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Casos de Ética Empresarial

2.ed.
Casos de Ética Empresarial
2.ed.

Robert Henry Srour


© 2014, Elsevier Editora Ltda.

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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S766c
2. ed.

Srour, Robert Henry


Casos de ética empresarial / Robert Srour. - 2. ed. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2014.
il. ; 23 cm.

ISBN 978-85-352-7832-3

1. Ética empresarial. 2. Comportamento organizacional. I. Título.

14-11336 CDD: 174.4


CDU: 174.4
Dedicatória

Para meu irmão Alfredo,


um homem de princípios.

v
Epígrafes

Na busca de pessoas para contratar, você procura três qualidades:


integridade, inteligência e energia. Se elas não tiverem a primeira,
as outras duas irão liquidá-lo.
Warren Buffet (investidor, industrial e filantropo norte-americano, 1930-)

Há poucas situações – se houver alguma – em que toda a verdade, e toda a


justiça, e todos os anjos se encontram de um lado só.
Henry Clay (estadista norte-americano, 1777-1852)

vii
Capítulo

1
Um tempo bem empregado

1.1.  O propósito do livro


À semelhança de uma velha celebridade cinematográfica que vivia reclusa,
a Ética desfruta de um prestígio peculiar: quando lembrada, recebe muitos
elogios e raras visitas. Curiosidade? Nem tanto. Para uns, a Ética aborda temas
tão herméticos que espanta os leigos. Para outros, a Ética e as lições de moral
andam tão aparentadas que só os simplórios lhes dão ouvidos. Para os sabidos, no
entanto, a Ética prega um ideal tão inacessível que mais parece deboche. Tolices
e mitos à parte, a matéria não tem sido tratada com clareza.
Tanto é verdade, que muitos professores e estudantes acham difícil lidar com
os fenômenos morais. Culpam, em geral, o lado pouco prático dos livros que
tratam do assunto, porque não levam em conta as vicissitudes do mundo real. Os
mais afoitos dentre eles concluem provocativamente que a “ética” vem de berço
e não há por que estudar o que já se sabe. Redundante perfumaria.

Uma pergunta reveladora


O famoso psiquiatra e fundador da escola analítica de psicologia, Carl Jung, per-
guntou a um soba africano qual era a diferença entre o bem e o mal. Este não teve
dúvidas. Disse com todas as letras: “Quando roubo as mulheres de meu inimigo, isso
é bom. Quando ele rouba as minhas, isso é mau.”

Há melhor ilustração do quanto os interesses próprios pesam nas avaliações?


No dia a dia das empresas, as questões morais deixam poucos à vontade, desde em-
presários a gestores, desde membros dos conselhos de administração a auditores,
desde oficiais de compliance ou de controles internos a integrantes de comitês
1
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

de Ética. Por que será? Em boa parte porque muitos carecem de conhecimento
de causa. Assim, quando chamados a avaliar desvios morais, a situação se com-
plica. O que fazem então? Opinam de acordo com seus próprios valores e vieses.
Ou pisam e repisam um lugar-comum: o caráter das pessoas é algo inerente a
elas, como que impresso em seu DNA – uma divisão imutável entre maçãs boas
e maçãs más, e nada se pode fazer a respeito. Outra fábula.
Em função disso, o consenso se torna quase impraticável e as reuniões se
arrastam intermináveis. Aí, quando o tempo se esgota e a exaustão toma conta
de todos, improvisam-se acordos. Das maiorias ocasionais que se formam, dois
arranjos sobressaem.
O primeiro é o da “turma dos durões”, que não transige quando os implicados
são pessoas humildes – bagres, na linguagem corporativa. Quem compõe essa
turma? Colaboradores que cultivam sólidos princípios e brigam por eles. Mas
também, e de forma oportunista, gestores que posam de vestais e cujas expertises
são o jeitinho e o tapetão. Não faltam, é claro, burocratas que fazem bravatas
como se fossem corregedores incorruptíveis nem infratores enrustidos que
vestem o figurino de inquisidores para fingir honradez. Há, ainda, funcionários
inseguros que acham mais confortável seguir a corrente do que remar contra
ela. Nessas condições, quem fizer uma análise menos apaixonada leva a pecha de
complacente. E quem assiste à cena logo pensa em pantomima.
O segundo arranjo, no extremo oposto, ocorre quando caciques estão im-
plicados. Forma-se então a “turma dos pragmáticos”, que proclama isenção e
rigor, mas simula um faz de conta para deixar tudo como está. Inventa des-
culpas, justificativas, circunstâncias atenuantes. Requer vistas dos depoimentos
e, passado um bom tempo, não dá satisfação. Volta e meia exige mais e maiores
esclarecimentos, invoca precedentes, esbanja prudência ou capricha nas firulas
jurídicas. Por fim, se não houver jeito, arquiva a denúncia. Quem não se conforma
com isso, ainda que recite itens do código de conduta da empresa, vira motivo
de chacota: não sabe ler as entrelinhas, não entende as exceções, não capta as
sutilezas do caso. E quem assiste à cena logo pensa em farsa.
O que une as duas “turmas”? O giro em falso. Faltam referências que orga-
nizem o pensamento. Falta repertório para enfrentar os problemas de forma
objetiva, explícita e verificável. Falta conhecimento de causa.
O presente livro inova a esse respeito. Faz valer o tempo que se gasta para
lê-lo. Oferece chaves para entender os fatos morais e para decidir a respeito.
Apresenta uma bateria de conceitos científicos que clarificam situações comuns
ao mundo dos negócios. Frente aos dilemas que as práticas cotidianas ensejam,
orienta e capacita os leitores a se posicionarem de modo articulado. E permite
várias leituras:
1. Serve como plano de aula em cursos de graduação, de especialização ou
de pós-graduação.
2
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

2. Funciona como roteiro de autoaprendizagem para executivos que lidam


com questões morais.
3. Constitui material de referência, fonte de inspiração ou banco de casos
para que comitês de ética e auditores encontrem formas alternativas de
tratar os desvios de conduta.
O livro não precisa ser lido linearmente, indo do primeiro ao último capítulo.
Uma primeira leitura, expedita, vai direto aos exercícios que se encontram no
final dos capítulos e se vale dos gabaritos lançados no Anexo. Esta abordagem
acaba sendo um convite para conhecer os conceitos que o livro apresenta. Há,
porém, três outras leituras possíveis.
A segunda das quatro agrega uma conceituação básica que permite caracte-
rizar os fenômenos morais de forma precisa. A terceira acrescenta dois assuntos
de relevo: o objeto de estudo da Ética e o contexto contemporâneo. A quarta,
por fim, nada exclui e aborda uma preciosa lição – os modos de tomar decisões
éticas.

Formas de ler o livro


Objeto  Conceitos Tomadas Exercícios
Conteúdo
e contexto básicos de decisão e gabaritos
(capítulos)
(1 a 3) (4 a 7) (8 a 10) (1 a 9 + Anexo)
Leitura 1 X
Leitura 2 X X
Leitura 3 X X X
Leitura 4 X X X X

Como indicamos, ao final de cada capítulo há um exercício que aplica os


conceitos aprendidos ao cotidiano empresarial. O presente capítulo, por exemplo,
oferece ao leitor a oportunidade de traçar o próprio perfil moral.
Na sequência, o segundo capítulo posiciona a Ética como ciência social e
resgata a especificidade de seu objeto de estudo. Cita, a cada momento, exem-
plos que refletem a realidade dos negócios. Em seu fecho, confronta “fato
moral” e “fato social” (moralmente neutro) e exercita a compreensão de sua
diferença.
O terceiro capítulo desenha o contexto histórico atual e mostra os crescentes
riscos que tornam as empresas ainda mais vulneráveis. Confere particular des-
taque ao risco de reputação. Seu exercício final versa sobre a legitimidade ética
de determinados eventos.
O quarto, o quinto e o sexto capítulos vinculam interesses objetivos e agentes
sociais, como se pode visualizar na Figura 1.1.
3
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Figura 1.1  Os agentes sociais e seus interesses.

De forma agrupada, podemos dizer que os interesses pessoais e grupais


reúnem “interesses particulares” voltados para a produção do bem restrito, uma
vez que se restringem aos agentes individuais e aos agentes grupais (organizações,
categoriais sociais e classes sociais). Não abrangem, portanto, as coletividades
inclusivas – as sociedades e a humanidade – que buscam satisfazer “interesses
gerais” voltados para a produção do bem comum.
De fato, os agentes sociais procuram satisfazer interesses objetivos: fatores
existenciais valiosos que mobilizam seus portadores em sua defesa e realização.
Os indivíduos têm interesses pessoais, portanto restritos, e querem obter um
bem que os atenda, seja de forma benigna, seja de forma nociva. Vale dizer, têm
a opção de realizar os próprios interesses com base em práticas consensuais que
são inofensivas – donde o conceito de autointeresse – ou com base em práticas
abusivas que são malignas – donde o conceito de egoísmo.
De modo simétrico, grupos têm interesses grupais, portanto restritos, e pro-
curam gerar um bem que os satisfaça. Isso é feito de forma benevolente, sem
prejudicar outrem, com base no altruísmo restrito; ou de forma danosa, lesando
outrem, com base no parcialismo.
Finalmente, as sociedades e a humanidade procuram satisfazer interesses
gerais ou geram o bem comum por meio de práticas que são consensuais,
porque abrangem todos os seus membros e, assim, interessam a todo mundo.
As formas de realização são a produção do bem público do altruísmo imparcial
(interesses sociais) ou a generosidade do altruísmo extremado (interesses
humanitários).
4
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

Esses vários conceitos se articulam em duas grandes rubricas: o particularis-


mo, que é abusivo porque prejudica outros, e o universalismo, que é consensual
porque interessa a todos.
Ao final de cada um desses três capítulos (do quarto ao sexto) há um teste
que aplica os conceitos formulados e consolida sua assimilação.
O sétimo capítulo é dedicado por inteiro a casos reais em que os vários concei-
tos aprendidos são investidos. Os comentários que constam do gabarito procuram
assegurar seu entendimento.
Por fim, os capítulos oitavo e nono deixam de lado as qualificações dos fatos
morais e enveredam para as tomadas de decisão. Mostram como os dilemas éticos
não se limitam a escolhas entre o bem e o mal, mas podem – surpreendentemente
– significar opções entre o bem e o bem. E não só.
Podem igualmente levar a escolhas entre o mal e o mal (o mal menor para
afastar um mal maior) ou entre o mal e o bem (o mal necessário para obter um
bem maior). Essa extraordinária combinatória abala o senso comum e enriquece
sobremaneira o leque das escolhas. Mostra que a Ética não é uma reflexão insossa
nem se reduz à ladainha do bom-mocismo.
Exercícios completam os Capítulos 8 e 9 e desenvolvem as duas teorias cientí-
ficas que fundamentam as decisões: a teoria ética da convicção (tolerância zero)
e a teoria ética da responsabilidade (análise situacional).
O décimo capítulo representa um fecho que sublinha a relação entre co-
nhecimento ético e criação de valor.

1.2.  O estudo da moralidade


O presente livro mostra o quão clara, objetiva e atraente pode ser uma disciplina
que muitos consideram obscura, subjetiva e rebarbativa. Vale-se da análise de casos.
E, em vez de escolher casos clássicos ou já conhecidos, investiga preferencialmente
situações que palpitam nas notícias de jornais e que podem incessantemente ser
substituídas por outras mais recentes. Resgata a lógica específica dos fenômenos
morais e evidencia como os conceitos éticos dão conta da realidade e, em especial,
assinalam o possível impacto das decisões e ações sobre o entorno social e o meio
ambiente. Afinal, os resultados empresariais não decorrem apenas da eficiência na
execução de metas, dependem da credibilidade de quem os produz. Moeda escassa
e fugidia, a credibilidade anda no fio da navalha: basta um deslize para se esfarelar.
Outro diferencial em relação aos estudos tradicionais são os conceitos cien-
tíficos que usaremos como matriz explicativa. Sua natureza universal e sua
aplicação empírica vão colocar “ordem na casa”. Ou seja, esclarecer dúvidas e
controvérsias. De fato, dois fatores turvam nossa capacidade analítica. Primeiro, a
mídia global apresenta sem cessar a variedade dos costumes existentes no mundo
e, em consequência, revela o relativismo moral. Isso atordoa as pessoas à medida
que as tira de sua zona de conforto quando descobrem que há outros modos de
5
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

viver e de se postar diante do mundo. Segundo, há tantas doutrinas filosóficas


no campo da Ética e tamanhas disputas entre elas, que sobra a impressão de que
todos os gatos são pardos – afinal, a qual delas filiar-se e por quê?

Crenças infundadas
Por milênios as mulheres sofreram um tratamento parcial baseado em suposições
sobre diferenças entre os sexos. Leis e costumes puniam as mulheres que faziam
sexo fora do casamento muito mais severamente do que os homens que faziam o
mesmo. Pais e maridos privavam as mulheres do controle sobre sua sexualidade,
reprimindo-as na aparência e nos movimentos. Sistemas jurídicos absolviam es-
tupradores ou atenuavam sua punição caso se julgasse que a vítima despertara
um impulso irresistível com seus trajes ou comportamento. As autoridades tra-
tavam com descaso as vítimas de assédio, perseguição e espancamento, supondo
que tais crimes eram características comuns da corte ou do casamento.
Pinker, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 225.

O que é certo para alguns não o é para outros tantos. Ora, haveria como en-
frentar as dificuldades que o relativismo moral e as diferentes filosofias morais
trazem à baila? Certamente. A Ética se desenvolveu como estudo filosófico entre
os gregos há 2.500 anos, e sua abordagem permaneceu hegemônica até os dias
atuais. No final do século XIX, porém, uma abordagem inovadora e concorrente
fundou a Ética como ciência social. Para tanto, foram decisivas as contribuições
dos sociólogos Émile Durkheim e Max Weber.
A Ética Científica, como corpo de conhecimentos, tem a virtude de nos for-
necer conceitos precisos e seguros, que transcendem as especulações ideológicas,
sem deixar de reconhecer o caráter histórico das moralidades. Seu estudo nos
permite abordar e tornar inteligíveis os fatos morais, com a competência de um
mestre artesão. Mais ainda: por ser laico, o estudo científico da moralidade não
mantém vínculos com crenças religiosas, uma vez que estas se fundam em dogmas
inquestionáveis e se apoiam em valores gravados em pedra.
O universo moral é multifacetado. Isso deixa perplexas as mentes mais in-
gênuas. Embora existam dicotomias – o herói e o vilão, a cara e a coroa, as luzes
e as trevas –, os fatos morais nem sempre são bicolores ou exibem perfeitas
dualidades. O mais frequente são situações que apresentam múltiplos matizes.
Isso costuma perturbar, pois é mais fácil lidar com polaridades que se excluem
mutuamente, mais cômodo estigmatizar o “mal” e celebrar o “bem” como se
fossem categorias absolutas.
Ante essas incógnitas, o que nos resta? Examinar os avanços teóricos e pro-
curar saber se existem outras formas de tomar decisões éticas que não sejam
exclusivamente binárias. A boa notícia é que estas formas existem.
6
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

Citemos uma modalidade. Em vez de escolher entre o bem e o mal, como é


costume fazer, podemos enfrentar situações em que “se faz opção entre o bem e
o bem”. Surpresa? Não, tarefa delicadíssima e nada incomum. Se não, vejamos:
j
Pagar uma dívida em dia ou emprestar dinheiro a um amigo necessitado?
j Solidarizar-se com um colega injustiçado, assumindo o risco de ser demi-
tido, ou não se comprometer para manter o emprego?
j Cursar um MBA que exige três noites por semana e um sábado quinzenal,
além de muitas horas de estudo, ou dedicar o tempo livre aos dois filhos
menores e à mulher que também trabalha?
j Denunciar a empresa que o emprega pela disposição irresponsável de
resíduos químicos ou participar de um grupo de trabalho encarregado
de encontrar soluções de manejo adequado?
j
Aceitar fontes anônimas de denúncia de malfeitos ou admitir tão somente
fontes identificadas de denúncia?

Nesses casos, não existem regras preestabelecidas. Tomar posição ou definir


preferências supõe um bocado de discernimento, seja para fixar uma tábua de
valores, seja para avaliar consequências e calibrar custos e benefícios. Em ambas
as hipóteses, as escolhas provocam desgastes, porque ninguém sai ileso ao abordar
dilemas do gênero.

Em alto-mar
Numa plataforma petrolífera, eclode um princípio de incêndio. Os funcionários
acorrem para debelar o fogo. Na refrega, e surpreendendo a todos, um dos petroleiros
se lança em meio à fornalha. Seu corpo fica carbonizado.
Todos sabem que o colega sofria de depressão crônica e que não largava o em-
prego porque tinha mulher e dois filhos para sustentar. O que fazer? Como relatar a
ocorrência à companhia?
Declarar que foi um suicídio ou um acidente? No primeiro caso, a família não seria
indenizada e ficaria à míngua; no segundo, não.

Pense no que faria. Qual curso de ação adotaria? Raciocinemos. O que nos
inclina para a opção do acidente? A compaixão para com a família do petroleiro
e uma eventual ojeriza em relação às companhias de seguros. Mas quais são as
implicações de cada uma dessas decisões?
Ao adotar o cenário do acidente, presta-se solidariedade à família desamparada
num gesto de empatia quase comovente. Entretanto, quem banca a indenização?
A companhia de seguros. Só que isso denuncia implicitamente a existência de
deficiências na manutenção da plataforma e pode acarretar uma investigação.
Em consequência, não é incabível que a extração de petróleo seja suspensa, o
7
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

que afetaria a receita da empresa e a tornaria vulnerável a variados tipos de


investigação. Mais ainda: a demissão de boa parte dos embarcados poderia ser
cogitada, não é mesmo?
Agora, ao relatar a verdade sobre o suicídio, cumpre-se uma obrigação
profissional e não se provocam perdas à companhia de seguros nem à empresa
petrolífera. E melhor: não se colocam em xeque os próprios empregos. Em
compensação, a família do petroleiro fica em situação precária, e ações de solida-
riedade, que não façam caridade com o chapéu alheio, tornam-se imperativas...
Atordoante dilema.
Esses dois cenários nos levam a graves questionamentos: será que o bem de
poucos justifica o mal de muitos? Ou, inversamente, será que o bem de muitos
justifica o mal de poucos? Em quais circunstâncias podem prevalecer os interesses
da maioria em relação aos da minoria? Ou, inversamente, quais interesses da
minoria devem ser considerados intocáveis? São questões nada triviais que
merecem respostas fundamentadas.
Nessa toada, vejamos alguns dilemas da espécie:
j
Quantos funcionários, por espírito de corpo, presenciam deslizes de seus
chefes ou pares, fazem vista grossa ou se omitem na hora de notificar os
fatos às áreas competentes?
j Quantos gestores, em situação de crise, deixam de demitir seus apani-
guados (favoritos, protegidos ou afilhados) e sacrificam colaboradores
competentes?
j Quantos contadores, a mando de seus superiores, maquiam os balanços
para apresentar os resultados esperados pelos acionistas?
j Quantos médicos fornecem atestados falsos para que parentes ou amigos
faltem ao trabalho?
j Quantos advogados, por subserviência, elaboram pareceres que vão ao
encontro das opiniões de seus superiores?
j Quantos policiais encobrem malfeitos de seus colegas de farda por lealdade
corporativa e, em razão disso, distorcem fatos e desonram seu juramento
de bem servir à sociedade?
j
Quantos parentes ou amigos, em função de seus laços pessoais, se pron-
tificam a prestar falsos testemunhos para afastar as suspeitas que pairam
sobre um deles?

Como enfrentar esses dilemas? Uma chave pode iluminar as questões:


perguntar-se a respeito da natureza dos fins ou saber a quem servem os eventos.
Afinal, ações e decisões estão condicionadas por interesses objetivos. Quais inte-
resses estão sendo perseguidos? Interesses particularistas que se valem de práticas
abusivas ou interesses universalistas que se valem de práticas consensuais? Uma
linha divisória confronta os dois posicionamentos teóricos:
8
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

j
O universalismo tem caráter consensual porque o bem gerado interessa
a todos: tanto o bem restrito (individual ou grupal) como o bem comum
(social ou humanitário) se realizam sem prejudicar ninguém (“cada um
recebe o que é seu”). Lógica de inclusão.
j
O particularismo tem caráter abusivo porque o bem de uns causa mal
aos outros: tanto o bem restrito individual (“cada um por si”) como o
bem restrito grupal (“somos mais nós”) se realizam à custa dos interesses
alheios. Lógica de exclusão.

Vejamos a Figura 1.2.

Figura 1.2  A linha divisória.

Posto isso, a resposta aos casos anteriores salta aos olhos. Em todas as situa-
ções retratadas, interesses particularistas prevalecem em detrimento de interesses
universalistas: perdem as empresas (acionistas e investidores) com a omissão
dos funcionários, o favoritismo dos gestores, a maquiagem dos balanços, os
pareceres subservientes ou os falsos atestados médicos; perde a sociedade com
o corporativismo dos policiais ou o paroquialismo dos parentes e amigos que
mentem para beneficiar membros de seu círculo íntimo. Ganham, obviamente,
aqueles que agem segundo os preceitos particularistas e o fazem à custa dos
outros.
Vemos, então, que a complexidade dos eventos morais só pode ser resolvida
com instruída reflexão, pois exige ferramentas rigorosas que permitam observar,
descrever, investigar e tornar inteligíveis os porquês das ações. Somente assim
serão legitimadas, ou não, ações e decisões.
Em conclusão, precisamos de um “mapa da mina” para guiar nossos passos.
Eis a que se propõe o presente livro.
9
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

1.3.  Exercício: O perfil das posturas morais (1)


Logo a seguir estão listadas 10 situações em que dois conjuntos de proposições
deverão ser classificados. Confira a cada conjunto uma nota que expresse aquilo
que você costuma fazer (escreva na coluna à direita).
O procedimento é o seguinte: você é obrigado a distribuir três pontos in-
teiros (não há fração) entre os dois conjuntos, em função da importância que
cada um representa para você. Assim, as possibilidades de distribuição são
apenas quatro:

1° conjunto: letra A 3 0 2 1
2° conjunto: letra B 0 3 1 2
SOMA 3 3 3 3

No final, há um quadro de tabulação. As duas colunas preenchidas darão um total


de 30 pontos, ou seja, 10 situações multiplicadas por três pontos. Lembretes úteis:
j
Não existem respostas certas ou erradas.
j Você precisa ser absolutamente sincero, sem o que o exercício não terá
valor algum para você.
j
Não se trata de pesquisa de opinião: não diga o que você pensa, gostaria
de ser ou de fazer se o mundo fosse diferente, mas o que você efetivamente
faz (as razões não importam).

Situação 1
Evito ao máximo subornar fiscal, bem como sonegar impostos. Mas, se um fiscal forçar
a barra, eu pago, e se minha empresa estiver em dificuldade, sonego e pronto. Nos A
negócios, bom senso e pragmatismo são fundamentais.
Estou convencido de que um comportamento reconhecido como idôneo pelos
clientes traz bons negócios em prazo médio e longo. De modo que a sonegação de
B
impostos ou o suborno de fiscais são práticas difundidas que só merecem rejeição
porque prejudicam a coletividade, bem como a imagem da empresa.

Situação 2
Lamento que muita gente lance mão de expedientes no velho estilo do Brasil tradicio-
nal. Em economias abertas, quem não fornece qualidade, atendimento personalizado,
A
preços competitivos, garantias pós-venda está fadado a desaparecer. Minha empresa
veio para ficar e não para fazer negócios com uma visão imediatista.
Penso que não cabe misturar negócios e questões morais. Afinal, quem põe capital
de risco quer ganhar dinheiro; não está aí para fazer caridade ou para bancar o mis-
sionário. Vamos deixar de hipocrisia: quem faz negócios não pode ser santo. Diante B
das muitas complicações que existem no Brasil, é preciso ter jogo de cintura para que
as coisas funcionem. Quem tem juízo sabe como se virar.

10
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

Situação 3
Acho que maximizar os lucros dos acionistas não pode ser o único dínamo
das empresas: estas precisam agir com claro sentido de responsabilidade social. Por
A
exemplo, devem repartir ganhos com clientes e funcionários, além de respeitar o
meio ambiente.
Creio que a frase anterior só tem sentido se os demais agentes também forem
contidos em seu apetite, tais como as autoridades com seus tributos, os sin-
dicatos com seus pleitos, os ecologistas com suas exigências, os fornecedores B
com seus preços, os bancos com seus juros e suas taxas de serviços. O resto é
conversa.

Situação 4
Penso que a única maneira de sobreviver para as empresas é preparar-se para o
que der e vier. A concorrência está cada vez mais acirrada e desleal. Seria ingênuo
arriscar o negócio bancando o bom moço. Cabe um acordo entre as empresas para A
que não haja concorrência predatória e para que não se ponha em perigo o emprego
de muita gente.
Não importa o tipo de concorrência, se estrangeira ou nacional. Quem
é competente sabe reduzir custos e repensar o próprio negócio, sabe ino-
B
var sempre e lançar produtos novos, com qualidade e bom design. Apelar
para o vale-tudo é uma atitude desesperada de curto alcance.

Situação 5
Se eu souber que a empresa em que trabalho vai adquirir uma empresa concorrente
cujas ações estão a um preço muito baixo, compro um lote de ações, já que seu valor A
certamente subirá.
Não compro ação alguma, a não ser que a minha empresa autorize abertamente
tal procedimento porque, caso contrário, eu estaria me valendo de informações B
confidenciais que podem trazer prejuízo à operação como um todo.

Situação 6
Se eu, como presidente de uma empresa, souber que um concorrente acabou de
desenvolver uma nova tecnologia que vai lhe garantir boa fatia do mercado, faço
com que um dos especialistas desse concorrente me repasse o know-how. Como A
todo mundo procura se defender, eu também me adapto às circunstâncias, embora
o faça a contragosto. Quem está na chuva é para se molhar.
Procuro me manter sempre atualizado e não me deixo surpreender pelos concorren-
tes. Lanço produtos com inovações, me valendo apenas da inteligência competitiva,
B
e não da espionagem econômica. A meu ver, quem se socorre de manobras escusas
não merece o respeito de ninguém e demonstra miopia empresarial.

11
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Situação 7
Acredito que as empresas devem adotar políticas criteriosas na área da publicidade,
em termos de qualidade dos produtos ou dos serviços prestados, no atendimento aos
clientes e nos preços competitivos. Enganar os clientes ou omitir deficiências pode
A
realmente dar resultados imediatos, mas está errado. No mínimo, cria problemas com
o Código de Defesa do Consumidor e o Procon, pode vazar para a mídia e chegar até
à Justiça. Não faço negócio com espertezas.
Seria ingenuidade minha lançar um produto e não ressaltar todas as suas quali-
dades, ao mesmo tempo em que eu omito naturalmente as possíveis deficiências
ou insuficiências. Isso não quer dizer que eu deixe de ter produtos competitivos.
O mercado está aberto para qualquer um poder comparar os produtos e os
B
preços, os serviços prestados e o tipo de atendimento. Os clientes não são
crianças que devem ser pajeadas. Cabe a eles apreciarem a publicidade que se
faz e aquilo que compram. Minha responsabilidade é para com os acionistas
em primeiro lugar.

Situação 8
Obedeço à praxe do mercado e considero que é uma atitude de boa educação
oferecer brindes, presentes e gratificações a compradores e gerentes das empresas
A
clientes. Danço conforme a música, como todo mundo faz. Aliás, quem deixa de
fazê-lo perde negócios e reduz suas próprias oportunidades.
Acho que é preciso estabelecer uma política explícita e restritiva quanto a aceitar
ou oferecer convites, favores, brindes e presentes. Trata-se de um dos itens que um
B
código de conduta moral deve ter. Funcionário sem clara orientação, agindo apenas
segundo a própria cabeça, acaba ficando num mato sem cachorro.

Situação 9
Sendo presidente de uma empresa, nada vejo de errado em possuir ações de uma
companhia concorrente. É um modo inteligente de estabelecer uma boa parceria.
E mais: não vejo por que não sentarmos juntos para procurar regular o mercado
A
(acabando com a guerra entre os concorrentes) e para descobrir o melhor método
de contornar tantos impostos – afinal, a carga tributária no Brasil é altíssima e muito
mal distribuída.
Acho inadequado possuir ações de um concorrente se eu for presidente de uma em-
presa. Certamente haverá conflito de interesses e eu ficaria impedido de tomar certas
decisões. E mais: é um absurdo combinar os preços dos produtos com as empresas
B
concorrentes porque isso prejudica os clientes. Mas cabe apoiar-se mutuamente no
que diz respeito aos interesses do setor para pressionar o Executivo e o Legislativo e
conseguir diminuir a carga tributária.

12
Capítulo 1: Um tempo bem empregado

Situação 10
Não basta elaborar um código de conduta moral, é preciso conscientizar os funcioná-
rios a respeito das normas morais nele contidas e verificar o que fazem sem esmorecer. A
Isso significa que o código de conduta é para valer e diz respeito às práticas de gestão.
Códigos de conduta acabam servindo para jogar poeira nos olhos do pessoal de fora.
Quem conhece a realidade dos negócios sabe disso. Afinal, o que se escreve não é
para ser cumprido, caso contrário, não se faria mais negócio algum. Felizmente, nós B
aprendemos a dissociar desde sempre o discurso dos atos. Então, vamos deixar isso
para lá e parar com esses modismos tolos.

Tabule os resultados a seguir.

Tabulação
Cuidado, as letras não seguem a ordem!

Identifique as notas que você deu a cada conjunto nas 10 situações vistas e
lance a nota respectiva diante de cada letra. No final, some as notas por coluna.

SITUAÇÃO COLUNA I COLUNA II


1. B= A=
2. A= B=
3. A= B=
4. B= A=
5. B= A=
6. B= A=
7. A= B=
8. B= A=
9. B= A=
10. A= B=
TOTAIS

j A soma das duas colunas deve dar 30 pontos.


j O gabarito do perfil das posturas morais (1) se encontra no Anexo.

13
Capítulo

2
A ética como ciência social

2.1.  Há luz no fundo do túnel?


Quem de nós não se sente incomodado quando provocado por questões
morais? Quais executivos não ficam inseguros quando confrontados com desvios
de conduta? Quantos membros de comitês de ética não ficam com gosto amargo
na boca, insatisfeitos com as sanções que subscreveram? Dois traços unem essas
situações: uma boa dose de desorientação e um parco conhecimento de causa.
A perplexidade ocorre porque o senso comum joga lenha na confusão: assimi-
la Ética e juízo de valor, Ética e moral, Ética e códigos morais. E a ambiguidade
vocabular não só gera mal-entendidos, mas embute um viés prescritivo: muitos
executivos associam a Ética a sermões e, em razão disso, ficam arredios quando
o tema vem à baila.
As deficiências também se devem à ambiguidade dos ensinamentos morais no
Brasil. Basta lembrar a clássica dissociação entre o que se diz e o que se faz – “Faça
o que eu digo, não faça o que eu faço”. E quando nossos interesses correm perigo,
então, manda-se a Ética às favas: “Farinha pouca, meu pirão primeiro.” Dessas
observações desponta uma evidência: os assuntos morais perturbam e exigem
que se tome uma atitude. Daí a vontade de nos livrarmos logo dessa amolação.
Vários fatores condicionaram historicamente nossas incertezas. Citemos alguns.
O de maior peso específico foi o sistema de colonização de exploração (plantation
system). Visava exportar produtos tropicais em grande escala com base no trabalho
forçado e se disfarçou em ação missionária – evangelizar os índios e civilizar os
negros. Sua eficiência decorreu de um metódico processo de desumanização dos
escravos (vistos como gado) e se socorreu de uma crueldade institucionalizada e
sem freios. Em contrapartida, os senhores das escravarias se consideravam pessoas
decentes e amantes de Deus. Esse sistema resultou em um vale-tudo predatório,
15
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

uma devastadora espoliação de riquezas que mais lembra a rapina de mercenários,


sem que ninguém se incomodasse com isso: era simplesmente natural.
Outro fator de relevo foi a voracidade tributária e as profusas regulamentações
do Estado fiscalista e burocrático que provocaram reações de desobediência civil:
sonegação fiscal, desrespeito à lei, contrabando e rebeliões coloniais, numa clara
dissociação entre as declarações públicas (todas honoráveis) e os atos praticados
(gananciosos e espoliativos). Donde a tradição secular do patrimonialismo que
confunde patrimônio público e patrimônio privado – esse saque ao erário que até
hoje faz estragos.
Outros elementos da equação foram os controles ineptos e as raras sanções
contra as práticas ilícitas que institucionalizaram a impunidade – uma fragilidade
reconhecida por todos. Dessa miscelânea resultou uma dupla moral que deixa a
gente brasileira entre assombrada e aturdida, uma coexistência paradoxal entre
dois códigos de conduta que se contradizem frontalmente – a moral da integri-
dade e a moral do oportunismo –, conforme detalhados no Anexo (Gabarito 1).
Assim sendo, poucas pessoas se sentem plenamente confortáveis no papel de
“juízes das condutas alheias”.

O currículo
Um advogado graduado pela Faculdade de Direito da PUC trabalhou num peque-
no escritório de advocacia e se saiu tão bem que lhe apareceu a oportunidade de se
candidatar para um escritório de grande porte.
Ouviu dizer, entretanto, que a área de recursos humanos não contratava ninguém
da PUC, a não ser que tivesse se formado entre os 10 primeiros da turma. Ele tinha
sido o vigésimo primeiro.
Escreveu então em seu currículo que, ao se graduar, foi o décimo da turma. Achava
que reunia as qualidades necessárias para desempenhar a função melhor do que
muita gente que atuava no setor.

Nessa minha linha, citemos ainda:

Yahoo!
O presidente da Yahoo!, Scott Thompson, teve de se demitir do cargo em maio
de 2012, por ter mentido sobre suas credenciais acadêmicas. De fato, não havia
cursado a graduação em ciência da computação como constava de seu currículo
profissional. Foi denunciado por um membro do Conselho de Administração, re-
tratou-se, pediu desculpas aos colaboradores, mas não conseguiu recuperar sua
autoridade moral.

16
Capítulo 2: A ética como ciência social

Como analisar essas situações? É fácil constatar que candidatos a


emprego costumam “embelezar” currículos e feitos profissionais. Mas será
que a disseminação de uma astúcia a torna legítima? Nos moldes da moral
da integridade brasileira, ou da moral puritana norte-americana, a resposta
é não.
Acontece que, dependendo dos países e das épocas, as morais são múltiplas.
O que vale em um contexto histórico determinado não vale necessariamente
em outro. “Oh, tempos, oh, costumes!”, observou Cícero. Logo, como fica? Há
algum modo de identificar e caracterizar a situação de forma objetiva e imparcial?
Existe alguma matriz teórica que torne compreensível e comparável a enorme
variedade das regras morais? Haveria algum corpo de conceitos que, submetido
a testes de realidade, apreenda e explique a diversidade dos fatos morais? Res-
postas: três vezes sim.
No domínio das relações sociais, a chave de decifração que ordena a
moralidade diz respeito ao impacto das decisões e ações sobre os outros,
ou seja, capta o modo como os agentes afetam os interesses alheios: para
o bem (provocam efeitos positivos?) ou para o mal (provocam efeitos nega-
tivos?).
A referência aos “outros” implica levar em conta não só os que fazem parte de
nosso círculo íntimo, tais como parentes e amigos, mas também os membros das
organizações às quais pertencemos ou com as quais mantemos relações. Inclui
ainda os conterrâneos da sociedade inclusiva e os demais seres humanos (nossos
semelhantes ou a humanidade). E não só.
Abarca os animais que conosco convivem no planeta e cujo sofrimento
não pode continuar sendo ignorado: diante do horror de que padecem nos
criadouros e nos matadouros, e dada a sensibilidade de muitos deles (presença
de um sistema nervoso central), não seriam eles dignos de consideração
moral? Abrange também a natureza cujos recursos não podem ser esgotados
a ponto de inviabilizar a vida das gerações futuras. Afinal, causamos tantos
danos ao habitat que pusemos em risco a perpetuação da humanidade. E
por que isso? Porque, desde 1988, a pegada ecológica já ultrapassou mais
do que a capacidade de resiliência da natureza, ou seja, a pegada ecológica
consome mais recursos do que a capacidade de reposição da biosfera. Mantido
o ritmo atual, precisaremos de dois planetas por volta de 2030 e de quase
três planetas em 2050! De modo que, sem drásticas redefinições do modelo
civilizatório, caminhamos para uma derrocada ambiental semelhante ao
impacto do asteroide que colidiu há 65 milhões de anos na península de
Yucatán (México) e cujos efeitos foram devastadores. A luz solar foi bloqueada
e ocorreram chuvas ácidas, terremotos e tsunamis que extinguiram os dinos-
sauros e 70% de todas as espécies existentes. Vivemos, pois, um grave ponto
de inflexão.

17
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Figura 2.1 Cenários (Global Footprint Network).

Vemos que a população mundial consumiu, em 2010, 150% dos recursos


que a Terra pode gerar em um ano e que nosso modo atual de vida provoca
um processo contínuo de degradação das condições ambientais. Caso ocorram
mudanças drásticas e substanciais nesse panorama (desafio de extraordinária
magnitude), alcançaremos o equilíbrio em 2050. Caso contrário, as condições
de habitabilidade humana do planeta estarão seriamente comprometidas e as
gerações futuras sofrerão terríveis consequências.
Em decorrência, qual é o cerne da problemática ética? As ações dos agentes
devem passar pelo seguinte crivo: elas respeitam os interesses legítimos dos ou-
tros e os beneficiam ou elas desrespeitam os interesses legítimos dos outros e os
prejudicam?1 A escolha entre fazer o bem ou o mal aos outros distingue os fatos
morais dos demais fatos sociais.
Assim, voltando ao caso em pauta, os candidatos que maquiam seus currículos
apostam na boa-fé dos entrevistadores (“se colou, colou; se não colou, colasse”)
ou, quem sabe, jogam com a preguiça deles em checar os dados. A pergunta a
ser feita então é: prejudicam alguém ou não?
Na fria análise dos fatos, a resposta é: com certeza, a ação gera prejuízos a
outrem. Como sabemos disso? Se o advogado conseguisse a vaga, teria lesado

Contrário senso, ilegítimos são os interesses abusivos, os caprichos ou simplesmente os privilégios que se
1

pretende obter com base na força ou na posição social. Por exemplo, exigir que um avião comercial faça
escala não prevista para atender a autoridade, ou reivindicar atendimento preferencial por ser alto e forte.

18
Capítulo 2: A ética como ciência social

pelo menos um dos candidatos que preenchia os requisitos. Além do mais, teria
enganado os responsáveis pela seleção, pois a trapaça teria conseguido nivelar
os candidatos. Dirão: o critério restritivo do escritório de advocacia não poderia
eliminar candidatos talentosos? Poderia. Mas isso justifica a fraude? Ou melhor:
é legítimo burlar os outros para satisfazer os próprios interesses? Tais asserções
se aplicam igualmente ao caso do ex-presidente da Yahoo! que vendeu uma
imagem adulterada de si mesmo, procurando encantar os acionistas com sua
formação universitária.
Dois campos se formam. Uns respondem “não” a ambas as perguntas; outros
acham que, para sobreviver na selva, quaisquer meios valem. Eis aí uma questão
moral que exige posicionamento de nossa parte.
Em resumo, podemos ou não simpatizar com o procedimento do advogado;
podemos ou não desculpar seu jeito malicioso; podemos ou não tolerar o que
alguns dizem ser praxe do mercado. A análise ética não emite opiniões, mas
procede de forma obstinadamente objetiva. O que se observa? O advogado
prejudicou outros. Ainda que a manobra fosse aprovada, ou moralmente aceita,
por alguns círculos e até tolerada de forma dissimulada pela sociedade em geral,
o conhecimento ético traça um divisor de águas que não se sujeita ao relativismo
moral. Seu âmbito é teórico, abstrato-formal, anistórico, universal.
Quanto a Scott Thompson, o fato de converter sua graduação (de ciências
contábeis para ciências da computação) desmereceu suas qualidades de adminis-
trador, erodindo por inteiro sua credibilidade. O engodo tinha o propósito de
legitimar ainda mais sua contratação como CEO de uma empresa de tecnologia
da informação. Mas o tiro saiu pela culatra, à medida que levantou suspeitas
sobre seus demais atributos.
Em resumo, para realizar seus interesses, os agentes podem escolher três
cursos de ação: 1) causar malefícios aos outros (curso eticamente negativo);
2) não causar benefícios nem malefícios aos outros (curso eticamente neutro);
3) causar benefícios aos outros (curso eticamente positivo). Em consequência,
enquanto a Ética estuda o primeiro e o terceiro cursos de ação, a sociologia se
ocupa do segundo.

2.2 Ética: polêmicas e abordagens


A palavra “ética” se origina do grego ethos, que vem a ser o caráter distintivo, os
costumes, hábitos e valores de determinada coletividade ou pessoa. Foi traduzido
em latim por mos – ou mores no plural –, que significa também conjunto de
costumes ou de normas adquiridas por hábito. A palavra moral, em português,
deriva daí.
Na dinâmica da linguagem comum, o prestígio dos saberes forjou uma in-
finidade de metáforas, algumas até poéticas. Diz-se “geometria das emoções”,
“arquitetura organizacional”, “engenharia financeira”, “fisiologia política”,
19
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

“química do amor”, “pedagogia do exemplo”, “estética do crime”, “política do


corpo”, e assim por diante. A Ética, naturalmente, não resistiu a essa investida.
Não se diz o tempo todo “é preciso ter ética” ou “falta ética” a uma pessoa ou a
uma organização qualquer?
Dirão: qual é o problema? Nenhum, desde que a metáfora seja reconhecida
como tal e tenha um significado unívoco. Mas, quando o lugar-comum devora o
sentido original e os significados pululam, há razões para se preocupar. Por quê?
Porque as várias acepções da palavra “ética” baralham sua compreensão. Basta
perguntar a qualquer um o que ela significa e veremos a barafunda. Três grandes
linhas resumem a confusão.
A primeira acepção é descritiva e corresponde a juízo de valor. Por exemplo,
quem tem boa conduta ou segue os bons costumes é definido como “pessoa ética”.
Isso equivale à pessoa íntegra, virtuosa ou decente. Contrário senso, quem adota
condutas reprováveis ou não se conforma com as expectativas sociais é tachado
como sujeito “sem ética”, o que significa sujeito sem caráter ou sem escrúpulos.
Assim, em vez de corresponder a uma reflexão sistemática sobre um objeto de
estudo – sobre a especificidade de dados fenômenos reais –, a Ética é banalizada,
reduzida a um valor social, convertida em adjetivo.
A segunda acepção é prescritiva: ética e moral se tornam sinônimos, como se
fossem termos intercambiáveis. Ora, a que se refere a “moral”? A um sistema de
normas morais ou a um código de deveres. Não é usual dizer “ética cristã”, em
vez de moral cristã? Não se diz “ética socialista”, em vez de moral socialista? Ou,
ainda, não se equiparam a moral da Petrobras ou do Banco do Brasil a “éticas”?
Assim, os padrões morais que deveriam regular as condutas dos membros de
certas categorias sociais (por exemplo, os fiéis do cristianismo ou os militantes do
socialismo) ou de certas organizações (por exemplo, os integrantes da Petrobras
ou os do Banco do Brasil) são enfeixados sob o elegante rótulo de “éticas”. E a
balbúrdia está instalada – moral e Ética tornam-se indistintas.
Por extensão, os códigos de conduta profissional, os padrões que pautam as
profissões recebem também a denominação “éticas”. Por exemplo, diz-se “ética
dos administradores”, em vez de moral profissional dos administradores; “ética” dos
auditores ou “ética” dos engenheiros, em vez de moral que pauta as condutas
dos auditores ou dos engenheiros. E assim por diante.
Resultado: mais uma vez, some o caráter geral da Ética, rebaixa-se a dis-
ciplina teórica a prescrições mutáveis, normas efêmeras, regras transitórias que
as coletividades adotam ao sabor de suas contingências históricas. Lamentavel-
mente, esta segunda acepção é aceita por muitos acadêmicos que veem os termos
como equivalentes. Emparelham morais (conjuntos de normas que são relativas
no tempo e no espaço) e Ética (corpo de conceitos abstrato-formais que visa ao
conhecimento dos fatos morais). Desembocam, por conseguinte, em um impasse
teórico porque, sem estabelecer clara distinção conceitual entre os dois termos,
não há como conceber uma ciência da moral (a Ética).
20
Capítulo 2: A ética como ciência social

Pensemos na física: uma coisa são os objetos que caem quando soltos no ar
(o fenômeno empírico), outra coisa é a lei da gravidade (o conhecimento de
que objetos com massa exercem atração uns sobre os outros). Ou pensemos na
medicina: uma coisa são os sintomas que um paciente apresenta (febre intensa,
dor de cabeça e de garganta, coriza, inflamação das mucosas e das vias res-
piratórias etc.), outra coisa é a etiologia da doença (o conhecimento dos vírus
causadores da gripe, das formas de transmissão e de prevenção, dos tratamentos
existentes e de sua eficácia). Ou pensemos na economia: uma coisa é a cotação
diária dos preços das commodities (minérios e gêneros agrícolas), outra coisa é a
lei da oferta e da procura em um mercado concorrencial (o conhecimento que
explica as flutuações dos preços). Ou, indo para uma ilustração trivial: uma coisa é
a singularidade dos seres humanos (cada indivíduo difere do outro), outra coisa a
generalidade do Homo sapiens (o conceito científico que apreende as semelhanças
de base e expressa o padrão que irmana todos os indivíduos).
Em Ética, o processo é similar: uma coisa são os abortos clandestinos (os fe-
nômenos reais ou o fato moral a ser estudado), outra coisa é o conceito de aborto
(o conhecimento do que sejam a interrupção da gravidez e os fatores que levam
determinados países em determinadas épocas a proibir, tolerar ou permitir o aborto),
de maneira que o caráter universal dos conceitos (âmbito teórico) não pode ser
confundido com a relatividade dos fatos (âmbito histórico). Vejamos o Quadro 2.1.

QUADRO 2.1  O conceito (universal) e o fato (relativo)


Caracteres Teórico Histórico
Plano de análise Abstrato Concreto
Estatuto Formal Real
Ocorrência Atemporal Datado
Abrangência Generalidade Singularidade

É interessante notar que, no Brasil, a preferência geral recai sobre a palavra


“ética” em vez da palavra “moral”. Por que será? No imaginário popular, a “moral”
vem associada ao sinal negativo, porque a variabilidade das morais (fenômeno
universal) e o moralismo de fachada (componente da cultura brasileira) impedem
uma associação direta entre moral e condutas virtuosas. A Ética, em contraparti-
da, preserva intactos seus vínculos com valores como integridade, confiabilidade,
bons propósitos, daí o sinal positivo que a acompanha.
A terceira acepção conferida pelo senso comum à Ética é reflexiva. Corres-
ponde ao sentido de teoria que adotamos aqui – estudo sistemático de dado
objeto de investigação, ao mesmo título que o fazem outras ciências (a biologia, a
astronomia, a química, o direito, a psicologia, a geologia, a linguística, a economia,
21
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

a antropologia etc.). Neste caso, duas são as abordagens, uma tradicional, outra,
contemporânea:

1. A Ética Filosófica reflete sobre a melhor maneira de viver uma vida digna
ou sobre “o dever ser” (os ideais morais).
2. A Ética Científica estuda os fatos morais ou observa, descreve, investiga e
explica “o que é” (as evidências objetivas da moralidade como fenômeno).

Entendamos. Ao refletir sobre a melhor maneira de viver uma vida digna,


a Ética Filosófica tende a ser normativa e prescritiva, ou seja, tende a ditar
condutas. Nessa toada, presta-se a fazer sermões ou serve de base para discursos
moralizadores que exortam as pessoas a serem virtuosas ou as repreendem para
que se emendem. Notemos que dois juízos de valor repontam nesta definição
filosófica: “melhor maneira” e “vida digna”. Ora, qual é “a melhor maneira”, dentre
outras? Como caracterizar o que é uma “vida digna”, dentre outras vidas que
não o seriam? As respostas variam, se multiplicam e se confrontam ao sabor dos
pensadores. Isto é, trilham caminhos doutrinários, alinham evidências que não
são demonstráveis e que dependem das diversas visões de mundo dos autores.
Afinal, em face da pergunta crucial “qual vida merece ser vivida?” ninguém escapa
das determinações histórico-culturais ou das armadilhas ideológicas. De fato,
diferentes filosofias morais se digladiam ao longo da história do pensamento
ético, todas igualmente justificáveis e todas mutuamente excludentes. Apenas
para citar as mais importantes, vamos delineá-las no Quadro 2.2.

QUADRO 2.2  Apresentação de algumas filosofias morais


Filosofia moral Princípio moral Como proceder? Expoente
Mandamento divino Vontade de Deus Submeter-se aos desígnios Bispo Robert Mor-
divinos timer
Ética das virtudes Ação virtuosa Adotar o meio-termo ou a Aristóteles
justa medida
Ética do dever Imperativo categórico Cumprir incondicional- Immanuel Kant
mente deveres universais
Relativismo moral Juízos socialmente parti- Conformar-se aos padrões Ruth Benedict
lhados culturais
Utilitarismo Consequências presumi- Maximizar o bem para o John Stuart Mill
das são boas maior número
Egoísmo ético Satisfação do próprio Maximizar a própria felici- Ayn Rand
interesse dade
Subjetivismo moral Juízos morais subjetivos Examinar a própria cons- David Hume
ciência

22
Capítulo 2: A ética como ciência social

Toda filosofia moral tem um princípio moral de base, a saber, uma justificação
necessária para qualificar uma ação como sendo moral ou certa. De modo que
toda ação que não realize o princípio moral enunciado carece de justificação.
Não é nosso propósito analisar e comentar essas filosofias. Apontamos para
elas tão somente a título ilustrativo. Mas caberia ressaltar que, à medida que as
filosofias morais competem entre si, os princípios que pretendem justificar o
que é certo fazer e, por via de consequência, o que não é certo fazer, adquirem
estatutos equivalentes. Trata-se de um grave desdobramento, pois compromete
os fundamentos das ações morais. Porque, na ausência de um padrão universal de
aferição, sobram as orientações idiossincráticas dos agentes morais: cada cabeça,
uma sentença; a cada qual uma fundamentação moral diversa; o que vale para
uns pode não valer para outros. Resultado? Patinamos no relativismo cognitivo
e desembocamos em um beco sem saída: ficamos sem instrumentos de análise
universais e consensuais. Fraqueza congênita.
Em contraposição, a Ética Científica fornece um aparato conceitual preciso
e estabelece parâmetros objetivos para uma orientação consistentemente funda-
mentada. Estabelece um vocabulário testável que alcança consenso e tem valor
universal. Com quais vantagens? Torna inteligíveis os eventos que impactam
outros agentes sociais, capta a lógica dos fenômenos morais – a despeito da
diversidade histórica – ao apreender regularidades e ao formular padrões.
Assim, os protocolos desses dois discursos divergem substantivamente. En-
quanto a reflexão filosófica consiste em um discurso racional, porém especulativo
(uma vez que prescinde de provas empíricas), a investigação científica consiste em
um discurso demonstrativo. Ela exige evidências que possam ser comprovadas ou
refutadas, opera com hipóteses sujeitas à verificação ou validação – sejam provas
laboratoriais ou empíricas, sejam correlações estatísticas ou regularidades his-
tóricas que permitam aferir e, eventualmente, contestar o que se postula.
De maneira que a abordagem científica se atém a constatar ocorrências.
Não é seu ofício prescrever quais seriam os comportamentos apropriados. Ela
não determina o que você deve ou não fazer. Mapeia e classifica tão somente a
situação. Cabe a quem conhece os fatos e suas implicações decidir o que tem de
ser feito. Porque a Ética Científica não emite juízos de valor do tipo certo/errado,
bom/ruim, agradável/desagradável, superior/inferior, virtuoso/vicioso – juízos
estes que são variáveis no tempo e no espaço. Emite, isso sim, juízos de realidade
do tipo benefício/prejuízo, público/privado, pessoa física/pessoa jurídica, geral/
específico, maioria/minoria, includente/excludente – juízos estes que são factuais
e universalmente comprováveis.
Façamos uma analogia. Dizer que o ato de fumar é bom ou ruim, agradável
ou desagradável, bonito ou feio corresponde a um juízo de valor, a uma avaliação
ou a uma apreciação que varia segundo as sociedades e os indivíduos – é uma
postura vulgar que remete ao fato moral como fenômeno empírico, real, con-
creto. Em contrapartida, conhecer os efeitos do fumo sobre a saúde humana, não
23
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

importando época ou lugar, corresponde a um juízo de realidade, a uma cons-


tatação objetiva das ocorrências, a despeito do que os agentes sociais pensem a
respeito – é a postura científica que a análise ética assume.
Dada a neutralidade de sua natureza, a Ética Científica caracteriza com
precisão os fatos morais e, à medida que faz um “diagnóstico”, permite prever
em boa medida as implicações das ações. Contribui, assim, para prevenir os
danos que poderiam ser causados e minimiza, quando não elimina, os riscos
prováveis das decisões tomadas. Não é essa uma extraordinária vantagem
comparativa?
Nesse sentido, então, o que significa Ética empresarial? Ética aplicada às
empresas ou aos negócios (corpo teórico, conhecimento), e não padrões morais
(normas convencionadas) que pautam as relações das empresas com seus pú-
blicos de interesse.

