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EXPOQSICOES E CRITICOS DE ARTE AFRO-BRASILEIRA: UM CONCEITO EM DISPUTA “Arte afro-brasileira existe e nao existe.” A resposta de Emanoel Araujo 6 pergunta “O que é arte afro-brasileira?”, em entrevista concedida ao jornalista Oswaldo Faustino em 2014 para a edicGo 14 da revista O Menelick 2° Ato, deixa uma inquietagdo no ar. A ambivaléncia contida na frase do diretor-curador do Museu Afro Brasil (MAB) prossegue na explicagdo que a sequenciou: HELIO MENEZES, 2018 Ela existe através desses exemplos que sd0 quase que historicos hoje em dia, mas nao se pode negar que um Estévao Silva [1844-1891], que & um pintor académico, classico, filho de escravos, € muitos outros artistas, como Manoel da Cunha [1737-1809], ele pré- Prio escravo, deixassem transparecer na sua obra alguma coisa ligada 4 Africa. Porque a Africa que nés conhecemos é inventado para a gente, Nao ¢ uma Africa real que ‘est6 do lado de 6 do Atléntico. Estevao Silva tem uma cor quente e a gente pode atri- buir @ ele alguns aspectos, além da sua propria origem. Mas isso ndo quer dizer que o arte dele seja afro-brosileira. E uma arte quente de um artista negro, com caracteristicos de sua propria vivéncia? As consideracées de Araujo sobre a produgdo de Estévao Silva—e, conse. quentemente, sobre o conceito mesmo de arte afro-brasileira—parecem gerar mais perguntas do que fornecer respostas. Fazem também ecoar questées candentes que tém permeado os debates mais contempordneos sobre o tema. Afinal, o que é arte afro-brasileira? Além do “propria origem”, quais outros critérios circunscrevem (ou NGo] essa producao? Seria essa Grea definida pela presenca em obras de “alguma coisa ligada 4 Africa”? A autoria negra, a seu turno, sem um conteido também afro- -brasileiro nas obras —como no caso de Estévao Silva—, nao é criterio suficiente para essa identificagé0? E quanto o contrério? Uma obra cujo conteddo tematize questées afro-brasileiras, mas sem uma correlata autoria negra, a torna parte inte- gronte dessa area? O debate @ longo, e o interesse crescente de pesquisadores sobre o temo acompanha a multiplicagao de pontos de visto e interpretacdes sobre 0 conceito. Neste breve artigo, me deterei no mosaico de usos e definicdes que tem dado corpo e sentido, ainda que instavel, d ideia de arte afto-brasileira. A partir da andlise das contribuigées de tedricos que se voltaram ao tema ao longo do século 20, me de- brucarei sobre algumas exposicdes organizadas ao redor do termo, sublinhando as controvérsias que guiaram suas escolhas curatoriais. Buscando entender, afinal, por que esso arte “existe e ndo existe”. 575 Para essa discussdo, @ preciso levar em conta que a definicGo de arte afro -brasileira ndo é evidente. Mesmo as designacées so diversas: arte negra, afrodes. cendente, preta, diaspérica, afro-orientada, de matriz africana —quando néo arte naif ou “popular”, simplesmente. Sabemos, porém, que os termos no s6o inocentes eles carregam historias, traduzem interpretagdes, atuando como verdadeiros critérios de classificagao. N&o 4 too, artistos, curadores, criticos e diletantes tm recorrido o diferentes terminologias e modos de definir a Grea: com base no fendtipo do produtor; pautada na origem dos personagens retratados; pelo viés da reprodugGo de canones africanos nas obras; ou, ainda, pelo conteddo latente dos produtes, em geral ligodo a temas de negritude e africonidade. Pora 0 antropdlogo Kabengele Munanga, por exemplo, a expressGo “arte ne- gra” deveria ceder espaco a “nocdo mais ampla, ndo biologizada, ndo etnicizede e ndo politizado” de arte afro-brasileira. Em suas palavras: no medida em que esta arte tornou-se uma dos expresses da identidede brasileira. ou sejo, uma dos vertentes da arte brasileira, qualificé-la simplesmente de arte negra no Brasil seria cair num certo biologismo. Seria excluir dela todos os artistas que. inde- pendentemente de sua origem étnica, participam dela, por op¢ao polltice-ideolégice, religiosa, ou simplesmente por emocdo estética no sentido universal do palavra > O historiador Roberto Conduru, por sua vez, defende que “talvez fosse melhor falar em arte afrodescendente no Brasil’, ponderando que “embora seja. a principio, mais correta’, essa nomenclatura nao tem “a forca sintética de arte afro-brasileira, que i@ ganhou livros e museus, sendo a mais corrente no mundo da arte, na midia” + O dissenso & compreensivel e revela os limites e impasses de uma adjetivasso homénima— “arte afro-brasileira” —aplicada a uma miriade de artistas heterogéneos. com diferentes intengdes, tcnicas, objetos, filiagdes e influéncias estéticas, e ainda his- toricamente distanciados. Mestre Valentim (1745-1813), Estévao Silva (1844-1981), Arthur Timétheo da Costa (1882-1922), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Mestre Didi (1917-2013] Rubem Valentim (1922-1991), Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962), Yédamoria (1932- -2016), Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974), Sénia Gomes, Rosana Paulino, Ayrson Heraclito, Lidia Lisboa, Sidney Amaral (1973-2017), Paulo Nazareth, Renata Felinto, Dalton Paulo, Michelle Matiuzzi, Priscila Rezende e Jaime Lauriano so alguns dos nomes que ora teivindicaram, ora sGo externamente definides como artistas referéncias da area. A diver- sidade formal e seméntica de sua producdo, além de svas diferentes trajetérias de vide @ cria¢Go deixam, entretanto, clara a irredutibilidade do conjunto a uma narrativa unica. “Por grande que seja a diversidade de ervas, chamam a tudo salado”,> j6 dizio Montaigne (1533-1592) em um de seus fomosos Essais.