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2.ed.
Casos de Ética Empresarial
2.ed.
ISBN: 978-85-352-7832-3
ISBN (versão digital): 978-85-352-7950-4
Nota
Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer
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encaminhar a questão.
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perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação.
S766c
2. ed.
ISBN 978-85-352-7832-3
v
Epígrafes
vii
Capítulo
1
Um tempo bem empregado
de Ética. Por que será? Em boa parte porque muitos carecem de conhecimento
de causa. Assim, quando chamados a avaliar desvios morais, a situação se com-
plica. O que fazem então? Opinam de acordo com seus próprios valores e vieses.
Ou pisam e repisam um lugar-comum: o caráter das pessoas é algo inerente a
elas, como que impresso em seu DNA – uma divisão imutável entre maçãs boas
e maçãs más, e nada se pode fazer a respeito. Outra fábula.
Em função disso, o consenso se torna quase impraticável e as reuniões se
arrastam intermináveis. Aí, quando o tempo se esgota e a exaustão toma conta
de todos, improvisam-se acordos. Das maiorias ocasionais que se formam, dois
arranjos sobressaem.
O primeiro é o da “turma dos durões”, que não transige quando os implicados
são pessoas humildes – bagres, na linguagem corporativa. Quem compõe essa
turma? Colaboradores que cultivam sólidos princípios e brigam por eles. Mas
também, e de forma oportunista, gestores que posam de vestais e cujas expertises
são o jeitinho e o tapetão. Não faltam, é claro, burocratas que fazem bravatas
como se fossem corregedores incorruptíveis nem infratores enrustidos que
vestem o figurino de inquisidores para fingir honradez. Há, ainda, funcionários
inseguros que acham mais confortável seguir a corrente do que remar contra
ela. Nessas condições, quem fizer uma análise menos apaixonada leva a pecha de
complacente. E quem assiste à cena logo pensa em pantomima.
O segundo arranjo, no extremo oposto, ocorre quando caciques estão im-
plicados. Forma-se então a “turma dos pragmáticos”, que proclama isenção e
rigor, mas simula um faz de conta para deixar tudo como está. Inventa des-
culpas, justificativas, circunstâncias atenuantes. Requer vistas dos depoimentos
e, passado um bom tempo, não dá satisfação. Volta e meia exige mais e maiores
esclarecimentos, invoca precedentes, esbanja prudência ou capricha nas firulas
jurídicas. Por fim, se não houver jeito, arquiva a denúncia. Quem não se conforma
com isso, ainda que recite itens do código de conduta da empresa, vira motivo
de chacota: não sabe ler as entrelinhas, não entende as exceções, não capta as
sutilezas do caso. E quem assiste à cena logo pensa em farsa.
O que une as duas “turmas”? O giro em falso. Faltam referências que orga-
nizem o pensamento. Falta repertório para enfrentar os problemas de forma
objetiva, explícita e verificável. Falta conhecimento de causa.
O presente livro inova a esse respeito. Faz valer o tempo que se gasta para
lê-lo. Oferece chaves para entender os fatos morais e para decidir a respeito.
Apresenta uma bateria de conceitos científicos que clarificam situações comuns
ao mundo dos negócios. Frente aos dilemas que as práticas cotidianas ensejam,
orienta e capacita os leitores a se posicionarem de modo articulado. E permite
várias leituras:
1. Serve como plano de aula em cursos de graduação, de especialização ou
de pós-graduação.
2
Capítulo 1: Um tempo bem empregado
Crenças infundadas
Por milênios as mulheres sofreram um tratamento parcial baseado em suposições
sobre diferenças entre os sexos. Leis e costumes puniam as mulheres que faziam
sexo fora do casamento muito mais severamente do que os homens que faziam o
mesmo. Pais e maridos privavam as mulheres do controle sobre sua sexualidade,
reprimindo-as na aparência e nos movimentos. Sistemas jurídicos absolviam es-
tupradores ou atenuavam sua punição caso se julgasse que a vítima despertara
um impulso irresistível com seus trajes ou comportamento. As autoridades tra-
tavam com descaso as vítimas de assédio, perseguição e espancamento, supondo
que tais crimes eram características comuns da corte ou do casamento.
Pinker, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 225.
O que é certo para alguns não o é para outros tantos. Ora, haveria como en-
frentar as dificuldades que o relativismo moral e as diferentes filosofias morais
trazem à baila? Certamente. A Ética se desenvolveu como estudo filosófico entre
os gregos há 2.500 anos, e sua abordagem permaneceu hegemônica até os dias
atuais. No final do século XIX, porém, uma abordagem inovadora e concorrente
fundou a Ética como ciência social. Para tanto, foram decisivas as contribuições
dos sociólogos Émile Durkheim e Max Weber.
A Ética Científica, como corpo de conhecimentos, tem a virtude de nos for-
necer conceitos precisos e seguros, que transcendem as especulações ideológicas,
sem deixar de reconhecer o caráter histórico das moralidades. Seu estudo nos
permite abordar e tornar inteligíveis os fatos morais, com a competência de um
mestre artesão. Mais ainda: por ser laico, o estudo científico da moralidade não
mantém vínculos com crenças religiosas, uma vez que estas se fundam em dogmas
inquestionáveis e se apoiam em valores gravados em pedra.
O universo moral é multifacetado. Isso deixa perplexas as mentes mais in-
gênuas. Embora existam dicotomias – o herói e o vilão, a cara e a coroa, as luzes
e as trevas –, os fatos morais nem sempre são bicolores ou exibem perfeitas
dualidades. O mais frequente são situações que apresentam múltiplos matizes.
Isso costuma perturbar, pois é mais fácil lidar com polaridades que se excluem
mutuamente, mais cômodo estigmatizar o “mal” e celebrar o “bem” como se
fossem categorias absolutas.
Ante essas incógnitas, o que nos resta? Examinar os avanços teóricos e pro-
curar saber se existem outras formas de tomar decisões éticas que não sejam
exclusivamente binárias. A boa notícia é que estas formas existem.
6
Capítulo 1: Um tempo bem empregado
Em alto-mar
Numa plataforma petrolífera, eclode um princípio de incêndio. Os funcionários
acorrem para debelar o fogo. Na refrega, e surpreendendo a todos, um dos petroleiros
se lança em meio à fornalha. Seu corpo fica carbonizado.
Todos sabem que o colega sofria de depressão crônica e que não largava o em-
prego porque tinha mulher e dois filhos para sustentar. O que fazer? Como relatar a
ocorrência à companhia?
Declarar que foi um suicídio ou um acidente? No primeiro caso, a família não seria
indenizada e ficaria à míngua; no segundo, não.
Pense no que faria. Qual curso de ação adotaria? Raciocinemos. O que nos
inclina para a opção do acidente? A compaixão para com a família do petroleiro
e uma eventual ojeriza em relação às companhias de seguros. Mas quais são as
implicações de cada uma dessas decisões?
Ao adotar o cenário do acidente, presta-se solidariedade à família desamparada
num gesto de empatia quase comovente. Entretanto, quem banca a indenização?
A companhia de seguros. Só que isso denuncia implicitamente a existência de
deficiências na manutenção da plataforma e pode acarretar uma investigação.
Em consequência, não é incabível que a extração de petróleo seja suspensa, o
7
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
j
O universalismo tem caráter consensual porque o bem gerado interessa
a todos: tanto o bem restrito (individual ou grupal) como o bem comum
(social ou humanitário) se realizam sem prejudicar ninguém (“cada um
recebe o que é seu”). Lógica de inclusão.
j
O particularismo tem caráter abusivo porque o bem de uns causa mal
aos outros: tanto o bem restrito individual (“cada um por si”) como o
bem restrito grupal (“somos mais nós”) se realizam à custa dos interesses
alheios. Lógica de exclusão.
Vejamos a Figura 1.2.
Posto isso, a resposta aos casos anteriores salta aos olhos. Em todas as situa-
ções retratadas, interesses particularistas prevalecem em detrimento de interesses
universalistas: perdem as empresas (acionistas e investidores) com a omissão
dos funcionários, o favoritismo dos gestores, a maquiagem dos balanços, os
pareceres subservientes ou os falsos atestados médicos; perde a sociedade com
o corporativismo dos policiais ou o paroquialismo dos parentes e amigos que
mentem para beneficiar membros de seu círculo íntimo. Ganham, obviamente,
aqueles que agem segundo os preceitos particularistas e o fazem à custa dos
outros.
Vemos, então, que a complexidade dos eventos morais só pode ser resolvida
com instruída reflexão, pois exige ferramentas rigorosas que permitam observar,
descrever, investigar e tornar inteligíveis os porquês das ações. Somente assim
serão legitimadas, ou não, ações e decisões.
Em conclusão, precisamos de um “mapa da mina” para guiar nossos passos.
Eis a que se propõe o presente livro.
9
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
1° conjunto: letra A 3 0 2 1
2° conjunto: letra B 0 3 1 2
SOMA 3 3 3 3
Situação 1
Evito ao máximo subornar fiscal, bem como sonegar impostos. Mas, se um fiscal forçar
a barra, eu pago, e se minha empresa estiver em dificuldade, sonego e pronto. Nos A
negócios, bom senso e pragmatismo são fundamentais.
Estou convencido de que um comportamento reconhecido como idôneo pelos
clientes traz bons negócios em prazo médio e longo. De modo que a sonegação de
B
impostos ou o suborno de fiscais são práticas difundidas que só merecem rejeição
porque prejudicam a coletividade, bem como a imagem da empresa.
Situação 2
Lamento que muita gente lance mão de expedientes no velho estilo do Brasil tradicio-
nal. Em economias abertas, quem não fornece qualidade, atendimento personalizado,
A
preços competitivos, garantias pós-venda está fadado a desaparecer. Minha empresa
veio para ficar e não para fazer negócios com uma visão imediatista.
Penso que não cabe misturar negócios e questões morais. Afinal, quem põe capital
de risco quer ganhar dinheiro; não está aí para fazer caridade ou para bancar o mis-
sionário. Vamos deixar de hipocrisia: quem faz negócios não pode ser santo. Diante B
das muitas complicações que existem no Brasil, é preciso ter jogo de cintura para que
as coisas funcionem. Quem tem juízo sabe como se virar.
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Capítulo 1: Um tempo bem empregado
Situação 3
Acho que maximizar os lucros dos acionistas não pode ser o único dínamo
das empresas: estas precisam agir com claro sentido de responsabilidade social. Por
A
exemplo, devem repartir ganhos com clientes e funcionários, além de respeitar o
meio ambiente.
Creio que a frase anterior só tem sentido se os demais agentes também forem
contidos em seu apetite, tais como as autoridades com seus tributos, os sin-
dicatos com seus pleitos, os ecologistas com suas exigências, os fornecedores B
com seus preços, os bancos com seus juros e suas taxas de serviços. O resto é
conversa.
Situação 4
Penso que a única maneira de sobreviver para as empresas é preparar-se para o
que der e vier. A concorrência está cada vez mais acirrada e desleal. Seria ingênuo
arriscar o negócio bancando o bom moço. Cabe um acordo entre as empresas para A
que não haja concorrência predatória e para que não se ponha em perigo o emprego
de muita gente.
Não importa o tipo de concorrência, se estrangeira ou nacional. Quem
é competente sabe reduzir custos e repensar o próprio negócio, sabe ino-
B
var sempre e lançar produtos novos, com qualidade e bom design. Apelar
para o vale-tudo é uma atitude desesperada de curto alcance.
Situação 5
Se eu souber que a empresa em que trabalho vai adquirir uma empresa concorrente
cujas ações estão a um preço muito baixo, compro um lote de ações, já que seu valor A
certamente subirá.
Não compro ação alguma, a não ser que a minha empresa autorize abertamente
tal procedimento porque, caso contrário, eu estaria me valendo de informações B
confidenciais que podem trazer prejuízo à operação como um todo.
Situação 6
Se eu, como presidente de uma empresa, souber que um concorrente acabou de
desenvolver uma nova tecnologia que vai lhe garantir boa fatia do mercado, faço
com que um dos especialistas desse concorrente me repasse o know-how. Como A
todo mundo procura se defender, eu também me adapto às circunstâncias, embora
o faça a contragosto. Quem está na chuva é para se molhar.
Procuro me manter sempre atualizado e não me deixo surpreender pelos concorren-
tes. Lanço produtos com inovações, me valendo apenas da inteligência competitiva,
B
e não da espionagem econômica. A meu ver, quem se socorre de manobras escusas
não merece o respeito de ninguém e demonstra miopia empresarial.
11
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Situação 7
Acredito que as empresas devem adotar políticas criteriosas na área da publicidade,
em termos de qualidade dos produtos ou dos serviços prestados, no atendimento aos
clientes e nos preços competitivos. Enganar os clientes ou omitir deficiências pode
A
realmente dar resultados imediatos, mas está errado. No mínimo, cria problemas com
o Código de Defesa do Consumidor e o Procon, pode vazar para a mídia e chegar até
à Justiça. Não faço negócio com espertezas.
Seria ingenuidade minha lançar um produto e não ressaltar todas as suas quali-
dades, ao mesmo tempo em que eu omito naturalmente as possíveis deficiências
ou insuficiências. Isso não quer dizer que eu deixe de ter produtos competitivos.
O mercado está aberto para qualquer um poder comparar os produtos e os
B
preços, os serviços prestados e o tipo de atendimento. Os clientes não são
crianças que devem ser pajeadas. Cabe a eles apreciarem a publicidade que se
faz e aquilo que compram. Minha responsabilidade é para com os acionistas
em primeiro lugar.
Situação 8
Obedeço à praxe do mercado e considero que é uma atitude de boa educação
oferecer brindes, presentes e gratificações a compradores e gerentes das empresas
A
clientes. Danço conforme a música, como todo mundo faz. Aliás, quem deixa de
fazê-lo perde negócios e reduz suas próprias oportunidades.
Acho que é preciso estabelecer uma política explícita e restritiva quanto a aceitar
ou oferecer convites, favores, brindes e presentes. Trata-se de um dos itens que um
B
código de conduta moral deve ter. Funcionário sem clara orientação, agindo apenas
segundo a própria cabeça, acaba ficando num mato sem cachorro.
Situação 9
Sendo presidente de uma empresa, nada vejo de errado em possuir ações de uma
companhia concorrente. É um modo inteligente de estabelecer uma boa parceria.
E mais: não vejo por que não sentarmos juntos para procurar regular o mercado
A
(acabando com a guerra entre os concorrentes) e para descobrir o melhor método
de contornar tantos impostos – afinal, a carga tributária no Brasil é altíssima e muito
mal distribuída.
Acho inadequado possuir ações de um concorrente se eu for presidente de uma em-
presa. Certamente haverá conflito de interesses e eu ficaria impedido de tomar certas
decisões. E mais: é um absurdo combinar os preços dos produtos com as empresas
B
concorrentes porque isso prejudica os clientes. Mas cabe apoiar-se mutuamente no
que diz respeito aos interesses do setor para pressionar o Executivo e o Legislativo e
conseguir diminuir a carga tributária.
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Capítulo 1: Um tempo bem empregado
Situação 10
Não basta elaborar um código de conduta moral, é preciso conscientizar os funcioná-
rios a respeito das normas morais nele contidas e verificar o que fazem sem esmorecer. A
Isso significa que o código de conduta é para valer e diz respeito às práticas de gestão.
Códigos de conduta acabam servindo para jogar poeira nos olhos do pessoal de fora.
Quem conhece a realidade dos negócios sabe disso. Afinal, o que se escreve não é
para ser cumprido, caso contrário, não se faria mais negócio algum. Felizmente, nós B
aprendemos a dissociar desde sempre o discurso dos atos. Então, vamos deixar isso
para lá e parar com esses modismos tolos.
Tabulação
Cuidado, as letras não seguem a ordem!
Identifique as notas que você deu a cada conjunto nas 10 situações vistas e
lance a nota respectiva diante de cada letra. No final, some as notas por coluna.
13
Capítulo
2
A ética como ciência social
O currículo
Um advogado graduado pela Faculdade de Direito da PUC trabalhou num peque-
no escritório de advocacia e se saiu tão bem que lhe apareceu a oportunidade de se
candidatar para um escritório de grande porte.
Ouviu dizer, entretanto, que a área de recursos humanos não contratava ninguém
da PUC, a não ser que tivesse se formado entre os 10 primeiros da turma. Ele tinha
sido o vigésimo primeiro.
Escreveu então em seu currículo que, ao se graduar, foi o décimo da turma. Achava
que reunia as qualidades necessárias para desempenhar a função melhor do que
muita gente que atuava no setor.
Yahoo!
O presidente da Yahoo!, Scott Thompson, teve de se demitir do cargo em maio
de 2012, por ter mentido sobre suas credenciais acadêmicas. De fato, não havia
cursado a graduação em ciência da computação como constava de seu currículo
profissional. Foi denunciado por um membro do Conselho de Administração, re-
tratou-se, pediu desculpas aos colaboradores, mas não conseguiu recuperar sua
autoridade moral.
16
Capítulo 2: A ética como ciência social
17
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Contrário senso, ilegítimos são os interesses abusivos, os caprichos ou simplesmente os privilégios que se
1
pretende obter com base na força ou na posição social. Por exemplo, exigir que um avião comercial faça
escala não prevista para atender a autoridade, ou reivindicar atendimento preferencial por ser alto e forte.
18
Capítulo 2: A ética como ciência social
pelo menos um dos candidatos que preenchia os requisitos. Além do mais, teria
enganado os responsáveis pela seleção, pois a trapaça teria conseguido nivelar
os candidatos. Dirão: o critério restritivo do escritório de advocacia não poderia
eliminar candidatos talentosos? Poderia. Mas isso justifica a fraude? Ou melhor:
é legítimo burlar os outros para satisfazer os próprios interesses? Tais asserções
se aplicam igualmente ao caso do ex-presidente da Yahoo! que vendeu uma
imagem adulterada de si mesmo, procurando encantar os acionistas com sua
formação universitária.
Dois campos se formam. Uns respondem “não” a ambas as perguntas; outros
acham que, para sobreviver na selva, quaisquer meios valem. Eis aí uma questão
moral que exige posicionamento de nossa parte.
Em resumo, podemos ou não simpatizar com o procedimento do advogado;
podemos ou não desculpar seu jeito malicioso; podemos ou não tolerar o que
alguns dizem ser praxe do mercado. A análise ética não emite opiniões, mas
procede de forma obstinadamente objetiva. O que se observa? O advogado
prejudicou outros. Ainda que a manobra fosse aprovada, ou moralmente aceita,
por alguns círculos e até tolerada de forma dissimulada pela sociedade em geral,
o conhecimento ético traça um divisor de águas que não se sujeita ao relativismo
moral. Seu âmbito é teórico, abstrato-formal, anistórico, universal.
Quanto a Scott Thompson, o fato de converter sua graduação (de ciências
contábeis para ciências da computação) desmereceu suas qualidades de adminis-
trador, erodindo por inteiro sua credibilidade. O engodo tinha o propósito de
legitimar ainda mais sua contratação como CEO de uma empresa de tecnologia
da informação. Mas o tiro saiu pela culatra, à medida que levantou suspeitas
sobre seus demais atributos.
Em resumo, para realizar seus interesses, os agentes podem escolher três
cursos de ação: 1) causar malefícios aos outros (curso eticamente negativo);
2) não causar benefícios nem malefícios aos outros (curso eticamente neutro);
3) causar benefícios aos outros (curso eticamente positivo). Em consequência,
enquanto a Ética estuda o primeiro e o terceiro cursos de ação, a sociologia se
ocupa do segundo.
Pensemos na física: uma coisa são os objetos que caem quando soltos no ar
(o fenômeno empírico), outra coisa é a lei da gravidade (o conhecimento de
que objetos com massa exercem atração uns sobre os outros). Ou pensemos na
medicina: uma coisa são os sintomas que um paciente apresenta (febre intensa,
dor de cabeça e de garganta, coriza, inflamação das mucosas e das vias res-
piratórias etc.), outra coisa é a etiologia da doença (o conhecimento dos vírus
causadores da gripe, das formas de transmissão e de prevenção, dos tratamentos
existentes e de sua eficácia). Ou pensemos na economia: uma coisa é a cotação
diária dos preços das commodities (minérios e gêneros agrícolas), outra coisa é a
lei da oferta e da procura em um mercado concorrencial (o conhecimento que
explica as flutuações dos preços). Ou, indo para uma ilustração trivial: uma coisa é
a singularidade dos seres humanos (cada indivíduo difere do outro), outra coisa a
generalidade do Homo sapiens (o conceito científico que apreende as semelhanças
de base e expressa o padrão que irmana todos os indivíduos).
Em Ética, o processo é similar: uma coisa são os abortos clandestinos (os fe-
nômenos reais ou o fato moral a ser estudado), outra coisa é o conceito de aborto
(o conhecimento do que sejam a interrupção da gravidez e os fatores que levam
determinados países em determinadas épocas a proibir, tolerar ou permitir o aborto),
de maneira que o caráter universal dos conceitos (âmbito teórico) não pode ser
confundido com a relatividade dos fatos (âmbito histórico). Vejamos o Quadro 2.1.
a antropologia etc.). Neste caso, duas são as abordagens, uma tradicional, outra,
contemporânea:
1. A Ética Filosófica reflete sobre a melhor maneira de viver uma vida digna
ou sobre “o dever ser” (os ideais morais).
2. A Ética Científica estuda os fatos morais ou observa, descreve, investiga e
explica “o que é” (as evidências objetivas da moralidade como fenômeno).
22
Capítulo 2: A ética como ciência social
Toda filosofia moral tem um princípio moral de base, a saber, uma justificação
necessária para qualificar uma ação como sendo moral ou certa. De modo que
toda ação que não realize o princípio moral enunciado carece de justificação.
Não é nosso propósito analisar e comentar essas filosofias. Apontamos para
elas tão somente a título ilustrativo. Mas caberia ressaltar que, à medida que as
filosofias morais competem entre si, os princípios que pretendem justificar o
que é certo fazer e, por via de consequência, o que não é certo fazer, adquirem
estatutos equivalentes. Trata-se de um grave desdobramento, pois compromete
os fundamentos das ações morais. Porque, na ausência de um padrão universal de
aferição, sobram as orientações idiossincráticas dos agentes morais: cada cabeça,
uma sentença; a cada qual uma fundamentação moral diversa; o que vale para
uns pode não valer para outros. Resultado? Patinamos no relativismo cognitivo
e desembocamos em um beco sem saída: ficamos sem instrumentos de análise
universais e consensuais. Fraqueza congênita.
Em contraposição, a Ética Científica fornece um aparato conceitual preciso
e estabelece parâmetros objetivos para uma orientação consistentemente funda-
mentada. Estabelece um vocabulário testável que alcança consenso e tem valor
universal. Com quais vantagens? Torna inteligíveis os eventos que impactam
outros agentes sociais, capta a lógica dos fenômenos morais – a despeito da
diversidade histórica – ao apreender regularidades e ao formular padrões.
Assim, os protocolos desses dois discursos divergem substantivamente. En-
quanto a reflexão filosófica consiste em um discurso racional, porém especulativo
(uma vez que prescinde de provas empíricas), a investigação científica consiste em
um discurso demonstrativo. Ela exige evidências que possam ser comprovadas ou
refutadas, opera com hipóteses sujeitas à verificação ou validação – sejam provas
laboratoriais ou empíricas, sejam correlações estatísticas ou regularidades his-
tóricas que permitam aferir e, eventualmente, contestar o que se postula.
De maneira que a abordagem científica se atém a constatar ocorrências.
Não é seu ofício prescrever quais seriam os comportamentos apropriados. Ela
não determina o que você deve ou não fazer. Mapeia e classifica tão somente a
situação. Cabe a quem conhece os fatos e suas implicações decidir o que tem de
ser feito. Porque a Ética Científica não emite juízos de valor do tipo certo/errado,
bom/ruim, agradável/desagradável, superior/inferior, virtuoso/vicioso – juízos
estes que são variáveis no tempo e no espaço. Emite, isso sim, juízos de realidade
do tipo benefício/prejuízo, público/privado, pessoa física/pessoa jurídica, geral/
específico, maioria/minoria, includente/excludente – juízos estes que são factuais
e universalmente comprováveis.