2.3 A especificidade dos fatos morais


Como toda ciência social, a Ética estuda fatos sociais, ou melhor, relações
entre agentes historicamente definidos. E, por ocupar espaço próprio no seio
das ciências sociais – sociologia, ciência política, antropologia, economia, his-
tória, geografia, direito, administração, pedagogia –, possui um objeto de estudo
próprio. No caso, a Ética é o conhecimento científico dos fatos morais.
O que diferencia os fatos morais dos demais fatos sociais? As escolhas que os
agentes fazem entre diferentes opções: o bem e o mal; o bem e o bem; o mal e o
bem (o mal necessário para alcançar um bem maior); ou o mal e o mal (o mal
menor para evitar um mal maior).
A Ética torna inteligível por que os agentes sociais se posicionam dessa ou
daquela maneira, quais valores os orientam e quais interesses os condicionam.
Ela observa, descreve, investiga e explica uma espécie particular de fatos sociais
que não deixam ninguém indiferente – os fatos morais –, pois afetam indivíduos
ou coletividades de modo positivo ou de modo negativo.
Mas o que são o “bem” e o “mal”, expressões assombradas pelas tradições
religiosas? São juízos de valor que as coletividades emitem sobre determinados
eventos, rotulando-os como certos ou errados, aceitáveis ou inaceitáveis, reco-
mendados ou inadmissíveis, virtuosos e viciosos. Naturalmente, tais apreciações
são dinâmicas no tempo e não são universalmente partilhadas. Diante do mesmo
fenômeno, as coletividades divergem ou convergem ao sabor de sua própria his-
tória e de suas próprias circunstâncias. Às vezes, não reconhecem o fenômeno
como fato moral, mas o definem como fato social anódino, como fato amoral.
Outras vezes, discordam entre si de forma virulenta. Outras vezes mais, con-
cordam parcial ou totalmente entre si. Essa variabilidade, é claro, diz respeito a
como percebem e retratam os fenômenos. Não é o caso dos conceitos éticos cujo
sentido é unívoco e cuja aplicação é universal.
24
Capítulo 2: A ética como ciência social

Vejamos o infanticídio como conceito. Por definição, trata-se do assassínio


de uma criança, especialmente de um recém-nascido.

O infanticídio
No Brasil de hoje, além de ser crime punido com detenção, cometer infanticídio
provoca comoção nacional, pois é visto como abominação. O mundo ocidental
também o condena com vigor.
Todavia, a China atual nos dá um exemplo diametralmente oposto: acoplada à
discriminação secular do sexo feminino, ainda vigoram dispositivos da “política do
filho único”, que objetivam limitar o crescimento populacional. Desses dois fatores,
resulta elevado índice de infanticídio feminino.2 Na Índia, a situação se repete por
outras razões. A despeito dos incentivos monetários governamentais dados aos pais
que decidem criar as próprias filhas, o nascimento de uma menina é considerado
um fardo, induzindo os pais a se livrar da criança. Em decorrência, verifica-se sensível
desequilíbrio demográfico entre os sexos.
Na Antiguidade, o infanticídio era adotado no Império Romano e pelas tribos
bárbaras germânicas como instrumento para regular a natalidade e equilibrar o
contingente populacional e a oferta de víveres.
Outros povos antigos, como os fenícios e os cartagineses, ofereciam seus filhos
aos deuses em rituais religiosos e, portanto, praticavam o infanticídio para atender
às expectativas imaginárias de suas divindades.
De resto, nos dias atuais, entre as tribos indígenas brasileiras, crianças são en-
terradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na
floresta. As razões são múltiplas. Matam-se gêmeos, crianças portadoras de deficiência
física ou mental, crianças oriundas de relações extraconjugais ou nascidas enquanto
a mãe ainda amamenta...

O que isso nos indica? Algumas coletividades humanas aplicam severas


punições a quem pratica o infanticídio; outras coletividades o encaram como
necessidade imperiosa ou simplesmente o toleram. A caracterização histórica
de um mesmo fenômeno moral varia muito no tempo e no espaço, embora o
conceito científico de infanticídio se mantenha invariável. Não se deve, pois,
confundir os fenômenos reais e concretos – cujo relativismo é inegável – com
os conceitos abstratos e formais, que procuram identificá-los e explicá-los.
Dito isso, vamos abrir um parêntese, inspirados por Dom Casmurro, a famosa
obra de Machado de Assis.

A política de planejamento familiar foi introduzida em 1980 e inclui multas financeiras para famílias que
2

violam as restrições (quatro vezes a renda per capita média anual da área em que vivem), perda do emprego
dos chefes de família após o nascimento de um segundo filho e esterilização forçada de mulheres que já
tiveram um filho. Parece estar valendo mais para as áreas urbanas do que para as áreas rurais mais remotas.

25
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Verdade ou especulação?
De um lado, temos Capitu, a jovem esposa com “olhos de cigana oblíqua e dis-
simulada”, os famosos “olhos de ressaca”, e, de outro, o marido ciumento, Bentinho.
Vamos supor que, a despeito das tentações, Capitu seja fiel ao marido, mas ele
não sabe disso. De modo que, à revelia do fato real, ele se comporta guiado pelas pró-
prias impressões: se desconfiar de Capitu (dissonância entre percepção e realidade),
Bentinho viverá o inferno dos tolos; todavia, se confiar em Capitu (consonância entre
percepção e realidade), Bentinho provará o sono dos justos.
Agora, vamos supor que, à mercê das tentações, Capitu seja infiel ao marido,
mas ele não sabe disso. De modo que, à revelia do fato real, ele se comporta guiado
pelas próprias impressões: se confiar em Capitu (dissonância), Bentinho cumprirá a
sina dos ingênuos; todavia, se desconfiar de Capitu (consonância), Bentinho provará
a paz dos mansos...

Essa brincadeira de gosto oitocentista nos revela quão importantes são a


objetividade e a capacidade de realizar uma análise despida de juízos de valor.
Os exemplos referentes ao relativismo dos fatos morais poderiam ser multipli-
cados indefinidamente. É o caso da homossexualidade nos dias atuais. O conceito
é um, as abordagens históricas são muitas: punição com pena de morte ou com
pena de prisão em países muçulmanos contemporâneos; ambígua tolerância no
Brasil, com seu misto de homofobia e de proibição formal da discriminação;
legalização do casamento civil entre membros do mesmo gênero em países
ocidentais mais liberais.
Outros casos que poderiam ser citados são o estatuto do sexo feminino,
indo desde o culto da mulher e da feminilidade nas civilizações antigas até
sua total sujeição aos homens em muitos países muçulmanos; o canibalis-
mo; o suicídio; a poligamia; a circuncisão feminina; o estatuto dos idosos na
sociedade etc.
Em outros termos, como identificar os fatos morais, isto é, como reconhecer
os objetos de estudo da Ética? Vale a pena repeti-lo: são fatos sociais que não
deixam ninguém indiferente porque afetam as pessoas para o bem, com efeitos
positivos ou benefícios observáveis, ou para o mal, com efeitos negativos ou
prejuízos observáveis. Não há subjetividade aqui, mas fenômenos objetivos,
claramente descritos e apreendidos.
Surge agora uma dúvida pertinente. Como reconhecer o “bem” ou o “mal”
do ponto de vista histórico? Resposta: quando os padrões culturais assim os
qualificarem ou quando o consenso científico a respeito for estabelecido.
Por exemplo, até recentemente, o hábito de fumar era considerado uma
questão de preferência. Era socialmente “amoral”, além de não haver consenso
científico a respeito dos males que causava. Hoje em dia, fumar foi “moralizado”
ou, dito de outra forma, vem sendo qualificado com base em juízo de valor. O
26
Capítulo 2: A ética como ciência social

que mudou? Tornaram-se irrefutáveis as provas quanto aos efeitos altamente


nocivos do tabagismo e, diante das evidências, os padrões morais foram afetados.
Muitos fatos sociais são eticamente neutros porque, comprovadamente, não
causam nem bem nem mal. Todavia, cabe indagar: será que muitos fatos sociais
são eticamente neutros porque sua moralidade não foi “reconhecida” nem pela
ciência nem pelos agentes sociais, ainda que mais tarde se reconheça seu teor
moral? A resposta é positiva.
Aliás, a dinâmica histórica serve-nos de ilustração. No Ocidente atual, muitas
atividades foram “amoralizadas”, passando de defeitos morais a opções de estilos de
vida. Deixaram de ser, portanto, objetos da Ética. Por exemplo: ser mãe e trabalhar
fora; o divórcio; os filhos ilegítimos; ser mãe solteira; a virgindade; o sexo pré-
-marital; a masturbação; a homossexualidade; a sodomia; o sexo oral; o ateísmo;
o casamento inter-racial; a nudez; a multiplicidade de parceiros sexuais; o uso de
preservativos para evitar uma gravidez indesejada ou as doenças venéreas.3
A análise objetiva comprova que deixar de considerá-los “problemas morais”
não causa prejuízo social, ainda que algumas situações inspirem cuidados. Por
exemplo, o relacionamento sexual com múltiplos parceiros impõe a necessidade
de praticar sexo seguro (uso de preservativos); casamentos desfeitos impõem
responsabilidades para com os filhos que resultaram dessas uniões (guarda
partilhada ou clara definição do poder familiar); mães solteiras ou que trabalham
fora têm de encontrar meios para que suas crianças recebam a devida atenção
(creches) etc. São questões que exigem equacionamentos competentes, mas que
não exacerbam mais os ânimos, como acontecia outrora.
Em sentido contrário, muitas práticas se tornaram problemas morais, quer
dizer, foram “moralizadas” − tornaram-se objetos de estudo da Ética −, à medida
que foram cientificamente “reconhecidas” como tais em função do teor de seus
impactos: a publicidade para o público infantil; a segurança dos automóveis
e dos produtos de consumo; as armas de brinquedo; as roupas fabricadas em
sweatshops; as embalagens descartáveis; a “comida lixo” (junk food); os refrige-
rantes; o açúcar refinado; os aditivos químicos em alimentos; o assédio moral e
o assédio sexual; o tratamento dispensado aos porcos ou frangos nas granjas de
criação; a forma de abater o gado; a exploração madeireira sem manejo florestal;
as fazendas que usam defensivos agrícolas ou agrotóxicos; a pesca predatória;
a pecuária que desmata; a mineração; a exploração petrolífera com seus riscos
ambientais; os casacos de pele; as represas hidrelétricas com suas vastas inunda-
ções de áreas; a energia nuclear; a violência na televisão; o abandono de animais
domésticos; o foie gras; os bônus milionários dos executivos; as touradas; as piadas
racistas; a pedofilia; o peso das modelos...

Paul Rozin estudou os processos de moralização e de “amoralização” em laboratório. A. Brandt & P. Rozin
3

(eds.). Morality and health. Nova York: Routledge, 1997. A pesquisa foi citada por Steven Pinker em Tábula
rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 374-376.

27
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Vale a pena perguntar-se então: por que certas práticas deixaram de ser pro-
blemas morais enquanto outras se tornaram objetos de estudo da Ética? A pes-
quisa deve focalizar, de um lado, o contexto histórico que favoreceu a mudança
dos padrões e, de outro, o consenso científico que se formou a respeito. Com
qual intuito? Identificar a natureza das práticas para saber se são anódinas ou se
produzem algum impacto sobre outros agentes em termos de benefícios ou de
malefícios observáveis.

2.4 Exercício: Os objetos de estudo (2)


Os fatos sociais não afetam os outros nem para o bem nem para o mal e, por
isso mesmo, são eticamente neutros, amorais. De modo contrário, os fatos morais
são eticamente positivos (causam benefícios aos outros, são universalistas) ou são
eticamente negativos (causam malefícios aos outros, são particularistas). Os fatos
morais exigem, portanto, uma escolha baseada em valores e geram consequências
que responsabilizam os agentes.
Vamos nos exercitar agora em reconhecer quais fatos são “sociais” (S), quer
dizer, objetos de estudo da sociologia, e quais fatos são “morais” (M), quer dizer,
objetos de estudo da Ética.

Objeto de estudo Fato


1. Uma moça saudável estaciona o carro em vaga reservada aos portadores
de deficiência física.
2. Um sujeito circula na rua e observa vitrines para se distrair.
3. Uma mulher grávida e uma mãe com criança no colo fumam em ambiente
fechado.
4. Uma mulher estaciona seu carro em vaga autorizada.
5. Na concessão de um empréstimo a um cliente, um gerente de banco prati-
ca a venda casada, ou seja, força a aquisição de outro produto financeiro.
6. Um funcionário, que cuida das fichas de clientes, rechaça a investida de
um colega que deseja obter informações confidenciais para montar um
negócio.
7. Um funcionário, que cuida das fichas de clientes, repassa informações
confidenciais a um colega que quer montar um negócio.
8. Um funcionário, que lida com informações confidenciais constantes das
fichas de clientes, toma as medidas necessárias para preservar o sigilo.
9. Uma mulher estaciona seu veículo em vaga autorizada e verifica se man-
tém equidistância em relação às duas faixas amarelas pintadas no chão.
10. Uma empresa não só proíbe, mas vigia com rigor, o fumo em ambiente
fechado de uso coletivo.
11. Um fiscal de obras resiste às pressões de empreiteiro e se recusa a medir o
serviço que não atende às especificações do projeto executivo.

28
Capítulo 2: A ética como ciência social

Objeto de estudo Fato


12. Um fiscal de obras mede rotineiramente os serviços realizados por emprei-
teiro, seguindo as regras que o contrato estipula.
13. Um fiscal de obras cede às pressões de empreiteiro e mede serviços inexis-
tentes mediante propina.
14. Um gerente de banco concede um empréstimo a um cliente que preen-
cheu os requisitos exigidos pela área de crédito.
15. Um vendedor de loja de eletrônicos orienta detalhadamente o cliente a
respeito das vantagens e desvantagens de um produto, fornecendo-lhe
especificações técnicas e um quadro comparativo dos preços dos
concorrentes.
16. Um vendedor de loja de eletrônicos consegue efetivar uma venda sem
revelar que o produto tem um defeito de fabricação que só aparece após
alguns meses de uso.
17. Um camelô garante a um cliente que o produto “made in China”, embora
muitíssimo mais barato, é absolutamente idêntico àquele que se vende
nas lojas.
18. Um comprador exige a emissão da Nota Fiscal Paulista dando o número
de seu CPF, embora a caixa da loja nada tenha perguntado a respeito.
19. Um comprador fornece o número de seu CPF depois que a caixa da loja
lhe perguntou rotineiramente se queria a Nota Fiscal Paulista.
20. Um cliente faz questão, no restaurante, que não se emita nota fiscal ou
cupom fiscal e prefere pagar em dinheiro vivo e não com cartão de crédito
ou cheque.
O gabarito deste exercício (2) se encontra no Anexo.

29
Capítulo

3
O contexto contemporâneo

3.1 Por que se importar com “ética”?


Converse a respeito do tema com empresários e gestores oriundos das micro,
pequenas e médias empresas e veja o que dizem. Desconfiados, relutam em
confidenciar pensamentos que só revelam em pequeno comitê. Mas basta alguma
insistência para que desatem em lamentos e recriminações.
“Ética? Nada a ver! Ninguém ‘se comporta direito’ com impostos insanos, banda-
lheira na máquina pública, lerdeza da Justiça, desperdício de recursos, obras super-
faturadas, infraestrutura em petição de miséria, descalabro da educação pública,
subsídios obscenos ao grande capital, esperteza em todas as transações, precariedade
dos serviços públicos, incúria das autoridades, sanha de fiscais que achacam... Quer
mais? Temos o custo Brasil nas alturas, a burocracia que sufoca, a insegurança quanto
ao dia de amanhã. Só aventureiros se dão bem; gente boa não aguenta mais. Mas é
preciso reagir, não é mesmo? Mas a quem recorrer? Aos políticos? Aos juízes? Aos
administradores públicos ou às autoridades de turno? Peça socorro e veja a quantas
anda a corrupção! A palavra de ordem é sobreviver. Contra tudo e contra todos.
Resumo da ópera: o vale-tudo salva! Sabe como é: viração é a palavra de ordem.
Conclusão: ‘ética’ é luxo para poucos ou piada de mau gosto.”
Esses argumentos tocam feridas abertas. E para onde deságuam? Para o
“salve-se quem puder” da economia informal, do caixa dois, dos subornos, dos
expedientes escusos, dos eternos jeitinhos. São queixas que, embora se refiram
a questões de grande abrangência, não contemplam os interesses públicos nem
superam as miúdas conveniências de cada um. São desabafos de caráter parti-
cularista que procuram justificar as vantagens que a clandestinidade propicia.
Ora, por que não batalhar por soluções que já foram testadas em outras partes
do mundo? Por que não adotar uma agenda de competitividade empresarial que
equalize as condições de que desfruta a concorrência internacional? Por que não

31
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

exigir dos governantes de plantão que descompliquem e tornem mais ágeis


as exigências burocráticas, simplifiquem a tributação e diminuam sua carga,
facilitem o acesso ao capital e baixem o seu custo, desonerem a folha de paga-
mentos e ampliem os meios de negociação coletiva, reduzam drasticamente os
gastos correntes do Estado e multipliquem os investimentos em infraestrutura,
priorizem a competência gerencial e a meritocracia na administração pública e
rejeitem políticas populistas? Em suma, por que não aprender com o crescente
ativismo dos públicos de interesse das empresas?1

A gafe empresarial
Em 1984, Gerald Ratner substituiu seu pai no comando de uma rede de 130
joalherias e, em menos de oito anos, construiu um império de 25 mil funcionários
e de 2.500 lojas espalhadas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Sua estratégia
de sucesso se baseou na venda de joias baratas de baixo padrão e no jogo duro
em relação aos fornecedores. Ademais, expandiu-se vertiginosamente comprando
concorrentes debilitados.
Incensado pela mídia, foi convidado em 1991 a discursar na conferência anual
do Institute of Directors, no Royal Albert Hall, de Londres. Seu público? Quatro mil
executivos. Homem de marketing, Ratner pensou em descontrair a audiência fazendo
piada. Contou que as pessoas sempre lhe perguntavam como conseguia vender joias
tão baratas. Baixando a voz em tom de confidência, falou que revelaria seu segredo.
E disse literalmente: “Os brincos que eu vendo custam menos que um sanduíche de
camarão... E sabem por quê?” Fez suspense e arrematou: “Porque é puro lixo!”2
No dia seguinte, os tabloides ingleses estamparam o sarcasmo. A repercussão foi de-
vastadora: os clientes se aglomeraram nas lojas para devolver os produtos... A rede perdeu
£500 milhões em valor, Ratner teve de renunciar à presidência e a empresa se esfacelou.
Seu nome, na literatura da administração, tornou-se sinônimo de “gafe empresarial”.

Uma frase imperdoável desmontou um negócio portentoso. Por que será? A


revelação matou o sonho do luxo que o negócio alardeava e fez pouco caso dos
sentimentos de seus clientes. A confidência desvendou o segredo de polichinelo
que servia de lastro às vendas e atingiu o calcanhar de aquiles da empresa. Piada
fatídica. O que o caso nos ensina? Quatro coisas, pelo menos.
1. No capitalismo competitivo, os clientes “votam com a carteira”: reagem
quando são desatendidos ou desrespeitados, e migram para a concor-
rência quando ficam insatisfeitos ou sofrem abusos.

1
Afora os colaboradores, gestores e acionistas, os públicos de interesse das empresas são todas as partes in-
teressadas, todos os agentes impactados por elas, tais como clientes, investidores, fornecedores, prestadores
de serviços, distribuidores, mídia, comunidades locais, órgãos governamentais, sindicatos, concorrentes,
ONGs etc.
2
Total crap, em inglês.

32
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

2. Em regimes políticos liberais, os cidadãos dispõem de meios de pressão


eficazes para fazer valer seus interesses: a mídia, as agências de defesa do
consumidor, a Justiça, o boicote.
3. Na era da internet, não se faz mais “negócio como de costume”, porque mil
olhos nos vigiam por meio de dispositivos eletrônicos como os celulares
e põem em risco o capital de reputação.
4. Negócio que perde a credibilidade tende a naufragar.

A crise de reputação
O maior templo de luxo do Brasil, a Villa Daslu, que vendia de bolsa Chanel a
helicóptero, sofreu uma visita-surpresa da Polícia Federal em julho de 2005. A ação
resultou na prisão de sua proprietária, Eliana Tranchesi, e de seu irmão, Celso de Lima.
Acusada de fraude em importação, formação de quadrilha e falsidade ideológica,
Eliana foi condenada a 94,5 anos de prisão.
Desde então, além de uma dívida fiscal que ultrapassou R$500 milhões, a Daslu
sofreu queda nas vendas e problemas de caixa. Aos poucos, a butique ícone perdeu seu
encanto para os clientes e foi sendo desmontada. Pediu recuperação judicial, com dívidas
acumuladas de R$80 milhões. Mas a situação permaneceu crítica e, em fevereiro de
2011, uma assembleia de credores decidiu vender a Daslu a um fundo de investimentos.

As pernas da esperteza encurtam cada vez mais, a repressão aos negócios


ilícitos se intensifica e os clientes medem os riscos de fazer transações com
comerciantes que se encontram sob a mira da Justiça.

News of the World


O jornal britânico News of the World era o veículo de maior vendagem em língua in-
glesa no mundo. Fundado em 1843, foi comprado em 1969 pelo magnata australiano
Rupert Murdoch que o incorporou a seu império de mídia − a News Corporation.
Em 1984, foi transformado em tabloide dominical especializado em escândalos: ex-
punha o uso de drogas, os pecadilhos sexuais e as transgressões às vezes criminosas
de celebridades nacionais ou locais. Para tanto, usava jornalistas disfarçados para
obter evidências fotográficas, vídeos comprometedores ou grampos telefônicos. Em
outubro de 2010, vendia 2,8 milhões de exemplares.
Ocorre que, desde 2006, pipocavam acusações contra as práticas do jornal, que
culminaram com a revelação em julho de 2011 de que, uns 10 anos antes, o jornal
interceptou e apagou o correio eletrônico de uma adolescente inglesa desaparecida
que, mais tarde, foi encontrada morta. Presumiu-se que o jornal se valeu desse artifício
para dar a impressão de que a menina estava viva e, assim, assegurar mais vendas
durante algum tempo. O caso se somou à denúncia de que os grampos telefônicos
se estendiam aos telefones dos familiares de militares britânicos mortos em ação...

33
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Três dias depois das revelações, o repúdio da opinião pública foi tal que muitos
anunciantes retiraram suas campanhas e Rupert Murdoch foi forçado a encerrar as
atividades do tabloide. Dezenas de editores e jornalistas foram processados.

A despeito dos apoios de que desfrutava no Parlamento, na magistratura e


na própria polícia inglesa, e a despeito da enorme influência de que dispunha,
Murdoch não resistiu à pressão da sociedade civil e seu império sofreu um sério
baque.

A clínica de reprodução assistida


O médico Roger Abdelmassih, um dos mais famosos especialistas em reprodução
assistida do país, foi preso em agosto de 2009. Havia sido indiciado pela Polícia Civil
sob a acusação de estupro e de atentado violento ao pudor contra ex-pacientes: 39
mulheres disseram ter sofrido crimes sexuais durante as consultas.
Depois do escândalo, a clientela debandou. A clínica foi fechada e, no ano seguinte,
acabou vendida pelos herdeiros ao médico Sang Choon Cha, presidente da Sociedade
Brasileira de Ultrassonografia e Medicina Fetal.
Por sua vez, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo decidiu
cassar por unanimidade o registro profissional do médico. Embora coubesse recurso
da decisão, o Dr. Roger declarou que já havia “renunciado” à profissão. Em novembro
de 2010, ele foi condenado a 278 anos de prisão.

Esses casos corroboram uma evidência: abusar da boa-fé dos clientes provoca
reações como o boicote ao empreendimento. É um temível contrapoder de que
dispõem os consumidores e os usuários. De onde advém?

3.2 O mundo mudou


Nesses três últimos decênios, um novo contexto histórico se forjou. A revo-
lução digital está em curso. Se desconsiderarmos a revolução paleolítica que se
perde nas brumas da emergência do Homo sapiens, estamos diante da terceira
revolução tecnológica da humanidade. A primeira foi a Revolução Neolítica,
ocorrida entre 8-10 mil anos atrás, e a segunda foi a Revolução Industrial, iniciada
na segunda metade do século XVIII na Inglaterra.3
As transformações ocorridas impactam de forma extraordinária as so-
ciedades humanas: tecnologia da informação, comunicação instantânea em
qualquer lugar e a qualquer hora, internet de banda larga, expansão vertiginosa
do setor de serviços, economia do conhecimento, desmaterialização crescente
Quem viveu os últimos 70 anos no Brasil conheceu a sociedade agrária em sua plenitude (até os anos 1940),
3

viu a expansão da Revolução Industrial com a formação de um parque industrial diversificado (até os anos
1980) e presencia agora o avanço avassalador da revolução digital desde os anos 1990. Isso não quer dizer
que não possa haver outras rupturas revolucionárias, dados os prenúncios da genômica e da nanotecnologia.
34
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

da economia com a substituição de átomos por bits ou dos bens tangíveis por
bens intangíveis.4
O capitalismo deixou de ser oligopolista e passou a ser competitivo, confe-
rindo um inusitado poder de fogo aos clientes. A globalização econômica trans-
cendeu os processos de internacionalização comercial anteriores, à medida que
embutiu três rupturas: 1) inaugurou a produção mundial capitalista, viabilizada
por transportes rápidos e baratos graças à decisiva inovação dos contêineres; 2)
facultou a formação de um sistema financeiro planetário que opera em tempo
real 24 horas ao dia, graças às telecomunicações via satélite; e 3) contribuiu
para a redistribuição do trabalho global, com a entrada maciça das mulheres no
mercado de trabalho, e para a conversão de enormes massas camponesas à
produção urbana, tanto industrial como de serviços.
De outra parte, a pegada ecológica está pondo em risco a habitabilidade
do planeta: estamos gastando mais recursos naturais do que a capacidade de
autorregeneração da natureza, e seus efeitos devastadores são visíveis na mu-
dança climática, na poluição crescente do ar, do mar e da terra, e no “prazo para
terminar” de muitas matérias-primas.5
Além do mais, a vulnerabilidade das empresas cresceu exponencialmente em
decorrência da exposição de tudo e de todos à mídia investigativa e plural, da
consolidação das liberdades democráticas que propiciaram à cidadania organizada

Figura 3.1  O contexto contemporâneo.

4
Substituição das cartas físicas por correios eletrônicos, do papel-moeda por dinheiro digital, das viagens de
negócio por teleconferências, dos talonários de notas fiscais por emissões eletrônicas, dos livros por e-books,
dos jornais e revistas por edições digitais, dos CDs por memória flash etc.
5
Segundo Armin Reller, da Universidade de Augsburg, faltam 13 anos para o índio acabar (telas de TV), 29
para o fim da prata (joias), 30 para o antimônio (remédios), 40 para o estanho (soldas e latas) e 42 para o
chumbo (baterias e tubulação).
35
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

a possibilidade de reclamar e de pressionar, além de fortalecer sobremaneira o


poder de retaliação dos clientes.

O vazamento da BP
Em 20 de abril de 2010, no Golfo do México, a plataforma Deepwater Horizon da
British Petroleum explodiu e afundou, matando 11 funcionários. Foi o estopim do
maior vazamento de petróleo da história americana. Foram necessários três meses
e meio para vedar o poço.
As estimativas indicam que 652 milhões de litros de óleo foram lançados no litoral do
Texas à Flórida, ou seja, mais de 15 vezes os 41,6 milhões despejados em 1989 no Alasca
pelo navio Exxon Valdez. Os danos causados à fauna e à economia foram incomensuráveis.
Algumas projeções apontam para um custo de US$37 bilhões, incluindo des-
pesas com limpeza, reparos, multas e indenizações que a BP começou a cobrir com a
venda de ativos. O valor das ações sofreu queda de US$67 bilhões e arrastou consigo
o presidente da companhia, que se demitiu. Quanto à reputação da companhia pe-
troleira, seu comprometimento foi grave.
Acontece que a tragédia poderia ter sido evitada se a BP não tivesse enxugado
o orçamento. Existe um dispositivo de segurança chamado “gatilho acústico”, capaz
de vedar o poço em caso de mau funcionamento. O aparelho fica na superfície e usa
ondas sonoras que levam as válvulas do poço a se fechar e a interromper o fluxo no
poço. Custo? US$500 mil. A BP decidiu economizar ao não instalar um, abrindo mão
de um precioso instrumento de prevenção contra acidentes.6
Além do mais, a revista americana Rolling Stone acusou os executivos da BP de “ir
para a cama” com profissionais do Serviço de Gerenciamento Mineral norte-americano
(MMS, na sigla em inglês, órgão análogo à Agência Nacional de Petróleo no Brasil),
oferecendo-lhes viagens e festas de arromba para tornar mais flexíveis as regras que
regulavam as perfurações. Essa promiscuidade vinha desde o governo Bush.7

Esse desastre ecológico ensina algo precioso: as decisões empresariais provocam


consequências cujos riscos precisam ser aferidos, sobretudo no tocante aos impactos
sobre o capital de reputação. Desprezar as implicações éticas pode ser fatal. Afinal, a
decisão de enxugar o orçamento cortando itens de segurança e o esforço deliberado
para tornar mais flexíveis os controles sobre as perfurações destruíram boa parte da
credibilidade da British Petroleum. Pode-se até dizer, sem exagero, que enterraram
o sonho que a empresa alimentava de se tornar “ambientalmente amigável”.
De fato, a BP lançou uma campanha em 2000 para redefinir sua identidade.
Fez uma releitura de sua sigla (“Beyond Petroleum” ou “Além do Petróleo”), pro-
clamando a ambição de ser produtora de energias renováveis − energia solar, gás
natural, biodiesel e etanol −, distanciando-se das energias “sujas”. Ora, depois da
explosão da plataforma no Golfo do México, o fosso entre a retórica e a realidade
não poderia ser mais profundo.

Renata Betti e Luís Guilherme Barrucho. Como poupar meio milhão. Veja, 21 de julho de 2010.
6

Robson Viturino. Sinais de alerta. Época Negócios, novembro de 2010.


7

36
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

Ações ecologicamente corretas


A mudança climática global está tornando a água cada vez mais escassa, es-
pecialmente em países densamente povoados da zona temperada, como os Estados
Unidos, que são o principal mercado da Coca-Cola. O maior concorrente em todo o
mundo no uso da água é a agricultura, que também apresenta seus próprios desafios
de sustentabilidade.
Daí que a sobrevivência da Coca-Cola a compele a ficar profundamente preocupa-
da com os problemas de escassez de água, energia, mudança climática e agricultura.
Uma meta da empresa é tornar suas fábricas “neutras em água”, devolvendo ao
meio ambiente uma quantidade de água igual à que foi usada nas bebidas e na sua
produção. Outra meta é trabalhar na conservação de sete grandes bacias fluviais,
incluindo as dos rios Grande (fronteira México-Estados Unidos), Yang-tsé, Mekong e
Danúbio, todos eles locais de grandes preocupações ambientais, além de fornecerem
água à Coca-Cola.
Essas metas de longo prazo somam-se a práticas ambientais e de redução de
custos no curto prazo, como a reciclagem de garrafas plásticas, a substituição do plás-
tico de petróleo das embalagens por material orgânico, a diminuição do consumo de
energia e o aumento do volume de vendas com a redução no uso de água.8

Não nos iludamos. A Coca-Cola não foi acometida por um ataque de


bom-mocismo, mas por uma clara percepção de que a correlação de forças
mudou. De um lado, a sociedade civil tem condições de forçar as empresas a
adotarem políticas socialmente responsáveis. De outro, a escassez de insumos
pode destruir as condições de perpetuidade do negócio. Foram os dínamos
para que a companhia adotasse uma estratégia de bom senso que inspirou
intervenções preventivas: preservar as bacias hidrográficas, reduzir o uso de
água e de energia, substituir o plástico de origem fóssil por material orgânico,
renovável.

O site da GM
A General Motors lançou um site em 2003 (AutoChoiceAdvisor.com) para orientar
os compradores de automóveis. As recomendações eram neutras ao incluir os veículos
da concorrência. Um algoritmo imparcial recomendava o melhor carro em função das
necessidades apresentadas pelos clientes.
Benefícios para a GM? Obter informações sobre as preferências do mercado para
desenvolver novos produtos e modelos que atendessem a demandas específicas.

Moral da história? O fato de prestar um bom serviço ao cliente cria valor


para as partes. Se assim não for, apostar em clientes desinformados pode ser

Diamond Jared. As grandes empresas vão salvar o mundo?. Veja, 30 de dezembro de 2009.
8

37
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

lucrativo no curto prazo, mas destrói valor no longo prazo, o que é obviamente
pernicioso para a perpetuação do negócio. Em outras palavras, o conhecimento
ético aplicado a situações reais gera valor: tece laços de respeito e confiança
entre pessoas ou organizações; beneficia as partes de múltiplas maneiras, sem
prejudicar quem quer que seja; contribui para reduzir os malfeitos pela cons-
ciência dos males causados e dos riscos envolvidos.
Isso equivale a dizer, mais uma vez, que precisamos dispor de instrumentos
indispensáveis (conceitos científicos) para aprimorar nosso discernimento e afiar
nossa lucidez teórica.

3.3 A linha de demarcação


As coletividades formulam padrões morais que implicam juízos de valor. Não
é o caso do conhecimento ético cujos conceitos implicam juízos de realidade. Já
aventamos essa questão, mas vale a pena aprofundá-la.
Os juízos de valor remetem a apreciações ou avaliações que hierarquizam os
eventos com base em critérios como:
j
Certo/errado (caso do aborto: uns qualificam como certa a interrupção
da gravidez, outros a qualificam como errada).
j Bom/mau (caso do machismo: bom para homens tradicionais, ruim para
mulheres que buscam se emancipar).
j Superior/inferior (caso do racismo: muitos brancos alardeiam sua superio-
ridade em relação a negros, hispânicos, índios, asiáticos etc., provocando
reações iradas por parte daqueles que eles discriminam).
j Melhor/pior (caso dos ricos em relação aos pobres, das escolas ou das
universidades entre si).
j
Mocinho/bandido (caso dos filmes de faroeste) ou herói/vilão (caso das
novelas).

Dado seu caráter maniqueísta, esses critérios proclamam explicitamente


crenças e preconceitos, instigam segregações e celebram valores que desembocam
no sectarismo.

Mulher na direção
O preconceito masculino contra as mulheres tem uma longa história, que vai desde
a atribuição da origem de todos os males do mundo ao mitológico vaso (leia-se útero)
de Pandora até a última anedota sobre algum incompreensível (para os homens)
hábito feminino. O preconceito tem um lado obscuro e doentio − a misoginia é um
traço comum a toda a tradição judaico-cristã, e não vamos nem falar nos extremos
de ambiguidade que a mulher provoca na cultura islâmica −, mas manifesta-se
também nessa persistente perplexidade que a mulher causa no homem e que já é

38
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

mais folclórica do que qualquer outra coisa. De acordo com o folclore, homem jamais
entenderá a organização de uma bolsa feminina. Homem jamais se acostumará com a
peculiar noção de tempo e pontualidade da mulher, e menos ainda com a sua lógica.
E homem, decididamente, jamais confiará em mulher na direção.
Se você é homem, pense na seguinte situação: você está num táxi, e um carro na
sua frente acaba de realizar uma manobra, digamos, não ortodoxa. O motorista do
táxi buzina, reclama e, na ultrapassagem, vê que quem está dirigindo o carro infrator
é uma mulher. Comenta: − Só podia ser. Mulher na direção...
Você faz o quê? Diz ao motorista que ele está sendo antiquado e injusto, que já
há quase tantas mulheres quantos homens dirigindo carros, inclusive táxis, e que a
maioria não faz loucuras, ou pelo menos mais loucuras do que homens, na direção?
Ou sorri, sacode a cabeça e concorda com o motorista?
Confesse: você concorda com o motorista. Você é um cara esclarecido, livre de
qualquer forma de intolerância, sem resquícios obscurantistas, mas concorda com o
motorista. Ele e você pertencem à mesma irmandade, a do pomo de Adão e do xixi
em pé, e nada, nem mesmo o bom senso, os fará abandonar suas convicções atávicas.
Mulher na direção está invadindo um território que não é dela. É uma ameaça aos
seus domínios.9

A misoginia coloca o gênero feminino em posição de inferioridade e, portanto,


emite um claro juízo de valor.
Os juízos de valor se baseiam em pressuposições estereotipadas, destituídas de
comprovação empírica. Eis asserções típicas: os crentes vão para o paraíso, os pagãos
vão para o inferno; os sulistas brasileiros prosperam, os nordestinos migram; Deus
pune os homossexuais com a Aids; os idosos são sujos; as loiras, burras; os pobres,
ignorantes; os negros, perigosos; os judeus, sovinas; os ateus, imorais...
Os juízos de valor nem sempre são assumidos em público. Por exemplo, as
empresas que navegam nas águas da economia informal − sonegam impostos, com-
pram e vendem sem nota fiscal ou com meia nota, possuem caixa dois e subornam
fiscais − não revelam aos quatro ventos o que fazem. Exercem suas atividades
com discrição, na penumbra dos bastidores. Por que será? Ainda que suas práticas
sejam corriqueiras e largamente partilhadas − e embora desfrutem da legitimidade
conferida pela nossa moral oculta (a moral do oportunismo) −, elas são condenadas
pela moral da integridade e acabam veladas por conveniente pudor.
Os juízos de realidade, por sua vez, remetem à análise objetiva dos fenômenos.
Procuram observar e descrever o que eles são; explicam por que ocorrem; põem
à prova o conhecimento adquirido; usam critérios que permitem identificar e,
no mais das vezes, quantificar os fatos observados, tais como:
j
Maioria/minoria (pessoas ou organizações afetadas por determinada
decisão).

Luiz Fernando Veríssimo. Mulher na direção. O Estado de S. Paulo, 04 de novembro de 2010.


9

39
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

j Benefícios/malefícios (efeitos positivos ou negativos sobre agrupamentos


sociais).
j Máximo/mínimo (preço, tarifa, prazo, grau de instrução, volume de emis-
sões, peso).
j Includente/excludente (quem está incluído ou está excluído por dada
ação).
j Geral/específico (genérico ou universal versus próprio a uma espécie dada).
j
Público/privado (pertence ou refere-se a todos os membros de dada
sociedade versus pertence ou refere-se a um indivíduo particular).

A pirataria
A compra de produtos piratas ou a cópia não autorizada de bens simbólicos
(aplicativos, músicas, DVDs) para uso pessoal são práticas bastante comuns no
Brasil.10
Argumenta-se que os preços dos produtos legais são extorsivos e que, “se está
disponível na internet”, tudo pode; “se está sendo vendido nas ruas”, não há mal
algum.

Estamos novamente diante de condutas que a moral do oportunismo jus-


tifica. Aqui, interesses pessoais abusivos se sobrepõem aos demais interesses.
Isso significa que, embora importantes segmentos da sociedade brasileira as
justifiquem moralmente, do ponto de vista da análise científica tais condutas
obedecem à racionalização antiética. Vemos assim, mais uma vez, que a apre-
ciação do fenômeno moral nem sempre coincide com seu conhecimento ético
ou teórico.
Mas o que é a racionalização antiética? Um conjunto articulado de jus-
tificativas que orienta práticas particularistas, um processo de mistificação
que implica prejuízo aos interesses alheios. Há racionalidade nisso, e não pura
malandragem ou esquizofrenia como alguns gostariam de pensar. As práticas
são particularistas porque obedecem a uma lógica da exclusão: o bem de uns
causa mal aos outros.
Ora, por que os produtos piratas e as cópias não autorizadas obedecem à
racionalização antiética? Porque ferem os interesses gerais em proveito de in-
teresses particularistas; geram um bem restrito que é nocivo ao bem comum.
Como comprovar isso? A pirataria desrespeita os direitos autorais dos produtores

10
O percentual de brasileiros que consomem produtos piratas aumentou nos últimos anos, segundo mostra
pesquisa divulgada pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ). De acordo
com os dados, mais de 70 milhões de brasileiros consomem produtos piratas. Exame, 30 de novembro
de 2010.

40
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

de conteúdo; faz pouco-caso dos investimentos realizados em pesquisa; despreza


os gastos efetuados nos processos de produção, comercialização e divulgação;
sonega impostos; engorda fiscais corruptos; alimenta a concorrência desleal;
provoca desemprego; insere-se na economia subterrânea em que prosperam as
redes locais e internacionais do crime organizado...
Perguntarão: uma “economia do grátis”, em que todos os bens simbólicos
fossem livremente compartilhados, poderia modificar tal estado de coisas? Cer-
tamente, desde que os fundamentos da economia fossem substancialmente
modificados e desde que os processos de criação ou de inovação fossem recom-
pensados. Como fazer para viabilizar tal salto? Eis a questão. Até lá, muitos agentes
vão sofrendo prejuízos.
Em contrapartida, a razão ética orienta práticas universalistas que obedecem
a uma lógica da inclusão: o bem gerado interessa a todos. De fato, ninguém está
impedido de desfrutar esse bem (exceto os que vivem marginal ou clandes-
tinamente) e não provoca danos aos outros (a não ser àqueles que cometem
infrações e sofrem as sanções pertinentes).11
De sorte que, na contramão de uma leitura simplista, obedecer à razão ética
não significa abranger a unanimidade dos interesses. A realização de interesses
universalistas se choca com a realização de interesses particularistas. Assim,
todos aqueles que desvirtuam as regras da convivência social ou que invadem o
espaço alheio estão sujeitos ao “revide de autodefesa”. Podem sofrer retaliações
ou prejuízos em represália às suas práticas antiéticas. Constituem as exceções à
regra de que “práticas universalistas não prejudicam ninguém”.
A razão ética convida a resistir, portanto, aos que se pautam pela racionaliza-
ção antiética e confere legitimidade à punição dos malfeitos ou à repressão das
práticas que violam interesses universalistas. Afinal, não há sociedade humana
que opere sem a dialética das recompensas e das sanções. No dia a dia, quem
transgride regras pode sofrer danos tal qual o intruso que põe a mão numa cerca
eletrificada.

O desabamento
Em abril de 2013, a produção de roupas com baixos custos em Bangladesh
provocou uma tragédia. Desabou um prédio de oito pisos que abrigava fábricas e
um centro comercial em Daca, capital de Bangladesh. No episódio morreram 1.127
pessoas. Apesar das visíveis rachaduras, amplamente rastreadas no dia anterior,
os donos das fábricas ignoraram todas as advertências para evitar o uso do edifí-
cio e deram ordens expressas para que seus trabalhadores adentrassem no prédio

Agentes cujos interesses se contrapõem aos interesses gerais: contraventores, especuladores, contrabandistas,
11

hackers, cambistas, sonegadores de impostos, corruptos, grileiros, pecuaristas desmatadores, madeireiros


ilegais, industriais poluidores, empregadores de trabalhadores forçados, falsificadores de produtos, traficantes
de drogas ou de seres humanos etc.

41
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

e cumprissem sua jornada de trabalho. As consequências não poderiam ter sido


piores. E configuraram um claro abuso particularista pelo flagrante desrespeito à
vida humana.
O dono do edifício e mais sete pessoas foram presas, acusadas de envolvimen-
to no caso. Trata-se de quatro donos de confecções, dois engenheiros e o pai do
dono do edifício. A empresa irlandesa de roupas Primark, que utilizava o edifício,
comprometeu-se a indenizar as famílias das vítimas do desabamento.

O contraponto entre a razão ética e a racionalização antiética (ou entre o


universalismo consensual e o particularismo abusivo) tem sido interpretado por
alguns de forma valorativa: a primeira entendida como sendo “boa”, e a segunda,
como “má”. Aceita esta premissa, o passo seguinte seria converter a leitura em
prescrição. Nada mais despropositado.
O trabalho científico não emite prescrições, preceitos ou diretivas, mas for-
mula categorias analíticas. As duas narrativas aqui delineadas não dizem aos
agentes o que fazer porque seu caráter é meramente classificatório. A razão ética
e a racionalização antiética são ferramentas que permitem apreender, descrever,
investigar e explicar evidências testáveis, à semelhança dos conceitos de externa-
lidades positivas e negativas em economia, de eletricidade positiva e negativa em
física, de corpo saudável e doente em medicina, de aliados e inimigos em ciência
política, de comportamento social e antissocial em psicologia, de processos de
cooperação e de competição em sociologia, de ato lícito e ilícito em direito etc.
Não são dogmas, mandamentos ou preceitos, mas conhecimentos. De posse
deles, os agentes sociais escolhem o rumo que mais lhes convém em função dos
próprios interesses, valores e expectativas.

3.4 Exercício: É eticamente legítimo? (3)


Diga se você considera as situações a seguir eticamente legítimas, ainda que
de forma impressionista.12

Fato Sim/Não
1. Denunciar empresa concorrente que esteja efetivamente espionando
economicamente a sua.
2. Delatar o assédio moral cometido por um chefe.
3. Colaborar com as autoridades no combate a um cartel.
4. Denunciar anonimamente uma empresa concorrente porque ouviu
dizer que ela utiliza insumos contrabandeados.

A legitimidade corresponde ao apoio coletivo ou ao reconhecimento da justeza de dada ação ou decisão.


12

No caso, destacamos a legitimidade ética que supõe a satisfação de interesses universalistas, portanto, de
decisões ou ações que interessam a todos indiscriminadamente.

42
Capítulo 3: O contexto contemporâneo

Fato Sim/Não
5. Doar recursos da empresa para ajudar munícipes flagelados ainda que
isso reduza os dividendos dos acionistas.
6. Boicotar uma empresa que abusou da boa-fé de seus clientes para
que sofra as consequências de suas ações.
7. Processar empresa que lançou efluentes industriais em curso d’água.
8. Dar agrados a um fiscal de renda que brinda a empresa com conse-
lhos e que deixa de multar suas infrações.
9. Comprar insumos com meia nota e vender parte da produção sem
nota para enfrentar o peso da carga tributária.
10. Reagir contra invasão e depredação de propriedade produtiva promo-
vida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

O gabarito deste teste de conceitos (3) se encontra no Anexo.

43
Capítulo

4
Os interesses pessoais

4.1 O egoísmo
O que são interesses? Fatores existenciais tão valiosos que mobilizam os
agentes sociais para satisfazê-los e defendê-los. Em consequência, demarcam
territórios ou espaços vitais que asseguram as próprias condições de existência:
a posse de bens materiais, o exercício de posições de mando, o acesso a bens
simbólicos, o desfrute de prestígio social.

O mago de Wall Street


O legendário financista Bernard Madoff, ex-presidente da bolsa eletrônica Nas-
daq, foi responsável pela maior pirâmide financeira da história (um esquema Ponzi
de US$65 bilhões).
A pirâmide consistiu em usar o dinheiro aplicado por novos investidores para
remunerar os antigos. Mas, quando a entrada de novas aplicações sofreu brusca
diminuição, o esquema veio abaixo. Foi o que aconteceu na crise financeira de 2007-
2008, fazendo ruir o castelo de cartas de Madoff. Diante do juiz ele confessou: “Quando
eu comecei o esquema Ponzi, acreditei que terminaria logo e que eu poderia sair dele,
assim como meus clientes.”
Madoff valeu-se da fama de filantropo e mago de Wall Street para fraudar bancos
importantes, fundos de investimento, seguradoras, megainvestidores, além de univer-
sidades, fundações e entidades filantrópicas. Com sua prisão, em dezembro de 2008,
e sua condenação a 150 anos de prisão (junho de 2009), sua carreira obviamente
chegou ao fim.

A ganância cegou um homem consagrado. Ao iludir a boa-fé de muitos,


surpreendeu o mundo. Suas ações prejudicaram inúmeras pessoas e destruiu a

45
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

vida de muitas delas. Haveria como nutrir compaixão no caso dele? Afinal, sua
conduta foi eminentemente egoísta.
Isso quer dizer exatamente o quê? É trivial confundir interesse pessoal e
egoísmo, como se os dois conceitos fossem sinônimos. Ledo engano. A satisfação
dos interesses pessoais não é necessariamente maligna: pode ser legítima, se não
prejudicar ninguém (autointeresse) ou ilegítima, se lesar outros (egoísmo). Há,
pois, dois modos de realizar os interesses pessoais.
No egoísmo, o indivíduo age para satisfazer os próprios interesses, mas o
faz de forma nociva aos outros: prejudica-os, causa-lhes dano, lesa-os. Em sua
ânsia de desfrutar determinado bem:
j
Atropela quem estiver em seu caminho, de forma calculista ou de forma
irresponsável.
j Realiza seus interesses individuais à custa dos interesses dos outros.
j Leva vantagem e causa dano aos outros ao agir de modo interesseiro e
egocêntrico.
j
Gera para si mesmo um bem restrito que é abusivo, particularista e ex-
cludente, à medida que explora parasitariamente a boa vontade alheia.

Os guardas-noturnos
Preocupados com os seguidos arrombamentos, 10 lojistas de uma rua comercial
se reuniram e decidiram contratar três guardas-noturnos. Cada qual se comprometeu
a desembolsar uma quota fixa e, caso houvesse novas adesões, os guardas ganhariam
mais. O acerto pareceu proveitoso para todos os participantes.
Vencido o primeiro mês, os guardas foram cobrar o que lhes era devido. Nove
pagaram. O último falhou, tendo feito o seguinte raciocínio: “Os outros pagaram; a
rua vai continuar protegida.” Quando souberam, os demais lojistas chiaram com a falta
de compromisso do colega. No mês seguinte, apenas oito pagaram. No outro, foram
sete, e nenhuma loja nova aderiu ao pacto anterior, o que poderia compensar os
desfalques. Os guardas então desistiram de prestar o serviço.

Os assaltos voltaram a ocorrer, e os lojistas que haviam honrado suas quotas


comentaram: “Ninguém tem mais palavra.”1
O que pôs tudo a perder, inviabilizando a cooperação que tinha sido acertada?
A ideia de “levar vantagem” motivou os inadimplentes. As desistências minaram
o acordo e tornaram impraticável o serviço de vigilância. Quem perdeu?
Os lojistas, sem dúvida, e todos os demais vizinhos que iriam se beneficiar de
maior segurança na região.

Inspirado por João Mellão Neto. Vamos levar vantagem!. O Estado de S. Paulo, 05 de dezembro de 2003.
1

46
Capítulo 4: Os interesses pessoais

O tabu do estresse
A ONG britânica Mind, voltada para a saúde mental, publicou um levantamento
referente ao estresse endêmico que acomete milhões de trabalhadores no Reino
Unido, e que acarreta a perda de bilhões de dólares em horas de trabalho.
O mais curioso é que 93% mentiram a seus patrões a respeito do motivo real de
seu absenteísmo. Alegaram dores de estômago, resfriados, dores de cabeça, consultas
médicas, problemas em casa ou doenças na família, menos o estresse no trabalho.

Não confessaram que aguentam cada vez menos as pressões para o cum-
primento de metas, nem tentaram discutir as questões referentes ao ambiente
de trabalho em que prevalece o moral baixo, a baixa produtividade e formas
escapistas de enfrentar as tensões.2
Esse caso provoca leituras apaixonadas. No essencial, os trabalhadores alegam
que seus gestores não se preocupam com o seu bem-estar. Daí o círculo vicioso:
se confessarem seu estresse revelarão fraquezas que porão em risco seu emprego;
em compensação, os gestores dizem que as mentiras não contribuem para que
o verdadeiro problema seja enfrentado.
O que resulta desse imbróglio? Perda de receitas e desmotivação do pessoal,
comprometimento da saúde dos trabalhadores e reduzida capacidade de atender
às demandas. Prejuízos na certa para todos os lados.
Ora, será que os gestores deveriam se preocupar com as condições de trabalho
de seus subordinados e criar um canal confiável de diálogo para administrar o
ambiente organizacional? Certamente. Será que deveriam identificar os riscos
incorridos, reconhecer o estresse e dar suporte a quem trabalha? Parece que sim.
Mas a carência desses mecanismos justifica as dissimulações dos trabalhadores?
De maneira alguma. O que gera o círculo vicioso? Cada um deles olha exclusi-
vamente para o próprio umbigo e descuida dos demais interesses envolvidos.
Resultado? Todos perdem.

