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contemporâneo de cantadores
Francisco José Gomes Damasceno*
Hannah Jook Otaviano Rodrigues**
Rafael Antônio Oliveira de Souza**
Marília Soares Cardoso**
Leopoldo de Macedo Barbosa**
*
Professor do Curso de História da UECE e do Mestrado Acadêmico em História – MAHIS/UECE. Líder do
Laboratório de Estudos e Pesquisas em História e Culturas - DÍCTIS. Texto produzido a partir da pesquisa
ora desenvolvida intitulada “Cantadores: práticas de uma arte-vida e a reinvenção pelo dito pós-moderno
(1960-2009)” financiada pelo CNPq.
**
Respectivamente graduandos do Curso de História da UECE e bolsistas da pesquisa supracitada sendo a
primeira bolsista FUNCAP o segundo bolsista IC-UECE, a terceira bolsista PIBIC-CNPq, e o quarto bolsista
PROVIC-UECE.
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É interessante lembrar que neste mesmo trecho o autor pensa em uma ressurgência dessas energias vocais da
humanidade, e contextualiza isso citando, por exemplo, o fenômeno do rádio e a proliferação de canções a
partir dos anos 50 em toda a Europa e América do Norte. Fenômeno que envolve o rádio, e que atinge a
cantoria e o cantador, já que existem indícios dos primeiros programas de rádio com este sujeito justamente
nos anos 50.
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não só associados a uma cultura não letrada, como também às culturas orais e populares,
nas quais o papel destinado ao canto possui significados e usos polissêmicos.
Assim, na medida que cantadores se inserem em contextos diversos, suas formas de
pensar e fazer a arte, nela e com ela se metamorfoseiam e se manifestam renovadas,
alteradas ou simplesmente traduzidas.(HALL, 2003) Neste sentido, se pode pensar em um
fluxo constante estabelecido, não só de homens, mas também e principalmente de suas
culturas, e no seio destas, da cantoria como manifestação.
Interessa-nos muito particularmente a inserção da cantoria nos contextos urbanos e
neles sua introdução em alguns veículos de comunicação, tais como: o rádio (desde os anos
50), o jornal impresso (ainda que isso pareça paradoxal, desde os anos 60), na televisão
(sobretudo nos anos 2000) e finalmente no mercado fonográfico, o que se fez,
principalmente, com a gravação inicialmente de fitas cassete, depois com CD’s e por fim
em mídias DVD. Ainda assim, essa inserção no mundo fonográfico não se deu de forma
tradicional (com gravadoras e contratos comerciais, etc).
Tudo indica que esses cantadores ao invés de simplesmente serem incorporados à
lógica da indústria fonográfica ou do mercado fonográfico, mantêm com esse uma relação
de sutil apropriação, na qual a questão da autoria, das gravações, da reprodução e mesmo da
circulação possuem características próprias mantendo apego a certas maneiras de seu fazer
artístico, de suas formações culturais e mesmo de suas origens sociais e históricas. 2
Ao passo que nos anos 40 a população brasileira era majoritariamente rural, nas
décadas seguintes ocorreu um violento processo de crescimento do mundo urbano, a ponto
de nos anos 70 estarem praticamente igualadas e nos anos 80 culminarem com uma virada
da população urbana em detrimento da rural, havendo um crescimento que pode ser
considerado pequeno se compararmos a população rural dos anos 40 com a população rural
dos anos 90.3
2
Este aspecto que temos observado nos trabalhos de campo e na observação direta a estes sujeitos serão
melhor desenvolvidos em trabalho específico. Mas logo à frente uma dessas características será observada
quando da escolha das canções para essa discussão no que toca a ausência de referências dos autores e mesmo
dos intérpretes. No entanto esses podem ser facilmente identificados entre cantadores, apologistas e público
em geral. O que revela não só o grau de iniciação na arte, mas o compartilhamento dos códigos e mecanismos
da linguagem.
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Essa reflexão é feita a partir dos dados das séries históricas do IBGE. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/default_hist.shtm> acessos em 28 de
maio de 2010. Ver a tabela População Residente, por situação do domicílio e por sexo - 1940-1996.
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perpetuar sua arte4, que a partir daí se fazia em outros meios, correndo inclusive os riscos
inerentes a isso.5
Estes são os três marcos referenciais da investigação: um referencial cronológico e
que data a acentuação da urbanização das cidades brasileiras e a consequente migração de
massas populacionais rurais para os meios urbanos – com elas os cantadores; o outro o do
fenômeno dos meios de comunicação de massa – muito particularmente o rádio que chega e
se fortalece e é utilizado pelos cantadores; e, um último, o da profissionalização da
cantoria.
A partir daí surgiu nossa preocupação em indiciar de forma inicial, através de
fragmentos de cantorias gravadas em mídia CD essa nova maneira da manifestação se
mostrar, que já se revela renovada na própria forma de obter os registros: geralmente
obtidos em feiras e outros espaços nos quais os mundos rural e urbano se interseccionam,
em bancas de camelôs, com gravações sem registro de autoria ou indicação de propriedade,
na melhor tradição de apropriação das culturas populares, a da “posse coletiva”.
