dedo

11
N. E. Provavelmente delírio causado por inflamação na pleura, como
indicado já em Isidoro de Sevilha (560-636), no capítulo das “doenças
agudas” constante no livro de Medicina de sua Etiologias. ISIDORO de
Sevilla. Etimologías. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2004. (IV,
VI, 3).

46
MEMÓRIA ATLÂNTICA

mindinho e o seu vizinho, em doenças largas, quentes, febres


terçãs e males do fígado, sarna, comichão, brotoeja, e sangra-
se no fim da doença para temperar o fígado. As prenhes, os
velhos e meninos se sangrarão com moderação.

Ventosas

Usaremos delas para divertir o humor da cabeça, secas


nas espaldas; e, havendo forças, é bom sangrar, e se o mal
aperta, pôr-se-ão no toutiço. Em todos os agastamentos, são
boas secas, e nos desmaios das mulheres são excelentes nas
coxas da parte de dentro12 e nas pernas na parte de fora. Aos
meninos, se lançam em lugar da sangria, com sarjas leves, e
se dorifão13 [sic] nas pernas em lugar de sangria, quando são
fracos.

Sanguessugas

Já dissemos acima como se havia de (p. 6) tomar o


sangue das sanguessugas14 quando vem muito. Este remédio,

12
N. E. Os Libros referem apenas à sangria na parte de fora da coxa.
13
N. E. No Libro FC, a prescrição é de que se sarjem as pernas dos me-
ninos no lugar da sangria.
14
N. E. Nos Libros, segue-se o seguinte: “e quando não seguires [sic]
estancar, lhe porão um pano de clara de ovo, ou pós restritivos, que cha-
mam estanca sangue, como temos dito. Pulver restrictivor Ʒj”. A mesma
indicação literal aparece já no capítulo primeiro do Tratado.

47
TRATADO SOBRE MEDICINA

posto nas veias de almorreimas, que é o fundamento, é único


para todos os males melancólicos, sarnas, lepra, comichão,
melancolia, doidice, frenesis, em a qual doença, quando
aperta a doidice, se põem nas fontes, ponta do nariz, atrás
das orelhas, e chupam o sangue do miolo. No sesso, são boas
em quartãs, e se as almorreimas incham, bom é por-lhe 2 ou
3 sobre a parte inchada, e chupam o sangue; mas primeiro há
de preceder os remédios da sangria do pé ou braço.

Clistel

É um remédio nobre e descarrega as partes do corpo, e


se é brando, que chamam emoliente, feito de cozimento de
malva, violas, cevada e ameixas passadas, acelgas e catolicão,
evacua as tripas de todos os excrementos, dos quais vazias
descarregam as partes superiores. Clistel, um é forte, outro
brando; o forte se faz (p. 7) de cozimento de muitas sortes, e
estes se lançam em doenças frias. Outros refrescam, como são
os que porão no capítulo das febres.15 Também se fazem
clisteis refrescativos de soro de leite. E, do mesmo leite, ou-
tros aquentam as tripas e tiram a cólica, como são feitos de
vinho ou urina fresca com sal e mel. Outros mantêm quando
os doentes estão fracos e não podem comer ou não podem

15
N. E. Nos Libros, há uma nova referência ao clistel de ameixoadas,
semelhante ao sinalizado na nota 5, que é o seguinte: “clisteis de ameixo-
ada feitos do cozimento de malvas, violas, ameixas, cevada e com meia
onça de polpa de canafístola e óleo rozado, gema de ovo e açúcar”,
acompanhado da receita em latim.

48
MEMÓRIA ATLÂNTICA

engolir, como na esquinência: fazem-se de meio quartilho de


caldo de galinha ou capão com gema de ovo, açúcar ou de
vinho.

Banhos

O banho de água doce é um grave remédio para refres-


car o corpo, para sarnas, comichão, lepra, melancolia, vigia,
magreza do corpo. Toma-se metendo-se uma pessoa em uma
tina ou quarto de água morna até o pescoço, e ali se está uma
hora, e se deita depois na cama. Grave remédio para os hécti-
cos, quentura do fígado, principalmente se se cozer a água (p.
8) com violas, malvas, rosas, folhas de vide, borragens, alfa-
ces, figos do rio. Os banhos das caldas que nascem quentes
são único remédio para males frios, paralisia, gota, ventosi-
dades, cólicas. Assim, estes como os de água doce não se to-
mam senão uma vez no dia, em jejum, pela manhã, e usa-se
deles 12, 15 dias.

Exercício

É um movimento que se faz com o corpo, mui provei-


toso para a saúde quando é moderado, e só se aquenta o cor-
po e começa a mudar-se a respiração e se provoca suor; e se
se fizer em jejum, por espaço de meia hora, aviva o calor
natural e ajuda o cozimento do corpo, resolve os excremen-
tos, fortifica os espíritos, distribui o mantimento pelas veias,

49
TRATADO SOBRE MEDICINA

aguça o apetite de comer, desopila o corpo e, se é moderado,


engorda. Ao exercício,16 se reduz o jogo das armas, pedradas,
coices, navegar, pescar, nadar, caçar, andar em coche, liteira,
andilhas,17 o jogo da pela.18 É excelente [remédio]19 (p. 9)
para a conservação da vida.

O jogo de Vênus

Vênus é mui danosa para o corpo, maiormente se é ex-


cessiva. E se é moderada, executada de longo tempo, tem
todas as virtudes que tem o exercício. E se é supérflua, gasta a
vida, empobrece o calor natural, gasta os espíritos, enfraque-
ce os membros e é mui nociva nas doenças agudas. Causa
febres e doenças graves do miolo e nervos, porque resolve
muitos os espíritos e seca o corpo, pois por ela se priva o
homem da mulher,20 parte de tão puríssima substância como
é a semente, e assim se esfria o miolo e muitos se achacam
sem ele.

16
N. E. Nos Libros, lê-se: “O exercício será dos jogos das armas [...]”.
17
N. E. Espécie de sela, armada com correias e com quatro paus atravessa-
dos de uma e outra banda, “hoje pouco usada”, segundo Raphael Bluteau.
18
N. E. Jogo muito praticado outrora, em que uma péla (bola) era atirada
de um lado para o outro, com o auxílio de algum instrumento (raquete,
bastão) ou mesmo com as mãos. Crê-se ter sido o jogo precursor do tênis.
19
N. E. Consta o termo nas edições dos Libros.
20
N. E. Nos Libros, lê-se que “[...] priva o homem da melhor parte de
tão puríssima substância [...]”; ainda que o termo “melhor” pareça mais
afinado ao argumento do autor, preferiu-se fidelidade ao conteúdo do
Tratado.

50
MEMÓRIA ATLÂNTICA

O Ar

O ar que respiramos é o remédio da vida, sem o qual


não podemos viver. Recria os espíritos, é mantimento do
coração. Há de ter-se muita conta com ele. Nas febres, o ar
há de ser fresco, preparando-se a casa com fontes, ramos,
porque o ar quente resolve; e, no inverno e em doenças frias,
se aquenta (p. 10) a casa com fogo, e também na casa e ruas21
quentes, louro, alecrim, rosmaninho, sálvia.

Cap. Primeiro

Da dor da cabeça

Duas causas principais fazem a dor da cabeça, uma é


quente, outra fria. A quente se conhece pelo fogo do rosto,
vermelhidão, quentura da testa, comichão, dos olhos, ser o
tempo quente, a idade de moço, e ser de pouco tempo, cuja
causa ou é vapor de sangue que se levanta de todo o corpo e
fere a cabeça, ou vapores e humores quentes que na cabeça se
geram.
É necessário curar-se logo, porque é mal aonde se ajun-
ta logo vigia de febre, e dele sucedem outros piores, como
são frenesis, modorra, vagados, etc.

21
N. E. Nos Libros, antes da discriminação das ervas, consta o seguinte:
“[...] lançam na casa ervas quentes [...]”.

51
TRATADO SOBRE MEDICINA

A cura se faz com sangrar uma e duas vezes da veia de


todo o corpo, e mais vezes se houver febre; e, não aplacando,
se sangrará da veia da cabeça, no braço; e as ventosas são
excelentes, secas e sarjadas, nas costas (p. 11) e nas espáduas,
e, não bastando, as lancem no toutiço, sarjadas, ou sangrem a
veia da testa, ou ponha sanguessugas nas fontes ou fonte
donde a dor for maior.
Clisteis são bons brandos, feitos de cozimento de mal-
vas, violas, ameixa, cevada, folhas de alface e uma onça ou
seis oitavas de catolicão, óleo rosado ou violado, açúcar e sal.
A purga é boa branda e temperada, de catolicão ou xa-
rope de 9 infusões de rosas de Alexandria e cozimento de
folhas de sene e flores cordiais, cevada e pevides.

R. Cathol. [onça]. Sirup. Solut.


[duas oitavas] Cum decoet. Fol. Senflor.
Cordial. Hord et prunor. Fiat potus

Ou tomar uma polpa de canafístola, deste modo:

R. pulp. Cas. [meia oitava]. Sirup salut


[duas oitavas] cum decoet flor cordial
Pronor hord et Semfrig
Fiat potus brevis

Nas fontes e moleira, porão leite de peito (p. 12) com


água rosada e uma maçã nas fontes assada, ou miolo de pão
machucado com leite de peito, ou de cabras, ou vacas, com
água rosada, com pau de sândalo ou unguento populeão,
desfeito com leite de peito, ou uns panos molhados. Neste

52
MEMÓRIA ATLÂNTICA

defensivo, que se faz de água, óleo, vinagre rosado, misturado


tudo com pó de sândalo:

R. aq. Ros. [meia onça], U. oley ros


[meia onça] aceti. ros 4:1 santalor
3:1 misse

E se a dor for de frialdade, se conhece por dor que vem


sem febre, sem fogo, e dura muito tempo. Tem o doente a
cabeça carregada, os ouvidos zumbem, tem catarros, é tempo
de inverno.
São bons clisteis quentes, que se fazem de macela, li-
nhaça galega, erva doce, sálvia, alosna, arruda, com óleo de
macela, de endros e hiera piera, e bendita, sal, mel, deste
modo:

R. decoet. salu anis camomil


sem comfenu grec [dez onças]
hier.. piera et benedict an
[meia onça] oly cammil
(p. 13) sae fiat crister

Tomar xaropes:

R. rodomel et sirup salvie an


[onça] aq fenicul et melisse an [onça]
misse

Purgar é bom com esta purga de diaphenicam:

53
TRATADO SOBRE MEDICINA

R. deaphenicom [três oitavas] cathol


3. U sirup [três onças]
De coet. epitim. salvia. sem
cartam. et folio. sene fiat potus

Depois irá tomando umas colheres de mel rosado pelas


manhãs:

R. Mellis rosasei [três onças]

Pílulas são boas. Corchear22 com diagrídio, que é es-


camonea preparada:

R. mase pipular. cochiar


3 1 cu g. v. diagrid. fiat. septen
et de aurenter

Também é bom fazer uns bocados de catolicão e de di-


aphenicam com açúcar, e, metidos em uma obrea molhada,
se tomarão 3 ou 4, e fazê-los deste modo:

R. diaphenie et catolican
(p. 14) [três oitavas] cum sacharo fiant
bol

Se não bastar, uma fonte no braço é boa da parte que


mais doer, ou feita no toutiço.

22
N. E. Em tradução livre, granular o couro com cortiça. NEUMAN,
Henry. A New Dictionary of the Spanish and English Languages […] Phil-
adelphia: A. Small, 1823. v. 1.

54
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Tomar suores de salsa e pau da China é grande remé-


dio para confortar o miolo, cuja forma se dirá no cap. de
morbo gálico,23 e tomará o doente suores por 15 ou 20 dias,
e, quando não, beberá água cozida com salsa e pau.
Nas fontes, porá o óleo de arruda ou macela com
aguardente e, por cima, pó de alecrim ou mel com pó de
almecega, ou estoraque, ou tacamaca, ou bálsamo de copaí-
ba, ou bosta de boi fresca e quente, com esterco de cabras ou
pó de sálvia.
E se o corpo for moço e o tempo quente, bom será a
sangria, ventosas secas e sarjadas, como assim dissemos.

Cap. 2 de Frenesis

Quando, nas febres ardentes ou malignas, falam os do-


entes continuadamente desvarios, se chama esta doença fre-
nesis.
A causa é um humor quente e colérico, que se (p. 15)
embebe no miolo ou nas suas túnicas.
Conhece-se ao princípio porque o doente fala desvari-
os, o que aumenta mais a tarde e no crescimento da febre, e
depois se vai confirmando, e falam os doentes sempre desva-
rios. Não dormem, os olhos estão secos, as faces vermelhas, a
febre é contínua, os pulsos fracos, e eles inquietos.
É perigosa e mortal doença, que, com tremores de bra-
ços e vigias, mata.

23
N. E. Nos Libros, a receita que se anuncia para o capítulo do morbo
gálico já é transcrita integralmente.

55
TRATADO SOBRE MEDICINA

A cura é esfriar o ar com fontes e ervas, provocar sono,


compor na testa leite de peito e água rosada ou vinagre frio,
ou untar a testa, moleira e fontes com unguento populeão. E
quando não bastar, mete-lo dentro dos narizes com uma
pena, e, quando não, farão unguento que ponham nas mes-
mas partes, de óleo violado, de dormideiras, populeão e ópio:

R. olei. Violar. papauer. an. [onça]


op. [dois grãos] Croci [três grãos] misse
Fiat cucera unguentum

As amendoadas de sumo de cevada cozida (p. 16) e


dormideiras com xarope de dormideiras são boas, como ir
tomando xarope de dormideiras.
Os cordiais frescos são bons, como estão receitados no
capítulo da febre ardente, que irá tomando entre dia, e guar-
dará o regimento fresco que se propõem no cap. da febre
ardente.
O sangrar é bom da veia de todo o corpo e da cabeça,
havendo forças. E, estando fraco,24 as ventosas secas e sarja-
das nas costas altas e no toutiço, a sangria da veia da testa e
do nariz, e as sanguessugas nas fontes de trás das orelhas são
boas para tirar o humor da apostema que está no miolo, que
faz o frenesi; mas estas sangrias não se fazem senão no cabo,
quando estão já feitas as dos braços.
Os clisteis frescos e que provocam sono são bons, cuja
forma se proporá no cap. da febre ardente.

24
N. E. Esta informação sobre o estado do doente para a aplicação de
ventosas só aparece no Tratado.

56
MEMÓRIA ATLÂNTICA

O purgar é bom com polpa de canafístola e ruibarbo,


cuja forma se porá (p. 17) no cap. da febre ardente.25

Cap. 3 de Modorras

Modorra é um apostema que nasce no miolo, causado


de humor frio, e é doença contrária ao frenesi, que, assim
como os frenéticos estão despertos e inquietos porque reina a
cólera que ferve, assim nos que têm modorra sempre estão
dormindo, que é doença causada da fleima.
É doença perigosa e que mata.
A cura se faz com sangrar. Porque há febre, ventosas,
sangria da testa, sanguessugas postas no sesso e fontes. Os
clisteis se fazem de coisas que se proporão no cap. da febre
cotidiana, que é febre que dá cada dia.
É necessário espertar os doentes gritando, puxando-lhe
pelos cabelos.

Cap. 4 dos Vagados

Os vagados da cabeça se fazem quando a cabeça se an-


da à roda, ou a casa à roda.26 Geram-se de fraqueza do estô-
mago, que vapora a cabeça e lança ventosidades, e de cabeça
que é fraca.

25
N. E. Esta indicação da purga não consta nos Libros.
26
N. E. Nos Libros, não há menção à “casa à roda”.

57
TRATADO SOBRE MEDICINA

(p. 18) É mal perigoso, e em velhos muito mais,27 que


acarreia28 apoplexia ou gota coral.
Cura-se com purgar as fleimas e ventosidades, com re-
gimento seco, e beber a água cozida com anis, canela, pau da
China e salsa, uma onça a três canadas, que mingue meia.
A cura é fazer esfregações nas pernas, lançar ventosas
secas, ajudas quando der o acidente. E quando estiver o do-
ente fora dele, curar-se-á como se cura a gota coral, como no
seguinte cap. se dirá. Fonte na perna e no braço é boa.

Cap. 5 da Gota Coral

A gota coral é mal bem conhecido e dá a muitos, tor-


cendo a boca e olhos e tremendo o corpo, espumam pela
boca e mordem a língua. A causa mais frequente é [sic] flei-
mas e humor frio e ventoso, que acomete o miolo.
É mal perigoso [e mata]29 e traz consigo outro maior,
que é a apoplexia.
Cura-se, quando dá o acidente, com ventosas (p. 19)
nas costas, esfregações, ataduras nas pernas e, se for doente
moço, as ventosas se sarjem altas. Os clisteis são feitos de

27
N. E. Nos Libros, consta apenas que a doença seria perigosa para os
velhos. Talvez por opção, o copista do Tratado alerta sobre os riscos do
achaque para qualquer doente, mas enfatiza que seria mais severo quando
acometesse os velhos.
28
N. E. Refere-se ao verbo acarrear, que, de acordo com Antonio Moraes
Silva, significa “acarretar, trazer, causar, ocasionar”.
29
N. E. Trecho presente nos Libros.

58
MEMÓRIA ATLÂNTICA

coisas quentes e que purgam a fleima, com diaphenicam,


hiera piera e óleos quentes deste modo:

R. decoet. Camomil. faenu


grei. Sem. lini. rutae abisinth
sem cath [onça] hiera
et diaphenican [meia onça] olio
Ruta et camimil. an [oitava]
Salis [meia oitava] mellis [onça] misse
et fiat clister

E os clisteis, repeti-los muitas vezes.


Quando o doente estiver com o acidente, meter-lhe
triaga no céu da boca e esfregarão e espetá-lo-ão, metendo
nos narizes pó de tabaco, ou pimenta, ou mostarda, ou castó-
rio com30 vinagre quente misturado.
Fora da sezão, é bom o regimento seco, beber a água
do pau da China, purgar com a purga e pílulas que dissemos
acima, no cap. da dor de cabeça fria. (p. 20)
Só é necessário fazer um barrete acolchoado de tafetá
dobrado e, entre tafetá e tafetá, meter os pós seguintes con-
fortativos de marfim, rosas, alecrim, rosmaninho, alosna,
sálvia aromática e outros:

R. pulver ros. masic. salvia


rutae. absinth. estaccad.
Rosmarini, an [oitava] aromatic
Rozat diamargariton
diarrhodon. abbatis an ij

30
N. E. Nos Libros, “vinagre quente” é precedido por “ou”.

59
TRATADO SOBRE MEDICINA

anisi Sinamom an [onça] eboris


[onça] sem paoniae [meia oitava]
calam aromatic et espicae
an [meia oitava] moschi adorati [meia
oitava]
ambari. g. viii omnia. misse
antur. et irrorrentur vino
generozo et siventur ad
Umbram et serventur31

Com os mesmos pós, acrescentando duas oitavas de


triaga e uma de mitridato32, e uma e meia de triaga de esme-
raldas, se fará com açúcar uma conserva que se tomará entre
dia, e, em cima, beberá água (p. 21) cozida com pau da Chi-
na ou salsa.
Não bastando, se farão fontes na perna. Se houver falta
de menstruo, no braço ou no toutiço. E aos meninos peque-
nos, no toutiço, e, sendo maiores, no braço.33
Os suores de salsa e pau da China são maravilhosos.

Cap. 6 da Melancolia

A melancolia é uma doidice sem febre, com medo e


tristeza. Esta traz consigo soledade, medo, vigia. Outra se

31
N. E. O copista do Libro FC faz uma rasura nesta parte da receita.
32
N. E. Não há referência à triaga de mitridato nos Libros; neles, a quan-
tidade indicada de triaga de esmeraldas é de duas oitavas.
33
N. E. As fontes no braço na falta de mênstruo, ou no toutiço dos me-
ninos pequenos não são indicadas nos Libros.

60
MEMÓRIA ATLÂNTICA

chama melancolia hipocondríaca, quando os doentes arro-


tam, têm cruezas, deitam muito cuspe pela boca, não cozem
o mantimento.
Esta doença é larga e trabalhosa, e enfadonha de curar.
É causada de fraqueza do estômago e de ventosidades.
É necessário comer bons mantimentos, beber vinho
aguado, purgar-se o corpo com medicamentos brandos, quais
se porão no cap. da febre do sangue podre. Sangrar-se-á o
doente moderadamente. (p. 22)
É bom pôr sanguessugas no fundamento, tomar banhos
de água doce, fazer fonte na perna, e mormente se for mulher
que lhe falte o mês. Confortar o estômago com óleos e unguen-
tos, que se porão no cap. da fraqueza do estômago. Procurar o
sono é bom com os remédios que pusemos no cap. dos frenesis.

Cap. 7 da Apoplexia

Quando uma pessoa cai subitamente doente, sem se sen-


tir, nem mover, nem falar, como morto, e às vezes sem pulso, é
necessário acudir logo a esta doença, que, como nasce de flei-
mas que se puseram no miolo e o afogaram, em breve morrem.
É necessário espertar o doente com fortes esfregações feitas com
sal e vinagre quente, clisteis fortes, feitos deste modo:

R. Rutar. Salviae. betome


majorana. origan. pulegis
fol. sem [dez onças] benedict [onça]
pilular. Coherar [oitava] cu
Sale. fiat clister

61
TRATADO SOBRE MEDICINA

Logo, se for moço e tiver forças, sangre-se da (p. 23) veia


da cabeça, e, daí a 3 horas, de outro braço; e sempre ventosas
secas e sarjadas nas costas, toutiço no mesmo dia, e à noite pur-
ga-se logo, e os remédios hão de ser apresados um atrás outros.
A purga é tomar oitava e meia de pílulas coechias, desfeitas em
cozimento purgativo, e dar-lhes a beber:

R. massa pilular coechiar


et faetidar an [duas onças] et [oitava]
dislue in [quatro onças] de coet. sem
cartham hermodaelil. fol
sem. anissi epolipodi

Nos narizes, se meterão pimenta em pó, tabaco,34 mos-


tarda desfeita em vinagre, onde primeiro ferva arruda, e, para
que vejam se o doente está morto – não se façam os remédios
em morto –, hão de pôr um espelho na boca, copo de água no
peito e lã capeada ou algodão, a ver se move com o bafo.

Cap. 8 da Paralisia

Quando um homem não move nem sente um ou dois


braços ou pés, se chama paralisia. Causa-se de fleimas que
entupiram (p. 24) os nervos que vêm do miolo, os quais, en-
tupidos, não trazem os espíritos a todo o corpo, e ficam as
partes sem sentido ou movimento.

34
N. E. No Libro BN, lê-se “[...] meterão pimenta ou pó de tabaco [...]”;
no Libro FC, consta “[...] meterão pimenta em pó de tabaco [...]”.

62
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Em velhos é má esta doença, porque é quase incurável.


Cura-se com comer coisas quentes, purgar o corpo to-
mando primeiro xarope de mel rosado e xarope de rosmani-
nho, com água de betonica e funcho:

R. mellis rossar et sirup


desthachado an [onça] aqua
salviae et fanicul an [onça]
misse

Purgar-se-á o doente com as pílulas que estão postas no


cap. primeiro, da dor de cabeça fria, ou com esta purga de
garico:

R. agarici [onça] infunde


see. art an [três onças] de coet. folsen
sem Cartam et polipodi
calaturae. adde diaphenic.
[duas onças] catholic [quatro onças] sirup
salut. [três onças] cum ynfusione
fiat potus

(p. 25) Depois é necessário ir dando, um dia e outro


não, três pílulas coechias à noite, três horas depois da ceia.
Tomá-las-á seis vezes.

R. massa pilular Coechiar


[duas oitavas] seamoni [meia oitava] cu-
melle
rozaseo. fiant pilular admodum
cicerrs et aurentur

63
TRATADO SOBRE MEDICINA

Untarão as partes que estão paralíticas com óleo de ar-


ruda, castório, raposa, e com cera farão unguento.

R. oley rutae Castor esculpin


an [onça] cum Cera fiat
unguentum

Tomar suores de salsa e pau da China é estremado re-


médio, por espaço de 20 dias, cuja forma se verá no cap. das
boubas.

Cap. 9 da Inflamação dos Olhos

A inflamação dos olhos se faz de humor quente que cai


da cabeça e sobe do fígado quente.35 É bom sangrar, ventosas
nas costas, purgar com polpa de canafístola.

R. pulp. Cas. [onça] sirup. solut


(p. 26) [três onças] cum de Coet hard
et flor cordial fiat pouts

Depois tomem xaropes de rosas, violado, com água de


almeirões:

35
N. E. Nos Libros, não há menção à cabeça ou ao fígado como fontes
dos humores quentes.

64
MEMÓRIA ATLÂNTICA

R. sirup Roz et Violaran


[onça] aq endivie [três onças] misse

Pílulas de luz e sine quibus são boas deste modo:

R. massa pilular lusis, et


sine quibus. an [meia oitava] diagridie
g. V. cum sirupe Rozato
fiant pilule V. et de aurentur

Se não se achar bem o doente, lançar-lhe-ão ventosas


sarjadas no toutiço, sangrá-lo-ão da mão para temperar o fíga-
do, tomará soros e, se for mal velho, faça uma fonte no braço.
Nos olhos, porá e lavará com cozimento de água de
malvas, violas, porá leite de peito, água rosada, água de ginjas,
e, quando [não]36 bastar, deite pó de açúcar no olho, ou de
açúcar cande, ou de tutia preparada, ou esterco de lagarto, ou
mel rosado, ou xarope (p. 27) rosado,37 ou pó de casca de siba.

Cap. 10 da Belida38 e Névoa dos Olhos

Este último (sic) remédios são bons para comer a né-


voa dos olhos, purgando-se primeiro.39

36
N. E. Nos Libros, consta a palavra “não”, que dá melhor sentido à
prescrição.
37
N. E. Xarope rosado não aparece na prescrição dos Libros.
38
N. E. Nos Libros, o título do capítulo não traz “belida” como denomi-
nação para a doença.

65
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 11 da Dor de Ouvido

A dor do ouvido, zunido, surdez, se faz pela maior par-


te de humor frio e ventoso que cai da cabeça fraca do ouvido.
É necessário purgar o corpo com as pílulas ditas acima,
e se a dor for grande, sangrar donde dói o ouvido. É bom
ventosas, e no ouvido meter óleo de amêndoas doces, de
arruda, de castório, e, se o mal for alongando, bom é tomar
suores de salsa e pau e fazer fonte no braço donde está o ou-
vido doente.