4.2 O autointeresse
No autointeresse, ao contrário, o indivíduo satisfaz interesses pessoais tendo
em vista os interesses alheios, age de forma benigna sem prejudicar ninguém,
integra-se como parte de um todo e realiza um bem pessoal de forma consensual,
universalista e includente.
Isso não significa que aqueles que quebram as regras de convivência saiam ilesos,
pois os prejudicados reagem em legítima defesa. Imaginemos, por exemplo, o caso
de um ladrão que tenta invadir o lar de alguém e encontra resistência, ou imaginemos
um hacker que uma pessoa lesada denuncia. A legitimidade fica do lado de quem
http://www.mind.org.uk/news/4106_the_final_taboo_millions_of_employees_forced_to_lie_about_stress.
2

47
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

se opõe ao abuso (reação de autodefesa), e a resposta dada atende às expectativas


gerais, pois interessa a todos que sejam reprimidos agressores ou trapaceiros.
Dito de outra forma, ansioso por proteger seu próprio espaço vital, o in-
divíduo procura guarnecer seus flancos: assegura relações amistosas com quem
convive com ele; não molesta os outros; não invade os espaços alheios; não se
incompatibiliza com quem possa afetá-lo. Em contrapartida, aguarda que os
outros lhe concedam a merecida reciprocidade e se defende de investidas que
ameacem seu bem-estar.
Assim, as práticas autointeressadas produzem um benefício pessoal sem lesar
os demais agentes sociais. Por isso mesmo, obedecem à razão ética: revestem-se
de caráter consensual e universalista, pois interessa a todos que sejam exercidas.

O convite para o exterior


Um gerente exemplar, com MBA completo, foi convidado pela diretoria da em-
presa a assumir um posto no exterior. Disseram-lhe que teria a oportunidade de
conhecer mercados diferentes, praticar seu inglês e iniciar uma carreira internacional.
Ciente de que seria um “expatriado” com as vantagens e as incertezas que a
situação implica, pediu 48 horas para pensar, preocupado com a reação da esposa.
Na casa dele, qual não foi a surpresa? A mulher não se opôs à ideia! Até argu-
mentou que os dois filhos pequenos iriam se adaptar com facilidade. Observou que,
quando menos esperarem, falarão outra língua e farão novos amigos. Quanto ao
emprego dela num grande escritório de advocacia, disse que pedirá demissão. E que
não vê razão para se arrepender! “É mesmo?” − insistiu o marido incrédulo.
A resposta dela veio como um sopro de ar fresco: falou que sempre quis cursar
uma especialização em direito empresarial e, assim, obter credenciais para voos mais
altos. Mas quem cuidará das crianças? Ela, é claro! Terá finalmente o tempo que lhe
falta hoje... Ou seja: a cada obstáculo, uma resposta convincente!
O gerente ficou nas nuvens. Esfregou os olhos para ter certeza de que não so-
nhava. E, explodindo de contentamento, levou a família para comemorar na melhor
lanchonete da cidade. No dia seguinte, aceitou o convite.

Aceitar ou não proposta de transferência para o exterior é uma decisão de


autointeresse, desde que não conflite com os interesses de quem depende de nós
e desde que não prejudique ninguém.
Recapitulando, a geração de um bem restrito pessoal satisfaz os interesses de
um agente individual e pode ser efetivada de duas formas:
j
Egoísta, quando beneficia exclusivamente o indivíduo à custa dos outros
e, portanto, assume feições abusivas e particularistas.
j
Autointeressada, quando beneficia o indivíduo sem prejudicar outrem e,
portanto, assume feições consensuais e universalistas, pois salvaguarda a
individualidade e interessa a todos.
48
Capítulo 4: Os interesses pessoais

Não faz sentido, por conseguinte, equiparar interesse pessoal e egoísmo,


pois estaremos confundindo conceitos de natureza distinta: o primeiro, de
caráter genérico e intrinsecamente neutro; o segundo, de caráter específico e es-
sencialmente pernicioso. O mesmo vale para o autointeresse e o egoísmo. Porque
apreendem fenômenos diametralmente opostos, embora se refiram ambos à ação
individual.

Figura 4.1  A realização do bem pessoal.

Vejamos agora um jogo que mobiliza uma dupla de jogadores e que lança luz
sobre o assunto. Trata-se de um teste aplicado em laboratório a pessoas que não
se conhecem e que, em tese, não terão outra oportunidade de se cruzar.

O jogo do ditador
Você está incumbido de repartir R$1 mil com outro sujeito que não está autorizado
a se manifestar. Imagine, então, a quantia que você se dispõe a lhe conceder. Quanto
irá oferecer ao outro? Lembre que a divisão da quantia entre os dois jogadores é de
sua alçada e que o outro nada pode fazer.
Vamos agora ao resultado. Nos inúmeros exercícios realizados, quem define a
repartição tende a fazer uma oferta sovina. E, mais ainda, quando as propostas são
seladas, de maneira que ninguém sabe quem ofereceu quanto, muitos ficam com
quase tudo!

Esse jogo ilustra o quanto somos tentados a ultrapassar as fronteiras do


autointeresse e a nos embrenhar, endemoniados, na selva do egoísmo. Nesta, a
palavra de ordem é “Devore, antes de ser devorado”.
49
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Todavia, quando os dois jogadores se conhecem e sabem que irão interagir


no futuro, o jogador incumbido de repartir o dinheiro tende a fazer uma oferta
“justa”, isto é, oferece R$500 ou um pouco menos. Por quê? Para não manchar a
própria reputação e, sobretudo, para não arriscar retaliações.
Outro jogo ilustrativo pode ser testado com um grupo de amigos.

O jogo do bem público


Cada jogador dá uma contribuição voluntária a um fundo comum. A banca vai
duplicar a quantia recebida e dividir o montante de forma igual entre os participantes,
não importa a contribuição feita por cada participante.
Imaginemos, por exemplo, que “A” contribua com R$100, “B”, com R$300, “C”, com
R$400, e “D”, com R$600. O total da contribuição ao fundo comum é, portanto, de
R$1.400. A banca duplica e divide por igual. Entrega, então, R$700 a cada um dos
participantes, porque os R$2.800 são divididos por quatro.
Do ponto de vista do grupo, a melhor estratégia consiste em que cada participante
contribua com todas as suas posses. Assim, todos multiplicam o próprio dinheiro.
Repetindo a dose, o jogo se torna cada vez mais vantajoso. Ocorre que, depois de
alguns lances, começam a surgir os “caronas” e o fundo se esvazia. Por que será?
Vejamos o primeiro lance. Cada um ganhou quanto? “A” recebeu R$700, embora só
tenha desembolsado R$100, de maneira que lucrou R$600. “B”, por sua vez, lucrou 400
reais, porque contribuiu com R$300. “C” lucrou R$300 por ter dado R$400. Finalmente,
“D” recebeu quanto? Apenas R$100! Apesar de ter contribuído com R$600!
Assim, quem menos contribuiu recebeu mais! E quem mais contribuiu recebeu
menos... A razão reside no seguinte fato: caso todos contribuíssem com tudo em
seguidos lances, a disparidade entre os ganhos diminuiria e todos sairiam lucrando.
Porém, os anseios imediatistas fazem com que a melhor estratégia do ponto de vista
individual (não grupal) seja a do free rider. De fato, o carona que trapaceia e que pouco
contribui para o fundo, ou até não contribui, tira bom proveito dos aportes alheios!
Contudo − e eis o mecanismo de controle −, se os contribuintes pudessem multar
aqueles que deixarem de contribuir, todos se acovardariam e passariam a contribuir
para o bem geral...

Não há dúvida de que práticas egoístas são pontualmente vantajosas para quem
delas se beneficia. Só que solapam os processos de cooperação, quando não os
condenam. Quem não sabe que, nos jogos em equipe, o “fominha” prejudica
os resultados da partida simplesmente porque quer todas as glórias para si? Razão
pela qual a generalização das práticas egoístas não se sustenta ao longo do tempo.
Alguém já viu alguma coletividade em que só haja práticas egoístas? Obviamente
não. Porque os egoístas operam como bactérias parasitárias das sociedades hos-
pedeiras. Sem os organismos portadores, não têm onde se abrigar! Aliás, uma das
vantagens evolutivas do Homo sapiens é justamente seu senso de interdependência
e sua sociabilidade, ambas preciosas ferramentas de coesão e sobrevivência.

50
Capítulo 4: Os interesses pessoais

Mas, diante das ameaças egoístas, como assegurar o bem comum numa
coletividade? O jogo do bem público nos dá as pistas. Para coibir a ação de quem
trapaceia, é indispensável adotar controles efetivos e sanções exemplares. Para
tanto, uma regulação coletiva se impõe.

Os mutantes resistentes aos trapaceiros


A cooperação entre membros de uma mesma espécie é comum entre mamíferos,
aves, insetos e organismos muito simples, como bactérias. É tanta a diversidade dessas
“organizações sociais” que fica difícil definir os requisitos mínimos para classificar um
ser vivo como “social”.
O que caracteriza grande parte dessas “sociedades” é o fato de cada indivíduo se
beneficiar ao participar do grupo e ao mesmo tempo contribuir para sua manutenção.
Nas sociedades humanas, os impostos são um caso típico − cada indivíduo contribui
e o arrecadado é usado em benefício de todos. O mesmo ocorre quando um membro
do grupo deixa de se alimentar e fica atento à presença de predadores, enquanto
os outros se alimentam beneficiados pela segurança proporcionada pelo vigia. Em
cada caso, o indivíduo se sacrifica momentaneamente em prol dos benefícios de
viver em grupo.
Uma das consequências desse tipo de “acordo social” é que ele possibilita o
aparecimento dos trapaceiros, indivíduos que contribuem pouco ou nada, mas se
beneficiam das vantagens da vida em grupo. Por contribuir menos, os trapaceiros
levam vantagem sobre os outros membros da sociedade e tendem a aumentar de
número.
O problema é entender os mecanismos usados pelo grupo para controlar os
trapaceiros, não deixando que sua presença acabe por destruir as vantagens de
viver em grupo. Nas sociedades humanas surgiram as normas, as leis e a polícia. Em
outras espécies foram descritos diversos mecanismos que controlam o efeito nocivo
do aumento dos trapaceiros. Mas somente agora foi demonstrado um efeito que
havido sido postulado faz anos: a presença de um trapaceiro contribui para a seleção
de mutantes resistentes aos artifícios do trapaceiro.3

Do ponto de vista analítico, a ação individual pode ser caracterizada como


egoísta desde que não levemos em conta a reação dos agentes prejudicados e
desde que olhemos somente para quem se beneficia com o ato. Caso contrário,
o foco deixará de ser o indivíduo e passará a ser a relação estabelecida entre ele e
os demais agentes lesados. Abarcará então coletividades (grupos, sociedades ou a
própria humanidade) e exigirá conceitos mais abrangentes, como o parcialismo
e os três altruísmos (restrito, imparcial e extremado) que envolvem interesses
grupais e interesses gerais.4

Fernando Reinach. O Estado de S. Paulo, 29 de outubro de 2009. p. A24.


3

Esses conceitos serão analisados nos capítulos a seguir.


4

51
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Peguemos, por exemplo, o “pedágio” que um gerente de tesouraria exige para


pagar faturas de fornecedores. De que se trata? De uma tentativa de extorsão. Do
estrito ponto de vista do gerente, a ação dele é egoísta. Todavia, o desdobramento
do caso envolve uma relação, e não uma ação individual, de maneira que precisa-
remos dar conta das reações dos demais envolvidos. Em consequência, conceitos
de âmbito coletivo serão aplicados. Vejamos as possíveis reações do fornecedor.
Ele pode:
j
Dobrar-se à exigência do gerente e desembolsar recursos que diminuem
seus lucros e que poderão ser eventualmente repassados aos preços de
venda nas futuras transações (prática parcial, pois reduz a lucratividade
do fornecedor e pode afetar a empresa compradora em um efeito bume-
rangue).
j Resistir ao abuso e sofrer as consequentes represálias, tais como receber
com atraso ou ser descredenciado pela empresa compradora (prática
altruísta restrita por não se submeter à extorsão e preservar não só os
próprios lucros, mas a reputação da empresa fornecedora).
j Recusar-se a pagar e denunciar o fato à diretoria da empresa compradora,
na esperança de que esta tome providências e coíba o abuso (prática al-
truísta restrita ao contribuir para que a empresa compradora controle seus
procedimentos e ao preservar os interesses de longo prazo de seu próprio
negócio).
j
Preparar um flagrante com a ajuda das autoridades, caso desconfie de
alguma cumplicidade entre a diretoria da empresa compradora e seu
gerente de tesouraria (prática altruísta imparcial ao defender os interesses
sociais, incluindo-se aí os interesses das duas empresas envolvidas).
Desgastes e vantagens ocorrerão em ambos os lados, qualquer que seja o
cenário. Todavia, quem perde mais, caso o fornecedor pague o “pedágio”? Ao fim
e ao cabo, os proprietários da empresa compradora serão os mais prejudicados
porque o fornecedor procurará se ressarcir da extorsão na próxima oportuni-
dade, aumentando os preços de seus produtos ou serviços. Em decorrência, a
empresa compradora se tornará menos competitiva e provocará um pernicioso
efeito cascata no mercado (a corrupção encarece o custo das transações), além
de comprometer a própria reputação (notícias de conivência ou de descontrole
interno circulam céleres).

4.3 Teste de conceitos (4)


Vamos testar os dois conceitos aqui enunciados em situações historicamente
determinadas, cientes de que práticas autointeressadas e práticas egoístas existem
em toda parte e em todas as épocas (universalidade dos conceitos). Vale dizer,

52
Capítulo 4: Os interesses pessoais

embora o teor dessas práticas varie de uma sociedade para outra, as caracterís-
ticas gerais que as definem permanecem as mesmas.
O exercício a seguir consistirá em qualificar cada caso enunciado como uma
prática autointeressada (A), que não prejudica os outros, ou uma prática egoísta
(E), que é lesiva aos outros. Essa qualificação, porém, exige que se indague: tal
prática beneficia quem e prejudica quem?

Caso Prática
1. Apropriar-se de ideia alheia.
2. Fazer jus a bônus por desempenho.
3. Participar de um concurso interno na empresa.
4. “Puxar o tapete” dos colegas.
5. Descansar depois da jornada de trabalho.
6. Esconder erros cometidos no exercício profissional.
7. Denunciar assédio moral ou assédio sexual.
8. Usar equipamentos da empresa para negócios pessoais sem
autorização.
9. Majorar nota de despesa reembolsável.
10. Candidatar-se a um emprego cujo anúncio está no jornal.
11. Não conferir crédito a quem realizou determinado serviço.
12. Sonegar informações úteis aos colegas.
13. Vazar o sigilo profissional.
14. Contar piadas indecorosas em público sendo um alto gestor.
15. Cobrar diárias de viagem indevidas.
16. Requerer equipamento de proteção individual.
17. Receber a aposentadoria do INSS.
18. Aceitar ou recusar uma promoção.
19. Exigir “bola” dos fornecedores para contratá-los.
20. Debochar de clientes, colegas ou terceiros.
21. Apresentar-se sem asseio na empresa.
22. Lançar horas extras a mais.
23. Gozar férias remuneradas em período negociado.
24. Inscrever-se num curso de pós-graduação.
25. Pleitear um aumento salarial.
26. Assediar moral ou sexualmente subordinados ou colegas.
27. Trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas.
28. Contratar um seguro-saúde.

O gabarito deste teste de conceitos (4) se encontra no Anexo.


53
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Vamos pegar três casos e analisá-los, convictos de que os demais obedecem


à mesma lógica.
Trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas pode ser do interesse do
funcionário, mas resulta em risco aos colegas e ao negócio, não importa a função
desempenhada. Caso o colaborador opere máquinas, os perigos são evidentes;
caso atenda clientes, a imagem da empresa fica em xeque; caso exerça atividades
burocráticas, possíveis erros provocam prejuízos ou, pelo menos, retrabalho. É
uma ação egoísta, uma vez que provoca danos aos outros.
Participar de um concurso interno na empresa, desde que o colaborador
reúna as condições requeridas, é uma ação autointeressada porque não prejudica
ninguém e procura satisfazer os próprios interesses.
Apresentar-se sem asseio na empresa é desagradável para os colegas e trans-
mite uma péssima imagem no contato com clientes e terceiros. A ação incomoda
os outros, é lesiva aos interesses da empresa e, portanto, egoísta. E assim por
diante.

54
Capítulo

5
Os interesses grupais

5.1.  O parcialismo
Vamos deixar o território das práticas individuais e caminhar no campo
minado das práticas grupais. Minado por quê? Por causa do peculiar cacife dos
grupos. De fato, diferentemente dos agentes individuais, os grupos são capazes
de ações coordenadas que multiplicam a força numérica de seus membros,
impactam significativamente seus ambientes e provocam o bem ou o mal de
modo descomunal. Lembremos feitos positivos e negativos como o pouso na Lua
ou o Holocausto, a Muralha da China ou o lançamento da bomba atômica em
Hiroshima, a construção do Canal do Panamá ou o tráfico negreiro, os avanços
da tecnologia da informação, da medicina e da nanotecnologia ou o genocídio
promovido pelo Khmer Vermelho, no Camboja.
Alexander von Humboldt (naturalista e geógrafo alemão) perguntou a ín-
dios antropófagos da Amazônia se era certo devorar homens. Eles responderam
sem pestanejar: “Que mal há nisso? Os homens que comemos não são nossos
parentes.” Existe melhor exemplo de como um grupo ou uma coletividade pode
converter seus laços de parentesco ou afinidade em umbigos do mundo?

Os aplicativos piratas
Estamos no final dos anos 1990. Um jovem executivo está desempregado há seis
meses. Tem dois filhos estudando em escola privada e foi demitido da gerência de
informática de uma grande engarrafadora porque a empresa decidiu terceirizar os
serviços.
O executivo esgotou boa parte de seu fundo de garantia, deve a última prestação
do apartamento e três meses de condomínio. Está também sem fôlego para pagar

55
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

as mensalidades escolares. Sua mulher não trabalha e demonstra cada vez mais
amargura: resmunga o tempo todo e anda se queixando à família e às amigas a res-
peito do marido desempregado.
A autoestima do executivo anda baixa, e a depressão vem se apossando dele. De
vez em quando, diz a si mesmo que está pronto para o que der e vier. Um ex-colega,
que montou uma firma de manutenção de micros, o aconselha a parar de se lamentar
e arrumar logo R$2 mil. Com isso, compraria um gravador de CDs e discos virgens,
copiaria softwares que muitos amigos dele lhe repassariam e forneceria programas
a bom preço a empresas e a particulares.
Eis um modo de sair do sufoco. Quanto ao resto − pensa consigo mesmo −, três
em cada quatro softwares usados no Brasil são ilegais. Auditores avaliam que em
90% das empresas existe pelo menos um programa ilegal em uso, embora na maior
parte das vezes se trate de lixo.
Então? Copiar programas não dói nada, apesar do que prescreve a lei que, aliás,
está em desacordo com a realidade dos fatos.

Que prática é essa? Danosa ao bem geral, sem dúvida, ainda que o executivo
encontre argumentos convincentes para justificar sua estratégia de sobrevi-
vência: está desempregado; tem uma família para sustentar; está devendo
dinheiro; quase todos copiam softwares; a lei, que pune a cópia ilegal com
pena de detenção, é irrealista e injusta, dado o processo de desmaterialização
da economia.
Como qualificar o caminho escolhido? Ultrapassa as fronteiras do egoísmo,
à medida que não envolve apenas um indivíduo, o produtor-vendedor, mas
também outros agentes que ficam na ponta compradora dos aplicativos piratas.
A prática se processa na dimensão grupal e não na dimensão individual. Por isso
mesmo, é uma prática parcial, pois beneficia alguns às expensas de muitos outros:
desrespeita os direitos autorais; não remunera os investimentos em pesquisa ou
em concepção, fabricação e comercialização; deixa de recolher impostos; opera
nos porões da economia informal. Em resumo, prejudica o bem comum ou a
res publica (a coisa pública).

Investidores lesados
Executivos do Goldman Sachs foram acusados de “comportamento antiético”
e de “enganar seus clientes para aumentar os lucros” do banco, em 2010. O CEO da
Goldman, Lloyd Blankfein, e mais seis executivos e ex-funcionários foram massacrados
em mais de nove horas de audiência no Senado americano.
O líder do comitê de investigação, senador Carl Levin, divulgou e-mails em que os
executivos do Goldman chamavam de “monte de porcaria”, “lixo” e “negócio de merda”
os produtos que vendiam a seus clientes. E-mails e documentos mostram também
que, enquanto vendiam os “montes de porcaria”, os executivos faziam apostas contra

56
Capítulo 5: Os interesses grupais

os mesmos produtos, na chamada posição short, prevendo que os papéis teriam


queda de valor.
Os executivos questionados pelos senadores não se mostraram arrependidos.
“Arrependimento para mim é algo que você sente quando fez algo errado... Eu não
tenho isso”, disse Sparks. A maioria argumentou que os investidores que compravam
os papéis sabiam dos riscos.1

O comportamento dos executivos do banco foi claramente parcial, pois se


locupletou à custa dos clientes − decorre de algo orquestrado, coletivamente
combinado −, comportamento do qual, aliás, não se arrependeram em momento
algum. De outra parte, argumentar que os clientes sabiam dos riscos é uma jus-
tificativa pífia, uma vez que os papéis eram considerados “lixo” pelos próprios
executivos. Trata-se, pois, de uma prática particularista, que se socorreu de
racionalizações antiéticas e que é merecedora das sanções cabíveis em decorrência
do prejuízo causado.
Assim sendo, há parcialismo quando um grupo causa dano aos outros de
modo ganancioso e presunçoso, gera para si mesmo um bem restrito que é
abusivo e particularista, porque satisfaz interesses grupais em detrimento dos
demais interesses. A cobiça e o espírito faccioso que animam o parcialismo
convertem os agentes que se orientam por ele em predadores, à medida que
promove preconceitos, ódio e intolerância (“somos superiores” ou “nós contra
eles”). Como isso se explica? Em função dos padrões duplos de conduta que
o parcialismo cultiva: em relação aos estranhos, prospera a discriminação;
em relação aos pares, florescem laços de lealdade. Os “de fora” são inimigos
a serem neutralizados; os “de dentro” são aliados confiáveis a serem pres-
tigiados.
O parcialismo opera no plano grupal, coletivo, enquanto o egoísmo opera no
plano pessoal, individual. Malgrado a simetria conceitual (arrogância, presun-
ção, desrespeito aos interesses alheios), os sentidos não se superpõem porque
indivíduo não é grupo. Alguns autores usam metáforas como “o egoísmo de
um país” ou “o egoísmo de uma classe social” para expressar o lado sombrio da
satisfação dos interesses. A metáfora merece indulgência, mas o conceito está
fora de lugar.
Egoísmo tem a ver com ego, com o eu de um indivíduo qualquer; significa
sobrepor abusivamente o interesse de um único sujeito ao interesse de outros
agentes. Assim, ao rotular como “egoísta” uma coletividade, fazemos uso de
licença poética, mas passamos ao largo do rigor científico. É parcial a coletividade
que subordina os demais interesses aos seus e, sobretudo, quando se locupleta à
custa do bem-estar geral.

1 Patrícia Campos Mello. Senado acusa executivos do Goldman de antiéticos. Estado de S. Paulo, 28 de abril
de 2010.

57
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

O “cartel do oxigênio”
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou cinco fabri-
cantes de gases hospitalares e industriais, além de funcionários, à multa total de R$3
bilhões. Mais tarde, a multa foi reduzida a R$2,3 bilhões devido a um erro técnico. O
montante foi calculado sobre o faturamento das companhias em 2003, ano anterior
ao início do processo.
As empresas acusadas de formar o “cartel do oxigênio” foram a Linde, a Air Liquide,
a Air Products, a Indústria Brasileira de Gases e, principalmente, a White Martins,
reincidente e responsável pela maior parte do pagamento (R$1,76 bilhão). O cartel
lesou hospitais públicos e privados, assim como planos de saúde cujos custos foram
fortemente impactados.2

Além de ser uma prática ilegal no âmbito jurídico, a formação de cartel constitui
uma prática parcial no âmbito ético porque favorece determinadas empresas à custa
de outras, encarece preços, sujeita os clientes a exigências exorbitantes, prejudica o
setor econômico em que opera e abala um dos pilares do mercado capitalista, que é
a livre concorrência. Tem caráter abusivo porque, ao gerar um bem restrito grupal,
provoca efeitos perniciosos sobre a sociedade como um todo. Há prevalência de
interesses particularistas em relação aos interesses universalistas. Afinal, quantos
atendimentos deixam de ser realizados em consequência dos sobrepreços que enco-
lhem os orçamentos? Quantos pacientes têm suas doenças agravadas em função
da escassez de oxigênio medicinal? Vitória inconteste da racionalização antiética.

O anestesista
Um dos mais proeminentes anestesistas norte-americanos, cujas pesquisas
influenciaram o curso de muitos tratamentos, foi acusado de manipular dados.
Cometeu uma das maiores fraudes da história da pesquisa médica.
Trata-se do Dr. Scott Reuben, do Baystate Medical Central em Springfield, Mas-
sachusetts. Creditava-se a ele um procedimento que alivia a dor de pacientes sub-
metidos a cirurgias ortopédicas. A investigação concluiu, porém, que vários de seus
trabalhos são mera ficção e que os remédios propostos contra a dor efetivamente
desaceleravam o processo de cura.
Ocorre que as pesquisas de Reuben impulsionaram a venda de remédios, cujo
montante chega a bilhões de dólares, justamente daquelas indústrias farmacêuticas
que costumam conceder subvenções ou doações para a pesquisa médica.
Em janeiro de 2010, o Dr. Reuben confessou ter falsificado as pesquisas e foi con-
denado a pagar US$420 mil em termos de compensação às indústrias farmacêuticas

Célia Froufe. Cade aplica multa recorde de R$3 bilhões ao “cartel do oxigênio”. O Estado de S. Paulo, 02
2

de setembro de 2010. Martha Beck. Multa a empresas do setor de gases hospitalares condenadas por cartel
encolhe. O Globo, 22 de setembro de 2010.

58
Capítulo 5: Os interesses grupais

lesadas. Perdeu também seu cargo no hospital e responde a um processo cuja sentença
máxima poderá ser de 10 anos de cadeia.3

A fraude cometida corresponde a uma prática parcial, ou à geração de um


bem restrito particularista, pois favoreceu o médico e algumas indústrias farma-
cêuticas em detrimento dos pacientes. Impactou negativamente o bem comum,
pois lançou descrédito sobre a capacidade de o setor médico-hospitalar zelar
pelos interesses da população. Todavia, é importante lembrar que, na ausência
de abuso ou de manipulação de dados, as doações ou as subvenções para a pes-
quisa médica são sempre bem-vindas.

O Banco PanAmericano
Foram anunciadas fraudes contábeis cometidas por executivos do banco de pro-
priedade do empresário Silvio Santos e da Caixa Econômica Federal, dona de 49,9%
do capital votante, em novembro de 2010.
Segundo a fiscalização do Banco Central, carteiras de crédito vendidas a outros
bancos continuavam contabilizadas no balanço, além de haver indícios de que a
mesma carteira tenha sido vendida mais de uma vez. De maneira que a carteira de
empréstimos era inflada, e o valor do banco idem. O problema teria ocorrido durante
quatro anos. Houve também desvio de dinheiro na empresa de cartão de crédito.
O rombo inicialmente estimado foi da ordem de R$2,1 bilhões em operações de
crédito do banco e de R$400 milhões na área de cartões.
A fim de capitalizar o banco, o empresário Silvio Santos obteve um empréstimo
de R$2,5 bilhões do FGC (Fundo Garantidor de Crédito), um fundo privado gerido
pelo conjunto de bancos. Deu como garantia todo o seu patrimônio empresarial,
incluindo o SBT e o Baú da Felicidade.
Todos os diretores foram demitidos. Ademais, a Polícia Federal iniciou uma inves-
tigação sobre gestão temerária, indução de investidor em erro, inserção de elemento
falso em demonstrativos contábeis, gestão fraudulenta, formação de quadrilha,
lavagem de dinheiro e sonegação fiscal... Um invejável rol de crimes!
Uma auditoria posterior elevou o rombo a R$4,3 bilhões e obrigou Silvio Santos
a vender o banco ao BTG Pactual logo no início de 2011. Boa parte do prejuízo foi
bancada pelo Fundo Garantidor de Crédito.

Esse caso corresponde claramente a uma prática parcial, ao lesar os donos


do negócio e ao beneficiar alguns gestores. É uma ilustração paradigmática dos
riscos que os acionistas correm nas mãos dos gestores que, em tese, deveriam ser
“os olhos e os ouvidos do rei”.

http://www.masslive.com/news/index.ssf/2010/01/dr_scott_reuben_former_chief_o.html.
3

59
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Essa fraude nos remete, aliás, a um problema estrutural do sistema capitalista,


analisado pela “teoria da agência”. À medida que uma empresa cresce, o fundador
deixa de operar como homem-orquestra e passa a delegar atribuições a alguns
profissionais de sua confiança. Separa-se, assim, a propriedade (quotistas ou
acionistas) e a gestão (gestores).
Os gestores que administram o negócio não são seus proprietários e possuem
interesses diferenciais, já que são assalariados. Isso significa que, embora ganhem
bem mais do que os demais funcionários e exerçam o mando, não estão autorizados
a se apropriar dos lucros. Além dos salários, o que remunera seu trabalho? Benefícios
variados, mordomias, privilégios, bônus, stock options, participação nos lucros e resul-
tados. Ocorre que nem sempre esses incentivos materiais bastam para saciar o apetite
de alguns deles. Daí o risco moral incorrido pelos proprietários. Inseguros quanto
à atuação de seus gestores, eles estabelecem e sofisticam mecanismos de prevenção
e controle, tais como o compliance, os controles internos, a auditoria interna e a ex-
terna, assim como a governança corporativa. De maneira que procuram assegurar a
confiabilidade da gestão contra os abusos de poder que opõem acionista controlador
e acionistas minoritários, diretoria executiva e acionistas, administradores e terceiros.
Procuram também se precaver contra os erros estratégicos decorrentes da
concentração do poder, principalmente em mãos do presidente (executivo con-
tratado), e contra as fraudes, tais como o uso de informação privilegiada em
proveito próprio ou a atuação em conflito de interesses.4

Os gestores à espreita
A incorporadora Gafisa teve um prejuízo somado de mais de R$1 bilhão em 2011 e 2012.
Teve de cancelar obras, adiar lançamentos e devolver o dinheiro de clientes. O período também
foi péssimo para os acionistas: os papéis valem 69% menos do que no início de 2011. Inves-
tidores não receberam dividendos nesse período. O mesmo não se pode dizer dos executivos.
O salário médio dos seis diretores passou de R$1,8 milhão por ano para 3,6 milhões. Em 2012,
eles ganharam mais 10,4 milhões em bônus por resultados. Os investidores chiaram.
O descasamento entre o resultado e a política de remuneração não é exclusividade da
Gafisa. Exame fez um levantamento com base nos números das empresas abertas cujas ações
estão entre as mais negociadas na bolsa. São 40 no total.
Destas, 20 tiveram prejuízo em 2012. E 13 delas pagaram bônus anual ou participação nos
resultados aos diretores e conselheiros. Estas 13 empresas tiveram prejuízo acumulado de R$14
bilhões em 2012, mas distribuíram em média 6,4 milhões para seu grupo de diretores.
O debate em torno da melhor forma de remunerar executivos é antigo. Como fazer para
que eles ajam de acordo com o interesse dos acionistas, e não apenas pensando no próprio
umbigo? Para chegar a um valor que agrade aos acionistas e atraia os melhores profissionais,
as empresas criam pacotes cada dia mais complexos.
A ideia básica é simples: premiar quem cumpre as metas. Mas é aí que as coisas começam
a ficar mais complexas. Essa lógica é incontestável quando a empresa paga bônus elevados
por resultados excepcionais.5

http://www.ibgc.org.br/Secao.aspx?CodSecao=18.
4

Maria Luíza Filgueiras. Ruim de bolsa, boa de bolso. Exame, 02 de outubro de 2013.
5

60
Capítulo 5: Os interesses grupais

Vemos que a autonomia relativa do estatuto gerencial carrega em seu seio


o risco moral de um conflito de interesses entre proprietários e gestores. Ao
passo que os proprietários objetivam a prosperidade do negócio e um retorno
condizente com os riscos incorridos em função do tamanho do capital inves-
tido, os gestores se empenham em aumentar seu raio de ação, teimam em des-
dobrar seus privilégios, manejam os cordéis para perpetuar-se no comando do
empreendimento e privilegiam sub-repticiamente as próprias carreiras. Típico
parcialismo.

O rombo do Carrefour
A rede varejista francesa Carrefour anunciou que os gastos extraordinários com
a contabilização de receitas indevidas nas suas operações, no Brasil, atingiram cerca
de R$1,2 bilhão (final de 2010). A reação da matriz foi enérgica: demitiu boa parte dos
altos gestores, a começar pelo diretor-superintendente. Da cúpula diretiva, formada
por 10 executivos, sobraram apenas quatro.
Tanto a auditoria interna como a externa identificaram erros no recebimento de
“bonificações do varejo”, que são valores pagos pela indústria aos supermercados,
como forma de desconto na aquisição de mercadorias. Ocorre que o Carrefour não
realizou efetivamente a totalidade das vendas. Foram também apontados problemas
de ajustes de depreciação e provisões para litígios trabalhistas e fiscais.

Esse é mais um caso de prática parcial, pois essas mágicas contábeis procuraram
esconder perdas, fraudes ou desfalques. E, para piorar o quadro, o seu reconhe-
cimento público impactou negativamente o valor das ações da companhia. Isso
ilustra a autonomia de voo que os executivos desfrutam e que lhes permite driblar
os controles determinados pelos acionistas, aumentando seu nível de incerteza.

5.2.  O altruísmo restrito


Esse conceito nos força a polemizar novamente com o senso comum. A ideia
corrente, reforçada pelo dicionário, define o altruísmo como uma ação desinteres-
sada que implica um sacrifício em prol da coletividade. A definição não está de
todo errada, já que “ações heroicas” existem, embora ocorram em pequena escala.
Só que ela embute dois equívocos.
O primeiro se refere à ideia de que o altruísmo se limita a atos de puro despren-
dimento ou de plena abnegação. Tais atos nos remetem ao altruísmo extremado.
Há, porém, duas outras formas mais prosaicas de altruísmo: o altruísmo restrito
e o altruísmo imparcial. De modo que identificamos três tipos de altruísmo (logo
mais desenvolvidos).
O segundo equívoco se refere a um exagero: credita-se ao altruísmo em
geral um absoluto desinteresse quando, na verdade, o desinteresse é relativo.
61
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

De fato, os benfeitores, ainda que no silêncio de sua consciência, desfrutam da


gratificação psicológica que sua generosidade provoca. Perguntem a senhoras
voluntárias que cuidam de crianças abandonadas por que tanto desvelo. Muitas
ficarão caladas, pensativas, com um doce olhar na face; outras dirão, com
desarmada singeleza: “Basta o sorriso de uma criança, um abraço que seja, e
meu dia está ganho.” Essas formas inocentes de retribuição são recompensas
insubstituíveis.
Isso vale para todos os tipos de doação, quer seja do tempo de voluntários,
quer seja de bens materiais ou imateriais. Vale também para as mais diversas
missões de ajuda humanitária. São ações de extraordinária dedicação, altruístas
extremadas, que estudaremos no próximo capítulo. Entretanto, se olharmos de
forma mais atenta o jogo dos interesses, veremos que a via de mão dupla que
todo altruísmo implica é absolutamente usual e não supõe necessariamente
sacrifícios extraordinários.
O terceiro equívoco remete o altruísmo a atos excepcionais de heroísmo,
quando na verdade diz respeito a um mecanismo trivial entranhado em nosso
cotidiano. Basta pensar em uma situação singela. Imaginemos que não fôssemos
sistematicamente cooperativos e solidários com parentes e amigos, quer dizer, não
praticássemos em relação a eles dezenas de microações de apoio moral, amparo,
proteção, assistência ou carinho, será que nossos laços de afinidade permanece-
riam os mesmos ou seriam ameaçados? Será que não ficaríamos desamparados
sem a retaguarda de nosso círculo íntimo? Tais microações, cometidas ao sabor
das circunstâncias, são essenciais para a conservação das relações interpessoais
e, por isso mesmo, são ações altruístas como veremos.

China ajuda Europa e anima bolsas


A China declarou que vai ajudar a Europa a financiar sua crise da dívida e es-
cancarou uma inversão de papéis na relação entre Pequim e Bruxelas (dezembro de
2010). O anúncio fez com que as bolsas europeias registrassem a maior alta em dois
anos e o euro ganhasse terreno. Os chineses usariam parte de suas reservas, calculadas
em US$2,6 trilhões, para socorrer a Europa.
Mas a ajuda não é desinteressada. Hoje, a Europa é o maior mercado para as
exportações chinesas, e Pequim não pode se privar de suas vendas ao exterior sob
o risco de ver o próprio crescimento afetado. Com um comércio bilateral de quase
US$450 bilhões, tanto chineses como europeus admitem que o fortalecimento da
relação é estratégico para ambos.
Pequim pediu contrapartidas para essa ajuda. A primeira é de que a UE reconheça
finalmente a China como “economia de mercado”. Na prática, isso acabaria com a
arbitrariedade dos europeus em impor salvaguardas a produtos chineses e todas
as medidas teriam de seguir as regras internacionais. (...) Outro pedido é para que a
Europa acabe com o embargo sobre armas, medida adotada após os massacres da

62
Capítulo 5: Os interesses grupais

Praça de Tiananmen, em 1989. Desde então, a UE impede seus membros de vender


armas aos chineses.
Para haver uma mudança, todos os 27 países da UE teriam de dar seu apoio. Em
rascunhos de sua política externa comum, porém, Bruxelas insinuou que isso poderia
ser algo a ser debatido.6

Na relação de interesses, há pouco espaço para os ingênuos, sejam países,


organizações ou pessoas. Na teia dos intercâmbios, basta ler as entrelinhas e des-
vendar as agendas ocultas com fria lucidez. No caso da ajuda chinesa à Europa,
não há como deixar de identificar uma relação de apoio mútuo, que se traduz
num jogo de contrapartidas. Ora, a lista de concessões tem inegáveis consequên-
cias. O realismo político e econômico aconselha que se deem as costas àquilo que
alguns chamam de elucubrações. A análise ética, no entanto, não pode deixar de
sopesar as implicações de acordos dessa natureza.
Afinal, as vantagens e as desvantagens de qualquer entendimento não
podem se resumir à necessidade imediatista de uma das partes sair do su-
foco. Duas ponderações indicam a gravidade da aposta: a China é um país
totalitário, que não respeita os direitos humanos e que não esconde o projeto
de se tornar uma potência mundial dominante. Isso significa que certas con-
trapartidas podem pôr em risco os interesses gerais da humanidade. Que tal?
As concessões não teriam de estabelecer claros limites? As ponderações éticas
delimitam um território que transcende os interesses econômicos e calibra a
aposta política.
Posto isso, ataquemos mais a fundo a questão do altruísmo.

A comissão
Em seu primeiro emprego, um recém-formado de 23 anos foi encarregado de com-
prar material de rotina para abastecer o escritório da firma. Fez a cotação e escolheu
o fornecedor pelos critérios de melhor preço e qualidade. Quando foram fechar o
negócio, o vendedor lhe perguntou: “E como eu lhe pago os 10%?”
“Que 10%?”, perguntou o rapaz. O vendedor explicou que, pela praxe, ele tinha
direito à comissão por tê-lo escolhido. O novato, entre aturdido e ofendido, pediu
que ele desse o desconto no preço da compra, enquanto o vendedor o olhava com
a expressão de quem constata estar diante de um trouxa.
A compra dava R$35 mil. O rapaz ganhava R$1 mil por mês. A “comissão” re-
presentava três meses e meio de salário. “Até que deu vontade de pegar”, confessou
depois o garoto, mas ele não pegou.7

Jamil Chade. China ajuda Europa e anima bolsas. O Estado de S. Paulo, 22 de dezembro de 2010.
6

Lourival Sant’Anna. Corrupção nas empresas prospera sob sigilo. O Estado de S. Paulo, 28 de abril de 2002.
7

63
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Esse caso diz respeito a uma conduta diametralmente oposta ao parcialismo.


Pensemos em alguns cenários:
j
Será que o rapaz agiu de forma inocente, demonstrando não conhecer a
praxe do mercado? Não há dúvida de que desconhecia o costume. Porém,
sua candura sugere duas interpretações: na visão matreira da moral do
oportunismo (reação do vendedor), cometeu uma típica tolice de otário;
na visão reta da moral da integridade (reação provável de seu chefe ao
constatar o desconto de 10% que beneficia a firma), foi puro como todo
sujeito probo deve ser.
j Será que o rapaz não teve coragem de fazer o que tinha vontade de fazer,
indício de que é um mau caráter “mal resolvido”? Ao contrário: o fato de
ter sido tentado, e de confessar o acontecido, não diminui o moço; ex-
plicita, isso sim, o dilema no qual se viu enredado e do qual se saiu com
decência.
j
Será que o rapaz não percebeu que todo mundo faz isso e que só os es-
pertos se dão bem na vida? Deve ter desconfiado de que algo estava podre
no reino da Dinamarca, mas acabou reagindo com dignidade, pois adotou
intuitivamente a solução que beneficiou sua firma e fez jus à confiança
depositada nele. Demonstração cabal de que tinha “bons fundamentos
morais”, ou melhor, havia aprendido a lição da moral da integridade.

Do ponto de vista conceitual, estamos diante de um ato altruísta restrito:


não só o rapaz agiu obedecendo aos preceitos da honestidade e da idoneidade
(valores universalistas constitutivos da moral oficial brasileira), mas beneficiou a
empresa que o emprega ao repassar a comissão que lhe foi oferecida sob a forma
de desconto.
Isso nos leva a ver que existe uma chave didática para distinguir e qualificar as
próprias decisões e ações. Ela consiste em perguntar-se: o que eu faço prejudica
os outros? A pergunta exige uma competente análise objetiva − algo que nem
sempre é fácil fazer. Se a resposta for positiva, a prática será caracterizada como
egoísta. Caso contrário, a prática será caracterizada como autointeressada ou
como altruísta.
Duas questões merecem agora consideração: o que é o altruísmo? E, no
caso do rapaz, por que estamos diante de um altruísmo “restrito”? O altruísmo
constitui uma das vantagens evolutivas da sociabilidade humana ao assegurar
cooperação e solidariedade no seio dos grupos, assim como unidade de ação e
decisão frente aos perigos que os ameaçam. De fato, a capilaridade do altruísmo
permeia toda e qualquer coletividade, já que não há sociedade humana que pres-
cinda daquela miríade de ações altruístas que são, ao mesmo tempo, cotidianas
e microscópicas. Aliás, é bom que se diga, todos os seres vivos − de natureza
gregária porque extremamente vulneráveis − adotam mecanismos altruístas.

64
Capítulo 5: Os interesses grupais

Ora, como reconhecer as ações altruístas? Elas ocorrem quando o indivíduo


ou o grupo se preocupa com o bem-estar dos outros:
j
Compartilha valor com os outros e provoca reciprocidade, o que resulta
em um processo de dar e receber.
j Age com boa vontade, de modo cooperativo e solidário.
j Leva em conta os interesses dos outros para não prejudicá-los.
j Procura beneficiar os outros na medida do possível, ainda que isso im-
plique algum “custo” (esforço ou contribuição).
j Assegura a coesão coletiva pelo senso de interdependência.
j
Trata os outros como espera ser tratado (regra de ouro).

Se não, vejamos. Imaginemos que você ceda seu lugar no metrô ou no ônibus
a uma mulher grávida ou a um idoso. Há umas três ou quatro décadas, isso
fazia parte das boas maneiras ou da etiqueta brasileira. Hoje em dia, a norma
deixou de vigorar: ceder ou não o lugar converteu-se em preferência pessoal. Ou
imaginemos que você ajude um cego a atravessar a rua ou ainda troque o pneu
furado do carro de uma colega que tem dificuldade em fazê-lo.
O que são esses atos senão atos altruístas? Cometê-los não exige heroísmo
algum ou sacrifícios extraordinários. Requer algum esforço, é verdade, pois im-
plica cooperação (atuação conjunta) e solidariedade (compromisso de apoio).
Gera um inegável bem, ainda que restrito. Não anula, todavia, os interesses do
autor nem equivale à doação sem contrapartida. Vale dizer, o altruísmo implica
algum tipo de reciprocidade ou de ganho conjunto (compartilhamento de valor):
supõe uma espécie de contrato simbólico (a pessoa beneficiada se sente em dívida
ou no dever de retribuir o gesto de boa vontade); satisfaz também algum interesse
do agente à medida que, no mínimo, lhe proporciona uma sensação de dever
cumprido (gratificação psicológica) ou lhe confere quer prestígio social quer
reconhecimento pessoal, ainda que não tenham sido esses os motivos primeiros
da ação cometida.

A disseminação de métodos produtivos


A subsidiária brasileira da Toyota ministra aulas aos fornecedores sobre o sistema
de produção Toyota, responsável pela redefinição mundial da engenharia automotiva:
produção enxuta, automação, trabalhadores multifuncionais, filosofia Kaisen da me-
lhoria contínua, produção em pequenos lotes, Just-in-time para eliminar estoques
elevados, Poka-yoke para evitar a ocorrência de defeitos de fabricação, Kanban ou
fichas que indicam qual a quantidade de peças necessárias para que dado processo
prossiga etc.
Assimilada a metodologia, a equipe do fornecedor escolhe um problema real que
esteja ocorrendo na fábrica e se propõe a resolvê-lo. A ideia consiste em aplicar as
ferramentas aprendidas. Daí para a frente, ao longo de quatro meses, os fornecedores

65
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

recebem visitas mensais de técnicos da Toyota que monitoram e orientam os avanços.


Ao final, todas as empresas apresentam seus projetos de melhoria da qualidade a
executivos indicados pela montadora.
O que resulta desses esforços conjuntos e do investimento em capacitação efe-
tuado pela Toyota? Cria-se valor para todos os envolvidos: os fornecedores reduzem
seus custos, enquanto a montadora diminui o número de peças defeituosas e se
credencia para obter descontos.

Eis uma boa ilustração do altruísmo restrito: o processo opera em via de mão
dupla, pois corresponde a práticas de apoio mútuo que beneficiam um grupo
ou alguns grupos. Além do mais, o benefício grupal obtido não prejudica os in-
teresses alheios e reforça os laços de afinidade existentes, uma vez que se partilha
valor entre as partes envolvidas.
Como qualificar o bem gerado? Seu caráter é restrito porque não abarca a
sociedade como um todo, ainda que venha a provocar reflexos benéficos. E mais
ainda: é consensual e universalista, pois interessa a todos poder usufruí-lo.
Os três setores constitutivos da sociedade (o 1° público, o 2° privado e o 3°
voluntário) praticam o altruísmo restrito embora sejam igualmente capazes de
exercer as demais práticas coletivas (as parciais, assim como as altruístas impar-
ciais ou as extremadas). Afinal, é bom que se diga, tanto os agentes individuais
como os agentes coletivos são multifacetados e podem cometer ações nem sempre
consistentes entre si.

Espionagem industrial na Renault


A fabricante francesa de automóveis demitiu três diretores responsáveis por
programas relativos a veículos elétricos, suspeitos de terem divulgado informações
consideradas sensíveis. O diretor jurídico e de ética da multinacional alegou a neces-
sidade de “proteger sem demora os ativos estratégicos, intelectuais e tecnológicos
da empresa”.
O caso de espionagem industrial foi batizado pelo próprio governo francês como
“guerra econômica”, uma vez que a suspeita recai sobre um grupo empresarial chinês.
Afinal, a Renault está investindo €4 bilhões, dos quais €1,5 bilhão se destinam ao
desenvolvimento de baterias elétricas, enquanto todas as montadoras da China juntas
estariam investindo €1,36 bilhão em baterias elétricas.8

Ocorre que, meses mais tarde, o caso sofreu uma grande reviravolta: a Justiça
francesa descobriu que se tratava de fraude praticada pela área de segurança da

Renault demite diretores suspeitos de espionagem industrial. O Estado de S. Paulo, 07 de janeiro de 2011;
8

Andrei Netto. Chineses estariam por trás de espionagem na Renault. O Estado de S. Paulo, 08 de janeiro de
2011; Le Monde, 11 de janeiro de 2011.

66
Capítulo 5: Os interesses grupais

Renault que deu origem às acusações. O presidente da Renault, Carlos Ghosn,


pediu desculpas aos executivos demitidos e se comprometeu a lhes fazer “repara-
ções” (retorno à empresa ou compensações). Pela falha na condução do processo,
abriu mão dos bônus recebidos em 2010.9
Quais lições podem ser extraídas do caso? Primeira lição: a demissão dos
diretores que supostamente puseram em risco os ativos da empresa foi uma
medida pretensamente altruísta restrita, ao rechaçar a concorrência desleal e
ao reagir em defesa de interesses corporativos. Qual bem procurou preservar?
Os investimentos em pesquisa de baterias elétricas e o segredo industrial daí
decorrente. Vê-se, então, que o altruísmo restrito transcende a visão escoteira
do bom-mocismo. Remete ao apoio mútuo entre agentes, mas implica também
consciência dos perigos que rondam a produção de qualquer bem e supõe, por
isso mesmo, uma indispensável capacidade de enfrentar as ameaças que pairam.
Segunda lição: as medidas tomadas pelo presidente (altruísmo restrito) que se
seguiram ao esclarecimento do caso pela Justiça (altruísmo imparcial no exercício
da segurança jurídica) visaram reparar o grave mal-entendido, demonstrando
respeito, humildade e coragem, à medida que reconheceram a inépcia (prática
parcial cometida). Terceira lição: a atitude dos três funcionários da área de
segurança acusados de terem tramado a fraude foi uma prática parcial, o que
justifica suas demissões após o esclarecimento do caso (o próprio braço direito
do presidente Ghosn, chefe direto dos três executivos injustamente acusados de
espionagem, também foi afastado).

5.3.  Práticas grupais opostas


O altruísmo restrito mantém simetria conceitual com o autointeresse. Remete
a fenômenos que ocorrem no plano grupal, enquanto o autointeresse se restringe
ao plano individual. Refere-se ao fato de que um grupo (ou eventualmente
grupos):
j
Age de forma benevolente para satisfazer interesses grupais sem prejudicar
interesses alheios.
j Gera um bem restrito porque não abrange coletividades inclusivas
(sociedade ou humanidade).
j Fortalece os laços de afinidade entre os membros do grupo ou entre os
grupos envolvidos.
j Situa-se no polo oposto ao parcialismo.
j
Obedece à razão ética com práticas que se pautam pela lógica da inclusão
e cujo caráter é consensual e universalista.

Espionagem na Renault vira caso de fraude. O Estado de S. Paulo, 15 de março de 2011.


9

67
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Em contrapartida, o parcialismo mantém simetria conceitual com o egoísmo.


Diz respeito a fenômenos que ocorrem no plano grupal, enquanto o egoísmo se
reporta ao plano individual. Refere-se ao fato de que um grupo (ou eventual-
mente grupos):
j
Age de forma gananciosa e presunçosa para satisfazer interesses grupais,
ou seja, causa dano aos outros ou ao bem geral.
j Gera um bem restrito que fortalece os laços facciosos entre os membros
do grupo ou entre os grupos envolvidos.
j Situa-se no polo oposto ao altruísmo restrito.
j
Obedece à racionalização antiética com práticas que se pautam pela lógica
da exclusão e cujo caráter é abusivo e particularista.

Figura 5.1  A realização do bem grupal.