° Se é correto afirmar que uma salada encerra uma multiplicidade de componentes diversos, é igualmente verdadeira sua capacidade de, a0 abarca-los, realcar similitudes que Ihes eram apenas tacites até entao. Como pretendo demonstrar nas paginas que seguem arte afro-brasileiro @ uma categoria de significado elastico, carecendo de defini¢o unificadora entre pesquisadores, artistas e curadores Tal como o drama de Hamlet, parece carregar consigo © questionamento de ser e ndo ser, de situar-se ao mesmo tempo no registro do visibilidade e do ocultamento. Para entender essa posicao ambiguc faz-se necessé Fo investigar os significados que vém sendo historicamente atribuidos ao termo, bem como os usos mobilizados no cenario mais contemporaneo. Abnal, quando se faz ov se fala em arte afro-brasileira, do que se esta falando 0 que se esto fazendo? Quando uma exposicdo ov museu ¢ organizado em tomo do concerto, que criterios @ entendimentos 80 por eles acionados—e, por fim, tam- bem cnodos? (UMA ARTE DE PAUITOS NOMES: DEFINICOES EM DISPUTA A resposta de Araujo nos ajuda a desvendar parte desse enigma ao trazer a super five 08 termes que Luiz Gonzaga Duque Estrade (1863-1911) havia devotado, carca de um saculo e meio antas, 5 naturezas-mortas de Estévao Silva "9 4), artista negro pevtencente d ultima geracdo do Academia imperial de Belas Aries. Segundo o critico de arte carioce, em texto datado de 1891, [o] prodigabdede de vermethos, de amorelos e verdes [das telos de Siva] ndo € nem pode ser mass que um reflexo transhitrado do seu instino colorista, wibratil a sensacoes bruscas, como ¢ peculioy 2 rage de que veio. |] Quem, como ele, vem de uma rude raca oprimido, ver soendo. ¢ vem lutando, néo tem @ nebulosidade grisata, dificultosa, mandtia, eno velods dos finos: ve sempre sanguineo, vé sempre desesperadamente amorelo,” Como se pode depreender, o texto de Gonzaga Duque nao visava propriomente 4 questéo do arte ctro-brasileira. Ele revela, contudo, uma tendéncia racializante da erica de orte feita no Brosil que perduroria pora além de sue época, chegando aos dias ctvais: ¢ associago de caracteristicas raciais do produtor como determinantes do resutado fina! de seus produtos Como se 0 cromatismo dos telos de Estévao Silva se ex. piicasse pelo “instinto” do pintor, um dado “peculiar 6 raga de que veio’, e ndo aquilo que € ume coracteristica resultante de suas escolhas estéticos e inventividode artistica Tal perspective essencialista, que busca fixar caracteristicas comportamentais & cognitivas o uma dada cor de pele, foi reiterada, com maior ou menor intensidad servindo ¢ diferentes propésitos, em boa parte das crificas @ consideracdes tedricas vobadas 6 producéo de arte afro-brasileira e de artistas afrodescendentes ao longo do século 20 [os fermos, como veremos, nem sempre sao tides como sindnimos para 8 autores). A ideia que o origem negra dos artistas determinaria “as imperfeicdes, 9 tesco de execucéo” de suas obras,* ou consirucées como “o homem nordestino, sobre ser um individuo antropologicamente mestico, acusa nitidamente uma cultura mestica’® por exemplo, povoariam as publicagdes de autores como Nina Rodrigues (1862-1906), em 1904; Mano de Andrade!® (1893-1945); Saia (1911-1975), em 1944; Arthur Ramos!’ {1903-1949}; Mario Borata'? (1921-2007); ¢ Clarival do Prado Vallada: res"? (1918-1983], pore citarmos apenas algumas referéncios fundamentois do area E certo que houve contraponios, como os escritos de Manuel Querino'4 (1851 1923) bem demonstram, co afirmar que “foi 0 trabalho do negro que aqui sustentou, por séculos e sem desfalecimento, a nobreza @ prosperidade do Brasil”, em oposicao 00 racisma de seu contemporaneo Nina Rodrigues. Também o antropélogo Mariano Carneiro de Cunha’? (1889-1958), em importante artigo sobre o tema, ofirmou no contram&o que “a infiltragdo do elemento escravo nos artes brosileiras coincide com a propria eclosho das mesmas no Brasil”, ligando umbilicalmente o surgimento das ortes no pais c um modo de fazer africono. Tal identificacéo de uma persisténcio de longo praz0, estrutural, ligando arte africane e afro-brasileira teve fundamental importéncic 377

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