Cap. 12 da Inflamação do Ouvido

A dor de ouvido de coisa quente, ou inflamação, é do-


ença aguda, é perigosa, vem com grande febre e é causada de
humor (p. 28) quente colérico. Sangrar logo do braço donde
tem a dor, ventosas com sangue, purgar com polpa de cana-
fístola, refrescar o corpo com cordeais,40 e, no ouvido, lançar
leite de peito morno. E se a dor apertar muito, pôr sumo de
coentro ou alface misturado com óleo rosado ou de amên-

39
N. E. No Libro BN, lê-se: “Para comer a névoa dos olhos, são bons os
remédios acima, purgando-se amiúde”. No Libro FC, consta: “para co-
mer a névoa dos olhos, sãos bons os últimos remédios acima, purgando-
se primeiro”.
40
N. E. Nos Libros, não se diz como refrescar o corpo, neste caso, com
cordeais.

66
MEMÓRIA ATLÂNTICA

doas, e se vier a lançar matéria, deitar-lhe dentro a água cozi-


da com cevada morna.

Cap. 13 do Fluxo de Sangue dos Narizes

Se o fluxo vem com moderação, bom é deixar sair o


sangue, maiormente em moços, no verão. Se é demasiado,
enfraquece. Para divertir, a sangria é boa, fazendo-a devagar e
pondo o dedo no buraco, e daí a pouco tirar outro pouco. As
ventosas nas costas são belas, e postas nos vazios. Não beba
vinho, evite coisas quentes, coma coisas que apertam e en-
grossam o sangue,41 como se dirá no cap. do fluxo das câma-
ras de sangue.
Para estancar, meterá os pés e os (p. 29) companhões42
em água fria, porá nas fontes emplastro feito de água rosada
com clara de ovo, ou creta43 com vinagre, ou pó de bolo ar-
mênio, ou pó de estancar sangue, e meterá mechas nos nari-
zes, embrulhadas em claras de ovos com estopas.

41
N. E. A recomendação dos Libros difere substancialmente da que aqui
foi apresentada: “Não beba vinho, evite coisas quentes como nozes, que
apertam e engrossam o sangue, como se dirá no cap. de fluxo de câmaras
com sangue”.
42
N. E. No Tratado, consta “campanhoeis” e, nos Libros, “companhoes”.
De acordo com Antonio Morais Silva, o verbete “companhão” refere-se
aos testículos.
43
N. E. No Libro BN, consta “com leite, e com vinagre”.

67
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 14 da Dor dos Dentes

A dor dos dentes se causa de reumas44 que vêm da


cabeça. Se é dor quente e reumas quentes, é bom tomar
gargarejos de leite morno, soro45 ou óleo rosado; e se for
de coisa fria, cozerão alosna, ou arruda, ou alecrim, ou
almecega, ou alguma erva quente em vinho ou aguardente.
E se vier inchar a face de dentro ou de fora e houver fogo
ou febre, o sangrar é bom do braço donde tem a face do-
ente. E se vier a apanhar por dentro, é bom ajudar a natu-
reza com por um figo na boca onde está inchado, ou tor-
nará a fazer gargarejos de cozimento de malvas, violas,
passas, figos, ameixas e tâmaras.
Nas fontes, porão emplastros feitos de (p. 30) claras
de ovos, amassados com incenso, alecrim, almecega, sálvia,
arruda e óleo de arruda e castório.
E sendo caso que a dor repita muitas vezes cruel,
fontes no braço é santo, e confortar o miolo com tomar
suores de salsa e pau da China.

44
N. E. Nos Libros, lê-se que a dor é causada de fleimas que vêm da
cabeça. Vale mencionar que, no Tratado, há uma diferença de grafia
entre a primeira e a segunda menção a “reumas” – Rheumas e reumas –,
provavelmente em função de um erro de cópia.
45
N. E. Soro não é mencionado nos Libros.

68
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Cap. 15 da Esquinência

Esquinência verdadeira se chama um apostema que


nasce dentro da garganta, junto à campainha, causado de
sangue e cópia de fleimas que caem da cabeça, e, muitas ve-
zes, se está vendo a inchação junto à campainha. Conhece-se
porque os doentes não podem engolir e respiram mal.
É doença perigosa que traz grande febre e às vezes afo-
ga como um garrote.
É bom sangrar logo da veia da cabeça, da parte que o
doente tem maior peso, e das veias que estão abaixo da lín-
gua, que são fáceis de sangrar; e ventosas muitas vezes nas
costas, com sarjas, e no toutiço, sarjadas.
(p. 31) Gargarejos de água de tanchagem e arrobe de
amoras, ou leite, ou soro, ou cozimento de cevada com vina-
gre e açúcar. Da botica, virá este gargarejo de arrobe de amo-
ras:

R. Rob. morax. [duas onças]. aq


plantag. lib. l. misse:

Clisteis são bons purgativos, como este:

R. decoet malvar violar.


prunor. hord. beta. [onze onças]
cathol [onça]. oly. ros. [duas onças]
cum sale. fiat clister:

69
TRATADO SOBRE MEDICINA

Purgar é bom depois que o doente está melhor para


evacuar. A causa é humor que está nas veias. A purga é como
está na febre ardente, em cujo cap. se verá.
Se a esquinência é de fora, que incha a garganta, a san-
gria é boa do mesmo braço da parte doente, e untar com
óleos:

R. oley amigdal dulcum


et Camomil. an. [meia onça]

Com enxundia ou manteiga sem sal, unto de porco,


enxundias de pato e outros.

(p. 32) Cap. 16 do Catarro

O catarro é doença conhecida. Se a quentura e a desti-


lação é [sic] quente, como consta dos narizes inflamados,
fogo nos olhos, então é bom sangrar, purgar com maná, ca-
nafístula, como se faz nas febres. Tomar lambedor violado e
da avenca.
Se o catarro é frio, não é boa a sangria. A purga é boa.
Usar de cozimentos peitorais feitos de avenca, alcaçuz, figos,
passas, ameixas e, depois de se cozer tudo, lançar-lhe açúcar.
E se quiserem fazer lambedor, ir-se-á apurando até que dê
ponto de lambedor, e se não, dará um cozimento e ficará
assim para tomar o doente entre dia.

70
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Se o catarro for inoportuno e velho, e se teme alguma


etiguidade com tosse inoportuna, fonte no braço é santa, e
tomar suores de pau e salsa.

Cap. 17 da Asma

A asma não difere do catarro senão quando o doente


resfolega. Se sente no papo um (pág. 33) piado e não pode
esfolegar assentado na cama, os mesmos remédios convém
que no catarro, mas mais fortes, como pó de bofe de raposa
misturado com lambedor de alcaçuz, e tomar lambedor de
avenca e alcaçuz.

R. sirup. liquiris. et capil


Vencr. an [onça]

E se a asma for velha, fonte é bom remédio no braço, e


suar e tomar as pílulas de terementina.

R. terebintum abietim [onça]


fiat secumdum art pilule

Ou tomar a mesma terementina misturada com uma


gema de ovo, óleo de amêndoas doces, ou embrulhada em
uma obrea.

71
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 18 do Prioris

O prioris é um apostema que se faz no peito, de san-


gue colérico e inflamado. Conhece-se pela tosse, dor e febre
grande. É doença perigosa.
Sangrar logo da parte donde dói copiosamente, (p. 34)
tomar lambedores, tisanas, guardar de azedo e frio, untar o
peito com óleo de amêndoas e rosado.

R. oley amigdal, duloiumet


Violar. an [onça]

Com enxundia de galinha, com unguento peitoral,


purgar no fim com maná e polpa de canafístola.

Cap. 19 do Escarro de Sangue

O escarro de sangue se gera de escarro e fleimas salga-


das que caem da cabeça, ou humor quente que rói ou come
as veias do peito. E quando é vermelho e com tosse,46 vem do
bofe; e negro do peito e com escarro negro, vem da cabeça.
Quando é pouco sangue, é de veia roída; quando é muito, é
de veia rota e aberta,47 a qual também se abre por tomar al-

46
N. E. Nos Libros, consta que o escarro de sangue “[...] quando é ver-
melho acontece vir do bofe [...]”.
47
N. E. Nos Libros, não há diferenciação entre muito ou pouco sangue
como há no Tratado.

72
MEMÓRIA ATLÂNTICA

gum peso, cair alguma queda, cantar alto, esgrimir, jogar de


armas.
É perigoso o mal que se vem do bofe. Faz-se chaga no
bofe, é tísico.
Por onde é necessário logo sangrar do braço, salvo vier
por falta do mês, que então (p. 35) é boa a do pé, e sangrar
amiúde e tirar pouco sangue. E todos os remédios que aper-
tam se farão como se dirá nas câmaras de sangue, cap. 26,
assim de bebidas purgas. Ventosas são boas, secas e sarjadas,
clisteis,48 ataduras, esfregações nas pernas, sanguessugas no
sesso.

Cap. 20 da Chaga do Bofe, que é Tísico49

Quando caem escarros salgados da cabeça, ou de escar-


rar sangue, se faz chaga e a tosse não cessa, com febre que,
ainda que pequena, é contínua e o doente se vai emagrecen-
do,50 chamamos tísico.
É doença mortal.
Cura-se com muito açúcar rosado, que alimpa e solda
a chaga, lambedores e cozimentos peitorais que disse no cap.
do catarro. Com goma desfeita em água fria e ao lume quen-
te com açúcar, se fazem caldos. O leite de burras ou cabras51
é soberano remédio; toma-se só pela manhã, em jejum, meio

48
N. E. Nos Libros, não há menções a ventosas ou clistes.
49
N. E. Não consta essa denominação nos Libros.
50
N. E. Nos Libros, “enfraquecendo”.
51
N. E. Leite de vacas também é recomendado nos Libros.

73
TRATADO SOBRE MEDICINA

quartilho, ou mamado da cabra, ou mungido e quente com


açúcar. Depois do leite, não (p. 36) se dorme nem bebe, nem
come daí a 2 horas. Os ovos frescos são bons e unguento
para untar o corpo que está seco, cuja forma se porá no cap.
da febre héctica.

Cap. 21 do Tremor do Coração

A este mal chamam palpitação do coração. Vem de


ventosidade grossa e melancólica que está metida na bolsa do
coração, que o coração está metido nesta túnica que chamam
pericárdio, e o coração quer lançar o mal de si, e, assim, pal-
pita.
É mal grave e se conhece logo, porque, pondo a mão
no coração sobre a teta esquerda, se sente palpitar, e vem
muitas vezes a pessoas que lhe faltam os meses melancólicos.
Os mantimentos que geram a melancolia são maus,
como são vaca, azeitona, queijo, leite, couves, carne de fumo
e outros.
A sangria é boa do braço ou do pé. Se há falta de me-
ses, purgar com as purgas que pusemos no cap. da dor de
cabeça. Ventosas são boas, sanguessugas no sesso (p. 37),
clisteis, e, sobre o coração, porão este saquinho que gasta a
ventosidade e é cordial, e meterão os pós entre tafetá carme-
sim. Tome de pó de alosna, canela, alfazema, duas oitavas de
cada um, raspas de marfim, 3 oitavas de pó de coral, sândalo
aromático rosado, diamargaritão, diachoação, uma oitava de

74
MEMÓRIA ATLÂNTICA

cada um, e borrifá-los-á com vinho fino. E secos os meterão


no tafetá ou pano de linho.
Ou untará a teta direita com banha de flor ou com este
epitema de confeição de jacintos:

R. conserva borragim. [onça]


confect. hijasintum. [onça].
pulediamarg. frig. et aromatici
rozati [oitava] misse

E, se o mal perseverar, bom é pedra bezoar e o pó do


marfim em água de cardo santo, ou borragens; e, em mulhe-
res, as fontes das pernas, e, nos homens, da parte de dentro
esquerda, são boas.

Cap. 22 da Fraqueza do Estômago

Quando as pessoas não cozem o mantimento (p. 38) e


arrotam e trazem água na boca, chamamos fracos de estôma-
go.
Sangrar não é bom. Purgar é útil, tomando primeiro
mel rosado às manhãs e xarope de alosna.

R. mellis Rozat. et sirup


de absinth. an [meia onça]

A purga será com pílulas de azebre, que são de hiera.

75
TRATADO SOBRE MEDICINA

R. mas. pilul de hier. [oitava]


cum. g. V. diagriafiant
septem. et de aurentur:

E toma-las depois de regimento, três de noite, três ho-


52
ras depois da ceia.

R. mas. pilul de hiet et.


masthicinan an. 3. 1 ales
Rhab. et agaritan. [oitava]
cum g. x. V. diagridit. fiant
pilulas admodum
ciseres et de aurentur:

Untar o estômago com óleo de alosna e de hortelã, e


almecega, que é bom.
R. oly absinth. masthic
Et mentha. an [meia onça] pulu (p. 39)
aromatici [oitava] cu cerafiat
Unguentum

Emplastro estomáquico sobre o estômago.

R. emplastri stomachui [onça]


extende super panum coceiri
cum admodum stuti pro
ventriculo

52
N. E. Nos Lihros, não há indicação das horas após a ceia.

76
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Ou fazer um saco para o estômago a modo de colchão,


cheio de pó de alosna, almecega, canela, anis, hortelã aromá-
tico, uma oitava com dez grãos de âmbar.
Vinho de alosna e água de canela confortam muito o
estômago, e o bom mel.

Cap. 23. do Vômito

Da fraqueza do estômago se segue o vômito, quando o


estômago fraco não pode reter a comida ou gera reumas que
nadam no estômago e relaxam as túnicas, e lança o manti-
mento. Curar-se com os remédios acima ditos da fraqueza do
estômago.

Cap. 24. da Colirica passio

Quando se corrompe o mantimento no estômago (p.


40) e se seguem vômitos e câmaras juntamente, chamam os
médicos colirica passio. Gera-se de mantimento corrupto,
ovos chocos, fritos, cuscuz frio, peixe frio, leite, pepinos,
melancias, albricoques, com mantimentos diversos em uma
comida, como saladas, leite, ovos, etc.
Cura-se apertando, confortando, e é necessário acudir,
que é doença apressada. Vem-se com muita fraqueza, falta de
pulsos, a cara como de morto, tremores nos pés, sede grande.
Cura-se como os vômitos. É necessário deitar dois clis-
teis ao dia, de caldo de galinha sem sal, com azeite rosado, e

77
TRATADO SOBRE MEDICINA

ir lançando ventosas na boca do estômago e umbigo, secas,


para reter. Procurar53 sono com silêncio e com pôr unguento
populeão nas fontes.

R. unguenti. Populeonis [onça]

Comer pouco e amiúde coisas que engrossam, como se


dirá nos seguintes capítulos. (p. 41)

Cap. 25. de Câmaras de Sangue54

Por esta doença ser particular no Brasil, onde el Dio te


leve e te conserve, louvando-o e agradecendo-o,55 direi mais
largo em sua cura.
As câmaras de sangue se chama [sic] disenteria, vêm de
humor quente sempre,56 que rói e come as tripas e as suas
túnicas e peles com que estão vestidos, de fogo do fígado, de
coisas quentes.
Conhece-se pelas dores de barriga, puxos e sangue pelas
câmaras, ora misturado com os excrementos, ora só sem eles.
Há três espécies de câmaras de sangue: a primeira quan-
do vêm raspaduras de sangue misturadas com moncas; a se-
gunda quando vem sangue com matéria; a terceira quando

53
N. E. Nos Libros, lê-se “provocar”.
54
N. E. Nos Libros, o Capítulo 25 é o “de Câmaras”, apresentado no
Tratado como capítulo 26. Manteve-se a sequência indicada no Tratado.
55
N. E. Esta invocação a Deus não consta nos Libros.
56
N. E. “Sempre” não consta nos Libros.

78
MEMÓRIA ATLÂNTICA

vêm sangue, matéria e os pedaços das túnicas das mesmas tri-


pas.
Em todas há dor na barriga intolerável, puxos cruéis, vi-
gia, fastio mortal, febre contínua por razão da chaga interior,
vômitos, angústias, desmaios, inquietações, (p. 42) e, se dura
com febrinha, se vai extenuando o corpo e se faz héctico.
Este mal é carniceiro e largo. É necessário acudir logo
em começando, que, depois que a chaga se faz mais funda e
cavernosa e podre, tarde se acode.
O doente estará em câmara fria. A comida seja mais so-
bre o frio que quente: galinha, capão, carneiro cozido com
arroz, pão torrado, cervas, nêsperas, marmelos, e água seja
primeiro ferrada, com que se coza a carne. O caldo de perdiz e
sua carne é maravilhosa [sic]. À entrada de toda a comida,
coma marmelada ou perada, ou uma colher de arroz frio. Pei-
xe pouco ou nenhum, salvo por apetite e assado. Toda a con-
serva azeda é má, como lima, limão agro e cidra, laranja que é
nociva à chaga. Pão leve é bom. Aletria de ovos ou ovos duros
cozidos em vinagre, a água das claras dos ovos batidos com
açúcar é milagroso remédio, água de marmelos, os mortinhos
cozidos com açúcar. Todas as coisas quentes e que (p. 43)
relaxam são más: alho, cebola, aipo, mostarda, porros, amei-
xas, couves, borragens, alfaces, almeirões cozidos, nozes, pas-
sas, tâmaras, figos, avelãs, amêndoas.
A bebida seja água cozida com alcatira, que se chama
nas boticas tragacantum. Tomar meia onça e cozê-la em três
canadas até que mingue meia, e depois ferrá-las, e não a cozerá
com açúcar, que relaxa o ventre.

79
TRATADO SOBRE MEDICINA

O vinho é mui danoso, salvo na extrema fraqueza, e seja


aguado o vinho cascarrão, que aperta; quando não abranda,
pode-se usar dele.
Embira se a houver ferrada baixa.
De medicamentos, todo o toque está no princípio, que
logo apertamos, sendo assim que logo havemos de lavar a cha-
ga com clisteis, os quais se fazem a cura.
Usaremos logo de clisteis lavativos, de cozimento de ce-
vada ou soro, e depois desataremos açúcar rosado, e com açú-
car e gema de ovo o faremos, e, não havendo (p. 44) açúcar
rosado,57 lançará duas onças de xarope rosado ou de mel rosa-
do, e em estes clisteis insistirão alguns dias.
E logo se houver febre, sangrará da veia da arca do braço
com mais ânimo. E, se não houver febre, ou sendo pouca,
sangrará, mas com maior moderação, e assim os clisteis se
deitarão à noite. E três horas depois tomará o doente goma
desfeita em água ferrada com açúcar, e, não havendo goma,
façam tisanas de cevada, pão torrado ou caldos de farinha de
arroz bem sutil.
Em este tempo, untará o estômago com óleo de marme-
los e pós de coral por cima, rosas, almecegas, sândalos, maçãs
de ciprestes. Os óleos são esses:

R. olei. citoncor. et absinth


an [meia onça]

57
N. E. A gema de ovo e a possibilidade de substituição de açúcar rosado
por duas onças de xarope ou mel rosados não aparecem na receita dos
Libros.

80
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Os pós são estes:

R. pulu. coral. Rubri.


masthie. Santalor. nucum sipre
si an [oitava]

Estes pós, com miolo de pão torrado e os (p. 45) óleos e


marmelada e vinagre forte e hortelã, fazem um emplastro que
se porá no umbigo, boca do estômago e detrás das costas.
Bom é também unguento da condessa.
Bom é uma fatia de pão torrado ou vaca borrifada com
água rosada, ditos pós e óleos.
Um marmelo usado e machucado com vinagre forte fer-
rado e ditos óleos e os pós.58
Indo o mal por diante, é necessário preparar o humor
quente para se purgar. Assim, irá o doente tomando os lambe-
dores de marmelos, mortinhos, dormideiras, rosas secas com
pós de bolo armênio misturado.

R. sirup. ros. sicar. mistillor.


papaver. et eytoncor. an [onça]
pulu. boliarmeny. et. trotiscos
de. charabe. an [meia oitava] misse:

E a purga soberana é ruibarbo torrado, dada de três ou


dois dias, em que não purga muito, mas conforta e é bebida
fácil.

58
N. E. Nos Libros, não consta o uso de marmelos com os pós e óleos.

81
TRATADO SOBRE MEDICINA

(p. 46) E com os mirabolanos torrados fica melhor. Faz-


se assim:

R. Rhab. elect. [meia oitava] pulveris


cortie. mirobalanor citrinior
[escrópulo]. torrefiant modisi etadde
sirup. citoncor. [onça] et cum a
qua Ros. fiat potus:

E não havendo para a purga onde se desfazem os pós


dos mirabolanos, água rosada, seja de tanchagem ou cozimen-
to de mortinhos, ou de arroz, ou de rosas.
A água cozida com ruibarbo torrado e ferrada é boa.
Já neste tempo, os clisteis vão59 apertando. São excelen-
tes os clisteis de leite ferrado duas vezes ao dia, ou fazer cozi-
mento de tanchagem, mortinhos, arroz, cevada torrada, maçãs
de ciprestes, e depois, em meio quartilho deste cozimento,
lançarão duas claras de ovos, sebo de veado, se houver muita
dor, e óleo de marmelos, e se fará clistel.
Não dormindo, bom é provocar sono com amendoadas
de leite de dormideiras e (p. 47) açúcar.
E, se o doente não melhorar com nada, o leite de cabra
ou vaca ferrado é único, dado só pela manhã em jejum, e de
dia arroz com leite ferrado.

59
N. E. No Libro FC, lê-se que “os clisteis, não apertando, são excelentes [...]”.

82
MEMÓRIA ATLÂNTICA

A sangria da mão direita,60 em uma cadeira furada, e


tomar o bafo do sumagre, ou rosa, ou mortinhos, ou pedra
hume em pó é bom.
E, quando não bastar, lançar ajudas de leite ferrado com
desfazer quatro grãos de ópio. É bom o redanho tirado quente
do carneiro, bode ou vaca sobre o umbigo.

Cap. 26. de Câmaras

Câmaras não diferem de câmaras de sangue, senão que


as de sangue vêm de uma chaga nas tripas donde vem sangue e
depois matéria. É doença perigosa.
Cura-se como as câmaras de sangue.

Cap. 27. dos Puxos

Os puxos se curam do mesmo modo, com (p. 48) san-


gria, clisteis, óleos e bafos.

60
N. E. Nos Libros, segue-se da seguinte maneira: “[...] e único remédio,
feita no fim, tirar duas onças de sangue e, sentando-se em uma cadeira
furada, tomar o bafo de vinagre, ou rosa [...]”.

83
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 28. da Cólica

A cólica se faz de ventosidades que se gera [sic] na tripa


que chamam colo. A comida será quente. A água cozida com
canela e anis. Os clisteis são bons de cozimento de macela,
coroa de rei, erva doce, farelos, linhaça galega, com hiera
piera e mel.

R. decoet anisi. Camomili.


furfuris. melilot. sem lin [onze onças]
olei. Camomil, etaneth.
hier pierae, et benedict. an.
[meia onça] eu Sale, et [onça] rodomel
fiat Clistel:

Clistel de urina de menino fresca com mel e aguardente.


Uma bexiga posta sobre a dor, cheia de cozimento das
ervas de que se faz o clistel, deste modo:

R. de coet. parietar. sem


lini melilot. camomil et
faenu groci. Lib iij prosise
in Vesicam. bovinam
(p. 49) cu [onça]. olei amigdali dulsem:

Pôr sobre a parte que tem a dor um pano de urina


quente, uma filhó feita de dois ovos, frita em óleos de endros

84
MEMÓRIA ATLÂNTICA

e macela, ou alfavaca de cabra, ou redanho tirado do carneiro


ou vaca, ou sacos quentes de farelos, milho, sal.61
Continuar ajudas.
Na cólica, não se sangra, salvo se a dor aperta e o doen-
te é moço e o tempo quente.
Purgar não convém no princípio, mas, se não obedecer
a dor, o mechoacão é bom duas oitavas em vinho.

R. Radisis mechoacam. ij.


pulver. esentar subtilisime:

Água de canela é boa, ardente de anis, óleo de amên-


doas doces pela boca, vinho com óleo de copaíba.

Cap. 29. da Inflamação do Fígado

Quando na parte direita há dor, digo, vazia direita,


com febre grande e (p. 50) tossinha seca, se chama inflama-
ção do fígado, cuja causa é sangue inflamado ou podre. É má
doença e perigosa.
As sangrias são boas da parte direita,62 com óleo rosa-
do, água rosada, unguento sandalino, que assim se chama na
botica.

61
N. E. Milho e sal não são citados nos Libros.
62
N. E. Nos Libros, complementa-se a informação com “e untar o fígado
que está na vazia direita”.

85
TRATADO SOBRE MEDICINA

A purga seja no fim, já remetida a febre. Os cordeais


são bons, e tisanas e todos os remédios que se aplicam nas
febres, como se verá no cap. 49, da febre ardente.

Cap. 30. da Opilação do Fígado

A opilação do fígado é causada de humor grosso meti-


do nas veias do fígado.
Conhece-se porque incha a barriga, os olhos, os pés, há
dureza sobre o fígado.
A urina é branca, faltam os meses. É doença perigosa,
de que se gera hidropsia.
É bom beber água cozida com agrimônia, avenca, dou-
radinha. Agrimônia se chama eupatorium, a avenca capillus
veneris (p. 51), a douradinha as pleniatta.
Sangrar pouco, purgar muito, com purgas que se porão
no cap. da terçã, nota ou folha cap. 51. Depois, tomar apo-
zemas de raízes de almeirões, aipo, língua de vaca, alcaparras,
folhas de sene, e tomar meio quartilho quente cada manhã:

Rp. fol sen. [meia onça]. epithim polipo


dy an [duas oitavas] sem cartham
[duas oitavas]. sem. frig. an [uma oitava]
flor.
cordial. [duas oitavas]. radis. endivi. Bo-
rag. eringis. apy. et caparor. an [meia
onça].
cupatoris. aspleni. et
sem adianthi. an M. i. anisy

86
MEMÓRIA ATLÂNTICA

et sem feniculiam. [duas oitavas]


coque secunda art. in
suffecienti. aq quantitate
remancat lib incolatura
ynfunde. agarisi [onça]
cola. et adde sirup. bisantini
[meia onça]. et cum sachar buliant
et serventur vsui:

É bom untar a barriga e o fígado63 com unguento (p.


52) de opilativo e óleo de alosna e alcaparras.

R. Unguenti. de Opilativi.
[onça] oley absinth. et Caparor
an [onça] cu sera fiat
Unguenti :

Cap. 31. da Icterícia

A icterícia se chama quando o corpo está amarelo. A


causa desta doença é principalmente opilação do caminho do
fel, que não pode passar a cólera e se derrama pelo corpo.
Outras vêm de muita quentura do fígado, que gera muita
cólera e a lança ao corpo. Outra vez lança a natureza a cólera
no fim da doença ao corpo, e fica o doente são. Outra vez
vem de veneno, ou dado ou de mordeduras de animais peço-
nhentos.