Um negócio que caiu do céu


Reginaldo, homem de meia-idade, é diretor financeiro de uma empresa familiar
brasileira, já profissionalizada há alguns anos. Desfruta de bom conceito junto ao
presidente e, sobretudo, junto ao sócio controlador, um herdeiro que pouco se in-
teressa pelos negócios, ou melhor, que só quer saber de resultados polpudos. Seu
estalão de medida é: “Funcionário que gera lucro não dá dor de cabeça.”
No início dos anos 1990, precavidamente, a empresa se associou a uma corporação
norte-americana que lhe repassou tecnologia de ponta e ficou com parte minoritária
do negócio. O capital da empresa foi também aberto e as ações cotadas em Bolsa.
Ocorre que a economia internacional mudou celeremente e o planejamento
estratégico da empresa aponta para a necessidade de expansão do negócio para o
mercado latino-americano. Há, ademais, algumas boas perspectivas no Leste Europeu.
Para tanto, é preciso investir muito, e a sócia norte-americana não reluta em aportar o

68
Capítulo 5: Os interesses grupais

capital necessário. Só que o controlador brasileiro informa que não dispõe de recursos.
Alguns entendidos comentam à boca pequena que ele não pretende abrir mão do
“colchão” de que dispõe − fundos disponíveis em dois paraísos fiscais.
Reginaldo foi encarregado da negociação com os americanos, supervisionado
diretamente pelo presidente. O acordo está caminhando muito bem, conciliando os
diversos interesses: o sócio brasileiro venderia o controle e permaneceria com uma
posição sólida, enquanto os americanos investiriam pesadamente no processo de
expansão. Reginaldo e o presidente permaneceriam em seus postos de comando,
com boas perspectivas de avanços em carreira internacional.
Tudo parece estar no melhor dos mundos, a não ser por um senão. A mulher de Regi-
naldo − mãe de seus dois filhos adolescentes − foi acometida pela doença de Alzheimer
(demência senil). Os gastos passaram a ser substanciais com os cuidados médicos e com as
enfermeiras que dão plantões de 24 horas por dia. A manutenção da casa, as mensalidades
das faculdades particulares dos filhos, as despesas com o padrão de vida de um alto
executivo (carros, empregados domésticos, casa de campo, recepções indispensáveis
para cultivar a rede de relações profissionais) pressionam os ganhos de Reginaldo.
Acontece que, ao longo dos anos, Reginaldo amealhou uma carteira razoável de
ações, graças ao mecanismo de “opções de ações” que os americanos introduziram
na cultura organizacional. Um amigo dele, muito chegado, também juntou um
portfólio importante de ações da empresa e vem insistindo há meses para que
Reginaldo adquira sua posição, já que pretende participar de um empreendimento
imobiliário no Nordeste. Reginaldo não tinha condições de atender ao pedido do
amigo por falta de recursos disponíveis.
Mas agora se pergunta: não seria interessante matar dois coelhos com uma
cajadada só? Agradar ao amigo, ainda que venha a se endividar em banco, e com-
prar ações que certamente irão se valorizar? A operação seria bastante discreta e,
no momento certo, ele poderia desovar tudo com bom lucro. É como se fosse uma
oportunidade que Deus lhe deu para cuidar de sua mulher, fazendo face às despesas.
O que fará Reginaldo e por quê?

Haveria como contornar a questão em nome da amizade? Por exemplo,


Reginaldo explicar que há uma operação em andamento e que, por isso, é melhor
o amigo manter as ações em carteira? Nem pensar! Informações privilegiadas não
podem ter seu sigilo quebrado em circunstância alguma, tanto do ponto de vista
legal quanto do ponto de vista ético. A confidencialidade é um valor universalista,
portanto interessa a todos preservá-la.
Mas imaginemos que, cedendo à pressão insistente do amigo, Reginaldo
compre as ações. Estaria causando algum prejuízo a alguém? Um momento de
reflexão esclarece a questão. O primeiro prejudicado é o próprio amigo. Por quê?
Não queria se desfazer das ações? Não vinha insistindo nesse sentido? Claro que
sim. Só que dificilmente deixaria de saber que as ações subiram logo após ele ter
vendido a posição. Ademais, por que a compra teria sido efetivada agora e não
antes, já que propostas reiteradas de venda haviam sido feitas nos últimos meses?
Isso o levaria a desconfiar de Reginaldo: será que não dispunha de informações
69
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

privilegiadas e lucrou às suas custas? Mas é claro! A mídia certamente mencionará


que quem capitaneou a negociação foi o próprio Reginaldo... Diante de fatos tão
irrefutáveis, o amigo não poderia deixar de se sentir lesado, desrespeitado, traído.
A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) regula o acesso privilegiado e é o
xerife do mercado de capitais. Todos aqueles que conhecem ato ou fato relevante,
saibam de algo que possa afetar o valor das ações, são obrigados a guardar o sigilo.
Mais ainda, o uso de informações privilegiadas em benefício próprio é absoluta-
mente vedado. Valer-se dessas informações não só transgride a regulamentação
legal, mas é eticamente negativo, pois constitui abuso de confiança.
Ora, caso Reginaldo tivesse comprado as ações, a quem mais estaria prejudi-
cando além do amigo? Aos acionistas e aos investidores da empresa, é claro, ao
lucrar com informações privilegiadas. E mais: seria desleal para com o presidente
da empresa, que lhe confiou o comando da negociação. Como caracterizar então a
compra se fosse feita? Não seria uma ação egoísta, mas uma prática parcial, porque
Reginaldo diria que o fez para o bem da família. E a alegação faria sentido, uma vez
que a mulher, os filhos e ele mesmo seriam objetivamente beneficiados e o seriam
em detrimento de muitos outros. Pelo menos enquanto ninguém descobrisse...
Entretanto, quais poderiam ser as implicações caso a CVM tomasse co-
nhecimento da operação? Além da mancha indelével na reputação profissional,
Reginaldo poderia ser demitido por justa causa, pagar pesada multa, ser impedido
por certo período de ocupar cargo de administrador ou de conselheiro fiscal em
companhia de capital aberto e, pior, responder por crime financeiro (denúncia do
Ministério Público Federal), com pena que varia de um a cinco anos de reclusão.
Agora imaginemos, de forma oposta, que Reginaldo tivesse recusado a oferta
do amigo e não tivesse vazado a informação privilegiada que possuía. Quais seriam
os motivos? Lealdade ao amigo? Lealdade à empresa? Lealdade ao presidente que
confiou nele? Integridade de quem cumpre as próprias obrigações? Prudência
diante dos riscos que poderiam deixar a família dele à míngua? Por tudo isso ao
mesmo tempo? Talvez, já que essas razões não são mutuamente excludentes. O
fato é que sua atitude corresponderia a uma prática altruísta restrita, beneficiando
grupos específicos, sem prejudicar ninguém. Mas por que altruísta, se Reginaldo
teria cumprido tão somente o que se esperava dele ou teria preferido não correr
riscos desmedidos? A razão é que, ao vivenciar o dilema, não se restringiria ao mero
cumprimento das normas burocráticas: teria resistido à tentação e rejeitado a trans-
gressão, teria adotado uma atitude proativa e feito uma escolha eticamente positiva.

A partilha de ATMs
O Banco do Brasil, o Bradesco e o Santander, três das quatro maiores instituições
financeiras do país, anunciaram a intenção de compartilhar seus caixas eletrônicos
(ATMs). Os clientes teriam acesso aos serviços dos três associados que, somados,
cobrem um universo de quase 65 milhões de correntistas.

70
Capítulo 5: Os interesses grupais

Em novembro de 2010 deram início a uma fase experimental com cerca de 700
equipamentos instalados em shoppings, aeroportos, supermercados, farmácias e
postos de combustíveis. Caso seja demonstrada a viabilidade da interligação dos
terminais, o modelo de compartilhamento será estendido a outras unidades.

Trata-se de prática altruísta restrita que obedece à razão ética e se inspira por
valores universalistas (competência, efetividade, parcimônia), pois atende aos
interesses dos bancos e de seus clientes sem causar danos aos demais agentes
sociais. Ao mesmo tempo em que os bancos reduzem seus custos com a sinergia
esperada, os clientes desfrutam de atendimento mais amplo e diversificado. Um
valor está sendo criado e partilhado. Contudo, quem se apropria dele? Não a
sociedade como um todo, pois nem todos são correntistas daqueles bancos. De
sorte que a prática não pode ser caracterizada como imparcial, mas restrita, já
que grupos bem específicos se beneficiam daquele valor criado.
Vamos nos deliciar agora com uma pequena análise de riscos.

O empréstimo
Dois bancos concorrentes, A e B, emprestaram cada qual R$5 milhões para a
empresa Z lançar um novo produto. As informações a respeito foram comunicadas
a ambos os gerentes pelo próprio dono da empresa tomadora dos empréstimos.
Acontece que a empresa Z acabou fazendo um investimento arriscado. Porque,
apesar da boa campanha de lançamento, o produto não atingiu as vendas projetadas.
Novo esforço publicitário acabou sendo feito com peças reformuladas. Em vão. No
decorrer do ano, a empresa começou a atrasar as faturas dos fornecedores, embora
mantivesse em dia os juros dos empréstimos. E suas dificuldades financeiras foram
crescendo.
O tempo passou e o momento fatídico da devolução do principal chegou. Ocorre
que, nesse ínterim, os ativos dados como garantias se degradaram e passaram a
valer apenas R$6 milhões. Além do mais, os dois gerentes, sabedores da situação e
cientes de que se tratava de um bom cliente, viram que sem liquidez a empresa não
conseguiria honrar a dívida. Só que não estavam autorizados a se comunicar para
definir uma atuação conjunta.
No frigir dos ovos, ambos acabaram tendo a mesma ideia: se o prazo do emprés-
timo fosse estendido, a empresa poderia eventualmente se recuperar. Nesse caso,
seria preciso renovar o contrato assinado. Mas tal providência estava fora da alçada
dos gerentes. Quem tinha autonomia para efetuar essa operação era o diretor deles.
Assim, para conseguir seu intento, os gerentes deveriam convencer o diretor. Isso os
obrigou a refletir mais a fundo sobre a situação. Vislumbraram então três cenários:
1. Se ambos renovassem, seria bem provável que a empresa pudesse operar
por mais um ano. Ela desembolsaria um milhão de juros e, caso quebrasse
no fim do exercício, cada gerente iria recuperar o montante de três milhões,
acrescido daquele milhão de juros.

71
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

2. Se os dois bancos não renovassem, a empresa teria sua falência decretada e


cada banco recuperaria apenas três milhões.
3. Se um banco renovasse os créditos enquanto o outro não o fizesse, a empresa
faliria. Nessas condições, o banco responsável pela falência se credenciaria
a receber em primeiro lugar o que lhe era devido (procedimento legal) e
receberia os cinco milhões da dívida. Em contrapartida, o banco que renovasse
o empréstimo só receberia o que sobrasse das garantias, isto é, um milhão.10
Qual será a escolha racional dos gerentes?

Figura 5.2  Montante recuperável.


Pense a respeito. Estamos diante de uma “interação estratégica”, pois cada um
dos gerentes só pode presumir o que o outro fará, da mesma forma que o faz
um jogador de dama ou de xadrez.
À primeira vista, sem maior análise, o melhor seria os dois renovarem, dando
fôlego para a empresa se recuperar. Se não der certo, cada banco receberá R$4
milhões. Em compensação, preservará o cliente da falência imediata e emitirá
uma mensagem reconfortante ao mercado: a de que ambos os bancos agem como
parceiros na hora das dificuldades e dão cobertura ao cliente. Mas, pela premissa
do problema, a comunicação entre os dois gerentes que poderia estabelecer uma
atuação conjunta dos dois bancos está vedada, de maneira que cada gerente não
sabe ao certo o que o outro fará.
Quantos cursos de ação teriam então os gerentes do ponto de vista estrita-
mente financeiro? Dois: renovar o contrato de empréstimo ou não renová-lo.
Cruzando os dois cursos de ação, resulta uma combinatória.
Vamos tomar como ponto de partida o banco A (daria na mesma se tomás-
semos o banco B). E imaginemos que o banco A renove o empréstimo:
j
Se o banco B também renovar, cada qual receberá quanto? Quatro milhões.
j
Se o banco B não renovar, cada qual receberá quanto? Um milhão para o
banco A e cinco milhões para o banco B, uma vez que a empresa Z faliria
Adaptado de Ronaldo Fiani. Teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 25-27.
10

72
Capítulo 5: Os interesses grupais

e o banco B se credenciaria a receber a dívida em primeira mão, pois, ao


contrário do banco A, ele não teria renovado o contrato.

Agora, imaginemos que o banco A não renove o empréstimo:


j
Se o banco B renovar, cada qual receberá quanto? Cinco milhões para o
banco A e um milhão para o banco B, uma vez que a empresa Z faliria e
o banco A se credenciaria a receber a dívida em primeira mão, pois, ao
contrário do banco B, ele não teria renovado o contrato.
j
Se o banco B também não renovar, cada qual receberá quanto? Três mi-
lhões cada.

Figura 5.3  Qual é a escolha racional?

Qual curso de ação minimiza os riscos ou os prejuízos eventuais? Obviamente


o de não renovar. E por quê? Porque, na melhor hipótese, o banco A consegue
recuperar o montante de cinco milhões, enquanto, na pior hipótese, recebe três
milhões. Em contrapartida, a decisão de renovar só lhe permite recuperar quatro
milhões no melhor cenário ou um milhão no pior cenário.
Conclusão: ambos os bancos acabam propondo a não renovação do
empréstimo, contrariando a hipótese inicial! Essa opção corresponde
ao “equilíbrio de Nash” na teoria dos jogos. Ou seja, pedem a devolução do
principal e deflagram a falência da empresa, uma vez que cada gerente não
sabe ao certo o que o outro gerente fará. A seu ver, portanto, a atitude mais
prudente consiste em minimizar os riscos e tentar resgatar o máximo de
recursos possíveis. Isso provoca consequências inevitáveis: empregos se vão,
um velho cliente quebra, rompe-se a relação estabelecida com ele ao longo
do tempo, difunde-se na praça a ideia de que, na hora da crise, os bancos não
são solidários e só pensam em seus próprios lucros... Em resumo, semeia-se
a desconfiança e o desalento.
Ora, dirão os gerentes em sua própria defesa, não somos responsáveis pela
má administração do negócio nem pela teimosia do cliente. Fizemos a nossa
parte e cabia à empresa fazer a dela. Temos um contrato devidamente assinado
73
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

e registrado, cujos termos são absolutamente claros. Em síntese, não somos a


Santa Casa de Misericórdia...
A opção de não renovar corresponde, pois, a uma decisão racional, legalmente
perfeita, malgrado seus efeitos socialmente nocivos. Afinal, os gerentes não es-
tavam autorizados a combinar o que quer que fosse. E, ao agir de forma isolada,
olharam para os melhores interesses de seus respectivos bancos. Não é essa uma
reação natural?
A situação seria outra se os dois gerentes pudessem coordenar suas ações:
teriam a oportunidade de repensar a relação com a empresa devedora e poderiam
eventualmente conciliar as posições das três partes. Imaginariam novos cenários,
e a decisão poderia caminhar para uma renovação conjunta.
Porém, como qualificar a não renovação do ponto de vista ético? Ela é parcial,
pois se dá em detrimento dos interesses de uma das partes. Curioso, não é? Não
basta a decisão ser racional para obter legitimidade ética. Isso reforça nosso
argumento de que as práticas empresariais parciais não são esquizofrênicas
nem frutos necessários do mau-caratismo. São racionais, apesar de provocar
resultados deletérios.
Agora, se olharmos o caso pelo avesso, se efetivamente os dois gerentes ti-
vessem tido a permissão de harmonizar suas posições, prevaleceria o “ótimo de
Pareto” ou o maior nível de eficiência sistêmica (qualquer outra decisão pre-
judicaria uma das partes). Pois, o que seria menos prejudicial para o conjunto
levando em conta os interesses das três partes envolvidas? Que a empresa deve-
dora tivesse uma chance de se recuperar, claro. Isso poderia implicar sugestões
para reformular a gestão, hipotecar ativos permanentes, renegociar dívidas com
fornecedores, efetuar pagamentos parcelados, procurar sócios capitalistas, pedir
a recuperação judicial etc.
E, caso o entendimento fosse bem-sucedido, teríamos uma prática altruísta
restrita. Por quê? Porque haveria entrosamento entre as partes, esforço para supe-
rar o mero cumprimento burocrático do contrato, tentativa de salvar o negócio
do cliente, oferecimento de ajuda, demonstração de que os bancos não agem de
forma parcial quando ocorre uma crise, subordinação da análise financeira a
considerações sociais e econômicas mais amplas.

O trabalho degradante
“Precisa-se de costureiros para trabalhar no Brasil. Salário de US$300 ao mês, com
direito a moradia e alimentação.” Um anúncio semelhante a esse atraiu Jorge e Maitê,
que acreditaram ser essa a maneira de sair da miséria em que viviam, na periferia de
La Paz, capital da Bolívia. Venderam todos os móveis que tinham e partiram rumo ao
Brasil. Aqui, contudo, não saíram da miséria.
Jorge só compreendeu o que estava acontecendo quando ele e sua esposa demo-
raram quatro meses para pagar uma dívida que tinham com o coiote (agenciador),

74
Capítulo 5: Os interesses grupais

trabalhando duro das sete da manhã até meia-noite. “Às vezes, até três da manhã,
morando num lugar muito ruim”, conta.
Se soubesse que a vida seria assim, Maitê nunca teria vindo. Mas era tarde demais.
O casal procurou outra fábrica. Depois de dois meses de trabalho, nada a receber.
Brigaram com os empregadores e procuraram uma terceira fábrica. A mesma coisa.
Na quarta, apareceu um tumor no pescoço de Jorge. Feita a cirurgia, descobriu-se
que se tratava de tuberculose ganglionar.
Maitê também contraiu tuberculose. Com dificuldade para trabalhar, Jorge foi
agredido pelo dono da confecção, também boliviano, e o casal foi expulso da fábrica.
Eles foram acolhidos pela Casa do Migrante, onde vivem há quatro meses, e estão
em tratamento de saúde.
A história de Jorge e Maitê é semelhante à de milhares de bolivianos que saem de
seu país fugindo da miséria e entram ilegalmente no Brasil todos os anos para traba-
lhar em pequenas confecções da cidade de São Paulo, em condições comparáveis ao
que os defensores de direitos humanos chamam de escravidão moderna. Os operários
daquelas fabriquetas costumam ser atraídos pelas falsas promessas de bons salários
feitas por coiotes, por meio de anúncios em jornais e rádios bolivianos.
De acordo com o padre Roque Pattussi, coordenador do Centro Pastoral do
Migrante, entidade ligada à Igreja Católica que apoia os imigrantes no país, há grupos
que são trancados em porões, fechados com grades, correntes e cadeados. Os em-
pregadores também se aproveitam da ignorância dos imigrantes em relação à legis-
lação brasileira e abusam do terror psicológico.11

Para pagar dívidas contraídas na viagem junto aos coiotes, os imigrantes


ilegais se submetem a jornadas extenuantes e a toda sorte de sevícias. Não podem
exigir direitos e têm a liberdade cerceada. Vivem na informalidade, em condições
extremamente precárias de saúde e alimentação, e se consideram vítimas por
terem sido enganados por falsas promessas.
Do ponto de vista ético, e por serem impiedosamente explorados por em-
pregadores inescrupulosos, vivenciam uma prática parcial, embora os coiotes e
os empregadores falem dos riscos que correm para abrigá-los e lhes prover meios
de subsistência. Mas as justificativas não têm como substituir a análise objetiva
dos fatos. A assistência fornecida não os livra do proveito indecente que tiram
de pessoas vulneráveis.
Agora, transcendendo o âmbito das empresas, a visão discriminadora do
mundo que o parcialismo alimenta faz com que certas coletividades depreciem
as demais e se considerem superiores a elas, quer por “razões naturais”, quer por
“razões históricas”. Chegam a definir os outros como subumanos e forjam es-
tereótipos extremistas ou fundamentalistas que cevam a intolerância e semeiam
o ódio.

11
Tatiana Merlino. Trabalho escravo: migrantes, uma crônica da vergonha. São Paulo: Brasil de fato, ed.
114, 5 a 11 de maio de 2005, http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/eh/f /manif/lectures/trabalho_es-
cravo.htm.

75
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

O tráfico de órgãos
Hashim Thaçi, primeiro-ministro de Kosovo, manteve-se no poder após as eleições
locais. A região muçulmana pertenceu à Iugoslávia, depois à Sérvia e conquistou a
independência em 2008, após longas convulsões que acompanharam a desintegração
iugoslava.
Portanto, Thaçi deveria estar satisfeito, já que volta ao cargo. Mas não é o caso.
Dois problemas o incomodam: de um lado, ele é acusado de fraude eleitoral; de
outro, durante a guerra contra a Sérvia, em 1999, ele liderava uma organização
de tráfico de órgãos.
Uma operação simples: eram retirados os órgãos dos prisioneiros, que depois eram
vendidos no exterior para cirurgiões em busca de fígados e rins. O interesse dessa
indústria era duplo. De um lado, rendia um bom dinheiro. De outro, era “ideologica-
mente correto”, pois os fígados e rins vendidos eram sérvios. (...)
Alguns prisioneiros eram levados à Albânia e conduzidos a uma “casa amarela”,
uma fazenda simples onde eram realizados testes sanguíneos e exames de saúde. Os
considerados “bons para o serviço” iam para um local próximo do aeroporto de Tirana,
capital albanesa, onde funcionava um centro muito bem equipado. Os prisioneiros
escolhidos eram mortos com uma bala na cabeça. Seus órgãos eram retirados e
exportados. (...)
Em Kosovo, governo e oposição rejeitaram indignadas as acusações. Segundo os
kosovares, a história é uma fábula inventada pelos sérvios.12

Eis um exemplo de como as etnias coisificam umas às outras, convertem


aqueles que são “diferentes” em objetos desprezíveis e lhes negam a própria
humanidade. Com efeito, o parcialismo não mobiliza apenas organizações, mas
antagoniza agentes coletivos verdadeiros ou imaginários, de maneira que raças ou
etnias, gêneros, classes sociais, castas, confissões religiosas, categorias sociais e clãs
familiares marginalizam uns aos outros e se repelem mutuamente. Por exemplo:
j
O mito da “raça superior”, que o nazismo encarna à perfeição, estigmatiza
judeus, ciganos, homossexuais ou portadores de deficiência, e desemboca
em seu extermínio.
j A presunção xenófoba de que certas etnias estão “naturalmente” destinadas
à subalternidade confina negros, hispânicos, índios, albaneses, turcos,
filipinos, vietnamitas etc. ao exercício de tarefas ingratas.
j A crença machista de que o “sexo forte” é um fato da natureza se vê refor-
çado pela menção bíblica à inferioridade das mulheres.
j O ideal messiânico de que a “classe operária” está historicamente des-
tinada a fundar uma sociedade igualitária convida a varrer pela violência
revolucionária quaisquer resistências ao avanço do socialismo.

Gilles Lapouge. O governo de Kosovo e o tráfico de órgãos. O Estado de S. Paulo, 17 de dezembro de 2010.
12

76
Capítulo 5: Os interesses grupais

j
Os credos milenaristas, que insuflam religiões proféticas a instituir um
único reino de Deus na Terra, ensinam que a “fé verdadeira” tem por mis-
são submeter os ímpios; ou clamam que o povo de Deus deve expulsar ou
eliminar da Terra Prometida todos aqueles que não comungam das mesmas
crenças; ou sentenciam que a predestinação na salvação da alma distingue
desde sempre os eleitos − a quem estão reservadas as benesses da vida eterna
e as promessas do Senhor na vida terrena − e os condenados − sobre quem
recaem todas as maldições.

Consequências gravíssimas decorrem desses sectarismos fanáticos que recha-


çam visceralmente o “outro”. Os passos seguem um roteiro insano: os diferentes,
estranhos, heréticos ou dissidentes recebem a pecha infamante de elementos
indesejáveis, por serem de raça inferior ou parasitas inassimiláveis; logo, a escória
é perseguida, submetida e segregada; no momento seguinte, promove-se uma
ação profilática para exterminar as ervas daninhas.
Tais pesadelos morais correspondem a eclipses de compaixão e se desdobram
em queima de livros e caça às bruxas, guetos e pogroms, humilhações públicas e
torturas, expurgos e autos de fé, detenções arbitrárias e banimentos, trabalhos
forçados e campos de concentração, deportações em massa e limpezas étnicas,
escravidões e execuções sumárias, guerras cruentas e genocídios, câmaras de gás
e fornos crematórios, gulags e Santa Inquisição... O parcialismo convida tanto os
praticantes como suas vítimas a mergulhos abissais no inferno.
Dentre a miríade de exemplos de bárbaro parcialismo, de horror generalizado,
citemos o seguinte:

A blasfêmia no Paquistão
No estado do Punjab, no Paquistão, trabalhadores rurais pediram a Asia Bibi, uma
camponesa, mãe de cinco filhos, que fosse buscar água. Alguns deles, muçulmanos,
recusaram-se a bebê-la porque Bibi é cristã e, portanto, considerada “impura”.
Seguiu-se uma discussão. Alguns dos presentes foram se queixar a um clérigo
local de que Bibi havia feito comentários depreciativos sobre o profeta Maomé. Uma
multidão invadiu a casa de Bibi, que foi atacada juntamente com seus familiares.
A polícia então deu início a uma investigação contra Bibi, e não contra os que a
atacaram. Ela foi presa e condenada por blasfêmia, conforme prevê o artigo 295C
do código penal do país. A mulher ficou mais de um ano na prisão e acabou sendo
condenada à morte por enforcamento, condenação contra a qual está recorrendo.
O artigo 295C estipula que “comentários depreciativos em relação ao Santo
Profeta, sejam orais ou escritos, por representação visível ou por qualquer imputação,
menção ou insinuação, direta ou indireta, deverão ser punidos com a morte, ou prisão
perpétua, e estarão sujeitos a multa”.13

Saroop Ijaz. A verdadeira blasfêmia no Paquistão. The Los Angeles Times; O Estado de S. Paulo, 10 de janeiro de
13

2011.
77
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Por fim, diremos de forma sintética que os agentes fazem escolhas polarizadas.
Procuram sempre gerar um bem para si, mas certas escolhas ocasionam o mal nos
semelhantes e, por isso mesmo, são particularistas e abusivas (práticas egoístas
ou parciais), enquanto outras escolhas ocasionam o bem para os semelhantes e,
por isso mesmo, são universalistas e consensuais (práticas autointeressadas ou
altruístas).

Figura 5.4  Quem ganha e quem perde?

5.4.  Teste de conceitos (5)


Vamos testar os dois conceitos em situações historicamente determinadas,
cientes de que existem práticas altruístas restritas e práticas parciais em toda
parte e em todas as épocas. Vale dizer, embora o teor dessas práticas varie de
uma sociedade para outra, as características gerais que as definem permanecem
as mesmas.
O exercício a seguir consistirá em qualificar cada caso apresentado como
prática altruísta restrita (AR), que não prejudica os outros, ou como prática
parcial (P), que é danosa aos outros.

CASO PRÁTICA
1. Poluir o meio ambiente.
2. Dar aumento real de salários a todos os colaboradores.
3. Organizar consórcio de pesquisa tecnológica com concorrentes.
4. Desmatar áreas de preservação permanente.
5. Dar calote em fornecedores.
6. Montar um serviço de atendimento aos clientes.
7. Fazer conluio com concorrentes em licitações.
8. Investir em inovação de produtos.

78
Capítulo 5: Os interesses grupais

CASO PRÁTICA
9. Pagar “caixinha” aos compradores para fazer parte da lista de
fornecedores.
10. Medir e pagar serviços não realizados ou mal realizados mediante
propina.
11. Comprar ou vender produtos piratas, falsificados ou contrabandeados.
12. Formar cooperativas de produção ou de compras.
13. Financiar cursos de formação profissional para que a comunidade local
tenha fonte de renda.
14. Formar cartéis.
15. Maquiar balanços.
16. Subornar fiscal para validar a contabilidade.
17. Sonegar impostos para melhor competir.
18. Fazer recall voluntário de produtos defeituosos.
19. Capacitar regularmente o pessoal.
20. Cometer espionagem econômica para apropriar-se de segredos
industriais dos concorrentes.
21. Clonar produtos.
22. Divulgar publicidade enganosa.
23. Bancar o seguro-saúde dos funcionários.
24. Promover liquidações periódicas.
25. Promover apaniguados em detrimento de profissionais qualificados.
26. Gratificar os funcionários que contribuírem com ideias inovadoras.
27. Fazer falsas promoções.
28. Usar a pesquisa como disfarce da venda.
29. Vender produtos usados como novos.
30. Melhorar as condições de trabalho na empresa.
31. Não revelar restrições que afetem produtos e serviços, tais como
possíveis danos à saúde ou ao meio ambiente, carências ou doenças não
cobertas em seguro-saúde.
32. Usurpar a propriedade intelectual de invenções, aperfeiçoamentos
técnicos, tecnologias, projetos, processos ou métodos.
33. Investir em melhoria de processos nas empresas fornecedoras.
34. Premiar o desempenho dos funcionários.
35. Comercializar produtos com data de validade vencida.
36. Difundir comentários desabonadores sobre os concorrentes.
37. Tolerar o assédio moral ou sexual.
38. Repassar aos clientes ganhos de produtividade.
39. Subsidiar a alimentação dos funcionários.
40. Permitir a difusão de preconceitos e práticas discriminatórias.

79
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

CASO PRÁTICA
41. Manipular resultados referentes aos estoques, inventários ou ajustes de
dados.
42. Financiar cursos de pós-graduação aos executivos.

O gabarito deste teste de conceitos (5) se encontra no Anexo.


Não é demais lembrar que os exemplos fornecidos dizem respeito a situações
reais e, portanto, históricas, de maneira que as práticas altruístas restritas e as
práticas parciais podem assumir formas variadas segundo as diferentes sociedades
concretas.
As práticas altruístas restritas produzem ganhos conjuntos às partes envolvi-
das. Por exemplo, por que dar aumento real de salários é uma prática altruísta?
Porque houve aumento real, não mero repasse da inflação passada em função de
acordo coletivo ou no cumprimento de dissídio coletivo ajuizado na Justiça do
Trabalho. Ganham todos os funcionários e ganha a empresa que retém o pessoal,
obtém maior empenho e dedicação, incrementa a remuneração de seu quadro
funcional, cria um clima organizacional mais favorável que pode melhorar o
atendimento e provocar maior satisfação dos clientes.
O mesmo vale para uma empresa de varejo que promove liquidações periódi-
cas. Ganham os clientes, que compram pontas de estoque com preços atraentes
ou produtos encalhados a preços abaixo do custo, e ganha a empresa, que se livra
de pesos mortos e obtém liquidez para fazer face às suas necessidades financeiras.
Os casos referidos de parcialismo são autoexplicativos. Mas, a título de ilus-
tração, vale a pena saber que: vender produtos usados como novos ilude a boa-fé
dos clientes e os prejudica financeiramente; cometer espionagem econômica para
apropriar-se de segredos industriais dos concorrentes corresponde à concorrência
desleal e converte o mercado numa selva; comercializar produtos com data de
validade vencida multiplica os riscos para a saúde pública, e assim por diante.

5.5.  Teste de conceitos (5A)


Vamos agora combinar as várias práticas estudadas e qualificar cada uma
delas: é autointeressada (A), egoísta (E), altruísta restrita (AR) ou parcial (P)?

CASO PRÁTICA
1. Achar carteira com dinheiro e devolvê-la ao dono.
2. Trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas.
3. Exigir seus direitos trabalhistas.
4. Descartar lixo industrial tóxico sem as cautelas necessárias.
5. Recusar presente de fornecedor para não comprometer a isenção na
gestão de um contrato.

80
Capítulo 5: Os interesses grupais

CASO PRÁTICA
6. Investir doações feitas para um fundo de amparo a desabrigados
em operações especulativas.
7. Gerar e manter um caixa dois.
8. Fazer jus a bônus por desempenho.
9. Testemunhar a favor de colega contra o assédio moral do chefe.
10. Denunciar à auditoria interna colega que tenta se apropriar de
informações confidenciais da empresa.
11. Maquiar as informações sobre a carreira profissional.
12. Esconder lucro de correntistas em paraíso fiscal.
13. Denunciar concorrente por prática de dumping.
14. Aconselhar um amigo a comprar ações da própria empresa,
informando-lhe em confidência que haverá uma aliança estratégica.
15. Especular com os preços de produtos de primeira necessidade em área
atingida por calamidade natural.
16. Apropriar-se de produtos doados a vítimas de desastre.

O gabarito deste teste de conceitos (5A) se encontra no Anexo.

81
Capítulo

6
Os interesses gerais

6.1.  As lógicas do bem e do mal


Retomando o fio da meada, diremos que os indivíduos procuram satisfazer
interesses pessoais, ao gerar um bem que se limita ao próprio espaço vital e que,
por isso mesmo, representa um bem restrito individual. A questão ética que se
coloca consiste em saber de que forma esses interesses se realizam: de forma
abusiva ou de forma consensual? Há lesão aos interesses dos outros (prática
egoísta) ou ninguém sai prejudicado (prática autointeressada)?1
Simetricamente, famílias, círculos de amigos, clãs, organizações, catego-
rias sociais, classes sociais e, às vezes, até países − coletividades ou grupos, em
suma − procuram satisfazer seus interesses ao gerar um bem que se limita ao
próprio espaço vital e que, por isso mesmo, representa um bem restrito grupal.
Cabe saber então de que forma esses interesses se realizam: de forma abusiva
(prática parcial, danosa aos outros) ou de forma consensual (prática altruísta
restrita, benigna para os outros)?
Duas chaves orientam as decisões e as ações: a racionalização antiética (raciona-
lidade particularista) e a razão ética (racionalidade universalista). A racionalização
antiética é mistificadora, porque induz ao erro em suas conclusões. Inspira-se em
valores particularistas e pauta práticas que obedecem à lógica da exclusão, vale
dizer, da discriminação e da segregação entre os agentes. O egoísmo e o parcialismo
explicam essas práticas abusivas em que o bem de uns causa mal aos outros.
O egoísmo busca a exclusividade em detrimento dos demais agentes, e o
parcialismo impõe seu facciosismo ao depreciar e desrespeitar os interesses
legítimos dos outros. Em resumo, ao lesar os interesses alheios para beneficiar

Não é demais repetir que os agentes, cujo espaço foi invadido, revidam em legítima defesa. Os “males”
1

sofridos por quem desvirtuou as regras da convivência social correspondem aos riscos incorridos para obter
um bem à custa dos outros.

83
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

interesses restritos, o particularismo corresponde à lógica do “mal teórico”, do


mal visto como generalidade abstrato-formal.
Eis exemplos de valores particularistas cuja difusão se faz discretamente,
à boca pequena, e que jamais são assumidos em público:2 oportunismo, es-
perteza, manha, ganância, malícia, caradurismo, mesquinharia, jeitinho, lábia,
permissividade, desconfiança, malandragem, egotismo, pessoalidade, leniência,
favorecimento, hipocrisia, artimanha, matreirice para sonegar, subornar, fraudar,
contrabandear, falsificar...

Os “treineiros”
Dois alunos de uma importante escola privada paulistana prestaram vestibular
enquanto cursavam o terceiro ano do ensino médio. Um deles entrou na FGV e o outro
no IBMEC. Ficaram tão entusiasmados com seu sucesso que decidiram “viabilizar” a
inscrição nas respectivas faculdades.
Souberam que poderiam dar um jeito comprando um diploma do ensino médio.
De fato, um colégio do Mato Grosso do Sul tinha a receita certa: efetuou uma “reclas-
sificação” e resolveu a dificuldade.

Como qualificar o caso? Mediante a compra de um diploma frio, cada “treinei-


ro” ocupou a vaga de um aluno regular, pensando exclusivamente em si mesmo
(prática egoísta). Mas, ao envolver vários agentes − os “treineiros” e o diretor do
colégio do Mato Grosso do Sul −, a prática deixou de ser egoísta e passou a ser
parcial. Trata-se de um jogo de soma zero em que as vantagens de uns (dois alunos
do ensino médio e um colégio) supõem o esbulho de outros (dois vestibulandos),
além de fraude às regras de emissão dos diplomas (prejuízo da coletividade).
A razão ética, por sua vez, justifica racional e praticamente as decisões porque
se inspira em valores universalistas e pauta práticas que obedecem à lógica da
inclusão, vale dizer, integra os agentes ao todo maior, a humanidade. Quatro
conceitos se encaixam nessa categoria: o autointeresse e os três altruísmos, todos
consensuais, porque o bem gerado interessa a todos.
O autointeresse busca resguardar as condições que preservam a própria in-
dividualidade; o altruísmo restrito reforça os laços de afinidade entre membros
de um grupo ou entre grupos; os demais altruísmos (imparcial e extremado)
satisfazem o bem comum ou geral. Em resumo, ao tecer o consenso, o universa-
lismo corresponde à lógica do “bem teórico”, do bem visto como generalidade
abstrato-formal.
Eis exemplos de valores universalistas amplamente difundidos: integridade,
justiça, liberdade, idoneidade, competência, mérito, prudência, privacidade,

Curiosamente, essa hipocrisia coletiva homenageia a virtude. Se não, por que manter o segredo?
2

84
Capítulo 6: Os interesses gerais

solidariedade, equidade, pluralidade, isenção, confiança, imparcialidade, reci-


procidade, honestidade, dignidade, impessoalidade, individualidade, veracidade,
diligência, coerência, efetividade, parcimônia, transparência, credibilidade...3
O “bem teórico” ou o “mal teórico” não concordam necessariamente com
o bem ou mal empiricamente definido por uma sociedade qualquer. Porque a
linha divisória que separa o particularismo do universalismo é traçada no plano
abstrato-formal, da mesma forma que o são suas traduções: racionalização anti-
ética versus razão ética; práticas abusivas (lesão aos interesses dos outros) versus
práticas consensuais (geração de um bem pelo qual todos anseiam); lógica de
exclusão versus lógica de inclusão. Expliquemos melhor.
O infanticídio, por exemplo, ainda que tenha sido justificado historicamente
como forma de controle populacional, pode ser evitado por métodos anticon-
cepcionais sem prejudicar crianças nascidas. Do ponto de vista científico cons-
titui prática particularista que obedece à racionalização antiética. O fato de o
mundo ocidental contemporâneo condenar o infanticídio é fruto da crescente
consciência de que fatores histórico-culturais não são o bastante para legitimar
eticamente práticas que inferiorizam outros seres humanos. O mesmo vale
para o estupro das mulheres ou para a circuncisão feminina. Ou para as dis-
criminações contra os gays, os negros, os ateus, os indígenas, os hispânicos, e
assim por diante.

O estilista John Galliano


No dia 24 de fevereiro de 2011, um casal denunciou o estilista por insultos antis-
semitas e racistas na calçada do bar “La Perle”, no bairro do Marais, em Paris. Depois,
outra mulher o acusou alegando ter sido agredida de maneira similar em outubro do
ano anterior nesse mesmo bar da capital francesa.
A marca Christian Dior, que em um princípio suspendeu Galliano de suas funções
como diretor artístico, iniciou os trâmites de sua demissão assim que o jornal britânico
The Sun divulgou um vídeo no qual o estilista, totalmente alcoolizado, dizia “Eu adoro
Hitler (...) Gente como vocês estaria morta. Suas mães, seus pais não seriam mais
do que gases fedorentos”. Um mês e meio depois, Galliano foi demitido também da
marca que leva seu nome, controlada 91% pela Christian Dior. 4
Foi julgado e considerado culpado no dia 08/09/2011 em Paris. Acusado de
“insultos públicos baseados na origem, religião, raça ou etnia”, pagará multa de €6.000.
Sua sentença poderia ter chegado a uma pena de até seis meses de prisão e a pagar
uma multa de €22.500.5

3
Naturalmente, quaisquer valores são historicamente constituídos. Por exemplo, não é concebível falar
(a sério) de pluralidade, transparência, equidade ou impessoalidade no Brasil se não em anos muito recentes.
E, mesmo assim com cautela, dada a escassa divulgação e prática de padrões liberais e profissionais de gestão.
4
Galliano é demitido por antissemitismo. O Estado de S. Paulo, 02 de março de 2011.
5
Galliano é demitido. O Estado de S. Paulo, 09 de setembro de 2011.

85
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

É suficiente constatar que agentes sociais sofrem prejuízos para sabermos


que estamos diante de práticas particularistas, não importam as justificações
que algumas sociedades ou alguns setores sociais formulem para legitimar tais
segregações ou preconceitos.6
Dito isso, chegou a hora de distinguir os três tipos de altruísmo:

j
O altruísmo restrito se assenta no apoio mútuo, se exerce dentro ou entre
grupos e reforça os laços de afinidade existentes.
j O altruísmo imparcial visa ao bem público e atualiza relações de ampla
reciprocidade.
j
O altruísmo extremado efetiva ações filantrópicas em prol de pessoas
necessitadas e expressa a admirável generosidade de benfeitores ou
doadores.

Os dois últimos altruísmos satisfazem interesses gerais, quer no âmbi-


to inclusivo das sociedades (interesses sociais), quer no âmbito inclusivo
da humanidade (interesses humanitários). Visam ao bem comum, um
bem de que todos podem usufruir e que expressa na sua melhor forma a res
publica. Assim, recapitulando, a razão ética se informa pela “lógica do bem
teórico”:

j
O autointeresse beneficia o indivíduo sem prejudicar outrem e satisfaz
interesses pessoais.
j O altruísmo restrito compartilha valor entre membros de um grupo ou
entre grupos, fortalece afinidades sem lesar outrem e satisfaz interesses
grupais.
j O altruísmo imparcial promove o bem público, compartilha benefícios
entre todos os membros de uma coletividade inclusiva e satisfaz interesses
sociais.
j
O altruísmo extremado alivia o sofrimento de gente necessitada, ajuda
quem mais precisa e propicia alguma contrapartida simbólica aos ben-
feitores ou doadores, satisfazendo interesses humanitários.7

Vejamos o que aconteceu com os “treineiros” depois de terem conseguido a


respectiva vaga.

6
Esta asserção será matizada no tópico referente ao “mal menor” e ao “mal necessário” (Capítulo 8), quando
veremos que, além dos efeitos colaterais que muitas práticas implicam, alguns males têm caráter universalista
em situações muito precisas.
7
Os necessitados podem ser flagelados por calamidades naturais, desabrigados, sinistrados, desalojados, crian-
ças carentes, idosos abandonados, indigentes, miseráveis, refugiados, doentes desamparados, perseguidos
políticos, famintos, desnutridos, feridos ou mutilados de guerra, desempregados, ou seja, gente vulnerável,
desassistida ou desvalida.

86
Capítulo 6: Os interesses gerais

A intervenção
O diretor da escola paulistana em que estudavam os dois “treineiros” que compraram
o diploma percebeu a manobra. Afinal, os resultados foram publicados e os dois moços
saíram da escola. Ele decidiu então denunciar o fato às autoridades educacionais.
Feita a investigação, o MEC (Ministério da educação) interveio no colégio res-
ponsável pela irregularidade. Em decorrência, os diplomas foram invalidados e as
matrículas canceladas nas respectivas faculdades.

Ambas as iniciativas se revestiram de caráter altruísta imparcial e, portanto, se


orientaram pela razão ética. Por quê? Ao punir a falcatrua, contribuíram para o
bem comum, fizeram valer regras de interesse público, beneficiaram a todos sem
distinção. Tanto o diretor da escola agiu de forma cidadã como o MEC cumpriu
suas obrigações de órgão público: azar dos inculpados!

6.2.  O altruísmo imparcial


Esse tipo de altruísmo serve de base à sociabilidade humana e viabiliza a
convivência social pelas relações de reciprocidade que impulsiona. Não há cole-
tividade que prescinda de práticas altruístas imparciais. Por quê? Porque satis-
fazem necessidades essenciais à vida coletiva e funcionam como mecanismos
de articulação social, fazem convergir os interesses pessoais, grupais e gerais e
consolidam, assim, a interdependência dos agentes.

A Nota Fiscal Paulista


Ninguém, em lugar algum do mundo, gosta de pagar impostos. Por isso, sabe-se
que a sonegação costuma aumentar ou diminuir dependendo do risco de ser pego
pelo fisco. Também é sabido que a maioria das pessoas gosta de dinheiro, principal-
mente se para ganhá-lo não for preciso ter muito trabalho. Estas três obviedades foram
fundamentais para que o governo do Estado de São Paulo criasse o mais engenhoso
programa de combate à sonegação já posto em prática no país. Trata-se da Nota Fis-
cal Paulista, lançada há um ano e meio e cujos resultados, num país conhecido pela
cultura da sonegação, impressionam.
Somente em 2008, estima-se que o programa tenha rendido uma arrecadação
extra de R$800 milhões. É um dinheiro que fluía pelo ralo da “informalidade” − um
jeito bem brasileiro de se referir à competição ilegal.
O grande trunfo da nota fiscal paulista foi conseguir transformar milhões de
consumidores em “fiscais” da Fazenda paulista (25 milhões já pediram a nota fiscal). A
contrapartida é obtida de duas formas: por meio da restituição de parte do imposto
pago no consumo de bens e serviços, e em sorteios mensais de prêmios em dinheiro
(R$1 bilhão foram distribuídos na forma de crédito e prêmios).8

André Faust. 25 milhões de fiscais. Exame, 17 de junho de 2009.


8

87
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Além de ser um engenhoso mecanismo de compliance (conformidade às leis


e regulamentações vigentes), o programa implantado pelo governo do Estado de
São Paulo diz respeito a uma prática altruísta imparcial, já que todos os membros
da sociedade ganham: a coletividade se beneficia com o desembolso de impostos
que revertem em investimentos de interesse geral (basta citar a arrecadação extra
de R$800 milhões num único ano, que contribuiu para a melhoria dos serviços
públicos); as empresas que costumam honrar seus compromissos deixam de sofrer a
concorrência desleal de quem sonega impostos (interesses grupais são beneficiados
e práticas correntes na economia informal são coibidas); os consumidores, que
exigem a nota fiscal, repartem prêmios e créditos, exercem uma fiscalização cidadã
e, sobretudo, consomem produtos legalizados e garantidos. Ainda que os sonega-
dores ou as empresas que vivem na informalidade sofram com isso, o programa é
consensual e obedece à razão ética, pois promove o bem geral e interessa a todos.
No dia a dia, o altruísmo imparcial corresponde a práticas que visam ao bem
público. Embora possa ser exercido de modo extremamente criativo por indiví-
duos ou empresas, identifica-se como vocação típica do primeiro setor (o setor
público).9 A razão é que ele gera benefícios amplamente compartilhados, em que
todos ganham, com exceção daqueles que se encontram à margem da sociedade
(delinquentes e os que vivem nas franjas da informalidade ou da clandestinidade).
Um bom exemplo de serviço de interesse público é a coleta de lixo.

O serviço de coleta de lixo


Façamos uma pergunta a um punhado qualquer de pessoas: a coleta de lixo é do
interesse geral? Resposta unânime: claro! Caso não houvesse, o que ocorreria? As vo-
zes sentenciam uníssonas: o caos! Mas o que quer dizer “o caos”? Doenças, epidemias...
Vamos com calma: como se dá o processo? Depois de alguma hesitação, as res-
postas pipocam: o lixo se acumula na rua, se degrada e causa mau cheiro; pode entupir
as bocas de lobo e, quando chove, provoca enchente; atrai insetos que proliferam e
ratos que infestam... Daí para a frente, as doenças aparecem.
Esclarecida a questão, lá vai a segunda pergunta: a empresa que ganhou a licitação
(de forma regular, notem bem, sem o que seria uma prática parcial) tem interesse em
prestar o serviço? Sim, concordam todos, já que a coleta do lixo é seu negócio. Isso
significa que o interesse geral e o interesse empresarial (grupal) coincidem, uma vez
que os objetivos se justapõem.
Terceira pergunta: é do interesse pessoal de cada um de nós que se tire o lixo
defronte de nossa casa? Óbvio, dirão. De maneira que os interesses gerais, grupais e
pessoais convergem. E fecha-se o circuito do círculo virtuoso.

Evitar desperdício de água, energia, combustível, papel, alimentos; plantar árvores para compensar as
9

próprias emissões de gás carbônico; usar produtos certificados, biodegradáveis, reciclados ou de fontes
controladas; colaborar com a coleta seletiva do lixo, a reciclagem, a reutilização e a correta disposição final
dos resíduos sólidos etc.

88
Capítulo 6: Os interesses gerais

O que congrega e mobiliza os agentes? A conjugação de interesses. Afinal,


ela deságua no bem público: todos querem a coleta de lixo, todos precisam
dela, todos ganham e ninguém perde com ela. O mesmo vale para a geração e a
distribuição de energia elétrica, o abastecimento de água potável, assim como
para inúmeros outros bens e serviços públicos. A essência das práticas altruístas
imparciais consiste em imbricar os vários tipos de interesse e compartilhar o
bem comum.

Os resíduos da Ambev
A maior indústria de bebidas do Brasil reaproveitou 98,2% de todos os resíduos
gerados e obteve com isso uma receita de R$78,8 milhões em 2009.
Numa primeira fase, reduziu a quantidade de resíduos sólidos produzidos nas
fábricas. Depois, promoveu a recuperação, o reuso ou a reciclagem desses resíduos.
Finalmente, identificou oportunidades para que fossem reutilizados como insumos
em outros processos.

Economia de insumos, redução de despesas, aproveitamento de rejeitos,


aumento de ganhos, uso da matéria cinzenta para conceber e executar o processo.
Todo mundo ganhou com isso (a empresa e o meio ambiente) e ninguém perdeu
o que quer que seja. Prática altruísta imparcial, ainda que não fosse patrocinada
pelo primeiro setor.

Parceria com comunidades


Do murumuru, uma palmeira da região amazônica, é extraído um óleo usado em
uma linha de produtos da Natura, maior fabricante de cosméticos do Brasil. Antes de
partir para a colheita, a população local tinha um costume: atear fogo na palmeira
para tirar os espinhos que atrapalhavam a retirada dos frutos.
Com uma ação educativa promovida pela Natura, as 400 famílias da região do
Médio Juruá não colocam mais fogo na floresta para extrair o murumuru.
A empresa faz negócio com 26 comunidades nos mais diversos cantos do país,
desde o lançamento da linha de produtos Ekos. Remunera tanto a matéria-prima como
o conhecimento que as comunidades detêm sobre o uso das plantas.10

O aproveitamento econômico sustentável garante o sustento de comunida-


des locais, os lucros da empresa contratante e, sobretudo, preserva os recursos

Guia Exame Sustentabilidade, p. 154, novembro 2010.


10

89
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

naturais numa visão de longo prazo. Prática altruísta imparcial, de origem em-
presarial, em que todo mundo ganha, sem colocar em risco os recursos que as
futuras gerações herdarão.

Um anúncio do Conar
O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) publicou
um anúncio sob o título “O Conar existe para coibir exageros na propaganda”.
Dizia: “Nós adoraríamos dizer que somos perfeitos. Que somos infalíveis. Que não
cometemos nem mesmo o menor deslize. E só não falamos isso por um pequeno
detalhe: seria mentira. Aliás, em vez de usar a palavra ‘mentira’, como acabamos
de fazer, poderíamos optar por um eufemismo. ‘Meia-verdade’, por exemplo, seria
um termo muito menos agressivo. Mas nós não usamos esta palavra simplesmente
porque não acreditamos que exista uma ‘meia-verdade’. Para o Conar, existem a
verdade e a mentira. Existem a honestidade e a desonestidade. Absolutamente
nada no meio. O Conar nasceu há 29 anos (viu só? Não arredondamos para 30)
com a missão de zelar pela ética na publicidade. Não fazemos isso porque somos
bonzinhos (gostaríamos de dizer isso, mas, mais uma vez, seria mentira). Fazemos
isso porque é a única forma de a propaganda ter o máximo de credibilidade. E, cá
entre nós, para que serviria a propaganda se o consumidor não acreditasse nela?
(...) Estamos muito mais interessados em cumprir nossa missão, que é fazer com
que a publicidade seja sempre honesta, responsável e respeitosa. E não meio
honesta, meio responsável e meio respeitosa. Isso não existe nem na propaganda,
nem na vida.” 11

O texto demonstra, sem subterfúgios, o quão importante é fazer uma propa-


ganda responsável. Eis a razão pela qual, aliás, os anunciantes regulamentaram do
modo próprio as atividades do setor e instituíram o Conar para zelar pelas dire-
trizes adotadas. O texto põe em relevo a credibilidade e rechaça especificamente
a propaganda enganosa; adverte as empresas para que cuidem de seu capital de
reputação, um ativo intangível sumamente volátil.
O anúncio corresponde a uma prática altruísta imparcial, uma vez que a
propaganda honesta e respeitosa beneficia a todos. Aos clientes a quem se des-
tina, porque deixa de omitir ou fraudar informações, e não exagera a utilidade
dos produtos (vai ao encontro de seus interesses pessoais). À empresa que a
promove, porque não expõe o negócio a processos administrativos ou judi-
ciais, e evita retaliações de clientes e concorrentes (satisfaz interesses grupais).
E à sociedade como um todo, porque confere credibilidade às mensagens
publicitárias das empresas, e fortalece relações de respeito mútuo (atende
interesses gerais).

Anúncio publicado em diversas mídias impressas em agosto de 2009.