Façamos uma analogia. Dizer que o ato de fumar é bom ou ruim, agradável
ou desagradável, bonito ou feio corresponde a um juízo de valor, a uma avaliação
ou a uma apreciação que varia segundo as sociedades e os indivíduos – é uma
postura vulgar que remete ao fato moral como fenômeno empírico, real, con-
creto. Em contrapartida, conhecer os efeitos do fumo sobre a saúde humana, não
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CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
O infanticídio
No Brasil de hoje, além de ser crime punido com detenção, cometer infanticídio
provoca comoção nacional, pois é visto como abominação. O mundo ocidental
também o condena com vigor.
Todavia, a China atual nos dá um exemplo diametralmente oposto: acoplada à
discriminação secular do sexo feminino, ainda vigoram dispositivos da “política do
filho único”, que objetivam limitar o crescimento populacional. Desses dois fatores,
resulta elevado índice de infanticídio feminino.2 Na Índia, a situação se repete por
outras razões. A despeito dos incentivos monetários governamentais dados aos pais
que decidem criar as próprias filhas, o nascimento de uma menina é considerado
um fardo, induzindo os pais a se livrar da criança. Em decorrência, verifica-se sensível
desequilíbrio demográfico entre os sexos.
Na Antiguidade, o infanticídio era adotado no Império Romano e pelas tribos
bárbaras germânicas como instrumento para regular a natalidade e equilibrar o
contingente populacional e a oferta de víveres.
Outros povos antigos, como os fenícios e os cartagineses, ofereciam seus filhos
aos deuses em rituais religiosos e, portanto, praticavam o infanticídio para atender
às expectativas imaginárias de suas divindades.
De resto, nos dias atuais, entre as tribos indígenas brasileiras, crianças são en-
terradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na
floresta. As razões são múltiplas. Matam-se gêmeos, crianças portadoras de deficiência
física ou mental, crianças oriundas de relações extraconjugais ou nascidas enquanto
a mãe ainda amamenta...
A política de planejamento familiar foi introduzida em 1980 e inclui multas financeiras para famílias que
2
violam as restrições (quatro vezes a renda per capita média anual da área em que vivem), perda do emprego
dos chefes de família após o nascimento de um segundo filho e esterilização forçada de mulheres que já
tiveram um filho. Parece estar valendo mais para as áreas urbanas do que para as áreas rurais mais remotas.
25
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Verdade ou especulação?
De um lado, temos Capitu, a jovem esposa com “olhos de cigana oblíqua e dis-
simulada”, os famosos “olhos de ressaca”, e, de outro, o marido ciumento, Bentinho.
Vamos supor que, a despeito das tentações, Capitu seja fiel ao marido, mas ele
não sabe disso. De modo que, à revelia do fato real, ele se comporta guiado pelas pró-
prias impressões: se desconfiar de Capitu (dissonância entre percepção e realidade),
Bentinho viverá o inferno dos tolos; todavia, se confiar em Capitu (consonância entre
percepção e realidade), Bentinho provará o sono dos justos.
Agora, vamos supor que, à mercê das tentações, Capitu seja infiel ao marido,
mas ele não sabe disso. De modo que, à revelia do fato real, ele se comporta guiado
pelas próprias impressões: se confiar em Capitu (dissonância), Bentinho cumprirá a
sina dos ingênuos; todavia, se desconfiar de Capitu (consonância), Bentinho provará
a paz dos mansos...
Paul Rozin estudou os processos de moralização e de “amoralização” em laboratório. A. Brandt & P. Rozin
3
(eds.). Morality and health. Nova York: Routledge, 1997. A pesquisa foi citada por Steven Pinker em Tábula
rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 374-376.
27
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Vale a pena perguntar-se então: por que certas práticas deixaram de ser pro-
blemas morais enquanto outras se tornaram objetos de estudo da Ética? A pes-
quisa deve focalizar, de um lado, o contexto histórico que favoreceu a mudança
dos padrões e, de outro, o consenso científico que se formou a respeito. Com
qual intuito? Identificar a natureza das práticas para saber se são anódinas ou se
produzem algum impacto sobre outros agentes em termos de benefícios ou de
malefícios observáveis.
28
Capítulo 2: A ética como ciência social
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Capítulo
3
O contexto contemporâneo
31
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
A gafe empresarial
Em 1984, Gerald Ratner substituiu seu pai no comando de uma rede de 130
joalherias e, em menos de oito anos, construiu um império de 25 mil funcionários
e de 2.500 lojas espalhadas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Sua estratégia
de sucesso se baseou na venda de joias baratas de baixo padrão e no jogo duro
em relação aos fornecedores. Ademais, expandiu-se vertiginosamente comprando
concorrentes debilitados.
Incensado pela mídia, foi convidado em 1991 a discursar na conferência anual
do Institute of Directors, no Royal Albert Hall, de Londres. Seu público? Quatro mil
executivos. Homem de marketing, Ratner pensou em descontrair a audiência fazendo
piada. Contou que as pessoas sempre lhe perguntavam como conseguia vender joias
tão baratas. Baixando a voz em tom de confidência, falou que revelaria seu segredo.
E disse literalmente: “Os brincos que eu vendo custam menos que um sanduíche de
camarão... E sabem por quê?” Fez suspense e arrematou: “Porque é puro lixo!”2
No dia seguinte, os tabloides ingleses estamparam o sarcasmo. A repercussão foi de-
vastadora: os clientes se aglomeraram nas lojas para devolver os produtos... A rede perdeu
£500 milhões em valor, Ratner teve de renunciar à presidência e a empresa se esfacelou.
Seu nome, na literatura da administração, tornou-se sinônimo de “gafe empresarial”.
1
Afora os colaboradores, gestores e acionistas, os públicos de interesse das empresas são todas as partes in-
teressadas, todos os agentes impactados por elas, tais como clientes, investidores, fornecedores, prestadores
de serviços, distribuidores, mídia, comunidades locais, órgãos governamentais, sindicatos, concorrentes,
ONGs etc.
2
Total crap, em inglês.
32
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
A crise de reputação
O maior templo de luxo do Brasil, a Villa Daslu, que vendia de bolsa Chanel a
helicóptero, sofreu uma visita-surpresa da Polícia Federal em julho de 2005. A ação
resultou na prisão de sua proprietária, Eliana Tranchesi, e de seu irmão, Celso de Lima.
Acusada de fraude em importação, formação de quadrilha e falsidade ideológica,
Eliana foi condenada a 94,5 anos de prisão.
Desde então, além de uma dívida fiscal que ultrapassou R$500 milhões, a Daslu
sofreu queda nas vendas e problemas de caixa. Aos poucos, a butique ícone perdeu seu
encanto para os clientes e foi sendo desmontada. Pediu recuperação judicial, com dívidas
acumuladas de R$80 milhões. Mas a situação permaneceu crítica e, em fevereiro de
2011, uma assembleia de credores decidiu vender a Daslu a um fundo de investimentos.
33
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Três dias depois das revelações, o repúdio da opinião pública foi tal que muitos
anunciantes retiraram suas campanhas e Rupert Murdoch foi forçado a encerrar as
atividades do tabloide. Dezenas de editores e jornalistas foram processados.
Esses casos corroboram uma evidência: abusar da boa-fé dos clientes provoca
reações como o boicote ao empreendimento. É um temível contrapoder de que
dispõem os consumidores e os usuários. De onde advém?
viu a expansão da Revolução Industrial com a formação de um parque industrial diversificado (até os anos
1980) e presencia agora o avanço avassalador da revolução digital desde os anos 1990. Isso não quer dizer
que não possa haver outras rupturas revolucionárias, dados os prenúncios da genômica e da nanotecnologia.
34
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
da economia com a substituição de átomos por bits ou dos bens tangíveis por
bens intangíveis.4
O capitalismo deixou de ser oligopolista e passou a ser competitivo, confe-
rindo um inusitado poder de fogo aos clientes. A globalização econômica trans-
cendeu os processos de internacionalização comercial anteriores, à medida que
embutiu três rupturas: 1) inaugurou a produção mundial capitalista, viabilizada
por transportes rápidos e baratos graças à decisiva inovação dos contêineres; 2)
facultou a formação de um sistema financeiro planetário que opera em tempo
real 24 horas ao dia, graças às telecomunicações via satélite; e 3) contribuiu
para a redistribuição do trabalho global, com a entrada maciça das mulheres no
mercado de trabalho, e para a conversão de enormes massas camponesas à
produção urbana, tanto industrial como de serviços.
De outra parte, a pegada ecológica está pondo em risco a habitabilidade
do planeta: estamos gastando mais recursos naturais do que a capacidade de
autorregeneração da natureza, e seus efeitos devastadores são visíveis na mu-
dança climática, na poluição crescente do ar, do mar e da terra, e no “prazo para
terminar” de muitas matérias-primas.5
Além do mais, a vulnerabilidade das empresas cresceu exponencialmente em
decorrência da exposição de tudo e de todos à mídia investigativa e plural, da
consolidação das liberdades democráticas que propiciaram à cidadania organizada
4
Substituição das cartas físicas por correios eletrônicos, do papel-moeda por dinheiro digital, das viagens de
negócio por teleconferências, dos talonários de notas fiscais por emissões eletrônicas, dos livros por e-books,
dos jornais e revistas por edições digitais, dos CDs por memória flash etc.
5
Segundo Armin Reller, da Universidade de Augsburg, faltam 13 anos para o índio acabar (telas de TV), 29
para o fim da prata (joias), 30 para o antimônio (remédios), 40 para o estanho (soldas e latas) e 42 para o
chumbo (baterias e tubulação).
35
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
O vazamento da BP
Em 20 de abril de 2010, no Golfo do México, a plataforma Deepwater Horizon da
British Petroleum explodiu e afundou, matando 11 funcionários. Foi o estopim do
maior vazamento de petróleo da história americana. Foram necessários três meses
e meio para vedar o poço.
As estimativas indicam que 652 milhões de litros de óleo foram lançados no litoral do
Texas à Flórida, ou seja, mais de 15 vezes os 41,6 milhões despejados em 1989 no Alasca
pelo navio Exxon Valdez. Os danos causados à fauna e à economia foram incomensuráveis.
Algumas projeções apontam para um custo de US$37 bilhões, incluindo des-
pesas com limpeza, reparos, multas e indenizações que a BP começou a cobrir com a
venda de ativos. O valor das ações sofreu queda de US$67 bilhões e arrastou consigo
o presidente da companhia, que se demitiu. Quanto à reputação da companhia pe-
troleira, seu comprometimento foi grave.
Acontece que a tragédia poderia ter sido evitada se a BP não tivesse enxugado
o orçamento. Existe um dispositivo de segurança chamado “gatilho acústico”, capaz
de vedar o poço em caso de mau funcionamento. O aparelho fica na superfície e usa
ondas sonoras que levam as válvulas do poço a se fechar e a interromper o fluxo no
poço. Custo? US$500 mil. A BP decidiu economizar ao não instalar um, abrindo mão
de um precioso instrumento de prevenção contra acidentes.6
Além do mais, a revista americana Rolling Stone acusou os executivos da BP de “ir
para a cama” com profissionais do Serviço de Gerenciamento Mineral norte-americano
(MMS, na sigla em inglês, órgão análogo à Agência Nacional de Petróleo no Brasil),
oferecendo-lhes viagens e festas de arromba para tornar mais flexíveis as regras que
regulavam as perfurações. Essa promiscuidade vinha desde o governo Bush.7
Renata Betti e Luís Guilherme Barrucho. Como poupar meio milhão. Veja, 21 de julho de 2010.
6
36
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
O site da GM
A General Motors lançou um site em 2003 (AutoChoiceAdvisor.com) para orientar
os compradores de automóveis. As recomendações eram neutras ao incluir os veículos
da concorrência. Um algoritmo imparcial recomendava o melhor carro em função das
necessidades apresentadas pelos clientes.
Benefícios para a GM? Obter informações sobre as preferências do mercado para
desenvolver novos produtos e modelos que atendessem a demandas específicas.
Diamond Jared. As grandes empresas vão salvar o mundo?. Veja, 30 de dezembro de 2009.
8
37
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
lucrativo no curto prazo, mas destrói valor no longo prazo, o que é obviamente
pernicioso para a perpetuação do negócio. Em outras palavras, o conhecimento
ético aplicado a situações reais gera valor: tece laços de respeito e confiança
entre pessoas ou organizações; beneficia as partes de múltiplas maneiras, sem
prejudicar quem quer que seja; contribui para reduzir os malfeitos pela cons-
ciência dos males causados e dos riscos envolvidos.
Isso equivale a dizer, mais uma vez, que precisamos dispor de instrumentos
indispensáveis (conceitos científicos) para aprimorar nosso discernimento e afiar
nossa lucidez teórica.
Mulher na direção
O preconceito masculino contra as mulheres tem uma longa história, que vai desde
a atribuição da origem de todos os males do mundo ao mitológico vaso (leia-se útero)
de Pandora até a última anedota sobre algum incompreensível (para os homens)
hábito feminino. O preconceito tem um lado obscuro e doentio − a misoginia é um
traço comum a toda a tradição judaico-cristã, e não vamos nem falar nos extremos
de ambiguidade que a mulher provoca na cultura islâmica −, mas manifesta-se
também nessa persistente perplexidade que a mulher causa no homem e que já é
38
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
mais folclórica do que qualquer outra coisa. De acordo com o folclore, homem jamais
entenderá a organização de uma bolsa feminina. Homem jamais se acostumará com a
peculiar noção de tempo e pontualidade da mulher, e menos ainda com a sua lógica.
E homem, decididamente, jamais confiará em mulher na direção.
Se você é homem, pense na seguinte situação: você está num táxi, e um carro na
sua frente acaba de realizar uma manobra, digamos, não ortodoxa. O motorista do
táxi buzina, reclama e, na ultrapassagem, vê que quem está dirigindo o carro infrator
é uma mulher. Comenta: − Só podia ser. Mulher na direção...
Você faz o quê? Diz ao motorista que ele está sendo antiquado e injusto, que já
há quase tantas mulheres quantos homens dirigindo carros, inclusive táxis, e que a
maioria não faz loucuras, ou pelo menos mais loucuras do que homens, na direção?
Ou sorri, sacode a cabeça e concorda com o motorista?
Confesse: você concorda com o motorista. Você é um cara esclarecido, livre de
qualquer forma de intolerância, sem resquícios obscurantistas, mas concorda com o
motorista. Ele e você pertencem à mesma irmandade, a do pomo de Adão e do xixi
em pé, e nada, nem mesmo o bom senso, os fará abandonar suas convicções atávicas.
Mulher na direção está invadindo um território que não é dela. É uma ameaça aos
seus domínios.9
39
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
A pirataria
A compra de produtos piratas ou a cópia não autorizada de bens simbólicos
(aplicativos, músicas, DVDs) para uso pessoal são práticas bastante comuns no
Brasil.10
Argumenta-se que os preços dos produtos legais são extorsivos e que, “se está
disponível na internet”, tudo pode; “se está sendo vendido nas ruas”, não há mal
algum.
10
O percentual de brasileiros que consomem produtos piratas aumentou nos últimos anos, segundo mostra
pesquisa divulgada pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ). De acordo
com os dados, mais de 70 milhões de brasileiros consomem produtos piratas. Exame, 30 de novembro
de 2010.
40
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
O desabamento
Em abril de 2013, a produção de roupas com baixos custos em Bangladesh
provocou uma tragédia. Desabou um prédio de oito pisos que abrigava fábricas e
um centro comercial em Daca, capital de Bangladesh. No episódio morreram 1.127
pessoas. Apesar das visíveis rachaduras, amplamente rastreadas no dia anterior,
os donos das fábricas ignoraram todas as advertências para evitar o uso do edifí-
cio e deram ordens expressas para que seus trabalhadores adentrassem no prédio
Agentes cujos interesses se contrapõem aos interesses gerais: contraventores, especuladores, contrabandistas,
11
41
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Fato Sim/Não
1. Denunciar empresa concorrente que esteja efetivamente espionando
economicamente a sua.
2. Delatar o assédio moral cometido por um chefe.
3. Colaborar com as autoridades no combate a um cartel.
4. Denunciar anonimamente uma empresa concorrente porque ouviu
dizer que ela utiliza insumos contrabandeados.
No caso, destacamos a legitimidade ética que supõe a satisfação de interesses universalistas, portanto, de
decisões ou ações que interessam a todos indiscriminadamente.
42
Capítulo 3: O contexto contemporâneo
Fato Sim/Não
5. Doar recursos da empresa para ajudar munícipes flagelados ainda que
isso reduza os dividendos dos acionistas.
6. Boicotar uma empresa que abusou da boa-fé de seus clientes para
que sofra as consequências de suas ações.
7. Processar empresa que lançou efluentes industriais em curso d’água.
8. Dar agrados a um fiscal de renda que brinda a empresa com conse-
lhos e que deixa de multar suas infrações.
9. Comprar insumos com meia nota e vender parte da produção sem
nota para enfrentar o peso da carga tributária.
10. Reagir contra invasão e depredação de propriedade produtiva promo-
vida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
43
Capítulo
4
Os interesses pessoais
4.1 O egoísmo
O que são interesses? Fatores existenciais tão valiosos que mobilizam os
agentes sociais para satisfazê-los e defendê-los. Em consequência, demarcam
territórios ou espaços vitais que asseguram as próprias condições de existência:
a posse de bens materiais, o exercício de posições de mando, o acesso a bens
simbólicos, o desfrute de prestígio social.
45
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
vida de muitas delas. Haveria como nutrir compaixão no caso dele? Afinal, sua
conduta foi eminentemente egoísta.
Isso quer dizer exatamente o quê? É trivial confundir interesse pessoal e
egoísmo, como se os dois conceitos fossem sinônimos. Ledo engano. A satisfação
dos interesses pessoais não é necessariamente maligna: pode ser legítima, se não
prejudicar ninguém (autointeresse) ou ilegítima, se lesar outros (egoísmo). Há,
pois, dois modos de realizar os interesses pessoais.
No egoísmo, o indivíduo age para satisfazer os próprios interesses, mas o
faz de forma nociva aos outros: prejudica-os, causa-lhes dano, lesa-os. Em sua
ânsia de desfrutar determinado bem:
j
Atropela quem estiver em seu caminho, de forma calculista ou de forma
irresponsável.
j Realiza seus interesses individuais à custa dos interesses dos outros.
j Leva vantagem e causa dano aos outros ao agir de modo interesseiro e
egocêntrico.
j
Gera para si mesmo um bem restrito que é abusivo, particularista e ex-
cludente, à medida que explora parasitariamente a boa vontade alheia.
Os guardas-noturnos
Preocupados com os seguidos arrombamentos, 10 lojistas de uma rua comercial
se reuniram e decidiram contratar três guardas-noturnos. Cada qual se comprometeu
a desembolsar uma quota fixa e, caso houvesse novas adesões, os guardas ganhariam
mais. O acerto pareceu proveitoso para todos os participantes.
Vencido o primeiro mês, os guardas foram cobrar o que lhes era devido. Nove
pagaram. O último falhou, tendo feito o seguinte raciocínio: “Os outros pagaram; a
rua vai continuar protegida.” Quando souberam, os demais lojistas chiaram com a falta
de compromisso do colega. No mês seguinte, apenas oito pagaram. No outro, foram
sete, e nenhuma loja nova aderiu ao pacto anterior, o que poderia compensar os
desfalques. Os guardas então desistiram de prestar o serviço.
Inspirado por João Mellão Neto. Vamos levar vantagem!. O Estado de S. Paulo, 05 de dezembro de 2003.
1
46
Capítulo 4: Os interesses pessoais
O tabu do estresse
A ONG britânica Mind, voltada para a saúde mental, publicou um levantamento
referente ao estresse endêmico que acomete milhões de trabalhadores no Reino
Unido, e que acarreta a perda de bilhões de dólares em horas de trabalho.
O mais curioso é que 93% mentiram a seus patrões a respeito do motivo real de
seu absenteísmo. Alegaram dores de estômago, resfriados, dores de cabeça, consultas
médicas, problemas em casa ou doenças na família, menos o estresse no trabalho.
Não confessaram que aguentam cada vez menos as pressões para o cum-
primento de metas, nem tentaram discutir as questões referentes ao ambiente
de trabalho em que prevalece o moral baixo, a baixa produtividade e formas
escapistas de enfrentar as tensões.2
Esse caso provoca leituras apaixonadas. No essencial, os trabalhadores alegam
que seus gestores não se preocupam com o seu bem-estar. Daí o círculo vicioso:
se confessarem seu estresse revelarão fraquezas que porão em risco seu emprego;
em compensação, os gestores dizem que as mentiras não contribuem para que
o verdadeiro problema seja enfrentado.
O que resulta desse imbróglio? Perda de receitas e desmotivação do pessoal,
comprometimento da saúde dos trabalhadores e reduzida capacidade de atender
às demandas. Prejuízos na certa para todos os lados.
Ora, será que os gestores deveriam se preocupar com as condições de trabalho
de seus subordinados e criar um canal confiável de diálogo para administrar o
ambiente organizacional? Certamente. Será que deveriam identificar os riscos
incorridos, reconhecer o estresse e dar suporte a quem trabalha? Parece que sim.
Mas a carência desses mecanismos justifica as dissimulações dos trabalhadores?
De maneira alguma. O que gera o círculo vicioso? Cada um deles olha exclusi-
vamente para o próprio umbigo e descuida dos demais interesses envolvidos.
Resultado? Todos perdem.
4.2 O autointeresse
No autointeresse, ao contrário, o indivíduo satisfaz interesses pessoais tendo
em vista os interesses alheios, age de forma benigna sem prejudicar ninguém,
integra-se como parte de um todo e realiza um bem pessoal de forma consensual,
universalista e includente.
Isso não significa que aqueles que quebram as regras de convivência saiam ilesos,
pois os prejudicados reagem em legítima defesa. Imaginemos, por exemplo, o caso
de um ladrão que tenta invadir o lar de alguém e encontra resistência, ou imaginemos
um hacker que uma pessoa lesada denuncia. A legitimidade fica do lado de quem
http://www.mind.org.uk/news/4106_the_final_taboo_millions_of_employees_forced_to_lie_about_stress.
2
47
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Vejamos agora um jogo que mobiliza uma dupla de jogadores e que lança luz
sobre o assunto. Trata-se de um teste aplicado em laboratório a pessoas que não
se conhecem e que, em tese, não terão outra oportunidade de se cruzar.
O jogo do ditador
Você está incumbido de repartir R$1 mil com outro sujeito que não está autorizado
a se manifestar. Imagine, então, a quantia que você se dispõe a lhe conceder. Quanto
irá oferecer ao outro? Lembre que a divisão da quantia entre os dois jogadores é de
sua alçada e que o outro nada pode fazer.
Vamos agora ao resultado. Nos inúmeros exercícios realizados, quem define a
repartição tende a fazer uma oferta sovina. E, mais ainda, quando as propostas são
seladas, de maneira que ninguém sabe quem ofereceu quanto, muitos ficam com
quase tudo!
Não há dúvida de que práticas egoístas são pontualmente vantajosas para quem
delas se beneficia. Só que solapam os processos de cooperação, quando não os
condenam. Quem não sabe que, nos jogos em equipe, o “fominha” prejudica
os resultados da partida simplesmente porque quer todas as glórias para si? Razão
pela qual a generalização das práticas egoístas não se sustenta ao longo do tempo.
Alguém já viu alguma coletividade em que só haja práticas egoístas? Obviamente
não. Porque os egoístas operam como bactérias parasitárias das sociedades hos-
pedeiras. Sem os organismos portadores, não têm onde se abrigar! Aliás, uma das
vantagens evolutivas do Homo sapiens é justamente seu senso de interdependência
e sua sociabilidade, ambas preciosas ferramentas de coesão e sobrevivência.