63
N. E. Nos Libros, recomenda-se untar, juntamente com a barriga, “a
vazia”, ou seja, o quadril.

87
TRATADO SOBRE MEDICINA

Conhece-se facilmente, e as águas estão de sangue,


porque a cólera toda vai à veia da urina que não passa ao fel.
É doença que, vindo de opilação, e em velhos é perigo-
sa, traz consigo ou ameaça hidropsia.
Se vier de opilação, cura-se como opilação (p. 53) do
fígado no cap. acima. Se vem por quentura do fígado, cura-se
com sangria, purga,64 como no cap. da febre ardente se verá,
e água cozida com ruibarbo é bela. Se vem por termo da do-
ença, não fazer nada é melhor, só lavar o corpo, ou com ba-
nho ou em rio, é bom para tirar a cor do couro. Se vem de
peçonha ou de mordedura de algum animal peçonhento,
como víbora, a triaga é excelente, e pedra bazar; piolhos são
bons em gema de ovo.

Cap. 32 da Hidropisia

Bem se conhece o hidrópico na inchação da barriga e


na sede.
É doença fria e mortal, causada de fraqueza do fígado e
pobreza do calor natural.
1. Há 3 diferenças: uma se chama Aseites, quando in-
cha o ventre e está duro e teso; esta é hidropisia de água, e se
sente andar a água ondeando; outra se chama 2. Timpanites,
que, batendo no ventre com a palma da mão, soa como se
tocassem um tambor, que em latim se chama timpanum;
outra, (p. 54) 3. Anasarca, quando todo o corpo está inchado

64
N. E. No Libro FC, a purga não é recomendada.

88
MEMÓRIA ATLÂNTICA

e fofo e alvo, os olhos e os pés principalmente. A Aseites é


mais perigosa, por muitas razões.
1. A cura do Aseites é comer coisas quentes, ainda que
haja febre; vinho, água cozida com canela, da agrimônia, pau
da China ou salsaparrilha; a comida seja seca,65 assada, pássa-
ros do monte, passas; a bebida mui pouca, e aqui consiste
tudo em purgar o corpo com pílulas de hiera e de agárico.

R. masse pilular de hiet. et.


agarico. an [meia oitava] cu. g. V.
diagridis. fiant septem et:

Bom é ir tomando mel rosado pela boca, entre dia, e


estes xaropes de alosna e agrimônia:

R. Sirup absinth. et copatoris


an [onça]. misse:

Purgar com mechoacão é bom em vinho, mas a purga


é boa que tira a água dos hidrópicos, entre os quais remédios
é o mais (p. 55) brando. O sumo de raiz de lírio de cor de
céu, porque todos os medicamentos que são bons para tirar
as águas66 são fortes, só este é o mais brando; dá-se 2 vezes na
semana, e entre dia. Depois, é necessário tomar o mel rosado.
Prepare-se deste modo:

65
N. E. Nos Libros, não há recomendação de comida seca.
66
N. E. Os responsáveis pelas edições dos Libros utilizam, ao invés de
“águas”, o termo “sangrias”.

89
TRATADO SOBRE MEDICINA

R. Succi radie. ircos [onça]


rodomel. [onça]:

E se for pessoa fraca, não se dará mais que meia onça,


com uma onça de mel rosado.
E depois irá tomando talhadas de diarrodão abade e
diacurcuma.

R. Spesior diachod. et.


diacurcumae. an [onça] cum
Jacharo fiat tabella:

E o sumo de raiz de lírio de cor de céu, o tomará 6 ou


7 vezes, espaço de um mês.
Suar com salsa e pau é bom.
Abrir fontes nas pernas é bom remédio, porque, às ve-
zes, baixa por ali a água.
O furar o ventre com uma agulha para tirar a água67 o
aconselham muitos médicos, o qual remédio, se se fizer cedo,
aproveita; (p. 56) mas como se faz já no cabo que as forças
estão debilitadas, morrem todos, porque, com a evacuação da
água, se evacuam muitos espíritos e morre o doente.
Meter o doente em águas minerais, que chamam cal-
das, é bom por espaço de muitos dias.
2. A outra espécie, que se chama Timpanias, e Anasar-
ca, se cura [sic] com gastar ventosidades. O regimento seco é

67
N. E. Não há nos Libros a recomendação de furar o ventre. Neles, o
conselho dos “muitos médicos” é fazer fontes nas pernas.

90
MEMÓRIA ATLÂNTICA

bom, o vinho generoso, água de canela, anis ardente bom,


purgar com mechoacão é bom.
Deitar clisteis que gastem ventosidades, como dissemos
no cap. da cólica, é singular remédio, de urina com fermen-
to, gista,68 sal, mel e pó de cominho. Suores de pau e salsa
são maravilhosos.
Untar a barriga com óleos e alcaparras, unguento de
agripa e outros.

R. Unguent. Agripa. [onça] olei


Caparor, et absint an [meia onça]
Unguent. diopilatius sucor [onça]
cum sera fiat Unguentum:

(p. 57) Esterco de cabras desfeito em vinagre forte,


posto no ventre, é bom.69

Cap. 33 da Opilação do Baço

A opilação do baço logo se conhece que, da banda es-


querda, esta dureza se vê com a mão. As cores são más, o
doente se enfraquece. Curar-se-á logo, porque pode fazer
hidropisia. Com os mesmos unguentos e purgas, primeiro se
purgará o doente, que dissemos no cap. da opilação do fíga-
do.

68
N. E. Possivelmente relativo a gist, levedura na língua holandesa.
69
N. E. Esta informação não consta nos Libros.

91
TRATADO SOBRE MEDICINA

E assim, nesta opilação como na do fígado, tomar o


aço é bom, como se dirá no cap. 40 da retenção do mês.

Cap. 34. da Retenção de urinar

Retém-se muitas vezes a urina por humores que ento-


pem os caminhos por onde urinamos, e a estes caminhos
chamam os médicos uretras, e de ventosidades. É bom guar-
dar de beber muito, e seja vinho, se não houver febre; e ainda
que não haja, se o mal apertar, bom é sangrar do braço e
depois do pé, ainda que seja homem. Ajudas são boas que
purgam as fleimas e gastam (p. 58) ventosidades, que disse-
mos no capítulo da cólica, e purgar como ali dissemos.
Untar as virilhas e grãos entre o sesso com óleos de
amêndoas amargas e alacrães.

R. olei amigdal.amarar. et. camomil


an [onça] olei scorpion [meia onça]
misse:

Untar com borras de azeite, óleo de copaíba, aguarden-


te com azeite quente,70 onde fervam alhos, cebolas e rábanos.
A terementina pela boca, em gema de ovo, com óleo
de amêndoas, é boa. E quando o mal for grande, meterão o
doente nu71 em uma tina até os peitos, em um banho feito de

70
N. E. Nos Libros, não há menção ao azeite quente.
71
N. E. Não há menção à nudez do doente nos Libros.

92
MEMÓRIA ATLÂNTICA

cozimento de que é fanugrecum,72 linhaça que é semem lini,


folhas de rabão, alfavaca, artemísia, erva doce e cebolas e
alhos machucados e _____73 canadas de água; lançará uma
de azeite e meter-se-á o doente por espaço de meia hora,74 em
ele estando quente.
O eletuário que chamam litontribon é excelente, lan-
çando os pós no vinho ou caldo.

R. electuar. litontribon [meia onça]75

(p. 59) Cap. 35. do Ardor da Urina

O ardor da urina é causado de fogo dos rins e fígado.


É doença em velhos incurável, e em moços cura-se
com coisas frias, sangria do braço, do pé. Purga como nas
febres. O soro é bom, tisanas, untar os rins com unguento
rosado, leite de peito, água rosada. Banhos de água doce são
excelentes, água destilada de flor de malvas e de flor de favas,
e, se não bastar, fonte na perna direita.

72
N. E. Segundo as transcrições dos Libros, fanugrecum seria um cozi-
mento de alfaces.
73
N. E. No Tratado, há uma lacuna, um espaço propositalmente deixado
em branco pelo transcritor; nos Libros, o responsável pela edição não
mantém o espaço, substituindo-o por uma quantidade específica: dez
canadas.
74
N. E. Nos Libros não há referência ao tempo de permanência do doen-
te no banho.
75
N. E. A receita não consta nos Libros.

93
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 36 da Pedra dos Rins

A pedra se gera do fogo dos rins e humores grossos.


Antes que se gerem, é bom o regimento guardar de maus
mantimentos, e, atravessando-se nos rins com dor, são bons
os clisteis que pusemos na cólica, sangrar de pé,76 e purgar; e,
se retém a urina, fazer os remédios que se apontam no cap.
da retenção da urina.

Cap. 37 de Urinar Sangue

Urinam sangue os velhos e moços por (p. 60) fraqueza


dos rins, que não podem apartar o soro, que é a urina do
sangue. O sangrar no braço é bom, e não purgar, mas usar
dos remédios que se porão no cap. do estancar sangue pela
boca é bom.

Cap. 38 de Lombrigas

As lombrigas se geram de humor grosso e de leite, de


coisas doces. Contra elas é bom o pó da Coralina, o sumo do
alho, o azebre, a farinha dos tremoços, o pó de alosna, dado
isto pela boca ou posto no umbigo, a modo de emplastro,
misturado com fel de vaca ou outro qualquer, vinagre forte

76
N. E. No Libro, há referência para sangrar, também, no braço.

94
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ou azebre. Se chama aloes em latim a água cozida com rui-


barbo. Lançar 2 clisteis, um de leite e açúcar, ou água de
cevada e açúcar, para chamar as lombrigas ao sesso, e depois
lançar outro de leite e azebre para as matar. O pó do pau de
cabra,77 que é amargoso como fel, que lá há no Brasil, é úni-
co a água cozida com ele.

Cap. 39 das Almorreimas

As almorreimas se geram de sangue (p. 61) melancóli-


co que vem às veias do sesso. Quando purgam moderada-
mente, é bom e é saúde, mas se se evacua o sangue demasia-
damente, enfraquece.
É doença fastidiosa e, se dura com a cópia do sangue,
muito que se purga se enfraquece o fígado e se resfria e se faz
hidropisia; se assim for, que se purga muito, se usará todos os
remédios que põem no fluxo do sangue pela boca.
E se incharem com dor, logo sangrar no braço e pé, e
acudir a dor com pôr uma pena de galinha dentro do sesso,
untando78 com leite de peito, óleo rosado, unguento rosado e
populeão, ou água rosada ou tanchagem morna.

77
N. E. Apesar das inscrições presentes nos Libros, que indicam o ingre-
diente como pau de cobra, acredita-se, a partir da grafia do Tratado, que
se refere ao arbusto Pau-cabra, Trema orientalis. Para mais, ver o glossário
ao final da obra.
78
N. E. Nos Libros, lê-se “untada”, indicando que as fórmulas seriam
postas na pena e não no sesso.

95
TRATADO SOBRE MEDICINA

E se a inchação for grande e a dor e ardor grande, po-


rão sanguessugas sobre as almorreimas, que é grande remé-
dio; e guardar de lhe por lanceta para vazar o sangue, que,
com lanceta, não se pode depois vedar o sangue, ou fica uma
fístula.
Para secar, se faça um unguento de (p. 62) alvaiade, de
que se chama cerusa, misturado com unguento rosado e ge-
ma de ovo e manteiga sem sal, ou fazer bafos, que tomará de
cozimentos de mortinhos, alosna, maçãs de ciprestes, pedra
hume.

Tratado breve das doenças das mulheres

Cap. 40 da falta do Mês

As que comem barro, cal e canas, as que passaram do-


enças e comem coisas frias, se lhe engrossa o sangue e os ca-
minhos de madre, e, assim, não pode vir bem. Para curar este
mal, será advertência universal que toda a doença que vier e
for causada de falta de mês, ou com febre ou sem febre, sem-
pre se começará a primeira sangria pelo pé e depois se fará do
braço.79
Antes que se comece a provocar o mês, se purgará o
corpo, precedendo uma sangria, e depois se fará as apozemas
postas no cap. acima, da opilação do fígado.

79
N. E. Nos Libros, não há referência aos lugares para se realizarem as
sangrias.

96
MEMÓRIA ATLÂNTICA

O remédio experimentado é o aço, o qual (p. 63) to-


marão uma oitava de pó do aço, e a lançará em água cozida
com avenca, ou agrimônia, ou a douradinha, e assim a bebe-
rá com água o doente em jejum, e, depois, bem arroupada,
andará uma hora pelos campos e virá para casa e se aquietará
na cama; e assim o fará 15 ou 20 dias, até que tome cor no
rosto, ou o tomará em lambedor da avenca ou alcaçuz.

Cap. 41 do Mês demasiado

Se vier muito mês à mulher, se usarão todos os remé-


dios que apertam,80 que se põem no cap. do sangue pela boca
e câmaras de sangue.

Cap. 42 da Afogação da Madre

Quando as mulheres, por causa dos vapores da madre,


ficam amortecidas e desmaiadas e tremem e tem vascas,
chamamos afogação da madre.
A causa é o mês represado ou o esperma corrupto me-
tido na madre. Assim, por esta causa, as maduras virgens e as
viúvas são treitas deste mal.
(p. 64) Dando o acidente, é bom acudir logo. Perfu-
mes e cheiros maus nos narizes, fumaças de papel queimado

80
N. E. Os Libros não fazem referência a remédios que apertam, apenas
aos que constam nos capítulos citados.

97
TRATADO SOBRE MEDICINA

de solas de sapatos e mechas queimadas; meter dentro da


boca da madre bons cheiros, algalia, almíscar, âmbar embru-
lhado em algodão; ventosas dentro, nas pernas, abaixo do
umbigo secas; clisteis como na cólica e, se vier de o mês fal-
tar, sangrar no pé.

Cap. 43 dos meses brancos

Quando as mulheres purgam humores fleumáticos pe-


la madre, chamamos meses brancos, que correm como go-
ma.81
É má doença e faz as mulheres estéreis, que, com a
muita umidade, não podem reter a semente do varão.82
Purgar como na retenção do mês,83 suar com pau da
China e salsa para secar; beber pouco.

Das doenças das juntas

Cap. 44 da Gota

Dor da gota é dor de todas as juntas, (p. 65) ombros,


joelhos, anca, e as juntas dos pés84 e mãos.

81
N. E. Nos Libros, não consta que os humores correm como goma.
82
N. E. Nos Libros, indica-se que a doença impede que as mulheres
retenham o mês.
83
N. E. Nos Libros, não há indicação de purga como na retenção do mês.

98
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Conhece-se pela dor, inchação da parte, fogo e verme-


lhidão.
É necessário sangrar. Se estiver no braço, há de se san-
grar do outro braço são; e se estiver no pé direito, sangrar do
braço direito, se no esquerdo, do braço esquerdo. Nunca se
sangrará o doente da perna ou braço donde tem a dor.
A purga é boa quando a dor se vai remetendo.
A causa deste mal é cópia de humor, quente ou frio, e
é mal incurável se se envelhece.
Na parte donde está a dor, se porá, quando houver a
força da dor, uns panos de leite de peito com água rosada,
clara de ovo, e se houver grande dor, pôr-se-á unguento po-
puleão.
Se a dor for causada de humor frio, untarão com óleo
de malva e minhocas.85
E assim farão sempre quando a dor for na ciática, que
é a anca, porque então nesta (p. 66) ciática se sangrará o do-
ente do braço e depois do pé, e irá untando-se com os ditos
óleos.
Se a gota for velha,86 é bom suar com pau da China.

84
N. E. Nos Libros, especifica-se “dedos dos pés e mãos”.
85
N. E. Ainda prescrevendo para a parte onde está a dor, os Libros recei-
tam, logo em seguida ao unguento populeão, untar com óleo de macela e
minhocas.
86
N. E. Nos Libros, indica-se o uso de pau da China nos casos de gota
vermelha, e não velha.

99
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 45 do Morbo gálico que é Boubas87

Do ajuntamento com homem ou mulher viciada, se


gera este mal, ou de dormir com pessoa galicada, ou beber,
ou mamar.
Se é por ajuntamento, pela maior parte é na verga o ví-
cio, e na madre, e assim se faz esquentamento e se purga ma-
téria de diversas cores pela verga ou madre, com ardor.
É bom sangrar no pé, purgar e refrescar o corpo, como
dissemos no ardor de urina, e não tomar remédios para es-
tancar as matérias, que este humor rebatido para dentro faz
mil males de chagas interiores.
Nascem também encordios, que são inchaços nas viri-
lhas, que fazem febre e dor grande. Se assim for, a sangria do
pé é boa, da parte donde está o inchaço.
(p. 67) Há de se procurar que venham a fazer matéria,
porque, como o humor é grosso, é bom que se venha amadu-
recer; assim que se untará com óleo de cebola cecem, e que se
chama de lírios, macela e de endros; e, quando não, pô-los-
ão um emplastro feito de malva, cozidas em malvaísco, unto
de porco, farinha de trigo, azeite rosado, gema de ovo com
fermento, um par de figos e umas feveras de açafrão. E se
estiver duro, bom é lançar no emplastro 2 corações e umas
cascas de cebola assada; ou pôr-lhe emplastro basilicão ou de
aquilão, e é bom, depois de estar aberto, que corra a matéria
muito tempo, que assim fica o corpo mais preservado.

87
N. E. Nos Libros, não há indicação deste sinônimo da doença.

100
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Há, depois, dores nos ombros e todas as juntas, que


afligem mais de noite que de dia. Chagas na boca, no céu da
boca, caem os cabelos, para os quais males são 2 remédios
famosos, um de suar com salsa ou pau da China, o outro é as
unturas de azougue.
Os suores são mais seguros. Tomam-se 20, 30 dias, e é
necessário guardar regimento (p. 68) seco. Comer passas,
amêndoas, biscoito e purgar-se primeiro com confeição ha-
mec.

R. Comfect. hamec. [duas oitavas] cathol


[três oitavas] sirup solut [duas onças].
cum de coet. fol. Sen. et prunor
fiat potus:

Os suores se fazem deste modo: tomará uma onça ou


onça e meia de salsa, ou a metade de salsa e pau outro tanto,
e lança-la de molho uma noite em 3 canadas de água com
cevada; em um pano de flores cordeais, coza até minguarem
2 canadas, e, deste cozimento, tomará o doente um quartilho
pela manhã e outro à tarde, e se meterá nu bem coberto na
cama para suar, e depois se a limpará, e daí a uma hora co-
merá assado, com amêndoas e passas, e beberá a água segun-
da que se faz da mesma salsa que cozeu e se torna a lançar
logo a cozer em 3 canadas e dá uma boa fervura.
O doente, se não pode ou não quer suar, é necessário
tomar salsa em pó com (p. 69) pó de folha de sene88 e açúcar;
e assim, entre dia, irá tomando destes pós e bebendo a água

88
N. E. Consta, no Libro BN, “folha de cana”.

101
TRATADO SOBRE MEDICINA

de salsa; ou fará com o pó de salsa e pau da China uma con-


serva que tomará em jejum, uma colher e outra à noite, com
água cozida com salsa; e assim irá tomando 30 dias.89 Faz-se
a conserva deste modo:

R. similasis aspara. [onça] radicis


chinae. [meia onça] fol sene [meia onça].
biscoeti. [meia oitava] omnia pulveri
sentur subtilisme et cu sacharo
excipiantur et fiat

Conserva:
Outro remédio é [sic] as unturas para as quais a cura
das chagas é necessário chamar cirurgião esperto.90

Das doenças da pele

Cap. 46 da Sarna e prurido

A sarna se faz de humor melancólico, e o prurido, que


é a comichão, de humor mais delgado. A causa destes males é
quentura do fígado.
(p. 70) As sangrias são boas; o purgar com confeição
de hamec, que purga o humor queimado e melancólico; os
soros são belos, maiormente se deitarem neles flores cordeais

89
N. E. Nos Libros, a indicação é de 20 dias.
90
N. E. Os Libros referem-se a “um cirurgião perito”.

102
MEMÓRIA ATLÂNTICA

e folhas de sene, uma oitava de cada um, de molho a noite


nos soros; a sangria da mão é boa; os banhos de água doce
em tina é único remédio, e depois untar com unguento feito
de sumo de laranja ou limão, manteiga e terementina lavada
com água rosada, azeite rosado, vinagre rosado, sumo de
molarinha, se a houver, meia onça de estoraque líquido, al-
vaiade tutia preparada e com 2 gemas de ovos, se misture
tudo.
Se for a sarna rebelde, o sumo de tabaco, que se chama
erva santa, misturado com óleo rosado é belo remédio.

Cap. 47 dos licensos

Os licensos se fazem de humor melancólico. Sangria é


bom; purga de conserva de hamec, como dissemos no morbo
gálico, o soro a fazê-los vir a furo, com os emplastros (p. 71)
de encordios.

Cap. 48 das Alporcas91

Bem sabes o segredo das Alporcas, a quem os cirurgi-


ões crucificam com cautérios e fogo e ferro sem proveito.

91
N. E. Nos Libro BN, o primeiro Cap. 48 é “da Febre de Sangue infla-
mado”, seguido do capítulo “das Alporcas”. Entretanto, nos três manus-
critos confrontados, há a repetição da numeração “48” em dois capítulos.

103
TRATADO SOBRE MEDICINA

Das febres

Cap. 48 da Febre de Sangue inflamado

A febre de sangue podre se conhece porque há grande


dor de cabeça, quentura por todo o corpo, vermelhidão, sede
e fogo pelo corpo.
A cura é refrescar o corpo com água cozida com cevada
ou tamarindos, tisanas. Sangrar logo uma, 2 e 3 vezes. Cor-
deais são bons, feitos de água de azedas, almeirões, borragens,
com xarope de limões, borragens e granadas e pó de diama-
garitão frio, ou sândalo vermelho, deste modo:

R. Sirup de sueco limon. granator


et endiu an [meia onça] aqua acetosat.
et buglos an [meia onça] puludiamarg.
(p. 72) frig. [escrópulo] santalor
Ruleor [meia oitava]. misse:

Purgar no fim, em declinando a febre, com canafístola:


R. pulp. ea et tamar. an [meia onça].
sirup Solut. [oitava] cu decoet. hord
tamarindor. et pronor. fiat potus:

Não se indo a febre, os soros são bons. Clisteis de


ameixoada, feitos de cozimento malvas, violas, ameixa, ceva-
da e com meia onça de polpa de canafístola e óleo rosado,
gema de ovo e açúcar. Se faça deste modo:

104
MEMÓRIA ATLÂNTICA

R. decoet. Viol. Malvar. hord


prunor. [doze onças] pulp. ca [cinco oi-
tavas] oley ros. et Violar. an [onça] cum
Sacharo et parum sal. fiat Clister:

Se houver muito fogo, podem cozer as ervas com um


frangão92 e, se estiver o doente fraco, com galinha. Se não
bastar, é bom uns apozemas feitos de flores cordeais, folhas
de alface, ameixas,93 cevada, pevides de melão, de melancia;
cozimento disto em uma canada até que mingue (p. 73) em
meia e, com açúcar, torne a cozer.
A sangria da mão é boa.
Untar o fígado com unguento sandalino desfeito em
água rosada ou leite de peito.
Lavatórios nos pés são bons feitos de cozimento de
malva, violas e cevada.

Cap. 49 da febre de Sangue podre, e ardente

Não difere esta febre da de sangue inflamado, senão


em ser febre com mais eficácia de acidentes, na qual se acudi-
rá do mesmo modo que dissemos no cap. arriba.

92
N. E. Os Libros indicam cozimento com frango.
93
N. E. Nos Libros, as ameixas não são indicadas.

105
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 50 da Terçã Esquisita

Esta febre é feita de cólera e assim se chama terçã por-


que repete de terceiro em terceiro dia e tem um dia de folga,
livre de febre. Vem com frio, vômitos, sede; despede-se com
suor. É febre sem perigo.
Os remédios são os mesmos que da febre de sangue in-
flamado, só diferem que a comida e bebida e remédios se
farão no dia e hora da folga, e a comida será cinco horas an-
tes da sezão.94

(p. 74) Cap. 51 da Terçã falsa

A verdadeira terçã se faz de cólera fervente; a falsa ter-


95
çã se faz de cólera com mistura de fleima, e esta febre não
traz tantos acidentes, mas é mais larga.
Nela se faz o remédio no dia da folga. As sangrias me-
nos, a purga mais. E se depois incham os pés ou braço, se
fará os unguentos que estão postos no capítulo da opilação
do fígado.

94
N. E. Nos Libros, toda a indicação sobre os remédios não aparece.
95
N. E. Curiosamente, os Libros não tratam da falsa terçã, indicando que
a verdadeira “se faz de cólera fervente com mistura de fleima”, não tra-
zendo tantos acidentes, mas sendo mais larga.

106
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Cap. 52 da Cotidiana

A cotidiana repete cada dia. Faz-se de fleima. É rara


porque o que se experimenta é que as que repetem cada dia
são terçãs falsas contínuas, e assim se curam como acima está
dito.

Cap. 53 da Quartã

A quartã se faz de humor melancólico e repete de 4 em


4 dias, e tem 2 dias de folga. É larga e enfadonha, e em ve-
lhos perigosa.
Cura-se sangrando pouco e purgando com a purga que
dissemos no cap. da sarna; e depois (p. 75) é bom tomar os
soros com folhas de sene, que se fazem deste modo: tomará
um quartilho de água de borragens, ou da fonte, ou rio, ou
doce,96 e nela cozerão 3 oitavas de folhas de sene com 7 ou 8
ameixas bem cheias, passadas, e anis e 2 onças de açúcar, e
ferverá até que mingue a metade; comer-se-ão as ameixas e
beberá depois o caldo, e daí a 2 horas beberá o caldo de gali-
nha.
Se durar a quartã, não se farão mais remédios; se se fi-
zerem, será com mal do doente, que se dobrará a quartã.

96
N. E. Nos Libros, conta água de rio doce.

107
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 54 da febre Héctica

A febre héctica se faz das outras febres. Pela maior par-


te dura a febre, seca-se o doente.
Convém regimento fresco, não sangrar, não purgar.
São boas tisanas, almidões, boas assadas,97 cozidos e comidos
com galinha.
O leite de burra é o seu remédio, ou cabras, ou vaca; e
os banhos e unturas frescas.