11

90
Capítulo 6: Os interesses gerais

A denúncia de Jamie Oliver


A rede de fast-food McDonald's anunciou que mudará a receita de seus ham-
búrgueres nos Estados Unidos. A mudança acontece pouco tempo após o chef de
cozinha britânico Jamie Oliver descobrir e mostrar em um programa de TV que a rede
usa hidróxido de amônio para converter partes gordurosas de carne em recheio para
seus produtos.
“Basicamente, estamos falando de comida que seria vendida por um preço muito
baixo para produzir comida para cães, e que, depois desse processo, é vendida como
alimento para humanos”, afirmou Oliver. “Por que qualquer ser humano sensato
colocaria carne com amônio na boca de suas crianças?”, questionou o chef.
A receita, que o apresentador chamou de “lodo rosa”, é produzida, segundo ele,
em um processo pelo qual a carne é “centrifugada” e “lavada” em uma solução de
hidróxido de amônio e água.
Ao site Mail Online, McDonald's negou que tenha optado pela troca de sua receita
por causa da denúncia de Jamie Oliver. A matéria diz ainda que duas outras redes
− Burger King e Taco Bell − utilizavam hidróxido de amônio em suas receitas, mas já
modificaram as receitas.
Procurada, a Arcos Dourados, empresa que opera a marca McDonald's na América
Latina, informou que “o aditivo em questão não é utilizado como ingrediente nem
em qualquer processo da cadeia produtiva da marca na região”.
A companhia acrescentou que “os hambúrgueres são preparados com 100% de
carne bovina e que toda a produção é validada pelas autoridades regulatórias locais”.12

Vê-se a importância dos meios de comunicação e, em particular, das redes


sociais nos dias que correm, convertidos em instrumentos democráticos ao
alcance da cidadania. Uma denúncia consistente, feita por um único indivíduo,
conseguiu mudar a política de corporações internacionais de inegável poder
econômico. E obteve resultados altruístas imparciais em que toda a população
se beneficiou, uma vez que versou sobre a delicada questão da saúde pública.
Dois importantes parênteses agora se fazem necessários. Primeiro: a utilidade
dos conceitos não se resume a descrever fenômenos, mas contribui para entender
a realidade e, dependendo das circunstâncias, intervir sobre ela. Assim, ao qua-
lificar eticamente as práticas, devemos nos perguntar: qual benefício é ou será
gerado? Ou, invertendo a pergunta: caso deixasse de ocorrer, o que aconteceria?
Vamos imaginar, por exemplo, uma megalópole como São Paulo: caso faltasse
água durante 40 dias seguidos, em que pé ficaria a vida coletiva? Não estaria à
beira do colapso?
Segundo parêntese: o uso dos bens ou dos serviços de interesse público pode
provocar externalidades negativas? Claro que pode. Os ônibus, por exemplo,

Cris Simon. McDonald's muda receita após denúncia de Jamie Oliver. Exame, 27 de janeiro de 2012.
12

91
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

não são poluidores? Claro que são. Isso significa o quê? Não vivemos no mundo
encantado de Poliana, onde somente o bem impera, e o altruísmo imparcial não
é perfeito. Dificilmente um processo de produção material ou de serviço deixa de
gerar efeitos colaterais cujo grau de nocividade guarda relação com a tecnologia
socialmente disponível. Entendida a complexidade dos processos, cabe indagar:
em uma equação custo-benefício, os benefícios coletivos são ou não superiores
aos custos-prejuízos? Caso sejam, o processo ou o serviço se legitimam. Mas só
a legitimidade simbólica não resolve. É preciso intervir incessantemente para
minimizar os efeitos indesejáveis e, no extremo, eliminá-los. Ademais, alternativas
precisam ser desenvolvidas em busca do menor impacto possível sobre o meio
ambiente e sobre a sociedade.

Os agrotóxicos
Os danos provocados à saúde por agrotóxicos estão sendo paulatinamente
reduzidos com a proibição de certos produtos e sua substituição por produtos menos
tóxicos. Em 2008, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determinou o
banimento dos agrotóxicos cihexatina, tricloform, endossulfam, e fez o mesmo em
2011 com o metamidofos.13

Nesse mesmo sentido, a problemática dos combustíveis fósseis nos serve de


alerta, não só por serem insumos finitos, mas por causa da emissão de gases estufa:
em que medida é viável substituí-los por energias limpas e renováveis (biomassa,
energia hidráulica, eólica, solar, das marés)? Todo esforço nessa direção só poderia
ser meritório. Em outras palavras, o fato de uma prática ser altruísta imparcial
não a livra dos efeitos negativos que possa provocar, nem a existência desses
efeitos basta para descaracterizar o bem público gerado.

O dumping
O governo brasileiro decidiu fechar o cerco aos exportadores chineses que burlam
as tarifas antidumping, as sobretaxas usadas para punir os fabricantes que vendem no
Brasil abaixo do preço de custo. Há indícios de que as empresas estão falsificando os
certificados que comprovam a origem do produto ou fazendo triangulação − apenas
montando as peças em outros países. Desta maneira, os produtos são fabricados na
China com um custo baixo, mas chegam ao Brasil como se tivessem sido feitos em
Taiwan, na Malásia ou no Vietnã.
Como ocorre o dumping? O país exportador envia seus produtos a preços abaixo
do custo para um segundo país.

Lígia Formenti. Vigilância sanitária bane agrotóxico em todo o país. O Estado de S. Paulo, 18 de janeiro de
13

2011.

92
Capítulo 6: Os interesses gerais

Dominando o mercado: com essa tática, o país exportador submete o


mercado-alvo e elimina na prática a concorrência local.
Vulnerabilidade: em um segundo momento, com o mercado dominado, o país
exportador redefine os preços.
Reação: para evitar o estágio 3, o Brasil criou tarifas antidumping; numa con-
trarreação, a China adota a triangulação, isto é, passa a enviar produtos utilizando
intermediários como Malásia, Taiwan ou Vietnã; os produtos passam a ter procedência
disfarçada.14

Como qualificar eticamente o dumping e a triangulação? O dumping é uma


prática parcial, pois prejudica os produtores locais do país importador, destrói
empregos e reduz oportunidades de negócio. Afinal, os fabricantes vendem
produtos abaixo do preço do custo com o intuito de destruir as empresas locais,
após o que (presumivelmente) ditam preços. Trata-se de concorrência desleal,
abusiva, particularista e orientada pela racionalização antiética.
Ao se defender com tarifas antidumping, o Brasil age de forma altruísta
imparcial, objetivando o bem comum: procura coibir uma competição que viola
as regras de jogo da concorrência capitalista, obedece a valores universalistas que
interessam a todos (idoneidade, competência, respeito mútuo) e se orienta pela
razão ética.
A triangulação, por sua vez, burla a legislação antidumping e assume caráter
parcial. Produtores originais e intermediários aproveitadores de outros países
montam um conluio para contornar a legislação impeditiva e, em consequência,
prejudicam os empresários brasileiros com preços irreais.

O cartel
Considerada uma das práticas mais nocivas à livre concorrência, o cartel começa a
ser combatido com firmeza no Brasil. De acordo com a Secretaria de Direito Econômico
(SDE), mais de 100 executivos estão sendo processados criminalmente por práticas de
cartelização, como combinação de preços ou divisão de mercado entre concorrentes
nos mais diversos setores da economia.
Apesar de ser considerado crime no Brasil desde 1990, com pena de multa ou até
cinco anos de prisão, as investigações de cartel ganharam fôlego nos últimos anos
com a introdução do programa de leniência − quando um participante de cartel
denuncia os demais em troca de imunidade − e a celebração de um convênio entre
a SDE, o Ministério Público e a Polícia Federal.15

14
Raquel Landim. Exportador chinês usa outros países para driblar lei antidumping brasileira. O Estado de
S. Paulo, 14 de fevereiro de 2010.
15
Situação em 2010.

93
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

A prática do cartel é parcial, não egoísta, porque não mobiliza apenas


um indivíduo, mas uma empresa que participa de um pacto clandestino
que congrega vários grupos. O cartel prejudica a sociedade como um todo
porque combina preços e destroça a concorrência de outras empresas de
forma desleal.
A denúncia amparada pela lei da leniência, por sua vez, reveste-se
de caráter altruísta imparcial por causa dos efeitos socialmente benéficos
que ela produz: interessa a todos que o cartel seja desarticulado. Não im-
porta o fato de que a empresa denunciante colabore no intuito de reduzir
as sanções que iria sofrer: malgrado as intenções de quem a faz, a denúncia
gera resultados de interesse público. Não importa tampouco o fato de que, do
outro lado da cerca, as empresas denunciadas considerem o ato como traição
abjeta por parte do antigo comparsa. Importa, sim, o interesse objetivo da
sociedade. Por fim, a repressão conduzida pelos órgãos públicos também
tem caráter altruísta imparcial porque, ao satisfazer o bem comum, obedece
à razão ética.

6.3.  O altruísmo extremado


Nada há de mais admirável do que ações que beneficiam a humanidade como
um todo ou que aliviam o sofrimento de seus membros, em função de seu reco-
nhecimento como seres humanos.

O correio eletrônico
Em 1971, o engenheiro Ray Tomlinson criou o primeiro programa para trocar
mensagens por computador. Inventou um meio de comunicação usado hoje por
bilhões de pessoas − o e-mail −, com o símbolo famoso @ que separa o nome do
usuário de onde ele se encontra. Só que não registrou a invenção.
Perguntado em uma entrevista se não lamenta não ter patenteado a ideia, pois
poderia ter ficado rico com ela, Tomlinson respondeu que “a noção de que alguém
poderia ou deveria enriquecer com uma invenção como essa era totalmente contrária
ao espírito da época”.

Sábia lembrança de um tempo em que o “espírito comunitário” florescia no


terreno de fraternas utopias, pelo menos entre pesquisadores e nerds. A riqueza
não governava os comportamentos, mas o desapego e a generosidade, sim. A
ganância, então, era patética de tão ridícula, e a solidariedade imperava na mís-
tica coletiva.
Essa extraordinária disposição perpassa sociedades e épocas, das seitas mi-
lenaristas às comunidades primitivas, das ordens mendicantes às cooperativas
94
Capítulo 6: Os interesses gerais

autogeridas, dos kibutzim aos movimentos comunais, e encontra nichos


contemporâneos em organizações não governamentais e em entidades filan-
trópicas.

A invenção da teia mundial


Em 1991, Tim Berners-Lee, físico inglês que trabalhava no Centro Europeu de
Pesquisas Nucleares (CERN) em Genebra, pôs em operação a www (sistema de hiper-
texto) para o intercâmbio de textos e gráficos com seus colegas. E não patenteou a
invenção. Disse a quem lhe cobrou o fato: “Não preciso desses royalties. Por isso, eu
os cedo gratuitamente à humanidade. É a minha contribuição à democratização e à
universalização da Internet.”
O inventor da Web tornou-se catedrático do MIT e recebeu o título de Sir da rainha
Elizabeth II em 2003.

Tim Berners-Lee contrapôs sua condição de pesquisador científico à sua


carência de veia empresarial e doou um invento revolucionário. À semelhança
de Tomlinson, agiu com desprendimento. Poderia ter sido bilionário? Seria
ingênuo duvidar. Poderia ter deixado de trabalhar para sempre? Naturalmente
bastava-lhe cobrar uma quirera qualquer, nem que fosse um átimo de centavo
em cada clique na Internet...
O altruísmo extremado focaliza a humanidade das pessoas e corresponde
a práticas desprendidas que: 1) supõem sacrifícios ou riscos que doadores ou
benfeitores assumem para ajudar seus semelhantes (boas causas) ou para aliviar
o sofrimento de necessitados (ajuda humanitária); 2) conferem aos agentes con-
trapartidas simbólicas tais como gratificação psicológica, reconhecimento pes-
soal ou prestígio social, ainda que os agentes não sejam inicialmente motivados
por isso.
Tanto o primeiro setor (público) como o segundo setor (privado) cometem
eventualmente ações do gênero. Todavia, o terceiro setor (voluntário) encontra
no altruísmo extremado sua vocação peculiar. Assim, programas assistencialistas
ou de socorro a flagelados não são incomuns no setor público. Há também casos
notórios no setor privado, como o do bilionário Warren Buffet, que doou 99%
de sua fortuna a fundações filantrópicas (5% das ações que possui na Berkshire
Hathaway são repassados anualmente), ou como o da família Rockefeller, cuja
imensa riqueza veio da exploração do petróleo e que beneficiou sobremaneira
as artes.16

Destaques para a restauração dos palácios de Versalhes e de Fontainebleau na França, o Museu de Arte
16

Moderna de Nova York (MoMa), o Rockefeller Center (ícone do art déco), o Lincoln Center, a casa da Ópera
e a Orquestra Filarmônica de Nova York.

95
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

A Fundação Bill e Melinda Gates


Entre os jovens empreendedores do Vale do Silício, Gates chega a ser uma figura
mais admirada até que Steve Jobs, fundador da Apple. Não tem como essa garotada,
que combina idealismo e ambição sem limites, deixar de sentir admiração pelo traba-
lho da Fundação Bill & Melinda Gates.
Recentemente, Gates voltou a liderar a lista dos homens mais ricos do mundo, com
uma fortuna avaliada em US$ 76,5 bilhões, segundo a agência Bloomberg. Apesar de
se classificar como um “fã devoto” do capitalismo, o fundador da Microsoft escreveu na
edição mais recente da revista Wired: “O capitalismo sozinho não consegue atender as
necessidades dos muito pobres. Isso significa que a inovação orientada ao mercado
pode, na verdade, aumentar o fosso entre ricos e pobres”.
A estratégia de Gates foi buscar áreas de pesquisa que recebiam poucos recursos,
e cujos resultados poderiam beneficiar muitas pessoas. Segundo ele, seu primeiro
investimento em pesquisa sobre malária quase dobrou os recursos disponíveis na
área, “não porque nossa doação tenha sido muito grande, mas porque a pesquisa
sobre malária estava muito subfinanciada”.
O fundador da Microsoft chama a forma de atuar da fundação de “filantropia
catalisadora”. Ao colocar dinheiro na busca de solução para problemas que não
recebem a atenção devida, ele quer incentivar que governos e empresas também se
dediquem a esses problemas, fazendo com que a inovação passe a beneficiar também
as pessoas pobres.17

Mas vejamos algo menos espetacular, embora não menos generoso: a doação
de sangue. Ela é feita sem alarde, num gesto nobre de solidariedade humana.
Quantas vidas são salvas por pessoas anônimas que nada reclamam para si?18 É
por isso que o altruísmo extremado ocupa no imaginário popular a sinonímia
de altruísmo. É a ele, aliás, que o dicionário se refere tão efusivamente. Não se
trata, porém, do único tipo de altruísmo, como já vimos. E, verdade seja dita, se
não existissem múltiplos altruísmos, as sociedades humanas estariam em maus
lençóis...
Reconheçamos: a abnegação de benfeitores, doadores ou voluntários se dirige
à humanidade das pessoas socorridas e não à singularidade dos indivíduos. A
dedicação desses protagonistas se dá tanto em energia despendida (tempo de
trabalho, habilidades exercidas) como em recursos tangíveis e intangíveis. E mais:
dentre os sacrifícios que cometem, destacam-se os riscos pessoais nas horas de
maior perigo.

Renato Cruz. A reinvenção de Bill Gates. O Estado de S. Paulo, 24 de novembro de 2013.


17

Mesmo que, eventualmente, possam se valer da doação de sangue para abonar o dia de trabalho, obter
18

documento sobre a tipagem do sangue, receber um lanche após a doação, ficar isentos de taxas de inscrição
em exames ou concursos públicos, ou ainda obter carteira de meia entrada por serem doadores regulares.
Nenhum desses incentivos amesquinha o ato de solidariedade humana que salva vidas.

96
Capítulo 6: Os interesses gerais

Os samurais nucleares
Em março de 2011, um terremoto seguido de tsunami provocou mais de 15 mil
mortes e um prejuízo de aproximadamente US$300 bilhões na costa leste do Japão.
Receios de vazamentos de radiação levaram a uma evacuação de 2 mil km de raio ao
redor da planta, forçando 160 mil pessoas a deixar suas casas. A catástrofe também
atingiu as instalações da usina nuclear de Fukushima, destruindo parte de suas ins-
talações e provocando uma série de explosões. Uma fusão parcial do núcleo ocorreu
em três dos seis reatores, chegando ao nível 7 da Escala Internacional de Acidentes
Nucleares (INES) − nível equivalente ao do acidente nuclear de Chernobil.
Numa tentativa para prevenir um desastre nuclear ainda maior, o grupo que ficou
conhecido como os “50 de Fukushima” − grupo de 300 homens dos quais 50 trabalham
por turnos dentro da central nuclear − decidiu permanecer na usina para resfriar os
reatores. Todos são voluntários.

Esses homens (heróis nacionais no Japão) sabem que vão morrer devido à
exposição à radiação. São chamados de samurais, porque no código de honra
dos samurais consta a busca de uma morte digna. Prática altruísta extremada.

Os Médicos Sem Fronteiras


Médicos Sem Fronteiras é uma organização humanitária internacional indepen-
dente e comprometida em levar ajuda às pessoas que mais precisam sem discrimina-
ção de raça, religião ou convicções políticas. Oferece cuidados de saúde a pessoas em
necessidade de ajuda humanitária. Conflitos armados, epidemias, catástrofes naturais,
refugiados e deslocados internos e desnutrição são os principais contextos nos quais
a organização atua. Tais situações pedem ajuda rápida, com atendimento médico
especializado e apoio logístico.
Além de oferecer cuidados de saúde em situações de extrema urgência, as equipes
da MSF também estão presentes onde as populações sofrem com a falta de acesso à
assistência médica. Falhas crônicas no sistema de saúde local, como a escassez de ins-
talações de saúde, de profissionais qualificados e a inexistência da oferta de serviços
gratuitos para populações sem recursos financeiros, podem motivar a atuação da MSF.
Milhões de pessoas apoiam financeiramente a MSF em todo o mundo, contribuin-
do para que possa levar assistência médica aos que dela necessitam com urgência e
para manter distantes as interferências de agendas políticas, militares e econômicas.
Em 2013, espalhados por mais de 70 países, mais de 34 mil profissionais, de
diferentes áreas e nacionalidades, compunham a organização e atuavam em contextos
que envolvem desastres naturais e humanos, conflitos, epidemias, desnutrição e
exclusão do acesso à saúde.19

Médicos Sem Fronteiras. http://www.msf.org.br.


19

97
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Os milhares de profissionais que se engajam e que amparam um número


incalculável de vítimas são o mais belo testemunho dos milagres que voluntários
podem realizar a despeito das privações inauditas, das doenças e dos riscos de
ferimentos e morte. Aleluia para eles!

Figura 6.1  A realização do bem comum.

A geração do bem comum supõe necessariamente práticas consensuais, uni-


versalistas, porque satisfazem interesses gerais, sejam sociais, sejam humanitários.
É o cimento que unifica coletividades e o farol que ilumina um fato decisivo: os
humanos são seres efetivamente semelhantes.

6.4.  Teste de conceitos (6)


Vamos testar os dois conceitos em situações historicamente determinadas,
cientes de que existem práticas altruístas imparciais e extremadas em toda parte
e em todas as épocas. Vale dizer, embora o teor dessas práticas varie de uma
sociedade para a outra, as características gerais que as definem permanecem as
mesmas.
O exercício a seguir consistirá em qualificar cada caso como prática al-
truísta imparcial (AI) ou prática altruísta extremada (AE), lembrando que as
primeiras visam ao interesse público e beneficiam todos os membros de dada
sociedade, enquanto as segundas beneficiam pessoas necessitadas e supõem
riscos e sacrifícios desmedidos em relação às contrapartidas simbólicas que os
benfeitores obtêm.
98
Capítulo 6: Os interesses gerais

CASO PRÁTICA
1. Operar rede de água encanada.
2. Regular tráfego urbano e aéreo.
3. Amparar vítimas da fome ou de epidemias.
4. Gerar eletricidade com bagaço de cana, energia eólica ou solar.
5. Doar recursos para agências humanitárias ou filantrópicas.
6. Integrar Forças de Paz da ONU.
7. Integrar brigadas de combate a incêndios.
8. Prestar serviços hospitalares.
9. Participar de operações especiais de segurança pública contra traficantes de drogas.
10. Oferecer abrigo e cestas de alimentos a populações flageladas.
11. Fornecer serviços educacionais.
12. Doar invenções, patentes ou softwares.
13. Acolher refugiados, doentes, sinistrados, miseráveis ou desamparados.
14. Deixar de testar produtos sobre animais, dada a existência de métodos subs-
titutivos eficazes.
15. Doar órgãos.
16. Operar estações de tratamento de esgoto.
17. Atender feridos em teatro de guerra.
18. Prestar serviços de ambulância.
19. Atender pacientes por critérios de urgência médica.
20. Multar empresas por propaganda enganosa (Procon).
21. Abastecer a população com alimentos, combustíveis ou remédios.
22. Diminuir o tamanho das embalagens, reduzindo o consumo de matéria-prima e
energia, bem como os custos de transporte.
23. Eliminar insumos nocivos ao meio ambiente.
24. Participar de mutirões de serviços comunitários.
25. Contabilizar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa desde os fornecedo-
res até a porta do cliente.
26. Distribuir remédios contra doenças tropicais a populações carentes.
27. Proibir a pesca em tempo de reprodução das espécies (períodos de defeso) para
evitar a extinção da indústria pesqueira.
28. Pagar pelos serviços ambientais, isto é, pela capacidade dos ecossistemas
de manter condições sustentáveis.

O gabarito deste teste de conceitos (6) se encontra no Anexo.


É útil observar que práticas altruístas imparciais remetem também a:
j
Serviços de interesse comum, tais como iluminação pública, meios de co-
municação (telefonia, internet, televisão, rádio, correios), Poder Judiciário,
99
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

segurança pública, sepultamento e cremação de mortos, detenção de


criminosos, fornecimento de energia elétrica ou de gás natural etc.
j Bens de interesse comum, tais como rodovias, pontes, hidrovias, trans-
portes públicos sobre trilhos ou pneus, portos, aeroportos, rodoviárias,
hidrelétricas, museus de artes e ciências, bibliotecas públicas, estações de
tratamento de esgoto e respectivas redes de coleta, sistema monetário,
praças e parques públicos etc.

6.5.  Teste de conceitos (6A)


Vamos agora combinar os vários conceitos e qualificar qual prática é autoin-
teressada (A), egoísta (E), altruísta restrita (AR), parcial (P), altruísta imparcial
(AI) e altruísta extremada (AE).
As seis primeiras asserções referem-se à questão do tabagismo; as cinco úl-
timas dizem respeito à tentativa de extorsão de fornecedores por parte de um
gerente de tesouraria que quer cobrar “pedágio” (taxa por fora) para saldar as
faturas devidas.

CASO PRÁTICA
1. Provocar fumo passivo.
2. Doar para campanha antitabagista.
3. Não fumar perto de não fumantes.
4. Fabricar cigarros.
5. Não fumar ou fumar eventualmente.
6. Proibir o fumo em ambiente fechado de uso coletivo.
7. Exigir “pedágio” para saldar faturas devidas.
8. Denunciar o “pedágio” às autoridades e à mídia.
9. Resistir ao abuso, assumindo os riscos das represálias, tais como o atraso no
pagamento ou o descredenciamento como empresa fornecedora.
10. Participar de organização não governamental anticorrupção.
11. Pagar o “pedágio” exigido.

O gabarito deste teste de conceitos (6A) se encontra no Anexo.

100
Capítulo

7
Razão ética ou racionalização
antiética?

7.1 Exercício: Aplicações práticas (7)


O exercício a seguir procura aplicar os conceitos aprendidos. Descreve situa-
ções que demandam uma caracterização científica.
1. Em um primeiro momento, procure qualificar cada uma das asserções,
obedecendo ao seguinte crivo:
• Escreva RE se a prática obedecer à razão ética (universalismo) que
interessa a todos e é, por isso mesmo, consensual: visa ao bem comum
(práticas altruístas imparciais ou extremadas) e ao bem restrito uni-
versalista (práticas altruístas restritas ou autointeressadas).
• Escreva RA se a prática obedecer à racionalização antiética (particula-

rismo) que prejudica outros agentes e é, por isso mesmo, abusiva: visa
ao bem restrito particularista (práticas egoístas ou parciais).

Figura 7.1  O que orienta decisões e ações? 101


CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

2. Em um segundo momento, reveja cada uma das asserções e procure iden-


tificar com precisão qual conceito dá conta do evento: prática autointeres-
sada (A), egoísta (E), parcial (P), altruísta restrita (AR), imparcial (AI) ou
extremada (AE).

ASSERÇÃO RESPOSTA
1. Fazer acordo entre concorrentes na elaboração de propostas para
licitação é praxe no Brasil, de modo que é preciso cooperar com os demais
licitantes para não ficar à margem do processo.
2. Sendo eu um executivo, o que faço fora do trabalho não interessa a
ninguém, é exclusivamente um assunto de foro íntimo, pois não carrego o
crachá da empresa nos lugares que frequento.
3. Em face do emaranhado excessivo de leis e de regulamentações no
Brasil, é preciso encontrar os meios para que certos funcionários públicos
deixem de criar dificuldades.
4. Para que não haja dúvida sobre a lisura das decisões de compra ou de
contratação, o fato de receber presentes ou vantagens de fornecedores
ou clientes converte-se em assunto delicado. Só podem ser aceitos
brindes ocasionais, que não tenham valor comercial ou cujo valor seja
insignificante.
5. Para agradecer o empenho de um funcionário público no andamento de
um processo, é de bom-tom convidá-lo a um restaurante fino e ao final
lhe oferecer um mimo.
6. Numa festa familiar, um parente propõe ver o DVD de um filme muito
comentado que está nos cinemas. Você se recusa terminantemente a
assisti-lo, embora todos se entusiasmem, e explica por que − a cópia é
pirata.
7. Como coordenador de RH, você é responsável por um concurso interno
destinado a preencher uma nova posição criada na empresa. Um alto
gestor lhe pede sigilosamente para que um funcionário da confiança dele
seja selecionado. Seria bobagem não atender a um pedido desse.
8. Desde que haja análise prévia e autorização formal dada pela diretoria, é
possível manter interesses em empresas fornecedoras, seja diretamente,
seja através de familiares. Mesmo assim, o colaborador deve abster-se de
influenciar qualquer negócio que envolva essas empresas, declarando-se
impedido de administrar o contrato.
9. Para aprovar a implantação de um projeto de desenvolvimento em um
município que tem um programa de incentivos fiscais para a instalação de
indústrias, os vereadores exigem “contribuições”. É o preço a ser pago para
criar empregos, gerar imposto e impulsionar a economia local.
10. Na empresa, cada colaborador responde por si mesmo. Assim, os gestores
não são responsáveis pelos atos de seus subordinados, sobretudo se
souberem dos riscos envolvidos.
11. Uma empresa patrocina um filme brasileiro valendo-se dos incentivos
fiscais federais. Exige do produtor, porém, que 25% do investimento
lhe seja repassado em dinheiro. Os interesses são mútuos: o produtor
consegue recursos para sua produção, e a empresa recupera parte dos
impostos que iria pagar.

102
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?

ASSERÇÃO RESPOSTA
12. Para atingir as metas, que são desafiadoras, é preciso empenhar-se a fun-
do, mas também cabe contornar as normas que atrapalham a obtenção
do próprio bônus.
13. A concorrência leal não existe no Brasil porque aqui prevalece o vale-tudo.
Basta lembrar a generalizada sonegação de impostos e a crescente presença
do mercado informal, de maneira que é preciso dançar conforme a música.
14. As questões ambientais constituem riscos organizacionais. Elas precisam
ser gerenciadas com muito discernimento, pois podem comprometer a
sustentabilidade do negócio e a própria habitabilidade do planeta.
15. Essa conversa de “politicamente correto” é um modismo norte-americano
que não condiz com os padrões culturais brasileiros. Aqui não há pro-
blema algum em fazer brincadeiras com os trejeitos dos gays, a pança dos
gordos ou a burrice dos portugueses: todo mundo acha graça.
16. Uma vez que a vida não está fácil, é importante ter uma atividade paralela
para complementar o orçamento. Assim, não vejo mal algum em fornecer
a colegas os produtos de que precisem durante o expediente. Isso evita
que eles os procurem nas lojas.
17. Em prol dos clientes, tudo se justifica. Por exemplo, se, em vez de fazer um
acordo entre dois ou mais concorrentes para fixar preços ou dividir o mer-
cado, for estabelecido um consenso em torno de descontos conjuntos.
18. O diretor de recursos humanos de uma empreiteira envolvida em
licitações dirigidas, obras superfaturadas e financiamento de campanhas
políticas com caixa dois, assiste a uma conferência sobre Ética Empresa-
rial, encanta-se com o conteúdo e propõe à diretoria a contratação do
palestrante. O presidente veta a ideia dizendo-lhe: “Deixa de ser bobo;
não vamos mexer nesse vespeiro.”
19. Para coibir o roubo em supermercados, as empresas costumam instalar
sistemas de vigilância.
20. A indústria farmacêutica Novartis comprometeu-se a eliminar a hansenía-
se em todo o mundo. Desde o ano 2000, forneceu os medicamentos para
tratamento da doença em parceria com a Organização Mundial de Saúde
(OMS). Até 2009, foram doadas 40 milhões de unidades do medicamento,
curando mais de 4,5 milhões de pacientes no mundo todo, o que re-
presentou um investimento de US$60 milhões. Em 2008, 3,8 milhões de
unidades foram distribuídas aos países endêmicos, entre eles o Brasil.
21. Um contador foi pego fraudando seu empregador, uma grande companhia
metalúrgica. A fraude alcançou o montante de R$100 mil no período de três
anos. Quando confrontado com as evidências, confessou a autoria e rogou
que o deixassem demitir-se. Seu estado era tão lamentável que a diretoria
da companhia autorizou sua demissão. Prometeu até que não haveria
menção à fraude nas referências que seriam fornecidas a seu respeito.
22. No terceiro set do torneio Itália Masters de 2005, em Roma, o tenista
americano Andy Roddick enfrentou Fernando Verdasco, da Espanha. Era
match point a favor de Roddick. Quando Verdasco bateu seu segundo
serviço, o juiz de linha gritou “bola fora” e a multidão começou a aclamar
o americano. Mas Roddick chamou a atenção do árbitro para uma leve
marca que comprovava que a bola havia sido dentro e não fora. Todos
ficaram surpresos e Roddick acabou perdendo a partida.

103
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA
23. Sherron Watkins era uma contadora certificada que havia trabalhado
na Arthur Andersen durante oito anos. Em 2001, era vice-presidente de
desenvolvimento corporativo da Enron Corporation e mandou um correio
eletrônico ao CEO Kenneth Lay, prevenindo-o contra o risco de delações,
haja vista as incorreções existentes nas demonstrações financeiras. Cinco
meses depois, seu memorando veio a público e contribuiu para o des-
vendamento das manipulações contábeis da Enron.
24. Numa faculdade de medicina norte-americana, o professor saiu da sala
depois de distribuir a prova. No ato, muitos alunos puxaram colas dos
bolsos. Um deles, entretanto, jovem que fazia enormes sacrifícios para es-
tudar, levantou-se e disse alto e bom som para os colegas: “Vou denunciar
o primeiro que se atrever a trapacear.” A turma acreditou, e as colas
desapareceram tão rapidamente como tinham surgido. Estabeleceu um
padrão e a classe graduou-se com louvor.
25. Pai e filho estavam almoçando numa lanchonete McDonald's. Na saída, um
após o outro, encheram os bolsos com sachês de mostarda e ketchup, e
saíram com a cara lavada. Um grupo de adolescentes olhou e “achou legal”.
26. O comentarista econômico Joelmir Betting perdeu sua coluna diária em
O Estado de S. Paulo e O Globo, além de seu contrato com a TV Globo, após
participar de comerciais do Bradesco (dezembro de 2003), sob o pretexto
de que sua exposição publicitária afetou a confiança do público que se
interessa pela área de negócios, pondo em xeque sua isenção.
27. Um colega de trabalho, que é também seu amigo, lhe pergunta se você
gostaria de ter uma cópia de um software recém-adquirido pela empresa.
Você recusa de forma bastante assertiva, argumentando em favor da
propriedade intelectual.
28. Seu gerente não considera que o alcance de 100% das metas seja um
feito. Proclama sem ressalvas que é preciso ir além a qualquer custo,
pensando “fora da caixa”. Seus colegas não medem os meios numa
espécie de vale-tudo e são elogiados por ele. Você denuncia o fato à
diretoria executiva.
29. Por mais que as companhias se digam idôneas e até mesmo socialmente
responsáveis, muitas contratam serviços de empresas pelas quais não
sabem responder. Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de
Carga de São Paulo e Região, 1,3 motociclista morre por dia em acidente
de trânsito. Quase todas as empresas contratam serviços de motoboys.
Mas quantas atentam para o fato de que, das duas mil firmas de entrega
rápida na Grande São Paulo, 80% são clandestinas?
30. No segundo semestre de 2001, durante a crise de energia no Brasil, a Ele-
tropaulo, concessionária que distribui energia elétrica em São Paulo e em
23 cidades da região metropolitana, doou 1,6 milhão de lâmpadas com-
pactas fluorescentes para cerca de 500 mil famílias de baixa renda e para
duas mil entidades filantrópicas. Gastou R$11 milhões na operação. Uma
lâmpada incandescente comum custava R$1 e uma compacta fluores-
cente saía por R$15. Ocorre que as lâmpadas fluorescentes proporcionam
uma economia de até 80% na iluminação e eram responsáveis por 20% do
consumo total de energia das residências. A Eletropaulo atendeu, assim,
às exigências governamentais de encontrar meios de reduzir o consumo
de energia.

104
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?

ASSERÇÃO RESPOSTA
31. O fundador e presidente da Parmalat na Itália, Calisto Tanzi, e sua equipe
diretiva foram responsáveis por uma fraude que lesou mais de 135 mil
investidores, deixou um rombo de cerca de €14 bilhões e levou a empresa
à falência (2003).
32. Um operador do banco francês Société Générale, Jérôme Kerviel,
provocou o rombo recorde de €4,9 bilhões. Usou seus conhecimentos de
informática (trabalhou na área que monitora as mesas de operação) para
falsificar registros bancários. Descoberto em janeiro de 2008, havia apos-
tado €48 bilhões em contratos futuros de índices de bolsas de valores
europeias. Queria ser reconhecido como estrela entre os traders e admitiu
ter feito operações sem autorização.
33. O presidente da Walmart, Lee Scott, anunciou em outubro de 2008 que
pretendia cortar de sua lista os fornecedores chineses que não res-
peitarem padrões sociais de contratação (por exemplo, trabalho infantil e
trabalho forçado), assim como padrões ambientais (por exemplo, lançar
produtos químicos nos rios ou não se preocupar com a correta disposição
final dos resíduos industriais).
34. Num posto de gasolina norte-americano em que os motoristas abastecem
seus carros sem ajuda de atendente, o preço do litro em uma bomba ficou
reduzido por engano a um décimo de seu valor. Como o dono do posto
não tinha o direito legal de mexer no preço senão uma vez ao dia, o erro
permaneceu. Ocorre que os motoristas perceberam isso e a notícia se es-
palhou: muitos acorreram e encheram o tanque de seus carros.
35. Na unidade dos Médicos Sem Fronteiras do Complexo do Alemão, na
Zona Norte do Rio de Janeiro, o critério de atendimento obedece ao grau
de urgência do paciente. “Eles passam por uma triagem, onde vão receber
um cartão de uma cor, que pode ser vermelho, se o caso for urgente;
amarelo, quando é menos urgente; e verde para outro tipo de atendimen-
to”, explica o coordenador do projeto.
36. Um ditado brasileiro reza que “quem parte e reparte, mas não fica com a
melhor parte, ou é bobo ou não tem arte”.
37. Em junho de 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
publicou uma resolução que entraria em vigor no prazo de seis meses.
Determinou que propagandas de alimentos que tenham alto teor de
gordura saturada ou trans, grande quantidade de sal ou de açúcar, além
de bebidas com baixo poder nutritivo passem a ser veiculadas com frases
de advertência sobre os males à saúde que podem provocar quando
consumidos em excesso. A nova estratégia visa a melhorar a alimentação
do brasileiro e enfrentar o aumento da obesidade no país.
38. Um empresário mora em um bairro residencial de alto padrão e costuma
voltar do trabalho à noite, preocupado com a onda de assaltos a motoris-
tas. Em função disso, decidiu blindar o próprio carro.

105
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA
39. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnu-
ma), publicado em junho de 2010, afirma que a produção de alimentos
e os combustíveis fósseis causam poluição, emissão de gases estufa,
doenças e destruição de florestas. “A produção agrícola consome 70% da
água potável, 38% do uso da terra e 14% das emissões de gases estufa”,
afirma Achim Steiner, chefe do Pnuma. Os consumidores podem ajudar,
diz a ONU, cortando o consumo de carne e reduzindo o uso de combus-
tíveis fósseis para viajar e aquecer a casa. “Produtos de origem animal são
impactantes porque mais da metade das plantações do mundo é usada
para alimentar animais, não pessoas”, diz Steiner. Para ele, uma redução
substancial dos impactos só seria possível com uma mudança radical da
dieta humana no mundo todo.
40. No início de 2009, o Procon de São Paulo autuou as cervejarias Schincariol
e Petrópolis por conta de propaganda enganosa. As campanhas publici-
tárias das duas empresas induziriam o consumidor a pensar que o selo de
proteção usado nas latas de cerveja seria higiênico. O fato é contestado
pelo órgão que condena os artifícios criados pela propaganda, pois geram
expectativas que os produtos e serviços não conseguem entregar.
41. O economista norte-americano Milton Friedman, prêmio Nobel de eco-
nomia, afirmou que “o negócio dos negócios é o negócio” ou, em outras
palavras, que a função da empresa na sociedade se limita à boa prestação
de serviços e produtos, além de gerar lucro aos acionistas.
42. Em outubro de 2009, executivos da JBS-Friboi, Bertin, Marfrig e Minerva
− as quatro maiores empresas brasileiras de abate e processamento
de carne e couro − assinaram com a organização não governamental
Greenpeace um compromisso público de não aceitar gado de fornece-
dores envolvidos com o desmatamento da Amazônia. O discurso afinado
entre frigoríficos e o Greenpeace aconteceu em junho, quando a ONG
denunciou o setor no relatório “Farra do boi na Amazônia”. O relatório
acusava a indústria da pecuária de ser o principal responsável pelo
desmatamento no bioma amazônico. No mesmo dia da publicação do
relatório, o Ministério Público entrou com ação pública contra a criação
e compra de gado da região. As empresas, aos poucos, assumiram uma a
uma o compromisso de boicotar a compra de carne de áreas devastadas,
e as grandes redes de varejo seguiram o mesmo caminho.
43. Oferecer cuidados de saúde a quem não tem acesso a esse tipo de
atendimento devido a guerras e catástrofes naturais sempre foi a meta dos
Médicos Sem Fronteiras. Ao longo dos 30 anos de existência, a organização
ampliou seu foco de atuação para contextos urbanos, nos quais violência
e exclusão social são problemas crônicos que impedem a população de
usufruir dos serviços de saúde, como ocorre em cidades da Índia e do Haiti.
44. Estabelecer preços mínimos, dividir cotas por importador de brinquedos,
excluir empresas do mercado brasileiro, obter indicações de que o gover-
no cumpre o que for determinado pelo setor privado são infrações contra
a livre concorrência apontadas pela Secretaria de Direito Econômico (SDE)
contra a Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (Abrinq) e seu
presidente, Synésio Batista da Costa. A SDE, do Ministério da Justiça, en-
caminhou ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade)
parecer recomendando a condenação da Abrinq e de seu presidente por
induzir as empresas associadas à formação de cartel.

106
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?

ASSERÇÃO RESPOSTA
45. Torcedores oferecem coletiva e abertamente “mala branca”, isto é, in-
centivos monetários a uma equipe de futebol para que vença uma partida
contra um adversário mais bem colocado na tabela do campeonato que
seu time do coração.
46. A prefeitura de Extrema, na divisa entre os estados de Minas Gerais e São
Paulo, paga por serviços ecológicos, isto é, recompensa quem preserva
recursos naturais. Um agricultor, por exemplo, recebe R$1.300 todo mês
para cuidar de 10 nascentes que brotam em sua propriedade.
47. A subsidiária brasileira da Cisco Systems, companhia de soluções
de tecnologia americana, foi multada pela Receita Federal em R$3,3
bilhões por operações fraudulentas de importação (subfaturamento de
equipamentos para reduzir o pagamento de impostos) que causaram um
prejuízo de cerca de R$1,5 bilhão aos cofres públicos.
48. Os gestores da divisão gráfica de um grupo empresarial do ramo editorial,
responsável pela importação de papel de impressão que está isento do
pagamento de imposto (desde que o papel se destine a publicações cul-
turais e educativas), cansaram de pagar a “taxa de urgência” ou a “caixinha”
que os fiscais da alfândega exigiam após criar dificuldades para vender
facilidades. Decidiram então desmontar a armadilha que os prendia: toda
vez que um fiscal se recusava a liberar a mercadoria importada, abriam
um processo administrativo. Recurso trabalhoso, sem dúvida, mas indis-
pensável para que a empresa pudesse se livrar da extorsão que a obrigava
a gerar e a manter um caixa dois. Fortaleceu também a mensagem interna
de que seu novo Código de Conduta Moral era para valer (rejeição dos
subornos, “comissões” e presentes) e fortaleceu sua imagem externa.
49. Uma companhia norte-americana afetada pela recessão de 2009
decidiu contratar uma nova equipe diretiva para tentar sair do sufoco.
Os recém-chegados, interessados em mostrar resultados expeditos,
procuraram combater o que eles chamavam de “obsessão pelo manual
de políticas e procedimentos”. Difundiram a ideia de que era preciso “ser
agressivo num mundo agressivo”. Trocando em miúdos: desde que os
lucros fossem bons, deixaram implícito que não se importavam com os
meios utilizados para efetuar as vendas. Essa mensagem, contudo, provo-
cou um choque cultural na empresa porque contradisse padrões morais
anteriores. O quadro gerencial, que fora anteriormente vacinado contra
os subornos e os arranjos de bastidores, se recusou a compactuar com a
nova orientação. Os desentendimentos foram crescendo e redundaram
no afastamento dos novos diretores.
50. Em julho de 2006, foi assinada a “Moratória da Soja”: a indústria da soja se
comprometeu a não adquirir produto originário de novos desmatamen-
tos na Amazônia. Participaram do acordo o Ministério do Meio Ambiente
(MMA), o setor produtivo − representado pela Associação Brasileira da
Indústria de Óleos Vegetais (Abiove) e pela Associação Nacional de Ex-
portadores de Vegetais (Anec) −, além de várias ONGs como Greenpeace,
The Nature Conservancy e WWF-Brasil. O cumprimento da moratória
foi fiscalizado entre os anos 2007 e 2009, graças a cerca de seis mil fotos
aéreas e umas 1.300 imagens de satélite. Em consequência, a sojicultura
foi responsável por apenas 0,88% das áreas desmatadas na Amazônia
brasileira entre 2006 e 2008.

107
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA
51. No primeiro semestre de 2012, a varejista espanhola Inditex, dona da
Zara, realizou 206 auditorias em seus fornecedores no Brasil. A rede
trabalha com 40 fornecedores e 208 oficinas de costura no país e está
fazendo fiscalizações de seis em seis meses. Essas ações fazem parte de
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o Ministério
Público do Trabalho (MPT), que investigou e acusou um fornecedor de
roupas da Zara no Brasil − a empresa Aha − de explorar mão de obra
em condições análogas à escravidão (eram imigrantes bolivianos, sem
documentação legal). A fornecedora foi descredenciada pela Inditex. A
varejista espanhola não foi a única a ser acusada pelo MP − Marisa, C&A
e Pernambucanas também foram. Ainda como parte do termo assinado
com o Ministério Público, a Inditex está implementando um programa
de responsabilidade social no país cujo orçamento é de R$ 3,4 milhões
em dois anos. O plano envolve um conjunto de projetos que vai desde
a criação de um Poupatempo para imigrantes até o fortalecimento de
auditorias nos fornecedores e oficinas de costura que trabalham para a
marca.
52. De acordo com uma reportagem do jornal The New York Times, executivos
da Walmart no México teriam distribuído US$24 milhões em propinas a
centenas de prefeitos e funcionários públicos em troca da obtenção de
licenças para a construção de lojas na última década. A prática teria sido
incentivada por um dos principais executivos da companhia, o equatoria-
no Eduardo Castro-Wright, que até recentemente era o vice-presidente do
conselho global da Walmart e que esteve à frente da operação mexicana
até 2005.
53. A Comissão Europeia impôs em abril de 2011 uma multa de €315,2
milhões à empresa americana Procter & Gamble e à anglo-holandesa
Unilever por criar um cartel junto com a Henkel no mercado de sabão em
pó em oito países europeus. A Comissão anunciou em comunicado que
a multa a essas duas companhias inclui uma redução de 10% por terem
admitido os fatos e permitido uma rápida conclusão da investigação,
enquanto a alemã Henkel obteve imunidade por ter revelado a Bruxelas
a existência do cartel em 2008. O acordo feito entre as empresas durou
por volta de três anos e pretendia estabilizar posições no mercado por
meio da coordenação de preços, em violação às normas antimonopólio
da União Europeia (UE) e da Área Econômica Europeia (AEE), acrescentou
a Comissão.
54. Em abril de 2010, executivos do Goldman Sachs foram acusados de
“comportamento antiético” e de “enganar seus clientes para aumentar
os lucros” do banco. O CEO da Goldman, Lloyd Blankfein, e mais seis
executivos e ex-funcionários foram massacrados em mais de nove horas
de audiência no Senado americano. O líder do comitê de investigação,
senador Carl Levin, divulgou e-mails em que os executivos do Goldman
chamavam de “monte de porcaria”, “lixo” e “negócio de merda” os produtos
que vendiam a seus clientes. E-mails e documentos mostram também
que, enquanto vendiam os “montes de porcaria”, os executivos faziam
apostas contra os mesmos produtos, na chamada posição short, prevendo
que os papéis teriam queda de valor. Os executivos questionados pelos
senadores não se mostraram arrependidos. A maioria argumentou que os
investidores que compravam os papéis sabiam dos riscos.

108
Capítulo 7: Razão ética ou racionalização antiética?

ASSERÇÃO RESPOSTA
55. O banco JP Morgan chegou a um acordo preliminar de US$ 13 bilhões
com o departamento de Justiça dos Estados Unidos para resolver uma
série de inquéritos de seu negócio de ativos lastreados em hipotecas re-
sidenciais (outubro/2013). Se finalizado, representará o maior acordo que
o governo norte-americano selou com uma única empresa. O acordo não
resolve o inquérito criminal em andamento sobre a conduta do banco,
que está sendo tratado pelo Ministério Público Federal em Sacramento,
na Califórnia. Mas inclui aproximadamente US$ 4 bilhões com a Agência
Federal de Financiamento de Habitação para resolver acusações de que o
JP Morgan teria enganado a Fannie Mae e a Freddie Mac (instituições de
financiamento imobiliário) a respeito da qualidade dos empréstimos que
foram vendidos a eles às vésperas da crise financeira de 2008.

O gabarito dessas aplicações práticas (7) se encontra no Anexo.

109
Capítulo

8
O paradoxo das decisões éticas

8.1.  As morais empresariais brasileiras


Vamos analisar as formas de tomar decisão que tenham legitimidade ética.
Porém, desde logo, uma observação. Legitimidade ética não significa legitimidade
moral ou justificação moral: são dois níveis distintos de análise. No livro todo
operamos no plano abstrato-formal dos conceitos, não no plano histórico-real
dos fatos. Caso considerássemos as duas legitimidades como equivalentes, es-
taríamos confundindo a Ética − ciência que formula juízos de realidade sobre os
fatos morais − com os próprios fatos morais e os juízos de valor que os agentes
sociais emitem a respeito.
Todavia, perguntarão: os exemplos dados ao longo do livro não são reais? Eles
são, sim. Mas suas qualificações são teóricas, conceituais, não correspondem ne-
cessariamente às percepções ou às definições que as pessoas conferem aos eventos.
Se não, vejamos. Jogar no jogo do bicho, ainda que seja ilegal, desfruta de jus-
tificação moral no Brasil, mas não de legitimidade ética. Por quê? Jogar no bicho
não compromete o jogador, ninguém é considerado mau caráter nem se torna
menos confiável por ter jogado. Os colegas, amigos ou superiores são até capazes
de pedir ao sujeito que faça uma fezinha para eles! Por outro lado, jogar no
bicho carece de legitimidade ética porque contribui para sustentar organizações
criminosas e fortalece interesses particularistas em detrimento do bem público.
Eis outra situação aparentemente polêmica: gerar e possuir um “caixa dois”
é moralmente legítimo entre os empresários, embora seja ilegal. Como sabemos
disso? A maioria esmagadora das empresas adota essa prática e seus executivos
dormem o sono dos justos. Mas essa contabilidade escusa não se choca com a
moralidade oficial? Sem dúvida, a moral da integridade considera a prática espúria.
Então? Quais padrões morais legitimam o caixa dois? Padrões morais clandestinos.
111
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Quer dizer que a moral do oportunismo legitima o caixa dois? Não diretamente.
Expliquemos: o oportunismo diz respeito a uma moral geral e oficiosa que pauta as
condutas pessoais, veicula uma mensagem egoísta, remete ao particularismo indivi-
dual. E o caixa dois compromete necessariamente empresas, grupos, coletividades.
Nessas condições, qual moral se aplica? A moral da parcialidade, uma espécie
de espelho amplificado do oportunismo. Uma moral adotada pelas empresas e
que reflete as expectativas do particularismo grupal. Um código moral oficioso,
pragmático ao extremo e que floresce na sombra. Seu sentido mais profundo está
no lema: “Nós protegemos os nossos; os outros que se cuidem!” Certa semelhança
com os códigos de honra mafiosos não é mera coincidência... No essencial, a
moral da parcialidade:
j
Ensina padrões duplos de conduta: num prato da balança, enaltece a
lealdade e a fidelidade entre os membros do grupo, os “de dentro” que são
os únicos em quem se pode confiar; noutro prato da balança, aconselha a
malícia e o vale-tudo nas relações com os “de fora”, os que não merecem
confiança.
j Celebra a troca de favores à moda franciscana (“é dando que se recebe”),
numa prosaica substituição de Deus pelos “amigos” (colegas, pares, com-
parsas ou aliados).
j Considera que as regras comuns não se aplicam à nossa organização (“A
lei? Ora, a lei!”).
j
Concebe o mundo como uma selva em que se defrontam ganhadores e
perdedores (“O sol nasceu para todos, mas a sombra para alguns”).

Em resumo, confere vida a uma velha máxima brasileira: “Para os amigos,


tudo; para os inimigos, nada; para os indiferentes, a lei”. São padrões morais
particularistas, abusivos, que obedecem à racionalização antiética e formam
uma segunda moral empresarial. Assim, a duplicidade moral geral vigente no
Brasil − moral do oportunismo versus moral da integridade − se vê reproduzida
no campo empresarial: moral da parcialidade (sub-reptícia, dissimulada) versus
moral da parceria (declarada, manifesta).
Vejamos então como esta moral empresarial se expõe à luz do dia. À seme-
lhança da moral da integridade, a moral da parceria constitui um código oficial,
público e altruísta. Difere daquela, todavia, em três importantes aspectos:
1. Restringe-se ao setor empresarial, pois orienta tão somente empresas res-
ponsáveis (enquanto a outra tem abrangência geral, uma vez que todos
os brasileiros a conhecem, não importa sua escolaridade formal).
2. Não encara os fatos de modo dicotômico, binário ou maniqueísta (zero/
um, sim/não, preto/branco) como as morais convencionais, mas leva em
conta as tonalidades cinzentas que muitos fatos morais apresentam.

112
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

3. Não conduz necessariamente a tomar decisões discretas (certo/errado,


aceitável/inaceitável, bom/ruim), mas faculta decisões matizadas, que
exigem uma elaborada análise situacional: as circunstâncias são sopesadas,
os fatores ponderados, as nuanças avaliadas, as sanções graduadas e os
riscos calculados.
No essencial, a moral da parceria:
j
Propõe alianças entre grupos com base na interdependência, no profis-
sionalismo (competência técnica, diligência, isenção, impessoalidade) e
nas transações idôneas (honestas e justas).
j Contribui para a previsibilidade das condutas e para a generalização da
confiança entre os agentes (a contrapelo da desconfiança generalizada que
a moral da parcialidade induz).
j Promove práticas altruístas restritas (apoio mútuo) ou imparciais (am-
pla reciprocidade) e lança mão da análise situacional com base em igual
consideração dos interesses.
j
Consiste em padrões morais que obedecem à razão ética porque advogam
o universalismo, tanto do bem restrito, como do bem comum. Daí a
máxima: “negócios são acordos que beneficiam todas as partes”.