Os aspectos de sua tradição tais como a metrificação, a sonoridade, a empostação da
voz, o uso da viola, as rimas, são associados agora ao registro fonográfico, ao uso do rádio,
da televisão e mesmo das mídias digitais (CD e DVD), que associadas a tematizações
relacionadas ao mundo urbano, às novas tecnologias, aos novos padrões de vida na cidade,
compõem um fértil terreno entre o tradicional e o moderno.
Escolhemos neste contexto algumas canções e delas alguns fragmentos para que
pudéssemos a partir deles re-apresentar esta arte e seus artífices. O aspecto que nas canções
escolhidas foi recorrente, também foi o escolhido para esse gracejo em diálogo, qual seja: a
religiosidade. Nada poderia estar mais ligado a tradição das culturas populares sertanejas e
nem à cantoria...
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Cesanildo Lima, cantador de 78 anos, por exemplo, há 50 anos faz programas de rádio, tendo passado por
diversas emissoras do Estado do Ceará. Atualmente faz o programa “Desafio das violas” na rádio Pitaguary
AM de Maracanaú, de 05 às 07hs da manhã todos os dias. Essa atividade serve não para reduzir as cantorias,
mas de um modo geral funciona como atividade complementar divulgando a principal atividade.
5
Zunthor (op. cit. p. 17-18) adverte-nos para três aspectos quando da incorporação dos meios eletrônicos: a) a
abolição de quem traz a voz; b) a evasão ao presente cronológico, já que a voz é transmitida é reiterável
indefinidamente e de modo tratável; c) a tendência a uma apagamento das referências espaciais da voz viva,
graças as manipulações que os sistemas de registro permitem, o que poderia tornar o espaço artificialmente
composto. Entretanto, o mais importante é a perda do que ele chamou de “tactilidade” que se operaria
justamente pelo tratamento e repetição, melhor dizendo, da fixação da voz (e da imagem) tornando-os
abstratos, ou seja abolindo seu caráter efêmero. A perda dessa tactilidade, efemeridade seria uma das
características da passagem do rural para o urbano.
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Uma das características de uma cantoria é a “abertura” feita sempre com uma
saudação em forma de versos de seis linhas ou pés, conhecidos como sextilha. 6 Na tentativa
de manter proximidade dessa estrutura narrativa, iniciaremos com uma delas, retirada de
uma das músicas selecionadas para o estudo e, desta forma, iniciamos este nosso “cantar”
de forma tradicional à moda das cantorias de viola:
6
O apologista Raulino (1998, p. 43) define sextilha como: “uma estrofe com rimas deslocadas, constituídas
de seis linhas, seis pés ou de seis versos de sete sílabas, nomes que tem a mesma significação”.
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Infelizmente, não temos o nome das canções aqui mencionadas. Este aspecto, como já dito anteriormente,
parece ser uma das peculiaridades desse meio: a circulação intensa de CDs, com capas sem distinção de
nomes muitas vezes, numa produção caseira, ou mesmo às vezes “pirateado”. O cantador Cesanildo Lima faz
gravações de CD atendendo a pedidos. Neles a gravação da mídia acompanha apenas o título das faixas
escrito à mão em pequeno papel.
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nos centros urbanos; seja cantando temas atuais a públicos diversos, seja lidando com as
mídias e novas formas de divulgação de seus trabalhos. A seguir, uma estrofe da mesma
sextilha colocada anteriormente, que aborda simultaneamente religião/preconceito racial:
Aonde existe o racismo
Também tem ódio e rancor
Porque o preto e o branco
Nenhum é inferior
Deus nunca salvou ninguém
Por preferência de cor
quando apresenta construções mais elaboradas, mais arrojadas 10, expondo temáticas mais
políticas, mostrando o cantador sempre atualizado e atento ao dinamismo das relações
sociais.
É desta forma que sugerimos a compreensão desta experiência, como re-invenção
constante da arte e do próprio sujeito que a empunha como forma de vida, e não presa às
regras, mas utilizando-as. No dizer de Zunthor (2000, p. 33) ao relembrar e interpretar suas
experiências com a música ainda como estudante:
O que eu tinha então percebido, sem ter a possibilidade intelectual de analisar era,
no sentido pleno da palavra, uma “forma”: não fixa, nem estável, uma forma-
força, um dinamismo formalizado; uma forma formalizadora, se assim eu puder
traduzir a expressão alemã de Max Luthi, quando ele fala a propósito de contos,
de Zielform: não um esquema que se dobrasse a um assunto, porque a forma não
é regida pela regra, ela é a regra. Uma regra a todo instante recriada, existindo
apenas na paixão do homem que a todo instante, adere a ela, num encontro
luminoso. (grifos nossos)
Baseados nessa idéia de formas-força é que selecionamos algumas cantorias. Essa
aqui selecionada foi identificada, pela falta de título, através do mote: “O silêncio é a arma
preferida/ pra matar a pessoa sem ferir”.