50
Capítulo 4: Os interesses pessoais
Mas, diante das ameaças egoístas, como assegurar o bem comum numa
coletividade? O jogo do bem público nos dá as pistas. Para coibir a ação de quem
trapaceia, é indispensável adotar controles efetivos e sanções exemplares. Para
tanto, uma regulação coletiva se impõe.
51
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
52
Capítulo 4: Os interesses pessoais
embora o teor dessas práticas varie de uma sociedade para outra, as caracterís-
ticas gerais que as definem permanecem as mesmas.
O exercício a seguir consistirá em qualificar cada caso enunciado como uma
prática autointeressada (A), que não prejudica os outros, ou uma prática egoísta
(E), que é lesiva aos outros. Essa qualificação, porém, exige que se indague: tal
prática beneficia quem e prejudica quem?
Caso Prática
1. Apropriar-se de ideia alheia.
2. Fazer jus a bônus por desempenho.
3. Participar de um concurso interno na empresa.
4. “Puxar o tapete” dos colegas.
5. Descansar depois da jornada de trabalho.
6. Esconder erros cometidos no exercício profissional.
7. Denunciar assédio moral ou assédio sexual.
8. Usar equipamentos da empresa para negócios pessoais sem
autorização.
9. Majorar nota de despesa reembolsável.
10. Candidatar-se a um emprego cujo anúncio está no jornal.
11. Não conferir crédito a quem realizou determinado serviço.
12. Sonegar informações úteis aos colegas.
13. Vazar o sigilo profissional.
14. Contar piadas indecorosas em público sendo um alto gestor.
15. Cobrar diárias de viagem indevidas.
16. Requerer equipamento de proteção individual.
17. Receber a aposentadoria do INSS.
18. Aceitar ou recusar uma promoção.
19. Exigir “bola” dos fornecedores para contratá-los.
20. Debochar de clientes, colegas ou terceiros.
21. Apresentar-se sem asseio na empresa.
22. Lançar horas extras a mais.
23. Gozar férias remuneradas em período negociado.
24. Inscrever-se num curso de pós-graduação.
25. Pleitear um aumento salarial.
26. Assediar moral ou sexualmente subordinados ou colegas.
27. Trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas.
28. Contratar um seguro-saúde.
54
Capítulo
5
Os interesses grupais
5.1. O parcialismo
Vamos deixar o território das práticas individuais e caminhar no campo
minado das práticas grupais. Minado por quê? Por causa do peculiar cacife dos
grupos. De fato, diferentemente dos agentes individuais, os grupos são capazes
de ações coordenadas que multiplicam a força numérica de seus membros,
impactam significativamente seus ambientes e provocam o bem ou o mal de
modo descomunal. Lembremos feitos positivos e negativos como o pouso na Lua
ou o Holocausto, a Muralha da China ou o lançamento da bomba atômica em
Hiroshima, a construção do Canal do Panamá ou o tráfico negreiro, os avanços
da tecnologia da informação, da medicina e da nanotecnologia ou o genocídio
promovido pelo Khmer Vermelho, no Camboja.
Alexander von Humboldt (naturalista e geógrafo alemão) perguntou a ín-
dios antropófagos da Amazônia se era certo devorar homens. Eles responderam
sem pestanejar: “Que mal há nisso? Os homens que comemos não são nossos
parentes.” Existe melhor exemplo de como um grupo ou uma coletividade pode
converter seus laços de parentesco ou afinidade em umbigos do mundo?
Os aplicativos piratas
Estamos no final dos anos 1990. Um jovem executivo está desempregado há seis
meses. Tem dois filhos estudando em escola privada e foi demitido da gerência de
informática de uma grande engarrafadora porque a empresa decidiu terceirizar os
serviços.
O executivo esgotou boa parte de seu fundo de garantia, deve a última prestação
do apartamento e três meses de condomínio. Está também sem fôlego para pagar
55
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
as mensalidades escolares. Sua mulher não trabalha e demonstra cada vez mais
amargura: resmunga o tempo todo e anda se queixando à família e às amigas a res-
peito do marido desempregado.
A autoestima do executivo anda baixa, e a depressão vem se apossando dele. De
vez em quando, diz a si mesmo que está pronto para o que der e vier. Um ex-colega,
que montou uma firma de manutenção de micros, o aconselha a parar de se lamentar
e arrumar logo R$2 mil. Com isso, compraria um gravador de CDs e discos virgens,
copiaria softwares que muitos amigos dele lhe repassariam e forneceria programas
a bom preço a empresas e a particulares.
Eis um modo de sair do sufoco. Quanto ao resto − pensa consigo mesmo −, três
em cada quatro softwares usados no Brasil são ilegais. Auditores avaliam que em
90% das empresas existe pelo menos um programa ilegal em uso, embora na maior
parte das vezes se trate de lixo.
Então? Copiar programas não dói nada, apesar do que prescreve a lei que, aliás,
está em desacordo com a realidade dos fatos.
Que prática é essa? Danosa ao bem geral, sem dúvida, ainda que o executivo
encontre argumentos convincentes para justificar sua estratégia de sobrevi-
vência: está desempregado; tem uma família para sustentar; está devendo
dinheiro; quase todos copiam softwares; a lei, que pune a cópia ilegal com
pena de detenção, é irrealista e injusta, dado o processo de desmaterialização
da economia.
Como qualificar o caminho escolhido? Ultrapassa as fronteiras do egoísmo,
à medida que não envolve apenas um indivíduo, o produtor-vendedor, mas
também outros agentes que ficam na ponta compradora dos aplicativos piratas.
A prática se processa na dimensão grupal e não na dimensão individual. Por isso
mesmo, é uma prática parcial, pois beneficia alguns às expensas de muitos outros:
desrespeita os direitos autorais; não remunera os investimentos em pesquisa ou
em concepção, fabricação e comercialização; deixa de recolher impostos; opera
nos porões da economia informal. Em resumo, prejudica o bem comum ou a
res publica (a coisa pública).
Investidores lesados
Executivos do Goldman Sachs foram acusados de “comportamento antiético”
e de “enganar seus clientes para aumentar os lucros” do banco, em 2010. O CEO da
Goldman, Lloyd Blankfein, e mais seis executivos e ex-funcionários foram massacrados
em mais de nove horas de audiência no Senado americano.
O líder do comitê de investigação, senador Carl Levin, divulgou e-mails em que os
executivos do Goldman chamavam de “monte de porcaria”, “lixo” e “negócio de merda”
os produtos que vendiam a seus clientes. E-mails e documentos mostram também
que, enquanto vendiam os “montes de porcaria”, os executivos faziam apostas contra
56
Capítulo 5: Os interesses grupais
1 Patrícia Campos Mello. Senado acusa executivos do Goldman de antiéticos. Estado de S. Paulo, 28 de abril
de 2010.
57
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
O “cartel do oxigênio”
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou cinco fabri-
cantes de gases hospitalares e industriais, além de funcionários, à multa total de R$3
bilhões. Mais tarde, a multa foi reduzida a R$2,3 bilhões devido a um erro técnico. O
montante foi calculado sobre o faturamento das companhias em 2003, ano anterior
ao início do processo.
As empresas acusadas de formar o “cartel do oxigênio” foram a Linde, a Air Liquide,
a Air Products, a Indústria Brasileira de Gases e, principalmente, a White Martins,
reincidente e responsável pela maior parte do pagamento (R$1,76 bilhão). O cartel
lesou hospitais públicos e privados, assim como planos de saúde cujos custos foram
fortemente impactados.2
Além de ser uma prática ilegal no âmbito jurídico, a formação de cartel constitui
uma prática parcial no âmbito ético porque favorece determinadas empresas à custa
de outras, encarece preços, sujeita os clientes a exigências exorbitantes, prejudica o
setor econômico em que opera e abala um dos pilares do mercado capitalista, que é
a livre concorrência. Tem caráter abusivo porque, ao gerar um bem restrito grupal,
provoca efeitos perniciosos sobre a sociedade como um todo. Há prevalência de
interesses particularistas em relação aos interesses universalistas. Afinal, quantos
atendimentos deixam de ser realizados em consequência dos sobrepreços que enco-
lhem os orçamentos? Quantos pacientes têm suas doenças agravadas em função
da escassez de oxigênio medicinal? Vitória inconteste da racionalização antiética.
O anestesista
Um dos mais proeminentes anestesistas norte-americanos, cujas pesquisas
influenciaram o curso de muitos tratamentos, foi acusado de manipular dados.
Cometeu uma das maiores fraudes da história da pesquisa médica.
Trata-se do Dr. Scott Reuben, do Baystate Medical Central em Springfield, Mas-
sachusetts. Creditava-se a ele um procedimento que alivia a dor de pacientes sub-
metidos a cirurgias ortopédicas. A investigação concluiu, porém, que vários de seus
trabalhos são mera ficção e que os remédios propostos contra a dor efetivamente
desaceleravam o processo de cura.
Ocorre que as pesquisas de Reuben impulsionaram a venda de remédios, cujo
montante chega a bilhões de dólares, justamente daquelas indústrias farmacêuticas
que costumam conceder subvenções ou doações para a pesquisa médica.
Em janeiro de 2010, o Dr. Reuben confessou ter falsificado as pesquisas e foi con-
denado a pagar US$420 mil em termos de compensação às indústrias farmacêuticas
Célia Froufe. Cade aplica multa recorde de R$3 bilhões ao “cartel do oxigênio”. O Estado de S. Paulo, 02
2
de setembro de 2010. Martha Beck. Multa a empresas do setor de gases hospitalares condenadas por cartel
encolhe. O Globo, 22 de setembro de 2010.
58
Capítulo 5: Os interesses grupais
lesadas. Perdeu também seu cargo no hospital e responde a um processo cuja sentença
máxima poderá ser de 10 anos de cadeia.3
O Banco PanAmericano
Foram anunciadas fraudes contábeis cometidas por executivos do banco de pro-
priedade do empresário Silvio Santos e da Caixa Econômica Federal, dona de 49,9%
do capital votante, em novembro de 2010.
Segundo a fiscalização do Banco Central, carteiras de crédito vendidas a outros
bancos continuavam contabilizadas no balanço, além de haver indícios de que a
mesma carteira tenha sido vendida mais de uma vez. De maneira que a carteira de
empréstimos era inflada, e o valor do banco idem. O problema teria ocorrido durante
quatro anos. Houve também desvio de dinheiro na empresa de cartão de crédito.
O rombo inicialmente estimado foi da ordem de R$2,1 bilhões em operações de
crédito do banco e de R$400 milhões na área de cartões.
A fim de capitalizar o banco, o empresário Silvio Santos obteve um empréstimo
de R$2,5 bilhões do FGC (Fundo Garantidor de Crédito), um fundo privado gerido
pelo conjunto de bancos. Deu como garantia todo o seu patrimônio empresarial,
incluindo o SBT e o Baú da Felicidade.
Todos os diretores foram demitidos. Ademais, a Polícia Federal iniciou uma inves-
tigação sobre gestão temerária, indução de investidor em erro, inserção de elemento
falso em demonstrativos contábeis, gestão fraudulenta, formação de quadrilha,
lavagem de dinheiro e sonegação fiscal... Um invejável rol de crimes!
Uma auditoria posterior elevou o rombo a R$4,3 bilhões e obrigou Silvio Santos
a vender o banco ao BTG Pactual logo no início de 2011. Boa parte do prejuízo foi
bancada pelo Fundo Garantidor de Crédito.
http://www.masslive.com/news/index.ssf/2010/01/dr_scott_reuben_former_chief_o.html.
3
59
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Os gestores à espreita
A incorporadora Gafisa teve um prejuízo somado de mais de R$1 bilhão em 2011 e 2012.
Teve de cancelar obras, adiar lançamentos e devolver o dinheiro de clientes. O período também
foi péssimo para os acionistas: os papéis valem 69% menos do que no início de 2011. Inves-
tidores não receberam dividendos nesse período. O mesmo não se pode dizer dos executivos.
O salário médio dos seis diretores passou de R$1,8 milhão por ano para 3,6 milhões. Em 2012,
eles ganharam mais 10,4 milhões em bônus por resultados. Os investidores chiaram.
O descasamento entre o resultado e a política de remuneração não é exclusividade da
Gafisa. Exame fez um levantamento com base nos números das empresas abertas cujas ações
estão entre as mais negociadas na bolsa. São 40 no total.
Destas, 20 tiveram prejuízo em 2012. E 13 delas pagaram bônus anual ou participação nos
resultados aos diretores e conselheiros. Estas 13 empresas tiveram prejuízo acumulado de R$14
bilhões em 2012, mas distribuíram em média 6,4 milhões para seu grupo de diretores.
O debate em torno da melhor forma de remunerar executivos é antigo. Como fazer para
que eles ajam de acordo com o interesse dos acionistas, e não apenas pensando no próprio
umbigo? Para chegar a um valor que agrade aos acionistas e atraia os melhores profissionais,
as empresas criam pacotes cada dia mais complexos.
A ideia básica é simples: premiar quem cumpre as metas. Mas é aí que as coisas começam
a ficar mais complexas. Essa lógica é incontestável quando a empresa paga bônus elevados
por resultados excepcionais.5
http://www.ibgc.org.br/Secao.aspx?CodSecao=18.
4
Maria Luíza Filgueiras. Ruim de bolsa, boa de bolso. Exame, 02 de outubro de 2013.
5
60
Capítulo 5: Os interesses grupais
O rombo do Carrefour
A rede varejista francesa Carrefour anunciou que os gastos extraordinários com
a contabilização de receitas indevidas nas suas operações, no Brasil, atingiram cerca
de R$1,2 bilhão (final de 2010). A reação da matriz foi enérgica: demitiu boa parte dos
altos gestores, a começar pelo diretor-superintendente. Da cúpula diretiva, formada
por 10 executivos, sobraram apenas quatro.
Tanto a auditoria interna como a externa identificaram erros no recebimento de
“bonificações do varejo”, que são valores pagos pela indústria aos supermercados,
como forma de desconto na aquisição de mercadorias. Ocorre que o Carrefour não
realizou efetivamente a totalidade das vendas. Foram também apontados problemas
de ajustes de depreciação e provisões para litígios trabalhistas e fiscais.
Esse é mais um caso de prática parcial, pois essas mágicas contábeis procuraram
esconder perdas, fraudes ou desfalques. E, para piorar o quadro, o seu reconhe-
cimento público impactou negativamente o valor das ações da companhia. Isso
ilustra a autonomia de voo que os executivos desfrutam e que lhes permite driblar
os controles determinados pelos acionistas, aumentando seu nível de incerteza.
62
Capítulo 5: Os interesses grupais
A comissão
Em seu primeiro emprego, um recém-formado de 23 anos foi encarregado de com-
prar material de rotina para abastecer o escritório da firma. Fez a cotação e escolheu
o fornecedor pelos critérios de melhor preço e qualidade. Quando foram fechar o
negócio, o vendedor lhe perguntou: “E como eu lhe pago os 10%?”
“Que 10%?”, perguntou o rapaz. O vendedor explicou que, pela praxe, ele tinha
direito à comissão por tê-lo escolhido. O novato, entre aturdido e ofendido, pediu
que ele desse o desconto no preço da compra, enquanto o vendedor o olhava com
a expressão de quem constata estar diante de um trouxa.
A compra dava R$35 mil. O rapaz ganhava R$1 mil por mês. A “comissão” re-
presentava três meses e meio de salário. “Até que deu vontade de pegar”, confessou
depois o garoto, mas ele não pegou.7
Jamil Chade. China ajuda Europa e anima bolsas. O Estado de S. Paulo, 22 de dezembro de 2010.
6
Lourival Sant’Anna. Corrupção nas empresas prospera sob sigilo. O Estado de S. Paulo, 28 de abril de 2002.
7
63
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
64
Capítulo 5: Os interesses grupais
Se não, vejamos. Imaginemos que você ceda seu lugar no metrô ou no ônibus
a uma mulher grávida ou a um idoso. Há umas três ou quatro décadas, isso
fazia parte das boas maneiras ou da etiqueta brasileira. Hoje em dia, a norma
deixou de vigorar: ceder ou não o lugar converteu-se em preferência pessoal. Ou
imaginemos que você ajude um cego a atravessar a rua ou ainda troque o pneu
furado do carro de uma colega que tem dificuldade em fazê-lo.
O que são esses atos senão atos altruístas? Cometê-los não exige heroísmo
algum ou sacrifícios extraordinários. Requer algum esforço, é verdade, pois im-
plica cooperação (atuação conjunta) e solidariedade (compromisso de apoio).
Gera um inegável bem, ainda que restrito. Não anula, todavia, os interesses do
autor nem equivale à doação sem contrapartida. Vale dizer, o altruísmo implica
algum tipo de reciprocidade ou de ganho conjunto (compartilhamento de valor):
supõe uma espécie de contrato simbólico (a pessoa beneficiada se sente em dívida
ou no dever de retribuir o gesto de boa vontade); satisfaz também algum interesse
do agente à medida que, no mínimo, lhe proporciona uma sensação de dever
cumprido (gratificação psicológica) ou lhe confere quer prestígio social quer
reconhecimento pessoal, ainda que não tenham sido esses os motivos primeiros
da ação cometida.
65
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Eis uma boa ilustração do altruísmo restrito: o processo opera em via de mão
dupla, pois corresponde a práticas de apoio mútuo que beneficiam um grupo
ou alguns grupos. Além do mais, o benefício grupal obtido não prejudica os in-
teresses alheios e reforça os laços de afinidade existentes, uma vez que se partilha
valor entre as partes envolvidas.
Como qualificar o bem gerado? Seu caráter é restrito porque não abarca a
sociedade como um todo, ainda que venha a provocar reflexos benéficos. E mais
ainda: é consensual e universalista, pois interessa a todos poder usufruí-lo.
Os três setores constitutivos da sociedade (o 1° público, o 2° privado e o 3°
voluntário) praticam o altruísmo restrito embora sejam igualmente capazes de
exercer as demais práticas coletivas (as parciais, assim como as altruístas impar-
ciais ou as extremadas). Afinal, é bom que se diga, tanto os agentes individuais
como os agentes coletivos são multifacetados e podem cometer ações nem sempre
consistentes entre si.
Ocorre que, meses mais tarde, o caso sofreu uma grande reviravolta: a Justiça
francesa descobriu que se tratava de fraude praticada pela área de segurança da
Renault demite diretores suspeitos de espionagem industrial. O Estado de S. Paulo, 07 de janeiro de 2011;
8
Andrei Netto. Chineses estariam por trás de espionagem na Renault. O Estado de S. Paulo, 08 de janeiro de
2011; Le Monde, 11 de janeiro de 2011.
66
Capítulo 5: Os interesses grupais
67
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
68
Capítulo 5: Os interesses grupais
capital necessário. Só que o controlador brasileiro informa que não dispõe de recursos.
Alguns entendidos comentam à boca pequena que ele não pretende abrir mão do
“colchão” de que dispõe − fundos disponíveis em dois paraísos fiscais.
Reginaldo foi encarregado da negociação com os americanos, supervisionado
diretamente pelo presidente. O acordo está caminhando muito bem, conciliando os
diversos interesses: o sócio brasileiro venderia o controle e permaneceria com uma
posição sólida, enquanto os americanos investiriam pesadamente no processo de
expansão. Reginaldo e o presidente permaneceriam em seus postos de comando,
com boas perspectivas de avanços em carreira internacional.
Tudo parece estar no melhor dos mundos, a não ser por um senão. A mulher de Regi-
naldo − mãe de seus dois filhos adolescentes − foi acometida pela doença de Alzheimer
(demência senil). Os gastos passaram a ser substanciais com os cuidados médicos e com as
enfermeiras que dão plantões de 24 horas por dia. A manutenção da casa, as mensalidades
das faculdades particulares dos filhos, as despesas com o padrão de vida de um alto
executivo (carros, empregados domésticos, casa de campo, recepções indispensáveis
para cultivar a rede de relações profissionais) pressionam os ganhos de Reginaldo.
Acontece que, ao longo dos anos, Reginaldo amealhou uma carteira razoável de
ações, graças ao mecanismo de “opções de ações” que os americanos introduziram
na cultura organizacional. Um amigo dele, muito chegado, também juntou um
portfólio importante de ações da empresa e vem insistindo há meses para que
Reginaldo adquira sua posição, já que pretende participar de um empreendimento
imobiliário no Nordeste. Reginaldo não tinha condições de atender ao pedido do
amigo por falta de recursos disponíveis.
Mas agora se pergunta: não seria interessante matar dois coelhos com uma
cajadada só? Agradar ao amigo, ainda que venha a se endividar em banco, e com-
prar ações que certamente irão se valorizar? A operação seria bastante discreta e,
no momento certo, ele poderia desovar tudo com bom lucro. É como se fosse uma
oportunidade que Deus lhe deu para cuidar de sua mulher, fazendo face às despesas.
O que fará Reginaldo e por quê?
A partilha de ATMs
O Banco do Brasil, o Bradesco e o Santander, três das quatro maiores instituições
financeiras do país, anunciaram a intenção de compartilhar seus caixas eletrônicos
(ATMs). Os clientes teriam acesso aos serviços dos três associados que, somados,
cobrem um universo de quase 65 milhões de correntistas.
70
Capítulo 5: Os interesses grupais
Em novembro de 2010 deram início a uma fase experimental com cerca de 700
equipamentos instalados em shoppings, aeroportos, supermercados, farmácias e
postos de combustíveis. Caso seja demonstrada a viabilidade da interligação dos
terminais, o modelo de compartilhamento será estendido a outras unidades.
Trata-se de prática altruísta restrita que obedece à razão ética e se inspira por
valores universalistas (competência, efetividade, parcimônia), pois atende aos
interesses dos bancos e de seus clientes sem causar danos aos demais agentes
sociais. Ao mesmo tempo em que os bancos reduzem seus custos com a sinergia
esperada, os clientes desfrutam de atendimento mais amplo e diversificado. Um
valor está sendo criado e partilhado. Contudo, quem se apropria dele? Não a
sociedade como um todo, pois nem todos são correntistas daqueles bancos. De
sorte que a prática não pode ser caracterizada como imparcial, mas restrita, já
que grupos bem específicos se beneficiam daquele valor criado.
Vamos nos deliciar agora com uma pequena análise de riscos.
O empréstimo
Dois bancos concorrentes, A e B, emprestaram cada qual R$5 milhões para a
empresa Z lançar um novo produto. As informações a respeito foram comunicadas
a ambos os gerentes pelo próprio dono da empresa tomadora dos empréstimos.
Acontece que a empresa Z acabou fazendo um investimento arriscado. Porque,
apesar da boa campanha de lançamento, o produto não atingiu as vendas projetadas.
Novo esforço publicitário acabou sendo feito com peças reformuladas. Em vão. No
decorrer do ano, a empresa começou a atrasar as faturas dos fornecedores, embora
mantivesse em dia os juros dos empréstimos. E suas dificuldades financeiras foram
crescendo.
O tempo passou e o momento fatídico da devolução do principal chegou. Ocorre
que, nesse ínterim, os ativos dados como garantias se degradaram e passaram a
valer apenas R$6 milhões. Além do mais, os dois gerentes, sabedores da situação e
cientes de que se tratava de um bom cliente, viram que sem liquidez a empresa não
conseguiria honrar a dívida. Só que não estavam autorizados a se comunicar para
definir uma atuação conjunta.
No frigir dos ovos, ambos acabaram tendo a mesma ideia: se o prazo do emprés-
timo fosse estendido, a empresa poderia eventualmente se recuperar. Nesse caso,
seria preciso renovar o contrato assinado. Mas tal providência estava fora da alçada
dos gerentes. Quem tinha autonomia para efetuar essa operação era o diretor deles.