Ilustremos: a lei da oferta e da procura justifica a manipulação de preços


(especulação) em situações de calamidade pública? A moral da parcialidade
dirá que sim, porque as empresas precisam aproveitar todas as oportunida-
des para ganhar dinheiro (particularismo). A moral da parceria dirá que não,
porque empresas socialmente responsáveis não abusam de pessoas vulneráveis
(universalismo).
Esclarecidas essas questões, voltemos ao raciocínio inicial. De que maneira,
por exemplo, a moral empresarial da parcialidade valida o caixa dois (indício da
sonegação de impostos, do aliciamento de fiscais, da manipulação contábil, da
concorrência desleal, da duplicidade moral)? Pelas praxes correntes do dia a dia
dos negócios, pelo papo informal na mesa de bar tratando o fato como dado da
natureza, pelas risadas cúmplices entre executivos e fiscais venais − ainda que
isso tudo seja feito às ocultas −, em suma, pela sua inserção no cotidiano das
empresas. Em contraposição, nem a moral da integridade brasileira nem a moral
empresarial da parceria conferem legitimidade ao caixa dois. Ao contrário, ambas
o condenam e o tacham de imoral. Ora, será que a contradição entre a aprova-
ção tácita e a reprovação formal provoca algum incômodo? Raramente. Todos
convivem bem com ela: de empresários a gerentes de banco, de fornecedores
a auditores independentes, de executivos a prestadores de serviços... Basta ter
cautela: mudar de assunto perto dos “estranhos” e deixar que o véu da hipocrisia
caia repentinamente sobre os convivas.

113
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

De forma simétrica, mas por razões diversas, o caixa dois tampouco desfruta
de legitimidade ética ou teórica. Por que será? Para responder, é preciso indagar:
quem se beneficia com tal operação? Resposta: os agentes cujos interesses parti-
cularistas são satisfeitos. Em contrapartida, quem perde com isso? A sociedade
inclusiva. Dito de outra forma, as empresas se locupletam em detrimento do
bem comum, pois sonegam impostos, competem de forma desleal, corrompem
a máquina pública etc. Conclusão: o caixa dois é ilegítimo do ponto de vista
ético, ainda que encontre forte justificação moral (clandestina, sub-reptícia) no
setor empresarial.
O mesmo raciocínio vale para os traficantes de drogas ou as milícias que
operam nos morros no Rio de Janeiro. Chegam a desfrutar de justificação moral −
provida pela parcialidade − quando oferecem proteção e alguns serviços comuni-
tários ou quando pirateiam utilidades públicas (energia elétrica, televisão a cabo).
Porém, suas ações são ilegítimas do ponto de vista ético. Razões? Aproveitam-se
da ausência do Estado (no policiamento e nos serviços públicos) para impor seu
domínio pela violência (poder paralelo) e para cercear a liberdade dos moradores
(cooptam alguns enquanto transformam os demais em reféns). Exercem práticas
abusivas que lesam os interesses universalistas das comunidades.

Figura 8.1  As morais brasileiras.

8.2.  A escolha entre o bem e o mal


O dilema clássico que monopoliza o imaginário social diz respeito à escolha
entre o bem e o mal. Ocorre que o “bem” e o “mal” podem ser definidos de duas
maneiras: pelo prisma histórico ou pelo prisma teórico. Quer dizer, podem ser
qualificados do ponto de vista moral ou do ponto de vista ético. Assim sendo, o
bem ou o mal pode ser avaliado à luz da moralidade vigente numa sociedade es-
pecífica ou num setor determinado dessa mesma sociedade (prisma histórico ou
114
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

moral) ou à luz da análise ética que contrapõe o universalismo ao particularismo


(prisma teórico ou ético).
Por exemplo, um gerente pode ficar irritado com a relutância de um subor-
dinado em emitir “meia nota” na venda de um produto. Diz-lhe: “Deixa de ser
trouxa, sempre foi feito assim e sempre será assim.” E o adverte: “Não brinca com
o dinheiro da empresa!” Do ponto de vista moral (moral da parcialidade, note
bem, não moral da integridade nem da parceria), o gerente é visto pelos demais
funcionários como um sujeito de bom senso. Alguns até procuram esclarecer o
colega incauto, ensinar-lhe o “caminho das pedras”, e lhe dão como exemplo os
camelôs que se espalham nas calçadas.
O que se pode deduzir? Que nessa empresa o bem corresponde a vender sem
nota ou com parte do valor faturado, e o mal corresponde a não fazê-lo. A análise
científica aborda o fato de modo substancialmente diferente: não se assenta em
padrões públicos ou ocultos que pautam as condutas dos agentes sociais. E chega
a conclusões universalmente fundadas. Pelo prisma ético, comprar e vender sem
nota ou com meia nota significa sonegar impostos, ferir o bem comum e, por
via de consequência, lesar os interesses gerais da sociedade. Em outros termos,
satisfaz interesses particularistas, obedece à racionalização antiética e corresponde
ao “mal” como generalidade abstrato-formal. Em contrapartida, o “bem” corres-
ponde a não sonegar tributos porque isso beneficia interesses universalistas.1 De
sorte que os caracteres do bem teórico e do mal teórico diferem substantivamente
do bem histórico ou do mal histórico.
Dirão, de forma acertada: será que juízos de valor e juízos de realidade podem
eventualmente coincidir, como no caso das qualificações dadas pelas morais al-
truístas? Podem. Não seriam então sempre congruentes com a Ética Científica?
De maneira geral, sim, mas nem sempre. Surgem então duas perguntas.
A primeira: por que são “congruentes”? Porque as morais altruístas se ins-
piram ou se fundam na razão ética. E o oposto vale para as morais egoístas ou
parciais: elas se inspiram ou se fundam na racionalização antiética.
Agora vem a segunda pergunta: por que “nem sempre” há congruência?
Porque o altruísmo histórico, ou reconhecido por uma coletividade qualquer,
não esgota a amplitude do altruísmo teórico.
Aceitar dinheiro do jogo do bicho, por exemplo, para que hemofílicos soropo-
sitivos (portadores do HIV) recebam transfusões de sangue, é eticamente válido,
embora nenhuma das quatro morais brasileiras que estudamos confira respaldo a
isso (nem as altruístas nem a egoísta ou a parcial!). Foi o que aconteceu em 1991
quando o sociólogo Herbert José de Souza, Betinho (irmão de Henfil), então
presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), recebeu uma
doação de bicheiros, embora estes nada exigissem em contrapartida.

1
Não há sociedade humana que não mantenha bens e serviços de interesse comum e que prescinda da
cobrança de tributos para custeá-los.

115
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Para as morais oficiais de caráter altruísta (integridade e parceria), aceitar


dinheiro do jogo do bicho é inadmissível, porque é dinheiro sujo que provém do
crime organizado. Para as morais oficiosas de caráter egoísta e parcial (oportunis-
mo e parcialidade), o fato de Betinho querer salvar vidas de aidéticos não é as-
sunto do interesse delas. Em compensação, o ato é eticamente justificado porque,
ao salvar vidas, Betinho fez o bem sem prejudicar ninguém, ainda que tivesse
“sujado as mãos” com dinheiro ilícito (é importante sublinhar que os bicheiros
nada exigiram dele). Houve, pois, a geração de um bem restrito universalista.
Outra situação que revela a incongruência entre o altruísmo teórico e as
morais altruístas é o chamado “furto famélico”. Flagelada pela seca, uma comu-
nidade saqueia um armazém para matar a fome e fere o direito de propriedade.
As quatro morais brasileiras não respaldam a ação: as morais oficiais se opõem
ao roubo da propriedade, e as morais oficiosas não se ocupam disso. O “estado
de necessidade”, no entanto, justifica o furto famélico, uma vez que os autores do
furto não provocaram a situação por sua própria vontade nem puderam evitá-la.
Pelo prisma ético, as escolhas entre o bem e o mal significam posicionar-se
diante de questões como as seguintes, ainda que os agentes não tenham cons-
ciência crítica ou conhecimento científico das razões envolvidas:
j
A empresa que dirige sua publicidade de salgadinhos e guloseimas ao
público infantil escolheu o mal e não se importou com os malefícios que
iria gerar para obter um bem para si, pois objetivamente induz as crianças
a consumir produtos nocivos à saúde ou que levam à obesidade.
j O uso de embalagens descartáveis por parte das empresas é uma escolha do
mal, em função de suas consequências nefastas: poluição ambiental, des-
perdício de recursos naturais, uso de insumos nem sempre biodegradáveis.
j A pesca predatória e a pesca realizada nos períodos de defeso, quando as
espécies se reproduzem, são escolhas do mal porque acarretam a extinção
dos cardumes e a consequente destruição da indústria pesqueira e de toda
a cadeia a ela vinculada.
j
A exploração madeireira sem manejo florestal é uma escolha do mal,
uma vez que seus efeitos são devastadores: agravamento do efeito estufa
(as árvores absorvem dióxido de carbono), redução da biodiversidade,
erosão do solo, alteração do clima local, mudança nos padrões pluviomé-
tricos etc.

Posto isso, podemos avançar. Diante das questões morais, há dois modos de
tomar decisão e que são eticamente fundados. Uma das abordagens mais popu-
lares é o maniqueísmo ao gosto da “tolerância zero”: errou, pagou; bateu, levou.
Nessa abordagem, a tomada de decisão obedece à dicotomia do tudo ou nada.
Ou se é honesto ou se é desonesto; não há meia honestidade, da mesma forma
que não há meia gravidez. As normas, formuladas segundo esse molde, devem ser

116
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

obedecidas haja o que houver; não se pode compactuar com as transgressões, daí
a adoção de medidas punitivas e, com menor frequência, de medidas corretivas.
Outra abordagem, mais elaborada, consiste em realizar uma análise situacional
ou de risco, que leve em conta as circunstâncias e gradue os deslizes, infrações ou
desvios. Parte da premissa (a ser testada) de que o agente reconheceu com since-
ridade o erro cometido e, por conseguinte, está arrependido. A análise considera
especialmente: a) a natureza e a gravidade da infração; b) o histórico do agente
infrator; c) o cargo do infrator e as responsabilidades que lhe incumbem; d) as
condições em que o evento se deu; e) os meios utilizados e os fins almejados;
f ) a disposição do agente em se emendar ou se redimir; g) as vantagens e as des-
vantagens em oferecer-lhe uma “segunda chance”, isto é, a relação custo-benefício
em termos dos riscos envolvidos na aplicação de medidas educativas ou corre-
tivas; h) as consequências possíveis da sanção; i) as indispensáveis salvaguardas
a serem adotadas.
Por que salvaguardas? Porque sem elas a abordagem pode ficar desacreditada
ou ser confundida com formas de racionalização particularista ou antiética. E
quais são as salvaguardas? Medidas educativas ou corretivas, além de controles
que monitorem as condutas futuras do infrator. Essas medidas exigem que o
tomador de decisão:
j
Esteja ciente de que intervenções justas e firmes, quando aplicadas logo
após a comprovação do fato gerador (para não caracterizar perdão tácito
aos olhos de todos), surtem efeitos positivos e reconduzem as pessoas aos
padrões esperados de conduta.
j Distinga os atos dolosos (atos intencionais praticados no intuito de pre-
judicar outrem) dos atos culposos (atos em que o agente atua com im-
prudência, negligência ou imperícia).
j
Verifique se o desvio não decorreu de orientação falha dos superiores
hierárquicos.

Mas quais são as diferenças entre medidas educativas, corretivas e punitivas?


As medidas educativas ocorrem em reunião reservada e objetivam conscientizar e
orientar o infrator quanto às implicações de seu ato, dando-lhe a oportunidade de
expressar seus motivos. Incluem aviso explícito de que, em caso de reincidência, as
sanções poderão ser mais severas. São medidas educativas: a) a orientação verbal
que se aplica quando a infração for leve e o agente não possuir antecedentes; b) o
termo de compromisso que se aplica em caso de reincidência de uma falta leve ou
quando o tipo de infração aconselhar que se formalize a orientação como forma
eficaz de mudar o comportamento do infrator.
As medidas corretivas objetivam censurar e conformar o infrator quanto à
necessidade de cumprir as normas. São medidas disciplinares, porém brandas.
Sua gradação leva em consideração as circunstâncias, a gravidade do desvio e

117
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

o prejuízo causado aos diferentes públicos de interesse. São medidas corretivas:


a) a advertência verbal; b) a advertência escrita; c) a suspensão por um dia (ou
mais) com prejuízo da remuneração correspondente; d) a perda de bônus ou de
gratificação por desempenho; e) a suspensão de promoção; f ) o pagamento de
multa; g) o protesto em cartório; h) a auditoria das atividades desenvolvidas; i)
a exposição do malfeito na mídia, e assim por diante.

Acordo extingue processo administrativo


A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprovou um termo de compromisso
proposto pela Vivendi, controladora da GVT, que envolve o pagamento de R$150
milhões à autarquia (dezembro/2010). O pagamento extingue o processo adminis-
trativo da CVM contra a Vivendi, em trâmite desde a aquisição das ações da GVT pela
empresa francesa.
Na ocasião, a Vivendi foi acusada de ter praticado operação fraudulenta − indução
de terceiros a erro com a finalidade de obter vantagem indevida. No caso, a Vivendi
levou o mercado a acreditar que já detinha o controle da GVT, enquanto, efetivamente,
tal controle ainda estava em negociação. O grupo francês disputava o controle da GVT
com a Telefônica e foi a própria operadora espanhola que denunciou a Vivendi à CVM.
Vencedora, a Vivendi adquiriu o controle da GVT por R$7,4 bilhões no final de 2009.
O processo será suspenso após o pagamento dos R$150 milhões. Trata-se do maior
acordo feito por uma empresa com a CVM. Até então, o acordo de maior valor havia
sido fechado com o Banco Safra, em 2007, no valor de R$29,5 milhões.2

Acordos feitos com acusados para encerrar longos processos e evitar julgamen-
tos assumem um caráter corretivo, pois exigem o pagamento de multa, embora
não haja admissão formal da culpa.
Por fim, as medidas punitivas são geralmente adotadas quando há reincidência
ou quando a gravidade da transgressão assim o indicar: a) a dispensa por justa
causa ou sem justa causa de um funcionário; b) a proibição de ocupar cargo
diretivo em empresa de capital aberto; c) a proibição de participar de licitações
públicas; d) o bloqueio do acesso a fontes de crédito; e) o boicote dos clientes; f )
a multa; g) o sequestro, a penhora ou o confisco de bens; h) a detenção provisória;
i) a obrigação de prestar serviços comunitários; j) o encarceramento etc.

Multa e serviços comunitários


O juiz federal Fausto de Sanctis, da 6a Vara Criminal Federal, expediu a conde-
nação da empresária do ramo de decoração e perfumaria Tania Bulhões, que fatura

http://www.cvm.gov.br/port/infos/RJ2010-2419%20(Processo%20TC%20RJ2010-15761)%20aprovado%
2

20 pte%20 Vive% 20(3).asp.

118
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

cerca de R$50 milhões por ano. A sentença diz respeito às denúncias levantadas
pela Operação Porto Europa, deflagrada em 2009 pela Polícia e pelo Ministério
Público federais.
Suspeitava-se que o grupo Tania Bulhões Home teria cometido sonegação, des-
caminho e formação de quadrilha, entre outros crimes, para burlar o fisco nos anos
de 2005 e 2006. Tudo foi confirmado, o que resultou em sua condenação a quatro
anos de reclusão, convertidos em serviços comunitários. Isso porque ela usufruiu o
benefício da delação premiada, ou seja, forneceu detalhes do esquema, conseguindo,
assim, abrandar sua punição.
Foi decidido que a empresária vai prestar serviços comunitários à Fundação Dorina
Nowill para Cegos, na Vila Clementino, ao longo de quatro anos (oito horas semanais).
Por lá terá de criar laboratório e curso de capacitação de pessoas com deficiência
visual para formar provadores de fragrâncias.
Tania também precisará ressarcir os cofres da Receita Federal em R$1,2 milhão,
valor que a sua empresa teria sonegado, além de pagar multa de R$1,7 milhão pelos
delitos cometidos e que serão transferidos para cinco entidades filantrópicas. Terá de
pedir ainda autorização à Justiça se quiser deixar o país por mais de 10 dias.3

À luz da delação premiada, o juiz fez uma análise de risco e adotou medidas
punitivas menos severas. Converteu os anos de prisão em serviços comunitários
ao levar em conta a expertise da ré e a ausência de antecedentes, e transferiu a
multa de R$1,7 milhão para ONGs que aplicarão os recursos em prol do bem
geral. Obedeceu à razão ética e praticou o altruísmo imparcial. Afinal, obteve in-
formações valiosas que tornarão mais eficaz a repressão a operações semelhantes,
não atenuou a humilhação pública da infratora e fez com que o caso servisse de
exemplo para dissuadir outros empresários ladinos.
Em oposição a isso, fiéis à tolerância zero, algumas vozes argumentaram que
delito é delito e que penas não se abrandam, nem sequer com a justificativa da
delação premiada. Chegam até a tachar o instituto de aberração. Segundo eles, ao
ser comprovado o crime, a punição deve ser unívoca: cadeia em regime fechado
para os transgressores. Essas postulações obedecem igualmente à razão ética e
realizam o altruísmo imparcial, pois pretendem punir de forma exemplar quem
transgride as normas e provoca danos ao bem comum.
Diante dessas duas posturas − a da análise situacional e a da tolerância
zero −, cada um de nós pode se posicionar a respeito e desfrutar de legitimidade
ética. O juiz optou pelos benefícios gerais proporcionados pela delação premiada,
substituindo o encarceramento por penas restritivas de direitos (os serviços
comunitários e a multa). O que obteve? Por um lado, a Polícia Federal e a Justiça
puderam desvendar com sucesso o funcionamento do esquema de sonegação
e de descaminho, conseguiram pistas relevantes para que outros implicados
fossem processados e coletaram informações valiosas para desbaratar operações

João Batista Jr. A conta chegou. Veja São Paulo, p. 28, 1° de dezembro de 2010.
3

119
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

similares. Por outro lado, a empresária reconheceu publicamente seus malfeitos,


foi obrigada a criar um laboratório para capacitar pessoas com deficiências
visuais, vai pagar multa milionária, além de ressarcir o que sonegou. Nessas
circunstâncias, a delação premiada contribuiu para o bem comum e, portanto,
tem inegável valia do ponto de vista coletivo. Seria, porém, ilegítimo eticamente
se o juiz tivesse decretado a prisão da empresária? De modo algum.

8.3.  A escolha entre o bem e o bem


Diante de um dilema moral, a definição corrente de moralidade como escolha
entre o bem e o mal (maniqueísmo) conduz muitos a uma conclusão precipitada.
“Se eu estou fazendo a coisa certa, isso significa que quem se opõe a mim está
fazendo a coisa errada...”. Ora, as duas coisas podem estar certas! Isso põe em
xeque a visão convencional.
Optar entre o bem e o mal, segundo o modo maniqueísta da tolerância zero
ou segundo o modo situacional da análise de riscos, exige grande lucidez. Mas
optar entre o bem e o bem traz novas complicações. Por exemplo:
j
Priorizar a ascensão profissional ou o tempo dedicado à família?
j Oferecer oportunidades de emprego a alguns egressos do sistema prisional
ou ampliar as vagas dedicadas a jovens sem experiência profissional?
j Oferecer bolsas de estudo a jovens promissores dentro da empresa ou
amortizar dívida junto a um banco?
j Denunciar anonimamente a empresa em que se trabalha por maquiar
dados ou se recusar a compactuar, correndo o risco de ser demitido?
j Socorrer um ferido por acidente, sendo você um médico, ou atender ao
chamado de um paciente grave que depende diretamente de você?
j
Distribuir dividendos aos acionistas ou investir em pesquisa de novos
produtos e processos?

Temos diante de nós escolhas que não são fáceis, sobretudo porque não
existem respostas padronizadas. A maior parte dos códigos de conduta moral,
aliás, segue a cartilha de contrastar o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável,
as virtudes e os vícios. Ora, as escolhas entre o bem e o bem são igualmente
prementes e exigem maturidade e discernimento.

Norma legal ou norma moral?


Na cidade de Assis, o médico Ariosvaldo Giansante foi preso e acusado de tráfico
de drogas porque não denunciou uma paciente à polícia. Ela estava no nono mês de
gravidez e levava droga escondida no corpo. Giasante tinha uma certeza: seguira o
sigilo profissional previsto no Código de Ética Médica.

120
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

Entretanto, o médico ficou preso três meses, após o que o Tribunal de Justiça lhe
deu razão. Mais do que inocente, os desembargadores decidiram que ele não devia
ter sido acusado do crime.4

O médico se viu refém de duas normas com estatuto conflitante: a norma


legal, que obriga o médico a denunciar um portador de droga, e a norma moral
da profissão médica, que visa prover todos os cuidados a paciente cuja vida
corre risco. No caso, se a mãe não recebesse no hospital todos os cuidados indis-
pensáveis, a criança também correria risco de morte. Na decisão, os desembar-
gadores demonstraram um descortino que transcendeu o frio formalismo da lei:
souberam avaliar as circunstâncias e inocentaram por inteiro o médico.
Diante de dilemas do gênero − escolhas entre o bem e o bem −, uma das
soluções mais razoáveis, embora árdua, consiste em hierarquizar os imperativos
de caráter universalista, escalonar os princípios (vertente de princípio) ou os
ideais (vertente da esperança) e pautar-se por uma escala de valores universalistas.
Essa abordagem teórica, deontológica ou axiológica, tem caráter normativo e é
dedutiva. Se não, vejamos:
j
Sendo a minha prioridade alcançar a estabilidade financeira, privilegio a
ascensão profissional em relação às demandas familiares.
j Sendo a nossa prioridade contribuir para que os infratores não reincidam,
oferecemos empregos aos egressos de penitenciárias.
j
Sendo a nossa prioridade livrar a empresa de encargos financeiros, amor-
tizamos a dívida bancária, e assim por diante.

Ou poderíamos inverter essas prioridades e conferir primazia ao tempo


dedicado à família, aos jovens sem experiência profissional e aos jovens promis-
sores etc.
Vejamos mais. O Bolsa Família garante um mínimo de sustento a famílias
em situação de miséria ou de extrema pobreza, corresponde a um programa as-
sistencialista e emergencial, mas por si só não assegura os meios para superar o
drama da exclusão social. A construção da cidadania não pode depender exclusi-
vamente de ações caridosas: é preciso que os beneficiários sejam corresponsáveis
pelo seu destino e que se esforcem para superar as próprias dificuldades. Isso
equivale a dizer que toda transferência de renda é eticamente legítima desde que
condicionada ou, melhor, desde que os beneficiários estejam comprometidos com
contrapartidas como a frequência das crianças em escolas e o cumprimento da
tabela de vacinas obrigatórias. Dito de outra forma, desde que haja “portas de
saída” como a qualificação profissional dos adultos, a educação de qualidade dos
filhos ou outros mecanismos de geração de renda como integrar cooperativas
Marcelo Godoy. Não sou bandido, salvei duas vidas. O Estado de S. Paulo, 19 de dezembro de 2010.
4

121
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

de produção. Atendidas essas condicionalidades, a vertente da esperança fica


satisfeita − realiza-se um ideal universalista que consiste em auxiliar pessoas
desamparadas.
A outra solução teórica, teleológica ou “consequencialista”, tem caráter analí-
tico e é indutiva; privilegia as consequências da decisão a ser tomada. É um tipo
de encaminhamento que obedece a duas orientações possíveis:
1. Fazer o máximo de bem à maioria ou ao maior número possível de pes-
soas (vertente utilitarista).
2. Fazer o máximo de bem para o menor número em situações extremas,
isto é, eleger entre os fins universalistas o de maior eficácia para benefi-
ciar as pessoas objetivamente possíveis de serem atendidas (vertente da
finalidade).

Em ambas as situações, é preciso presumir e medir o impacto das decisões


alternativas sobre os agentes sociais. Por exemplo:
j
Investir em transporte individual (abertura de novas avenidas, construção
de viadutos, melhorias viárias, engenharia de tráfego) ou construir metrôs
nas grandes cidades (transporte de alta capacidade)?
j
Subsidiar o ensino universitário (bolsas em universidades privadas e
ensino gratuito nas universidades públicas) ou investir pesadamente na
qualidade pedagógica do ensino fundamental?
Em ambos os casos, faz-se o máximo de bem, mas para quem? Primeiro fator a
considerar: o máximo de bem versus o mínimo de bem; segundo fator a considerar:
maioria versus minoria. O transporte individual e o ensino universitário fazem
o máximo de bem ao menor número de pessoas (minoria); os metrôs e o ensino
fundamental fazem o máximo de bem ao maior número de pessoas (maioria).
A vertente utilitarista considera legítimas as intervenções que conjuguem os dois
fatores citados: máximo de bem e maior número de pessoas afetadas.
Os metrôs aliviam a malha viária, reduzem o desperdício de combustível,
economizam tempo no deslocamento de grande massa de usuários, não são
poluentes, embora apresentem uma equação problemática: os investimentos
feitos na construção são praticamente irrecuperáveis, daí a necessidade de alocar
pesados recursos públicos a fundo perdido. O ensino fundamental de qualidade
prepara uma massa crítica para empregos mais qualificados, contribui para a
formação técnica ou universitária, pilares de uma economia competitiva, embora
não seja o bastante para que o país esteja na vanguarda tecnológica. Todavia,
apesar dos empecilhos, essas políticas públicas são eticamente legítimas.
Na vertente da finalidade, em contrapartida, pergunta-se: o que é mais eficaz
do ponto de vista dos interesses coletivos? Não é fazendo o máximo de bem ao
menor número dos donos de carros particulares nem dos ingressantes (minoritá-
122
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

rios) no ensino universitário, porque esses não são casos extremos e os interesses
satisfeitos acabam sendo particularistas. Contudo, se tivermos que escolher um
paciente entre outros para ocupar a única vaga disponível na UTI de um hospital
público, ainda que saibamos que os demais poderão morrer, estaremos fazendo
o máximo de bem para o menor número de pessoas objetivamente possível de
atender. Assim, na vertente da finalidade, respondemos à questão: o que é mais
eficaz do ponto de vista dos interesses coletivos em uma situação extrema?
A visão “consequencialista” das duas vertentes legitima escolhas entre o bem
e o bem, assim como escolhas entre o bem e o mal. E permite reconhecer quais
argumentos favorecem o bem e quais favorecem o mal. Por exemplo: sonegar
impostos só faz bem ao menor número (quem pode sonegar) e compromete
as possibilidades de fazer o máximo de bem ao maior número porque reduz a
arrecadação e afeta os investimentos públicos em equipamentos sociais ou em
infraestrutura do país. Ou, ainda, sonegar impostos satisfaz fins particularistas
(interessa aos sonegadores) e fere fins universalistas (não interessa a todos).

Indignação e coragem
O professor de administração, Richard Quinn, da University of Central Florida (UCF),
situada em Orlando, recebeu a denúncia anônima de que cerca de 200 de seus 600
alunos conseguiram uma cópia do exame semestral e se valeram dela.
Ao longo dos anos, pesquisas norte-americanas demonstraram que três quintos
dos alunos do ensino médio e dos estudantes universitários de graduação costumam
colar. No caso do professor Quinn, seu terço de fraudadores até que estava de bom
tamanho... Mas essa não foi a maneira como entendeu a situação. Ele ficou seriamente
abalado e decidiu agir. Em um anúncio emocionado, avisou que os resultados seriam
invalidados e que o exame seria refeito. Disse: “Para falar a verdade, eu estou tão
decepcionado que vocês não têm ideia... Fisicamente doente. Absolutamente enojado.
Completamente desiludido.”
E completou com uma proposta inusitada: aqueles que confessarem ter colado, e se
prontificarem a cursar quatro horas de Ética, manterão limpos seus registros acadêmicos.
Porém, quem ficar calado assumirá os riscos de ser descoberto, pois uma investigação
está em curso e, se a fraude for comprovada, o aluno poderá ser expulso da universidade...
O anúncio foi gravado em vídeo, passado na televisão e postado no YouTube. A
repercussão nos Estados Unidos foi enorme, e a mídia impressa converteu o professor
em celebridade. Chegou a ser descrito como o herói que brandiu a espada da verdade
contra o dragão da desonestidade acadêmica!
As pessoas que se inteiraram do caso ficaram indignadas com os estudantes.
Sobretudo por saberem que serão futuros empreendedores, executivos de grandes
empresas e gestores de corporações. Muitas lamentaram que não houvesse retidão,
integridade e probidade, condenaram a forma ilícita como as respostas foram obtidas
e rechaçaram com veemência o uso que se fez delas.
Alguns alunos, no entanto, alegaram que o professor se valeu do banco de dados
da editora do livro-texto para preparar o exame e que ele deveria ter elaborado as

123
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

próprias questões. De nada adiantou. Porque o entusiasmo despertado pela firmeza


do professor contra a cola levou a maior parte das pessoas a desprezar esses detalhes.5

Os coladores agiram de forma egoísta, adotaram um expediente abusivo e


particularista, que burlou as regras acadêmicas em prejuízo dos colegas que não
colaram. O objetivo deles era obter boas notas, ainda que por meio de trapaça.
Nessas circunstâncias, para obedecer à razão ética, bastava o professor invalidar
os resultados, mandar abrir uma investigação para punir os responsáveis pela
fraude e aplicar novamente o exame. Contudo, ele preferiu ir além dessas três
medidas: deu uma segunda chance àqueles que assumissem publicamente o erro
e advertiu os recalcitrantes com a expulsão sumária da universidade.
Ora, como é possível que decisões distintas alcancem legitimidade ética ou
obedeçam igualmente à razão ética? Resposta: o professor escolheu entre o bem
e o bem, ainda que os dois bens fossem um tanto diferentes.
Se tivesse simplesmente adotado a punição, teria se inspirado em valores
universalistas: o ingresso e a permanência na universidade se baseiam no mérito
pessoal; o campus é um lócus privilegiado para exercer a honestidade intelectual;
quem não preenche tais requisitos não merece ficar na academia.
Esse curso de ação adere à teoria ética da convicção, que corresponde à
tolerância zero e que reza o seguinte: quem seguir a cartilha, ótimo; caso con-
trário, castigo! Nessa forma de encaminhamento, o agente realiza um exame
de consciência, pois as respostas vêm prontas: ele exerce seu senso do dever e
cumpre suas obrigações. Toma decisões em um contexto maniqueísta, à luz de
antinomias ou de dicotomias. Confere se as práticas condizem com prescrições
universalistas, isto é, aplica princípios ou ideais, deveres ou virtudes às situações
concretas. Havendo consonância ou conformidade, a razão ética prevalece; caso
contrário, as práticas obedecem à racionalização antiética.
No exemplo em pauta, o bem perseguido pelo professor corresponde ao
bem geral porque transcende os limites daquela universidade, daí a repercus-
são nacional. E resulta de prática altruísta imparcial que respeita imperativos
universalistas (mérito e honestidade intelectual).
No segundo curso de ação, adotado pelo professor, houve uma análise situa-
cional que partiu das seguintes premissas: não seria drástico demais, ou pouco
realista, punir os infratores sem lhes dar uma oportunidade de remissão, sem
lhes oferecer a possibilidade de se arrepender ou sem lhes propiciar uma segunda
chance? Quem de nós pode alegar nunca ter errado? Quem de nós nunca mereceu
algum perdão por um deslize cometido? Quem de nós nunca sofreu um corretivo
que serviu de oportunidade para emendar-se?
O professor preferiu apostar no arrependimento dos estudantes e investir na apren-
dizagem que os erros propiciam. Mas não o fez de forma ingênua. Adotou algumas
Rushworth M. Kidder. Outrage and Enthusiasm: A Florida Cheating Scandal. Ethics Newsline, 15 de novem-
5

bro de 2010.
124
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

salvaguardas: a investigação seria feita de qualquer maneira; quem não se autodenun-


ciasse seria expulso da universidade desde que, é claro, houvesse comprovação da cola;
quem quisesse o perdão teria de merecê-lo e, para tanto, teria de assumir publicamente
a infração (o que é humilhante), teria de submeter-se a um curso de quatro horas de
Ética e saber que seu comportamento seria monitorado dali para a frente.
Dessa forma, o professor exercitou a teoria ética da responsabilidade. Neste outro
encaminhamento, o agente elabora cenários e concebe respostas: pratica seu senso de
realidade e leva em conta as consequências presumíveis das ações a serem realizadas.
Toma decisões em função de uma análise de riscos. Descreve e avalia as circuns-
tâncias, monta o quebra-cabeça da relação custo-benefício e calcula racionalmente
os resultados prováveis e os riscos a correr − sempre à luz de fins universalistas.6
O bem perseguido pelo professor correspondeu ao bem geral: interessa a
todos que os diplomas universitários sejam atestados verdadeiros da proficiência
de seus portadores. Mas também interessa que se corrijam erros cometidos com
o arrependimento e a remissão dos infratores. Isso tudo resulta de uma prática
altruísta imparcial que realiza fins universalistas: a universidade forma profis-
sionais cuja competência é assegurada por exames isentos e exigentes, e forma
igualmente cidadãos responsáveis.
Resumindo, a teoria ética da convicção tem por fundamento a seguinte in-
dagação: as ações condizem com as obrigações? Havendo conformidade com
prescrições ou virtudes, isto é, havendo obediência a deveres universalistas, as
ações desfrutam de legitimidade ética.
A teoria ética da responsabilidade, por sua vez, tem por fundamento a se-
guinte indagação: quais são as consequências previsíveis das ações? Formula-se
um cálculo racional quanto aos resultados esperados, isto é, almejam-se fins
universalistas e alcança-se a legitimidade ética.
8.4.  A escolha do mal menor ou do mal necessário
Sem dúvida, é trabalhoso e angustiante decidir com base em análise de riscos.
Por quê? Essa abordagem força os agentes a saírem da zona de conforto em que
tudo se faz by the book, ou seja, tudo se faz segundo padrões normativos ou escalas
de valores universalistas (muitas vezes consagrados em morais de caráter altruísta).
A análise situacional projeta as decisões para a esfera do cálculo racional em que
as respostas precisam ser construídas. Isso significa imaginar cenários possíveis,
aferir os custos de cada um deles, considerar as respectivas vantagens, detectar e
avaliar os riscos que se corre. Em suma, implica movimentar-se em terreno des-
conhecido ou minado, e exige que se enfrentem as questões em profundidade.
Trocando em miúdos, a análise situacional requer coragem moral e muito tino
intelectual. Permite ir além das escolhas entre o bem e o mal, ou entre o bem e o
bem. Mergulha os agentes nas águas frias e profundas das escolhas entre o mal e
Para um conhecimento mais profundo das duas teorias éticas, ver do autor: Ética Empresarial, op. cit.,
6

capítulos 8 e 9.
125
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

o bem, e entre o mal e o mal... São razões para espanto? De modo algum. Esses
outros tipos de decisões ocorrem costumeiramente, ainda que nem sempre os
agentes tenham consciência disso.
Assim, podemos escolher o mal menor, a saber, admitir um sacrifício para
evitar um mal maior. Por exemplo: entre o risco de colidir de frente com um
caminhão ou cair em um buraco que pode entortar a roda e furar o pneu, não se
opta pelo buraco (mal menor)? Ou podemos escolher o mal necessário, a saber,
admitir um sacrifício para obter um bem maior. Por exemplo: não se abatem
reses infectadas pela doença da vaca louca e não se eliminam aves contaminadas
pela gripe aviária para conter uma epidemia (mal necessário)? Claro que sim.
Na vida real, é frequente assumir um mal menor ou um mal necessário para
evitar coisa pior ou para obter determinado bem. E isso acontece a contrapelo do
que apregoam os chavões do senso comum que ditam: não se deve cometer o mal
para lograr o bem. Tolice. Basta observar o que se passa no dia a dia: tomam-se
decisões dolorosas por razões universalistas. Para começar, vamos refletir sobre
os meios usados para superar os dilemas.
Em inúmeras situações, os riscos, danos, prejuízos ou sofrimentos são vistos
como partes inerentes aos processos ou são aceitos como “preços a pagar” para
alcançar determinado objetivo. Por exemplo: malgrado os conhecidos efeitos
nocivos para a saúde de quem os consome com frequência, toleram-se conser-
vantes químicos ou aditivos para preservar os alimentos contra a deterioração
que ocorre no transporte e no armazenamento (mal necessário).
Mais ainda. Para afastar um mal maior, todo mal não é rejeitado in limine. Por
exemplo: com o intuito de impedir a falência de empresa e evitar a extinção de todos os
postos de trabalho existentes, funcionários são demitidos para cortar custos e aliviar a
folha de pagamento, a despeito do drama que o desemprego representa (mal menor).

Figura 8.2  O leque das decisões éticas.


126
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

Entretanto, apesar dessas e de muitas outras evidências, uma penca de frases


feitas sentencia de forma esquizofrênica que somente “meios puros” podem jus-
tificar a realização de fins almejados. Será mesmo? Vamos devagar com o andor
e esclareçamos a controvérsia.
De início, cabe definir de forma objetiva qual é o caráter dos fins que estão em
jogo: caráter particularista (abusivo, porque lesa outros) ou caráter universalista
(consensual, porque interessa a todos)? As práticas particularistas carecem de
legitimidade ética porque ferem interesses alheios e visam a obter um bem que
se restringe a indivíduos ou a grupos. O exato oposto se aplica às práticas univer-
salistas: elas desfrutam de legitimidade ética porque geram bens que interessam
a todos e que afetam positivamente tanto os indivíduos como os grupos mais
variados, as sociedades inclusivas e a própria humanidade.
Logo em seguida, é preciso listar os meios que se encontram disponíveis e
avaliar quais são os mais adequados. Alguns se aferram a “meios puros” como
a um mantra, clamam que cometer algum mal compromete o bem que se quer.
Outros preferem contabilizar os benefícios possíveis, apesar dos custos envolvidos
e admitem “meios impuros”, vale dizer, não descartam a possibilidade de haver
males úteis. E se perguntam: quais desses meios têm maior abrangência e menos
efeitos indesejados? Pois há “meios puros” que causam piores consequências
do que “meios impuros”. Algumas situações demonstram cabalmente o quão
insensato seria subscrever de forma ingênua a tese dos “meios puros”:
j
Para não ferir o direito de ir e vir das pessoas, opor-se à internação de doen-
tes infectocontagiosos e multiplicar as probabilidades de uma epidemia.
j Para resguardar-se contra o “despotismo sanitário”, aceitar que os cidadãos
não se submetam a vacinas obrigatórias e ampliar sobremaneira suas
chances de contrair varíola, febre amarela, poliomielite, difteria, tétano,
coqueluche, sarampo, tuberculose, caxumba, rubéola, hepatite B etc.
j Para não incorrer em erros de dosagem e aumentar a ingerência do go-
verno no âmbito dos direitos individuais, deixar de colocar flúor na água
potável para reduzir a incidência de cáries dentárias na população.
j Para evitar os riscos oculares decorrentes da emissão de raios laser por fotoco-
piadoras, ou do negro fumo do toner que pode provocar alterações na forma-
ção de células sanguíneas, proibir a fabricação e o uso desses equipamentos.
j
Para universalizar a transparência a que têm direito os consumidores,
revelar segredos industriais ou informações estratégicas das empresas.

Um mínimo de senso de realidade nos permite colocar as coisas em seus devidos


lugares e corroborar o velho adágio popular de que há males que vêm para o bem.7

A dor que o corpo sente é essencial para a nossa sobrevivência: sem ela, não perceberíamos que estamos
7

doentes ou estamos feridos; faltaria a sinalização indispensável para cuidar das nossas lesões. De forma que
a dor é um mal útil: ocorre para nosso próprio bem.

127
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Qual seja: correm-se riscos? Sem dúvida. Mas cabe minimizá-los sem cessar. E,
principalmente, cabe verificar se os benefícios colhidos valem a pena.
De maneira que não faz sentido deixar de se prevenir contra doenças in-
fecciosas ou contra uma epidemia porque as picadas incomodam ou porque há
quem tenha alergia a alguns componentes das vacinas. Afinal, as vacinas obriga-
tórias poupam sofrimentos evitáveis à população, e os efeitos adversos podem
ser diagnosticados e tratados. Assim, é de interesse de todos que a aplicação das
vacinas ocorra, e que seja universalizada, ainda que existam senões.
Nessa mesma linha, podemos dizer: reduzir as cáries dentárias com medidas
profiláticas de caráter geral gera um bem universalista, malgrado o fato de que
o excesso de ingestão possa causar fluorose. Problema evitável? Sim, se houver
orientação adequada e revisão dos níveis de flúor colocados na água. De forma
simétrica, tornar os escritórios mais eficientes graças a fotocopiadoras provoca
efeitos universalistas, apesar da emissão de raios laser que podem ser controlados
com o uso correto da tampa antes da tiragem da cópia. Mais ainda, resguardar
segredos industriais e tecnologias patenteadas é essencial para o próprio funcio-
namento da economia de mercado e para a continuidade das corporações em-
presariais. Tal medida não se choca com a transparência exigida pelos clientes no
tocante à segurança dos produtos (prazo de validade, defeitos eventuais, qualidade
dos insumos, possíveis danos à saúde ou ao meio ambiente).

O furto de dados
Um jovem funcionário do departamento de informática do banco HSBC em Gene-
bra, o franco-italiano Hervé Falciani, levou uma lista de 130 mil nomes de clientes
que teriam mantido contas secretas na Suíça e a entregou à Justiça francesa, que
prometeu uma caça à evasão fiscal.
Os suíços acusaram os franceses de roubo. Já os franceses apontaram que o autor
do crime tinha intenções “messiânicas”. O volume de dinheiro movimentado pelas
contas seria de 4 a 6 bilhões de euros, apenas entre os três mil franceses incriminados.
Em uma conferência de imprensa, o presidente francês Nicolas Sarkozy apoiou o
uso dos dados. “A luta contra a fraude fiscal é normal e moral. O que vocês pensariam
se o ministro do Orçamento tivesse descartado os dados no momento em que os
recebeu? Será que teríamos sido parabenizados por não ter respeitado a lei francesa?
Eu apoio o ministério na ação contra a fraude.”
A Justiça francesa foi duramente criticada pelos suíços. O secretário-geral do Grupo
de Banqueiros Privados de Genebra, Edouard Cuendet, afirmou estar “profundamente
decepcionado” com Paris. “Como é que um país amigo pode aceitar informações,
sabendo que elas foram obtidas de forma ilícita?”8

Sem dúvida, os meios utilizados não foram “puros”. E a repercussão da notícia


alarmou os investidores, que retiraram US$3,8 bilhões do HSBC. Não obstante isso,
Ex-empregado furta dados de clientes do HSBC. O Estado de S. Paulo, 15 de dezembro de 2009.
8

128
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

pergunta-se: a ação do delator se justifica eticamente ou não? De forma similar,


as autoridades francesas deveriam ter usado ou não as informações referentes a
fraudes fiscais? Afinal, a quem interessou a delação? À sociedade francesa como
um todo e, por extensão, à comunidade internacional. Por que será? Porque o
combate à corrupção é de interesse geral. Tais delitos afetam todos os cidadãos
sem exceção, à medida que recursos subtraídos do erário desfalcam programas de
interesse público.
Assim, ainda que as informações tenham sido obtidas de forma ilícita, a
delação do jovem funcionário do HSBC foi eticamente válida. Um “mal” foi
cometido, sem dúvida, mas foi um mal necessário à medida que gerou um bem
maior. Quanto às medidas repressivas sofridas pelos envolvidos em evasão fiscal
e pelo banco que os acolheu, nada há a lamentar, pois dizem respeito ao preço
que pagam aqueles cujas malfeitorias são flagradas.
Em outros termos, por serem abusivos, os interesses particularistas devem se
subordinar ao interesse público. Isso não quer dizer que os interesses particulares
sempre devam ser submetidos ao interesse público porque interesses particulares
não são sinônimos de interesses particularistas, já que não implicam necessaria-
mente abusos. Além do mais, para afastar a tirania do público sobre o privado,
existem salvaguardas, pelo menos em países com estado de direito. Por exemplo:
j
Sem o devido processo administrativo e o pagamento da correspondente
indenização, não se expropriam propriedades.
j Sem a prévia autorização legislativa e o respeito aos prazos de implantação,
não se cobram impostos.
j Sem a faculdade que o cidadão dispõe de recorrer e de contestar a per-
tinência, não se aplicam multas.
j
Sem o competente mandado judicial de busca e apreensão, não se entra
em uma residência ou um escritório.

Vejamos o famoso episódio do vazamento dos “Papéis do Pentágono”. Em


1971, o jornal The New York Times publicou um documento secreto de 14 mil
páginas sobre a Guerra do Vietnã. O calhamaço foi retirado clandestinamente
dos arquivos por um analista do Pentágono, Daniel Ellsberg. Meio ilícito, sem
dúvida, mas que obteve justificação em nome do interesse público, já que as
revelações demonstraram que o governo norte-americano violava a legalidade e
ludibriava a opinião pública. De fato, falsas informações eram difundidas a res-
peito da guerra insana que estava sendo travada no sudeste asiático. Em resumo,
a violação de sigilo se revestiu de legitimidade ética.
Agora, cuidado com as generalizações apressadas. O site WikiLeaks vazou
o conteúdo de milhares de despachos secretos, sobretudo norte-americanos,
em novembro de 2010. As repercussões do fato foram mundiais porque es-
cancarou a privacidade das comunicações diplomáticas, criou embaraços entre
129
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

governos e pôs em risco os serviços de inteligência empenhados na luta contra


o terrorismo internacional. Vale lembrar que a proposta do site é iconoclasta:
publicar quaisquer informações confidenciais sobre assuntos sensíveis, vindas
de fontes anônimas e obtidas de forma ilícita, quer sejam de governos, quer
sejam de empresas. Todavia, o site não reconhece direito algum ao segredo nem
pondera ou reflete sobre as implicações que determinadas revelações embutem.
O monumental vazamento provocou acirrado debate internacional que teve por
eixo o seguinte dilema: a liberdade de expressão deve ser irrestrita ou é preciso
respeitar a confidencialidade?

A libertinagem informativa
Nenhuma democracia poderá funcionar se desaparecer a confidencialidade das
comunicações entre funcionários e autoridades, nenhuma forma de política nos
campos da diplomacia, da defesa, da segurança, da ordem pública e até da economia
terá consistência se os processos que essas políticas determinam forem expostos
totalmente à luz em todas as suas instâncias.
O resultado de semelhante exibicionismo informativo seria a paralisia das ins-
tituições, e tornaria mais fácil para as organizações antidemocráticas a criação de
obstáculos e a anulação de todas as iniciativas com a prevalência de seus propósitos
autoritários. A libertinagem informativa não tem nada a ver com a liberdade de ex-
pressão e, ao contrário, é seu oposto.
Essa libertinagem é possível somente nas sociedades abertas, não nas que são
submetidas a um controle policialesco vertical que sanciona com ferocidade toda
tentativa de violentar a censura. Não por acaso os 250 mil documentos confidenciais
obtidos pelo WikiLeaks são o fruto da ação de pessoas que traíram os Estados Unidos
e não a Rússia ou a China.9

Um momento de reflexão nos faz ver que o interesse público limita a li-
berdade de expressão. Afinal, “a liberdade de expressão não inclui a liberdade
de gritar ‘Fogo!’ num teatro lotado”.10 A livre expressão não pode equivaler a
um poder pleno e incondicional porque seu exercício supõe responsabilidade,
sem o que se transforma em arbítrio. No extremo, se todos os sigilos fossem
quebrados, se todos os arquivos fossem abertos, ninguém teria resguardadas
as informações sobre a própria saúde, a conta bancária, o crédito que tem na
praça, as declarações fiscais, os telefonemas, as cartas ou os e-mails... Estaríamos
num mundo anárquico, desnudado, destituído de privacidade, ou, num outro
extremo, sob a tutela de um Estado totalitário, o que não satisfaz interesses
universalistas.

9
Mario Vargas Llosa. Conceitos vazios sobre o público e o privado. O Estado de S. Paulo, 16 de janeiro de
2011.
10
Segundo a célebre manifestação do juiz Oliver Windell Holmes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.

130
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

O caso de Edward Snowden é emblemático nesse sentido. Trata-se de um es-


pecialista em computação, ex-agente da CIA (a Agência Central de Inteligência
dos EUA) e ex-contratado da Booz Allen Hamilton que prestava serviços à NSA
(Agência Nacional de Segurança norte-americana). Em maio de 2013, ele vazou
para a imprensa (The Guardian e The Washington Post) centenas de milhares de
documentos confidenciais referentes à massiva vigilância que os serviços secretos
americanos operavam nas comunicações mundiais. Isso causou uma tempestade
internacional, principalmente por causa da invasão da privacidade de autoridades
governamentais aliadas e de milhões de cidadãos do mundo inteiro.
Ao esmiuçar a documentação, descobriu-se que corporações econômicas
também foram espionadas, o que extravasa de longe o combate ao terrorismo
internacional. Resumindo: seria Snowden um defensor dos direitos civis (bens
universalistas) que, com sua delação, alertou a opinião pública a respeito dos
abusos cometidos pelo governo americano, ou seria ele um traidor que revelou
os programas secretos de coleta de dados desse mesmo governo, pondo em risco
a segurança do país e a luta antiterrorista? A situação, aqui, é ambígua, pois tanto
houve desrespeito à privacidade dos cidadãos do planeta todo como houve quebra
da confidencialidade de segredos de Estado. O que fazer nesse caso? Ponderar
os fatores positivos e os fatores negativos. Quais interesses devem prevalecer:
a privacidade dos cidadãos e a contenção do terrorismo internacional ou a
segurança nacional norte-americana? Em tese, o universalismo dos primeiros se
impõe ao particularismo da segunda. Todavia, no preciso caso atual, os fatores
se entrelaçam, condicionam-se mutuamente e precisam ser balanceados com
extremo cuidado: como saber de antemão qual cidadão é ou não perigoso? O
terrorismo internacional não respeita fronteiras nacionais, de sorte que é difícil
não imbricar a segurança dos EUA e o combate a esses inimigos ocultos. Aos
olhos de certos analistas, ademais, nada disso exime Snowden de não ter tido o
cuidado de filtrar a documentação que pretendia vazar.
Por último, mais uma preciosa ponderação: não são “quaisquer meios” que são
válidos para obter um bem maior. A sensatez tem mão dupla. Se não, vejamos.

Os testes com seres humanos


O governo dos Estados Unidos pediu desculpas formais por ter infectado centenas
de pessoas com sífilis e gonorreia na Guatemala no fim dos anos 1940, em um ex-
perimento para testar a eficácia do tratamento com penicilina, um antibiótico então
recém-descoberto.
Os contaminados eram prisioneiros e doentes mentais. Eles não sabiam da pesqui-
sa, e não há informações se foram curados ou se morreram por causa dessas doenças.
O pedido de desculpas dos americanos foi feito depois da revelação de um es-
tudo da historiadora Susan Reverby, da Universidade Wellesley, que pesquisava
outro episódio, dos anos 1960. Na época, negros americanos contaminados com

131
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

sífilis não foram tratados para que os pesquisadores vissem como a doença evoluía.
No meio dos documentos, Susan descobriu o experimento na Guatemala e alertou
as autoridades americanas.
“A inoculação de doenças transmissíveis na Guatemala entre 1946 e 1948 foi
claramente antiética. Embora esses eventos tenham ocorrido há mais de 64 anos,
estamos indignados com o experimento”, disseram em comunicado conjunto as
secretárias de Estado, Hillary Clinton, e da Saúde, Kathleen Sebelius.
“Lamentamos profundamente e pedimos desculpas aos indivíduos afetados por
essas práticas repugnantes. A condução do estudo não representa os valores dos Es-
tados Unidos e nosso respeito pelo povo da Guatemala”, acrescentaram.
De acordo com a pesquisa de Susan, 696 pessoas foram infectadas no experimento
feito na Guatemala. O responsável pelas pesquisas era John Cutler, considerado um
dos mais proeminentes médicos americanos na década de 1940.
A pesquisadora afirma que autoridades guatemaltecas deram permissão para os
americanos levarem adiante o experimento. No procedimento, os cientistas utilizavam
até prostitutas para infectar os guatemaltecos em prisões e hospitais. Em outros casos,
contaminavam as pessoas usando injeções.
Hoje, as leis americanas e códigos mais rígidos de ética impedem os cientistas de
realizar pesquisas com seres humanos que não saibam das eventuais consequências.11

A questão, aqui, é cristalina: estamos diante de um crime contra a huma-


nidade. Ainda que os fins fossem de interesse universal − testar a eficácia de
remédios contra doenças que podem acometer todo mundo −, não é eticamente
legítimo coisificar as pessoas e desrespeitar sua dignidade como seres humanos.
Justificações? Eis algumas:
j
As implicações dos procedimentos foram sonegadas aos interessados, de
sorte que não eram de modo algum voluntários, e incluíam possíveis e
graves sequelas, além do risco de morte.
j A própria escolha dos prisioneiros e dos doentes na Guatemala, além dos
negros nos Estados Unidos, demonstra inegável discriminação contra
minorias políticas que foram reduzidas a espécies subumanas destituídas
de direitos.
j
As experiências guardam semelhanças com as atrocidades cometidas pelos
nazistas contra cobaias humanas em campos de concentração.