Trata-se, portanto, de uma glosa - de oito estrofes, terminada com os versos acima,
totalizando dez pés - que se encaixa no conhecido estilo de cantoria de “Décima”, um estilo
clássico e ainda bastante apreciado, tanto pelo público, como entre os próprios cantadores.
Este estilo é apropriado para o uso de motes (sempre declamado no final da décima). Neste,
especificamente, a glosa é praticamente um aconselhamento.
Apesar de algumas leituras confirmarem que as temáticas mais ricas e elaboradas,
resultado do processo de “reciclagem” (OSÓRIO, 2005) e modernização também absorvida
pelo cantador, são as mais aplaudidas, é inegável a continuidade de temas ainda fortemente
ligados ao campo ou a valores alimentados dentro das práticas mais rurais, sertanejas.
Foi percebido, durante a audição das letras11, um maior número de temas que
tratam: do homem e da mulher, traição, princípios de conduta incorporados na vida do
homem, o severo poder de Deus e religiosidade, sobretudo.
10
Raulino (1998) ao apontar as características das glosas atribui esses adjetivos ao se referir ao uso de temas
ligados à política por exemplo. O mesmo aspecto abordado pelos cantadores entrevistados por Osório (2005)
colocam este aspecto como sendo um diferencial da cantoria arte em detrimento desta vista como folclórica.
11
Como procedimento metodológico se optou por uma escuta sensível das letras para posterior identificação
de temáticas e mesmo das formas de elaboração, que já são por sua vez prescritas como forma ou estilos de
cantoria.
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“Derivado da décima, “O que é que me falta fazer mais”, é um mote decassílabo, que se transformou em
gênero pela extraordinária aceitação popular. Rico em conhecimento e doce em musicalidade tende a
permanecer por muito tempo, na primeira linha da preferência dos amantes da cantoria.” Cf.: Raulino, 1998,
p. 52.
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Referências do CD - faixa dois. snt.
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conhecido como tal; que realiza, comunica algo que eu reconheço da virtualidade á
realidade; 2) O contexto dessa performance seria ao mesmo tampo cultural e situacional e
que surge como fenômeno, que além disso se sobressai ao contexto e ultrapassaria o rumo
comum dos acontecimentos; 3) haveria uma repetição que não seria redundância nesses
acontecimentos (culturais) ou performances, que seria repetível indefinidamente, seria a
“reiterabilidade” o que os tornaria culturalmente inteligíveis; 4) A performance modificaria
o conhecimento, ela não seria simplesmente um meio de comunicação, “comunicando ela o
marca”.
Pode-se seguindo ainda Zunthor, imaginar essa força invertendo-se e criando-se um
laço entre cantadores, apologistas e público. Laços entre sujeitos de contextos sociais e
históricos diferentes e entre experiências e memórias distintas e com trajetórias próprias
que no momento da cantoria ou da audição da cantoria, se estabelecem em sintonia fina
(para parafrasearmos as ondas do rádio, em freqüência ampla!).
Dessa forma, voltando aos versos, mostra-se um lado mais tradicional, em que a
força da religião ou do cristianismo revela-se muito forte, inclusive na primeira estrofe
onde o cantador diz ter tornado a raça dali (afegãos, iraquianos) cristã. Nas primeiras
cantorias, essa força da religião é bastante observada, exigindo inclusive, dos cantadores
analfabetos pleno conhecimento da Bíblia podemos notar, segundo essas passagens, que
isto não se modificou por completo, sendo atualmente, a religião presente em muitos motes
e glosas.
Na 5ª glosa faz-se referencia agora aos povos específicos do Oriente Médio, citando
os até então, representantes da Palestina: “Arafat aprendeu minha doutrina/Sempre falo
com ele quando posso/Disse a ele o seu Deus não é o nosso/Quem é filho de Deus não
assassina (...)” e de Israel: “Fiz Sharon perdoar à Palestina/Israel recolher seus
arsenais(...)”. Terminando a glosa com a solução do embate recíproco desses dois povos:
“Dividi os terrenos principais/Cada povo eu botei no seu distrito/Pus um ponto final nesse
conflito/E o que é que falta fazer mais?” Dessa forma, o cantador surpreende o público
mais uma vez com sua mensagem.
E por fim, para encerrar “essa nossa cantoria” (feita de verbos e formas de ouvir e
sentir diferentes) com grande estilo, o poeta canta suas próprias glórias. Este sujeito se
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reconhece como artista e tem consciência da sua importância como exemplo para os futuros
cantadores, ele se situa a um tempo entre passado, presente e futuro:
Fiz da minha viola uma conquista/No Brasil divulgando os meus
valores/Destaquei-me entre os grandes cantadores/Meu país me conhece como
artista/Sou além de poeta-repentista/Premiado em diversos festivais/Um maestro
nas notas musicais/ E o eterno romântico das canções/Grande exemplo pra muitas
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gerações/E o que é que me falta fazer mais?
Bibliografia
CASCUDO, Câmara. Vaqueiros e catadores. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1984(a).
RAULINO, Francisco Wilson. Jaguaribe, o vale das violas. Morada Nova: s/ed., 1998.
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Faixa dois do CD – “De repente cantoria”