Assim, para conseguir seu intento, os gerentes deveriam convencer o diretor. Isso os
obrigou a refletir mais a fundo sobre a situação. Vislumbraram então três cenários:
1. Se ambos renovassem, seria bem provável que a empresa pudesse operar
por mais um ano. Ela desembolsaria um milhão de juros e, caso quebrasse
no fim do exercício, cada gerente iria recuperar o montante de três milhões,
acrescido daquele milhão de juros.
71
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
72
Capítulo 5: Os interesses grupais
O trabalho degradante
“Precisa-se de costureiros para trabalhar no Brasil. Salário de US$300 ao mês, com
direito a moradia e alimentação.” Um anúncio semelhante a esse atraiu Jorge e Maitê,
que acreditaram ser essa a maneira de sair da miséria em que viviam, na periferia de
La Paz, capital da Bolívia. Venderam todos os móveis que tinham e partiram rumo ao
Brasil. Aqui, contudo, não saíram da miséria.
Jorge só compreendeu o que estava acontecendo quando ele e sua esposa demo-
raram quatro meses para pagar uma dívida que tinham com o coiote (agenciador),
74
Capítulo 5: Os interesses grupais
trabalhando duro das sete da manhã até meia-noite. “Às vezes, até três da manhã,
morando num lugar muito ruim”, conta.
Se soubesse que a vida seria assim, Maitê nunca teria vindo. Mas era tarde demais.
O casal procurou outra fábrica. Depois de dois meses de trabalho, nada a receber.
Brigaram com os empregadores e procuraram uma terceira fábrica. A mesma coisa.
Na quarta, apareceu um tumor no pescoço de Jorge. Feita a cirurgia, descobriu-se
que se tratava de tuberculose ganglionar.
Maitê também contraiu tuberculose. Com dificuldade para trabalhar, Jorge foi
agredido pelo dono da confecção, também boliviano, e o casal foi expulso da fábrica.
Eles foram acolhidos pela Casa do Migrante, onde vivem há quatro meses, e estão
em tratamento de saúde.
A história de Jorge e Maitê é semelhante à de milhares de bolivianos que saem de
seu país fugindo da miséria e entram ilegalmente no Brasil todos os anos para traba-
lhar em pequenas confecções da cidade de São Paulo, em condições comparáveis ao
que os defensores de direitos humanos chamam de escravidão moderna. Os operários
daquelas fabriquetas costumam ser atraídos pelas falsas promessas de bons salários
feitas por coiotes, por meio de anúncios em jornais e rádios bolivianos.
De acordo com o padre Roque Pattussi, coordenador do Centro Pastoral do
Migrante, entidade ligada à Igreja Católica que apoia os imigrantes no país, há grupos
que são trancados em porões, fechados com grades, correntes e cadeados. Os em-
pregadores também se aproveitam da ignorância dos imigrantes em relação à legis-
lação brasileira e abusam do terror psicológico.11
11
Tatiana Merlino. Trabalho escravo: migrantes, uma crônica da vergonha. São Paulo: Brasil de fato, ed.
114, 5 a 11 de maio de 2005, http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/eh/f /manif/lectures/trabalho_es-
cravo.htm.
75
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
O tráfico de órgãos
Hashim Thaçi, primeiro-ministro de Kosovo, manteve-se no poder após as eleições
locais. A região muçulmana pertenceu à Iugoslávia, depois à Sérvia e conquistou a
independência em 2008, após longas convulsões que acompanharam a desintegração
iugoslava.
Portanto, Thaçi deveria estar satisfeito, já que volta ao cargo. Mas não é o caso.
Dois problemas o incomodam: de um lado, ele é acusado de fraude eleitoral; de
outro, durante a guerra contra a Sérvia, em 1999, ele liderava uma organização
de tráfico de órgãos.
Uma operação simples: eram retirados os órgãos dos prisioneiros, que depois eram
vendidos no exterior para cirurgiões em busca de fígados e rins. O interesse dessa
indústria era duplo. De um lado, rendia um bom dinheiro. De outro, era “ideologica-
mente correto”, pois os fígados e rins vendidos eram sérvios. (...)
Alguns prisioneiros eram levados à Albânia e conduzidos a uma “casa amarela”,
uma fazenda simples onde eram realizados testes sanguíneos e exames de saúde. Os
considerados “bons para o serviço” iam para um local próximo do aeroporto de Tirana,
capital albanesa, onde funcionava um centro muito bem equipado. Os prisioneiros
escolhidos eram mortos com uma bala na cabeça. Seus órgãos eram retirados e
exportados. (...)
Em Kosovo, governo e oposição rejeitaram indignadas as acusações. Segundo os
kosovares, a história é uma fábula inventada pelos sérvios.12
Gilles Lapouge. O governo de Kosovo e o tráfico de órgãos. O Estado de S. Paulo, 17 de dezembro de 2010.
12
76
Capítulo 5: Os interesses grupais
j
Os credos milenaristas, que insuflam religiões proféticas a instituir um
único reino de Deus na Terra, ensinam que a “fé verdadeira” tem por mis-
são submeter os ímpios; ou clamam que o povo de Deus deve expulsar ou
eliminar da Terra Prometida todos aqueles que não comungam das mesmas
crenças; ou sentenciam que a predestinação na salvação da alma distingue
desde sempre os eleitos − a quem estão reservadas as benesses da vida eterna
e as promessas do Senhor na vida terrena − e os condenados − sobre quem
recaem todas as maldições.
A blasfêmia no Paquistão
No estado do Punjab, no Paquistão, trabalhadores rurais pediram a Asia Bibi, uma
camponesa, mãe de cinco filhos, que fosse buscar água. Alguns deles, muçulmanos,
recusaram-se a bebê-la porque Bibi é cristã e, portanto, considerada “impura”.
Seguiu-se uma discussão. Alguns dos presentes foram se queixar a um clérigo
local de que Bibi havia feito comentários depreciativos sobre o profeta Maomé. Uma
multidão invadiu a casa de Bibi, que foi atacada juntamente com seus familiares.
A polícia então deu início a uma investigação contra Bibi, e não contra os que a
atacaram. Ela foi presa e condenada por blasfêmia, conforme prevê o artigo 295C
do código penal do país. A mulher ficou mais de um ano na prisão e acabou sendo
condenada à morte por enforcamento, condenação contra a qual está recorrendo.
O artigo 295C estipula que “comentários depreciativos em relação ao Santo
Profeta, sejam orais ou escritos, por representação visível ou por qualquer imputação,
menção ou insinuação, direta ou indireta, deverão ser punidos com a morte, ou prisão
perpétua, e estarão sujeitos a multa”.13
Saroop Ijaz. A verdadeira blasfêmia no Paquistão. The Los Angeles Times; O Estado de S. Paulo, 10 de janeiro de
13
2011.
77
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Por fim, diremos de forma sintética que os agentes fazem escolhas polarizadas.
Procuram sempre gerar um bem para si, mas certas escolhas ocasionam o mal nos
semelhantes e, por isso mesmo, são particularistas e abusivas (práticas egoístas
ou parciais), enquanto outras escolhas ocasionam o bem para os semelhantes e,
por isso mesmo, são universalistas e consensuais (práticas autointeressadas ou
altruístas).
CASO PRÁTICA
1. Poluir o meio ambiente.
2. Dar aumento real de salários a todos os colaboradores.
3. Organizar consórcio de pesquisa tecnológica com concorrentes.
4. Desmatar áreas de preservação permanente.
5. Dar calote em fornecedores.
6. Montar um serviço de atendimento aos clientes.
7. Fazer conluio com concorrentes em licitações.
8. Investir em inovação de produtos.
78
Capítulo 5: Os interesses grupais
CASO PRÁTICA
9. Pagar “caixinha” aos compradores para fazer parte da lista de
fornecedores.
10. Medir e pagar serviços não realizados ou mal realizados mediante
propina.
11. Comprar ou vender produtos piratas, falsificados ou contrabandeados.
12. Formar cooperativas de produção ou de compras.
13. Financiar cursos de formação profissional para que a comunidade local
tenha fonte de renda.
14. Formar cartéis.
15. Maquiar balanços.
16. Subornar fiscal para validar a contabilidade.
17. Sonegar impostos para melhor competir.
18. Fazer recall voluntário de produtos defeituosos.
19. Capacitar regularmente o pessoal.
20. Cometer espionagem econômica para apropriar-se de segredos
industriais dos concorrentes.
21. Clonar produtos.
22. Divulgar publicidade enganosa.
23. Bancar o seguro-saúde dos funcionários.
24. Promover liquidações periódicas.
25. Promover apaniguados em detrimento de profissionais qualificados.
26. Gratificar os funcionários que contribuírem com ideias inovadoras.
27. Fazer falsas promoções.
28. Usar a pesquisa como disfarce da venda.
29. Vender produtos usados como novos.
30. Melhorar as condições de trabalho na empresa.
31. Não revelar restrições que afetem produtos e serviços, tais como
possíveis danos à saúde ou ao meio ambiente, carências ou doenças não
cobertas em seguro-saúde.
32. Usurpar a propriedade intelectual de invenções, aperfeiçoamentos
técnicos, tecnologias, projetos, processos ou métodos.
33. Investir em melhoria de processos nas empresas fornecedoras.
34. Premiar o desempenho dos funcionários.
35. Comercializar produtos com data de validade vencida.
36. Difundir comentários desabonadores sobre os concorrentes.
37. Tolerar o assédio moral ou sexual.
38. Repassar aos clientes ganhos de produtividade.
39. Subsidiar a alimentação dos funcionários.
40. Permitir a difusão de preconceitos e práticas discriminatórias.
79
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
CASO PRÁTICA
41. Manipular resultados referentes aos estoques, inventários ou ajustes de
dados.
42. Financiar cursos de pós-graduação aos executivos.
CASO PRÁTICA
1. Achar carteira com dinheiro e devolvê-la ao dono.
2. Trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas.
3. Exigir seus direitos trabalhistas.
4. Descartar lixo industrial tóxico sem as cautelas necessárias.
5. Recusar presente de fornecedor para não comprometer a isenção na
gestão de um contrato.
80
Capítulo 5: Os interesses grupais
CASO PRÁTICA
6. Investir doações feitas para um fundo de amparo a desabrigados
em operações especulativas.
7. Gerar e manter um caixa dois.
8. Fazer jus a bônus por desempenho.
9. Testemunhar a favor de colega contra o assédio moral do chefe.
10. Denunciar à auditoria interna colega que tenta se apropriar de
informações confidenciais da empresa.
11. Maquiar as informações sobre a carreira profissional.
12. Esconder lucro de correntistas em paraíso fiscal.
13. Denunciar concorrente por prática de dumping.
14. Aconselhar um amigo a comprar ações da própria empresa,
informando-lhe em confidência que haverá uma aliança estratégica.
15. Especular com os preços de produtos de primeira necessidade em área
atingida por calamidade natural.
16. Apropriar-se de produtos doados a vítimas de desastre.
81
Capítulo
6
Os interesses gerais
Não é demais repetir que os agentes, cujo espaço foi invadido, revidam em legítima defesa. Os “males”
1
sofridos por quem desvirtuou as regras da convivência social correspondem aos riscos incorridos para obter
um bem à custa dos outros.
83
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Os “treineiros”
Dois alunos de uma importante escola privada paulistana prestaram vestibular
enquanto cursavam o terceiro ano do ensino médio. Um deles entrou na FGV e o outro
no IBMEC. Ficaram tão entusiasmados com seu sucesso que decidiram “viabilizar” a
inscrição nas respectivas faculdades.
Souberam que poderiam dar um jeito comprando um diploma do ensino médio.
De fato, um colégio do Mato Grosso do Sul tinha a receita certa: efetuou uma “reclas-
sificação” e resolveu a dificuldade.
Curiosamente, essa hipocrisia coletiva homenageia a virtude. Se não, por que manter o segredo?
2
84
Capítulo 6: Os interesses gerais
3
Naturalmente, quaisquer valores são historicamente constituídos. Por exemplo, não é concebível falar
(a sério) de pluralidade, transparência, equidade ou impessoalidade no Brasil se não em anos muito recentes.
E, mesmo assim com cautela, dada a escassa divulgação e prática de padrões liberais e profissionais de gestão.
4
Galliano é demitido por antissemitismo. O Estado de S. Paulo, 02 de março de 2011.
5
Galliano é demitido. O Estado de S. Paulo, 09 de setembro de 2011.
85
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
j
O altruísmo restrito se assenta no apoio mútuo, se exerce dentro ou entre
grupos e reforça os laços de afinidade existentes.
j O altruísmo imparcial visa ao bem público e atualiza relações de ampla
reciprocidade.
j
O altruísmo extremado efetiva ações filantrópicas em prol de pessoas
necessitadas e expressa a admirável generosidade de benfeitores ou
doadores.
j
O autointeresse beneficia o indivíduo sem prejudicar outrem e satisfaz
interesses pessoais.
j O altruísmo restrito compartilha valor entre membros de um grupo ou
entre grupos, fortalece afinidades sem lesar outrem e satisfaz interesses
grupais.
j O altruísmo imparcial promove o bem público, compartilha benefícios
entre todos os membros de uma coletividade inclusiva e satisfaz interesses
sociais.
j
O altruísmo extremado alivia o sofrimento de gente necessitada, ajuda
quem mais precisa e propicia alguma contrapartida simbólica aos ben-
feitores ou doadores, satisfazendo interesses humanitários.7
6
Esta asserção será matizada no tópico referente ao “mal menor” e ao “mal necessário” (Capítulo 8), quando
veremos que, além dos efeitos colaterais que muitas práticas implicam, alguns males têm caráter universalista
em situações muito precisas.
7
Os necessitados podem ser flagelados por calamidades naturais, desabrigados, sinistrados, desalojados, crian-
ças carentes, idosos abandonados, indigentes, miseráveis, refugiados, doentes desamparados, perseguidos
políticos, famintos, desnutridos, feridos ou mutilados de guerra, desempregados, ou seja, gente vulnerável,
desassistida ou desvalida.
86
Capítulo 6: Os interesses gerais
A intervenção
O diretor da escola paulistana em que estudavam os dois “treineiros” que compraram
o diploma percebeu a manobra. Afinal, os resultados foram publicados e os dois moços
saíram da escola. Ele decidiu então denunciar o fato às autoridades educacionais.
Feita a investigação, o MEC (Ministério da educação) interveio no colégio res-
ponsável pela irregularidade. Em decorrência, os diplomas foram invalidados e as
matrículas canceladas nas respectivas faculdades.
87
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Evitar desperdício de água, energia, combustível, papel, alimentos; plantar árvores para compensar as
9
próprias emissões de gás carbônico; usar produtos certificados, biodegradáveis, reciclados ou de fontes
controladas; colaborar com a coleta seletiva do lixo, a reciclagem, a reutilização e a correta disposição final
dos resíduos sólidos etc.
88
Capítulo 6: Os interesses gerais
Os resíduos da Ambev
A maior indústria de bebidas do Brasil reaproveitou 98,2% de todos os resíduos
gerados e obteve com isso uma receita de R$78,8 milhões em 2009.
Numa primeira fase, reduziu a quantidade de resíduos sólidos produzidos nas
fábricas. Depois, promoveu a recuperação, o reuso ou a reciclagem desses resíduos.
Finalmente, identificou oportunidades para que fossem reutilizados como insumos
em outros processos.
89
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
naturais numa visão de longo prazo. Prática altruísta imparcial, de origem em-
presarial, em que todo mundo ganha, sem colocar em risco os recursos que as
futuras gerações herdarão.
Um anúncio do Conar
O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) publicou
um anúncio sob o título “O Conar existe para coibir exageros na propaganda”.
Dizia: “Nós adoraríamos dizer que somos perfeitos. Que somos infalíveis. Que não
cometemos nem mesmo o menor deslize. E só não falamos isso por um pequeno
detalhe: seria mentira. Aliás, em vez de usar a palavra ‘mentira’, como acabamos
de fazer, poderíamos optar por um eufemismo. ‘Meia-verdade’, por exemplo, seria
um termo muito menos agressivo. Mas nós não usamos esta palavra simplesmente
porque não acreditamos que exista uma ‘meia-verdade’. Para o Conar, existem a
verdade e a mentira. Existem a honestidade e a desonestidade. Absolutamente
nada no meio. O Conar nasceu há 29 anos (viu só? Não arredondamos para 30)
com a missão de zelar pela ética na publicidade. Não fazemos isso porque somos
bonzinhos (gostaríamos de dizer isso, mas, mais uma vez, seria mentira). Fazemos
isso porque é a única forma de a propaganda ter o máximo de credibilidade. E, cá
entre nós, para que serviria a propaganda se o consumidor não acreditasse nela?
(...) Estamos muito mais interessados em cumprir nossa missão, que é fazer com
que a publicidade seja sempre honesta, responsável e respeitosa. E não meio
honesta, meio responsável e meio respeitosa. Isso não existe nem na propaganda,
nem na vida.” 11
90
Capítulo 6: Os interesses gerais
Cris Simon. McDonald's muda receita após denúncia de Jamie Oliver. Exame, 27 de janeiro de 2012.
12
91
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
não são poluidores? Claro que são. Isso significa o quê? Não vivemos no mundo
encantado de Poliana, onde somente o bem impera, e o altruísmo imparcial não
é perfeito. Dificilmente um processo de produção material ou de serviço deixa de
gerar efeitos colaterais cujo grau de nocividade guarda relação com a tecnologia
socialmente disponível. Entendida a complexidade dos processos, cabe indagar:
em uma equação custo-benefício, os benefícios coletivos são ou não superiores
aos custos-prejuízos? Caso sejam, o processo ou o serviço se legitimam. Mas só
a legitimidade simbólica não resolve. É preciso intervir incessantemente para
minimizar os efeitos indesejáveis e, no extremo, eliminá-los. Ademais, alternativas
precisam ser desenvolvidas em busca do menor impacto possível sobre o meio
ambiente e sobre a sociedade.
Os agrotóxicos
Os danos provocados à saúde por agrotóxicos estão sendo paulatinamente
reduzidos com a proibição de certos produtos e sua substituição por produtos menos
tóxicos. Em 2008, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determinou o
banimento dos agrotóxicos cihexatina, tricloform, endossulfam, e fez o mesmo em
2011 com o metamidofos.13
O dumping
O governo brasileiro decidiu fechar o cerco aos exportadores chineses que burlam
as tarifas antidumping, as sobretaxas usadas para punir os fabricantes que vendem no
Brasil abaixo do preço de custo. Há indícios de que as empresas estão falsificando os
certificados que comprovam a origem do produto ou fazendo triangulação − apenas
montando as peças em outros países. Desta maneira, os produtos são fabricados na
China com um custo baixo, mas chegam ao Brasil como se tivessem sido feitos em
Taiwan, na Malásia ou no Vietnã.
Como ocorre o dumping? O país exportador envia seus produtos a preços abaixo
do custo para um segundo país.
Lígia Formenti. Vigilância sanitária bane agrotóxico em todo o país. O Estado de S. Paulo, 18 de janeiro de
13
2011.
92
Capítulo 6: Os interesses gerais
O cartel
Considerada uma das práticas mais nocivas à livre concorrência, o cartel começa a
ser combatido com firmeza no Brasil. De acordo com a Secretaria de Direito Econômico
(SDE), mais de 100 executivos estão sendo processados criminalmente por práticas de
cartelização, como combinação de preços ou divisão de mercado entre concorrentes
nos mais diversos setores da economia.
Apesar de ser considerado crime no Brasil desde 1990, com pena de multa ou até
cinco anos de prisão, as investigações de cartel ganharam fôlego nos últimos anos
com a introdução do programa de leniência − quando um participante de cartel
denuncia os demais em troca de imunidade − e a celebração de um convênio entre
a SDE, o Ministério Público e a Polícia Federal.15
14
Raquel Landim. Exportador chinês usa outros países para driblar lei antidumping brasileira. O Estado de
S. Paulo, 14 de fevereiro de 2010.
15
Situação em 2010.
93
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
O correio eletrônico
Em 1971, o engenheiro Ray Tomlinson criou o primeiro programa para trocar
mensagens por computador. Inventou um meio de comunicação usado hoje por
bilhões de pessoas − o e-mail −, com o símbolo famoso @ que separa o nome do
usuário de onde ele se encontra. Só que não registrou a invenção.
Perguntado em uma entrevista se não lamenta não ter patenteado a ideia, pois
poderia ter ficado rico com ela, Tomlinson respondeu que “a noção de que alguém
poderia ou deveria enriquecer com uma invenção como essa era totalmente contrária
ao espírito da época”.
Destaques para a restauração dos palácios de Versalhes e de Fontainebleau na França, o Museu de Arte
16
Moderna de Nova York (MoMa), o Rockefeller Center (ícone do art déco), o Lincoln Center, a casa da Ópera
e a Orquestra Filarmônica de Nova York.
95
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Mas vejamos algo menos espetacular, embora não menos generoso: a doação
de sangue. Ela é feita sem alarde, num gesto nobre de solidariedade humana.
Quantas vidas são salvas por pessoas anônimas que nada reclamam para si?18 É
por isso que o altruísmo extremado ocupa no imaginário popular a sinonímia
de altruísmo. É a ele, aliás, que o dicionário se refere tão efusivamente. Não se
trata, porém, do único tipo de altruísmo, como já vimos. E, verdade seja dita, se
não existissem múltiplos altruísmos, as sociedades humanas estariam em maus
lençóis...
Reconheçamos: a abnegação de benfeitores, doadores ou voluntários se dirige
à humanidade das pessoas socorridas e não à singularidade dos indivíduos. A
dedicação desses protagonistas se dá tanto em energia despendida (tempo de
trabalho, habilidades exercidas) como em recursos tangíveis e intangíveis. E mais:
dentre os sacrifícios que cometem, destacam-se os riscos pessoais nas horas de
maior perigo.
Mesmo que, eventualmente, possam se valer da doação de sangue para abonar o dia de trabalho, obter
18
documento sobre a tipagem do sangue, receber um lanche após a doação, ficar isentos de taxas de inscrição
em exames ou concursos públicos, ou ainda obter carteira de meia entrada por serem doadores regulares.
Nenhum desses incentivos amesquinha o ato de solidariedade humana que salva vidas.
96
Capítulo 6: Os interesses gerais
Os samurais nucleares
Em março de 2011, um terremoto seguido de tsunami provocou mais de 15 mil
mortes e um prejuízo de aproximadamente US$300 bilhões na costa leste do Japão.
Receios de vazamentos de radiação levaram a uma evacuação de 2 mil km de raio ao
redor da planta, forçando 160 mil pessoas a deixar suas casas. A catástrofe também
atingiu as instalações da usina nuclear de Fukushima, destruindo parte de suas ins-
talações e provocando uma série de explosões. Uma fusão parcial do núcleo ocorreu
em três dos seis reatores, chegando ao nível 7 da Escala Internacional de Acidentes
Nucleares (INES) − nível equivalente ao do acidente nuclear de Chernobil.
Numa tentativa para prevenir um desastre nuclear ainda maior, o grupo que ficou
conhecido como os “50 de Fukushima” − grupo de 300 homens dos quais 50 trabalham
por turnos dentro da central nuclear − decidiu permanecer na usina para resfriar os
reatores. Todos são voluntários.
Esses homens (heróis nacionais no Japão) sabem que vão morrer devido à
exposição à radiação. São chamados de samurais, porque no código de honra
dos samurais consta a busca de uma morte digna. Prática altruísta extremada.
97
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
CASO PRÁTICA
1. Operar rede de água encanada.
2. Regular tráfego urbano e aéreo.
3. Amparar vítimas da fome ou de epidemias.
4. Gerar eletricidade com bagaço de cana, energia eólica ou solar.
5. Doar recursos para agências humanitárias ou filantrópicas.
6. Integrar Forças de Paz da ONU.
7. Integrar brigadas de combate a incêndios.
8. Prestar serviços hospitalares.
9. Participar de operações especiais de segurança pública contra traficantes de drogas.
10. Oferecer abrigo e cestas de alimentos a populações flageladas.
11. Fornecer serviços educacionais.
12. Doar invenções, patentes ou softwares.
13. Acolher refugiados, doentes, sinistrados, miseráveis ou desamparados.
14. Deixar de testar produtos sobre animais, dada a existência de métodos subs-
titutivos eficazes.