Os estudos do centro de saúde Tuskegee


De 1932 a 1972, o serviço de saúde pública dos Estados Unidos acompanhou
600 homens negros − 399 com sífilis e 201 sem a doença (o grupo de controle) − na
cidade de Macon (Alabama). O objetivo era saber como a sífilis evolui sem tratamento.

Gustavo Chacra. EUA se desculpam por testes em guatemaltecos. O Estado de S. Paulo, 02 de outubro de 2010.
11

132
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

Não foi dito a nenhum dos participantes que ele tinha a doença. Todos recebiam
acompanhamento médico periódico (inócuo), uma refeição no dia dos exames e o
pagamento das despesas com o funeral.
Em 1947, foi definido um tratamento padrão à base de penicilina. Mesmo assim,
os doentes não foram tratados. Todas as organizações de saúde dos Estados Unidos
receberam uma lista com o nome dos participantes para evitar que qualquer um
deles recebesse o remédio. Em 1972, quando o estudo foi encerrado, havia apenas
74 participantes vivos.

Aberrante é saber que, enquanto na Guatemala procurou-se testar a eficácia da


penicilina, no Alabama os pacientes foram impedidos de tentar a cura! Dolorosa
lição a ser aprendida: os fascismos foram derrotados pontualmente no Velho
Mundo, mas não o foram no mundo afora, nem para todo o sempre.
Do relato desses dois últimos casos, resta a impressão de que certas pessoas
são capazes de cometer todo o mal do mundo enquanto outros jamais o fariam.
Nada mais enganoso. Uma experiência científica que marcou época foi a do
psicólogo norte-americano Stanley Milgram, levada a efeito na Universidade de
Yale nos anos 1961-1962.

A experiência de Milgram
Foram recrutados voluntários remunerados para testar os efeitos da punição
sobre a aprendizagem e a memória. O voluntário seria o “instrutor” e ministraria um
choque elétrico ao “aluno” toda vez que este não associasse a palavra correta a um dos
50 pares que o instrutor lerá. Os choques começavam com 15 volts e o incremento
por erro era de 15 volts até 450 volts (último botão que marcava “XXX”, a morte!). Foi
dito aos “instrutores” que se incomodavam com o sofrimento dos “alunos” que o pes-
quisador assumia inteira responsabilidade pelo experimento. Ocorre que os “alunos”
eram atores...
Qual era então o objetivo real da experiência? Pesquisar a disposição dos parti-
cipantes em submeter-se à figura de uma autoridade que os instruiria a desempe-
nhar atos que pudessem conflitar com sua própria consciência. Ou seja, pesquisar a
obediência à autoridade. Os resultados foram estarrecedores: 65% dos “instrutores”
puniram seus “alunos” com o máximo de 450 volts (mataram os alunos!); nenhum
parou antes dos 300 volts (aleijaram os alunos!); e a disposição para torturar não variou
nem em função dos gêneros nem em função da origem social!

Tal experimento foi mais tarde reproduzido de forma sistemática em dife-


rentes países e em diferentes épocas. Os resultados foram semelhantes. O que
deduzir? Que o horror nos habita quando nos conformamos pura e simplesmente
à autoridade superior ou quando responsabilizamos o emissor das ordens por
nossos próprios atos. Que a “banalização do mal” não é apanágio dos regimes
133
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

totalitários, já que sua universalidade é reconhecível sob quaisquer céus. No Brasil,


por exemplo, a banalização da esperteza (chave de nossa moral do oportunismo)
constitui um padrão oculto de normalidade que consiste em tirar proveito dos
outros e em provocar o mal de forma despreocupada e, às vezes, jocosa.
Conclusão: os agentes sociais não são bons nem maus uma vez por todas;
tanto podem cometer bondades como podem perpetrar maldades. Do ponto de
vista das sociedades inclusivas ou das organizações, cabe gerenciar as condições
que facultam um estado ou outro. E cabe ter a humildade de reconhecer o quão
perversas são essas disposições.

8.5.  Exercício: Qual dos males? (8)


No exercício a seguir, vamos distinguir males que constituem dilemas do
cotidiano, mas que tenham − detalhe altamente significativo − bases universalis-
tas. Analise o evento e qualifique o tipo de mal que está em jogo:
j
O mal menor (Mm) procura evitar um mal maior.
j
O mal necessário (Mn) procura alcançar um bem maior.

Alguns casos poderão ser interpretados como mal menor ou mal necessário,
dependendo da perspectiva que se adote. Por exemplo, tomar remédios a des-
peito dos efeitos colaterais e das reações adversas pode ser encarado como mal
menor diante da gravidade da doença (mal maior) ou como mal necessário para
curar-se de doença ou combatê-la (bem maior).

EVENTO RESPOSTA
1. Expropriar prédios particulares para a construção de estações de metrô
cujas linhas se destinam a transportar centenas de milhares de usuários.
2. Usar a “pílula do dia seguinte” para dificultar a fecundação e evitar o
nascimento de uma criança indesejada, apesar das contraindicações exis-
tentes (coágulos no sangue para quem sofre de doença hematológica
ou vascular, quem é hipertenso ou obeso mórbido) e efeitos colaterais
(alteração do ciclo menstrual e do tempo de ovulação).
3. Ordenar que caças derrubem aviões intrusos e suspeitos que entram no
espaço aéreo e se recusam a aterrissar.
4. Confinar doentes infectocontagiosos.
5. A delação premiada para obter informações valiosas que desbaratem
operações ilícitas, em troca do abrandamento da pena.
6. A adição de iodo no sal para prevenir o bócio em adultos ou o cretinismo
em crianças, embora o excesso cause tireoidite autoimune.
7. A fila preferencial para idosos, gestantes, portadores de deficiência e
pessoas acompanhadas de criança de colo, em desrespeito à ordem de
chegada.

134
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

EVENTO RESPOSTA
8. Utilizar aparelhos de raios X apesar da radiação nociva.
9. Vacinar obrigatoriamente a população contra doenças contagiosas, a des-
peito do incômodo das picadas e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas.
10. Estabelecer o rodízio de carros em dias alternados, não obstante o trans-
torno causado aos motoristas que não usam transporte coletivo.
11. Construir hidrelétricas, embora inundem vastas áreas, desloquem
moradores e afetem a fauna e a flora da região.
12. Utilizar agrotóxicos na agricultura, apesar dos impactos negativos sobre
o meio ambiente (interferências nos processos de respiração do solo
e distribuição de nutrientes, além da mortandade de espécies de aves e
peixes), bem como usar pesticidas malgrado os efeitos nocivos sobre a
saúde dos consumidores (risco de contaminação dos alimentos) e sobre a
saúde dos que trabalham com eles (dificuldades respiratórias, problemas
de memória, pele, câncer e depressão).
13. Escolher um paciente entre outros, com base em critérios objetivos, para
ocupar a única vaga disponível na UTI, malgrado o fato de que os demais
possam morrer.
14. Escolher o paciente que terá o fígado transplantado por critérios médicos
e não pela ordem de inscrição.
15. Instalar reatores nucleares para gerar energia elétrica, apesar de haver
lixo nuclear e risco de contaminação radioativa.
16. Aplicar a energia nuclear em diversos campos, a despeito do risco de
contaminação, para obter benefícios como o diagnóstico e o tratamento
de inúmeras doenças (medicina), a irradiação de alimentos para a
produção de sementes e para que durem mais (agricultura), a verificação
da qualidade de equipamentos e a esterilização de materiais médicos e
cirúrgicos (indústria), o monitoramento de poluentes e a identificação de
recursos aquíferos (meio ambiente).
17. Negar na mídia a iminente desvalorização da moeda (ação de autoridade
ministerial) e correr o risco de ser desmascarado no dia seguinte ao lançar
um pacote econômico.
18. Reter dados dos usuários para permitir investigações contra o terrorismo
e o crime organizado. Com isso, os provedores de internet promovem a
quebra da privacidade de seus clientes.
19. Submeter-se a uma cirurgia invasiva, uma vez que se corre risco de
morte ou de graves complicações, apesar dos perigos da anestesia e das
infecções hospitalares.
20. Injetar recursos públicos na indústria automobilística norte-americana
para evitar sua concordata. Por exemplo, em 2009, a General Motors
recebeu US$ 49 bilhões do Tesouro americano, conferindo ao governo
61% de suas ações. Recuperada a empresa, o Tesouro se desfez da última
fatia de 2,2% das ações no final de 2013. E, embora contabilizasse uma
perda de US$ 10 bilhões, evitou que o setor automobilístico falisse, per-
desse 2,6 milhões de empregos e que 600 mil aposentadorias tivessem
seus benefícios reduzidos ou extintos. Ademais, o setor criou 372 mil
empregos novos desde a crise e desembolsou US$ 105,3 bilhões em
impostos e taxas somente em 2009 e 2010.

135
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

O gabarito deste exercício (8) se encontra no Anexo.


A esta altura, três esclarecimentos se impõem. O primeiro diz respeito a uma
questão bastante delicada: será que o bem de muitos justifica o mal de poucos?
Em certas circunstâncias, sim, e por razões óbvias. Por exemplo: confinar doentes
infectocontagiosos, construir hidrelétricas, desapropriar imóveis para cons-
truir linhas de metrô, demitir funcionários para evitar uma iminente falência,
encarcerar criminosos.
Todavia − e é preciso insistir nisso −, os interesses da maioria não podem
atropelar os interesses da minoria. Os doentes infectocontagiosos devem receber
os cuidados necessários, poder se comunicar com os parentes e, tão logo cura-
dos, retornar à convivência social. As hidrelétricas devem minimizar os efeitos
negativos que sua construção provoca: ressarcir a população que ocupava a área
inundada, realocar a fauna e resgatar os espécimes mais raros da flora regional.
Os proprietários dos imóveis desapropriados para a construção de metrô devem
ser adequadamente indenizados, e o mesmo vale para funcionários demitidos.
Os criminosos devem ser encarcerados em condições dignas e libertados tão logo
tiverem cumprido a pena.
O segundo esclarecimento também diz respeito a algo francamente per-
turbador: será que o bem de poucos justifica o mal de muitos? Em situações
excepcionais, e desde que respeitados os direitos básicos da maioria, sim. Por
exemplo: a fila preferencial para idosos, gestantes e portadores de deficiência;
a escolha, com base em critérios objetivos, de um paciente para ocupar a única
vaga disponível na UTI, embora outros pacientes aguardem a vez; instituições
bancárias criarem divisões premium para atender clientes abonados, evitando-se
assim os “jeitinhos” que discriminam e humilham.
Contudo, as prioridades devem assegurar à maioria o direito de ter um atendi-
mento digno nos estabelecimentos que estabelecem filas preferenciais. Idem para
os pacientes preteridos na única vaga disponível na UTI: merecem saber quais
critérios objetivos os impediram de obter a vaga. Idem para os clientes que, por
falta de renda suficiente ou de volume de investimentos, não foram autorizados a
integrar o segmento prime: merecem ser convidados quando tiverem preenchido
os requisitos.
Em suma, decisões pelo mal menor e pelo mal necessário não correspondem
a um vale-tudo errático: precisam estar devidamente fundamentadas e cuidar
o tempo todo para não incorrer no viés particularista, o que detonaria sua
legitimidade ética.
Isso nos leva a um terceiro esclarecimento pertinente. É possível justificar
meios ilícitos ou “impuros” em nome de ideais retoricamente igualitários? Por
exemplo, desviar recursos públicos em nome da perpetuação no poder de um
partido que se proclama portador da “sociedade dos amanhãs cantantes”, ou seja,
do socialismo? Dando nome aos bois, é o caso do “mensalão” no Brasil.

136
Capítulo 8: O paradoxo das decisões éticas

A cooptação de apoio parlamentar ao governo do presidente Lula, em seu


primeiro mandato inaugurado em 2003, se fez por meio do desvio de recursos
públicos. Se não, vejamos. Do Fundo Visanet, de quem o Banco do Brasil era
acionista, foram R$73,9 milhões; do próprio Banco do Brasil foram 2,9 milhões;
da Câmara dos Deputados foi 1,1 milhão; do Banco Rural foram 32 milhões, dis-
farçados em empréstimos (fictícios) para o Partido dos Trabalhadores e para as
agências de publicidade de Marcos Valério, operador da propinoduto; do Banco
BMG, nos mesmos moldes, foram R$31,9 milhões.
A crônica desse episódio infame da história brasileira começa em junho
de 2005 quando o presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson, afirma que
o PT pagava R$ 30 mil por mês para que parlamentares votassem a favor do
governo Lula na Câmara. As acusações forçaram o ministro-chefe da Casa Civil,
José Dirceu, a pedir demissão. Em agosto de 2007, o ministro Joaquim Barbosa,
do Supremo Tribunal Federal, fez a leitura da denúncia contra 40 suspeitos de
envolvimento no mensalão. Logo depois, o STF aceitou a denúncia e todos se
tornaram réus. Em agosto de 2012, após 49 sessões e quatro meses e meio, o
julgamento terminou com 25 réus condenados, 12 absolvidos e 3 excluídos
da ação (acolhido um recurso em 2014, um dos condenados foi absolvido).
Finalmente, em novembro de 2013, ou seja, mais de oito anos após a denúncia
do esquema, o STF determinou a prisão imediata dos condenados, entre eles o
ex-ministro José Dirceu.
O mensalão foi um caso de corrupção política sob o falso pretexto de que
“os fins justificam os meios”. Quais fins? Particularistas. Expectativas de que o
PT obtivesse uma maioria estável para governar e pudesse prolongar sua per-
manência no poder; de que o aparelhamento da máquina do Estado permaneces-
se nem que fosse com o apoio dos velhos patrimonialistas de sempre; e de que
ministérios e cargos públicos fossem loteados como butim, desde que velhos
militantes petistas e sindicalistas de chapa branca pudessem continuar a se ban-
quetear. Para tanto, perpetraram-se seguidos crimes contra a cidadania e contra
a coisa pública. A República foi conspurcada. Não se tratou de causa nobre que
pusesse em jogo interesses universalistas. Não: foi caso típico de falseamento, de
racionalização antiética do “mal necessário” (corrupção) em prol de um pseudo
“bem maior” (o socialismo). Ora, nem esse mal era necessário, nem o socialismo
totalitário pretendido era o bem maior, haja vista as experiências fracassadas do
planejamento central e as brutais repressões dos tempos da União Soviética, dos
países do Leste Europeu, da China, da Coreia do Norte, do Camboja, de Cuba e
de outros países congêneres.

137
Capítulo

9
Como tomar decisões éticas?

9.1.  Tolerância zero ou análise situacional?


Para criar valor, qual bem gerar: o bem comum ou o bem restrito? O bem
restrito universalista (consensual) ou o bem restrito particularista (abusivo)? E
mais: para obter valor, qual mal tolerar: qualquer mal, o mal necessário (sacrifício
para obter um bem maior) ou o mal menor (sacrifício para evitar um mal maior)?
Os capítulos anteriores nos ajudaram a caracterizar os fenômenos e a delinear
formas de escolher um curso de ação do ponto de vista teórico. Das muitas deci-
sões que envolvem questões morais, contudo, uma evidência sobressai: em última
instância, quando a polêmica leva ao impasse, somente uma intervenção política
desata o nó. O que isso significa? Que as divergências só podem ser superadas
por uma relação de forças vitoriosa, cujo cacife permita impor a própria vontade,
vale dizer, os próprios interesses.
Nessas condições, não é incomum que interesses particularistas preponderem
e que racionalizações tomem conta do palco. Às vezes, os agentes pecam por
inocência quando tropeçam na análise objetiva ou resvalam no autoengano.
Mas, vezes sem fim, sofismas e falsas justificativas são invocados para dar curso
a agendas ocultas. Em todos os casos, vence a racionalização antiética.
Para pôr à prova as alegações formuladas, é indispensável recorrer a duas
perguntas esclarecedoras: a decisão beneficia quem e prejudica quem? Um único
agente, poucos agentes, todo o mundo? Qual é o caráter dos interesses que será
satisfeito: particularista (prejudica outrem) ou universalista (interessa a todos)?
Isto é, a produção do bem qualifica as práticas do ponto de vista ético.
Em compensação, quando prevalecem interesses universalistas ou quando a
razão ética triunfa, resta saber qual modo de tomar decisão será adotado: a tole-
rância zero, que corresponde à teoria ética da convicção, ou a análise situacional,
que corresponde à teoria ética da responsabilidade?

139
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

A prestação de contas
Otaviano é gerente comercial de uma grande companhia do setor eletroeletrônico
há dois anos. Seu conceito é de um executivo jovem, promissor e brilhante. Seu chefe,
o diretor comercial da empresa, está bem satisfeito com ele, pois aprecia sua energia,
ambição e vontade de superar os outros. Enxerga no Audi, que Otaviano comprou
com os bônus recebidos, uma demonstração de que, como homem de resultados,
ele não se contenta com nada menos que o melhor.
Nos dois anos em que Otaviano trabalhou sob sua chefia, o diretor comercial lhe
concedeu três aumentos em função do belo desempenho. Afinal, o moço só lhe deu
boas notícias. Pelo menos até a semana passada: uma auditoria interna constatou
que, numa viagem que fez à Alemanha, indo representar a empresa num congres-
so, Otaviano apresentou uma conta de hotel adulterada. Redondos, foram 500 euros. O
auditor desconfiou do valor da conta em função das diárias: em vez de €1.350 (quatro
diárias a €300, mais uns extras), a conta deu €1.850. O número 3 foi adulterado para 8.
Cuidadoso, o auditor telefonou para a administração do hotel alemão para checar.
De fato, foram pagos €1.350 em dinheiro vivo. Ele então solicitou uma cópia do
documento da tesouraria, que lhe foi imediatamente remetida por fax. De posse
dessas informações, foi falar com Otaviano. Este, aparentemente surpreso, lhe disse
que na correria da saída pagou sem ver. O auditor procurou lhe mostrar a divergência.
Otaviano confirmou saber que a diária era de €300 e ficou irritado com o jeito in-
quiridor do auditor. Finalmente, alegou em sua defesa que o caixa do hotel podia ter
alterado o original da nota fiscal para induzi-lo a erro.
O auditor não insistiu mais e foi pesquisar as prestações de conta anteriores
do gerente. Nada achou. Foi então ter com o diretor comercial, apresentando-lhe
educadamente toda a situação e pedindo-lhe providências. O diretor reagiu com
rispidez. O que foi que Otaviano lhe disse? Que pode ter havido um engano, não é
isso? Por que insistir? O sujeito é o homem de ouro do departamento! Vai vir com essa
mixaria de €500 para fazer uma tempestade num copo d´água?
O auditor ponderou que não se trata da quantia, mas do ato em si. E recebeu
como troco: não me venha com purismos nessa altura do campeonato! Que ato?
Uma presunção, uma especulação! O que tem de comprovado? Nada! Esse moço
vale milhões! Se ele disse que não conferiu a nota fiscal, para mim chega! (Mais tarde,
essa conversa foi confirmada pelo diretor comercial numa reunião com seus pares.)
O auditor se retirou e, com a aprovação de seu próprio gerente, decidiu levar o
caso para o comitê de ética. O comitê de ética se reuniu e emitiu um parecer que foi
submetido à apreciação da diretoria executiva.
Quais as recomendações e como serão fundamentadas?

Analisados os fatos, uma dúvida crucial paira sobre quem adulterou o docu-
mento: o gerente comercial ou o caixa do hotel alemão? Quanto à conta, sabe-se
que o gerente comercial é um profissional afeito a cifras e a cálculos. Assim, mesmo
premido pela pressa, bastaria um relance para ele checar a nota fiscal: quatro diárias
a €300, mais algumas pequenas despesas, não poderiam somar €1.850! Daí a certeza
de que, no mínimo, o gerente foi negligente com o dinheiro da empresa.
140
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

O comitê de ética, aliás, só pode basear suas recomendações em evidências


irrefutáveis. Nesse caso, há quatro delas: o documento foi adulterado; houve
negligência do gerente; não há precedente nas demais prestações de conta do
gerente; a conduta do diretor comercial foi inaceitável porque passou a ideia de
que pequenos desfalques não têm importância, sobretudo quando cometidos
por um gestor que, ademais, proporciona bons lucros à empresa.
A partir disso, e à luz da razão ética, o comitê pode optar pela teoria ética da
convicção que se guia por valores universalistas e opera de forma maniqueísta
(tolerância zero). O que recomenda?
j
demitir o gerente por negligência (prioriza-se aqui o respeito ao dinheiro
da empresa e adota-se medida punitiva);
j sancionar o diretor comercial com advertência formal por ter sobreposto
os resultados à integridade pessoal (prioriza-se aqui a idoneidade e a
impessoalidade e fixa-se medida corretiva);
j
rever a política referente às despesas pessoais: implantar, por exemplo, o
cartão corporativo, de maneira que os funcionários deixariam de receber
quantias em dinheiro (prioriza-se aqui a montagem de mecanismos de
controle).

Uma celeuma possível diz respeito à forma da demissão. Poucos comitês


preferem a demissão por justa causa, uma vez que as provas são frágeis e a Jus-
tiça do Trabalho costuma ser paternalista. A maioria acaba propondo a demissão
sem justa causa, o que não é o melhor dos mundos, pois o gerente receberá a
indenização a que faz jus e poderá, eventualmente, reeditar seus malfeitos em
outras empresas.
Outro caminho, que também obedece à razão ética, seria o comitê de ética
optar pela teoria ética da responsabilidade. Esta também se guia por valores
universalistas, mas opera com base em análise de riscos (análise situacional).
O que recomenda?

1. oferecer ao gerente uma oportunidade de reabilitação, desde que assuma


que foi negligente ao não checar a nota fiscal (uma segunda chance é
conferida a quem reconhece um erro eventual com sinceridade, mediante
a apresentação de um “cartão amarelo”, como se faz no futebol);
2. advertir o gerente por escrito (o descuido não pode ser subestimado);
3. solicitar o ressarcimento dos 500 euros (o prejuízo cabe a quem o provocou);
4. sancionar o diretor comercial com advertência formal (o fato de sobrepor
resultados à integridade pessoal passa a imagem de leniência e de favoritis-
mo, para não dizer de oportunismo);
5. comunicar ao diretor e ao gerente que todos os contratos comerciais as-
sinados por ambos serão auditados (se houve desvios e ganhos indevidos,
141
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

é mais provável que o foco esteja aí e não na prestação de contas das des-
pesas pessoais);
6. rever a política referente às despesas pessoais (fecham-se as brechas que
podem ensejar deslizes).

A auditoria nos contratos comerciais se faz necessária para que não paire
dúvida sobre a conduta de profissionais de alto escalão. Caso ambos passem
pelo teste, obterão um atestado de idoneidade. Mas, caso haja indício de fraude
ou de favorecimento, os dois serão sumariamente demitidos. Ademais, se o
gerente comercial não reconhecer a desídia ou não aceitar ressarcir a empresa
pelo prejuízo causado, sua demissão também deverá ser determinada.
Acontece que o comitê de ética pode também optar por um terceiro curso
de ação (bastante comum, aliás), que consiste em relevar os erros sem adotar
medidas punitivas ou corretivas. Tal tomada de posição vira um prato cheio
para a “rádio corredor” e estabelece um perigoso precedente que estimula a
proliferação de condutas ilícitas.
Essa terceira vertente obedece à racionalização antiética: privilegia interesses
particularistas, racionaliza os eventos e oferece justificativas capengas. Alega que
não há provas suficientes e que um descuido menor não justifica providências
drásticas; demonstra complacência com os implicados e contamina o ambiente
interno com o veneno da desonestidade.

A secretária perfeita
Heloísa é a secretária executiva dos sonhos: eficiente, pontual, bilíngue, discreta,
elegante. Seu superior, o gerente industrial, embora conhecido e temido por seu estilo
“sargentão”, sempre a tratou com o devido respeito, em função do modo profissional
como ela sempre se relacionou com ele.
Ocorre que o marido de Heloísa, na famosa “crise dos 40 anos”, abandonou a mu-
lher com os dois filhos pela enteada da vizinha, uma moça que cursava marketing e
que deixava os homens irrequietos com suas curvas.
O gerente acaba sabendo da separação e, nos despachos diários com a secretária,
procura apoiá-la com palavras de estímulo e consolo. Insiste, porém, em convidá-la
para almoçar, sob o pretexto de discutir assuntos pendentes. Heloísa se esquiva sis-
tematicamente, até que um dia, não querendo ser indelicada, aceita o convite.
O gerente escolhe um restaurante acolhedor e refinado. No meio da conversa
que acaba versando sobre as relações entre marido e mulher (o gerente é casado
há 20 anos e tem três filhos), ele põe a mão no antebraço de Heloísa e procura
se aproximar dela, olhando fixamente seus lábios. Com tato, a secretária retira o
braço e consegue se afastar, embora ele continue tentando se achegar. Heloísa
então o encara e lhe diz assertivamente: “Chefe, o senhor vai me desculpar, mas
não acho certo misturar relações afetivas e profissionais.” O outro retruca sem
muito pensar: “O prazer não tem hora nem lugar...” É o suficiente para que Heloísa
se levante abruptamente da mesa.

142
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

Daí para a frente, o gerente se fecha em copas e trata Heloísa de forma rís-
pida; faz até piadas a respeito de sua tristeza. Duas semanas depois, entrega um
importante relatório ao pool de secretárias para ser digitado. Quando Heloísa recebe
o relatório pronto para ser encaminhado, estranha o fato e pergunta ao chefe o
que foi que aconteceu. Ele simplesmente não responde, fazendo um vago gesto
de enfado com a mão. As demais secretárias começam a comentar que entre os
dois “deve estar rolando alguma coisa...” e olham de forma enviesada para Heloísa.
Os despachos diários escasseiam e, quando ocorrem, convertem-se em tortura
chinesa para a secretária. Quando ela questiona alguma coisa, ele lhe diz para deixar
de ser “metida” e fazer o trabalho que lhe cabe sem questionar as ordens. Diante
dos demais funcionários, o gerente se deleita em fazer ironias ou em destratá-la
repetidamente.
Já perturbada com a separação, Heloísa se sente crescentemente estressada e com
enorme vontade de abandonar tudo. Mas como sustentar os dois filhos se a pensão
do marido cobre parte do aluguel e mal dá para pagar a escola e o seguro-saúde?
Em desespero, ela acaba confidenciando o que ocorre a uma colega de longa data.
Esta lhe aconselha duas coisas: produzir um flagrante que possa ser testemunhado
e, na sequência, levar o caso ao comitê de ética para tentar pelo menos garantir o
emprego. Afinal, perdido por perdido, valia a pena arriscar.
Na entrada da sala do gerente, num dos despachos, Heloísa finge tropeçar e a
papelada que segura se espalha no chão. Ela se agacha para recolher os papéis, e
o chefe deixa sua mesa para ajudá-la. Ao se abaixar, os rostos dos dois ficam bem
próximos e o gerente não resiste ao olhar sedutor da secretária − imagina, aliás, que
ela finalmente estava se oferecendo. Quando Heloísa faz menção de se levantar, ele a
abraça. Nesse instante e, de forma surpreendente, Heloísa dá um grito agudo. Muitos
funcionários erguem a cabeça em direção à sala envidraçada da gerência para ver o
que está acontecendo, enquanto Heloísa repele o chefe com as duas mãos e suplica
em voz alta: “Não! Não! Não quero!” Alguns colegas até se levantam para ver melhor.
Heloísa sai então da sala e bate a porta com violência...
A cena foi decisiva. A secretária agora dispunha das testemunhas que lhe faltavam
e pode contar com a força anônima da “rádio corredor”. O próximo passo foi denunciar
o assédio sexual ao comitê de ética, com um relato pormenorizado dos antecedentes
(Heloísa omitiu apenas a cilada que aprontou). Ela estava confiante porque a compa-
nhia queria fazer parte das 100 melhores empresas para trabalhar e não estava dis-
posta a perder a oportunidade de se destacar.
A pedido do comitê de ética, uma comissão de averiguação foi nomeada e logo
tomou os depoimentos da secretária e de suas colegas, das testemunhas e do próprio
gerente industrial. Em sua defesa, este último alegou que Heloísa deixou muito a
desejar profissionalmente depois de sua separação, razão pela qual chamava repe-
tidamente a atenção dela. Quanto ao episódio em seu escritório, ele o caracterizou
como “inexplicável reação histérica” da secretária. Por fim, lembrou que nunca esteve
envolvido em caso semelhante.
A comissão de averiguação não se deixou iludir e apresentou um relato crítico,
embora sobrasse alguma dúvida sobre o teor da conduta do gerente. Relatório em
mãos, os membros do comitê de ética se reúnem. Quais serão as recomendações do
parecer?

143
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

O comitê de ética baseará suas recomendações em quatro evidências irre-


futáveis: a conduta libidinosa do gerente industrial ficou patente aos olhos de
muitos; foi o primeiro e único episódio conhecido em que ele ficou implicado;
a ausência de reciprocidade por parte da secretária, que rejeitou os avanços; os
relatos de seguidas humilhações e intimidações sofridas por ela.
À luz da razão ética, o comitê pode optar pela teoria ética da convicção que
se guia por valores universalistas e opera com base no “tudo ou nada”. O que
recomenda o comitê?

1. demitir o gerente industrial, uma vez que o assédio ficou comprovado,


ainda que fosse pontual (prioriza-se a rejeição do assédio sexual ou moral
com medida punitiva, deixando o tipo de demissão por conta da área
jurídica, se por justa causa ou não);
2. lançar uma campanha de esclarecimento quanto ao assédio e seus tipos
(ganha relevância a assimilação das diretrizes constantes do Código de
Conduta Moral);
3. montar um canal confiável de notificação para prevenir casos semelhantes
(aprende-se com o fato de que o agravamento da situação ocorreu porque
há provável descrença quanto à eficácia das denúncias);
4. oferecer acompanhamento psicológico à secretária, em função da ex-
periência traumática vivida.

Os assédios moral ou sexual são processos persecutórios com alvos certos,


abusos recorrentes de poder que ferem a dignidade das vítimas no ambiente
de trabalho. Enquanto o assédio moral degrada a vítima e lhe causa danos
morais, o assédio sexual consiste em tentativas de extorquir favores sexuais da
vítima. Ambos os casos são práticas egoístas, geralmente exercidas por superior
hierárquico. Isso não exclui, entretanto, o assédio entre pares: mobbing (assédio
psicológico) e bullying (intimidação física ou simbólica). Embora repetidos e
sistemáticos, os assédios podem ser excepcionalmente pontuais, em função da
gravidade do evento.
De forma alternativa, o comitê de ética pode optar por medidas corretivas
que também obedeçam à razão ética. Seria uma opção orientada pela teoria
ética da responsabilidade com base em uma análise situacional ou com base em
riscos calculados. Essa opção depende de dois fatores preliminares: o gerente
reconhecer que extrapolou e assumir que não irá repetir o malfeito. O que
recomenda o comitê?

1. advertir o gerente industrial por escrito, ficando claro que qualquer outro
deslize será motivo de demissão (confere-se uma segunda chance a quem
reconhece um erro ocasional, mediante a apresentação de um “cartão
amarelo”);
144
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

2. supervisionar a conduta do gerente para dar suporte à medida anterior


(mostrar que os atos têm consequências e que haverá vigilância);
3. realocar a secretária em outra área com as mesmas atribuições e remu-
neração (evitar constrangimentos e preservar o status da secretária) e
oferecer-lhe acompanhamento psicológico;
4. lançar uma campanha de esclarecimento quanto aos assédios moral e
sexual, seus fundamentos e seus efeitos perniciosos (capacitar os cola-
boradores a “comprar” as normas em função dos riscos envolvidos e não
convertê-los em meros cumpridores de normas);
5. montar um canal confiável de notificação para prevenir casos semelhantes
(os colaboradores precisam se sentir seguros para relatar fatos sensíveis e
ter certeza de que receberão uma satisfação).

Nos debates que esse caso suscita em sala de aula, quem se orienta pela teoria
ética da convicção (tolerância zero) se incomoda com o fato de a secretária ter
lançado mão de um artifício para flagrar o chefe, alegando que o meio utilizado
não é “puro”. Daí a irresistível vontade de punir Heloísa por achar sua conduta
maliciosa e intolerável.
Quem se orienta pela teoria ética da responsabilidade ou pela análise situa-
cional, no entanto, caracteriza o meio utilizado como um mal necessário para
alcançar um bem maior. Para expor à luz do dia o assédio do gerente industrial
e restabelecer um clima de profissionalismo, a secretária se sentia desarmada.
Afinal, a empresa carecia de um canal confiável de denúncia e, sem testemunhas,
ela presumia que uma acusação de assédio não prosperaria.
Finalmente, o comitê de ética pode igualmente optar por um terceiro curso
de ação, que consiste em relevar os erros e colocar panos quentes. Ao desprezar
uma denúncia relevante, acaba acobertando o assédio gerencial e dá mostra de
machismo. Isso menospreza a diversidade social e incentiva os excessos por parte
dos superiores hierárquicos.
Essa terceira vertente privilegia os interesses particularistas e obedece à ra-
cionalização antiética que, ao fim e ao cabo, deturpa os eventos e mistifica os
interessados. Alega, por exemplo, falta de provas convincentes, põe em dúvida o
relato da secretária e chega a dizer que é da natureza feminina, principalmente
de mulher divorciada, tentar seduzir o chefe...

9.2.  As duas teorias éticas


A retórica vê os fatos em preto e branco; a realidade tende a ser matiza-
da ou multicolorida. Como se posicionar a respeito dos problemas morais?
Ignorando-os (racionalização antiética), expurgando o mal cirurgicamente
(razão ética da tolerância zero) ou calculando os riscos envolvidos (razão ética
da análise situacional)?
145
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Coisas sujas e coisas belas


Um médico nigeriano, perseguido politicamente em sua terra natal, se refugia
em Londres, mas entra ilegalmente no país. Durante o dia trabalha como motorista
e à noite presta serviços de recepcionista num hotel mal afamado. Mastiga ervas
medicinais para manter-se acordado e vive angustiado com o risco de ser deportado
pelo Serviço de Imigração.
O gerente do hotel, um sujeito sem escrúpulos, trafica órgãos. Em troca de um
rim, fornece a imigrantes ilegais um passaporte francês falsificado, expediente que
dribla as autoridades e prolonga sua permanência na Grã-Bretanha. Vale-se de um
charlatão, travestido de médico, que opera os doadores em condições improvisadas
e particularmente precárias. No mais das vezes, o sujeito retalia os infelizes que lhes
são confiados de forma irresponsável. Muitos acabam infeccionados e um deles morre.
Após seu plantão noturno, o recepcionista nigeriano esbarra com um doador que
geme de dor na antessala do escritório do gerente. Condoído, não consegue manter o
segredo e socorre o ferido, revelando sua formação médica. O gerente presencia a cena
e propõe a seu subordinado uma nova identidade e o pagamento de três mil libras es-
terlinas por cada cirurgia que ele vier a fazer. No ato, o médico nigeriano recusa a oferta.
Com dois empregos, ele vive insone. Mal dorme algumas horas do dia no aparta-
mento de uma jovem camareira turca, sua colega de trabalho e cujo pedido de asilo
se encontra em tramitação. Sem papéis, ela não está autorizada a trabalhar, mas o
faz clandestinamente. Aos poucos, discretas relações de afeto crescem entre os dois
personagens.
Acontece que funcionários da Imigração desconfiam das atividades da moça. Em
consequência, ela é forçada a deixar o hotel e se emprega como costureira em um
sweatshop. Mas a Imigração não lhe dá trégua e a procura na fábrica. O estabelecimento
abriga muitos trabalhadores ilegais. A presença dos fiscais provoca um alvoroço geral. Em
decorrência do transtorno causado, o dono da espelunca, um indiano gordo e suarento,
chantageia a moça e cobra sexo oral como preço de seu silêncio. Ela se submete apesar
do nojo que ele lhe produz. Repetida a exigência, porém, ela se revolta, morde o pênis
do patrão e foge em desabalada carreira! No caminho, furta alguns vestidos.
Seu sonho era conseguir um passaporte e migrar para Nova York. Ela recorre então
ao gerente do hotel, que lhe promete a falsa identidade, mediante a extração de um
rim. Acontece que, nas horas antecedentes à operação, o gerente exige mais: quer
fazer sexo com ela. Acuada e vulnerável, embora virgem, a moça se entrega.
O médico nigeriano descobre que ela vai se submeter à cirurgia e fica dilacera-
do com o risco de morte que corre nas mãos do charlatão. Aceita então realizar a
operação. O gerente exulta com a perspectiva de ter um novo parceiro, bem mais
qualificado. O médico, entretanto, trama um modo de fazer justiça com as próprias
mãos. Furta instrumentos cirúrgicos, aventais e remédios de um hospital, obtém a
ajuda de três amigos − uma prostituta mulata, um chinês que trabalha no crematório
e o porteiro russo do hotel − e prepara uma encenação rocambolesca.
De fato, antes de realizar a cirurgia, recebe os dois passaportes falsificados que
haviam sido prometidos (o dele e o da moça). Após o que, oferece uma bebida ao
gerente do hotel e o dopa. Para quê? Para lhe extrair o rim! Feita a operação, entrega
o órgão numa caixa de isopor com gelo a quem fará a implantação em paciente rico.

146
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

E cobra, é claro, as 10 mil libras esterlinas de praxe. Em seguida, reparte o dinheiro


com seus parceiros e foge com a moça: ela vai para Nova York atrás de seu sonho e
ele, para Lagos, na Nigéria, para encontrar a filha de sete anos.
Na penumbra desse fim melancólico, uma fresta de luz irrompe: a moça lhe deixa
um endereço, na esperança de que um dia, quem sabe, possam se reencontrar.1

A história é um retrato dos subterrâneos de um mundo sórdido em que só


a sobrevivência importa: imigrantes ilegais submetidos a abusos e cometendo
variados furtos; traficantes de órgãos que não escolhem meios para alcançar
objetivos mercenários. Assim, as coisas sujas da vida − os episódios de humi-
lhação, chantagem, degradação e medo − contrastam com as coisas belas − o calor
da amizade, o apoio mútuo nas horas de angústia, a solidariedade no desamparo,
o amor que enternece − raras flores que desabrocham na sarjeta.
Mas qual é a moral da história? O médico nigeriano não compactuou quando
o gerente do hotel lhe ofereceu mundos e fundos. Nesse momento, seguiu os
preceitos do juramento de Hipócrates: “Eu manterei o máximo respeito pela vida
humana; eu não usarei meu conhecimento médico para violar direitos humanos
e liberdades civis, mesmo sob ameaça.”2 Aplicou a teoria ética da convicção, agiu
de acordo com mandamentos de caráter universalista e não se vendeu.
Premido pelas circunstâncias, porém, deu séria guinada: salvou a moça que o
amava e rompeu o círculo vicioso em que estava metido. De que forma? Fazendo
com que o gerente, um sujeito canalha, provasse do próprio veneno. Como quali-
ficar essa trama final? Será que o médico aderiu à teoria ética da responsabilidade?
Afinal, cometeu alguns males em seu caminho de fuga: extraiu o rim do gerente
e o vendeu; não denunciou às autoridades o tráfico de órgãos com medo de ser
deportado; aceitou passaportes falsos e se apossou de dinheiro sujo. Seriam esses
“males necessários”? Não. Lamentavelmente não. Porque o bem maior está no
desmantelamento da operação clandestina e na denúncia dos maus-tratos so-
fridos pelos imigrantes. Seriam então esses malfeitos “males menores” para evitar
um mal maior? Novamente, não; lamentavelmente não. Pois o mal maior não
consiste em evitar que a mocinha fosse retaliada ou até morta, mas em deixar
que prospere o tráfico de órgãos.
Então, como fica? A despeito da torcida do público, que se regozija secreta-
mente com o destino do gerente e com a fuga dos dois protagonistas, o desfecho
nos remete ao parcialismo! E por quê? Porque interesses particularistas foram
satisfeitos, não interesses universalistas.
Há sempre o risco, pois, de sucumbir à racionalização particularista, aos argu-
mentos sedutores da racionalização antiética. No presente caso, um protagonista

Enredo do filme Dirty Pretty Things, de Stephen Frears (2002).


1

Atualizado pela Declaração de Genebra.


2

147
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

encarna todos os imigrantes maltratados, abusados e ludibriados; um anti-herói


justiceiro pune um dos vilões e salva a heroína com seus três mosqueteiros − há
melhor catarse diante de tantos padecimentos?

A terapia de choque
Em muitos anos de carreira, Carlos Ghosn já enfrentou várias crises e comandou
viradas espetaculares. Mas nada se compara ao trabalho de reconstrução da Nissan.
Em 1999, a montadora japonesa estava quase arruinada, mergulhada em dívidas de
US$19,4 bilhões. Não só a cultura do lucro deixara de ser levada a sério, como havia
um péssimo controle dos custos.
A marca podia construir 2,4 milhões de carros no Japão. Mas só operava com 53%
da capacidade. Dinheiro era queimado em 1.394 participações em outras empresas, in-
clusive concorrentes, como a Subaru. Funcionários eram promovidos por idade e não
por mérito. Gerentes de fábrica não sabiam dizer quanto custava produzir um carro.
Quando Ghosn se instalou na mesa de seu escritório no bairro de Ginza, em Tóquio,
encontrou uma empresa que necessitava de uma terapia de choque. “A recuperação
precisa ser rápida e eficaz, mesmo que exija sacrifícios”, disse, um dia depois de
anunciar o fechamento de cinco linhas de montagem e a demissão de 21 mil traba-
lhadores (14% do pessoal). Isso em um país em que os empregos eram considerados
eternos. Ele afirmou que, se o plano de reestruturação falhasse, a situação seria bem
pior, com o fim da empresa.3

O que temos aqui do ponto de vista ético? Uma adesão à teoria da responsa-
bilidade: os resultados importam muito, desde que os fins sejam universalistas;
sacrifícios são toleráveis em função dos efeitos esperados (mal menor diante do
mal maior, que seria o fechamento da empresa e a perda de centenas de milhares
de empregos), pois os prejuízos sociais que a falência de uma empresa do porte da
Nissan acarretaria seriam tão desastrosos que impactariam a economia japonesa
como um todo e teriam repercussões internacionais.
A intervenção de Ghosn não obedeceu à teoria da convicção porque não operou
by the book, segundo padrões preestabelecidos e consensuais. Aliás, os adeptos
dessa teoria teriam dificuldade em repensar a hierarquia dos valores, introduzindo
valores incomuns para o Japão: empregados demissíveis que obedecem à lógica do
mercado em vez de empregados vitalícios? Precisariam romper, em nome do lucro,
com tradições seculares. Com efeito, em vez de escolher de maneira binária entre
o aceitável e o inaceitável, Ghosn optou pela análise de riscos e, com o propósito
de preservar a empresa e de revitalizá-la, enfrentou preconceitos, estereótipos e
hábitos arraigados, além de contrariar interesses estabelecidos. Para tanto, desativou
plantas industriais e sacrificou os empregos de parte do pessoal.

Fernando Valeika de Barros. A nova aposta de Carlos Ghosn. Época Negócios, dezembro de 2010.
3

148
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

Um dilema moral
A irmã Mary McBride, que dirigia um hospital católico em Phoenix, Arizona, autori-
zou um aborto de emergência para salvar a vida de uma mulher acometida de doença
grave. Quando o bispo da região soube da decisão, determinou imediatamente a
excomunhão da irmã.
O reverendo John Ehrich, responsável pela “ética médica” da diocese, sentenciou:
“Ela consentiu em matar uma criança não nascida.” E prosseguiu: “De fato, em certas
situações, a mãe pode morrer com a criança. Mas − e é esta a perspectiva católica −,
você não pode fazer o mal para obter o bem. O fim não justifica os meios.”
Todavia, o reverendo Thomas Doyle, um advogado canônico, disse que o caso
indica a “enorme injustiça” da Igreja no modo como lida com os escândalos. Afinal,
nenhum padre pedófilo foi excomungado.4

Duas definições do que seja o bem se confrontam aqui: a irmã Mary, diretora
do hospital, considerou a vida da paciente mais importante do que o feto; o
reverendo Ehrich, diretor de ética médica, considerou o feto mais importante
do que a paciente, em nome do princípio de que os fins não justificam os meios.
Para ele, salvar a paciente à custa do feto é um mal, um meio impuro para obter
um fim, ainda que bom. Para a irmã, sacrificar o feto foi um mal menor para
evitar um mal maior, que seria a morte de ambos (a paciente e o feto), e também
poderia ser considerado um mal necessário para salvar a vida da paciente.
Essas duas decisões obedecem à razão ética e têm caráter universalista, embora
se excluam mutuamente. Uma decisão se baseia na teoria ética da convicção, outra
se baseia na teoria ética da responsabilidade. De um lado, não se faz o aborto,
mesmo que à custa da vida da paciente, em nome da pureza dos meios − dever
universalista. De outro, em situação de emergência e havendo condições técnicas,
preserva-se a vida da paciente, que é um fim universalista, ainda que à custa do
feto − o “meio impuro” se justifica.
A teoria ética da convicção é uma teoria dos deveres universalistas que con-
fronta categorias dicotômicas, unidades irreconciliáveis, binômios maniqueístas.
Nela prevalece o rigor das escolhas discretas: tudo ou nada, luz ou sombra, retidão
ou descaminho. Os que se orientam por ela:
j
Aplicam princípios ou ideais às situações concretas, materializando o senso
do dever.
j Agem segundo padrões já regrados e consagrados, de acordo com impera-
tivos ou mandamentos universalistas: a ação é fruto de respostas prontas,
já assimiladas.

Institute for Global Ethics. Ethics Newsline, 24 de maio de 2010.


4

149
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

j Consideram-se obrigados a assumir determinadas posições, embora sai-


bam que desfrutam da liberdade para transgredir as normas estabelecidas.
j Conferem primazia aos procedimentos, sem se importar com as conse-
quências: basta serem inspirados por valores universalistas e usar meios
puros.
j
Obedecem a uma lógica formal: “Faça o que deve ser feito.”
É importantíssimo sublinhar que os valores adotados pela teoria da convicção
são obrigatoriamente universalistas, quer dizer, interessam a todos. Assim, não
valem quaisquer dogmas, princípios ou ideais redentores (os nazistas também
tinham), quaisquer tradições antigas ou convenções costumeiras (seitas fun-
damentalistas também têm), quaisquer normas codificadas (as máfias também
têm). Só há legitimidade ética nas decisões tomadas se forem produzidos bens
universalistas (bem comum ou bem restrito), ou seja, se houver práticas altruístas
ou autointeressadas.
É preciso precaver-se, pois, contra a armadilha da justificação moral que
confissões religiosas, ideologias políticas, doutrinas econômicas ou credos em-
presariais conferem. Porque seus valores podem ser particularistas e implicar
práticas parciais ou egoístas (favorecem poucos em detrimento de muitos em
situações que não são extremas). Não foi esse o caso do reverendo John Ehrich,
que optou pelo “valor da vida”, que é universalista.
A teoria ética da responsabilidade, por sua vez, é uma teoria dos fins uni-
versalistas que opera com base em uma análise situacional: diagnostica situações
concretas e antecipa as repercussões que uma decisão pode provocar. Dentre
as opções possíveis, aquela que traz benefícios maiores à coletividade ou evita
maiores malefícios acaba sendo adotada. Os que se orientam por ela:

j
Deliberam em torno de cenários, fundados no senso de realidade.
j Agem a partir de uma análise de riscos, segundo um cálculo racional
universalista: a ação é fruto de respostas construídas para alcançar um
bem maior ou para evitar um mal maior.
j Consideram-se livres para assumir determinadas posições, embora saibam
que serão responsabilizados por isso.
j Medem os custos e benefícios, tomam as devidas precauções e adotam
salvaguardas a fim de alcançar resultados que interessem a todos: fins
universalistas justificam os meios utilizados.
j
Obedecem a uma lógica prática: “Faça o necessário para evitar danos
maiores e obtenha efeitos coletivamente benéficos.”

Para tomar “decisões responsáveis”, é preciso desenvolver uma incessante


vigilância, dispor de objetividade e maturidade intelectual, submeter os cenários
projetados ao senso crítico — valer-se, por exemplo, do “jogo do advogado do
150
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

diabo”.5 Porque há sempre o perigo das racionalizações mistificadoras, que con-


fundem casuísmos particularistas com fins universalistas, raciocínios capciosos
que disfarçam ações antiéticas.

O direito do abutre
Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma
vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que
só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela
de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas
horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções.
Vimos isso nos dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro.6 Mesmo pes-
soas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem
haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.
Mas, do fundo de nossas tradições, vem também um dos nossos mais de-
ploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida, o saque do que restava
das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar
apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de
outros. Ou o roubo, puro e simples, como fez aquele funcionário da UERJ que, antes
de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga.
Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas
para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a
história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o
oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação con-
tra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.
O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra
modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata
de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns,
que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque
a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém
indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em
situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome
da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos
em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte,
em face da qual a civilização é uma quimera.7

Essa tragédia de dimensões épicas revela os traços ambíguos dos padrões cultu­
rais brasileiros: a solidariedade do altruísmo extremado − lição de generosidade

5
Alguém é escolhido para argumentar contra certa posição e o faz com destemor e acuidade, a fim de que a
validade e a solidez de seus fundamentos sejam verificadas.
6
A maior catástrofe natural da história do país foi causada por deslizamentos devastadores (“corridas de
lama”) que atingiram 16 municípios da Região Serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011. Dezenas de
milhares de pessoas ficaram desabrigadas ou foram desalojadas. Até 17 de fevereiro, o número contabilizado
de mortos chegou a 905.
7
José de Souza Martins. O direito do abutre. O Estado de S. Paulo, 23 de janeiro de 2011.

151
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ministrada sob a forma de tempo de dedicação ou de recursos materiais − convive


com pilantras que saqueiam casas de vítimas ou que desviam parte das doações
que vieram dos mais longínquos recantos do país. São episódios que desvelam a
face hedionda do egoísmo e da moral do oportunismo em ação.
Outro retrato perturbador é saber que a razão ética em sua mais pura expressão
(bombeiros, militares e moradores irmanados na busca de mortos e feridos) coexiste
com a racionalização antiética de especuladores que se aproveitam da vulnerabili-
dade e do desespero de seus conterrâneos para catapultar os preços de produtos de
primeira necessidade. Desses eventos resulta um quadro dramático em que valores
universalistas, como a decência, a coragem e o desprendimento, coabitam com valores
particularistas, como a ganância, a malevolência e a mesquinharia.

9.3.  Exercício: O que fazer? (9)


Este exercício visa aplicar alguns dos conceitos aprendidos: descreve 10 situa-
ções e propõe quatro possíveis respostas para cada uma.
j
Em um primeiro momento, leia as respostas e defina para si mesmo qual
lhe parece a mais adequada.
j
Em um segundo momento, procure qualificar cada uma das respostas,
obedecendo ao seguinte crivo: qual é a racionalidade que a ação expressa?

Utilize o seguinte critério:


1. Razão ética porque realiza deveres universalistas, portanto altruístas ou
autointeressados, e se orienta pela teoria ética da convicção (TEC).
2. Razão ética porque realiza fins universalistas, portanto altruístas ou
autointeressados, e se orienta pela teoria ética da responsabilidade (TER).
3. Racionalização antiética (RA) porque realiza fins particularistas, portanto
egoístas ou parciais.

O gabarito (9) comentado se encontra no Anexo.

SITUAÇÃO RESPOSTA
1. Você é o almoxarife de uma indústria. O pessoal está fazendo O QUE VOCÊ FAZ?
horas extraordinárias porque houve um acúmulo de pedidos
e o responsável pela programação falhou. Segundo um en-
carregado que o procura, uma peça da máquina alimentadora
quebrou e 30 homens estão parados.
Ele lhe pede uma peça de reposição e alega que qualquer atraso
pode ocasionar uma pesada multa contratual. Você verifica o
estoque e encontra a peça solicitada. Alívio geral. Ocorre, porém,
que o supervisor dele não se encontra para rubricar a requisição,
conforme reza o Manual de Normas e Procedimentos.

