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Algumas canções: música, tradição e incorporação do/ao universo urbano

contemporâneo de cantadores
Francisco José Gomes Damasceno*
Hannah Jook Otaviano Rodrigues**
Rafael Antônio Oliveira de Souza**
Marília Soares Cardoso**
Leopoldo de Macedo Barbosa**

A cantoria faz parte da cultura brasileira desde tempos coloniais e, aposta-se em


sua existência desde os aedos gregos, tendo uma forte presença e suas origens
mais próximas ainda no mundo medieval, nos menestréis e trovadores.
Incorporada às culturas populares brasileiras, desde os anos 60 do século XX tem
passado por transformações que a projetam no atual contexto de forma viva,
dinâmica e não menos importante do que tantas outras manifestações. Para tanto
tem incorporado os meios de comunicação de massa, sobretudo a TV e o rádio de
forma persistente e sistemática. Muitos são os cantadores que tem assumido esse
processo, gravando CD’s, DVD’s, fazendo programas e mantendo a tradição da
cantoria viva nesses meios e nos seus “lócus” mais tradicionais. Neste trabalho
algumas canções serão apresentadas com o intuito de apresentar estes sujeitos
sociais importantes: os cantadores.
Palavras-chave: Cantadores, tradição, incorporação

I – Fragmentos cantados das vozes de cantadores, de cantorias em mídias...

A cantoria tem se manifestado há muito tempo e em contextos sociais e históricos


diversos, assim, como ela não é obra de um acaso ou de uma manifestação entre nadas, é
interessante pensá-la em sua relação com o ator sócio-histórico que empunha sua força e
canta. Tal como ela, homens envolvidos nessas realidades têm se inventado e reinventado
constantemente, e mesmo se utilizado dela para exprimir sua existência em dimensões que
são marcadas pelo ético e pelo estético: os cantadores.
Esses sujeitos evocam as forças das “energias vocais da humanidade, energias que
foram reprimidas durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso
hegemônico da escrita.” (ZUNTHOR, 2000, p. 18) 1 Cantadores, estiveram, desde sempre,

*
Professor do Curso de História da UECE e do Mestrado Acadêmico em História – MAHIS/UECE. Líder do
Laboratório de Estudos e Pesquisas em História e Culturas - DÍCTIS. Texto produzido a partir da pesquisa
ora desenvolvida intitulada “Cantadores: práticas de uma arte-vida e a reinvenção pelo dito pós-moderno
(1960-2009)” financiada pelo CNPq.
**
Respectivamente graduandos do Curso de História da UECE e bolsistas da pesquisa supracitada sendo a
primeira bolsista FUNCAP o segundo bolsista IC-UECE, a terceira bolsista PIBIC-CNPq, e o quarto bolsista
PROVIC-UECE.
1
É interessante lembrar que neste mesmo trecho o autor pensa em uma ressurgência dessas energias vocais da
humanidade, e contextualiza isso citando, por exemplo, o fenômeno do rádio e a proliferação de canções a
partir dos anos 50 em toda a Europa e América do Norte. Fenômeno que envolve o rádio, e que atinge a
cantoria e o cantador, já que existem indícios dos primeiros programas de rádio com este sujeito justamente
nos anos 50.
2

não só associados a uma cultura não letrada, como também às culturas orais e populares,
nas quais o papel destinado ao canto possui significados e usos polissêmicos.
Assim, na medida que cantadores se inserem em contextos diversos, suas formas de
pensar e fazer a arte, nela e com ela se metamorfoseiam e se manifestam renovadas,
alteradas ou simplesmente traduzidas.(HALL, 2003) Neste sentido, se pode pensar em um
fluxo constante estabelecido, não só de homens, mas também e principalmente de suas
culturas, e no seio destas, da cantoria como manifestação.
Interessa-nos muito particularmente a inserção da cantoria nos contextos urbanos e
neles sua introdução em alguns veículos de comunicação, tais como: o rádio (desde os anos
50), o jornal impresso (ainda que isso pareça paradoxal, desde os anos 60), na televisão
(sobretudo nos anos 2000) e finalmente no mercado fonográfico, o que se fez,
principalmente, com a gravação inicialmente de fitas cassete, depois com CD’s e por fim
em mídias DVD. Ainda assim, essa inserção no mundo fonográfico não se deu de forma
tradicional (com gravadoras e contratos comerciais, etc).
Tudo indica que esses cantadores ao invés de simplesmente serem incorporados à
lógica da indústria fonográfica ou do mercado fonográfico, mantêm com esse uma relação
de sutil apropriação, na qual a questão da autoria, das gravações, da reprodução e mesmo da
circulação possuem características próprias mantendo apego a certas maneiras de seu fazer
artístico, de suas formações culturais e mesmo de suas origens sociais e históricas. 2
Ao passo que nos anos 40 a população brasileira era majoritariamente rural, nas
décadas seguintes ocorreu um violento processo de crescimento do mundo urbano, a ponto
de nos anos 70 estarem praticamente igualadas e nos anos 80 culminarem com uma virada
da população urbana em detrimento da rural, havendo um crescimento que pode ser
considerado pequeno se compararmos a população rural dos anos 40 com a população rural
dos anos 90.3