15. Doar órgãos.
16. Operar estações de tratamento de esgoto.
17. Atender feridos em teatro de guerra.
18. Prestar serviços de ambulância.
19. Atender pacientes por critérios de urgência médica.
20. Multar empresas por propaganda enganosa (Procon).
21. Abastecer a população com alimentos, combustíveis ou remédios.
22. Diminuir o tamanho das embalagens, reduzindo o consumo de matéria-prima e
energia, bem como os custos de transporte.
23. Eliminar insumos nocivos ao meio ambiente.
24. Participar de mutirões de serviços comunitários.
25. Contabilizar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa desde os fornecedo-
res até a porta do cliente.
26. Distribuir remédios contra doenças tropicais a populações carentes.
27. Proibir a pesca em tempo de reprodução das espécies (períodos de defeso) para
evitar a extinção da indústria pesqueira.
28. Pagar pelos serviços ambientais, isto é, pela capacidade dos ecossistemas
de manter condições sustentáveis.
CASO PRÁTICA
1. Provocar fumo passivo.
2. Doar para campanha antitabagista.
3. Não fumar perto de não fumantes.
4. Fabricar cigarros.
5. Não fumar ou fumar eventualmente.
6. Proibir o fumo em ambiente fechado de uso coletivo.
7. Exigir “pedágio” para saldar faturas devidas.
8. Denunciar o “pedágio” às autoridades e à mídia.
9. Resistir ao abuso, assumindo os riscos das represálias, tais como o atraso no
pagamento ou o descredenciamento como empresa fornecedora.
10. Participar de organização não governamental anticorrupção.
11. Pagar o “pedágio” exigido.
100
Capítulo
7
Razão ética ou racionalização
antiética?
rismo) que prejudica outros agentes e é, por isso mesmo, abusiva: visa
ao bem restrito particularista (práticas egoístas ou parciais).
ASSERÇÃO RESPOSTA
1. Fazer acordo entre concorrentes na elaboração de propostas para
licitação é praxe no Brasil, de modo que é preciso cooperar com os demais
licitantes para não ficar à margem do processo.
2. Sendo eu um executivo, o que faço fora do trabalho não interessa a
ninguém, é exclusivamente um assunto de foro íntimo, pois não carrego o
crachá da empresa nos lugares que frequento.
3. Em face do emaranhado excessivo de leis e de regulamentações no
Brasil, é preciso encontrar os meios para que certos funcionários públicos
deixem de criar dificuldades.
4. Para que não haja dúvida sobre a lisura das decisões de compra ou de
contratação, o fato de receber presentes ou vantagens de fornecedores
ou clientes converte-se em assunto delicado. Só podem ser aceitos
brindes ocasionais, que não tenham valor comercial ou cujo valor seja
insignificante.
5. Para agradecer o empenho de um funcionário público no andamento de
um processo, é de bom-tom convidá-lo a um restaurante fino e ao final
lhe oferecer um mimo.
6. Numa festa familiar, um parente propõe ver o DVD de um filme muito
comentado que está nos cinemas. Você se recusa terminantemente a
assisti-lo, embora todos se entusiasmem, e explica por que − a cópia é
pirata.
7. Como coordenador de RH, você é responsável por um concurso interno
destinado a preencher uma nova posição criada na empresa. Um alto
gestor lhe pede sigilosamente para que um funcionário da confiança dele
seja selecionado. Seria bobagem não atender a um pedido desse.
8. Desde que haja análise prévia e autorização formal dada pela diretoria, é
possível manter interesses em empresas fornecedoras, seja diretamente,
seja através de familiares. Mesmo assim, o colaborador deve abster-se de
influenciar qualquer negócio que envolva essas empresas, declarando-se
impedido de administrar o contrato.
9. Para aprovar a implantação de um projeto de desenvolvimento em um
município que tem um programa de incentivos fiscais para a instalação de
indústrias, os vereadores exigem “contribuições”. É o preço a ser pago para
criar empregos, gerar imposto e impulsionar a economia local.
10. Na empresa, cada colaborador responde por si mesmo. Assim, os gestores
não são responsáveis pelos atos de seus subordinados, sobretudo se
souberem dos riscos envolvidos.
11. Uma empresa patrocina um filme brasileiro valendo-se dos incentivos
fiscais federais. Exige do produtor, porém, que 25% do investimento
lhe seja repassado em dinheiro. Os interesses são mútuos: o produtor
consegue recursos para sua produção, e a empresa recupera parte dos
impostos que iria pagar.
102
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?
ASSERÇÃO RESPOSTA
12. Para atingir as metas, que são desafiadoras, é preciso empenhar-se a fun-
do, mas também cabe contornar as normas que atrapalham a obtenção
do próprio bônus.
13. A concorrência leal não existe no Brasil porque aqui prevalece o vale-tudo.
Basta lembrar a generalizada sonegação de impostos e a crescente presença
do mercado informal, de maneira que é preciso dançar conforme a música.
14. As questões ambientais constituem riscos organizacionais. Elas precisam
ser gerenciadas com muito discernimento, pois podem comprometer a
sustentabilidade do negócio e a própria habitabilidade do planeta.
15. Essa conversa de “politicamente correto” é um modismo norte-americano
que não condiz com os padrões culturais brasileiros. Aqui não há pro-
blema algum em fazer brincadeiras com os trejeitos dos gays, a pança dos
gordos ou a burrice dos portugueses: todo mundo acha graça.
16. Uma vez que a vida não está fácil, é importante ter uma atividade paralela
para complementar o orçamento. Assim, não vejo mal algum em fornecer
a colegas os produtos de que precisem durante o expediente. Isso evita
que eles os procurem nas lojas.
17. Em prol dos clientes, tudo se justifica. Por exemplo, se, em vez de fazer um
acordo entre dois ou mais concorrentes para fixar preços ou dividir o mer-
cado, for estabelecido um consenso em torno de descontos conjuntos.
18. O diretor de recursos humanos de uma empreiteira envolvida em
licitações dirigidas, obras superfaturadas e financiamento de campanhas
políticas com caixa dois, assiste a uma conferência sobre Ética Empresa-
rial, encanta-se com o conteúdo e propõe à diretoria a contratação do
palestrante. O presidente veta a ideia dizendo-lhe: “Deixa de ser bobo;
não vamos mexer nesse vespeiro.”
19. Para coibir o roubo em supermercados, as empresas costumam instalar
sistemas de vigilância.
20. A indústria farmacêutica Novartis comprometeu-se a eliminar a hansenía-
se em todo o mundo. Desde o ano 2000, forneceu os medicamentos para
tratamento da doença em parceria com a Organização Mundial de Saúde
(OMS). Até 2009, foram doadas 40 milhões de unidades do medicamento,
curando mais de 4,5 milhões de pacientes no mundo todo, o que re-
presentou um investimento de US$60 milhões. Em 2008, 3,8 milhões de
unidades foram distribuídas aos países endêmicos, entre eles o Brasil.
21. Um contador foi pego fraudando seu empregador, uma grande companhia
metalúrgica. A fraude alcançou o montante de R$100 mil no período de três
anos. Quando confrontado com as evidências, confessou a autoria e rogou
que o deixassem demitir-se. Seu estado era tão lamentável que a diretoria
da companhia autorizou sua demissão. Prometeu até que não haveria
menção à fraude nas referências que seriam fornecidas a seu respeito.
22. No terceiro set do torneio Itália Masters de 2005, em Roma, o tenista
americano Andy Roddick enfrentou Fernando Verdasco, da Espanha. Era
match point a favor de Roddick. Quando Verdasco bateu seu segundo
serviço, o juiz de linha gritou “bola fora” e a multidão começou a aclamar
o americano. Mas Roddick chamou a atenção do árbitro para uma leve
marca que comprovava que a bola havia sido dentro e não fora. Todos
ficaram surpresos e Roddick acabou perdendo a partida.
103
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
ASSERÇÃO RESPOSTA
23. Sherron Watkins era uma contadora certificada que havia trabalhado
na Arthur Andersen durante oito anos. Em 2001, era vice-presidente de
desenvolvimento corporativo da Enron Corporation e mandou um correio
eletrônico ao CEO Kenneth Lay, prevenindo-o contra o risco de delações,
haja vista as incorreções existentes nas demonstrações financeiras. Cinco
meses depois, seu memorando veio a público e contribuiu para o des-
vendamento das manipulações contábeis da Enron.
24. Numa faculdade de medicina norte-americana, o professor saiu da sala
depois de distribuir a prova. No ato, muitos alunos puxaram colas dos
bolsos. Um deles, entretanto, jovem que fazia enormes sacrifícios para es-
tudar, levantou-se e disse alto e bom som para os colegas: “Vou denunciar
o primeiro que se atrever a trapacear.” A turma acreditou, e as colas
desapareceram tão rapidamente como tinham surgido. Estabeleceu um
padrão e a classe graduou-se com louvor.
25. Pai e filho estavam almoçando numa lanchonete McDonald's. Na saída, um
após o outro, encheram os bolsos com sachês de mostarda e ketchup, e
saíram com a cara lavada. Um grupo de adolescentes olhou e “achou legal”.
26. O comentarista econômico Joelmir Betting perdeu sua coluna diária em
O Estado de S. Paulo e O Globo, além de seu contrato com a TV Globo, após
participar de comerciais do Bradesco (dezembro de 2003), sob o pretexto
de que sua exposição publicitária afetou a confiança do público que se
interessa pela área de negócios, pondo em xeque sua isenção.
27. Um colega de trabalho, que é também seu amigo, lhe pergunta se você
gostaria de ter uma cópia de um software recém-adquirido pela empresa.
Você recusa de forma bastante assertiva, argumentando em favor da
propriedade intelectual.
28. Seu gerente não considera que o alcance de 100% das metas seja um
feito. Proclama sem ressalvas que é preciso ir além a qualquer custo,
pensando “fora da caixa”. Seus colegas não medem os meios numa
espécie de vale-tudo e são elogiados por ele. Você denuncia o fato à
diretoria executiva.
29. Por mais que as companhias se digam idôneas e até mesmo socialmente
responsáveis, muitas contratam serviços de empresas pelas quais não
sabem responder. Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de
Carga de São Paulo e Região, 1,3 motociclista morre por dia em acidente
de trânsito. Quase todas as empresas contratam serviços de motoboys.
Mas quantas atentam para o fato de que, das duas mil firmas de entrega
rápida na Grande São Paulo, 80% são clandestinas?
30. No segundo semestre de 2001, durante a crise de energia no Brasil, a Ele-
tropaulo, concessionária que distribui energia elétrica em São Paulo e em
23 cidades da região metropolitana, doou 1,6 milhão de lâmpadas com-
pactas fluorescentes para cerca de 500 mil famílias de baixa renda e para
duas mil entidades filantrópicas. Gastou R$11 milhões na operação. Uma
lâmpada incandescente comum custava R$1 e uma compacta fluores-
cente saía por R$15. Ocorre que as lâmpadas fluorescentes proporcionam
uma economia de até 80% na iluminação e eram responsáveis por 20% do
consumo total de energia das residências. A Eletropaulo atendeu, assim,
às exigências governamentais de encontrar meios de reduzir o consumo
de energia.
104
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?
ASSERÇÃO RESPOSTA
31. O fundador e presidente da Parmalat na Itália, Calisto Tanzi, e sua equipe
diretiva foram responsáveis por uma fraude que lesou mais de 135 mil
investidores, deixou um rombo de cerca de €14 bilhões e levou a empresa
à falência (2003).
32. Um operador do banco francês Société Générale, Jérôme Kerviel,
provocou o rombo recorde de €4,9 bilhões. Usou seus conhecimentos de
informática (trabalhou na área que monitora as mesas de operação) para
falsificar registros bancários. Descoberto em janeiro de 2008, havia apos-
tado €48 bilhões em contratos futuros de índices de bolsas de valores
europeias. Queria ser reconhecido como estrela entre os traders e admitiu
ter feito operações sem autorização.
33. O presidente da Walmart, Lee Scott, anunciou em outubro de 2008 que
pretendia cortar de sua lista os fornecedores chineses que não res-
peitarem padrões sociais de contratação (por exemplo, trabalho infantil e
trabalho forçado), assim como padrões ambientais (por exemplo, lançar
produtos químicos nos rios ou não se preocupar com a correta disposição
final dos resíduos industriais).
34. Num posto de gasolina norte-americano em que os motoristas abastecem
seus carros sem ajuda de atendente, o preço do litro em uma bomba ficou
reduzido por engano a um décimo de seu valor. Como o dono do posto
não tinha o direito legal de mexer no preço senão uma vez ao dia, o erro
permaneceu. Ocorre que os motoristas perceberam isso e a notícia se es-
palhou: muitos acorreram e encheram o tanque de seus carros.
35. Na unidade dos Médicos Sem Fronteiras do Complexo do Alemão, na
Zona Norte do Rio de Janeiro, o critério de atendimento obedece ao grau
de urgência do paciente. “Eles passam por uma triagem, onde vão receber
um cartão de uma cor, que pode ser vermelho, se o caso for urgente;
amarelo, quando é menos urgente; e verde para outro tipo de atendimen-
to”, explica o coordenador do projeto.
36. Um ditado brasileiro reza que “quem parte e reparte, mas não fica com a
melhor parte, ou é bobo ou não tem arte”.
37. Em junho de 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
publicou uma resolução que entraria em vigor no prazo de seis meses.
Determinou que propagandas de alimentos que tenham alto teor de
gordura saturada ou trans, grande quantidade de sal ou de açúcar, além
de bebidas com baixo poder nutritivo passem a ser veiculadas com frases
de advertência sobre os males à saúde que podem provocar quando
consumidos em excesso. A nova estratégia visa a melhorar a alimentação
do brasileiro e enfrentar o aumento da obesidade no país.
38. Um empresário mora em um bairro residencial de alto padrão e costuma
voltar do trabalho à noite, preocupado com a onda de assaltos a motoris-
tas. Em função disso, decidiu blindar o próprio carro.
105
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
ASSERÇÃO RESPOSTA
39. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnu-
ma), publicado em junho de 2010, afirma que a produção de alimentos
e os combustíveis fósseis causam poluição, emissão de gases estufa,
doenças e destruição de florestas. “A produção agrícola consome 70% da
água potável, 38% do uso da terra e 14% das emissões de gases estufa”,
afirma Achim Steiner, chefe do Pnuma. Os consumidores podem ajudar,
diz a ONU, cortando o consumo de carne e reduzindo o uso de combus-
tíveis fósseis para viajar e aquecer a casa. “Produtos de origem animal são
impactantes porque mais da metade das plantações do mundo é usada
para alimentar animais, não pessoas”, diz Steiner. Para ele, uma redução
substancial dos impactos só seria possível com uma mudança radical da
dieta humana no mundo todo.
40. No início de 2009, o Procon de São Paulo autuou as cervejarias Schincariol
e Petrópolis por conta de propaganda enganosa. As campanhas publici-
tárias das duas empresas induziriam o consumidor a pensar que o selo de
proteção usado nas latas de cerveja seria higiênico. O fato é contestado
pelo órgão que condena os artifícios criados pela propaganda, pois geram
expectativas que os produtos e serviços não conseguem entregar.
41. O economista norte-americano Milton Friedman, prêmio Nobel de eco-
nomia, afirmou que “o negócio dos negócios é o negócio” ou, em outras
palavras, que a função da empresa na sociedade se limita à boa prestação
de serviços e produtos, além de gerar lucro aos acionistas.
42. Em outubro de 2009, executivos da JBS-Friboi, Bertin, Marfrig e Minerva
− as quatro maiores empresas brasileiras de abate e processamento
de carne e couro − assinaram com a organização não governamental
Greenpeace um compromisso público de não aceitar gado de fornece-
dores envolvidos com o desmatamento da Amazônia. O discurso afinado
entre frigoríficos e o Greenpeace aconteceu em junho, quando a ONG
denunciou o setor no relatório “Farra do boi na Amazônia”. O relatório
acusava a indústria da pecuária de ser o principal responsável pelo
desmatamento no bioma amazônico. No mesmo dia da publicação do
relatório, o Ministério Público entrou com ação pública contra a criação
e compra de gado da região. As empresas, aos poucos, assumiram uma a
uma o compromisso de boicotar a compra de carne de áreas devastadas,
e as grandes redes de varejo seguiram o mesmo caminho.
43. Oferecer cuidados de saúde a quem não tem acesso a esse tipo de
atendimento devido a guerras e catástrofes naturais sempre foi a meta dos
Médicos Sem Fronteiras. Ao longo dos 30 anos de existência, a organização
ampliou seu foco de atuação para contextos urbanos, nos quais violência
e exclusão social são problemas crônicos que impedem a população de
usufruir dos serviços de saúde, como ocorre em cidades da Índia e do Haiti.
44. Estabelecer preços mínimos, dividir cotas por importador de brinquedos,
excluir empresas do mercado brasileiro, obter indicações de que o gover-
no cumpre o que for determinado pelo setor privado são infrações contra
a livre concorrência apontadas pela Secretaria de Direito Econômico (SDE)
contra a Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (Abrinq) e seu
presidente, Synésio Batista da Costa. A SDE, do Ministério da Justiça, en-
caminhou ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade)
parecer recomendando a condenação da Abrinq e de seu presidente por
induzir as empresas associadas à formação de cartel.
106
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?
ASSERÇÃO RESPOSTA
45. Torcedores oferecem coletiva e abertamente “mala branca”, isto é, in-
centivos monetários a uma equipe de futebol para que vença uma partida
contra um adversário mais bem colocado na tabela do campeonato que
seu time do coração.
46. A prefeitura de Extrema, na divisa entre os estados de Minas Gerais e São
Paulo, paga por serviços ecológicos, isto é, recompensa quem preserva
recursos naturais. Um agricultor, por exemplo, recebe R$1.300 todo mês
para cuidar de 10 nascentes que brotam em sua propriedade.
47. A subsidiária brasileira da Cisco Systems, companhia de soluções
de tecnologia americana, foi multada pela Receita Federal em R$3,3
bilhões por operações fraudulentas de importação (subfaturamento de
equipamentos para reduzir o pagamento de impostos) que causaram um
prejuízo de cerca de R$1,5 bilhão aos cofres públicos.
48. Os gestores da divisão gráfica de um grupo empresarial do ramo editorial,
responsável pela importação de papel de impressão que está isento do
pagamento de imposto (desde que o papel se destine a publicações cul-
turais e educativas), cansaram de pagar a “taxa de urgência” ou a “caixinha”
que os fiscais da alfândega exigiam após criar dificuldades para vender
facilidades. Decidiram então desmontar a armadilha que os prendia: toda
vez que um fiscal se recusava a liberar a mercadoria importada, abriam
um processo administrativo. Recurso trabalhoso, sem dúvida, mas indis-
pensável para que a empresa pudesse se livrar da extorsão que a obrigava
a gerar e a manter um caixa dois. Fortaleceu também a mensagem interna
de que seu novo Código de Conduta Moral era para valer (rejeição dos
subornos, “comissões” e presentes) e fortaleceu sua imagem externa.
49. Uma companhia norte-americana afetada pela recessão de 2009
decidiu contratar uma nova equipe diretiva para tentar sair do sufoco.
Os recém-chegados, interessados em mostrar resultados expeditos,
procuraram combater o que eles chamavam de “obsessão pelo manual
de políticas e procedimentos”. Difundiram a ideia de que era preciso “ser
agressivo num mundo agressivo”. Trocando em miúdos: desde que os
lucros fossem bons, deixaram implícito que não se importavam com os
meios utilizados para efetuar as vendas. Essa mensagem, contudo, provo-
cou um choque cultural na empresa porque contradisse padrões morais
anteriores. O quadro gerencial, que fora anteriormente vacinado contra
os subornos e os arranjos de bastidores, se recusou a compactuar com a
nova orientação. Os desentendimentos foram crescendo e redundaram
no afastamento dos novos diretores.
50. Em julho de 2006, foi assinada a “Moratória da Soja”: a indústria da soja se
comprometeu a não adquirir produto originário de novos desmatamen-
tos na Amazônia. Participaram do acordo o Ministério do Meio Ambiente
(MMA), o setor produtivo − representado pela Associação Brasileira da
Indústria de Óleos Vegetais (Abiove) e pela Associação Nacional de Ex-
portadores de Vegetais (Anec) −, além de várias ONGs como Greenpeace,
The Nature Conservancy e WWF-Brasil. O cumprimento da moratória
foi fiscalizado entre os anos 2007 e 2009, graças a cerca de seis mil fotos
aéreas e umas 1.300 imagens de satélite. Em consequência, a sojicultura
foi responsável por apenas 0,88% das áreas desmatadas na Amazônia
brasileira entre 2006 e 2008.
107
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
ASSERÇÃO RESPOSTA
51. No primeiro semestre de 2012, a varejista espanhola Inditex, dona da
Zara, realizou 206 auditorias em seus fornecedores no Brasil. A rede
trabalha com 40 fornecedores e 208 oficinas de costura no país e está
fazendo fiscalizações de seis em seis meses. Essas ações fazem parte de
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o Ministério
Público do Trabalho (MPT), que investigou e acusou um fornecedor de
roupas da Zara no Brasil − a empresa Aha − de explorar mão de obra
em condições análogas à escravidão (eram imigrantes bolivianos, sem
documentação legal). A fornecedora foi descredenciada pela Inditex. A
varejista espanhola não foi a única a ser acusada pelo MP − Marisa, C&A
e Pernambucanas também foram. Ainda como parte do termo assinado
com o Ministério Público, a Inditex está implementando um programa
de responsabilidade social no país cujo orçamento é de R$ 3,4 milhões
em dois anos. O plano envolve um conjunto de projetos que vai desde
a criação de um Poupatempo para imigrantes até o fortalecimento de
auditorias nos fornecedores e oficinas de costura que trabalham para a
marca.
52. De acordo com uma reportagem do jornal The New York Times, executivos
da Walmart no México teriam distribuído US$24 milhões em propinas a
centenas de prefeitos e funcionários públicos em troca da obtenção de
licenças para a construção de lojas na última década. A prática teria sido
incentivada por um dos principais executivos da companhia, o equatoria-
no Eduardo Castro-Wright, que até recentemente era o vice-presidente do
conselho global da Walmart e que esteve à frente da operação mexicana
até 2005.
53. A Comissão Europeia impôs em abril de 2011 uma multa de €315,2
milhões à empresa americana Procter & Gamble e à anglo-holandesa
Unilever por criar um cartel junto com a Henkel no mercado de sabão em
pó em oito países europeus. A Comissão anunciou em comunicado que
a multa a essas duas companhias inclui uma redução de 10% por terem
admitido os fatos e permitido uma rápida conclusão da investigação,
enquanto a alemã Henkel obteve imunidade por ter revelado a Bruxelas
a existência do cartel em 2008. O acordo feito entre as empresas durou
por volta de três anos e pretendia estabilizar posições no mercado por
meio da coordenação de preços, em violação às normas antimonopólio
da União Europeia (UE) e da Área Econômica Europeia (AEE), acrescentou
a Comissão.
54. Em abril de 2010, executivos do Goldman Sachs foram acusados de
“comportamento antiético” e de “enganar seus clientes para aumentar
os lucros” do banco. O CEO da Goldman, Lloyd Blankfein, e mais seis
executivos e ex-funcionários foram massacrados em mais de nove horas
de audiência no Senado americano. O líder do comitê de investigação,
senador Carl Levin, divulgou e-mails em que os executivos do Goldman
chamavam de “monte de porcaria”, “lixo” e “negócio de merda” os produtos
que vendiam a seus clientes. E-mails e documentos mostram também
que, enquanto vendiam os “montes de porcaria”, os executivos faziam
apostas contra os mesmos produtos, na chamada posição short, prevendo
que os papéis teriam queda de valor. Os executivos questionados pelos
senadores não se mostraram arrependidos. A maioria argumentou que os
investidores que compravam os papéis sabiam dos riscos.