Cap. 55 da Peste

A peste é mal grave. Não se diz peste sem (p. 76) ter
nascido o inchaço, e, se o não há, diz-se febre pestífera.
Os acidentes são gravíssimos: ânsias, desmaios, pulsos
frios, suores frios, desvarios, fastio, câmaras.
Se houver inchaço e febre grande, a sangria é boa. Se
estiver na virilha, sangrar no pé; se no braço ou detrás das
orelhas, no braço. E as ventosas são maravilhosas; os cordiais
que dissemos acima e diremos no cap. seguinte, de confeição
de jacintos, alchermes,98 triaga, pedra bazar.
Purgar é bom com uma purga fresca que se pôs nas fe-
bres e, para o inchaço, se chama cirurgião.

97
N. E. Nos Libros, não há menção aos ingredientes assados.
98
(ver Alkérmes e Kermes mineral no dic. de medicina)

108
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Cap. 56 da febre Maligna, e pestífera, e Pintas

Não difere mais esta febre das outras que nas vascas e
congoxas que tem, e frios a cada passo.
É bom sangrar e purgar ao 4º dia com a purga posta
nas febres; e ventosas com sarjas, pedra bazar, cordiais, deste
modo:

(p. 77) R. comfect. jacint. et


alchermes. an [meia oitava] sirup de acido
diamarga frig. [onça] lapidis belzoar.
[sete grãos] misse:

Epitomar o coração com confeição de jacintos.

R. Comfect hyasinthor. et alchermes


an [meia oitava]. teria [meia oitava]
comserve [duas onças]. pulu diamarg. frig
[escrópulo] misse:99

Untar o coração com esta conserva se vier delírio, que


é doudice e frenesis; far-lhe-ão os remédios que estão postos
no cap. do frenesi.
No fim, é bom purgar outra vez com ruibarbo, como
está dito.

99
N. E. Não há esta indicação da confeição de jacintos ou a segunda
receita nas edições dos Libros.

109
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cap. 57 das Bexigas e Sarampão

Estas bexigas e sarampão se causa [sic] de malícia do


mês de que se geram as crianças100 no ventre da mãe, e a na-
tureza sagaz quer depurar101 o corpo. Assim, lança o humor
grosso à pele e faz bexigas, que são umas empolinhas como
aljofres e pérolas; (p. 78) e se o sangue é colérico, faz saram-
pão, e, assim, vêm umas flores à pele, que a fazem verme-
lha.102
Vêm em meninos103 antes que apareçam a febre, frio,
comichão nos olhos, tosse, espirros.
E bem antes que apareçam, sangrar; e depois que apa-
reçam, as ventosas são belas, secas e sarjadas, pedra bazar,
cordeais de jacintos, e, como tem tosse, lambedor violado ou
feito de cozimento de cevada e violas.
Não se purga nesta doença, nem se lança muitos clis-
teis. Se há dor nos olhos, lavá-los com água rosada, ou tan-
chagem, ou água onde está o sumagre demolho. Se há câma-
ras, é mal, e far-se-á os remédios do cap. das câmaras.
É má doença, bexigas, porque mata e deixa a muito
cegos, héticos, coxos.

100
N. E. Usa-se o termo “criaturas” nos Libros.
101
N. E. Os Libros indicam que “a natureza quer repurgar o corpo”.
102
N. E. Nos Libros, não há referência às flores que vêm à pele.
103
N. E. Os Libros não fazem referência aos meninos, apresentando o
sarampão como doença comum a todos.

110
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Cap. 58 dos Venenos

Em dando a alguém veneno, é necessário (p. 79) pro-


curar vômito com dar a beber um quartilho de leite morno
ou azeite morno, e dar depois triaga a beber, ou pedra bazar e
confeição de jacintos.
Não se purga nem sangra em veneno; ventosas pelas
costas são boas.

111
TRATADO SOBRE MEDICINA

Aqui se contém um epílogo de todas as Doenças.104


~ Finis ~

104
N. E. Há uma continuação disposta pelo transcritor do Libro BN:
“Aqui se contém um epílogo de todas as doenças. Quando se farão as
curas, quando se farão as purgas, ventosas, sanguessugas, clistel, banhos,
exercício, jogo de Vênus, o ar. O grão, é peso de um grão de trigo, nem
grande nem pequeno; pelas balanças do ouro, se buscará o peso dos
grãos. Erva de São Paulo, a quantidade que se dá são duas oitavas tanto a
pessoa robusta quanto fraca. Porque, assim como a ela, a compleição da
pessoa opera mais, e, se é fraca, opera menos. Em lugar de pedra bazar,
faltando, se usa pevides de cidra azeda, dando-se três tantos; se se der
quatro grãos de pedra bazar, se dará doze de pevides ditas secas e em pó
com qualquer coisa”.

112
MEMÓRIA ATLÂNTICA

(p. 80)

No princípio deste Tratado, trata geralmente do


Compêndio deste tratado, a saber, de página 1 a 3, e faz ad-
vertência de governo;
~ Dos climas das terras, e seus climas
~ Das mulheres,
~ Quando se farão as curas,
~ Quando se farão as purgas,
~ Da sangria,
~ Ventosas,
~ Sanguessugas,
~ Clistel,
~ Banhos,
~ Exercício,
~ Jogo de Vênus,
~ O Ar,

Catálogo das doenças que neste compêndio se contém


Este Compêndio contém

Cap. 1. Da Dor de Cabeça ..................................... página 10


2. do Frenesi...................................................................... 14
3. Modorra ........................................................................ 17

(p. 81)

Cap. 4. Vagados ..................................................... página 17


5. Gota Coral .................................................................... 18

113
TRATADO SOBRE MEDICINA

6. Melancolia .................................................................... 21
7. Apoplexia ...................................................................... 22
8. Paralisia ......................................................................... 23
9. Inflamação dos olhos ..................................................... 25
10. Belida e névoa dos olhos .............................................. 27
11. Dor do ouvido............................................................. 27
12. Inflamação do ouvido .................................................. 27
13. Fluxo de sangue dos .................................................... 28
14. Dor dos dentes ............................................................ 29
15. Esquinência ................................................................. 30
16. Catarro ........................................................................ 32
17. Asma ........................................................................... 32
18. Prioris ......................................................................... 33
19. Escarro de sangue pela boca ......................................... 34
20. Chaga do bofe, que é tísico .......................................... 35
21. Tremor do coração ...................................................... 36
22. Fraqueza do estômago ................................................. 37
23. Vômito........................................................................ 39
24. Câmaras e vômitos, e juntamente que se chama colírica
passio ................................................................................. 39
25. Câmaras ...................................................................... 47
26. Câmaras de sangue ...................................................... 41

(p. 82)

Cap. 27. Puxos ....................................................... página 47


28. Cólica .......................................................................... 48
29. Inflamação do fígado ................................................... 49
30. Opilação do fígado ...................................................... 50
31. Icterícia ....................................................................... 52

114
MEMÓRIA ATLÂNTICA

32. Hidropsia .................................................................... 53


33. Opilação do baço ........................................................ 57
34. Retenção de urina ........................................................ 57
35. Ardor de urina ............................................................. 59
36. Pedra dos rins .............................................................. 59
37. Urinar sangue .............................................................. 59
38. Lombrigas ................................................................... 60
39. Almorreimas ................................................................ 60

Doenças de Mulheres

Cap. 40 Falta de mês ......................................................... 62


41. Mês supérfluo .............................................................. 63
42. Afogação da madre ..................................................... 63
43. Meses brancos ............................................................. 64

Doenças das Juntas

Cap. 44. Gota ....................................................................... 64


45. Boubas ............................................................................ 66

(p. 83)

Doenças da pele

Cap. 46. Sarna, e prurido ....................................... página 69


47. Licensos....................................................................... 70

115
TRATADO SOBRE MEDICINA

48. Alporcas ...................................................................... 71


48105.Febre de sangue inflamado ........................................ 71
49. Febre de sangue podre e ardente .................................. 73
50. Terçã esquisita ............................................................. 73
51. Terçã falsa ................................................................... 74
52. Cotidiana .................................................................... 74
53. Quartã......................................................................... 74
54. Febre héctica ............................................................... 75
55. Peste ............................................................................ 75
56. Febre maligna e pestífera, e pintas ............................... 76
57. Bexigas e sarampão ...................................................... 77
58. Cura dos venenos ........................................................ 78

Vão seguindo algumas coisas que vi fazer e assim me pare-


ceu bem pô-las para alguma necessidade a que estamos su-
jeitos

(p. 84 – em branco)

105
N. E. Os transcritores dos três manuscritos aqui confrontados grafa-
ram o capítulo 48 em duplicidade no índice.

116
MEMÓRIA ATLÂNTICA

(p. 85)

Cap. Primeiro da Rânula

Rânula é um inchaço que nasce na boca, debaixo da


língua, gerado de destilação da cabeça. É perigoso e pode
impedir a fala, e quem tem este mal logo se conhece no falar,
que é algo impedido. O remédio é chamar um cirurgião e
manda-lo abrir o inchaço, e logo botará um humor como
clara de ovos, com que fica logo livre; é bom que se guarde
do vento por um par de dias. Lavará a boca, depois de aber-
to, com água, vinagre e mel, e isto vi eu fazer e assim me
pareceu escrevê-lo.

Uns pós estremados para purgar 4, 5 ou 6 cursos. São


ditos pós muito fáceis de tomar, nem dão fastio, nem alteram
coisa alguma; é o seguinte:

Receita.
2 escrópulos de mechoacão
2 escrópulos de jalapa
Isto botará em uma pouca de embira
morna e o tomará em nome de Deus.

Receita para uma ajuda ou clistel para dormir com ela,


o qual se tomará morna, (p. 86) a saber,

117
TRATADO SOBRE MEDICINA

Malvas, violas, cevada, ameixas, folhas de alface cozido,


tudo em água, e tomando deste cozimento a quantidade ne-
cessária, antes menos, algo com óleo rosado, ou de violas, ou
do comum, e um pouco de açúcar branco, se fará clistel:

Pós de boráx de vinho do Reno, o qual se chama cre-


mor tártaro, o qual serve no caldo, ou outros guizados em
lugar de limão, e é de mais proveito, é fresco e faz purgar.

Quinta essência para deitar na bebida, de cada vez, a


qual é para conservar o corpo de dentro, e se deitará de 4 a 6
pingas de cada vez, chama-se Spiritum Salis.

Pílulas para qualquer tempo, e se pode andar por fora


com elas:

Pilynely opil de lápis lazuli ana


5. 1 de stractum de calolyonum
d. 13.7 pirolas

(p. 87 – em branco)

(p. 88)

118
MEMÓRIA ATLÂNTICA

A folhas – 71

Para saber se o mal de alporcas é humor frio ou alpor-


cas verdadeiras, se apalpam com os dedos; se se movem, é
humor frio, e, se está firme e imóvel, são alporcas.

Modo de curar as alporcas:

Tomar diapalma com azeite de oliva e, mexido, fazer


dele emplastro.
Pôr sobre o inchaço da alporca uma migalha de soli-
mão, pouco, e pôr-lhe o emplastro acima e ir continuando
assim cada 24 horas; e, pouco a pouco, irá se abrindo e sain-
do carnegões. Em estando aberto, se vai continuando com
menos solimão e se vai curando com o dito emplastro; e em
estando a chaga de todo bem limpa e sã, se lhe põem seu
emplastro de encourar.
Deste modo as curou o Doutor Zacuto a seu filho e a
muitos, com feliz sucesso. E ele o aprendeu com um rústico
vilão: as vezes há alporcas parideiras, e assim não se lhe po-
nha o emplastro de encourar sem reconhecer estar bem são.

(p. 89)

E quando, sem embargo, volvam sua cura, é do mesmo


modo referido.

119
TRATADO SOBRE MEDICINA

Esta receita é segredo que nunca descobriu o dito Za-


cuto, senão a seu filho, de cuja mulher e filha eu o aprendi.
Esta cura se faz mesmo, e não por via de cirurgião; e se dis-
farça o que é que se lhe põem em tudo e não se faz diante
ninguém, para que fique o segredo mais conservado. E seme-
lhantes curas se pagam altamente.

Ishack de Matatia Aboab

120
MEMÓRIA ATLÂNTICA

.1.106

Amado filho David Aboab Curiel,

Considerando que mais vale saber que haver, e que as


letras têm, em todos os lugares e tempos, estimação e valor,
me pareceu bem pôr-vos aos estudos latinos a fim de, com o
tempo, virdes mediante Deus a conseguir o fim de um ditoso
médico, e com isso tereis bom lugar e uma grave ordem de
vida. E para que este meu intento o logreis com bom sucesso
e que não vos impeça mal nenhum, nem vos disturbe o dito
dos sábios, vos mando e peço que vos governeis nesta empre-
sa com muito temor de Deus e com os aditamentos seguin-
tes:
Que para serdes respeitado e estimado (que é coisa im-
portante para o médico) vos porteis com severa gravidade
(mas sem sombra de soberba), e que seja acompanhada de
muita afabilidade e brandura com todos.
Acudireis a pobres e ricos com igual vontade e diligên-
cia, e estudareis nos casos de suas doenças com grande cuida-
do, ouvireis de todos e não desprezeis a ninguém, e não sejas
opiniático quando o caso seja duvidoso. (p. 2)
E observai, por regra infalível e de todo acerto, saber
no princípio das doenças a natureza do doente com muita
miudeza, a saber, se são fracos ou robustos, sãos ou doentios,

106
N. E. Há uma anotação a lápis, feita a posteriori, seguindo a paginação
do restante do livro. O autor/transcritor, todavia, reinicia a paginação do
texto em “1”, indicação que foi seguida nesta edição.

121
TRATADO SOBRE MEDICINA

macho ou fêmea, moço ou velho, cálido ou frio, estítico ou o


contrário, debochado ou regrado, que come de ordinário e
em que clima e estação do ano estão; e, ponderado tudo mui-
to bem, é naturalmente mais acertada sua cura.
E havendo novidade no decurso da doença, especular e
examinar bem se há causa exterior que o causasse, antes de
entrar em ponderação de causa interior. Porquanto a mim,
me sucedeu em uma grave doença que, achando-me melhor
dela, uma noite estando só e tendo uma romã (que me havi-
am trazido de regalo), comi parte dela; a outro dia pela ma-
nhã, vieram os médicos, que eram três, e tomando-me o pul-
so e mandando-me mostrar a língua e vendo-a negra, sem
perguntarem-me nada, começaram a falar latim, notificando-
me logo umas ventosas sarjadas, dizendo-me que eram (p. 3)
para segurar alguma malignidade que pudesse haver interior,
e que fosse servido não fazer argumentos. Como sempre,
sorria. Porquanto eles tratavam de minha saúde, que muito
estimavam, os que me assistiam não sabiam que eu havia
comido romã. Eu calei a tudo e, depois de haverem falado e
dado-me a sentença, me senti na cama o melhor que pude e
disse um dito que dizem “ahorquenlo y haganle la causa”, e
fui seguindo com minha prática, dizendo que o bom médico
deve, quando acha alguma novidade no doente, saber como
passou de noite, que comeu, que bebeu, e que, já que não
haviam perguntado nada, lhes dizia que eu havia passado de
noite razoavelmente, que a febre estava moderada, que eu se
houvera comido um ovo fresco, uma chicória ou um caldo
de miolo de pão ou de galinha, e tivera a língua negra. Podia
entender-se estivesse o mal o por dentro (e também podia

122
MEMÓRIA ATLÂNTICA

muito bem ser que, achando-me aliviado, deitasse a natureza


o mal para fora). Porém que esta minha novidade, presumia
eu, era por acharem-me a língua negra, (p. 4) e que me es-
pantava muito que, sem especularem coisa exterior, me des-
sem sentença, que pode ser me causasse a morte por a grande
fraqueza em que estava, e assim que já que não souberam
especular o caso melhor, lhes declarava que havia comido
romã a noite de antes, por cuja causa tinha a língua negra e
que, se eu não soubera defender minha causa, passara o mar-
tírio que me ordenavam, espantando-me muito que 3 médi-
cos de tanta experiência cometessem todos 3 tal erro. E de
tanta consequência, a cuja prática ou relação deram o calar
por resposta, e não volveram até o dia seguinte, dando então
mil desculpas de seu descuido. E não bastou este erro para se
emendarem, mas, na declinação da mesma doença, tive tam-
bém sobre o que quererem me purgar mil colóquios, porque
não havia obrado em 4 dias, sobre o que fizeram mil juízos, e
eu, rindo-me deles, lhes disse o seguinte: “senhores meus, o
melhor sinal de minha melhoria é não haver até agora evacu-
ado, porquanto como a doença foi larga e o comer pouco,
melhorando começaram (p. 5) todos os membros a puxar
cada qual deles, assim, a sustância da comida, como famin-
tos, tudo quanto puderam, com que a comida se refinou
mais e se reteve por dita causa o excremento que também é
menos; e como na cama não há exercício, também isso aju-
dou a não evacuar”. Acabados os ditos 4 dias, que já a maior
sede da fraqueza se sentia mitigando, começou a natureza a
acudir em sua acostumada obrigação, com que umas ameixas
que eu tomei bastaram para obrar em uma só vez, copiosa-

123
TRATADO SOBRE MEDICINA

mente. Tive febre da alteração, vieram os médicos, disseram


que, visto a natureza, estava disposta e que só uma evacuação
não bastava (sem saber se havia sido quantidade suficiente ou
não), que tomasse uma purga, a que não só repliquei, mas
disse que no perguntar e responder consistia, (como já lhes
tinha dito) depois de Deus, minha vida ou morte, e que, lhes
dizia, havia obrado muito muito nessa só vez, trazendo-lhes à
memória um sucesso que, por perguntar e não arguir, morre-
ra um homem grave chamado Haham Ishack Preto. E foi o
caso que, estando o dito gravemente doente, (p. 6) resolve-
ram os médicos ordenarem-lhe uma purga ou bebidas (que
parece não foi a tempo, ou não foi forte assaz), e perguntan-
do a pessoa que o assistia quantas vezes havia obrado, res-
pondeu que 8 ou 10 vezes fora ao serviço, e sem especular
mais se nelas havia havido quantidade ou não (como não
houve, mais que só ameaças de puxos), peremptoriamente
lhes mandaram pôr confortivos no estômago e ventre, e den-
tro em 2 horas deu a alma a Deus.
Vede por tudo o dito o que é saber perguntar e saber
ou não responder (o doente quando está para isso, e em alta
os que o assistem), pois nisso vai não mais que de morrer a
viver, e assim mesmo em todas as doenças a boa e certa in-
formação delas são meios para o maior acerto e não consiste
em fazerem muitos remédios, mas poucos, eficazes e a tem-
po, pois não é a Medicina outro que ajudar a natureza, e
quando ela não favorece aproveitam pouco os medicamentos.
Nas doenças de moços e gente luxuriosa, ponderai
primeiro se será mal de mulheres ou (p. 7) debochamento
demasiado, porque se for a febre de demasiado excesso ou de

124
MEMÓRIA ATLÂNTICA

debochamento, de afito de muito comer, na tal doença de


febre não convém sangrar se não ajudar, e assim protestai em
segredo; ao doente diga a verdade, para lhe não errar a cura.
Nas doenças perigosas, estudar e ser professo sempre
nelas, e confrontar a natureza do doente com a doença e suas
causas para melhor acertar, pois é coisa de grande consciência
e em que vai a vida que o doente, depois de Deus, fia do
médico.
Nas doenças agudas e perigosas, nunca tomar o bafo
dos doentes, tomando-lhes o pulso de lado com quem incli-
na o ouvido, e só de passo para ver a língua ou semblante,
fechando a boca e resfolegando logo forte para, mediante
isso, preservar de mal, de que Deus vos livre.
Falar sempre ao doente com agrado e ânimo, e animar
aos assistentes que, mediante Deus, tudo irá bem.
Nos princípios, meios e fins, curareis aos (p. 8) pobres
de vossa nação e a todos os tudescos107 que vos chamarem
debalde,108 e com tanto cuidado, prontidão, zelo e amor,
como se pagarão.
Aos medianos e aos ricos, acudireis com o mesmo cui-
dado, por a paga que voluntariamente derem, sem pedir
nunca paga. Mas para todo acontecimento, tereis um livro
com conta armada, com todos os que curareis que podem
pagar, notando cada qual a doença, data e visitas que fizer-
des, para saberes o que devem, caso que seja necessário.

107
N. E. O mesmo que tedesco, ou referente aos alemães e germanos,
segundo Rafael Bluteau.
108
N. E. Inutilmente.

125
TRATADO SOBRE MEDICINA

E em particular com flamengos e outras nações, com


os quais procurareis introduzir-vos o melhor que possais,
pois dão mais proveito suas curas.
Tereis toda boa correspondência e boa amizade com
todos os médicos e cirurgiões, fazendo a todos boas ausências
quando a ocasião o peça. E não desdenhando a nenhum, e
somente nas consultas, sustentareis com bons termos e doçu-
ra vossa opinião, não sendo tão amarrado a ela que, debaten-
do-se com boas razões, façais dificuldades, (p. 9) nem pondo
de ceder de vossa opinião, pois ninguém pode segurar infali-
velmente por acertada a sua, sendo os sucessos contingentes e
o erros mais ordinários que os acertos.
Para andar pronto nos termos das curas, tereis memó-
ria tudo o que nesta vos digo, e lereis os principais autores
muitas vezes, e de todos os mais tomareis também notícias;
lendo Dioscórides109 muitas vezes, e assim mesmo tomareis
grande conhecimento da anatomia, como também dos prin-
cipais fundamentos da cirurgia, que é muito essencial para
um bom médico. E de todos e de tudo que lerdes, resumireis
a memória, e a termos breves; algumas receitas fareis e ao uso
de hoje, e lereis a miúdo o livro que o Doutor Zacuto fez a
seu filho, manuscritos de que neste tendes a cópia, que nele
está incluída quase toda a medicina, e, assim, podereis esti-
mar como de tal autor para por maior vos governar por ele.

109
N. E. Pedânio Dioscórides foi um autor greco-romano, considerado o
fundador da farmacognosia através da sua obra De materia medica, a
principal fonte de informação sobre drogas medicinais desde o século I
até ao século XVIII.

126
MEMÓRIA ATLÂNTICA

~algumas receitas de purgas Para aplicar o que for con-


~alguns modos de pílulas forme
~algumas ajudas o caso, o sujeito e o tem-
~alguns modos de apoze- po, clima ou estação, pedir
mas Deus Bom vos encaminhe
~algumas bebidas para suar a acertar, e que não haja
~algumas unturas por vossa mão dano.

(p. 10)

Mau modo há de ordinário nas doenças perigosas entre


nossa nação, pois, chegando a estar algum mal, por inadver-
tência ou covardia, debaixo da capa de que com isso não
desmaie o doente e os seus, se deixam morrer sem encomen-
dar a Deus e fazer testamento. Se a ocasião o pedir e puder-
des, por modo muito suave, fazer que vossos enfermos façam
bem a tempo estas 2 diligências. É obra piedosa, se bem co-
nheço que não será muito a propósito que faça a diligência o
médico, ainda que em Itália e Escama [sic] o faça, e na Cris-
tandade é obrigação sua adverti-lo. Vos obrareis nisto como
vos parecer e a ocasião e urgência o pedir, e o Senhor Deus
ponha benção na obra de vossas mãos e ensine a acertar, co-
mo pede e desejas,

Este vosso pai,

Ishack de Matatia Aboab

127
TRATADO SOBRE MEDICINA

Passou-me por alto dizer-vos que, como os acidentes


que sobrevém as pessoas não têm tempo nem hora certa, é
preciso ser advertido o médico que (p. 11) sempre esteja
pronto e à mão para que se possa achar para acudir a qual-
quer hora que de improviso for chamado, pelo que, sendo de
dia, observareis se saiba sempre em vossa casa as visitas que
tendes, e, acabado o tempo delas, vos recolhereis a vossos
estudos; e se no decurso do dia fordes a qualquer parte, dei-
xai sempre dito aonde ides e quando volvereis, e não ireis
fora da terra, salvo por causa muito urgente ou de muito
proveito, e ainda isso não tendo entre vossos enfermos algum
de perigo, pois a falta que o médico faz a seus doentes não
permite outra coisa. Ademais que, talvez por se não achar o
médico de casa à mão, se valem de outro, o que, nas ocasiões
extraordinárias, serve a uns de dano e a outros de proveito,
por aviso.

Preferi em vossas curas, o mais que for possível, os simples aos


compostos.110

110
N.E. Outra grafia.

128
AS DOENÇAS QUE OS FILHOS DE ZACUTO
ENCONTRARIAM

Ana Carolina de Carvalho Viotti

Era 5450 no calendário judaico, em alguma data entre


1689 e 1690 em seu equivalente gregoriano, quando o mer-
cador Ishack de Matatia Aboab manda Benjamin Godines
providenciar uma cópia do Tratado sobre medicina que fez o
doutor Zacuto para seu (s) filho (s) levar consigo quando se foi
para o Brasil, para dar a seu próprio filho, David Aboab Cu-
riel. Nesse livro, diz Aboab, em carta que fez questão de ane-
xar após a transcrição, “está incluída quase toda a medicina”,
e por isso o destinatário da cópia deveria “ler a miúdo o livro
que o Doutor Zacuto fez”. Do mesmo modo que o filho do
notável comerciante se beneficiaria das anotações do famoso
médico luso-flamengo, o primeiro receptor anunciado da
obra, o próprio rebento do doutor Zacuto, teria em mãos um
“compêndio breve”, composto, segundo seu autor, “[d]a cura
de todas as doenças que acontecem no corpo humano”, divi-
didas em cinquenta e oito capítulos, uma verdadeira ferra-
menta para “governar em tempo que não haja médico”.

129
TRATADO SOBRE MEDICINA

As informações que chegavam do Brasil, o suposto des-


tino do descendente de Zacuto, dão indícios que a escassez
de médicos era fato notável naquele tempo e que as doenças
e os doentes a tratar seriam, ao contrário, muitos e tantos.
Não foram poucas as cartas escritas ao rei “manifestando o
grande aperto em que estavam”,1 justamente pela carência de
doutores. Mesmo em finais daquela centúria, quando os lu-
sos já estavam estabelecidos há algum tempo nos trópicos,
foram recorrentes comunicações como as dos oficiais da Câ-
mara de São Paulo que, em 1698, reclamavam da “grande
falta que têm de médico e botica para haverem de ser curados
em suas enfermidades”. Por essa razão, continuava a missiva:

[...] pareceu ao Conselho fazer presente a Vossa Majestade o que


escrevem os oficiais da Câmara de São Paulo, pois por esse meio se
poderão conservar aqueles moradores que se tiverem quem trate de
os curar nas suas enfermidades, que por falta de quem lhes possa
aplicar os remédios necessários morrem muitos ao desamparo. 2

Observemos mais de perto esse cenário a partir de um


ponto de vista privilegiado, o daqueles médicos que, mesmo
sendo poucos3 – pela inexistência de escolas superiores de

1
Registro do alvará por que Sua Alteza fez mercê dos ofícios de Físico-
mor e Cirurgião-mor do Estado do Brasil ao doutor Francisco Vás Ca-
bral. 28 de março de 1634. Documentos históricos, v. 27, p. 385.
2
Carta dos oficiais da Câmara de São Paulo representando a grande falta que
tem de médicos e medicamentos, 1698. Documentos históricos, v. 93, p. 80.
3
Tratei especificamente dos médicos e cirurgiões licenciados que atuaram
ou serviram de baliza para os escritos médicos antes da emergência da
clínica e do estabelecimento do ensino especializado nos trópicos lusos

130
MEMÓRIA ATLÂNTICA

medicina na América Portuguesa, pelo ordenado pouco


chamativo aos que se dispunham a cruzar o Atlântico, entre
outras razões – são constantemente solicitados4 e tidos como
os grandes recursos da população no cuidado com seus cor-
pos.