2
Este aspecto que temos observado nos trabalhos de campo e na observação direta a estes sujeitos serão
melhor desenvolvidos em trabalho específico. Mas logo à frente uma dessas características será observada
quando da escolha das canções para essa discussão no que toca a ausência de referências dos autores e mesmo
dos intérpretes. No entanto esses podem ser facilmente identificados entre cantadores, apologistas e público
em geral. O que revela não só o grau de iniciação na arte, mas o compartilhamento dos códigos e mecanismos
da linguagem.
3
Essa reflexão é feita a partir dos dados das séries históricas do IBGE. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/default_hist.shtm> acessos em 28 de
maio de 2010. Ver a tabela População Residente, por situação do domicílio e por sexo - 1940-1996.
3

Isso significa que, as cidades brasileiras recebem um fluxo intenso e caudaloso de


homens do campo, marcando assim esse processo de urbanização no Brasil. Aspecto que
muito nos interessa, já que era justamente nos meios rurais, sobretudo do Nordeste, que se
manifestava mais fortemente a presença dos cantadores, bem como de inúmeras
manifestações das culturas populares.
Nesse processo de transição do campo para cidade, a própria cultura urbana, ou
melhor, as culturas populares urbanas são, por assim dizer, influenciadas por essas
manifestações típicas do rural, a ponto de ser difícil falar em cultura urbana ou cultura
rural, sem antes imaginarmos essas como constituídas em intenso processo de múltiplas
interferências.
É assim que os cantadores se incorporam e transformam esse novo contexto no qual
se inserem mesmo antes do período supracitado como coloca Cascudo (1984-a) ao dizer
que a partir de 1920, se deu um maior reconhecimento e uma certa urbanização da cantoria
e do cantador, que passou a ser “assediado” por intelectuais como ele próprio, Leonardo
Mota e Mário de Andrade, entre outros.
Já o renomado cantador Ivanildo Vilanova, de 63 anos (apud RAMALHO, 1992),
nos fornece outro marco importante para a compreensão da cantoria e da experiência desses
cantadores. Seria nos anos 60 (no qual ele se insere como jovem cantador e um agente
muito ativo desse processo), que se deu uma inovação realizada por ele e alguns outros
cantadores de sua geração, no que podemos chamar de uma espécie de modernização da
cantoria e uma consequente certa profissionalização do cantador.
Importante aspecto ainda relacionado a este processo é a “chegada” do rádio no
Brasil. Nos anos 30 as primeiras rádios são inauguradas: As rádios Tupy do Rio de Janeiro
e a Rádio Nacional. Nas décadas seguintes este meio se torna extremamente popular em
nosso país. Nos anos 50 a primeira transmissão por televisão é feita no Brasil, o que não
diminui, pelo menos inicialmente, a importância do rádio, que ainda é o veículo mais
popular, a ponto dessa década ser considerada “a época de ouro” do rádio no Brasil.
Mesmo com a popularização e hegemonia da televisão, nos anos 70, 80 e 90 o rádio
não deixa de crescer. Assim, a percentagem de domicílios com rádios no Brasil era de
58,9% em 1970; de 76;2% em 1980; 84,3% em 1990.(DIAS, 2000, p. 52). É claro que, em
um contexto como este, muitos cantadores se apropriaram desse meio no sentido de
4