108
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?
ASSERÇÃO RESPOSTA
55. O banco JP Morgan chegou a um acordo preliminar de US$ 13 bilhões
com o departamento de Justiça dos Estados Unidos para resolver uma
série de inquéritos de seu negócio de ativos lastreados em hipotecas re-
sidenciais (outubro/2013). Se finalizado, representará o maior acordo que
o governo norte-americano selou com uma única empresa. O acordo não
resolve o inquérito criminal em andamento sobre a conduta do banco,
que está sendo tratado pelo Ministério Público Federal em Sacramento,
na Califórnia. Mas inclui aproximadamente US$ 4 bilhões com a Agência
Federal de Financiamento de Habitação para resolver acusações de que o
JP Morgan teria enganado a Fannie Mae e a Freddie Mac (instituições de
financiamento imobiliário) a respeito da qualidade dos empréstimos que
foram vendidos a eles às vésperas da crise financeira de 2008.
109
Capítulo
8
O paradoxo das decisões éticas
Quer dizer que a moral do oportunismo legitima o caixa dois? Não diretamente.
Expliquemos: o oportunismo diz respeito a uma moral geral e oficiosa que pauta as
condutas pessoais, veicula uma mensagem egoísta, remete ao particularismo indivi-
dual. E o caixa dois compromete necessariamente empresas, grupos, coletividades.
Nessas condições, qual moral se aplica? A moral da parcialidade, uma espécie
de espelho amplificado do oportunismo. Uma moral adotada pelas empresas e
que reflete as expectativas do particularismo grupal. Um código moral oficioso,
pragmático ao extremo e que floresce na sombra. Seu sentido mais profundo está
no lema: “Nós protegemos os nossos; os outros que se cuidem!” Certa semelhança
com os códigos de honra mafiosos não é mera coincidência... No essencial, a
moral da parcialidade:
j
Ensina padrões duplos de conduta: num prato da balança, enaltece a
lealdade e a fidelidade entre os membros do grupo, os “de dentro” que são
os únicos em quem se pode confiar; noutro prato da balança, aconselha a
malícia e o vale-tudo nas relações com os “de fora”, os que não merecem
confiança.
j Celebra a troca de favores à moda franciscana (“é dando que se recebe”),
numa prosaica substituição de Deus pelos “amigos” (colegas, pares, com-
parsas ou aliados).
j Considera que as regras comuns não se aplicam à nossa organização (“A
lei? Ora, a lei!”).
j
Concebe o mundo como uma selva em que se defrontam ganhadores e
perdedores (“O sol nasceu para todos, mas a sombra para alguns”).
112
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
113
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
De forma simétrica, mas por razões diversas, o caixa dois tampouco desfruta
de legitimidade ética ou teórica. Por que será? Para responder, é preciso indagar:
quem se beneficia com tal operação? Resposta: os agentes cujos interesses parti-
cularistas são satisfeitos. Em contrapartida, quem perde com isso? A sociedade
inclusiva. Dito de outra forma, as empresas se locupletam em detrimento do
bem comum, pois sonegam impostos, competem de forma desleal, corrompem
a máquina pública etc. Conclusão: o caixa dois é ilegítimo do ponto de vista
ético, ainda que encontre forte justificação moral (clandestina, sub-reptícia) no
setor empresarial.
O mesmo raciocínio vale para os traficantes de drogas ou as milícias que
operam nos morros no Rio de Janeiro. Chegam a desfrutar de justificação moral −
provida pela parcialidade − quando oferecem proteção e alguns serviços comuni-
tários ou quando pirateiam utilidades públicas (energia elétrica, televisão a cabo).
Porém, suas ações são ilegítimas do ponto de vista ético. Razões? Aproveitam-se
da ausência do Estado (no policiamento e nos serviços públicos) para impor seu
domínio pela violência (poder paralelo) e para cercear a liberdade dos moradores
(cooptam alguns enquanto transformam os demais em reféns). Exercem práticas
abusivas que lesam os interesses universalistas das comunidades.
1
Não há sociedade humana que não mantenha bens e serviços de interesse comum e que prescinda da
cobrança de tributos para custeá-los.
115
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Posto isso, podemos avançar. Diante das questões morais, há dois modos de
tomar decisão e que são eticamente fundados. Uma das abordagens mais popu-
lares é o maniqueísmo ao gosto da “tolerância zero”: errou, pagou; bateu, levou.
Nessa abordagem, a tomada de decisão obedece à dicotomia do tudo ou nada.
Ou se é honesto ou se é desonesto; não há meia honestidade, da mesma forma
que não há meia gravidez. As normas, formuladas segundo esse molde, devem ser
116
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
obedecidas haja o que houver; não se pode compactuar com as transgressões, daí
a adoção de medidas punitivas e, com menor frequência, de medidas corretivas.
Outra abordagem, mais elaborada, consiste em realizar uma análise situacional
ou de risco, que leve em conta as circunstâncias e gradue os deslizes, infrações ou
desvios. Parte da premissa (a ser testada) de que o agente reconheceu com since-
ridade o erro cometido e, por conseguinte, está arrependido. A análise considera
especialmente: a) a natureza e a gravidade da infração; b) o histórico do agente
infrator; c) o cargo do infrator e as responsabilidades que lhe incumbem; d) as
condições em que o evento se deu; e) os meios utilizados e os fins almejados;
f ) a disposição do agente em se emendar ou se redimir; g) as vantagens e as des-
vantagens em oferecer-lhe uma “segunda chance”, isto é, a relação custo-benefício
em termos dos riscos envolvidos na aplicação de medidas educativas ou corre-
tivas; h) as consequências possíveis da sanção; i) as indispensáveis salvaguardas
a serem adotadas.
Por que salvaguardas? Porque sem elas a abordagem pode ficar desacreditada
ou ser confundida com formas de racionalização particularista ou antiética. E
quais são as salvaguardas? Medidas educativas ou corretivas, além de controles
que monitorem as condutas futuras do infrator. Essas medidas exigem que o
tomador de decisão:
j
Esteja ciente de que intervenções justas e firmes, quando aplicadas logo
após a comprovação do fato gerador (para não caracterizar perdão tácito
aos olhos de todos), surtem efeitos positivos e reconduzem as pessoas aos
padrões esperados de conduta.
j Distinga os atos dolosos (atos intencionais praticados no intuito de pre-
judicar outrem) dos atos culposos (atos em que o agente atua com im-
prudência, negligência ou imperícia).
j
Verifique se o desvio não decorreu de orientação falha dos superiores
hierárquicos.
117
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Acordos feitos com acusados para encerrar longos processos e evitar julgamen-
tos assumem um caráter corretivo, pois exigem o pagamento de multa, embora
não haja admissão formal da culpa.
Por fim, as medidas punitivas são geralmente adotadas quando há reincidência
ou quando a gravidade da transgressão assim o indicar: a) a dispensa por justa
causa ou sem justa causa de um funcionário; b) a proibição de ocupar cargo
diretivo em empresa de capital aberto; c) a proibição de participar de licitações
públicas; d) o bloqueio do acesso a fontes de crédito; e) o boicote dos clientes; f )
a multa; g) o sequestro, a penhora ou o confisco de bens; h) a detenção provisória;
i) a obrigação de prestar serviços comunitários; j) o encarceramento etc.
http://www.cvm.gov.br/port/infos/RJ2010-2419%20(Processo%20TC%20RJ2010-15761)%20aprovado%
2
118
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
cerca de R$50 milhões por ano. A sentença diz respeito às denúncias levantadas
pela Operação Porto Europa, deflagrada em 2009 pela Polícia e pelo Ministério
Público federais.
Suspeitava-se que o grupo Tania Bulhões Home teria cometido sonegação, des-
caminho e formação de quadrilha, entre outros crimes, para burlar o fisco nos anos
de 2005 e 2006. Tudo foi confirmado, o que resultou em sua condenação a quatro
anos de reclusão, convertidos em serviços comunitários. Isso porque ela usufruiu o
benefício da delação premiada, ou seja, forneceu detalhes do esquema, conseguindo,
assim, abrandar sua punição.
Foi decidido que a empresária vai prestar serviços comunitários à Fundação Dorina
Nowill para Cegos, na Vila Clementino, ao longo de quatro anos (oito horas semanais).
Por lá terá de criar laboratório e curso de capacitação de pessoas com deficiência
visual para formar provadores de fragrâncias.
Tania também precisará ressarcir os cofres da Receita Federal em R$1,2 milhão,
valor que a sua empresa teria sonegado, além de pagar multa de R$1,7 milhão pelos
delitos cometidos e que serão transferidos para cinco entidades filantrópicas. Terá de
pedir ainda autorização à Justiça se quiser deixar o país por mais de 10 dias.3
À luz da delação premiada, o juiz fez uma análise de risco e adotou medidas
punitivas menos severas. Converteu os anos de prisão em serviços comunitários
ao levar em conta a expertise da ré e a ausência de antecedentes, e transferiu a
multa de R$1,7 milhão para ONGs que aplicarão os recursos em prol do bem
geral. Obedeceu à razão ética e praticou o altruísmo imparcial. Afinal, obteve in-
formações valiosas que tornarão mais eficaz a repressão a operações semelhantes,
não atenuou a humilhação pública da infratora e fez com que o caso servisse de
exemplo para dissuadir outros empresários ladinos.
Em oposição a isso, fiéis à tolerância zero, algumas vozes argumentaram que
delito é delito e que penas não se abrandam, nem sequer com a justificativa da
delação premiada. Chegam até a tachar o instituto de aberração. Segundo eles, ao
ser comprovado o crime, a punição deve ser unívoca: cadeia em regime fechado
para os transgressores. Essas postulações obedecem igualmente à razão ética e
realizam o altruísmo imparcial, pois pretendem punir de forma exemplar quem
transgride as normas e provoca danos ao bem comum.
Diante dessas duas posturas − a da análise situacional e a da tolerância
zero −, cada um de nós pode se posicionar a respeito e desfrutar de legitimidade
ética. O juiz optou pelos benefícios gerais proporcionados pela delação premiada,
substituindo o encarceramento por penas restritivas de direitos (os serviços
comunitários e a multa). O que obteve? Por um lado, a Polícia Federal e a Justiça
puderam desvendar com sucesso o funcionamento do esquema de sonegação
e de descaminho, conseguiram pistas relevantes para que outros implicados
fossem processados e coletaram informações valiosas para desbaratar operações
João Batista Jr. A conta chegou. Veja São Paulo, p. 28, 1° de dezembro de 2010.
3
119
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Temos diante de nós escolhas que não são fáceis, sobretudo porque não
existem respostas padronizadas. A maior parte dos códigos de conduta moral,
aliás, segue a cartilha de contrastar o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável,
as virtudes e os vícios. Ora, as escolhas entre o bem e o bem são igualmente
prementes e exigem maturidade e discernimento.
120
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
Entretanto, o médico ficou preso três meses, após o que o Tribunal de Justiça lhe
deu razão. Mais do que inocente, os desembargadores decidiram que ele não devia
ter sido acusado do crime.4
121
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
rios) no ensino universitário, porque esses não são casos extremos e os interesses
satisfeitos acabam sendo particularistas. Contudo, se tivermos que escolher um
paciente entre outros para ocupar a única vaga disponível na UTI de um hospital
público, ainda que saibamos que os demais poderão morrer, estaremos fazendo
o máximo de bem para o menor número de pessoas objetivamente possível de
atender. Assim, na vertente da finalidade, respondemos à questão: o que é mais
eficaz do ponto de vista dos interesses coletivos em uma situação extrema?
A visão “consequencialista” das duas vertentes legitima escolhas entre o bem
e o bem, assim como escolhas entre o bem e o mal. E permite reconhecer quais
argumentos favorecem o bem e quais favorecem o mal. Por exemplo: sonegar
impostos só faz bem ao menor número (quem pode sonegar) e compromete
as possibilidades de fazer o máximo de bem ao maior número porque reduz a
arrecadação e afeta os investimentos públicos em equipamentos sociais ou em
infraestrutura do país. Ou, ainda, sonegar impostos satisfaz fins particularistas
(interessa aos sonegadores) e fere fins universalistas (não interessa a todos).
Indignação e coragem
O professor de administração, Richard Quinn, da University of Central Florida (UCF),
situada em Orlando, recebeu a denúncia anônima de que cerca de 200 de seus 600
alunos conseguiram uma cópia do exame semestral e se valeram dela.
Ao longo dos anos, pesquisas norte-americanas demonstraram que três quintos
dos alunos do ensino médio e dos estudantes universitários de graduação costumam
colar. No caso do professor Quinn, seu terço de fraudadores até que estava de bom
tamanho... Mas essa não foi a maneira como entendeu a situação. Ele ficou seriamente
abalado e decidiu agir. Em um anúncio emocionado, avisou que os resultados seriam
invalidados e que o exame seria refeito. Disse: “Para falar a verdade, eu estou tão
decepcionado que vocês não têm ideia... Fisicamente doente. Absolutamente enojado.
Completamente desiludido.”
E completou com uma proposta inusitada: aqueles que confessarem ter colado, e se
prontificarem a cursar quatro horas de Ética, manterão limpos seus registros acadêmicos.
Porém, quem ficar calado assumirá os riscos de ser descoberto, pois uma investigação
está em curso e, se a fraude for comprovada, o aluno poderá ser expulso da universidade...
O anúncio foi gravado em vídeo, passado na televisão e postado no YouTube. A
repercussão nos Estados Unidos foi enorme, e a mídia impressa converteu o professor
em celebridade. Chegou a ser descrito como o herói que brandiu a espada da verdade
contra o dragão da desonestidade acadêmica!
As pessoas que se inteiraram do caso ficaram indignadas com os estudantes.
Sobretudo por saberem que serão futuros empreendedores, executivos de grandes
empresas e gestores de corporações. Muitas lamentaram que não houvesse retidão,
integridade e probidade, condenaram a forma ilícita como as respostas foram obtidas
e rechaçaram com veemência o uso que se fez delas.
Alguns alunos, no entanto, alegaram que o professor se valeu do banco de dados
da editora do livro-texto para preparar o exame e que ele deveria ter elaborado as
123
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
bro de 2010.
124
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
capítulos 8 e 9.
125
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
o bem, e entre o mal e o mal... São razões para espanto? De modo algum. Esses
outros tipos de decisões ocorrem costumeiramente, ainda que nem sempre os
agentes tenham consciência disso.
Assim, podemos escolher o mal menor, a saber, admitir um sacrifício para
evitar um mal maior. Por exemplo: entre o risco de colidir de frente com um
caminhão ou cair em um buraco que pode entortar a roda e furar o pneu, não se
opta pelo buraco (mal menor)? Ou podemos escolher o mal necessário, a saber,
admitir um sacrifício para obter um bem maior. Por exemplo: não se abatem
reses infectadas pela doença da vaca louca e não se eliminam aves contaminadas
pela gripe aviária para conter uma epidemia (mal necessário)? Claro que sim.
Na vida real, é frequente assumir um mal menor ou um mal necessário para
evitar coisa pior ou para obter determinado bem. E isso acontece a contrapelo do
que apregoam os chavões do senso comum que ditam: não se deve cometer o mal
para lograr o bem. Tolice. Basta observar o que se passa no dia a dia: tomam-se
decisões dolorosas por razões universalistas. Para começar, vamos refletir sobre
os meios usados para superar os dilemas.
Em inúmeras situações, os riscos, danos, prejuízos ou sofrimentos são vistos
como partes inerentes aos processos ou são aceitos como “preços a pagar” para
alcançar determinado objetivo. Por exemplo: malgrado os conhecidos efeitos
nocivos para a saúde de quem os consome com frequência, toleram-se conser-
vantes químicos ou aditivos para preservar os alimentos contra a deterioração
que ocorre no transporte e no armazenamento (mal necessário).
Mais ainda. Para afastar um mal maior, todo mal não é rejeitado in limine. Por
exemplo: com o intuito de impedir a falência de empresa e evitar a extinção de todos os
postos de trabalho existentes, funcionários são demitidos para cortar custos e aliviar a
folha de pagamento, a despeito do drama que o desemprego representa (mal menor).
A dor que o corpo sente é essencial para a nossa sobrevivência: sem ela, não perceberíamos que estamos
7
doentes ou estamos feridos; faltaria a sinalização indispensável para cuidar das nossas lesões. De forma que
a dor é um mal útil: ocorre para nosso próprio bem.
127
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Qual seja: correm-se riscos? Sem dúvida. Mas cabe minimizá-los sem cessar. E,
principalmente, cabe verificar se os benefícios colhidos valem a pena.
De maneira que não faz sentido deixar de se prevenir contra doenças in-
fecciosas ou contra uma epidemia porque as picadas incomodam ou porque há
quem tenha alergia a alguns componentes das vacinas. Afinal, as vacinas obriga-
tórias poupam sofrimentos evitáveis à população, e os efeitos adversos podem
ser diagnosticados e tratados. Assim, é de interesse de todos que a aplicação das
vacinas ocorra, e que seja universalizada, ainda que existam senões.
Nessa mesma linha, podemos dizer: reduzir as cáries dentárias com medidas
profiláticas de caráter geral gera um bem universalista, malgrado o fato de que
o excesso de ingestão possa causar fluorose. Problema evitável? Sim, se houver
orientação adequada e revisão dos níveis de flúor colocados na água. De forma
simétrica, tornar os escritórios mais eficientes graças a fotocopiadoras provoca
efeitos universalistas, apesar da emissão de raios laser que podem ser controlados
com o uso correto da tampa antes da tiragem da cópia. Mais ainda, resguardar
segredos industriais e tecnologias patenteadas é essencial para o próprio funcio-
namento da economia de mercado e para a continuidade das corporações em-
presariais. Tal medida não se choca com a transparência exigida pelos clientes no
tocante à segurança dos produtos (prazo de validade, defeitos eventuais, qualidade
dos insumos, possíveis danos à saúde ou ao meio ambiente).
O furto de dados
Um jovem funcionário do departamento de informática do banco HSBC em Gene-
bra, o franco-italiano Hervé Falciani, levou uma lista de 130 mil nomes de clientes
que teriam mantido contas secretas na Suíça e a entregou à Justiça francesa, que
prometeu uma caça à evasão fiscal.
Os suíços acusaram os franceses de roubo. Já os franceses apontaram que o autor
do crime tinha intenções “messiânicas”. O volume de dinheiro movimentado pelas
contas seria de 4 a 6 bilhões de euros, apenas entre os três mil franceses incriminados.
Em uma conferência de imprensa, o presidente francês Nicolas Sarkozy apoiou o
uso dos dados. “A luta contra a fraude fiscal é normal e moral. O que vocês pensariam
se o ministro do Orçamento tivesse descartado os dados no momento em que os
recebeu? Será que teríamos sido parabenizados por não ter respeitado a lei francesa?
Eu apoio o ministério na ação contra a fraude.”
A Justiça francesa foi duramente criticada pelos suíços. O secretário-geral do Grupo
de Banqueiros Privados de Genebra, Edouard Cuendet, afirmou estar “profundamente
decepcionado” com Paris. “Como é que um país amigo pode aceitar informações,
sabendo que elas foram obtidas de forma ilícita?”8
128
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
A libertinagem informativa
Nenhuma democracia poderá funcionar se desaparecer a confidencialidade das
comunicações entre funcionários e autoridades, nenhuma forma de política nos
campos da diplomacia, da defesa, da segurança, da ordem pública e até da economia
terá consistência se os processos que essas políticas determinam forem expostos
totalmente à luz em todas as suas instâncias.
O resultado de semelhante exibicionismo informativo seria a paralisia das ins-
tituições, e tornaria mais fácil para as organizações antidemocráticas a criação de
obstáculos e a anulação de todas as iniciativas com a prevalência de seus propósitos
autoritários. A libertinagem informativa não tem nada a ver com a liberdade de ex-
pressão e, ao contrário, é seu oposto.
Essa libertinagem é possível somente nas sociedades abertas, não nas que são
submetidas a um controle policialesco vertical que sanciona com ferocidade toda
tentativa de violentar a censura. Não por acaso os 250 mil documentos confidenciais
obtidos pelo WikiLeaks são o fruto da ação de pessoas que traíram os Estados Unidos
e não a Rússia ou a China.9
Um momento de reflexão nos faz ver que o interesse público limita a li-
berdade de expressão. Afinal, “a liberdade de expressão não inclui a liberdade
de gritar ‘Fogo!’ num teatro lotado”.10 A livre expressão não pode equivaler a
um poder pleno e incondicional porque seu exercício supõe responsabilidade,
sem o que se transforma em arbítrio. No extremo, se todos os sigilos fossem
quebrados, se todos os arquivos fossem abertos, ninguém teria resguardadas
as informações sobre a própria saúde, a conta bancária, o crédito que tem na
praça, as declarações fiscais, os telefonemas, as cartas ou os e-mails... Estaríamos
num mundo anárquico, desnudado, destituído de privacidade, ou, num outro
extremo, sob a tutela de um Estado totalitário, o que não satisfaz interesses
universalistas.
9
Mario Vargas Llosa. Conceitos vazios sobre o público e o privado. O Estado de S. Paulo, 16 de janeiro de
2011.
10
Segundo a célebre manifestação do juiz Oliver Windell Holmes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
130
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
131
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
sífilis não foram tratados para que os pesquisadores vissem como a doença evoluía.
No meio dos documentos, Susan descobriu o experimento na Guatemala e alertou
as autoridades americanas.
“A inoculação de doenças transmissíveis na Guatemala entre 1946 e 1948 foi
claramente antiética. Embora esses eventos tenham ocorrido há mais de 64 anos,
estamos indignados com o experimento”, disseram em comunicado conjunto as
secretárias de Estado, Hillary Clinton, e da Saúde, Kathleen Sebelius.
“Lamentamos profundamente e pedimos desculpas aos indivíduos afetados por
essas práticas repugnantes. A condução do estudo não representa os valores dos Es-
tados Unidos e nosso respeito pelo povo da Guatemala”, acrescentaram.
De acordo com a pesquisa de Susan, 696 pessoas foram infectadas no experimento
feito na Guatemala. O responsável pelas pesquisas era John Cutler, considerado um
dos mais proeminentes médicos americanos na década de 1940.
A pesquisadora afirma que autoridades guatemaltecas deram permissão para os
americanos levarem adiante o experimento. No procedimento, os cientistas utilizavam
até prostitutas para infectar os guatemaltecos em prisões e hospitais. Em outros casos,
contaminavam as pessoas usando injeções.
Hoje, as leis americanas e códigos mais rígidos de ética impedem os cientistas de
realizar pesquisas com seres humanos que não saibam das eventuais consequências.11
Gustavo Chacra. EUA se desculpam por testes em guatemaltecos. O Estado de S. Paulo, 02 de outubro de 2010.
11
132
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
Não foi dito a nenhum dos participantes que ele tinha a doença. Todos recebiam
acompanhamento médico periódico (inócuo), uma refeição no dia dos exames e o
pagamento das despesas com o funeral.
Em 1947, foi definido um tratamento padrão à base de penicilina. Mesmo assim,
os doentes não foram tratados. Todas as organizações de saúde dos Estados Unidos
receberam uma lista com o nome dos participantes para evitar que qualquer um
deles recebesse o remédio. Em 1972, quando o estudo foi encerrado, havia apenas
74 participantes vivos.
A experiência de Milgram
Foram recrutados voluntários remunerados para testar os efeitos da punição
sobre a aprendizagem e a memória. O voluntário seria o “instrutor” e ministraria um
choque elétrico ao “aluno” toda vez que este não associasse a palavra correta a um dos
50 pares que o instrutor lerá. Os choques começavam com 15 volts e o incremento
por erro era de 15 volts até 450 volts (último botão que marcava “XXX”, a morte!). Foi
dito aos “instrutores” que se incomodavam com o sofrimento dos “alunos” que o pes-
quisador assumia inteira responsabilidade pelo experimento. Ocorre que os “alunos”
eram atores...