Uma palavra vinda dos médicos

Depois de serem enviadas diversas notícias sobre a quali-


dade das plantas e da natureza dos trópicos, de relatos sobre a
necessária assistência à saúde – nas enfermarias e nas boticas –
dispensada pelos religiosos,5 de narrações sobre as “pestes de
bexigas”,6 do registro de impressões de viajantes sobre o clima e
as gentes do sul do Equador7 e dessas diversas comunicações à
administração sobre a ausência de médicos faceadas pelos colo-
nos, vem a lume, em 1677, aquela que seria a primeira obra

em As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808). São


Paulo: Alameda, 2017.
4
MACHADO, Roberto (et. al). Danação da norma. Medicina social e
constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978, p. 23.
5
Como em ANCHIETA, José de. Cartas: correspondência ativa e passi-
va. São Paulo : Edições Loyola: Vice Postulação da Causa de Canoniza-
ção do Beato José de Anchieta, 1984. p. 239-240.
6
BETTENDORF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Compa-
nhia de Jesus no estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural Tancredo
Neves, SECULT, 1990, p. 201, 242.
7
Entre outros, ver a antologia de textos presente em FRANÇA, Jean
Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos
XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro: José
Olympio; São Paulo: Editora Unesp, 2012.

131
TRATADO SOBRE MEDICINA

escrita em vernáculo sobre a matéria médica nessas paragens.8


Seu objetivo anunciado era o de denunciar os erros cometidos
por muitos homens que faziam as vezes de médicos e que se
julgavam, mesmo sem o estudo especializado e as devidas licen-
ças, aptos a medicar. O título do livro do médico Simão Pinhei-
ro Morão é revelador de seu conteúdo, quase que como um
clamor: Queixas repetidas em ecos dos Arrecifes de Pernambuco
contra os abusos médicos que nas suas capitanias se observam tanto
em dano das vidas de seus habitadores.9 Além de, como se pode
supor, uma série de críticas sobre a atuação de “empíricos” nas
artes de curar, o doutor Morão ponderava sobre as formas mais
acertadas de corrigir “tantos abusos”, nomeadamente discor-
rendo sobre as doenças e suas manifestações.
Não deixa de ser curioso, é verdade, que diante de um
sem número de reclamações sobre a ausência de doutores na
terra brasilis, o primeiro livro de medicina aí redigido tenha um
conteúdo tão crítico aos que, mesmo não sendo doutos, obra-
vam pelas curas. No entanto, há de se ter em conta que a admi-
nistração endossava a necessidade de se ter estudo e licenças
para trabalhar em prol da saúde e, por isso, não deixou de (ten-
tar) regular, com uma série de regras, regimentos e leis, a atua-
ção de médicos e de cirurgiões no aquém e no além mar.

8
Na introdução deste estudo, já mencionamos a discussão sobre ser
Zacuto o primeiro livro médico sobre o Brasil. CARVALHO, Francisco
Moreno de. “Zacuto Lusitano e um tratado de medicina dirigido ao
Brasil”. In: MILGRAM, Avraham. Em nome da fé: estudos in memoriam
de Elias Lipiner. São Paulo: Perspectiva, 1999, pp. 57-74.
9
O texto permaneceu como manuscrito desde sua feitura, provavelmente
em 1677, até sua primeira edição em 1965, promovida pela Junta de
Investigação do Ultramar.

132
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Vejamos um breve histórico dessas medidas. Em Portu-


gal, o lugar de físico-mor foi criado ainda em 1430, durante o
reinado de D. João I, cabendo-lhe a superintendência dos negó-
cios de saúde e higiene; em 25 de fevereiro de 1521,10 a partir
de uma carta régia, as atribuições do físico foram mais bem
delimitadas e distinguidas daquelas que seriam da responsabili-
dade do Cirurgião-mor dos Exércitos do Reino, cargo firmado
algum tempo depois, em 1631.11 Tido como um verdadeiro
marco regulatório na organização sanitária lusa, esse regimento
circunscrevia a atuação dos cirurgiões e previa que todos os que
intentassem exercer os diferentes ramos das artes de curar deve-
riam se sujeitar aos exames aplicados por esses dois grandes
agentes fiscalizadores ou por seus comissários: os médicos – e
também os boticários – passariam pelo crivo do Físico-mor e
seus representantes; os cirurgiões, como se pode supor, pelo
Cirurgião-mor ou seus delegados.
A partir de 1640, os comissários do Físico-mor também
poderiam realizar devassas; após uma provisão de 1742,12 o
Brasil só poderia receber delegados formados na Universidade
de Coimbra; finalmente, em 1774,13 vem a lume um regimen-

10
REGIMENTO do Fysico mor. 25 de fevereiro de 1521. SYSTEMA,
ou Collecção dos Regimentos Reaes. Tomo VI. Lisboa: Officina de Francis-
co Borges de Sousa, 1783, pp. 338-343.
11
REGIMENTO do Cirurgiaõ mor do Reino. 12 de dezembro de 1631.
SYSTEMA [...], pp. 343-345.
12
ORDEM do Conselho Ultramarino para o Fysico mor do Reino, 1º de
junho de 1742. SYSTEMA [...], p. 349.
13
REGIMENTO, que serve de lei, que devem observar os comissários do
físico-mor do Reino nos estados do Brasil, 16 de maio de 1774. Arquivo
Nacional. Fundo Ministério do Império.

133
TRATADO SOBRE MEDICINA

to com força de lei para os delegados e juízes comissários do


Cirurgião-mor e Físico-mor no Estado do Brasil, com o fim
último de inspecionar e regular, através da instituição da Fisica-
tura mor, ainda mais de perto e com mais ferramentas, a prática
médica e cirúrgica nessas terras. Os dois cargos foram extintos
em 1782, com a criação de um órgão que centralizava as atri-
buições de fiscalização no Reino e em seus domínios, a Junta do
Protomedicato.14 Vinte e cinco anos depois,15 porém, foram
reestabelecidas as duas funções e, em 1809,16 um ano depois,
aboliu-se a dita Junta.17
Em poucas palavras, foi através dessas cartas, regimentos
e dos órgãos fiscalizatórios que a ação real no tocante ao regu-
lamento da medicina se fez presente no Brasil colonial. Não

14
Para emendar, nas palavras da então monarca, D. Maria I, os “[...]
muitos estragos que, com irreparável prejuízo da vida de meus vassalos,
têm resultado do pernicioso abuso e extrema facilidade com que muitas
pessoas faltas de princípios e conhecimentos necessários se animam a
exercitar a faculdade da medicina e a arte da cirurgia e as frequentes e
lastimosas desordens praticadas nas boticas destes Reinos e meus Domí-
nios Ultramarinos[...]”. ABREU, E. A. P. de. A Fiscatura-mor e o Cirur-
gião-mor dos Exércitos no Reino de Portugal e Estados do Brasil. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXIII, parte 1,
1901, p. 189
15
BRASIL. Alvará de 23 de novembro de 1808. Manda executar os re-
gimentos do físico-mor e cirurgião-mor e regula a sua jurisdição e de seus
delegados. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 163-164, 1891.
16
BRASIL. Alvará de 7 de janeiro de 1809. Abole a Junta do Protomedi-
cato e devolve a sua jurisdição ao físico-mor e cirurgião-mor. Coleção das
leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 13-14, 1891.
17
PIMENTA, Tania Salgado. O exercício das artes de curar no Rio de
Janeiro (1828-1855). Tese (Doutorado em História) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

134
MEMÓRIA ATLÂNTICA

foram poucos os esforços, como se vê, para estabelecer os pa-


peis de cada braço das artes de curar nessas paragens. Ainda
que tenham se mostrado inoperantes em diversos momentos,
as medidas régias procuravam colaborar para a legitimação do
discurso do médico como autoridade inquestionável no que
concernia ao conhecimento dos males e nas estratégias para
seu tratamento. Além disso, os próprios doutores que se esta-
beleciam no Brasil, esses “letrados e sábios”, 18 procuravam
delimitar as fronteiras, às vezes pouco rígidas, entre sua prática
e a de curandeiros, sangradores e toda sorte de não-
licenciados.
Esse, aliás, que foi o intuito de Morão, vale ser compre-
endido a miúdo. Nas suas Queixas repetidas [...], o doutor
lançava luz sobre o fato de os habitantes do Brasil, mais especi-
ficamente de Pernambuco, entregarem-se “de todo coração
mais aos experimentados empíricos do que aos cientes experi-
mentados, entendendo falsamente consistir a experiência para
curar só no conhecimento de algumas ervas, ou nos sucessos
de algumas curas”,19 e que “até mesmo os párocos, que por
preceito de Deus e da Igreja deveriam atalhar estes abusos [as
mentiras e falsos prognósticos dos práticos], caem neles”.20 O
médico, valendo-se da alegoria de um peregrino que bem ou-
via as queixas dos habitantes e os relatos sobre as formas que as

18
LEBRUN, François. Os cirurgiões-barbeiros. In: LE GOFF, Jacques.
As doenças tem história. Lisboa: Ed. Terramar, 1985, p. 299.
19
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de
Pernambuco contra os abusos médicos que nas suas capitanias se observam
tanto em dano das vidas de seus habitadores. Leitura, explicação e nótulas do
Dr. Jaime Walter. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1965, p. 7.
20
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 15.

135
TRATADO SOBRE MEDICINA

curas eram praticadas, acusa os que não se atinham aos méto-


dos racionais “valendo-se das artes do demônio antes que das
da natureza”, de ludibriarem os doentes, “tanto em dano de
suas consciências e da saúde das criaturas”. 21
Seu livro seria uma resposta ao que define como “vozes
que clamam no deserto”, pela “emenda e reformação” 22 dos
mecanismos de pensar e obrar pela saúde, para que não ficas-
sem desamparadas as gentes e para que tivessem acesso míni-
mo a uma pequena série de regras e princípios gerais para tra-
tar dos males do corpo. Diz-nos o doutor que estudou em
Coimbra e Salamanca:

E por considerarmos ser tão necessário este conhecimento aos empí-


ricos, nos pareceu fazer-lhes este breve tratado como manual e mais
fácil para inteligência dos livros lhe será menos dificultoso alcançar o
nome próprio do acidente, as diferenças, e as causas donde proce-
dem.23

Nesse sentido, suas Queixas repetidas [...] tem algumas


parecenças com o livreto que o filho de Zacuto portaria quan-
do partisse para o Brasil: o primeiro, com tom informativo,
enumerava os problemas em procurar alento com não-
licenciados e dava instruções gerais sobre a identificação e tra-
tamento das febres, apoplexia, paralisia, espasmo, epilepsia,
gota coral, mania e delírio; o segundo, com nítido teor prescri-
tivo e com minúcia, abordava quase meia centena de achaques

21
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 14.
22
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 18.
23
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 108.

136
MEMÓRIA ATLÂNTICA

e dispunha as receitas e procedimentos necessários para apartá-


los; ambos, uma forma de encontrar indicações especializadas
para tratar das doenças que se poderiam encontrar, também,
na América portuguesa.
Não foi essa a única obra de Morão sobre as doenças no
(ou do?) Brasil. Sob o pseudônimo de Romaõ Mõsia Reinhi-
po, ele registrou, em seu Trattado unico das bexigas, e sarampo
(1683), com mais vagar e especificidade, a essência, sinais,
sintomas, prognósticos, cura, remédios e dieta para tratar esses
dois distúrbios. Frisou, ainda, a diferença entre as duas doen-
ças, advertindo sobre as causas internas e externas para a for-
mação das pústulas, as formas corretas de se acudirem olhos,
boca, garganta, ouvidos, narizes, ventre, tripas, bofe, peito,
rosto e mesmo como “apagar os sinais ou cicatrizes das bexi-
gas”.24
Com objetivos e estratégias semelhantes, outros dois li-
vros de medicina são produzidos nos anos que se avizinham à
atuação de Morão nas curas, nos registros de seus sucessos e
procedimentos e versam, também, sobre a porção mais à nor-
deste do Brasil. Em 1694, conhece a estampa o Trattado unico
da constituiçam pestilencial de Pernambuco (1694),25 do doutor

24
Especialmente o Cap. VIII. MORAO, Simão Pinheiro. Trattado unico
das bexigas, e sarampo. Offerecido a D. João de Sousa. Composto por
Romaõ Mõsia Reinhipo. Lisboa: na Officina de Joaõ Galraõ, 1683.
25
ROSA, João Ferreira da. Tratado único da constituiçam pestilencial de
Pernambuco. Oferecido a El Rey N. S. por ser servido ordenar por seu
governador aos médicos da America, que assistem onde há este contagio,
que o compusessem para se conferirem pelos Coripheos da Medicina aos
dictames com que se trata esta pestilencial febre. Lisboa: Officina de
Miguel Manescal, 1694.

137
TRATADO SOBRE MEDICINA

João Ferreira da Rosa, formado pela Universidade de Coimbra


– que se acredita ter sido a primeira obra dedicada à “bicha”,
ou, como hoje conhecemos, febre amarela –, em que o autor
procurava relatar “o que [sua] experiência alcançou [...] e po-
deria ser de alguma utilidade para os que quiserem saber os
princípios, aumento e declinação de tão grande contágio,
principalmente os que se intrometem a curar na falta de médi-
cos nestas povoações”.26 Depois, em 1707, publica-se a Noticia
do que he o achaque do bicho, do mascate, prático e “familiar
do Santo Ofício” Miguel Dias Pimenta – uma verdadeira re-
colha de informações detalhadas sobre o maculo ou mal do
sesso.
Se no seu Tratado de medicina, portanto, o doutor Za-
cuto indica a prevalência das câmaras de sangue – de maneira
geral, as disenterias em três tipos específicos – como doença
“particular no Brasil”, razão pela qual julgou importante dizer
“mais largo em sua cura”, são outros três males a mover Mo-
rão, Rosa e Pimenta à tarefa de melhor entender e de ensinar a
remediar os corpos na então colônia portuguesa nas Américas.

Doenças do Brasil

A primeira notícia epidêmica do Brasil, vinda da pena


dos médicos27 lusos ou brasileiros data justamente dos últi-

26
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, DEDICATÓRIA.
27
Entre as informações remetidas ao Reino por membros da Companhia
de Jesus, encontra-se a notícia do que seria a primeira doença epidêmica
no Brasil, em 1549. Mesmo considerando os registros sobre a mortalida-
de elevada de índios nos primeiros anos, nomeadamente os recém-

138
MEMÓRIA ATLÂNTICA

mos anos do século XVII, em Pernambuco, e é o citado João


Ferreira da Rosa quem escrutina os sintomas, sinais, trata-
mento e mesmo a prevenção a tal “constituição pestilencial”.
Chamada de mal da bicha,28 mal de Sião, vômito negro,29 ou,
como ficou posteriormente conhecida, febre amarela, essa
doença ceifou tantas vidas, e com tamanha velocidade, que o
próprio governador da província, então Marquês de Monte-
belo, achou por bem encomendar um estudo especializado
para encontrar as melhores medidas de contenção da epide-
mia, segundo ele, “porque ainda continuam as doenças con-
tagiosas e pestilenciais nessa povoação”. Queria ele a elabora-

batizados, não seria exagero afirmar que, até aquele ano, o entendimento
geral era de que os trópicos gozavam de significativa salubridade. Pela
pena de Simão de Vasconcelos, somos informados que naquele 1549 os
gentis foram tomados por um “tal fogo de doença que parece peste”, sem
conhecermos, no entanto, muitos mais detalhes sobre a enfermidade e
com uma imprecisa descrição de seus sintomas. Na visão do jesuíta, a
causa do mal era clara – um castigo divino –, mesmo que, agora, não seja
difícil supor que as causas, quais fossem, eram estranhas ao mundo dos
índios, haja vista que só os batizados foram infectados: para os religiosos,
uma penalização do inferno pela conversão dos nativos, para os leitores
contemporâneos, o evidente contato entre pessoas não imunizadas e uma
doença grave. Vasconcelos apresenta outro exemplo desta suscetibilidade
indígena, quando, 1552, aos batizados foram acometidos por uma “peste
terrível de tosse e catarro mortal”, assemelhada a uma patologia conheci-
da do europeu – a gripe. Ver VASCONCELLOS, Simão. Chronicas da
Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Lisboa, 1865.
28
ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os males e os mascates.
Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1969, p. 39.
29
STUDART, G. Pathologia historica brazileira. Documentos para a
história da pestilência da bicha ou males. Fortaleza: Biblioteca Básica
Cearense, 1997, p. 71.

139
TRATADO SOBRE MEDICINA

ção de um “remédio preservativo [...], assim para as pessoas


que ainda não padeceram o mal como para as casas em que
atualmente adoeceram [...]”. Para alcançar tal sucesso, o ad-
ministrador dirigia-se ao médico nos termos seguintes: “para
tudo o mais que vossa mercê julgar ser conveniente para a
prevenção e remédio futuro, porque estou pronto para o
mandar executar”.30 Daí, pois, surge o Trattado unico da
constituiçam pestilencial de Pernambuco.
Logo na Dedicatória do livro, o intento do dito Mar-
quês e do Rei é explicitado:

[...] mandar que os médicos deste Pernambuco informassem das


qualidades, princípios e causas deste contágio, e juntamente dos
remédios preservativos e curativos de que cada um até o presente
momento tem usado, para que examinada sua informação e práti-
ca pelos médicos mais doutos desta Corte, resolvessem se tantas
mortes eram efeitos da malignidade do achaque ou se eram aborti-
vos partos do erro em os médicos, e sendo o erro, o mandasse
atalhar com lhes mostrando o caminho para o acerto.31

Ali o doutor, além de ressaltar ser a obra fruto de sua


experiência, indica “que [a doença] tem feito deserto de mui-
tas cidades”32 e que não existiam “muitos [tratados] de seme-
lhante matéria em nosso idioma”,33 justificando o direcio-
namento de tantos esforços, médicos e administrativos, para
remediá-la.

30
STUDART, G. Pathologia historica brazileira, p. 80.
31
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, DEDICATÓRIA.
32
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 3.
33
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, AO LEITOR.

140
MEMÓRIA ATLÂNTICA

O princípio norteador das observações de Rosa e de


tantos médicos de seu tempo advinha de Galeno – “tirada a
causa, se tira o efeito”34 –, por isso seu ponto de partida foi
identificar tudo quanto fosse pertinente ao mal. O Marquês
de Montebelo, por exemplo, não acreditava ser o clima do
Brasil um problema per se,35 como muitos insistiam em afir-
mar, sobretudo pela característica epidêmica da doença. Mas
algumas características daquelas terras influíam, de acordo
com o doutor, diretamente nos corpos e no espalhamento da
doença, desde os influxos celestes até os comportamentos
viciosos dos colonos – um eclipse lunar observado em
1685,36 em conjunto com uma série de elementos, eram os
responsáveis por vitimar tantas almas naquela região.
Entre as medidas profiláticas,37 recomendou “quaren-
tena de fogos em todas as ruas”,38 especialmente com pau-
brasil, mandou limpar as imundices que “cotidianamente se
acham nas cloacas junto das casas e praias próximas aos edifí-
cios”,39 indicou cessar os “vapores putridinosos”40 que vi-
nham de corpos apodrecidos e insepultos, ponderou sobre as
34
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 8.
35
ANDRADE, Gilberto O. A Campanha profilática de 1691. In: MO-
RÃO, ROSA E PIMENTA. Notícias dos três primeiros livros em vernácu-
lo sobre a medicina no Brasil. Recife: Arquivo Público Estadual de Per-
nambuco, 1956, p.159.
36
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 11.
37
STUDART, G. Pathologia historica brazileira. Documentos para a
história da pestilência da bicha ou males. Fortaleza: Biblioteca Básica
Cearense, 1997.
38
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 36.
39
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 13.
40
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 38.

141
TRATADO SOBRE MEDICINA

águas paradas dos lagos – e aqui evoca a autoridade do dou-


tor Zacuto41 –, culpou “carnes podres, de frutos corruptos e
de ruins alimentos”42 e elencou até mesmo a corrupção dos
costumes43 como um vetor de transmissão e causa da peste.
Entre os remédios que poderiam ser ministrados para a do-
ença e seus efeitos – dor de cabeça, vigia, delírio, fastio, náu-
sea, soluço, vômito e as próprias câmaras –, elenca xaropes,
vomitórios, sangrias, dietas e mesmo a “ventosa sarjada na
nuca”, a qual “louva muito Zacuto”.44
Para termos ideia da brutalidade da dita peste, vale ob-
servar as impressões registradas em outra das obras acima
indicadas, a de Miguel Dias Pimenta. O número de almas
por ela levadas, de acordo com o mascate e prático em medi-
cina,45 impressiona: “no Arrecife e em Santo Antônio, perto
de seiscentas pessoas, todos homens brancos, uma dezena de
mulatos, mui poucas mulheres, poucos negros e menos me-

41
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 12.
42
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 12.
43
“[...] porque esta doença é particularmente castigo de Deus pelos pecados
dos homens, e por isso não sucede terem os remédios tanta eficácia como
nas outras enfermidades”. ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 57.
44
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 156.
45
A definição como “mascate” pauta-se nos estudos de Gilberto Osório
de Andrade. Mesmo que Pimenta possa ser classificado como “tão so-
mente um empírico, um daqueles mesmos empíricos que arruinavam o
humor de Pinheiro Morão e Ferreira da Rosa”, seus esforços em descrever
as doenças e prescrever métodos de cura o fez constar no rol das primeiras
notícias médicas do Brasil. ANDRADE, Gilberto O. O “mascate” Mi-
guel Dias Pimenta. In: MORÃO, ROSA & PIMENTA. Notícias dos três
primeiros livros em vernáculo sobre a medicina no Brasil. Recife: Arquivo
Público Estadual de Pernambuco, 1956, p. 375.

142
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ninos”.46 E fica pior: “o que muito se sangrou, morreu, o que


pouco, morreu, o que se antecipou a purgar e sangrar, em
poucos dias dando-lhe o achaque, morreu”.47 Por isso, mui-
tos dos doutores, temendo sua própria vida, deixavam de
assistir aos doentes, e, em casos mais avançados do mal –
como quando já punham “ferrugem pela boca” –, diziam
apenas que um padre encomendasse a alma do moribundo
ao céu.48
Outras doenças, segundo Pimenta, podiam ser remedi-
adas com mais sucesso. O mal que dá nome a sua Noticia do
que he o achaque do bicho, o maculo, 49 grave “não tanto pela
grandeza da sua essência, quando este é conhecido”, mas
“pela nobreza da parte do corpo a que assalta, donde causa o
maior dano”,50 estava entre os que, se tratados no princípio,
eram facilmente atalhados. Era esse um achaque conhecido, e
tem-se dele notícias ainda 1587, pelas seguintes palavras de
Gabriel Soares de Sousa:

Deu na costa do Brasil uma praga no gentio, como foi adoecerem


do sesso e criarem bichos nele; da qual doença morreu muita soma
desta gente, sem se entender de que; e depois que se soube o seu

46
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho. p. 510.
47
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho. p. 511.
48
A FEBRE amarela no século XVII no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Edgard Blücher Ltda, 1971, p. 77.
49
REZENDE, J. M. Maculo: a estranha doença dos escravos africano.
In: _____. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online].
São Paulo: Editora Unifesp, 2009, pp. 231-236.
50
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho.

143
TRATADO SOBRE MEDICINA

mal, se curaram com esta erva-santa; e curam hoje em dia os ata-


cados deste mal, sem terem necessidade de outra mezinha.51

Doutores famosos, como Willem – ou Guilherme –


52
Piso, também legaram uma palavra sobre esse que era tido
como “mal ordinário da terra”,53 manifesto por um alarga-
mento do ânus, muitas vezes associada à miíase, e que pode-
ria ser, na ótica do mascate Pimenta, tanto a consequência de
primeiros achaques quanto a causa de terceiros.
As causas do problema, que tinha nos “naturais da ter-
ra” e nos “negros de Guiné” um farto público, são divididas,
grosso modo, em duas grandes esferas, as internas e as exter-
nas, superiores e inferiores. Entre as superiores, diz-nos eles
ser a “desunião de humores objeto essencial”54 a mais signifi-
cativa; das externas, saltam aos olhos “o andar a muito rijo
sol, ou a pouco, com muito, ou pouco exercício, quem andar
a ele não é acostumado, ou ainda ter muito calor evaporoso
do sol no aposento aonde assiste”, “as paixões da alma” e “o

51
Ver DUARTE, Eustáquio. Notícias do que é o achaque do bicho.
Introdução histórica. In: MORÃO, ROSA & PIMENTA. Notícias dos
três primeiros livros em vernáculo sobre a medicina no Brasil. Recife: Arqui-
vo Público Estadual de Pernambuco, 1956, p. 393.
52
“Sem nenhuma doença intestinal ou qualquer outro sinal precedente
insinua-se às escondidas, um seminário de germes numa parte menos sensí-
vel, oculto a princípio do próprio doente ou do médico. E então o mal é tido
por incurável porque não raro acarreta a gangrena”. PISO, G. História Natu-
ral e Médica da Índia Ocidental. Rio de Janeiro: INL, 1957, p. 114-117.
53
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Transcrição e
notas de Ana Maria de Azevedo. Lisboa: Comissão nacional para as co-
memorações dos descobrimentos portugueses, 1997, p. 133.
54
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho, p. 475.