152
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

SITUAÇÃO RESPOSTA
1A Você diz que nada pode fazer, já que a diretoria sempre frisou que
normas são feitas para obedecer. Como ele não achou superior
algum que pudesse rubricar a requisição, a peça só poderá ser
entregue quando alguém chegar e puder preencher os requisitos.
Sem disciplina e respeito à hierarquia, não há organização que se
sustente.
1B Você entrega a peça em confiança ao encarregado e lhe pede
para manter o devido sigilo. Manda-o também imitar a rubrica do
supervisor na requisição.
1C Você lhe explica que irá assumir o ônus da entrega da peça a
despeito da norma − após haver rapidamente checado a situação
in loco e verificado que a multa contratual existe. Prepara um re­-
latório que relata a situação e que será encaminhado na primeira
hora da manhã à Área de Controles Internos.
1D Você lhe explica que, embora o conheça há 10 anos e que ele seja
de absoluta confiança, a norma é clara e não autoriza a entrega
de material sem a devida formalização. Pede-lhe para ligar para a
casa do supervisor, ou de outro superior, para que alguém resolva a
pendência. Afinal, você está aqui para obedecer às ordens.

2. Você é o responsável pela ampliação das instalações O QUE VOCÊ FAZ?


da empresa, e a inauguração já tem data marcada. Um
fiscal da prefeitura aparece no canteiro e lhe diz que vai
interditar a obra porque a altura dos degraus das escadas in-
ternas tem 2-3 mm a menos que o exigido. Você telefona para a
construtora contratada e verifica que a alegação do fiscal é dis-
cutível, pois a norma existente não autoriza uma interpretação
tão rígida. O jeito do fiscal é de quem quer uma propina.
2A Você consulta a chefe da área jurídica de sua empresa e pede
orientação. Ela afirma, diante de dois colegas advogados, que
existe defesa adequada caso haja um embargo. Ninguém contesta.
Você então dispensa o fiscal sem mais.
2B Você avalia os riscos de uma possível demora na inauguração e
considera melhor contratar uma “consultoria” do fiscal, que a
construtora certamente irá bancar, pois seu contato na empreiteira
deixou isso claro na conversa que você manteve com ele.
2C Você dispensa o fiscal, pedindo-lhe um tempo. Aí, com o aval de
sua diretoria, procura o chefe dele na repartição. Diz que veio es-
clarecer os fatos. Só consegue um muxoxo por resposta. Aí decide
contatar novamente o fiscal, que pede uma “ajuda”. Você então
finge que aceita pagar o suborno e combina um flagrante com a
ouvidoria da prefeitura e com a polícia.
2D Você chama o engenheiro da construtora responsável pela obra
e lhe pede para dar um jeito no fiscal, não importa como, porque
você não quer saber de dor de cabeça.

3. Você está sendo cogitado para uma promoção e dirige uma O QUE VOCÊ FAZ?
equipe que costuma ter boas ideias. Foi convidado para um
encontro de trabalho com superiores seus.

153
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

SITUAÇÃO RESPOSTA
3A Você apresenta algumas ideias inovadoras sem indicar a origem.
3B Você aproveita a oportunidade para lançar as melhores ideias e dá
a quem as formulou o respectivo crédito.
3C Você relata que, em seus limites orçamentários, planeja colocar em
prática uma ou outra inovação que sua equipe desenvolveu e lança
uma ideia que ultrapassa sua seara, dizendo que seu pessoal está
ansioso para pôr mãos à obra.
3D Você se abstém de dar ideias, ainda que a empresa incentive as
iniciativas e as inovações, porque acha que alguém irá se apropriar
delas.

4. Você é gerente de conta e um cliente tem dinheiro para aplicar O QUE VOCÊ FAZ?
em fundos. As metas anuais do banco são bastante exigentes.
O cliente confia em sua orientação.
4A Você aplica o dinheiro em um fundo agressivo, omitindo esta
informação ao cliente.
4B Você o aconselha a aplicar o dinheiro em um fundo conservador,
pois conhece seu perfil, embora isso não contribua muito para que
você atinja as próprias metas.
4C Você lhe descreve as opções de que dispõe, com as vantagens e
desvantagens que cada uma delas implica, deixando-o escolher
livremente. Se ele insistir para que o aconselhe, você não omite
o fato de que a escolha de um fundo agressivo se encaixaria nas
metas que você tem a cumprir. Mesmo assim, sugere-lhe um fundo
conservador.
4D Você lhe oferece um fundo de investimento bem conservador, do
tipo popular, cujo depósito inicial mínimo é de R$1 mil. Isso contri-
bui para suas metas, porque o rendimento do fundo ganha apenas
da caderneta de poupança e a taxa de administração é de 4%.

5. Você é gerente de uma importante unidade de negócio numa O QUE VOCÊ FAZ?
cidade do interior e conhece praticamente todo mundo. Os
clientes da empresa são os fornecedores de tudo o que se
vende na cidade, tanto bens de consumo como bens duráveis.
Sua empresa não dispõe de uma disposição específica sobre a
aceitação de presentes ou de favores.
5A Você recusa sistematicamente receber o que quer que seja. Mas,
se for muito constrangedor devolver algum presente que lhe foi
mandado, você o entrega para a associação dos funcionários de
sua empresa para ser sorteado e faz questão de o fornecedor saber
disso.
5B Você aceita o tratamento diferenciado que lhe dispensam,
com as vantagens decorrentes, já que é o gerente da empresa
mais importante da cidade. Afinal, seria uma falta de cortesia
recusar.

154
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

SITUAÇÃO RESPOSTA
5C Você faz transações normais na cidade, sem aceitar presente
ou favor algum, ainda que os fornecedores queiram tratá-lo de
forma exageradamente amigável. Mas, diante dos embaraços
que acabam surgindo, você explica em alto e bom som por que é
importante manter uma relação profissional imparcial, ainda que
tal assertividade não seja praxe no Brasil.
5D Você torce para que o transfiram para uma cidade grande em que as
relações impessoais prevalecem, evitando assim o dilema. Enquanto
isso não acontece, vai aceitando uns agrados de vez em quando.

6. Você recebe de seu superior orientação contrária aos valores O QUE VOCÊ FAZ?
da empresa e questiona na hora seu fundamento. A tentativa
de esclarecimento, entretanto, revela-se inútil.
6A Você deduz que, sendo assim, não há razões para esquentar a
cabeça com valores enunciados, mas não praticados.
6B Você comunica imediatamente o fato a seu diretor e lhe diz que
precisa de uma urgente transferência de área para não ter de
desobedecer às ordens recebidas.
6C Você se conforma porque vai ver que não entendeu direito a
relação entre a orientação dada e os valores da empresa.
6D Você verifica junto aos colegas se a interpretação que fez é correta.
Caso assim seja, procura formalmente seu diretor e lhe diz que irá
desobedecer ao superior.

7. Você é gerente de uma agência bancária numa cidade cujo O QUE VOCÊ FAZ?
maior empregador é seu cliente. Este o visita e lhe confidencia
que precisa de uma linha de crédito para realizar uma impor-
tação de peças fabricadas na China. Logo depois, o cliente
formaliza o pedido, de maneira que você não tem como não dar
andamento ao crédito. Ocorre que outro cliente seu é fornece-
dor dessas mesmas peças, além de ser seu amigo de infância.
Pelo cúmulo do azar, ele lhe telefona, falando que precisa de um
empréstimo para modernizar sua linha de produção. Diz que
ouviu rumores de que o maior empregador está se preparando
para fechar contratos de exportação e que, portanto, precisará
assegurar a qualidade de seus produtos e fornecer preços
competitivos em termos internacionais.
7A Você analisa a solicitação de empréstimo de seu amigo sem levar em
conta o que sabe sobre a situação toda, pois está convencido de que
os bens dele podem perfeitamente cobrir a dívida a ser contraída.
E concede o empréstimo, ainda que preveja que ele vá quebrar.
7B Você desaconselha o amigo, argumentando que, até que ele possa
comprar e instalar equipamentos novos, treinar seu pessoal e
alcançar custos compatíveis, o maior empregador provavelmente
terá comprado as peças em outro lugar, de modo que ele precisa
sopesar com muita calma os riscos que corre. Se ele insistir, você
recusa o empréstimo, dizendo que não se conforma aos parâme-
tros do banco, mesmo que isso signifique algum estremecimento
na relação de amizade.

155
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

SITUAÇÃO RESPOSTA
7C Você procura ganhar o máximo de tempo possível para que seu
amigo tenha a oportunidade de descobrir a verdade por conta pró-
pria. Mas, esgotado o prazo regulamentar de análise da solicitação,
você lhe comunica que o pedido foi infelizmente rejeitado por não
atender aos parâmetros exigidos pelo banco (você sabe que ele
não poderá pagar).
7D Você conta tudo a seu amigo, mostrando-lhe que o maior em-
pregador já decidiu importar da China. Mas toma cuidado para lhe
pedir que mantenha rigoroso sigilo sobre a confidência feita.

8. Você está cursando uma especialização profissional. Durante O QUE VOCÊ FAZ?
um seminário, um colega seu o provoca e põe em xeque sua
competência profissional. Para provar que sabe das coisas, vo-
cê deveria usar uma informação confidencial de sua empresa.
8A Você relaxa e vai em frente porque, afinal de contas, seus colegas
de faculdade não têm condições de saber se a informação é
confidencial.
8B Você procura se esquivar de usar o que sabe porque isso pode ser
manobra do colega para obter informações confidenciais. Está
convencido de que é melhor não responder à provocação.
8C Você mostra ao colega que o sigilo profissional não lhe permite
elucidar o que solicitou, ainda que ele possa alegar que você des-
conhece o assunto.
8D Você argumenta assertivamente que ele não precisa desqualificar
os outros para provar seu ponto de vista e que é lamentável ver um
colega lançar mão de uma tática de intimidação para obter uma
informação confidencial. De maneira que você se reserva o direito
de não responder.

9. Você cometeu um erro cujos reflexos serão negativos, embora O QUE VOCÊ FAZ?
sejam de difícil detecção.
9A Você se abstém de pensar no caso, pois errar é humano e, somente
se o fato for detectado, relatará o que aconteceu.
9B Você comunica imediatamente o fato a seu superior hierárquico.
9C Você procura encobrir o equívoco para não comprometer sua
reputação profissional: dilui os efeitos negativos ao longo do
tempo e manobra de modo a afastar quaisquer checagens.
9D Você procura entender objetivamente o que aconteceu, sem deixar
de assumir o erro diante de seu superior hierárquico, e formula um
procedimento preventivo que põe à disposição da empresa.

10. Você é gerente de uma agência bancária. Um cliente em via- O QUE VOCÊ FAZ?
gem se encontra em sua cidade e perdeu o cartão de crédito do
banco, assim como o talão de cheques. Ele já cancelou ambos
os instrumentos, mas precisa de dinheiro para fazer face a des-
pesas de emergência.
10A Você lhe explica educadamente que não há o que fazer, pois o sis-
tema do banco, infelizmente, não permite providência alguma.

156
Capítulo 9: Como tomar decisões éticas?

SITUAÇÃO RESPOSTA
10B Você lhe diz que dá nisso não tomar cuidado com os documentos.
Afinal, este mundo está cheio de malandros e ele tem de dar graças
a Deus por não ter perdido a carteira de identidade ou a vida.
10C Você acessa o banco de dados, faz uma cuidadosa e rápida
verificação do histórico do cliente e libera um saque em dinheiro,
ainda que isso não esteja explícito nos procedimentos.
10D Você se prontifica a telefonar para o gerente da agência dele
em São Paulo para que contribua de algum modo para solucionar
o problema.

O gabarito deste exercício (9) se encontra no Anexo.

157
Capítulo

10
A título de conclusão

À semelhança de outras ciências cujos conhecimentos se convertem em


tecnologias, a Ética Científica gera valor quando aplicada a situações concretas.
As práticas éticas, por exemplo, beneficiam os públicos de interesse e multiplicam
seus feitos. Apoios mútuos e parcerias (altruísmo restrito), serviços e bens pú-
blicos (altruísmo imparcial), doações e voluntariados (altruísmo extremado)
contradizem o velho chavão dos detratores que consideram a Ética uma perda
de tempo e, pior, um desperdício de recursos.
É bem verdade que, limitar-se às especulações filosóficas, pode ser frustrante.
Mas dispor de uma matriz teórica científica, com conceitos universais que mais
parecem bisturis cirúrgicos, é coisa totalmente diversa. Traz benefícios variados a
começar pela conquista de uma boa reputação empresarial. Esta reduz drastica-
mente os riscos de processos administrativos ou judiciais, previne os desajustes
entre as expectativas dos públicos de interesses e as formas de operar as empresas,
ilumina a questão da responsabilidade corporativa, garante o benefício da dúvida
em caso de crise, converte-se em barreira protetora diante dos concorrentes,
confere um crédito de confiança para as iniciativas empresariais, fundamenta
a problemática da sustentabilidade empresarial, valoriza os ativos tangíveis e
intangíveis... Em resumo, agrega valor significativo aos negócios.
Basta conferir no mercado acionário os índices específicos das companhias
socialmente responsáveis e compará-los com os índices das demais companhias
listadas nas bolsas mundiais. Por exemplo, a série histórica do valor das ações
que integram os índices da Bovespa e das empresas sustentáveis mostra que,
no longo prazo, essas empresas se descolam do índice geral, gerando retornos
maiores. Mesmo quando o desempenho não é superior aos índices referenciais
dos respectivos mercados, os resultados ficam muito próximos. Temos aí um
claro indício de que as orientações éticas são rentáveis ou, na pior das hipóteses,

159
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

não provocam prejuízos aos negócios, a contrapelo da falácia que estigmatiza


como “bobagem” quaisquer intervenções organizacionais que visem estabelecer
um “compliance ético”.

Figura 10.1  Índice de Sustentabilidade Empresarial.

Agora comparemos o índice Ibovespa com o Índice de Governança Corporati-


va: novamente, as empresas que se submetem ao crivo de critérios exigentes e que
exercem boas práticas − tais como a transparência nas informações fornecidas
(disclosure), a responsabilização na prestação de contas (accountability), a equi-
dade no trato dos públicos de interesse (fairness) e a conformidade corporativa
às políticas e aos procedimentos (compliance) − apresentam resultados consis-
tentemente superiores ao restante do mercado acionário.

160
Capítulo 10: A título de conclusão

Figura 10.2  Índice de governança corporativa.

Em suma, conhecer cientificamente os fenômenos morais e preparar-se


para intervir com competência sobre os eventos que tenham implicações éticas
propicia significativa vantagem competitiva às empresas, a começar pela “licença
para operar”. E, conforme vimos ao longo do livro, não há grandes segredos em
dominar essas ferramentas e em utilizá-las de forma judiciosa. Crucial, no caso,
é saber que tal discernimento tem alto impacto social, viabiliza a perenidade
das empresas e, sobretudo, pode contribuir para assegurar a habitabilidade do
planeta. Haveria melhor jogo de soma positiva para os negócios?

161
Anexo

Gabaritos

Gabarito (1)
O “perfil das posturas morais” foi montado com base nas duas morais gerais
brasileiras: as respostas inscritas na coluna I correspondem à moral da integri-
dade; as inscritas na coluna II correspondem à moral do oportunismo.1
1. A moral da integridade celebra a inteireza e faz a apologia da virtude, pois
sentencia: “seja uma pessoa de bem!”. Constitui um código oficial, público
e altruísta, e visa obter um bem universalista e consensual que interessa a
todos, isto é, visa ao bem comum.2
2. A moral do oportunismo celebra a malícia e faz a apologia da esperteza,
pois prega: “leve vantagem em tudo!”. Constitui um código oficioso,
clandestino e egoísta, e visa obter um bem particularista e abusivo, um
bem restrito individual que causa dano aos outros.3
Dualismo e ambivalência marcam os padrões morais brasileiros por variadas
razões históricas. Citemos entre outros:
j
A dissociação entre a retórica missionária dos senhores de escravos e a
brutal desumanização desses mesmos escravos tratados como gado.
j O descompasso entre as declarações públicas, bombásticas e honoráveis
(todos são “homens bons”, desde o período colonial), e os atos praticados
por gente desbravadora, gananciosa, matreira e espoliativa.
j A disjunção entre a doutrina católica, que hostiliza a riqueza e enaltece a
pobreza, e algumas práticas clericais de apego aos bens materiais.

1
Para uma análise mais detalhada das duas morais gerais brasileiras ver, do autor: Ética empresarial: o ciclo
virtuoso dos negócios. 4. ed. revista. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Capítulos 5 e 6.
2
Uma moral é um sistema de normas morais, um conjunto codificado de normas que expressa os interesses
de uma coletividade histórica, seja uma sociedade, um setor social, uma classe social, uma categoria social
ou uma organização que tenha uma cultura organizacional própria.
3
O bem restrito, seja individual ou grupal, não precisa necessariamente ser nocivo, pois é perfeitamente
possível satisfazer interesses pessoais ou grupais sem lesar outros como veremos.

163
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

j
O sincretismo religioso e cultural que, ao tentar conectar domínios subs-
tancialmente distintos (os mundos sobrenatural e natural, as esferas
pública e privada), invoca entidades mediadoras − orixás e “cavalos”;
espíritos e médiuns; anjos, santos, “Nossas Senhoras” e padres; patronos,
coronéis, patriarcas, padrinhos, cabos eleitorais, despachantes −, todos
intermediários que denunciam a polaridade desses domínios.
Em tese, a postura modal do respondente corresponde, naturalmente, à pos-
tura que obteve a maior pontuação.
j
Para poder declarar-se “íntegro”, é preciso ter obtido 30 pontos na coluna
I porque a moral da integridade não autoriza deslize algum, uma vez que
opera de forma maniqueísta (sim/não; preto/branco; 8/80).
j Quem somou de 25 a 29 pontos na coluna I faz ocasionalmente alguma
concessão ao oportunismo e, portanto, vive em uma situação de “dubie-
dade moderada” numa espécie de purgatório.
j Quem somou de 20 a 24 pontos na coluna I apresenta uma “dubiedade
acentuada”, tendo adentrado a terra de ninguém do oportunismo.
j
Quem somou de 19 pontos para baixo na coluna I adere francamente ao
oportunismo.

Para situar-se, vale a pena cotejar os resultados obtidos com os de um amplo


leque de executivos brasileiros a quem foi aplicado esse mesmo exercício.

Figura A.1  Perfil das posturas morais.

164
Anexo ::Gabaritos

Duas observações se impõem, pois os dados precisam ser apreciados com


extrema cautela:
1. A primeira é que as médias assinaladas são aritméticas e carecem de
tratamento estatístico, de maneira que os seus resultados devem ser lidos
pelo que valem − de forma impressionista.
2. A segunda é que ferramentas da espécie costumam sofrer um viés de
desejabilidade ou um desvio retórico. De fato, por mais que se peça sin-
ceridade aos respondentes, disposições profundas levam-nos a se guiar
pelo discurso oficial da integridade.

Apesar dessas ressalvas, não deixa de ser significativo o fato de a maioria


dos respondentes (de 24 pontos para baixo) aderir à moral do oportunismo.
Mais ainda: fica patente a ambiguidade da maior parte da amostra, posto que os
adeptos assumidos da integridade (30 pontos), assim como os adeptos assumidos
do oportunismo (de 19 pontos para baixo), correspondem a apenas um quarto
dos respondentes.
Por fim, é interessante observar as diferenças que as várias áreas de atuação
dos executivos indicam (Figura A.2).

Figura A.2  Perfil moral por áreas.

Assim, a área financeira lidera a propensão ao oportunismo, logo seguida pelas


áreas de marketing, tecnologia da informação, área comercial e, curiosamente,
auditoria, que se divide em duas metades! Em contrapartida, a área de recursos
humanos é mais propensa à integridade. Vale também notar que os respondentes
das entidades públicas são executivos de carreira, com boa formação técnica,
grande parte concursada (e não os de nomeação política), e seu desempenho
contradiz o preconceito corrente quanto à sua conduta. De modo que a natureza
da amostra, sem dúvida, afeta os resultados.
165
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Gabarito (2)
Por que alguns desses fatos são objetos de estudo da Ética e outros não? Porque
os fatos “morais” (objetivos de estudo da Ética) causam prejuízos ou benefícios
aos outros, são eticamente negativos ou eticamente positivos, enquanto os demais
fatos são eticamente neutros no tocante ao bem ou ao mal: são fatos “sociais”
(objetos de estudo da Sociologia).

FATO EXPLICAÇÃO
1. M A moça prejudica um eventual portador de deficiência física (fato eticamente
negativo).
2. S O sujeito não prejudica ninguém nem beneficia outros (fato eticamente neutro).
3. M As mulheres fumantes provocam fumo passivo e prejudicam a saúde das
crianças (fato eticamente negativo).
4. S A mulher simplesmente respeita as regras (fato eticamente neutro).
5. M O gerente de banco cumpre sua meta em detrimento dos melhores interesses
do cliente e põe em risco o relacionamento de longo prazo (fato eticamente
negativo).
6. M O funcionário beneficia a empresa em que trabalha e garante o próprio
emprego (fato eticamente positivo).
7. M O funcionário prejudica a empresa em que trabalha, embora ajude o colega, e
arrisca ser demitido (fato eticamente negativo).
8. S O funcionário cumpre suas obrigações contratuais (fato eticamente neutro).
9. M A mulher procura não ocupar duas vagas ou dificultar as manobras dos motoris-
tas que queiram ocupar as vagas contíguas (fato eticamente positivo).
10. M A empresa cuida da saúde de seus funcionários (fato eticamente positivo).
11. M O fiscal de obras age com integridade, de acordo com os melhores interesses da
empresa em que trabalha (fato eticamente positivo).
12. S O fiscal de obras cumpre suas obrigações profissionais (fato eticamente neutro).
13. M O fiscal de obras foi corrompido e prejudica a empresa em que trabalha (fato
eticamente negativo).
14. S O gerente de banco está agindo de acordo com os procedimentos burocráticos
(fato eticamente neutro).
15. M O vendedor de loja de eletrônicos instrumenta o cliente para que este tome
uma decisão informada (fato eticamente positivo).
16. M O vendedor da loja de eletrônicos está agindo de má-fé ao sonegar informação
valiosa (fato eticamente negativo).
17. M O camelô pode até estar falando a verdade porque existem marcas clonadas,
mas a dúvida ficará sempre no ar. Além do mais, a mercadoria deve ser
contrabandeada, haja vista o preço (fato eticamente negativo).
18. M O comprador está combatendo a sonegação fiscal (interesse social) e
defendendo os próprios interesses, uma vez que faz jus à parte do imposto (fato
eticamente positivo).
19. S O comprador agiu de forma rotineira (fato eticamente neutro).

166
Anexo ::Gabaritos

FATO EXPLICAÇÃO
20. M O cliente deve estar carregando dinheiro frio e não quer que suas transações
sejam detectadas pelos órgãos tributários (fato eticamente negativo).

Gabarito (3)
LEGÍTIMO FATO
1. Sim Defender-se contra espionagem econômica faz sentido porque o concorrente
quer tirar proveito disso e, por isso mesmo, precisa ser processado e coibido.
2. Sim O assediador precisa ser contido e sofrer as sanções cabíveis para não persis-
tir em seu abuso.
3. Sim O prejuízo que o cartel causa ao mercado precisa cessar por meio de seu
desmantelamento, e a punição das empresas participantes purga o mercado
de um conluio que prejudica a livre-concorrência.
4. Não Uma denúncia baseada em boatos, ou destituída de provas, cairá no vazio e
levantará dúvidas a respeito das intenções de quem a faz: será que você não
estaria querendo prejudicar o concorrente?
5. Sim Doar recursos para ajudar pessoas necessitadas em situações de
calamidade pública é válido, ainda que reduza os dividendos dos acionistas
(desde que, é claro, os executivos tenham autorização para tanto).
6. Sim É eticamente legítimo que os clientes lesados boicotem uma empresa
abusiva e até divulguem o fato para angariar mais apoios.
7. Sim Em prol da saúde pública, a abertura de processo visa não só que a
empresa seja multada, mas, sobretudo, que ela seja impedida de perseverar
em suas ações.
8. Não Embora os conselhos sejam bem-vindos, o perdão da multa mediante
presentes corresponde a suborno: a multa é um dever de ofício, um ato
público que não pode depender do arbítrio do fiscal.
9. Não O peso da carga tributária não justifica a sonegação de impostos. O bom
combate passa por pressões cidadãs para que haja uso competente dos
recursos públicos, redução de impostos e simplificação do sistema tributário.
10. Sim A resistência é legítima porque a invasão e a depredação de propriedade
produtiva não se justificam: correspondem a uma tática violenta que
prejudica não só o dono específico, mas o próprio direito de propriedade.

Gabarito (4)
1. E 2. A 3. A 4. E 5. A 6. E 7. A
8. E 9. E 10. A 11. E 12. E 13. E 14. E
15. E 16. A 17. A 18. A 19. E 20. E 21. E
22. E 23. A 24. A 25. A 26. E 27. E 28. A

167
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

Gabarito (5)
1. P 2. AR 3. AR 4. P 5. P 6. AR 7. P
8. AR 9. P 10. P 11. P 12. AR 13. AR 14. P
15. P 16. P 17. P 18. AR 19. AR 20. P 21. P
22. P 23. AR 24. AR 25. P 26. AR 27. P 28. P
29. P 30. AR 31. P 32. P 33. AR 34. AR 35. P
36. P 37. P 38. AR 39. AR 40. P 41. P 42. AR

Gabarito (5A)
1. AR 2. E 3. A 4. P 5. AR 6. P 7. P 8. A
9. AR 10. AR 11. E 12. P 13. AR 14. P 15. P 16. E

Gabarito (6)
1. AI 2. AI 3. AE 4. AI 5. AE 6. AE 7. AE
8. AI 9. AE 10. AE 11. AI 12. AE 13. AE 14. AI
15. AE 16. AI 17. AE 18. AI 19. AI 20. AI 21. AI
22. AI 23. AI 24. AE 25. AI 26. AE 27. AI 28. AI

Gabarito (6A)
O fumo, embora legal − assim como as armas, as bebidas alcoólicas e o jogo
de azar em alguns países −, obedece à racionalização antiética em função dos
males que causa. Isso não quer dizer que deva ser proibido, embora possa sofrer
algum controle público. Numa sociedade liberal, os cidadãos devem ser livres
em suas escolhas, respeitadas duas condições: amplo acesso às informações
para decidir com conhecimento de causa e ciência de que liberdade supõe res-
ponsabilidade.

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


1. E Está comprovado cientificamente que o fumo passivo faz mal e
quem o provoca está tendo prática abusiva de caráter egoísta.
2. AE Contribui para o esclarecimento da população a respeito dos males
do tabagismo e o faz voluntariamente às suas próprias custas.

168
Anexo ::Gabaritos

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


3. AR Respeita os interesses alheios, consciente de que fumar pode
causar dano aos outros.
4. P Produz algo que afeta a saúde pública e, embora a prática seja
legal, não deixa de ser particularista.
5. A A decisão quanto a fumar ou não fica à discrição de cada qual,
desde que não prejudique outrem. Mas, se o fumante precisar da
assistência da saúde pública para cuidar de doença decorrente do
vício, a situação assume caráter egoísta, pois haverá desembolso de
recursos públicos.
6. AI A proibição legal desfruta de legitimidade ética, à medida que evita
prejudicar os não fumantes e, mais ainda, contribui para não piorar
o quadro sanitário dos próprios fumantes.
7. E Cobrar uma “comissão por fora” para que um fornecedor receba
o pagamento de sua fatura é uma atitude egoísta por parte do
gerente da tesouraria.
8. AI Havendo colaboração com a polícia, montagem de flagrante e
punição do gerente, todo mundo ganha com o combate eficaz à
corrupção.
9. AR Ao não se submeter à extorsão, o fornecedor pode receber com
atraso ou ser descredenciado pela empresa compradora, mas
preserva também sua reputação e não compromete seus lucros ao
não compactuar com a chantagem.
10. AE Doar recursos ou dedicar tempo voluntário ao combate à corrup-
ção é um sacrifício louvável em prol de bem-estar geral.
11. P O fato de ser vítima não exime o fornecedor de cumplicidade com
a corrupção.

Gabarito (7)
ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO
1. RA/P Quem ganha com o conluio são os participantes do acordo
clandestino, com prejuízo dos concorrentes e da empresa con-
tratante que compra produtos, insumos ou serviços com preço
acima do mercado. Em tese, ela terá de repassá-los aos clientes e
terá menores condições de competir no mercado, donde um per-
nicioso efeito em cascata.
2. RA/E As pessoas sabem onde trabalha o executivo, esteja ele portando
ou não o crachá. De maneira que o comportamento fora do traba-
lho interessa, sim. Afinal, dependendo das atitudes assumidas em
público, pode afetar a imagem da empresa.

169
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


3. RA/P ou A resposta depende dos meios que forem utilizados. Se forem
RE/AI meios ilícitos (propina, por exemplo), a prática é parcial porque
põe em jogo um corrupto e um corruptor. Se forem meios lícitos
(denúncia, flagrante, pressão cidadã para que se adotem procedi-
mentos que neutralizem tais abusos, como programas eletrônicos
que eliminem intermediários), a prática é altruísta imparcial
porque o combate à corrupção contribui para o bem comum.
4. RE/AR Visa afastar qualquer favorecimento pela distinção entre presen-
tes, capazes de influenciar decisões, e brindes, que são objetos
sem valor comercial ou de valor ínfimo, recebidos ocasionalmente.
A fronteira entre ambos deve ser traçada com precisão, e cabe à
empresa definir o que fazer com os presentes cuja devolução seja
constrangedora − doação para organização beneficente, sorteio
entre todos os funcionários ou outro procedimento a que se dê
publicidade para desestimular tais cortesias.
5. RA/P O custo de um almoço ou de um jantar em restaurante fino já
ultrapassa o limite aceitável do “brinde” que um funcionário
público pode receber. Trata-se de “presente”, principalmente
considerando o “mimo” final, que pode ser interpretado como
forma de aliciamento.
6. RE/AI Condizente com a defesa do bem comum: a pirataria viola os
direitos autorais dos produtores de conteúdo, prejudica a empresa
que gastou dinheiro para a produção do filme e do DVD, assim
como para sua promoção e, por extensão, lesa a indústria cinema-
tográfica como um todo, uma vez que seus bens simbólicos estão
sendo furtados, além de não recolher impostos.
7. RA/P ou Caso o coordenador de RH venha a manipular os resultados do
RE/AR concurso para favorecer o apadrinhado do alto gestor, a prática
é parcial. Mas, caso preserve as regras do jogo, desobedecendo à
orientação recebida, estará sujeito a uma demissão ou uma séria
perseguição, e sua prática será altruísta restrita, pois o assunto
interessa especificamente aos integrantes daquela empresa.
8. RE/AR As salvaguardas foram adotadas: o colaborador alerta a diretoria
para o fato e se declara impedido de gerir o contrato. Caso a
diretoria não descredencie o fornecedor, a transparência das
condutas afasta qualquer suspeita de favorecimento.
9. RA/P Os vereadores estão extorquindo a empresa com o “pedágio” que
exigem, de modo que, conceder-lhes qualquer contribuição finan-
ceira, significa compactuar com a corrupção. Há outros municípios
que oferecem incentivos fiscais sem que necessariamente seja
preciso cooptar a Câmara Municipal ou parte dela.
10. RA/P Autoridade e responsabilidade são indissociáveis: os gestores res-
pondem por aquilo que ocorre em sua área de atuação, inclusive
pelas ações de seus subordinados. E, caso se omitam, tornam-se
cúmplices das infrações e dos erros cometidos.
11. RA/P Há apropriação indevida de recursos federais, uma vez que houve
renúncia fiscal para incentivar a cultura.

170
Anexo ::Gabaritos

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


12. RA/E Normas são feitas para serem obedecidas e não para serem mani-
puladas em proveito pessoal. Caso alguma delas esteja obsoleta
ou inadequada, cabe ao colaborador relatar formalmente o fato e
propor sua revisão.
13. RA/P Aceitar “dançar conforme a música” significa defender interesses
particularistas ao aderir à concorrência desleal que favorece
alguns em detrimento de outros: sonegar impostos, não registrar
empregados, corromper fiscais, comercializar produtos con-
trabandeados, operar com caixa dois etc., que tanto dano provoca
ao bem-estar geral.
14. RE/AI Visa ao bem comum. Os riscos organizacionais não se limitam às
pressões possíveis da sociedade civil, mas à própria perenidade da
empresa, caso faltem matéria-prima ou energia, por exemplo.
15. RA/P Discrimina quem é “diferente”, segrega categorias sociais, fomenta
a intolerância e gera fortes animosidades, pois os alvos das
brincadeiras não acham graça alguma das zombarias (a não ser
que sejam masoquistas...). É caso de bulimento.
16. RA/P Ocorre durante o expediente e prejudica a empresa: desperdiça
tempo de trabalho, dispersa energias, distrai os colegas que
vão cuidar de assuntos pessoais e prejudica o fluxo normal das
atividades.
17. RE/AR ou Caso os descontos conjuntos sejam verdadeiros (situação
RA/P incomum), teríamos uma prática altruísta restrita. Mas, é bem pos-
sível que se trate da formação de cartel, malgrado o eufemismo
dos “descontos conjuntos”. A coordenação de decisões entre em-
presas concorrentes elimina a competição e enseja, por exemplo,
um acordo futuro em torno da obtenção de lucros maiores em
detrimento dos clientes.
18. RA/P Embora as intenções do diretor de RH pudessem visar à mudança
dos padrões culturais vigentes na empresa e seu propósito fosse
altruísta restrito, a iniciativa foi ingênua. Acreditou que o presiden-
te admitiria que fossem discutidos abertamente temas de Ética,
o que contrariava frontalmente as práticas ilícitas da empreiteira.
Acabou sumariamente barrada, reforçando o parcialismo.
19. RE/AR Os supermercados estão reagindo em legítima defesa contra
abusos cometidos por clientes, a fim de preservar o patrimônio
dos acionistas.
20. RE/AE A Novartis doou os remédios num gesto filantrópico.
21. RA/P A demissão voluntária foi autorizada sem que houvesse menção
à devolução dos recursos subtraídos nem a algum outro tipo de
sanção. Houve também promessa de que a fraude seria omitida
nas referências que seriam fornecidas, incentivando de certa
forma a reedição do malfeito. O teor do acordo, condescendente
em uma primeira abordagem, permite presumir que a empresa
quis “comprar o silêncio” do contador por ele deter informações
comprometedoras.

171
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


22. RE/AR O fair play de Andy Roddick o dignifica. Aplicou as regras da moral
esportiva que supõem não só respeito mútuo entre adversários,
mas relações de reciprocidade: cada jogador se identifica com o
outro e procura tratá-lo como gostaria de ser tratado.
23. RA/P Ato de lealdade para com os membros da equipe diretiva da
Enron, não para com os demais públicos de interesse. Pois a
vice-presidente não pretendia delatar as manobras contábeis que
custaram tão caro aos acionistas, investidores e funcionários. Ao
contrário: estava prevenindo seu presidente quanto aos riscos que
os gestores corriam, caso alguém delatasse os malfeitos.
24. RE/AR O estudante fez valer a regra escolar que proíbe a cola, por se
tratar de um expediente que vicia o processo de avaliação. O fato
de colocar seus colegas diante do dilema de honrar seu diploma
ou de maculá-lo com uma fraude cumpriu as normas universi-
tárias, satisfazendo implicitamente as expectativas do professor,
bem como as da faculdade.
25. RA/P Abuso por parte do pai e do filho: os sachês de mostarda, ketchup
ou maionese ficam à disposição dos clientes para consumo
imediato e não para serem levados para casa − sobretudo em
quantidade.
26. RE/AI O compromisso dos comentaristas é para com seus leitores e,
em seu papel de jornalistas, prestam um serviço público de
informação. Sua isenção em relação às empresas que eles avaliam
rotineiramente em seu trabalho constitui condição essencial para
manter a própria credibilidade profissional e a do veículo ao qual
pertencem. Qualquer conflito de interesse real ou presumido
pode pôr em risco as análises e os comentários feitos.
27. RE/AI Evita prejudicar todos aqueles que contribuíram para conceber,
produzir e comercializar o software, e procura não atentar contra a
propriedade intelectual (bem universalista).
28. RE/AR Você relata a conduta de um gestor que induz seus subordinados
a alcançar as metas sem se importar com os meios utilizados. A
denúncia vai ao encontro dos interesses da empresa e daqueles
que não extrapolam os limites definidos pelas políticas e normas.
29. RA/P A contratação de empresas prestadoras do serviço sem exigência
da documentação legal compromete as contratantes com a
economia informal e seus abusos. Porque há desrespeito às leis
trabalhistas, desleixo nas precauções a serem tomadas para
exercer a profissão de motoboy, descaso pela remuneração
auferida, desnecessidade de notas fiscais etc. No caso, omitir-se
significa acumpliciar-se.
30. RE/AI Todo mundo ganhou e ninguém perdeu. As famílias ficaram
satisfeitas com a doação das lâmpadas, a sociedade como um
todo se beneficiou com a economia de consumo em plena crise,
e a companhia teve um ganho de imagem, além de atender às
exigências legais de gastar parte de seu faturamento em mecanis-
mos de redução de consumo.

172
Anexo ::Gabaritos

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


31. RA/P A fraude foi cometida pelo presidente em conjunto com sua
equipe. O desfecho para Tanzi foi sua condenação a 18 anos de
prisão e ao pagamento de multa milionária.
32. RA/E Quase levou o banco à falência. O operador de mercado foi
condenado a cinco anos de prisão e à devolução do prejuízo (sic!).
33. RE/AI Intimou os fornecedores a colaborar com uma estratégia “verde”
de apelo universalista e alertou que, esgotada a etapa das reco-
mendações, medidas enérgicas seriam tomadas para preservar
padrões responsáveis, tanto em termos sociais como em termos
ambientais.
34. RA/E Cada um dos motoristas se locupletou à custa do dono do posto
de gasolina, que não tinha como evitar o prejuízo.
35. RE/AI Orienta-se por critérios objetivos de urgência médica, em vez
do cumprimento burocrático do atendimento pela ordem de
chegada, e, embora diga respeito aos moradores do Complexo
do Alemão, constitui orientação de interesse social, utilizada em
muitos hospitais.
36. RA/E O ditado ensina os indivíduos a não desperdiçarem a oportunida-
de de levar vantagem.
37. RE/AI Dado o interesse geral em combater os males da obesidade.
38. RE/A Medidas que aumentem a segurança pessoal sem prejudicar
ninguém são medidas aceitáveis por todos.
39 RE/AI O relatório da ONU propõe medidas para mitigar a “pegada
ecológica” da humanidade, a fim de preservar as condições de
habitabilidade do planeta. A prática proposta visa ao bem comum
e obedece à razão ética: gera benefícios para a humanidade como
um todo e é, portanto, de interesse geral.
40. RE/AI O Procon-SP procura coibir propagandas enganosas em prol do
bem público, razão pela qual obtém ampla legitimidade.
41. RE/AR Resume a função social empresarial às necessidades de mercado
atendidas pela empresa e ao lucro dos acionistas. Seria um apelo
ao parcialismo se dissesse que, para maximizar o lucro, os meios
não importariam − o que não é o caso. Seria altruísta imparcial
se estendesse a responsabilidade social para todos os demais pú-
blicos de interesse da empresa (e não só aos clientes e acionistas),
incluindo os cuidados com o meio ambiente.
42. RE/AI As medidas adotadas têm caráter universalista, graças à pressão
da sociedade civil, pois a preservação do meio ambiente interessa
a todos.
43. RE/AE ONG formada por voluntários que recebe doações do mundo
todo e se dedica a causas humanitárias em situações de risco.
44. RE/AI e Prática altruísta imparcial por parte dos órgãos governamentais
RA/P que defendem a livre concorrência e, portanto, os consumidores
em geral, e prática parcial da Abrinq, caso se confirmem as in-
dicações sobre a formação de cartel.

173
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


45. RE/AR Dar incentivo de forma coletiva e transparente a uma equipe para
que vença uma partida, função pela qual os jogadores são pagos,
não contradiz interesses universalistas. Agir na sombra e com-
prar jogadores do time adversário (mala preta) seria parcialismo,
beneficiando interesses particularistas.
46. RE/AI Interessa à sociedade como um todo que se preservem fontes de
água limpa.
47. RE/AI Ação em prol do bem comum por parte da Receita Federal, que
desmontou o esquema de importação fraudulento e multou os
responsáveis, à medida que o combate à corrupção interessa a
todos.
48. RE/AR Reação corajosa, porém restrita à guinada da empresa em suas
relações com dois de seus próprios públicos de interesse (os
fiscais e os funcionários). Teria sido altruísta imparcial se houvesse
denúncia do esquema de corrupção e alguma pressão pública
para que fossem implantados mecanismos de prevenção e con-
trole contra as práticas extorsivas da fiscalização alfandegária.
49. RE/AR Resistência ao parcialismo pregado pela nova equipe diretiva. O
quadro gerencial se recusou a colaborar, defendendo a cultura de
integridade que até então prevaleceu, e obteve sucesso em seu
intento.
50. RE/AI Defesa do meio ambiente com controles eficazes e compromisso
real de não adquirir soja originária de novos desmatamentos da
Amazônia. Todo mundo ganhou com isso, menos, é claro, os des-
matadores.
51. RE/AI A Inditex, dona da Zara, procurou corrigir sua omissão anterior
em termos de fiscalização, descredenciando o fornecedor que
havia agido de forma parcial ao explorar mão de obra boliviana
e, com isso, havia comprometido a varejista espanhola. Ademais,
ao implementar um programa de responsabilidade social (ações
resultantes de um Termo de Ajustamento de Conduta assinado
com o Ministério Público do Trabalho), passou a se empenhar em
práticas altruístas imparciais.
52. RA/P A Walmart expandiu sua rede de varejo de forma parcial ao
corromper autoridades públicas mexicanas.
53. RE/AI A Comissão Europeia agiu em prol dos interesses públicos, coibin-
do um cartel que lesava os consumidores. Ao firmar um acordo de
leniência com a Henkel, que denunciou o cartel, agiu igualmente
de forma altruísta imparcial.
54. RA/P O comportamento dos executivos do Banco é claramente parcial,
pois visa a se locupletar à custa dos clientes. Argumentar que eles
sabiam dos riscos é uma justificativa pífia, uma vez que os papéis
eram considerados lixo pelos próprios executivos. Trata-se de uma
prática particularista, antiética e merecedora de todas as sanções
pelo prejuízo que causaram.

174
Anexo ::Gabaritos

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


55 RE/AI Esses acordos são práticas correntes nos EUA. Visam a coibir
atividades lesivas aos interesses da população cobrando
multas apropriadas no âmbito administrativo sem abrir mão do
andamento do inquérito criminal. Trata-se de uma prática de
caráter altruísta imparcial, universalista, já que interessa a todos
no âmbito da sociedade americana e, por isso mesmo, obedece
à razão ética. Afinal, o banco JP Morgan vai pagar US$ 13 bilhões
por ter induzido a erro seus clientes, assim como as agências
públicas Fannie Mae e Freddie Mac.

Gabarito (8)
Por que esses eventos são males e como distinguir o mal menor do mal neces-
sário?

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


1. Mn Mal necessário (interesses particulares feridos, perda da
memória urbana, alteração da paisagem dos bairros) porque
sem estações de metrô não há como construir linhas que
desloquem grandes massas de moradores de suas residências
ao trabalho, à escola, ao lazer ou aos demais equipamentos
sociais. Daí o interesse público em dispor de um transporte de
alta capacidade, rápido, e que polua o mínimo possível (bem
maior). Ademais, há que considerar a valorização imobiliária
e a melhoria das áreas adjacentes às linhas metroviárias, uma
externalidade positiva que beneficia a população atingida.
2. Mm Essa contracepção de emergência é um mal menor porque
reduz o número de interrupções clandestinas e evita que
nasçam crianças indesejadas que não disporão das condições
materiais e emocionais indispensáveis (mal maior).
3. Mm ou Mn Mal menor (perda de vidas) em relação aos riscos de ataque
terrorista ou de contrabando de drogas e armas (mal maior);
ou mal necessário para garantir a segurança do país (bem
maior).
4. Mn Mal necessário (privação de liberdade) para preservar a saúde
da população contra surto epidêmico (bem maior).
5. Mn Mal necessário (abrandamento da pena) para que o poder
público possa desvendar esquemas criminosos, conhecer os
participantes e desmantelar suas operações (bem maior).
6. Mn Mal necessário porque a ingestão em excesso durante um
período acima de três anos pode provocar aumento de casos
de doenças da tireoide, mas sua adição contribui para o bom
funcionamento da glândula e previne o bócio em adultos e o
cretinismo em crianças (bem maior).

175
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA EXPLICAÇÃO


7. Mm Mal menor porque desrespeita a ordem de chegada, em
comparação com as dificuldades e os desgastes físicos que
essas pessoas teriam se ficassem aguardando em longas filas
(mal maior).
8. Mn Mal necessário, já que a exposição contínua aos raios X pode
causar vermelhidão da pele, queimaduras ou, em casos mais
graves, mutações do DNA, morte das células ou leucemia, mas
que os benefícios justificam, em particular o diagnóstico da
tuberculose pulmonar, de fraturas, tumores, câncer e doenças
ósseas (bem maior).
9. Mm ou Mn Mal menor para evitar a contaminação da população e o risco
de surtos epidêmicos (mal maior); ou mal necessário para
manter a população saudável (bem maior).
10. Mm Mal menor (transtorno) em face da enormidade dos conges-
tionamentos (mal maior).
11. Mn Mal necessário para gerar eletricidade, que é uma energia
limpa (bem maior).
12. Mn Mal necessário para produzir alimentos em grande escala e
para controlar as pragas (bem maior).
13. Mm Mal menor (escolhe-se um entre outros por critérios objetivos)
diante da perspectiva de que todos possam morrer (mal
maior).
14. Mm Mal menor (desrespeito à ordem de inscrição) para reduzir o
volume de falecimentos (mal maior).
15. Mn Mal necessário (lixo radioativo) para gerar eletricidade e não
emitir gases de efeito estufa, não provocar chuva ácida ou
destruir a camada de ozônio (bem maior).
16. Mn Mal necessário (risco de contaminação) em função dos
ganhos em eficiência e produtividade com a utilização de
técnicas avançadas (bem maior).
17. Mm Mal menor (mentir ao público) para não arriscar especulações
lesivas ao bem comum (mal maior).
18. Mn Mal necessário (quebra da privacidade) para prevenir graves
ameaças internacionais (bem maior).
19. Mm e Mn Mal menor (risco de morte ou de graves complicações) ou mal
necessário para tentar recuperar-se (cura como bem maior).
20. Mm Mal menor para evitar a falência do setor, o que seria devas-
tador para a economia dos EUA, em função da perda de
empregos, da extinção de aposentadorias e da redução de
receitas em impostos e taxas (mal maior).

176
Anexo ::Gabaritos

Gabarito (9)
ASSERÇÃO RESPOSTA COMENTÁRIO
1A TEC Cumpre o seu dever, obedecendo às normas: você não está
autorizado a abrir exceções (dever universalista).
1B RA Parcialismo, pois desobedece à norma explícita e manda
fraudar a rubrica na requisição.
1C TER Realiza uma análise situacional e inova, à margem das
normas, assumindo riscos em prol dos interesses da em-
presa e sem prejudicar ninguém (fim universalista).
1D TEC Respeita as normas vigentes e sugere que o encarregado
localize seu supervisor ou outro superior e desate o nó
(deveres universalistas).
2A TEC ou TER Caso a área jurídica ocupe posição de destaque na
empresa, você obedece à orientação dada e se recusa a
negociar o que quer que seja (TEC). Porém, caso você saiba
que, como toda assessoria, a área jurídica não é instância
decisória, você assume o ônus dos contratempos que o
fiscal poderá provocar e não se submete à chantagem do
fiscal (TER).
2B RA Parcialismo, pois entrou no jogo do suborno, cujas
consequências são imprevisíveis. Basta saber que a cons-
trutora vai querer recuperar o que gastou de algum modo
e certamente cobrará isso de você mais adiante...
2C TER Solução cidadã “fora do manual”, uma vez que não é prática
comum no mercado, mas que beneficia a sociedade como
um todo, pois corresponde ao bom combate contra a
corrupção (fim universalista).
2D RA Novamente solução parcial, com apelo à corrupção.
3A RA Egoísmo, pois há apropriação de ideias alheias: benefício
pessoal à custa dos outros.
3B TEC Altruísmo restrito, dando o crédito a quem de direito
(dever universalista).
3C TER Altruísmo restrito, visível na contribuição para a empresa,
sem descuidar de projetar o bom trabalho da equipe (fins
universalistas).
3D RA Egoísmo, desconfiando de todos e prejudicando a equipe
e a empresa.
4A RA Egoísmo, com abuso de confiança.
4B TEC Altruísmo restrito: age com retidão e cultiva relações
duradouras com o cliente (deveres universalistas).
4C TER Opera com transparência (fim universalista): fornece todas
as informações indispensáveis para que o cliente tome
uma decisão competente, aconselha-o corretamente e
lhe diz quais são as próprias metas, abrindo assim a pos-
sibilidade de o cliente permitir que parte pequena do
investimento deixe de ser conservador.

177
CASOS DE ÉTICA EMPRESARIAL

ASSERÇÃO RESPOSTA COMENTÁRIO


4D RA Egoísmo ao ludibriar o cliente e pôr em xeque a relação de
confiança, com a desculpa de que beneficia o banco, mas
correndo o risco de comprometer a imagem da organiza-
ção e de perder o cliente.
5A TER A entrega do presente para que a associação dos funcioná-
rios o sorteie e a comunicação do fato ao fornecedor são
soluções criativas “fora do manual”, pois não constam das
orientações de sua empresa nem são praxes no mercado,
além de afastar qualquer presunção de favorecimento (fim
universalista).
5B RA Parcialismo, pois isso obriga você a retribuir de algum
modo, abrindo a possibilidade de favorecer quem o
presenteou. E, mesmo que não favoreça ninguém, os
outros poderão pensar que você esteja sendo parcial (há
presunção de favorecimento).
5C TER Assume uma posição “fora do manual”, que é também
estranha aos padrões culturais brasileiros, dando uma lição
de moral com assertividade em prol do bem comum (fim
universalista).
5D RA Parcialismo, apesar das justificativas mambembes, e
criação de vínculos que exigirão retorno.
6A RA Acomodação de caráter egoísta.
6B TEC Age de acordo com as regras do jogo, isto é, com as me-
lhores expectativas da empresa: respeita a hierarquia, mas
alerta a diretoria quanto aos desvios percebidos (deveres
universalistas).
6C RA Nova acomodação egoísta.
6D TER Confirmado o desvio em relação aos valores da empresa,
você avisa o diretor e assume o risco de desobedecer para
mostrar o quão grave é a atitude do superior (altruísmo
restrito, fim universalista).
7A RA Egoísmo, por cometer duas deslealdades: uma para com o
banco, dando crédito a quem não deveria; outra para com
o cliente-amigo, que, mal informado, tomará um emprés-
timo que não terá condições de saldar, o que muito o
prejudicará.
7B TEC Sem quebrar a confidencialidade das informações que
detém, procura dissuadir o cliente/amigo com argumentos
objetivos e não concede o empréstimo, obedecendo aos
parâmetros do banco, pois você sabe que ele não terá
condições de honrar a dívida (deveres universalistas).
7C TEC De maneira menos proativa, deixa o tempo regulamentar
se esgotar, na expectativa de que o cliente/amigo ­
descubra a verdade por si mesmo. E, logo depois, segundo
os parâmetros do banco, não concede o empréstimo.

178
Anexo ::Gabaritos

ASSERÇÃO RESPOSTA COMENTÁRIO


7D RA Parcialismo, ao colocar a amizade pessoal acima das res-
ponsabilidades profissionais, uma vez que há quebra do
sigilo.
8A RA Egoísmo, pois se deixa levar pela vaidade e vaza informa-
ções confidenciais da empresa.
8B TEC Cumpre suas obrigações para com a empresa e age
profissionalmente (dever universalista).
8C TEC Preserva o sigilo de forma proativa (dever universalista).
8D TER A resposta assertiva, mantendo o sigilo, inova em relação
às expectativas, pois não condiz com os padrões vigentes e
leva a situação à beira do conflito, mas tem a vantagem de
colocar em xeque a posição do colega (fins universalistas).
9A RA Egoísmo, escondendo erros prejudiciais à empresa.
9B TEC Age corretamente ao comunicar o fato a quem de direito
(dever universalista).
9C RA Egoísmo, com esforço deliberado para encobrir o malfeito.
9D TER Toma a iniciativa de propor medida preventiva, ao mesmo
tempo em que assume o erro (fins universalistas).
10A TEC Cumpre a obrigação burocrática (dever universalista).
10B RA Conduta egoísta porque desrespeitosa e prejudicial ao
banco: põe em risco a relação com o cliente.
10C TER Atitude proativa e inovadora, pois assume risco para
atender à necessidade do cliente sem respaldo explícito
nos procedimentos. Sabe que terá de se explicar diante dos
superiores ou da auditoria interna (fim universalista).
10D TEC Cumpre a obrigação de forma proativa (dever universalis-
ta).

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