Qual era então o objetivo real da experiência? Pesquisar a disposição dos parti-
cipantes em submeter-se à figura de uma autoridade que os instruiria a desempe-
nhar atos que pudessem conflitar com sua própria consciência. Ou seja, pesquisar a
obediência à autoridade. Os resultados foram estarrecedores: 65% dos “instrutores”
puniram seus “alunos” com o máximo de 450 volts (mataram os alunos!); nenhum
parou antes dos 300 volts (aleijaram os alunos!); e a disposição para torturar não variou
nem em função dos gêneros nem em função da origem social!
Alguns casos poderão ser interpretados como mal menor ou mal necessário,
dependendo da perspectiva que se adote. Por exemplo, tomar remédios a des-
peito dos efeitos colaterais e das reações adversas pode ser encarado como mal
menor diante da gravidade da doença (mal maior) ou como mal necessário para
curar-se de doença ou combatê-la (bem maior).
EVENTO RESPOSTA
1. Expropriar prédios particulares para a construção de estações de metrô
cujas linhas se destinam a transportar centenas de milhares de usuários.
2. Usar a “pílula do dia seguinte” para dificultar a fecundação e evitar o
nascimento de uma criança indesejada, apesar das contraindicações exis-
tentes (coágulos no sangue para quem sofre de doença hematológica
ou vascular, quem é hipertenso ou obeso mórbido) e efeitos colaterais
(alteração do ciclo menstrual e do tempo de ovulação).
3. Ordenar que caças derrubem aviões intrusos e suspeitos que entram no
espaço aéreo e se recusam a aterrissar.
4. Confinar doentes infectocontagiosos.
5. A delação premiada para obter informações valiosas que desbaratem
operações ilícitas, em troca do abrandamento da pena.
6. A adição de iodo no sal para prevenir o bócio em adultos ou o cretinismo
em crianças, embora o excesso cause tireoidite autoimune.
7. A fila preferencial para idosos, gestantes, portadores de deficiência e
pessoas acompanhadas de criança de colo, em desrespeito à ordem de
chegada.
134
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
EVENTO RESPOSTA
8. Utilizar aparelhos de raios X apesar da radiação nociva.
9. Vacinar obrigatoriamente a população contra doenças contagiosas, a des-
peito do incômodo das picadas e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas.
10. Estabelecer o rodízio de carros em dias alternados, não obstante o trans-
torno causado aos motoristas que não usam transporte coletivo.
11. Construir hidrelétricas, embora inundem vastas áreas, desloquem
moradores e afetem a fauna e a flora da região.
12. Utilizar agrotóxicos na agricultura, apesar dos impactos negativos sobre
o meio ambiente (interferências nos processos de respiração do solo
e distribuição de nutrientes, além da mortandade de espécies de aves e
peixes), bem como usar pesticidas malgrado os efeitos nocivos sobre a
saúde dos consumidores (risco de contaminação dos alimentos) e sobre a
saúde dos que trabalham com eles (dificuldades respiratórias, problemas
de memória, pele, câncer e depressão).
13. Escolher um paciente entre outros, com base em critérios objetivos, para
ocupar a única vaga disponível na UTI, malgrado o fato de que os demais
possam morrer.
14. Escolher o paciente que terá o fígado transplantado por critérios médicos
e não pela ordem de inscrição.
15. Instalar reatores nucleares para gerar energia elétrica, apesar de haver
lixo nuclear e risco de contaminação radioativa.
16. Aplicar a energia nuclear em diversos campos, a despeito do risco de
contaminação, para obter benefícios como o diagnóstico e o tratamento
de inúmeras doenças (medicina), a irradiação de alimentos para a
produção de sementes e para que durem mais (agricultura), a verificação
da qualidade de equipamentos e a esterilização de materiais médicos e
cirúrgicos (indústria), o monitoramento de poluentes e a identificação de
recursos aquíferos (meio ambiente).
17. Negar na mídia a iminente desvalorização da moeda (ação de autoridade
ministerial) e correr o risco de ser desmascarado no dia seguinte ao lançar
um pacote econômico.
18. Reter dados dos usuários para permitir investigações contra o terrorismo
e o crime organizado. Com isso, os provedores de internet promovem a
quebra da privacidade de seus clientes.
19. Submeter-se a uma cirurgia invasiva, uma vez que se corre risco de
morte ou de graves complicações, apesar dos perigos da anestesia e das
infecções hospitalares.
20. Injetar recursos públicos na indústria automobilística norte-americana
para evitar sua concordata. Por exemplo, em 2009, a General Motors
recebeu US$ 49 bilhões do Tesouro americano, conferindo ao governo
61% de suas ações. Recuperada a empresa, o Tesouro se desfez da última
fatia de 2,2% das ações no final de 2013. E, embora contabilizasse uma
perda de US$ 10 bilhões, evitou que o setor automobilístico falisse, per-
desse 2,6 milhões de empregos e que 600 mil aposentadorias tivessem
seus benefícios reduzidos ou extintos. Ademais, o setor criou 372 mil
empregos novos desde a crise e desembolsou US$ 105,3 bilhões em
impostos e taxas somente em 2009 e 2010.
135
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
136
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas
137
Capítulo
9
Como tomar decisões éticas?
139
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
A prestação de contas
Otaviano é gerente comercial de uma grande companhia do setor eletroeletrônico
há dois anos. Seu conceito é de um executivo jovem, promissor e brilhante. Seu chefe,
o diretor comercial da empresa, está bem satisfeito com ele, pois aprecia sua energia,
ambição e vontade de superar os outros. Enxerga no Audi, que Otaviano comprou
com os bônus recebidos, uma demonstração de que, como homem de resultados,
ele não se contenta com nada menos que o melhor.
Nos dois anos em que Otaviano trabalhou sob sua chefia, o diretor comercial lhe
concedeu três aumentos em função do belo desempenho. Afinal, o moço só lhe deu
boas notícias. Pelo menos até a semana passada: uma auditoria interna constatou
que, numa viagem que fez à Alemanha, indo representar a empresa num congres-
so, Otaviano apresentou uma conta de hotel adulterada. Redondos, foram 500 euros. O
auditor desconfiou do valor da conta em função das diárias: em vez de €1.350 (quatro
diárias a €300, mais uns extras), a conta deu €1.850. O número 3 foi adulterado para 8.
Cuidadoso, o auditor telefonou para a administração do hotel alemão para checar.
De fato, foram pagos €1.350 em dinheiro vivo. Ele então solicitou uma cópia do
documento da tesouraria, que lhe foi imediatamente remetida por fax. De posse
dessas informações, foi falar com Otaviano. Este, aparentemente surpreso, lhe disse
que na correria da saída pagou sem ver. O auditor procurou lhe mostrar a divergência.
Otaviano confirmou saber que a diária era de €300 e ficou irritado com o jeito in-
quiridor do auditor. Finalmente, alegou em sua defesa que o caixa do hotel podia ter
alterado o original da nota fiscal para induzi-lo a erro.
O auditor não insistiu mais e foi pesquisar as prestações de conta anteriores
do gerente. Nada achou. Foi então ter com o diretor comercial, apresentando-lhe
educadamente toda a situação e pedindo-lhe providências. O diretor reagiu com
rispidez. O que foi que Otaviano lhe disse? Que pode ter havido um engano, não é
isso? Por que insistir? O sujeito é o homem de ouro do departamento! Vai vir com essa
mixaria de €500 para fazer uma tempestade num copo d´água?
O auditor ponderou que não se trata da quantia, mas do ato em si. E recebeu
como troco: não me venha com purismos nessa altura do campeonato! Que ato?
Uma presunção, uma especulação! O que tem de comprovado? Nada! Esse moço
vale milhões! Se ele disse que não conferiu a nota fiscal, para mim chega! (Mais tarde,
essa conversa foi confirmada pelo diretor comercial numa reunião com seus pares.)
O auditor se retirou e, com a aprovação de seu próprio gerente, decidiu levar o
caso para o comitê de ética. O comitê de ética se reuniu e emitiu um parecer que foi
submetido à apreciação da diretoria executiva.
Quais as recomendações e como serão fundamentadas?
Analisados os fatos, uma dúvida crucial paira sobre quem adulterou o docu-
mento: o gerente comercial ou o caixa do hotel alemão? Quanto à conta, sabe-se
que o gerente comercial é um profissional afeito a cifras e a cálculos. Assim, mesmo
premido pela pressa, bastaria um relance para ele checar a nota fiscal: quatro diárias
a €300, mais algumas pequenas despesas, não poderiam somar €1.850! Daí a certeza
de que, no mínimo, o gerente foi negligente com o dinheiro da empresa.
140
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
é mais provável que o foco esteja aí e não na prestação de contas das des-
pesas pessoais);
6. rever a política referente às despesas pessoais (fecham-se as brechas que
podem ensejar deslizes).
A auditoria nos contratos comerciais se faz necessária para que não paire
dúvida sobre a conduta de profissionais de alto escalão. Caso ambos passem
pelo teste, obterão um atestado de idoneidade. Mas, caso haja indício de fraude
ou de favorecimento, os dois serão sumariamente demitidos. Ademais, se o
gerente comercial não reconhecer a desídia ou não aceitar ressarcir a empresa
pelo prejuízo causado, sua demissão também deverá ser determinada.
Acontece que o comitê de ética pode também optar por um terceiro curso
de ação (bastante comum, aliás), que consiste em relevar os erros sem adotar
medidas punitivas ou corretivas. Tal tomada de posição vira um prato cheio
para a “rádio corredor” e estabelece um perigoso precedente que estimula a
proliferação de condutas ilícitas.
Essa terceira vertente obedece à racionalização antiética: privilegia interesses
particularistas, racionaliza os eventos e oferece justificativas capengas. Alega que
não há provas suficientes e que um descuido menor não justifica providências
drásticas; demonstra complacência com os implicados e contamina o ambiente
interno com o veneno da desonestidade.
A secretária perfeita
Heloísa é a secretária executiva dos sonhos: eficiente, pontual, bilíngue, discreta,
elegante. Seu superior, o gerente industrial, embora conhecido e temido por seu estilo
“sargentão”, sempre a tratou com o devido respeito, em função do modo profissional
como ela sempre se relacionou com ele.
Ocorre que o marido de Heloísa, na famosa “crise dos 40 anos”, abandonou a mu-
lher com os dois filhos pela enteada da vizinha, uma moça que cursava marketing e
que deixava os homens irrequietos com suas curvas.
O gerente acaba sabendo da separação e, nos despachos diários com a secretária,
procura apoiá-la com palavras de estímulo e consolo. Insiste, porém, em convidá-la
para almoçar, sob o pretexto de discutir assuntos pendentes. Heloísa se esquiva sis-
tematicamente, até que um dia, não querendo ser indelicada, aceita o convite.
O gerente escolhe um restaurante acolhedor e refinado. No meio da conversa
que acaba versando sobre as relações entre marido e mulher (o gerente é casado
há 20 anos e tem três filhos), ele põe a mão no antebraço de Heloísa e procura
se aproximar dela, olhando fixamente seus lábios. Com tato, a secretária retira o
braço e consegue se afastar, embora ele continue tentando se achegar. Heloísa
então o encara e lhe diz assertivamente: “Chefe, o senhor vai me desculpar, mas
não acho certo misturar relações afetivas e profissionais.” O outro retruca sem
muito pensar: “O prazer não tem hora nem lugar...” É o suficiente para que Heloísa
se levante abruptamente da mesa.
142
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
Daí para a frente, o gerente se fecha em copas e trata Heloísa de forma rís-
pida; faz até piadas a respeito de sua tristeza. Duas semanas depois, entrega um
importante relatório ao pool de secretárias para ser digitado. Quando Heloísa recebe
o relatório pronto para ser encaminhado, estranha o fato e pergunta ao chefe o
que foi que aconteceu. Ele simplesmente não responde, fazendo um vago gesto
de enfado com a mão. As demais secretárias começam a comentar que entre os
dois “deve estar rolando alguma coisa...” e olham de forma enviesada para Heloísa.
Os despachos diários escasseiam e, quando ocorrem, convertem-se em tortura
chinesa para a secretária. Quando ela questiona alguma coisa, ele lhe diz para deixar
de ser “metida” e fazer o trabalho que lhe cabe sem questionar as ordens. Diante
dos demais funcionários, o gerente se deleita em fazer ironias ou em destratá-la
repetidamente.
Já perturbada com a separação, Heloísa se sente crescentemente estressada e com
enorme vontade de abandonar tudo. Mas como sustentar os dois filhos se a pensão
do marido cobre parte do aluguel e mal dá para pagar a escola e o seguro-saúde?
Em desespero, ela acaba confidenciando o que ocorre a uma colega de longa data.
Esta lhe aconselha duas coisas: produzir um flagrante que possa ser testemunhado
e, na sequência, levar o caso ao comitê de ética para tentar pelo menos garantir o
emprego. Afinal, perdido por perdido, valia a pena arriscar.
Na entrada da sala do gerente, num dos despachos, Heloísa finge tropeçar e a
papelada que segura se espalha no chão. Ela se agacha para recolher os papéis, e
o chefe deixa sua mesa para ajudá-la. Ao se abaixar, os rostos dos dois ficam bem
próximos e o gerente não resiste ao olhar sedutor da secretária − imagina, aliás, que
ela finalmente estava se oferecendo. Quando Heloísa faz menção de se levantar, ele a
abraça. Nesse instante e, de forma surpreendente, Heloísa dá um grito agudo. Muitos
funcionários erguem a cabeça em direção à sala envidraçada da gerência para ver o
que está acontecendo, enquanto Heloísa repele o chefe com as duas mãos e suplica
em voz alta: “Não! Não! Não quero!” Alguns colegas até se levantam para ver melhor.
Heloísa sai então da sala e bate a porta com violência...
A cena foi decisiva. A secretária agora dispunha das testemunhas que lhe faltavam
e pode contar com a força anônima da “rádio corredor”. O próximo passo foi denunciar
o assédio sexual ao comitê de ética, com um relato pormenorizado dos antecedentes
(Heloísa omitiu apenas a cilada que aprontou). Ela estava confiante porque a compa-
nhia queria fazer parte das 100 melhores empresas para trabalhar e não estava dis-
posta a perder a oportunidade de se destacar.
A pedido do comitê de ética, uma comissão de averiguação foi nomeada e logo
tomou os depoimentos da secretária e de suas colegas, das testemunhas e do próprio
gerente industrial. Em sua defesa, este último alegou que Heloísa deixou muito a
desejar profissionalmente depois de sua separação, razão pela qual chamava repe-
tidamente a atenção dela. Quanto ao episódio em seu escritório, ele o caracterizou
como “inexplicável reação histérica” da secretária. Por fim, lembrou que nunca esteve
envolvido em caso semelhante.
A comissão de averiguação não se deixou iludir e apresentou um relato crítico,
embora sobrasse alguma dúvida sobre o teor da conduta do gerente. Relatório em
mãos, os membros do comitê de ética se reúnem. Quais serão as recomendações do
parecer?
143
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
1. advertir o gerente industrial por escrito, ficando claro que qualquer outro
deslize será motivo de demissão (confere-se uma segunda chance a quem
reconhece um erro ocasional, mediante a apresentação de um “cartão
amarelo”);
144
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
Nos debates que esse caso suscita em sala de aula, quem se orienta pela teoria
ética da convicção (tolerância zero) se incomoda com o fato de a secretária ter
lançado mão de um artifício para flagrar o chefe, alegando que o meio utilizado
não é “puro”. Daí a irresistível vontade de punir Heloísa por achar sua conduta
maliciosa e intolerável.
Quem se orienta pela teoria ética da responsabilidade ou pela análise situa-
cional, no entanto, caracteriza o meio utilizado como um mal necessário para
alcançar um bem maior. Para expor à luz do dia o assédio do gerente industrial
e restabelecer um clima de profissionalismo, a secretária se sentia desarmada.
Afinal, a empresa carecia de um canal confiável de denúncia e, sem testemunhas,
ela presumia que uma acusação de assédio não prosperaria.
Finalmente, o comitê de ética pode igualmente optar por um terceiro curso
de ação, que consiste em relevar os erros e colocar panos quentes. Ao desprezar
uma denúncia relevante, acaba acobertando o assédio gerencial e dá mostra de
machismo. Isso menospreza a diversidade social e incentiva os excessos por parte
dos superiores hierárquicos.
Essa terceira vertente privilegia os interesses particularistas e obedece à ra-
cionalização antiética que, ao fim e ao cabo, deturpa os eventos e mistifica os
interessados. Alega, por exemplo, falta de provas convincentes, põe em dúvida o
relato da secretária e chega a dizer que é da natureza feminina, principalmente
de mulher divorciada, tentar seduzir o chefe...
146
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
147
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
A terapia de choque
Em muitos anos de carreira, Carlos Ghosn já enfrentou várias crises e comandou
viradas espetaculares. Mas nada se compara ao trabalho de reconstrução da Nissan.
Em 1999, a montadora japonesa estava quase arruinada, mergulhada em dívidas de
US$19,4 bilhões. Não só a cultura do lucro deixara de ser levada a sério, como havia
um péssimo controle dos custos.
A marca podia construir 2,4 milhões de carros no Japão. Mas só operava com 53%
da capacidade. Dinheiro era queimado em 1.394 participações em outras empresas, in-
clusive concorrentes, como a Subaru. Funcionários eram promovidos por idade e não
por mérito. Gerentes de fábrica não sabiam dizer quanto custava produzir um carro.
Quando Ghosn se instalou na mesa de seu escritório no bairro de Ginza, em Tóquio,
encontrou uma empresa que necessitava de uma terapia de choque. “A recuperação
precisa ser rápida e eficaz, mesmo que exija sacrifícios”, disse, um dia depois de
anunciar o fechamento de cinco linhas de montagem e a demissão de 21 mil traba-
lhadores (14% do pessoal). Isso em um país em que os empregos eram considerados
eternos. Ele afirmou que, se o plano de reestruturação falhasse, a situação seria bem
pior, com o fim da empresa.3
O que temos aqui do ponto de vista ético? Uma adesão à teoria da responsa-
bilidade: os resultados importam muito, desde que os fins sejam universalistas;
sacrifícios são toleráveis em função dos efeitos esperados (mal menor diante do
mal maior, que seria o fechamento da empresa e a perda de centenas de milhares
de empregos), pois os prejuízos sociais que a falência de uma empresa do porte da
Nissan acarretaria seriam tão desastrosos que impactariam a economia japonesa
como um todo e teriam repercussões internacionais.
A intervenção de Ghosn não obedeceu à teoria da convicção porque não operou
by the book, segundo padrões preestabelecidos e consensuais. Aliás, os adeptos
dessa teoria teriam dificuldade em repensar a hierarquia dos valores, introduzindo
valores incomuns para o Japão: empregados demissíveis que obedecem à lógica do
mercado em vez de empregados vitalícios? Precisariam romper, em nome do lucro,
com tradições seculares. Com efeito, em vez de escolher de maneira binária entre
o aceitável e o inaceitável, Ghosn optou pela análise de riscos e, com o propósito
de preservar a empresa e de revitalizá-la, enfrentou preconceitos, estereótipos e
hábitos arraigados, além de contrariar interesses estabelecidos. Para tanto, desativou
plantas industriais e sacrificou os empregos de parte do pessoal.
Fernando Valeika de Barros. A nova aposta de Carlos Ghosn. Época Negócios, dezembro de 2010.
3
148
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
Um dilema moral
A irmã Mary McBride, que dirigia um hospital católico em Phoenix, Arizona, autori-
zou um aborto de emergência para salvar a vida de uma mulher acometida de doença
grave. Quando o bispo da região soube da decisão, determinou imediatamente a
excomunhão da irmã.
O reverendo John Ehrich, responsável pela “ética médica” da diocese, sentenciou:
“Ela consentiu em matar uma criança não nascida.” E prosseguiu: “De fato, em certas
situações, a mãe pode morrer com a criança. Mas − e é esta a perspectiva católica −,
você não pode fazer o mal para obter o bem. O fim não justifica os meios.”
Todavia, o reverendo Thomas Doyle, um advogado canônico, disse que o caso
indica a “enorme injustiça” da Igreja no modo como lida com os escândalos. Afinal,
nenhum padre pedófilo foi excomungado.4
Duas definições do que seja o bem se confrontam aqui: a irmã Mary, diretora
do hospital, considerou a vida da paciente mais importante do que o feto; o
reverendo Ehrich, diretor de ética médica, considerou o feto mais importante
do que a paciente, em nome do princípio de que os fins não justificam os meios.
Para ele, salvar a paciente à custa do feto é um mal, um meio impuro para obter
um fim, ainda que bom. Para a irmã, sacrificar o feto foi um mal menor para
evitar um mal maior, que seria a morte de ambos (a paciente e o feto), e também
poderia ser considerado um mal necessário para salvar a vida da paciente.
Essas duas decisões obedecem à razão ética e têm caráter universalista, embora
se excluam mutuamente. Uma decisão se baseia na teoria ética da convicção, outra
se baseia na teoria ética da responsabilidade. De um lado, não se faz o aborto,
mesmo que à custa da vida da paciente, em nome da pureza dos meios − dever
universalista. De outro, em situação de emergência e havendo condições técnicas,
preserva-se a vida da paciente, que é um fim universalista, ainda que à custa do
feto − o “meio impuro” se justifica.
A teoria ética da convicção é uma teoria dos deveres universalistas que con-
fronta categorias dicotômicas, unidades irreconciliáveis, binômios maniqueístas.
Nela prevalece o rigor das escolhas discretas: tudo ou nada, luz ou sombra, retidão
ou descaminho. Os que se orientam por ela:
j
Aplicam princípios ou ideais às situações concretas, materializando o senso
do dever.
j Agem segundo padrões já regrados e consagrados, de acordo com impera-
tivos ou mandamentos universalistas: a ação é fruto de respostas prontas,
já assimiladas.
149
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
j
Deliberam em torno de cenários, fundados no senso de realidade.
j Agem a partir de uma análise de riscos, segundo um cálculo racional
universalista: a ação é fruto de respostas construídas para alcançar um
bem maior ou para evitar um mal maior.
j Consideram-se livres para assumir determinadas posições, embora saibam
que serão responsabilizados por isso.
j Medem os custos e benefícios, tomam as devidas precauções e adotam
salvaguardas a fim de alcançar resultados que interessem a todos: fins
universalistas justificam os meios utilizados.
j
Obedecem a uma lógica prática: “Faça o necessário para evitar danos
maiores e obtenha efeitos coletivamente benéficos.”
O direito do abutre
Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma
vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que
só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela
de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas
horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções.
Vimos isso nos dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro.6 Mesmo pes-
soas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem
haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.
Mas, do fundo de nossas tradições, vem também um dos nossos mais de-
ploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida, o saque do que restava
das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar
apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de
outros. Ou o roubo, puro e simples, como fez aquele funcionário da UERJ que, antes
de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga.
Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas
para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a
história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o
oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação con-
tra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.
O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra
modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata
de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns,
que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque
a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém
indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em
situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome
da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos
em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte,
em face da qual a civilização é uma quimera.7
Essa tragédia de dimensões épicas revela os traços ambíguos dos padrões cultu
rais brasileiros: a solidariedade do altruísmo extremado − lição de generosidade
5
Alguém é escolhido para argumentar contra certa posição e o faz com destemor e acuidade, a fim de que a
validade e a solidez de seus fundamentos sejam verificadas.
6
A maior catástrofe natural da história do país foi causada por deslizamentos devastadores (“corridas de
lama”) que atingiram 16 municípios da Região Serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011. Dezenas de
milhares de pessoas ficaram desabrigadas ou foram desalojadas. Até 17 de fevereiro, o número contabilizado
de mortos chegou a 905.