144
MEMÓRIA ATLÂNTICA

movimento dos astros”.55 Haveria, considerando esse quadro,


uma série de “achaques que não gera[va]m o bicho, nem dele
procedem [procediam], mas com a sua cura se remediam”,56
e que, por consequência, a “cura do bicho” teria a mais larga
aplicação, já que curando o mal, mesmo sem o haver, era
possível sarar calafrios, dores, febres, insônias, almorreimas,
flatulências, estupores e até pestes. Conta Pimenta com al-
guns preparos gerais e, segundo a sua experiência, bastante
eficazes:

Entre muitas cousas que experimentei, tanto para desafoguear


como para que não fique em chaga e sarar em breve, vinagre com
enxofre moído, que suposto faz marejar muito mais humor, sara
logo, se se curar, e lavar, tirando a causa deste movimento, aliás
sarará naquela parte, e sairá logo em outra das nomeadas.57

Ele trata com detalhe outras formas de curar a enfer-


midade e suas decorrências nos seis tratados que compõem
seu livro, ao propor uma definição da doença, os outros ma-
les relacionados ao bicho, diversos avisos para cura-lo e os
efeitos “com que castiga o enchimento do corpo, ou sobeji-
dão dos humores aos que se não antecipam a curá-lo, especi-
almente os galicados”. Nessa divisão de matérias, somos
apresentados a outro problema que parecia comum aos habi-
tantes de Pernambuco, o mal gálico – a sífilis –, tido, como a
bicha, como reflexo de um castigo divino diante da promis-

55
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho, p. 477.
56
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho, p. 509 -511.
57
PIMENTA, Miguel Dias. Noticia do que he o achaque do bicho. p. 509.

145
TRATADO SOBRE MEDICINA

cuidade da população. O “pragmatismo” da medicina de


então, como se entrevê, tinha no intercruzamento de prescri-
ções corporais e morais sua maior definição, e na observação
do meio e dos fenômenos da natureza um elemento privile-
giado de análise.
Esse olhar atento ao redor e a consideração sobre a
ação do exterior sobre os corpos foram anotados, também,
pelo autor das ditas Queixas repetidas, Simão Pinheiro Mo-
rão, em seu Trattado unico das bexigas e sarampo, valendo-se,
aliás, da autoridade de Zacuto Lusitano para referendar a
origem primeva dos males ainda na Antiguidade.58 Entre as
causas ou elementos que potencializaram o aparecimento das
duas doenças a que se dedica explicar e curar, o doutor de
Coimbra elenca um cometa avistado em 1664, que “fez mais
os seus efeitos nesta América como estes fervores, produzindo
Bexigas e Sarampos, e nos outros reinos produziu guerras e
outros efeitos semelhantes”,59 e o próprio clima dos trópicos.
Eis como explica a ocorrência em maior quantidade e malig-
nidade dos dois achaques ao sul do Equador:

O clima do Brasil é tão cálido e tão úmido e os poros dos corpos


que nele habitam andem sempre abertos, suando e tressuando,
nesta evacuação do suor, gastam alguma porção do humor, que lhe
podia servir de matéria para as bexigas e para o contágio, o que
não acontece nos outros reinos.60

58
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 9.
59
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 88
60
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 13.

146
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Outra causa, no entanto, seria inerente a todos os vi-


ventes, quer dizer, haveria uma predisposição partilhada en-
tre homens e mulheres para esses dois graves – mas curáveis –
desvios da saúde, que tornava a tarefa de “preservar as pesso-
as”61 da doença quase que hercúlea:

A causa geral, ou universal, donde nascem e não acharam os Dou-


tores outras mais, que serem nascidas do sangue mênstruo, de que
no ventre de nossas mães nos sustentamos, que como é alimento
tão perverso e de tão más qualidades, as comunica à nossa massa
sanguinária toda e nela o conserva a natureza até certo tempo: no
qual irritada delas, no decurso da vida, sai a desafio para lançar
fora do corpo, como faz no tempo destinado, como agora vemos.62

Das informações que dispõe em seu Trattado, são es-


senciais as fronteiras e diferenciações que delimita entre as
duas doenças, dado que sua eclosão em pústulas ou os sin-
tomas semelhantes – dores de cabeça, peso nos olhos, sono
profundo, bocejos, vontade constante de espreguiçar-se, la-
crimação, dores nas costas e cadeiras, palpitação, tosse, difi-
culdade em respirar e tremores – poderiam confundir um
observador menos atento ou especializado. O sarampo, para
ele, caracterizava-se por “uns tumorzinhos muito pequenos e
vermelhos, que rebentam no couro ou na pele do nosso cor-
po, com febre contínua, nascidos da ebulição ou fervor parti-
cular do sangue”, enquanto as bexigas poderiam ser vistas
como “pústulas ou bostelas, que nascem na pele do nosso

61
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 91.
62
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 79.

147
TRATADO SOBRE MEDICINA

corpo, nascidas da particular efervescência do sangue mais


grosso, que por modo de crises, a natureza deita para fora,
com febre contínua e muitos sintomas perniciosos”.63
Um dado importante refere-se aos diferentes “níveis”
de gravidade da doença, que poderiam ser “loucas ou bran-
cas”, “negrais”, “pintas”, “de pele de lixa” e “de olho de pol-
vo” – essa última a mais aguda manifestação do mal. Tal
diferença dependia de qual dos humores calhava de ser atin-
gido: as vermelhas, do sangue; as brancas, da fleima; as ama-
relas, da cólera, e as verdes ou negrais, da melancolia.64
Quanto mais perniciosa, mais fortes eram os outros sinto-
mas: delírios, frenesis, espasmos, urinas turvas, diarreia com
sangue, disenteria e gota coral. Essas manifestações, de acor-
do com Morão, eram claro “sinal de que a natureza desviou
ou humores do melhor caminho”, fazendo com que chegas-
sem a irromper na pele – “e os arrojou para o ventre e para as
tripas, e como são tão malignas, ficando mais vizinhos ao
coração, matavam os enfermos mais depressa”.65

Ferramentas para curar

É importante considerar que os doutores não descredi-


tavam o valor da experiência – foi, como insistentemente
afirmam, a partir de sua vivência em um clima e com recur-
sos diferentes que puderam fazer as observações mais acerta-
das sobre a cura dos achaques frequentes no Brasil –, mas ela

63
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 80.
64
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 84.
65
MORÃO, Simão Pinheiro. Trattado unico das bexigas, e sarampo, p. 83.

148
MEMÓRIA ATLÂNTICA

só teria valor quando aliada ao conhecimento das regras ge-


rais e do funcionamento dos corpos. Por isso, diz Morão, era
imprescindível ao médico “saber a Latinidade, professar a
Filosofia e estudar oito anos contínuos nas Universidades a
Medicina por preceito irrefragável dos Sumos Pontífices, dos
Imperadores e de todos os Reis do Mundo, e em particular
da Europa, obrigando-os a fazerem antes de lhes darem o
grau de médico dez ou doze exames públicos”.66
Além disso, nessas mesmas Queixas repetidas [...], ele
bem sintetiza o entendimento que tinha sobre as causas pri-
meiras e comuns entre as doenças e os mecanismos para sará-
las:

Seja logo a primeira regra geral, da qual, ou de cujo conhecimento


se não pode isentar criatura alguma do mundo e menos os empíri-
cos, sangradores e mezinheiros e é que todas quantas enfermidades
padece o corpo humano desde o alto da cabeça até a planta do pé,
que são quase inumeráveis, pois só um olho parte tão pequena,
padece 113 doenças diferentes umas das outras todas como digo
são nascidas, ou dos humores sobejos, que no corpo se geram, ou
dos humores podres que nele apodreceram. Sendo logo os humo-
res podres ou sobejos os que fazem as enfermidades todas do corpo
humano; todo o remédio ou mezinha que ensinarem médicos,
cirurgiões, boticários, sangradores, barbeiros, parteiras e mezinhei-
ras, ou outra qualquer criatura alguma, que seja para lançar fora do
corpo esses humores podres ou sobejos.67

66
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 6.
67
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 19

149
TRATADO SOBRE MEDICINA

Seus pressupostos advêm da chamada “teoria humo-


ral”, de uma “teoria dos humores” que o leitor já viu referen-
dada em diversos momentos até aqui, devedora, sobremanei-
ra, dos direcionamentos de Hipócrates, o “pai da medicina”,
e de Galeno. Tida como principal forma de se entender a
relação entre saúde e doença, ou melhor, de se explicar como
os corpos adoeciam ou se mantinham saudáveis – e, portan-
to, de como reestabelecer a saúde frente a alguma doença –, a
teoria dos humores foi largamente utilizada e encontrou di-
versos adeptos, desde seu desenvolvimento na escola de Kos
até pelo menos o século XVII na Europa.68 No Brasil, vale
dizer, muito por conta das diferenças e um certo descompas-
so no ensino universitário médico português e o restante do
Velho Mundo, ela ainda se fez manifesta69 com certo fôlego
até o século XVIII.70 Morão, Rosa, Pimenta e Zacuto alinha-
vam-se, é certo, a essa escola de interpretação dos males.

68
Ver, a título de exemplo: DINGWALL, Helen M. Physicians, surgeons
and apothecaries: medicine in Seventeenth-centiry Edinburgh. Tuckwell
Press, 1996.; FRENCH, Roger, WEAR, Andrew (org). The medical
Revolution of the seventeenth century. Cambridge University Press, 1989;
GOMES, Joaquim Ferreira. A medicina do século XVII – As descobertas
científicas – Os iatrofísicos e os iatroquímicos – Thomas Sydenham e o
neo-hipocratismo seiscentista. In: Revista de história, V. VI, SP, 1953.
69
GOMES, Joaquim Ferreira. Estudos para a história da Universidade de
Coimbra. Coimbra: Livraria Minerva, 1991.
70
Como se pode ver nos tratados de cirurgia mineiros de Luis Gomes
Ferreira, João Cardoso de Miranda e Antonio Mendes, que são publicados
ao longo do século XVIII, por exemplo, cujas menções e fundamentação
permanecem essencialmente pautadas na medicina hipocrático-galênica,
mesmo que com alguma incorporação de “inovações” setecentistas.

150
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Em linhas muito gerais, essa teoria baseava-se na ideia


que o corpo humano era formado por quatro grandes ele-
mentos naturais, os chamados “humores”, e que o equilíbrio
desses elementos seria a chave para a manutenção da saúde.71
Na síntese de Simão Pinheiro Morão, poderiam ser assim
definidos: “o sangue, a maior porção de todos, a fleima me-
nor que este, a cólera menor porção que a fleima, e a melan-
colia menor de todos os outros”, além de outros quatro “pre-
ternaturais ou excrementícios como lhe quiserem chamar,
que são o soro, a cólera ou bílis, a fleima e a melancolia, para
que livres os quatro naturais e limpos destes possam nutrir
melhor e manter ao nosso corpo humano”.72 A falta, excesso
ou corrupção desses elementos era a grande fonte dos males,
competindo ao médico, com seu cabedal de informações
teóricas e com habilidade adquirida na prática, bem observar
e identificar as doenças a partir de seus sintomas.
O princípio parece simples – retirar o humor que ex-
cede a medida ou que está corrompido e adicionar as virtu-
des que faltavam ao organismo, reequilibrando-o –, mas não
o era. A ação dos médicos deveria ser precisa, já que uma má
avaliação do humor afetado poderia, por exemplo, agravar o
desequilíbrio em curso. Logo, seria através de uma observa-
ção acurada do doente e seus sintomas, considerando as es-
pecificidades das manifestações mórbidas em cada um, mas
sem perder de vista algumas leis gerais, que a saúde poderia
ser recobrada. O bom médico não seria aquele que intervi-

71
CAIRUS, Henrique F. & RIBEIRO JR., Wilson A. Textos hipocráticos:
o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
72
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 24.

151
TRATADO SOBRE MEDICINA

nha demais nos corpos, mas o que conhecia as técnicas, sabia


diferenciar sintomas semelhantes e que, sobretudo, conhecia
e respeitava as leis e manifestações da natureza,73 de modo a
colaborar com a recuperação.
João Ferreira da Rosa registrou, assim, a importância
de deixar a natureza obrar ela mesma pela saúde:

[é a natureza] a principal opugnadora da doença, dando saída às


superfluidades, obrando tudo o que é necessário para conservação
do vivente; nem as medicinas poderão aproveitar, se não recebes-
sem benefício da natureza: e ela é a que cura, e o principal agente,
o Médico, o ministro, e os remédios instrumento do ministro;
concorrendo em primeiro lugar na natureza, em segundo a arte
como ministra da natureza, e o Médico por benefício da arte, apli-
cados com devida qualidade, medida e tempo.74

Por esta razão, não surpreende que os doutores conde-


nem os que administravam remédios e procedimentos antes
de bem examinar o doente e de compreender as nuances da
doença em curso, e que, a partir da descrição minuciosa de
casos atendidos, muitas vezes dando os nomes dos pacientes,
sublinhem a importância do olhar do especialista nas curas,

73
“[...] é, segundo os médicos, uma virtude que rege o corpo do animal
mediante o calor e o espírito natural, e esta mesma virtude governa e
conserva o corpo em todas as suas obras e funções (na cura das enfermi-
dades a natureza é a que principalmente obra).” BLUTEAU, Raphael.
Diccionario da Lingua portugueza, composto pelo Padre D. Rafael Bluteau,
e reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de
Janeiro. Tomo segundo. L-Z. Lisboa, na Officina de Simao Thaddeo
Ferreira, 1789, p. 686.
74
ROSA, João Ferreira da. Tratado único, p. 40.

152
MEMÓRIA ATLÂNTICA

na consideração de elementos interiores e exteriores para o


diagnóstico e do emprego das armas certas para combater as
malignidades do corpo.
A respeito dessas ferramentas e da imprescindibilidade
do conhecimento especializado para intervir positiva e corre-
tamente nos corpos dos homens e mulheres adoecidos, é
Morão quem bem pondera sobre esses elementos e sua rela-
ção com dois instrumentos curativos, aliados aos fatos extrín-
secos ao doente:

Saibam eles [os médicos e cirurgiões] e todos os habitadores de


Pernambuco que o clima (a quem muitos deles não conhecem
como já disse) não faz variar o método geral da cura das doenças,
que vale o mesmo que dizer que o clima não faz variar a aplicação
de dois remédios grandes que a medicina só tem, que são a sangria
e a purga, mas pode variar as qualidades da purga e das mezinhas,
ou remédios pequeno, e quem cuidar outra coisa é engano e cargo
da consciência, porque o sangrar, ou o purgar, depende absoluta-
mente de serem estes ou aqueles humores, de estarem cozidos ou
não cozidos, ser esta ou aquela purga, sangrar mais ou sangrar
menos, conforme a carga e o humor que peca. Porém cuidarem
que o clima nos há de fazer variar o método geral das curas é en-
gano, e o torno a dizer, e por isso não se enganem, nem enganem
o povo nem ao mundo com dizer é isto outro clima, para que isso
lhe sirva de capa a seus abusos.75

Portanto, mesmo que existissem, é verdade, diferenças


sobre a precisão e o momento correto em se valer dessas duas
grandes armas curativas, a sangria e a purga, ou mesmo sobre

75
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 14 [grifo nosso].

153
TRATADO SOBRE MEDICINA

o melhor local em sarjar ou a melhor fórmula para purgar,


fato é que, entre os doutores, vigorava a crença de que bem
manejando os dois procedimentos, os médicos lograriam
êxito no intento de reestabelecer a saúde dos povos.

Medicar nos trópicos

Entre bexigas, sarampos, bichas e bichos descritos por


Morão, Rosa e Pimenta, e também entre câmaras de sangue,
febres, chagas do bofe, puxos, frenesis e fluxos enumerados
por Zacuto Lusitano, doenças adquiridas “pelo contágio,
corrupção do ar ou influências dos astros”,76 ou causadas
pelos humores quentes, coléricos, ventosos ou frios,77 os mé-
dicos – e práticos – aliavam o conhecimento sobre os acha-
ques e os mais diversos remédios e procedimentos para prati-
car sua arte. Mesmo com seus esforços de sistematizar o en-
tendimento das doenças, as peculiaridades de sua ocorrência
em climas distintos e as possibilidades curativas que eram
diferentes e plurais, o quadro que nos apresentam é que suas
iniciativas ainda eram pequenas diante de toda sorte de en-
fermidades que se manifestavam nos trópicos – e dos “abu-
sos” que muitos não-médicos empreendiam.
Os autores, especialmente Morão, não ignoram a exis-
tência de “concorrentes” nas artes de curar em exercício no
Brasil, tanto é que, em muitos momentos, o que pretendem

76
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas [...], p. 110.
77
Termos partilhados entre os três doutores abordados neste breve estudo
e, sobretudo, cotejados entre as causas das doenças abordadas por Zacuto
Lusitano em seu Tratado.

154
MEMÓRIA ATLÂNTICA

é minimizar os danos possíveis aos corpos quando são inter-


vencionados por alguém com conhecimentos parcos. Num
duplo movimento, instruíam aqueles que, inevitavelmente,
incorreriam na prática médica – por necessidade ou para
ampliar seu erário –, ao passo que procuravam firmar seus
métodos e indicações como os mais eficazes e, portanto, mais
corretos. Esses doutores que se dedicaram a escrever obras de
medicina nos apresentam, por certo, às doenças e tratamen-
tos que recomendavam, mas também aos caminhos percorri-
dos pela ciência médica no Brasil, aos limites de sua atuação,
à aplicação de teorias correntes, à flora e sua potencialidade
curativa – assunto que, aqui, nos furtamos a tratar –, além de
abrir uma fresta privilegiada para observar as dinâmicas soci-
ais então vigentes.78 Apresentam-nos, portanto, um pouco do
Brasil que os filhos de Zacuto encontrariam.
O fato de esses quatro primeiros livros sobre a medici-
na no Brasil – a praticada, a que deveria ser corrigida e a ne-
cessária – não versarem exclusivamente sobre os mesmos
achaques indicados no manual de Zacuto não indica que
estivessem desafinados ou que o quadro de doenças tenha
sido substancialmente alterado ao longo do Seiscentos. Além
de diversos dos males dispostos no Tratado de medicina se-
rem tidos como “gerais” – portanto, poderiam ser encontra-
dos em todos os lugares –, serem os pressupostos para realizar
essas leituras sobre o corpo, a saúde e a doença e delas tira-
rem conclusões, remédios e princípios sobremaneira parti-
lhados entre seus autores, parece garantir coerência entre as

78
RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos. A arte médica no
Brasil do século XVIII. HUCITEC, 1997, p. 24.

155
TRATADO SOBRE MEDICINA

observações e prescrições. Basta relembrarmos as advertências


que Zacuto empreende no início de seu Tratado – sobre os
climas, as purgas, as sangrias, as ventosas, as sanguessugas, o
ar – para que esse diálogo e partilha fique ainda mais explíci-
to.
Munidos, destarte, de indicações teóricas precisas e
amplamente utilizadas em seu tempo, de experiência na
identificação das doenças, de um conhecimento local – tanto
das potencialidades dos ingredientes da terra quanto da in-
fluência do ambiente nos corpos –, e de receitas precisas para
fazer a natureza agir em prol do equilíbrio e da saúde, esses
doutores e práticos poderiam enfrentar, com certo sucesso, as
doenças que se manifestavam no Brasil.

156
ZACUTO E OS INGREDIENTES DE ALÉM MAR

Gabriel Ferreira Gurian

Ao iniciar o vigésimo quinto capítulo do Tratado sobre


medicina [...], o doutor Zacuto se justifica por ser “mais lar-
go” a respeito dos cuidados a serem tomados com os doentes
que sofressem do que chama de “câmaras de sangue”, pelo
fato de “esta doença ser particular no Brasil”, destino do(s)
portador(es) do manuscrito. Tomando-lhe emprestadas as
palavras, similar atenção será dada nas próximas páginas a
alguns gêneros particulares da então colônia de Portugal
prescritos pelo médico no Tratado [...], em meio às variadas
diretrizes para se governar naquelas paragens nas ocasiões em
que não houvesse médico. Zacuto, logo nas primeiras linhas
do texto destinado à instrução de sua prole, alerta que “os
climas das terras variam as doenças, a cura e os remédios”.1
Sendo assim, observemos mais de perto um punhado de
elementos naturais do continente americano que são

1
Cf. VIGARELLO, Georges. História das práticas de saúde: a saúde e a
doença desde a Idade Média. Lisboa: Notícias Editorial, 2001, pp. 35-54.

157
TRATADO SOBRE MEDICINA

receitados pelo douto para que se remediassem os corpos


enfermos nas particularidades do Brasil.
Serão assinaladas impressões e indicações registradas
por esculápios e leigos que passaram pela América portuguesa
entre o século XVI e a primeira metade do XVII, particular-
mente aquelas que tratam de plantas nativas prescritas por
Zacuto no Tratado [...], como a copaíba e o mechoacão,
destacando, por fim, tópicas então correntes sobre outros
elementos brasílicos citados, comentados e receitados pelo
doutor em trabalhos distintos de sua extensa obra, de manei-
ra a delinear os conhecimentos do ilustre médico a respeito
do que se escrevia sobre as Américas e suas drogas, especial-
mente as do Brasil.

A principal das resiníferas

“A maioria dos americanos


chama todas as resinas odorosas e
gomas pelo nome comum de Copal
e distinguem por nomes peculiares
as suas várias espécies”, anota Wil-
lem Piso, médico holandês que este-
ve no Brasil entre 1637 e 1644. “As-
sim também os brasileiros denomi-
naram esta árvore, indubitavelmente
a principal das resiníferas, Copaliba
ou Copaíba”.2 O douto se radicou

2
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental. Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1957, p. 270.

158
MEMÓRIA ATLÂNTICA

em Pernambuco, capitania que então integrava a ocupação


neerlandesa dos territórios setentrionais da colônia de Portu-
gal, que se estendeu de 1630 a 1654, e que também viria a
ser o destino dos filhos do doutor Zacuto. Exercendo seu
ofício naquelas plagas durante o período correspondente ao
governo do Conde João Maurício de Nassau, patrono de
suas atividades no Brasil e de quem era médico pessoal, Piso,
junto do naturalista e astrônomo alemão Georg Marcgraf,
empreendeu observações e legou numerosos registros sobre a
fauna, a flora, o clima e a geografia daquelas paragens então
conquistadas pela Companhia Neerlandesa das Índias Oci-
dentais – a West-Indische Compagnie (WIC) –, esforços que lhe
permitiram tomar notas de plantas nativas como a copaíba.
Apesar da proeminência e influência de que gozaram
na Europa os escritos3 do médico e do naturalista a serviço da
WIC – publicados entre 1648 e 1658 –, sendo eles dois dos
primeiros diplomados a registrar os usos da natureza nativa e
traçar um panorama nosológico do Brasil, a copaíba já seria
uma velha conhecida dos lusos – principalmente dos boticá-
rios jesuítas4 – que previamente estiveram na América portu-

3
Sobre os debates em torno dos conteúdos e da autoria de História Natu-
ral do Brasil (1648) e de História Natural e Médica da Índia Ocidental
(1658), ver: COOK, Harold J. Matters of exchange: commerce, medicine
and science in the Dutch Golden Age. New Have; London: Yale Univer-
sity Press, 2007, pp. 210-225.
4
Cf. LEITE, Bruno Martins Boto. “Verdes em que vosso tempo se mos-
trou”. Das boticas jesuíticas da Províncias do Brasil, séculos XVII-XVIII.
In: KURY, Lorelai (org.). Usos e circulação de plantas no Brasil, séculos
XVI-XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2013, pp. 52-93;
WALKER, Timothy D. The medicines trade in the Portuguese Atlantic

159
TRATADO SOBRE MEDICINA

guesa e aprenderam sobre suas aplicações com os nativos, os


tais brasileiros aos quais se refere Piso. Dessa maneira, aqueles
que notaram a resinífera em ocasiões anteriores à ocupação
holandesa também dissertaram, em diversos formatos, sobre
a árvore e seu milagroso óleo. Desde meados do Quinhentos,
já se registravam as propriedades da substância que escorria
abundantemente “por pequenos furos feitos pelo caruncho
ou também por talhos de foices ou de machados”, que “coa-
lha depois e parece converter-se em uma espécie de bálsa-
mo”, sendo “ótimo para curar feridas, de tal maneira que, em
pouco tempo, (como dizem ter-se por experiência provado)
nem mesmo sinal fica das cicatrizes”, nas palavras de José de
Anchieta, extraídas de carta datada de 1560 e enviada da
capitania de São Vicente ao superior geral da Companhia de
Jesus.5
Cerca de uma década e meia depois, Pero de Maga-
lhães Gandavo afirma, em sua História da Província de Santa
Cruz,, que das copaíbas pelo mato adentro na capitania de
Pernambuco “se tira bálsamo mui salutífero e proveitoso em
extremo para toda sorte de enfermidades, principalmente nas
que procedem da frialdade, causa grandes efeitos e tira as
dores em muito breve espaço, por graves que sejam”. Além
disso, “as mais delas se acham roçadas dos animais que, por

world: acquisition and dissemination of healing knowledge from Brazil


(c. 1580-1800). Social History of Medicine, v. 26, issue 3, August 2013,
pp. 403-431.
5
ANCHIETA, José de. “Ao Padre Geral, de São Vicente, ao último de
maio de 1560”. In: Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões do
Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1933, p. 126.

160
MEMÓRIA ATLÂNTICA

instinto natural, quando se sentem feridos ou mordidos por


alguma fera, as vão buscar para remédio de suas enfermida-
des”.6 Gabriel Soares de Sousa, em 1587, também registra,
em seu Tratado descritivo do Brasil, que a árvore “não dá fru-
to que se coma,7 mas um óleo santíssimo em virtudes, o qual
é da cor e clareza de azeite sem sal; e antes de se saber de sua
virtude servia de noite nas candeias”. Conhecendo as suas
propriedades, além de “muito bom cheiro”, logo o conside-
raram “excelente para curar feridas frescas, e as que levam
pontos da primeira cura soldam se as queimam com ele, e as
estocadas ou feridas que não levam pontos se curam com ele,
sem outras mezinhas”. Com a aplicação do bálsamo, “se cria
a carne até encourar”, não deixando “criar nenhuma corrup-
ção nem matéria”. Substância “santíssima”, continua Soares
de Sousa, “para frialdades, dores de barriga e pontadas de
frio”, e aqueles que com o óleo se untassem também haviam
de se “guardar do ar, porque é prejudicial”.8 O padre Fran-
cisco Soares, inaciano que esteve no Brasil em algum mo-
mento entre sua vinculação à Companhia de Jesus, no ano
de 1575, e seu retorno a Portugal acompanhando o Visitador

6
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. A primeira História do Brasil: Histó-
ria da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, pp. 85-86.
7
Georg Marcgraf registra que as frutas são comestíveis, mas também faz
pouco caso delas, afirmando não terem sabor pronunciado. Cf. MAR-
CGRAF, Georg. História natural do Brasil. Edição comemorativa do
Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942, p. 131.
8
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil. Rio de Janeiro:
Typographia de João Ignacio da Silva, 1879, p. 183.

161
TRATADO SOBRE MEDICINA

Cristóvão de Gouveia, em 1589,9 soma-se a esse coro de le-


trados portugueses quinhentistas. Escrevendo na década de
1590 os manuscritos que vieram a ser conhecidos coletiva-
mente como Coisas notáveis do Brasil, o irmão também dis-
serta sobre o óleo “único para feridas”, estas que “tão bem
ficam sem sinal”, efeito que testemunhou ao lançar mão da
substância, como conta: “me cortaram uma cabeça de um
dedo [...] e pus um pequeno deste óleo e logo sarou e fiquei
são; só escassamente se enxerga um branquinho como linha
delgada por onde foi o golpe e não cria matéria”. O padre
ainda tece mais algumas considerações: “dizem que este de
que vou tratando é o verdadeiro bálsamo; [...] curam com ele
quente e preserva a carne de corrupção [...]. Para câmaras é
bom, bebendo algumas oito gotas em vinho; é bom para
inchaços e outras enfermidades”. Também comenta, assim
como Gandavo, sobre os animais que se roçam nas copaíbas
em busca da seiva curativa e, dessas notas, conclui que “tem
muitas coisas” sobre a planta, de maneira “que se poderá
escrever um livro”.10
Apenas para elencar mais alguns exemplos anotados
por lusófonos, desta vez do século XVII, Ambrósio Fernan-
des Brandão, em 1618, dedica algumas linhas de seus Diálo-
gos das Grandezas do Brasil ao bálsamo da “copaúba”, descre-
vendo, pela voz do personagem Brandônio, seu uso pelos
gentios e portugueses, estes que faziam uso da substância

9
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IX.
Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, p. 139.
10
SOARES, Francisco. Coisas notáveis do Brasil. Organização e notas de
Antônio Geraldo da Cunha. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
1966, pp. 165-167.

162
MEMÓRIA ATLÂNTICA

“porque têm experimentado ser excelente remédio para feri-


das; mas nas mais enfermidades guardam na cura delas dife-
rente estilo, porque se curam com médicos, barbeiros e ci-
rurgiões Portugueses”.11 Já o célebre Frei Vicente do Salvador
tece comentários muito similares aos de Gandavo sobre o
“precioso óleo” em sua História do Brasil, datada de 1627,
reverberando as numerosas exaltações previamente concla-
madas por seus predecessores.12
À época da ocupação neerlandesa, Piso registra que o
bálsamo da planta “não somente é eficaz pela admirável vir-
tude de limpar e consolidar, e para curar quaisquer feridas
(mormente dos nervos), ainda no princípio, e as mordeduras
de serpentes, e eliminar as cicatrizes”, mas também foi obser-
vado, “por todos os habitantes” e por ele, “que é de grande
utilidade ministrado internamente”. Listando a miríade de
empregos possíveis da substância, já pontuadas espaçadamen-
te pelos portugueses que o antecederam, prescreve o douto
que seria muito bom untar com ela “o peito quando o estô-
mago se acha debilitado, e o ventre, quando afligido por
dores de cólicas frias”, além de afirmar que “algumas goti-
nhas dadas convenientemente por via oral aumentam as for-
ças às vísceras e restituem-lhes o tono: também refreiam os
fluxos das mulheres, as diarreias e as gonorreias”.13 Piso enal-
tece reiteradas vezes o versatilíssimo remédio natural do Bra-
11
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das grandezas do Brasil.
Edições do Senado Federal, n. 134. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2010, pp. 136-138.
12
Cf. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). 5ª
edição. São Paulo: Melhoramentos, 1965, p. 68.
13
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 272.

163
TRATADO SOBRE MEDICINA

sil, com propriedades adstringentes, fortificantes e fragrantes


– a ponto de proteger de mosquitos e parasitas “os que pere-
grina[va]m de noite” com seus membros nus untados com o
óleo.14
Esses registros espaçados sinalizam tópicas notáveis a
respeito das impressões de médicos e leigos sobre as aplica-
ções da resina da copaíba e, ainda que citem mais ou menos
benefícios da substância, enaltecem-na invariavelmente. As-
sim sendo, cabem algumas considerações no que tange às
prescrições e notas que fez Zacuto Lusitano em relação ao
bálsamo. Como afirmou Gandavo e fica claro pelas indica-
ções de Piso, para os males decorrentes “de frialdades”, do
acúmulo preponderante dos humores frios no corpo, o óleo
seria excelente remédio. O autor do Tratado [...] prescreve-o
como uma das alternativas para aplicar nas fontes daqueles
sofrendo de dor de cabeça causada pelos fluídos frios, que “se
conhece por dor que vem sem febre, sem fogo, e dura muito
tempo”, com a “a cabeça carregada, os ouvidos” zumbindo e
o acúmulo de catarros.
Zacuto também recomenda o consumo de vinho com
um pouco do óleo da copaíba para aqueles afligidos por cóli-
ca, doença que “se faz de ventosiades” que se geram “na tripa
que chamam colo”, provavelmente baseado na noção de que
o bálsamo restituiria o tono e as forças das vísceras, como
afirmou Piso. O médico português ainda defende que a san-
gria não seria um método ao qual se deveria incorrer nos
casos daquela doença, assim como a purga, no princípio.
Mas, “se não obedecer a dor, o mechoacão é bom” para pre-

14
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, pp. 600-601.

164
MEMÓRIA ATLÂNTICA

parar purgativo, postas “duas oitavas [da raiz] em vinho”.


Procedimentos e ingredientes indicados, ainda, para outros
achaques, como a retenção de urina, cujo tratamento de-
mandava, entre outras medidas, que se untassem as virilhas e
os grãos do sesso com óleo de copaíba, além de induzir eva-
cuações com o mesmo purgativo usado para tratar da cólica,
preparado com mechoacão. Esta é, aliás, outra importante
planta natural das Américas cujas virtudes medicinais foram
valorizadas pelo doutor Zacuto e por muitos outros que dela
tomaram conhecimento entre o Quinhentos e a primeira
metade do Seiscentos.

O purgante mais brando e agradável

Nativo do Novo Mundo, mas não necessariamente do


Brasil, o mechoacão – cujo nome deriva da antiga província
mexicana de Mechoacán –, também era conhecido pelos
lusos como batata-de-purga. Na colônia de Portugal, a raiz
parece ter dado aos montes desde o século XVI,15 ao ponto
de ser descrita, na segunda metade da década de 1630, como
“tão abundante que ninguém se dá[va] ao trabalho de a se-
car”16 nas capitanias ocupadas pelos neerlandeses. Encontra-
da em várias regiões das Américas, recebeu a atenção de le-
trados espanhóis desde o Quinhentos, a exemplo do padre

15
Cf. SOARES, Francisco. Coisas notáveis do Brasil, p. 23.
16
HERCKMANS, Elias. “Descrição geral sobre a capitania da Paraíba”.
In: MELLO, José Antônio Gonsalves de (org.). Fontes para a história do
Brasil Holandês. 2. ed. Recife: Companhia Editora de Pernambuco,
2004. v. II, p. 97.

165
TRATADO SOBRE MEDICINA

José de Acosta, que, em seu Historia Natural y Moral de las


Indias, de 1589, elogia os curandeiros dos tempos dos Reis
Incas de Cuzco, muito hábeis com remédios simples por
terem conhecimento das virtudes e propriedades das mais
variadas ervas e plantas das Índias Ocidentais, dentre elas o
mechoacão, listado como raiz purgativa.17 Assim, suas pro-
priedades parecem ter circulado desde cedo entre os leitores
das narrativas sobre o Novo Mundo, abrindo caminho para
que essas informações chegassem, de alguma maneira, até o
doutor Zacuto.
Os usos e as virtudes purgativas
do mechoacão também parecem
ter integrado o repertório luso
desde o século XVI. Fernão
Cardim, por exemplo, ainda que
não disserte propriamente sobre
a raiz, usa-a como parâmetro de
referência para tratar do jeti-
cuçu, planta que seria “o mecho-
acão das Antilhas” – dando a
entender que seus leitores com-
preenderiam a comparação por conhecerem a batata-de-
purga –, de “raízes compridas como rabãos, mas de boa gros-
sura” e que “serve de purga”, provocando “muita sede, mas é
proveitosa, e obra grandemente”.18 O padre Francisco Soares

17
ACOSTA, José de. Historia Natural y Moral de las Indias. Tomo pri-
mero. Madrid: 1894, p. 403.
18
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil. Rio de Janeiro:
Livraria J. Leite, 1925, p. 73.

166
MEMÓRIA ATLÂNTICA

também denomina de “mechoacão das Índias” o jeticuçu,


“tipo [este] que [...] há muito serve para purga a todo o Bra-
sil”, sendo para tal fim muito bom, ainda que faça “algum
tanto fastio”, aspecto também registrado por Cardim. Soares
continua: “toma-se em polme e com vinho ou água, ou no
caldo, ou feita em conserva”, dada “de muitas maneiras”,
independente das quais “sempre faz obra”. Conclui afirman-
do que “é boa para toda enfermidade e é a comum purga do
Brasil, que se pudera escrever muito dela”.19
Grande ênfase foi dada à brandura dos efeitos decor-
rentes das evacuações provocadas pelo mechoacão, caracterís-
tica excelente na perspectiva de Zacuto, pois considerava
imprudente purgar em demasia nos climas quentes, devendo-
se recorrer mais frequentemente à sangria. A ideia também é
partilhada por Piso, que valoriza, dadas as particularidades
do Brasil, além de outros fatores, “o primado da flebotomia
no que respeita a condição e cura das doenças”, prescrevendo
que se recorresse à purga preferencialmente nos estágios tar-
dios das doenças, “benigna e raramente”, devendo-se ter, nas
terras meridionais, as evacuações “em menos apreço tanto
quanto nas setentrionais costuma dar-se-lhe a primazia, quer
para a conservação da saúde, quer para eliminação da enfer-
midade”. Dessa maneira, para se abster dos medicamentos
purgativos fortes, Piso afirma que todos os que remediavam
no Brasil, fossem “indígenas, estrangeiros, Molatos e Mamo-
lucos de raça mestiça”, eram “muito escrupulosos na prescri-
ção da dieta aos doentes” e “apenas vão além dos tamarindos
e dos preparados de mechoacão fresco, ou laxativos seme-

19
SOARES, Francisco. Coisas notáveis do Brasil, pp. 143-145.

167
TRATADO SOBRE MEDICINA

lhantes, nas moléstias mais agudas. Isto regulam os mais há-


beis [...]”,20 haja visto resultarem em evacuações menos agres-
sivas ao corpo.
As virtudes purgativas e a amenidade dos efeitos decor-
rentes das evacuações induzidas por meio de preparos com o
mechoacão também foram registradas por letrados variados
nas primeiras décadas do Seiscentos. Frei Vicente do Salva-
dor afirma ter-se “por mais fácil e melhor a purga da batata
ou mechoacão, que também há muita pelos matos”.21 Em
relatório datado de 1646, formulado pela administração ne-
erlandesa para reportar às autoridades da WIC sobre a situa-
ção da conquista no Brasil, os Altos e Secretos Conselheiros22
Adriaen van Bullestrate, Hendrick Hamel e Pieter Jansen Bas
registram brevemente que o “mechoacão, [a] radix chinae23 e
outras raízes [...], segundo a experiência, são muito medici-
nais [...]”.24 Já Elias Herckmans, que serviu como Conselhei-

20
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, pp. 76-78.
21
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627), p. 71.
22
Formado por três membros titulares, além de um assessor, o Alto e
Secreto Conselho compôs o governo do Brasil holandês a partir de 1637,
sob o Conde de Nassau, e continuou sua administração por cerca de dois
anos após a partida de João Maurício, até a instauração do Alto Governo,
em 1646. MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Companhia das Índias
Ocidentais”. In: HERKENHOFF, Paulo (org.). O Brasil e os holandeses
(1630-1654). Rio de Janeiro: GMT Editores; Sextante, 1999, p. 48.
23
Ver “Pau da China” no glossário ao fim deste volume.
24
BULLESTRATE, Adriaen van; HAMEL, Hendrick; JANSEN BAS,
Pieter. “Relatório apresentado por escrito aos Nobres e Poderosos Senho-
res Deputados do Conselho dos XIX, e entregue pelos Senhores H. Ha-
mel, Adriaen van Bullestrate e P. Jansen Bas, sobre a situação e a organi-
zação dos referidos países, tal corno se encontravam ao tempo de seu

168
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ro Político25 e diretor de territórios da conquista na segunda


metade da década anterior, discorre com mais detalhes, em
uma descrição da capitania da Paraíba, sobre as propriedades
da “mechoacana”: “verificaram algumas pessoas que raspa-
ram essa raiz verde, espremeram o seu sumo e o coagularam
ao sol [...]”, tomando, em seguida, a “substância com um
pouco de vinho, que é ela o purgante mais brando e agradá-
vel que se pode cogitar, dentre os remédios que menos enfra-
quecem o corpo”.26
As impressões e prescrições em torno da raiz, como é
possível supor, aparecem frequentemente acompanhadas de
comentários e notas a respeito das moléstias que afetavam as
vísceras. Para Willem Piso, “entre as doenças em geral pro-
vindas das obstruções comuns a esta terra [o Brasil] e ao Ve-
lho Mundo, acha-se a denominada em latim ‘Aqua Intercus’,
que ataca principalmente os estrangeiros, meninos e jo-
vens”.27 Tal enfermidade também era conhecida como hi-
dropisia e demandava, para sua cura, que se confiasse “mais
nestas plantas nativas, frescas e fortíssimas, do que em cousas
exóticas e muitas vezes provocadoras de náuseas”. Dessa ma-

governo e de sua partida dali”. In: MELLO, José Antônio Gonsalves de.
Fontes para a história do Brasil Holandês. 2 ed. Recife: Companhia Edito-
ra de Pernambuco, 2004, p. 225. v. II.
25
O Conselho Político foi uma organização administrativa composta por
três ou cinco conselheiros e um governador, a depender da época, encar-
regada de gerir, em nome da WIC, a ocupação neerlandesa no Brasil,
entre 1630 e 1637. MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Companhia
das Índias Ocidentais”, p. 46.
26
HERCKMANS, Elias. Descrição geral sobre a capitania da Paraíba, p. 97.
27
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 100.

169
TRATADO SOBRE MEDICINA

neira, purgava-se “bem o ventre com os seguintes remédios:


com as pílulas, que recebem a guta de Camboja macerada em
vinagre, com fécula ou com extrato de jalapa e mechoacão
fresco”.28 Ainda que escrevesse da Europa, Zacuto não destoa
dessas impressões. Além de prescrever a raiz para tratar da
cólica e da retenção de urina, também recomenda-a para
fazer purgativo nos casos de hidropisia, doença descrita como
um acúmulo anormal de fluidos, “fria e mortal, causada de
fraqueza do fígado e pobreza do calor natural”, percebendo-
se os hidrópicos pela evidente “inchação na barriga”. Em
função da abundância de líquidos causada por frialdade,
“purgar com mechoacão” seria “bom em vinho”, bebida con-
siderada quente, sendo boa a evacuação “que tira a água dos
hidrópicos, entre os quais remédios [o mechoacão] é o mais
brando”, afirma o esculápio lusitano.

Frutas restauradoras

O conhecimento sobre as virtudes dos simples ameri-


canos pelo doutor Zacuto, embora conste, como visto, no
Tratado de medicina[...], não ficou a ele restrito, aparecendo,
também, em outros volumes de seus escritos médicos.29 Den-
tre os gêneros por ele tratados, podemos citar o maracujá e o

28
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 102.
29
Cf. CARVALHO, Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano e um trata-
do de medicina dirigido ao Brasil. In: MILGRAM, Avraham. Em nome
da fé: estudos in memoriam de Elias Lipiner. São Paulo: Perspectiva,
1999, pp. 72-74; LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano: a sua vida e a
sua obra. Porto: Eduardo Tavares Martins editor, 1909, pp. 109-114.

170
MEMÓRIA ATLÂNTICA

ananás, frutas que também foram louvadas por uma série de


indivíduos que passaram pela América portuguesa, tanto por
seus sabores quando por suas propriedades curativas e bene-
fícios dietéticos.
O primeiro, fruta “sadia, gostosa e [que] refresca muito
o sangue em tempo de calma”, era muito estimada no Brasil
quinhentista, conforme escreve Fernão Cardim.30 Segundo
Gabriel Soares de Sousa, o maracujá seria frio “de sua natu-
reza” e bom “para doentes de febres [...]”. Mas os benefícios
iam além. A folha da rama trepadeira que produz os tais fru-
tos também seria dotada de propriedades medicinais, “muito
fria e boa para desafo-
gar, pondo-se em cima
de qualquer nascida ou
chaga, e tem outras
muitas virtudes [...]”.31
A polpa do maracujá,
do tipo mais comum
encontrado e cultivado
no Brasil, segundo
Willem Piso, era “sumo alívio e deleite para os febricitantes”
por conta das suas propriedades refrigerantes, fazendo com
que a fruta excedesse “todas as demais granadilhas”, não fa-
zendo “mal algum, mesmo que se coma em abundância [...].
Restaura admiravelmente os fatigados do calor e mata a se-
de”. Além disso, “desperta o apetite, reprime os ardores do
estômago, restaura os espíritos vitais, o que se obtém com o

30
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil, pp. 327-328.
31
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil, pp. 179-180.

171
TRATADO SOBRE MEDICINA

fruto fresco ou seu suco feito xarope propinado numa bebe-


ragem de água e vinagre”. Também seria, assim como o ana-
nás, as laranjas e os limões, dotado de propriedades anties-
corbúticas. Em tom similar à descrição de Soares de Sousa, o
médico batavo também registra que as flores e cascas do ma-
racujá produziam esses mesmos benefícios quando prepara-
das corretamente, de maneira “que mal cedem em qualidade
a qualquer outro fruto”, e suas folhas seriam “muito úteis
quando aplicadas em cautérios [...]”.32
Para Piso, “os alimentos, quanto menos compostos e
quentes, tanto mais uteis são à saúde”. Sendo assim, “as la-
ranjas, os limões grandes e pequenos, a Mangaba, o Murucu-
já, os melões, as melancias e os demais refrigerantes, crus ou
condimentados, são ingeridos com proveito pelas pessoas em
jejum”. Essas frutas eram consideradas “divinas entre as delí-
cias”, como já havia indicado Cardim, sendo também “úteis
ao coração [...]”,33 e cujos refrescos que delas se espremiam
eram “muito aprovados” pelo médico de Maurício de Nassau
nos casos de febres e outras doenças mais agudas.34 O doutor
Zacuto parece ter partilhado dessa ideia, haja visto que tam-
bém sinalizou os benefícios da fruta para tratar de pestes, de
variados tipos de febres malignas, assim como para distúrbios
do ventre – o que também é apontado por Piso –, relatando
alguns casos bem sucedidos de intervenções médicas com o

32
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 517.
33
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 58.
34
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 77.

172
MEMÓRIA ATLÂNTICA

maracujá para embasar sua argumentação em favor da refres-


cante fruta dos trópicos.35
Outra espécie utilíssima
e muito prezada era o ananás.
Um velho conhecido à época
de Zacuto, habitou as páginas
de relatos que remontam aos
primeiros contatos de euro-
peus com as terras americanas,
tendo sido apresentado ao
próprio Colombo em 1493,
na ilha de Guadalupe, que o considerou de grande sabor e
fragrância.36 Talvez por essa longevidade literária, Piso tenha
o considerado, em meados do século XVII, “um assunto já
tratado, [...] um fruto tantas vezes descrito e apresentado ao
vivo”.37 E desde sempre exaltado, vale dizer. “O sabor dos
ananases é muito doce, e tão suave que nenhuma fruta de
Espanha lhe chega na formosura, no sabor e no cheiro”, es-
creve Gabriel Soares de Sousa.38 Gandavo registra-a como a
“mais prezada” fruta, excedendo “no gosto a quantas [...] há
neste reino, e fazem todos tanto por” ela, “que mandam
plantar roças [...], como de cardais”, além de levarem fre-
quentemente a Portugal “muitos destes ananases em conser-

35
CARVALHO, Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano, pp. 72-73.
36
HUE, Sheila. Delícias do descobrimento: a gastronomia brasileira no
século XVI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 24.
37
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 412.
38
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil, p. 182.

173
TRATADO SOBRE MEDICINA

va”,39 pois, sem condimentação, não resistiam à travessia do


Atlântico, perecendo rapidamente. Já o calvinista francês
Jean de Léry, que esteve na baía de Guanabara entre 1555 e
1567, no contexto da tentativa de fundar ali uma colônia
que ficaria conhecida como França Antártica, afirma catego-
ricamente que o ananás seria “o fruto mais saboroso da Amé-
rica”.40
Além de seu paladar, suas propriedades e aplicações mé-
dicas também foram registradas desde o primeiro século de
ocupação do Brasil. Escrevendo de São Vicente, em 1561,
uma carta que seria endereçada ao padre Francisco Henriques,
Procurador da Companhia de Jesus em Lisboa, Manuel da
Nóbrega reporta que, junto da correspondência, levavam a
Portugal “conservas para os enfermos”, de “ananases para dor
de pedra [nos rins]”. Ainda comenta que “os irmãos que lá
houvessem dessa enfermidade deviam vir para cá, porque se
achariam cá bem, como se tem por experiência”.41 Algumas
décadas depois, Fernão Cardim reitera a impressão a respeito
da eficácia da fruta contra as afecções renais, anotando que os
ananases “são de bom gosto, cheiram bem, [e] para dor de
pedra são salutíferos [...]”.42 Comenta também que as conser-

39
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. Edições
do Senado Federal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. v.
100, p. 63.
40
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Martins, 1951, p. 162.
41
NÓBREGA, Pe. Manuel da. “Ao P. Francisco Henriques, Lisboa; São
Vicente 12 de junho de 1561”. In: LEITE, Serafim (org.). Cartas do
Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrega. Coimbra: Tip. da Altânti-
da, 1955, p. 377.
42
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil, p. 289.

174
MEMÓRIA ATLÂNTICA

vas feitas com o fruto, consumidas “pelas manhãs com vinho,


são medicinais”.43 O padre Francisco Soares, que o compara à
babosa pela maneira como “lança as folhas” quando nasce,
registra ser “muito boa fruta”, mas que “gasta ferro e as facas”
por conta de sua corrosividade. Assim como seus predecesso-
res, também afirma ser boa para pedra nos rins, e a água dela
destilada “faz urinar bem”. Ainda seria “boa para feridas ve-
lhas” e para “botar a peçonha [de cobras] pelo mesmo lugar”
da mordida, impressão ilustrada por um caso em que assistiu a
tal eficácia, no qual “dois índios, em lhes mordendo duas jara-
racas, lhes fez logo um vergão”, no qual o ananás “comendo o
desfez logo e botou a peçonha amarela [...]” para fora.44 Os
usos e o consumo do fruto, contudo, não poderiam ser indis-
criminados, pois poderiam ser muito prejudiciais para febres,
como registrou Cardim.45 Já Soares de Sousa adverte: “a natu-
reza deste fruto é quente e úmido, e muito danoso para quem
tem ferida ou chaga aberta”; mas os “ananases sendo verdes
são proveitosos para curar chagas” e seu “sumo come todo o
cancere e carne podre [...]”.46
“O suco, de que está cheio o fruto, recreia otimamente
o ânimo abatido, desperta os espíritos adormecidos e, sobre-
tudo, fortifica o estômago atacado de náuseas”, anota Piso. O
“líquido fresco ou o vinho dele fabricado são indicados para
a estrangúria e dores nefríticas; é antídoto, principalmente
para o suco de Mandihoca”, notavelmente venenoso. “Na

43
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil, p. 71.
44
SOARES, Francisco. Coisas notáveis do Brasil, pp. 151-153.
45
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil, p. 289.
46
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil, p. 182.

175
TRATADO SOBRE MEDICINA

falta do fruto, a raiz serve para os mesmos fins”. Contudo, se


seu suco fosse “tomado em demasia, ataca[ria] os vasos uriná-
rios”, pois “possui tal virtude corrosiva que não só fere a lín-
gua e o palato, mas deixa vestígios de seu sabor picante na
faca com que se corta, sabor tanto mais intenso, se não esti-
ver o fruto bem maduro”. Dessas considerações, indica aos
indivíduos febricitantes e àqueles sofrendo com feridas ou
úlceras que se abstivessem de maneira absoluta do ananás,
“pois acende tanto os humores que não só impede o restabe-
lecimento dos doentes, mas ainda os predispõe para o agra-
vamento da enfermidade”.47
O doutor Zacuto demonstra conhecer os benefícios do
ananás no tratamento de pedras nos rins, citando os usos que
se faziam da fruta no Brasil e das suas conservas na Europa –
ainda que não a recomende para nenhuma afecção urinária
no Tratado [...].48 Aconselha também o uso da “água destila-
da” da fruta, semelhante a Francisco Soares, para a dissolução
dos cálculos vesicais, baseado na mesma ideia de que o suco
do fruto verde gozava de potência corrosiva, conforme soube
de mercadores holandeses e portugueses que tiveram contato
com os trópicos49 e de maneira bastante próxima do que re-
gistrou Piso.
Percebe-se, assim, ainda que de maneira bastante opa-
ca, um pouco da disseminação das notícias sobre a natureza
do Brasil e das Américas no pensamento médico da Europa,
por meio da figura de Zacuto. O médico lusitano ainda pa-

47
PISO, Willem. História natural e médica da Índia Ocidental, p. 414.
48
CARVALHO, Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano, p. 73.
49
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 111-329.

176
MEMÓRIA ATLÂNTICA

rece ter conhecido uma série de outros gêneros, suas virtudes


e aplicações, como o jenipapo e a manipulação que dele se
fazia para a fabricação de tintas usadas entre os nativos do
Brasil para colorir o corpo e os cabelos,50 emprego que é lar-
gamente relatado nos escritos quinhentistas, deixando ainda
mais claro que as informações sobre o Novo Mundo e seus
elementos, de alguma maneira, integravam o repertório do
doutor.

“Deve confiar-se mais nestas plantas nativas...”

Os gêneros de plantas e frutos que foram tratados aqui


são apenas ilustrativos da presença e disseminação das informa-
ções a respeito das drogas americanas nos escritos dos séculos
XVI e XVII sobre as Américas e, em particular, o Brasil, que
então passaram a circular no Velho Continente. A copaíba e o
mechoacão habitaram as primeiras páginas que se dedicaram a
descrever, de maneira mais ou menos sistemática, a natureza
dos trópicos, tratando também de uma série de outros bálsa-
mos, raízes, frutos e elementos aplicáveis como remédios, sim-
ples ou compostos. Por meio desses registros e pela circulação
dessas notícias, aos poucos foi-se incorporando certos ingredien-
tes e procedimentos conhecidos e praticados pelos nativos das
Américas – ou mesmo pelos colonos que iam descobrindo e se
adaptando às condições daquelas novas terras – aos saberes dos
esculápios europeus.