7
José de Souza Martins. O direito do abutre. O Estado de S. Paulo, 23 de janeiro de 2011.
151
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
SITUAÇÃO RESPOSTA
1. Você é o almoxarife de uma indústria. O pessoal está fazendo O QUE VOCÊ FAZ?
horas extraordinárias porque houve um acúmulo de pedidos
e o responsável pela programação falhou. Segundo um en-
carregado que o procura, uma peça da máquina alimentadora
quebrou e 30 homens estão parados.
Ele lhe pede uma peça de reposição e alega que qualquer atraso
pode ocasionar uma pesada multa contratual. Você verifica o
estoque e encontra a peça solicitada. Alívio geral. Ocorre, porém,
que o supervisor dele não se encontra para rubricar a requisição,
conforme reza o Manual de Normas e Procedimentos.
152
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
SITUAÇÃO RESPOSTA
1A Você diz que nada pode fazer, já que a diretoria sempre frisou que
normas são feitas para obedecer. Como ele não achou superior
algum que pudesse rubricar a requisição, a peça só poderá ser
entregue quando alguém chegar e puder preencher os requisitos.
Sem disciplina e respeito à hierarquia, não há organização que se
sustente.
1B Você entrega a peça em confiança ao encarregado e lhe pede
para manter o devido sigilo. Manda-o também imitar a rubrica do
supervisor na requisição.
1C Você lhe explica que irá assumir o ônus da entrega da peça a
despeito da norma − após haver rapidamente checado a situação
in loco e verificado que a multa contratual existe. Prepara um re-
latório que relata a situação e que será encaminhado na primeira
hora da manhã à Área de Controles Internos.
1D Você lhe explica que, embora o conheça há 10 anos e que ele seja
de absoluta confiança, a norma é clara e não autoriza a entrega
de material sem a devida formalização. Pede-lhe para ligar para a
casa do supervisor, ou de outro superior, para que alguém resolva a
pendência. Afinal, você está aqui para obedecer às ordens.
3. Você está sendo cogitado para uma promoção e dirige uma O QUE VOCÊ FAZ?
equipe que costuma ter boas ideias. Foi convidado para um
encontro de trabalho com superiores seus.
153
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
SITUAÇÃO RESPOSTA
3A Você apresenta algumas ideias inovadoras sem indicar a origem.
3B Você aproveita a oportunidade para lançar as melhores ideias e dá
a quem as formulou o respectivo crédito.
3C Você relata que, em seus limites orçamentários, planeja colocar em
prática uma ou outra inovação que sua equipe desenvolveu e lança
uma ideia que ultrapassa sua seara, dizendo que seu pessoal está
ansioso para pôr mãos à obra.
3D Você se abstém de dar ideias, ainda que a empresa incentive as
iniciativas e as inovações, porque acha que alguém irá se apropriar
delas.
4. Você é gerente de conta e um cliente tem dinheiro para aplicar O QUE VOCÊ FAZ?
em fundos. As metas anuais do banco são bastante exigentes.
O cliente confia em sua orientação.
4A Você aplica o dinheiro em um fundo agressivo, omitindo esta
informação ao cliente.
4B Você o aconselha a aplicar o dinheiro em um fundo conservador,
pois conhece seu perfil, embora isso não contribua muito para que
você atinja as próprias metas.
4C Você lhe descreve as opções de que dispõe, com as vantagens e
desvantagens que cada uma delas implica, deixando-o escolher
livremente. Se ele insistir para que o aconselhe, você não omite
o fato de que a escolha de um fundo agressivo se encaixaria nas
metas que você tem a cumprir. Mesmo assim, sugere-lhe um fundo
conservador.
4D Você lhe oferece um fundo de investimento bem conservador, do
tipo popular, cujo depósito inicial mínimo é de R$1 mil. Isso contri-
bui para suas metas, porque o rendimento do fundo ganha apenas
da caderneta de poupança e a taxa de administração é de 4%.
5. Você é gerente de uma importante unidade de negócio numa O QUE VOCÊ FAZ?
cidade do interior e conhece praticamente todo mundo. Os
clientes da empresa são os fornecedores de tudo o que se
vende na cidade, tanto bens de consumo como bens duráveis.
Sua empresa não dispõe de uma disposição específica sobre a
aceitação de presentes ou de favores.
5A Você recusa sistematicamente receber o que quer que seja. Mas,
se for muito constrangedor devolver algum presente que lhe foi
mandado, você o entrega para a associação dos funcionários de
sua empresa para ser sorteado e faz questão de o fornecedor saber
disso.
5B Você aceita o tratamento diferenciado que lhe dispensam,
com as vantagens decorrentes, já que é o gerente da empresa
mais importante da cidade. Afinal, seria uma falta de cortesia
recusar.
154
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
SITUAÇÃO RESPOSTA
5C Você faz transações normais na cidade, sem aceitar presente
ou favor algum, ainda que os fornecedores queiram tratá-lo de
forma exageradamente amigável. Mas, diante dos embaraços
que acabam surgindo, você explica em alto e bom som por que é
importante manter uma relação profissional imparcial, ainda que
tal assertividade não seja praxe no Brasil.
5D Você torce para que o transfiram para uma cidade grande em que as
relações impessoais prevalecem, evitando assim o dilema. Enquanto
isso não acontece, vai aceitando uns agrados de vez em quando.
6. Você recebe de seu superior orientação contrária aos valores O QUE VOCÊ FAZ?
da empresa e questiona na hora seu fundamento. A tentativa
de esclarecimento, entretanto, revela-se inútil.
6A Você deduz que, sendo assim, não há razões para esquentar a
cabeça com valores enunciados, mas não praticados.
6B Você comunica imediatamente o fato a seu diretor e lhe diz que
precisa de uma urgente transferência de área para não ter de
desobedecer às ordens recebidas.
6C Você se conforma porque vai ver que não entendeu direito a
relação entre a orientação dada e os valores da empresa.
6D Você verifica junto aos colegas se a interpretação que fez é correta.
Caso assim seja, procura formalmente seu diretor e lhe diz que irá
desobedecer ao superior.
7. Você é gerente de uma agência bancária numa cidade cujo O QUE VOCÊ FAZ?
maior empregador é seu cliente. Este o visita e lhe confidencia
que precisa de uma linha de crédito para realizar uma impor-
tação de peças fabricadas na China. Logo depois, o cliente
formaliza o pedido, de maneira que você não tem como não dar
andamento ao crédito. Ocorre que outro cliente seu é fornece-
dor dessas mesmas peças, além de ser seu amigo de infância.
Pelo cúmulo do azar, ele lhe telefona, falando que precisa de um
empréstimo para modernizar sua linha de produção. Diz que
ouviu rumores de que o maior empregador está se preparando
para fechar contratos de exportação e que, portanto, precisará
assegurar a qualidade de seus produtos e fornecer preços
competitivos em termos internacionais.
7A Você analisa a solicitação de empréstimo de seu amigo sem levar em
conta o que sabe sobre a situação toda, pois está convencido de que
os bens dele podem perfeitamente cobrir a dívida a ser contraída.
E concede o empréstimo, ainda que preveja que ele vá quebrar.
7B Você desaconselha o amigo, argumentando que, até que ele possa
comprar e instalar equipamentos novos, treinar seu pessoal e
alcançar custos compatíveis, o maior empregador provavelmente
terá comprado as peças em outro lugar, de modo que ele precisa
sopesar com muita calma os riscos que corre. Se ele insistir, você
recusa o empréstimo, dizendo que não se conforma aos parâme-
tros do banco, mesmo que isso signifique algum estremecimento
na relação de amizade.
155
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
SITUAÇÃO RESPOSTA
7C Você procura ganhar o máximo de tempo possível para que seu
amigo tenha a oportunidade de descobrir a verdade por conta pró-
pria. Mas, esgotado o prazo regulamentar de análise da solicitação,
você lhe comunica que o pedido foi infelizmente rejeitado por não
atender aos parâmetros exigidos pelo banco (você sabe que ele
não poderá pagar).
7D Você conta tudo a seu amigo, mostrando-lhe que o maior em-
pregador já decidiu importar da China. Mas toma cuidado para lhe
pedir que mantenha rigoroso sigilo sobre a confidência feita.
8. Você está cursando uma especialização profissional. Durante O QUE VOCÊ FAZ?
um seminário, um colega seu o provoca e põe em xeque sua
competência profissional. Para provar que sabe das coisas, vo-
cê deveria usar uma informação confidencial de sua empresa.
8A Você relaxa e vai em frente porque, afinal de contas, seus colegas
de faculdade não têm condições de saber se a informação é
confidencial.
8B Você procura se esquivar de usar o que sabe porque isso pode ser
manobra do colega para obter informações confidenciais. Está
convencido de que é melhor não responder à provocação.
8C Você mostra ao colega que o sigilo profissional não lhe permite
elucidar o que solicitou, ainda que ele possa alegar que você des-
conhece o assunto.
8D Você argumenta assertivamente que ele não precisa desqualificar
os outros para provar seu ponto de vista e que é lamentável ver um
colega lançar mão de uma tática de intimidação para obter uma
informação confidencial. De maneira que você se reserva o direito
de não responder.
9. Você cometeu um erro cujos reflexos serão negativos, embora O QUE VOCÊ FAZ?
sejam de difícil detecção.
9A Você se abstém de pensar no caso, pois errar é humano e, somente
se o fato for detectado, relatará o que aconteceu.
9B Você comunica imediatamente o fato a seu superior hierárquico.
9C Você procura encobrir o equívoco para não comprometer sua
reputação profissional: dilui os efeitos negativos ao longo do
tempo e manobra de modo a afastar quaisquer checagens.
9D Você procura entender objetivamente o que aconteceu, sem deixar
de assumir o erro diante de seu superior hierárquico, e formula um
procedimento preventivo que põe à disposição da empresa.
10. Você é gerente de uma agência bancária. Um cliente em via- O QUE VOCÊ FAZ?
gem se encontra em sua cidade e perdeu o cartão de crédito do
banco, assim como o talão de cheques. Ele já cancelou ambos
os instrumentos, mas precisa de dinheiro para fazer face a des-
pesas de emergência.
10A Você lhe explica educadamente que não há o que fazer, pois o sis-
tema do banco, infelizmente, não permite providência alguma.
156
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?
SITUAÇÃO RESPOSTA
10B Você lhe diz que dá nisso não tomar cuidado com os documentos.
Afinal, este mundo está cheio de malandros e ele tem de dar graças
a Deus por não ter perdido a carteira de identidade ou a vida.
10C Você acessa o banco de dados, faz uma cuidadosa e rápida
verificação do histórico do cliente e libera um saque em dinheiro,
ainda que isso não esteja explícito nos procedimentos.
10D Você se prontifica a telefonar para o gerente da agência dele
em São Paulo para que contribua de algum modo para solucionar
o problema.
157
Capítulo
10
A título de conclusão
159
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
160
Capítulo 10: A título de conclusão
161
Anexo
Gabaritos
Gabarito (1)
O “perfil das posturas morais” foi montado com base nas duas morais gerais
brasileiras: as respostas inscritas na coluna I correspondem à moral da integri-
dade; as inscritas na coluna II correspondem à moral do oportunismo.1
1. A moral da integridade celebra a inteireza e faz a apologia da virtude, pois
sentencia: “seja uma pessoa de bem!”. Constitui um código oficial, público
e altruísta, e visa obter um bem universalista e consensual que interessa a
todos, isto é, visa ao bem comum.2
2. A moral do oportunismo celebra a malícia e faz a apologia da esperteza,
pois prega: “leve vantagem em tudo!”. Constitui um código oficioso,
clandestino e egoísta, e visa obter um bem particularista e abusivo, um
bem restrito individual que causa dano aos outros.3
Dualismo e ambivalência marcam os padrões morais brasileiros por variadas
razões históricas. Citemos entre outros:
j
A dissociação entre a retórica missionária dos senhores de escravos e a
brutal desumanização desses mesmos escravos tratados como gado.
j O descompasso entre as declarações públicas, bombásticas e honoráveis
(todos são “homens bons”, desde o período colonial), e os atos praticados
por gente desbravadora, gananciosa, matreira e espoliativa.
j A disjunção entre a doutrina católica, que hostiliza a riqueza e enaltece a
pobreza, e algumas práticas clericais de apego aos bens materiais.
1
Para uma análise mais detalhada das duas morais gerais brasileiras ver, do autor: Ética empresarial: o ciclo
virtuoso dos negócios. 4. ed. revista. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Capítulos 5 e 6.
2
Uma moral é um sistema de normas morais, um conjunto codificado de normas que expressa os interesses
de uma coletividade histórica, seja uma sociedade, um setor social, uma classe social, uma categoria social
ou uma organização que tenha uma cultura organizacional própria.
3
O bem restrito, seja individual ou grupal, não precisa necessariamente ser nocivo, pois é perfeitamente
possível satisfazer interesses pessoais ou grupais sem lesar outros como veremos.
163
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
j
O sincretismo religioso e cultural que, ao tentar conectar domínios subs-
tancialmente distintos (os mundos sobrenatural e natural, as esferas
pública e privada), invoca entidades mediadoras − orixás e “cavalos”;
espíritos e médiuns; anjos, santos, “Nossas Senhoras” e padres; patronos,
coronéis, patriarcas, padrinhos, cabos eleitorais, despachantes −, todos
intermediários que denunciam a polaridade desses domínios.
Em tese, a postura modal do respondente corresponde, naturalmente, à pos-
tura que obteve a maior pontuação.
j
Para poder declarar-se “íntegro”, é preciso ter obtido 30 pontos na coluna
I porque a moral da integridade não autoriza deslize algum, uma vez que
opera de forma maniqueísta (sim/não; preto/branco; 8/80).
j Quem somou de 25 a 29 pontos na coluna I faz ocasionalmente alguma
concessão ao oportunismo e, portanto, vive em uma situação de “dubie-
dade moderada” numa espécie de purgatório.
j Quem somou de 20 a 24 pontos na coluna I apresenta uma “dubiedade
acentuada”, tendo adentrado a terra de ninguém do oportunismo.
j
Quem somou de 19 pontos para baixo na coluna I adere francamente ao
oportunismo.
164
Anexo ::Gabaritos
Gabarito (2)
Por que alguns desses fatos são objetos de estudo da Ética e outros não? Porque
os fatos “morais” (objetivos de estudo da Ética) causam prejuízos ou benefícios
aos outros, são eticamente negativos ou eticamente positivos, enquanto os demais
fatos são eticamente neutros no tocante ao bem ou ao mal: são fatos “sociais”
(objetos de estudo da Sociologia).
FATO EXPLICAÇÃO
1. M A moça prejudica um eventual portador de deficiência física (fato eticamente
negativo).
2. S O sujeito não prejudica ninguém nem beneficia outros (fato eticamente neutro).
3. M As mulheres fumantes provocam fumo passivo e prejudicam a saúde das
crianças (fato eticamente negativo).
4. S A mulher simplesmente respeita as regras (fato eticamente neutro).
5. M O gerente de banco cumpre sua meta em detrimento dos melhores interesses
do cliente e põe em risco o relacionamento de longo prazo (fato eticamente
negativo).
6. M O funcionário beneficia a empresa em que trabalha e garante o próprio
emprego (fato eticamente positivo).
7. M O funcionário prejudica a empresa em que trabalha, embora ajude o colega, e
arrisca ser demitido (fato eticamente negativo).
8. S O funcionário cumpre suas obrigações contratuais (fato eticamente neutro).
9. M A mulher procura não ocupar duas vagas ou dificultar as manobras dos motoris-
tas que queiram ocupar as vagas contíguas (fato eticamente positivo).
10. M A empresa cuida da saúde de seus funcionários (fato eticamente positivo).
11. M O fiscal de obras age com integridade, de acordo com os melhores interesses da
empresa em que trabalha (fato eticamente positivo).
12. S O fiscal de obras cumpre suas obrigações profissionais (fato eticamente neutro).
13. M O fiscal de obras foi corrompido e prejudica a empresa em que trabalha (fato
eticamente negativo).
14. S O gerente de banco está agindo de acordo com os procedimentos burocráticos
(fato eticamente neutro).
15. M O vendedor de loja de eletrônicos instrumenta o cliente para que este tome
uma decisão informada (fato eticamente positivo).
16. M O vendedor da loja de eletrônicos está agindo de má-fé ao sonegar informação
valiosa (fato eticamente negativo).
17. M O camelô pode até estar falando a verdade porque existem marcas clonadas,
mas a dúvida ficará sempre no ar. Além do mais, a mercadoria deve ser
contrabandeada, haja vista o preço (fato eticamente negativo).
18. M O comprador está combatendo a sonegação fiscal (interesse social) e
defendendo os próprios interesses, uma vez que faz jus à parte do imposto (fato
eticamente positivo).
19. S O comprador agiu de forma rotineira (fato eticamente neutro).
166
Anexo ::Gabaritos
FATO EXPLICAÇÃO
20. M O cliente deve estar carregando dinheiro frio e não quer que suas transações
sejam detectadas pelos órgãos tributários (fato eticamente negativo).
Gabarito (3)
LEGÍTIMO FATO
1. Sim Defender-se contra espionagem econômica faz sentido porque o concorrente
quer tirar proveito disso e, por isso mesmo, precisa ser processado e coibido.
2. Sim O assediador precisa ser contido e sofrer as sanções cabíveis para não persis-
tir em seu abuso.
3. Sim O prejuízo que o cartel causa ao mercado precisa cessar por meio de seu
desmantelamento, e a punição das empresas participantes purga o mercado
de um conluio que prejudica a livre-concorrência.
4. Não Uma denúncia baseada em boatos, ou destituída de provas, cairá no vazio e
levantará dúvidas a respeito das intenções de quem a faz: será que você não
estaria querendo prejudicar o concorrente?
5. Sim Doar recursos para ajudar pessoas necessitadas em situações de
calamidade pública é válido, ainda que reduza os dividendos dos acionistas
(desde que, é claro, os executivos tenham autorização para tanto).
6. Sim É eticamente legítimo que os clientes lesados boicotem uma empresa
abusiva e até divulguem o fato para angariar mais apoios.
7. Sim Em prol da saúde pública, a abertura de processo visa não só que a
empresa seja multada, mas, sobretudo, que ela seja impedida de perseverar
em suas ações.
8. Não Embora os conselhos sejam bem-vindos, o perdão da multa mediante
presentes corresponde a suborno: a multa é um dever de ofício, um ato
público que não pode depender do arbítrio do fiscal.
9. Não O peso da carga tributária não justifica a sonegação de impostos. O bom
combate passa por pressões cidadãs para que haja uso competente dos
recursos públicos, redução de impostos e simplificação do sistema tributário.
10. Sim A resistência é legítima porque a invasão e a depredação de propriedade
produtiva não se justificam: correspondem a uma tática violenta que
prejudica não só o dono específico, mas o próprio direito de propriedade.
Gabarito (4)
1. E 2. A 3. A 4. E 5. A 6. E 7. A
8. E 9. E 10. A 11. E 12. E 13. E 14. E
15. E 16. A 17. A 18. A 19. E 20. E 21. E
22. E 23. A 24. A 25. A 26. E 27. E 28. A
167
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
Gabarito (5)
1. P 2. AR 3. AR 4. P 5. P 6. AR 7. P
8. AR 9. P 10. P 11. P 12. AR 13. AR 14. P
15. P 16. P 17. P 18. AR 19. AR 20. P 21. P
22. P 23. AR 24. AR 25. P 26. AR 27. P 28. P
29. P 30. AR 31. P 32. P 33. AR 34. AR 35. P
36. P 37. P 38. AR 39. AR 40. P 41. P 42. AR
Gabarito (5A)
1. AR 2. E 3. A 4. P 5. AR 6. P 7. P 8. A
9. AR 10. AR 11. E 12. P 13. AR 14. P 15. P 16. E
Gabarito (6)
1. AI 2. AI 3. AE 4. AI 5. AE 6. AE 7. AE
8. AI 9. AE 10. AE 11. AI 12. AE 13. AE 14. AI
15. AE 16. AI 17. AE 18. AI 19. AI 20. AI 21. AI
22. AI 23. AI 24. AE 25. AI 26. AE 27. AI 28. AI
Gabarito (6A)
O fumo, embora legal − assim como as armas, as bebidas alcoólicas e o jogo
de azar em alguns países −, obedece à racionalização antiética em função dos
males que causa. Isso não quer dizer que deva ser proibido, embora possa sofrer
algum controle público. Numa sociedade liberal, os cidadãos devem ser livres
em suas escolhas, respeitadas duas condições: amplo acesso às informações
para decidir com conhecimento de causa e ciência de que liberdade supõe res-
ponsabilidade.
168
Anexo ::Gabaritos
Gabarito (7)
ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO
1. RA/P Quem ganha com o conluio são os participantes do acordo
clandestino, com prejuízo dos concorrentes e da empresa con-
tratante que compra produtos, insumos ou serviços com preço
acima do mercado. Em tese, ela terá de repassá-los aos clientes e
terá menores condições de competir no mercado, donde um per-
nicioso efeito em cascata.
2. RA/E As pessoas sabem onde trabalha o executivo, esteja ele portando
ou não o crachá. De maneira que o comportamento fora do traba-
lho interessa, sim. Afinal, dependendo das atitudes assumidas em
público, pode afetar a imagem da empresa.
169
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
170
Anexo ::Gabaritos
171
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
172
Anexo ::Gabaritos
173
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
174
Anexo ::Gabaritos
Gabarito (8)
Por que esses eventos são males e como distinguir o mal menor do mal neces-
sário?
175
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
176
Anexo ::Gabaritos
Gabarito (9)
ASSERÇÃO RESPOSTA COMENTÁRIO
1A TEC Cumpre o seu dever, obedecendo às normas: você não está
autorizado a abrir exceções (dever universalista).
1B RA Parcialismo, pois desobedece à norma explícita e manda
fraudar a rubrica na requisição.
1C TER Realiza uma análise situacional e inova, à margem das
normas, assumindo riscos em prol dos interesses da em-
presa e sem prejudicar ninguém (fim universalista).
1D TEC Respeita as normas vigentes e sugere que o encarregado
localize seu supervisor ou outro superior e desate o nó
(deveres universalistas).
2A TEC ou TER Caso a área jurídica ocupe posição de destaque na
empresa, você obedece à orientação dada e se recusa a
negociar o que quer que seja (TEC). Porém, caso você saiba
que, como toda assessoria, a área jurídica não é instância
decisória, você assume o ônus dos contratempos que o
fiscal poderá provocar e não se submete à chantagem do
fiscal (TER).
2B RA Parcialismo, pois entrou no jogo do suborno, cujas
consequências são imprevisíveis. Basta saber que a cons-
trutora vai querer recuperar o que gastou de algum modo
e certamente cobrará isso de você mais adiante...
2C TER Solução cidadã “fora do manual”, uma vez que não é prática
comum no mercado, mas que beneficia a sociedade como
um todo, pois corresponde ao bom combate contra a
corrupção (fim universalista).
2D RA Novamente solução parcial, com apelo à corrupção.
3A RA Egoísmo, pois há apropriação de ideias alheias: benefício
pessoal à custa dos outros.
3B TEC Altruísmo restrito, dando o crédito a quem de direito
(dever universalista).
3C TER Altruísmo restrito, visível na contribuição para a empresa,
sem descuidar de projetar o bom trabalho da equipe (fins
universalistas).
3D RA Egoísmo, desconfiando de todos e prejudicando a equipe
e a empresa.
4A RA Egoísmo, com abuso de confiança.
4B TEC Altruísmo restrito: age com retidão e cultiva relações
duradouras com o cliente (deveres universalistas).
4C TER Opera com transparência (fim universalista): fornece todas
as informações indispensáveis para que o cliente tome
uma decisão competente, aconselha-o corretamente e
lhe diz quais são as próprias metas, abrindo assim a pos-
sibilidade de o cliente permitir que parte pequena do
investimento deixe de ser conservador.
177
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL
178
Anexo ::Gabaritos
179
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181
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