50
CARVALHO, Francisco Moreno de. Zacuto Lusitano, p. 73.

177
TRATADO SOBRE MEDICINA

E assim deve ter sido o caso do doutor Zacuto. Ainda


que a maior parte dos relatos em língua portuguesa sobre o
Brasil não tivessem gozado de relevante circulação na Europa na
mesma medida em que as narrativas de viajantes estrangeiros
editadas e publicadas desde o Quinhentos,51 as tópicas a respei-
to dos gêneros aqui tratados são notáveis ao compararmos tex-
tos cujas informações não evadiram as fronteiras de Portugal –
ou mesmo aqueles escritos apenas para fins de comunicação
entre partes específicas, como as cartas jesuíticas – e obras como
a narrativa de viagem de Léry e os tratados natural e médico de
Marcgraf e Piso. De maneira que, embora não seja possível
mapear exatamente o que o doutor Zacuto leu a respeito do
Brasil e das Américas – ou mesmo se leu, havendo também a
possibilidade de ter recolhido observações de outros médicos-
leitores, ou em primeira mão de marinheiros e aventureiros em
Portugal e na Holanda,52 como se observou no caso do ananás
–, é possível afirmar que o médico estava a par dessas informa-
ções por ecoar várias tópicas então em voga a respeito das pro-
priedades médicas de muitos elementos nativos do Novo Mun-
do, particularmente da colônia lusitana. Ademais, seria necessá-
rio cabedal para que registrasse as prescrições consideradas mais
adequadas para “a cura de todas as doenças” que acometessem o
corpo naquelas paragens que seriam o destino de seus rebentos.

51
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de
viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808).
Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 12.
52
LEMOS, Maximiano. Zacuto Lusitano, pp. 109, 329, 346.

178
GLOSSÁRIO
INGREDIENTES, DOENÇAS, PROCEDIMENTOS
E TERMOS MÉDICOS

Para a confecção deste glossário de ingredientes, doen-


ças, procedimentos e termos médicos, foram privilegiados
dicionários e obras de medicina e cirurgia coetâneas – ou
bastante próximas temporalmente – do livro do doutor Za-
cuto destinado a seu filho. A ideia é apresentar as definições e
o entendimento partilhado à época sobre os assuntos médi-
cos, evitando o enquadramento das enfermidades ou dos
produtos indicados em concepções ou definições estranhas
àqueles que poderiam se valer do Tratado [...]. Por isso, ao
invés de definirmos “belida” por “catarata”, por exemplo,
optamos por indicar, com fez o dicionarista Antônio Morais
Silva, que se tratava de uma “névoa branca nos olhos”.
O verbete é formado pelo termo presente no Tratado,
a definição e sinônimos indicados pelos contemporâneos.
Nos casos em que há a variação de escrita no dicionário con-
sultado ou a indicação da equivalência em latim, nomeada-
mente no caso de plantas, seguem pontuados na definição.
Por fim, sempre que possível, consta a referência da obra

179
TRATADO SOBRE MEDICINA

utilizada para elaborar a nota, abreviada; as indicações com-


pletas seguem após a listagem completa.

Açúcar cande: Calda feita do açúcar cristalizado. (A. M. S.)

Afogação de madre: Expressão popular pitiatismo, sofrimen-


to de órgãos diferentes que refletem na madre; sufocação da
madre. (L.M.)

Agárico: Planta purgativa da natureza dos cogumelos, nasce


nos troncos das árvores em duas espécies – macho e fêmea.
(A. M. S.)

Agastamento: Cólera, ira; agastamento do coração (Cordis


dolor), o corpo quebrado. (R. B.)

Agrimônia: Erva cujos frutos são guarnecidos de biquinhos


agudos. (R. B.)

Água de betonica: Água obtida da infusão com uma pequena


planta aromática de flores purpúreas, comum nos prados de
Portugal e outras partes. Betonica officinalis. (Med.)

Água de tanchagem: Água advinda da infusão com a erva


medicinal que habita as margens dos campos cultivados,
geralmente úmidos, do Brasil e de Portugal, dos tipos maior,
média e lanceolada; plantago. (A. M. S. / Med.)
180
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Água rosada: Líquido feito da infusão de água com rosas


secas e cidra. (Oviedo)

Ajudas: Mezinha laxativa, purgante irritante (A. M. S.); re-


médio fluído para ajudar a natureza a desobstruir a região
inferior do ventre (R. B.).

Alacrão [alacral; lacrao]: Inseto venenoso, escorpião.


(A.M.S./R.B.)

Albricoque: O mesmo que damasco. (A. M. S./R. B.)

Alcatira [alquitira]: Planta da família dos cactos, com folhas


espessas e espinhosas, ou a goma medicinal dela extraída. (R.
B.)

Alchermes [alquermes; alkermes]: Licor ou confeição feito


com grãos de Quermes, uma mistura de sais de antimônio.
(A. M. S.)

Almecega [ou Almecega da Índia]: Resina de lentisco, que é


um tipo de pistache, planta recorrentemente encontrada na
região mediterrânea; aroeira, mastiche. Do latim Pistacia
lentiscus. (A. M. S.)

Almidão: o mesmo que polvilho.

Almorreima: Dilatação das veias junto ao ânus; hemorroidas.


(A. M. S.)

181
TRATADO SOBRE MEDICINA

Alosna [losna]: Tipo de Artemísia com folhas recortadas de


cor cinzenta e sabor amargo, utilizada também fabricação da
bebida conhecida como absinto; Absiuthium.

Alporca [alpórca]: Tipo de tumor cirroso que ocupa uma ou


todas as glândulas do pescoço e que podem irromper em
chaga. (A. M. S.)

Alvaiade: Preparo de chumbo feito em cal. (A. M. S.)

Apoplexia: Mal que, como um raio, fere e derruba subita-


mente; obstrução dos ventrículos do cérebro impedindo as
vias dos espíritos que sobem do coração e tira, de repente,
tira todo o movimento. (R. B.)

Apostema [postema]: Espécie de tumor, abscesso, que muda


de lugar no corpo. (R. B.)

Apozema [apózema]: O mesmo que acabar de ferver, decoc-


ção ou cozimento de várias raízes, olhas, sementes, flores,
etc., para expelir ou preparar os humores para a purga. (R.
B.)

Arrobe [robe]: O sumo de qualquer fruto que, reduzido por


evaporação, fica com a consistência de mel; xarope que con-
tém grande porção de suco de plantas. (Med.)

Azebre [azebar]: Sumo da erva babosa e de outras da espécie


Aloes. (A. M. S.)

182
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Belida: Névoa branca nos olhos (A. M. S.)

Bendita: erva nativa da Europa com propriedades medicinais


diversas, entre elas adstringentes, digestivas, tônicas, purifi-
cantes, entre outras; erva-benta, erva-bendita, cravoila, sa-
namunda.

Bofe: O mesmo que pulmão.

Bolo armênio: Sumo extraído das folhas de Acácia, forman-


do uma argila adstringente de coloração rubra; goma arábica
verdadeira. (R. B.)

Boráx [bórax]: Droga da Índia; suco concreto ou sal mineral


obtido com a evaporação natural das águas; tincal. (R. B. / A.
M. S.)

Borragem: Planta de caule peludo, folhas grandes e ovais e


flores azuis, que crescem com facilidade nas proximidades
das casas; foliagem, borracha-chimarrona. (A. M. S. / R. B.)

Canafístola: Cana com muita polpa, de cor preta, usada na


medicina. (A. M. S.)

183
TRATADO SOBRE MEDICINA

Capão [capam]: Galo capado. (A. M. S. / R. B.)

Caparrosa: Casta de sal mineral, congelado de uma água


verde destilada das minas e que tem virtudes metálicas; ca-
parrosa azul é o mesmo que sulfato de cobre, branca, sulfato
de zinco, verde, sulfato de ferro (A. M. S. / R. B. / Med.)

Cardo santo: Planta anual da flora portuguesa, de caule ra-


moso, hispido e alongado, cheiro desagradável e sabor muito
amargo, com propriedades tônicas e febrífugas; Cnicus bene-
dictus. (Med.)

Carregume [carregúme]: gravidade, peso. (A. M. S.)

Catolicão [catholicam, catholicaõ, carolicaõ]: Remédio pur-


gante composto de grande fama até o século XVIII, também
chamado de Catholicon Nicolai, por crer-se ter sido desenvol-
vido por Nicolau Salernitano, da renomada Escola Médica
Salernitana. Do grego Catolicos. (R. B.)

Cebola cecem: O mesmo que açucena. (A. M. S. / R. B.)

Cerusa: O mesmo que alvaiade.

Cevo: Gordura de carneiro, boi ou vaca, usada derretida. A


gordura que está dentro dos rins; sebo. (R. B.)

Clistel [cristel; clister]: Ajuda, mezinha. (A. M. S. / R. B.).


Enema, injeção por via oral. (Houaiss)

184
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Colirica passio: O vômito causado pela cólera [colírica], refe-


rendado deste modo por autoridades como Garcia da Orta
[1563]. (R. B.)

Confeição: Preparação de vários compostos medicinais. (A.


M. S.)

Confeição hamec [amec]: Confeição criada por Hamec, um


médico árabe, que lhe deu nome. (Erário)

Congoxa: Angústia, fadiga do ânimo. (A. M. S.)

Coroa de rei: Planta lilácea; lírio.

Creta [Cré]: Nome vulgar de uma variedade muito comum


de carbonato de cal; encontrada, em maior ou menor pro-
porção, em águas de fonte e em diversos outros lugares.
Apresenta virtudes absorventes, útil na diarreia, nas flatulên-
cias e nos arrotos ácidos; greda. (Med.)

Diacurcuma: Raiz que tinge de amarelo; do árabe curcuma.


(R. B.)

Diagrídio: Solução medicinal a base de enxofre. (Erário)

185
TRATADO SOBRE MEDICINA

Diamagaritão [diamargaritam]: Eletuário sólido ou líquido


cuja base são pérolas; trituração da jalapa. (R. B.)

Diapalma: Emplastro de vários ingredientes, mexido com


espátula de palma, e que tem troços de palma em decorrência
do uso desse instrumento. (R. B.)

Diaphenicam [diafenição]: Eletuário purgativo cuja base são


tâmaras e frutos de palmeira. (R. B.)

Diaquilão: Emplastro digestivo, resolutivo e emoliente. (R.


B).

Diarrodão abade: Confeição de pós cardiais estomáticos cuja


base são rosas vermelhas. (R. B.)

Embira: Planta ordinária no Brasil, da qual há várias espé-


cies, cuja casca tem uma fibra branda e rija, podendo substi-
tuir o cânhamo na tecelagem. (A. M. S.)

Emético: Que provoca vômito. (A.M.S.)

Empolinha [empola]: Pequenas bolhas que forma a epiderme


levantada pela serosidade, pela fricção repetida, queimadora,
etc. (Med.)

186
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Encordio: Nome vulgar para o tumor ou bubão que nasce na


virilha; morbo gálico. (R. B.)

Enxundia: Gordura localizada no ventre da galinha ou outras


aves. (R. B.)

Epitema [epithema, epitima]: Medicamento confortativo


que se coloca sobre a parte; do grego Epitithimi. (R. B.)

Escamonea [escamoneia]: Tipo de erva cujo caule tem quali-


dades purgantes; diagridium. (A. M. S.)

Esquinência: Doença que aperta a laringe, a faringe e impede


o respirar e o engolir. (A. M. S.)

Etiguidade [ethiguidade]: Febre héctica, o que se manifesta


em quem sofre desse mal. (A. M. S. / R. B.)

Estoraque: Árvore semelhante ao marmeleiro, com folhas


mais compridas e menores; licor cheiroso que se destila da
mesma árvore. (R. B.)

Febre héctica: Referente a febre tísica (A. M. S.)

Filhó: Massa estendida e delgada, feita com azeite e passada


por mel ou calda de açúcar. (A. M. S.)

187
TRATADO SOBRE MEDICINA

Fleima [fleuma]: Humor úmido e frio, retirado com dificul-


dade; pituita, flegma, escarro. (A. M. S.)

Flores cordeais: Provavelmente as flores do mamoeiro.

Frenesis [frenezis]: Contínuo delírio com febre, causando


inflamação nas meninges, diferente da mania, melancolia e
delírio. (R. B.)

Garico [agárico]: Excrescência esponjosa, como um cogume-


lo, que se cria na superfície de troncos e galhos de arvores, e
se apresenta em duas espécies – macho e fêmea. (R. B.)

Goma arábica: Resina natural que é extraída de duas espécies


de acácias da região subsaariana.

Gota coral: Mal de gota; epilepsia. (Med.)

Granada: Pedra preciosa semelhante a um rubi; virtuosa para


doenças cardíacas e como contraveneno. (R. B.)

Héctico: Aquele que adoece de héctica, que é o mesmo que


tísico.

188
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Hidropisia: Acumulação anormal de fluído nas cavidades


naturais do corpo ou no tecido celular.

Hiera piera: Medicina outrora muito popular, composta por


aloés finamente pulverizado e canela alba. (Mat.)

Jacinto: Flor vulgarmente conhecida como lírio azul. Do


latim Hyacinthus. (A. M. S. / R. B.)

Lambedor: Medicamento líquido, composto da infusão de


alguma planta com um xarope; xarope simples, emulsão,
poção doce. (Med.)

Lanceta: Instrumento de aço, delgado, chato e bastante agu-


do, utilizado para sangrar e abrir apostemas. (Med.)

Licenso [leicenço]: Tumor com inflamação nas partes carno-


sas, causado de sangue grosso e viciado; furúnculo. (R. B.)

189
TRATADO SOBRE MEDICINA

Mechoacão: Raiz medicinal muito comum no México, de


onde, inclusive, vem seu nome. Apresenta-se em três espé-
cies. (R. B).

Mirabolano: Espécie fruto semelhante às ameixas, dos quais


se faziam unguentos, que podem ser encontrados em vários
tipos: citrinos ou amarelos, usados como purgantes da cólera,
raiva; chebulos e roxos, sados para purgar os humores fleg-
máticos e as febres inveteradas; índicos, de cor negra, usados
contra a melancolia; belliricos usados em doenças na cabeça e
no coração. (R. B.)

Mitridato: Unguento do contra veneno mitridatico, desco-


berto por Mitridates.

Modorra: Sonolência em que caem os enfermos, letargo. (A.


M. S.)

Molarinha: Erva vulgar; mudadeira.

Monca [monco]: Excremento grosso do nariz. (R. B.)

Mortinhos: Bago das murtas, negro depois de maduro, com


qualidades adstringentes e fortificantes; myrulli. (R. B.)

190
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Obrea [obreya]: Folha fina de massa de farinha de trigo, co-


mo uma hóstia. (A. M. S.)

Óleo rosado: Óleo preparado com rosas, que lhe dão cor e
nome. (R. B.)

Óleo violado: Óleo preparado com violas (violetas), que lhe


dão cor e nome. (R. B.)

Pau-cabra: Arbusto com variadas propriedades medicinais,


dentre as quais vermífuga; Trema orientalis.

Pau da China: Arbusto encontrado na China e no Japão, em-


pregado nas moléstias sifílicas, ordinariamente associado à
salsaparrilha; Smilax china. (Med.)

Pedra bazar: Pedra que se forma dentro do corpo de um ani-


mal da região das Índias Orientais, de nome Bazar, semelhante
ao veado, com virtudes contra-veneno. (R. B.)

Pedra hume: Sal mineral, geralmente da cor branca e com


características luminosas, usado para curar chagas. (R. B.)

191
TRATADO SOBRE MEDICINA

Pevide: Semente como as de melões e melancias. (A. M. S.)

Pílula coechia [cochia]: Pílulas que poderiam ser encontradas


nas formas maior e menor, compostas, entre outros ingredien-
tes, por hiera piera, diagrídio, aloes e escamoneia. Apresentava
virtudes contra flatulências e humores aquosos. (Cyclo)

Pílula de luz: Pílulas de propriedades purgativas, encontradas,


também, nas formas maior e menor. Do latim, Pílulas lucis.
(Bul.)

Pó da Coralina: Pó feito de uma espécie de musgo marinho,


obtido na superfície de corais, conchas e alguns peixes. (R. B.)

Porro: O mesmo que alho poró. (A. M. S. / Med. / R. B.)

Prioris [prioriz]: O mesmo que pleuris [pleuriz]; dor de um


lado, aguda e violenta causada por inflamação na pleura ou na
parte externa do bofe [pulmão]. (A. M. S.)

Puxo [púxo]: Vontade contínua, dolorosa e quase inútil de ir à


banca, acompanhada de calor no ânus, observada na disente-
ria; força impressa pela mulher na hora do parto. (A. M. S. /
Med.)

Rabão: Hortaliça vulgar que apresenta uma espécie de raiz


branca sucosa. (A. M. S.)

192
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Rânula [rànula]: Tumor que nasce debaixo da língua junto ao


freio (A. M. S.)

Redanho [redenho]: Cartilagem ou panículo gordo que cobre


os intestinos dos carneiros e outros animais, com formato
semelhante ao de uma rede. (R. B.)

Reuma [reima]: Fluxo ou corrimento de um humor crasso ou


indigesto. (A. M. S.)

Rosa de Alexandria: Tipo de rosa usada desde muito na medi-


cina, especialmente para a extração de óleos; rosa centifólia,
rosa damascena.

Rosmaninho [rosmarinho]: Planta em forma de arbusto de


folhas aromáticas. (R. B.)

Ruibarbo: Planta comestível de caule grosso arroxeado e fo-


lhas largas, virtuosa para o tratamento do estômago e do baço.
(R. B.)

Salsaparrilha: Planta medicinal antivenérea; salsa. (A. M. S.)

Sene: Planta medicinal purgativa, considerada como bom


purgativo de humores melancólicos, mais comum de terras
quentes como a Índia, Egito e Alexandria; Sene Oriental e

193
TRATADO SOBRE MEDICINA

Sene do Levante. Há variante da espécie que poderia ser en-


contrada da Europa; Senna Itálica, Senna Foliis Obtulis, Sen-
na Florentina. (R. B.)

Sesso [cesso]: A parte do corpo por onde saem os excremen-


tos; ânus. (A. M. S. / R. B.)

Siba: Molusco abundante nas costas oceânicas, cuja espécie


mais conhecida apresenta corpo oval, largo, pontos purpú-
reos, oito tentáculos e cerca de 35 centímetros; choco. Do
latim Sepia offinalis. (Med.)

Sine quibus: Termo latino, em tradução livre “sem o/a qual”.

Solimão: Sublimado corrosivo. (A. M. S.)

Tacamaca: Espécie de resina transparente e cheirosa que se


faz de uma planta do mesmo nome natural da ilha de São
Lourenço. (R.B.)

Tamarinho: A árvore que dá os tamarindos. (A. M. S.)

Terementina [terebintina]: Resina da árvore Terebinto; tere-


bíntia. (R. B.)

194
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Tisana: Beberagem medicinal purgativa, feita em geral com


ceveda. (A. M. S. / R. B.)

Tísico [tísica; thysico]: O que tem chaga no bofe e que vai se


mirrando a cada dia (o doente); tuberculose. (R. B.)

Toutiço: A parte traseira e inferior da cabeça. (A. M. S.)

Triaga: Composto com virtudes contravenenos. (A. M. S. /


R. B.)

Tutia: Fuligem metálica encontrada nos barros das fornalhas


de fundição de cobre ou de bronze, com propriedades pur-
gantes e também utilizada para doenças oculares e na cicatri-
zação; tutia verdadeira. A tutia obtida pelo marfim queimado
seria denominada falsa; pedra Calmia, Calamina. (R. B.)

Unguento: Medicamento externo, usado para o tratamento


de feridas e ulceras, aplicados sobre a chaga ou por fricção.
Em geral, são compostos por gorduras, azeites, ceras, resinas,
pez, e/ou terebintina. (Med.)

Unguento da Condessa: Unguento feito de óleo de murta,


cera amarela, maças de cipreste, cascas de romã, almecega e
sumagre, virtuoso contra abortos e contra as debilidades do
ventre e dos rins; Unguento Myrthino Composto. (Ph. Ph.)

195
TRATADO SOBRE MEDICINA

Unguento de Agripa: Unguento feito com diversas raízes,


cebola albarrã e cera, cujo nome faz referência a seu inventor,
um rei da Judeia. Virtuoso para males do ventre e para os
hidrópicos. (Ph. Lus.)

Unguento populeão [unguento populeam]: Unguento feito


de mandrágoras, dormideiras negras, erva moura, alface, vio-
las, unto de porco, entre outros ingredientes, com virtudes
várias, desde a excitação do sono à cura das dores de cabeça,
das queimaduras, do leite empedrado e das hemorroidas.
(Ph. Lus.)

Vagado: O mesmo que vertigem; a sensação que representa


andar com tudo vagando e à roda. (R. B.)

Vasca: Movimento convulsivo, sangramento. (A. M. S.)

Vazios: O mesmo que hipocôndrios, ou cada uma das partes


laterais e superiores do abdômen. (R. B.)

Vide: A rama ou as varas que dão as videiras. (R. B.)

Vigia [vigília]: O achaque de não poder dormir. (R. B.)

Vinho cascarrão: tipo de vinho forte e grosso. (A. M. S.)

196
MEMÓRIA ATLÂNTICA

Vinho do Rim [vinho do Rhim / vinho de Rheim]: O vinho


da região do Reno, indicado porteriormente para fins medi-
cinais também por outros doutores de renome, como João
Cuvo Semmedo (170) e Jacob de Castro Sarmento (1758).

Vitríolo: Sal de sabor austero, adstringente, formado pela


combinação de um metal com ácido vitriólico, de que há
várias espécies. (A. M. S.)

197
ABREVIATURAS E REFERÊNCIAS

(A. M. S.) SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua


portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e
nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescenta-
do. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.

(Bul.) BULLEIN, Willian. Bulleins Bulwarke of Defence


Against All Sicknesse, Soarenesse, and Woundes […] London:
Thomas Marshe, 1579.

(Cyclo) REES, Abraham. The cyclopædia; or, Universal dic-


tionary of arts, sciences, and literature. London: Longman,
1819. Volume 9.

(Erário) FURTADO, Junia Ferreira (org), FERREIRA, GF.


Erário mineral. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ. 2002.
Mineiriana collection. Clássicos series.

(Houaiss) HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Lín-


gua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

(L. M.) São Paulo, Fernando. Linguagem médica popular no


Brasil. São Paulo: Editora Itapuã, 1970. 2v.

199
TRATADO SOBRE MEDICINA

(Mat.) DUCHÉ, Thomas. Materia medica and therapeutics:


with ample illustrations in All the Departments of Medical Science,
and Very Copious Notes of Toxicology, ... Medical Students, Prac-
titioners, and Teachers. Philadelphia, Lippincott, 1857.

(Med.) CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de


medicina popular e das sciencias accessorias ... 6. ed. considera-
velmente aumentada, posta a par da ciência. Paris: A. Roger
& F. Chernoviz, 1890. 2 v.

(Oviedo) FERNÁNDEZ DE OVIEDO, Gonzalo. Historia


general y natural de las Indias. Madrid: Atlas Editorial. Bibli-
oteca de Autores Españoles. Edición y estudio preliminar de
Juan Pérez de Tudela Bueso, 1992.

(Ph. Lus.) SANTO ANTONIO, Caetano de. Pharmacopea


Lusitana reformada: methodo pratico de preparar os medi-
camentos na forma Galenica e chimica. Mosteyro de São
Vicente de Fora, 1711.

(Ph. Ph.) CABRAL, B. J. O. T. Pharmacopea das pharmaco-


peas nacionaes e estrangeiras, excepto a excepto a geral destes
reinos, citadas nos regimentos dos pharaceuticos portuguezes de
1831 e de 1833: ou, Collecção de todas as formulas e proces-
sos dos medicamentos preparados conforme as pharmacopeas
Bateana [et al.]Lisboa: Impressão Régia, 1833. Volume 1.

200
MEMÓRIA ATLÂNTICA

(R. B.) BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Lati-


no. 8 vol. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
Jesu, 1712 ‑1728.

201
PARÂMETROS PORTUGUESES DE PESOS E
MEDIDAS

Medidas de capacidade
NOME SUBDIVISÃO EQUIVALÊNCIA
Tonel 2 pipas 840 litros
Pipa 25 almudes 420 litros
Almude 2 potes 16,8 litros
Pote 6 canadas 8,4 litros
Canada 4 quartilhos 1,4 litro
Quartilho 2 meio-quartilhos 0,35 litro

Medidas de massa
NOME SÍMBOLO SUBDIVISÃO EQUIVALÊNCIA
Tonelada 13,5 quintais 793,152 quilogramas
Quintal 4 arrobas 58,72 quilogramas
Arroba 32 libras 14,688 quilogramas
Libra [arrátel] 4 quartas 0,459 quilograma

Quarta 4 onças 0,11475 quilograma


Onça 8 oitavas 28, 6875 gramas

Oitava 3 escrópulos 3,5859 gramas

Escrópulo 24 grãos 1,1953 grama

Grão* --- 0,0498 grama

*Menor medida de peso em Portugal.

203
SOBRE OS AUTORES

ANA CAROLINA DE CARVALHO VIOTTI é doutora em


História (UNESP/Franca), pós-doutoranda em História das
Ciências e da Saúde (COC/FIOCRUZ) e historiógrafa do
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica
(CEDAPH/UNESP). É investigadora correspondente do
Centro de Humanidades (CHAM – Universidade Nova de
Lisboa), do Centro de História (FLUL – Universidade de
Lisboa) e pesquisadora do grupo Escritos sobre os Novos Mun-
dos. Entre suas publicações, destacam-se os livros As práticas e
os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808) (Alameda,
2017), Pano, pau, pão. Escravos no Brasil colônia (Ed. Uni-
fesp, no prelo) e a edição, com Jean Marcel Carvalho França,
da Coleção de várias receitas e segredos particulares de nossa
Companhia (Edições Loyola, no prelo).

GABRIEL FERREIRA GURIAN é mestre em História


(UNESP/Franca), onde desenvolve, atualmente, seu douto-
ramento em História. É pesquisador do grupo Escritos sobre
os Novos Mundos e autor de Bebidas e bebedores no Brasil ho-
landês (1624-1654) (Ed. Unifesp, no prelo).

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