perpetuar sua arte4, que a partir daí se fazia em outros meios, correndo inclusive os riscos
inerentes a isso.5
Estes são os três marcos referenciais da investigação: um referencial cronológico e
que data a acentuação da urbanização das cidades brasileiras e a consequente migração de
massas populacionais rurais para os meios urbanos – com elas os cantadores; o outro o do
fenômeno dos meios de comunicação de massa – muito particularmente o rádio que chega e
se fortalece e é utilizado pelos cantadores; e, um último, o da profissionalização da
cantoria.
A partir daí surgiu nossa preocupação em indiciar de forma inicial, através de
fragmentos de cantorias gravadas em mídia CD essa nova maneira da manifestação se
mostrar, que já se revela renovada na própria forma de obter os registros: geralmente
obtidos em feiras e outros espaços nos quais os mundos rural e urbano se interseccionam,
em bancas de camelôs, com gravações sem registro de autoria ou indicação de propriedade,
na melhor tradição de apropriação das culturas populares, a da “posse coletiva”.
Os aspectos de sua tradição tais como a metrificação, a sonoridade, a empostação da
voz, o uso da viola, as rimas, são associados agora ao registro fonográfico, ao uso do rádio,
da televisão e mesmo das mídias digitais (CD e DVD), que associadas a tematizações
relacionadas ao mundo urbano, às novas tecnologias, aos novos padrões de vida na cidade,
compõem um fértil terreno entre o tradicional e o moderno.
Escolhemos neste contexto algumas canções e delas alguns fragmentos para que
pudéssemos a partir deles re-apresentar esta arte e seus artífices. O aspecto que nas canções
escolhidas foi recorrente, também foi o escolhido para esse gracejo em diálogo, qual seja: a
religiosidade. Nada poderia estar mais ligado a tradição das culturas populares sertanejas e
nem à cantoria...

4
Cesanildo Lima, cantador de 78 anos, por exemplo, há 50 anos faz programas de rádio, tendo passado por
diversas emissoras do Estado do Ceará. Atualmente faz o programa “Desafio das violas” na rádio Pitaguary
AM de Maracanaú, de 05 às 07hs da manhã todos os dias. Essa atividade serve não para reduzir as cantorias,
mas de um modo geral funciona como atividade complementar divulgando a principal atividade.
5
Zunthor (op. cit. p. 17-18) adverte-nos para três aspectos quando da incorporação dos meios eletrônicos: a) a
abolição de quem traz a voz; b) a evasão ao presente cronológico, já que a voz é transmitida é reiterável
indefinidamente e de modo tratável; c) a tendência a uma apagamento das referências espaciais da voz viva,
graças as manipulações que os sistemas de registro permitem, o que poderia tornar o espaço artificialmente
composto. Entretanto, o mais importante é a perda do que ele chamou de “tactilidade” que se operaria
justamente pelo tratamento e repetição, melhor dizendo, da fixação da voz (e da imagem) tornando-os
abstratos, ou seja abolindo seu caráter efêmero. A perda dessa tactilidade, efemeridade seria uma das
características da passagem do rural para o urbano.
5

II – “uma sextilha prá começar”

Uma das características de uma cantoria é a “abertura” feita sempre com uma
saudação em forma de versos de seis linhas ou pés, conhecidos como sextilha. 6 Na tentativa
de manter proximidade dessa estrutura narrativa, iniciaremos com uma delas, retirada de
uma das músicas selecionadas para o estudo e, desta forma, iniciamos este nosso “cantar”
de forma tradicional à moda das cantorias de viola:

Aonde há união (cantador1) Onde o fuxico acontece (cantador2)


Tudo tipo acontece A cena é de amargura
Ao dia a gente trabalha Homem se arma de pau
E a noite se reza prece Bota faca na cintura
Com o mal não se acostuma E o ar que a terra respira
Aonde o bem permanece Tem cheiro de sepultura 7
Além de percebermos a sextilha, estrofe com seis versos, nota-se também a
separação silábica poética do verso, compreendendo em 7 sílabas, mais o estilo da cantoria:
dois cantadores se revezando entre as estrofes, a qual obedece à rima A B C B D B.
Importante também, perceber que o final da estrofe anterior rima com o início da seguinte.
Porém, os cantadores têm esses instrumentos como apoio, pois a qualidade de um cantador
é superar estas normas fixas. Ramalho (1992, p. 48) menciona: “(...) mais vale a qualidade
poética do conteúdo declamado do que a rigidez das normas. Estas funcionam apenas
como um roteiro, mas o bom poeta deverá superá-las”.
Percebemos que os cantadores, atualmente, abordam diferentes temas, de um modo
geral, correspondentes à riqueza e complexidade das situações de vida nas quais se
encontram: religião, cotidiano, política, aspectos regionais ou economia. Em suma,
qualquer aspecto da vida pode ser abordado, e o público intervém propondo as temáticas
que lhes interessa e que devem, podem e são incorporadas pelo cantador.
Para efeito de um exercício de aproximação, apontaremos de forma fragmentária
alguns versos registrados em mídia CD (como já iniciado na glosa anterior), pois o
cantador, hoje, se vê entre a manutenção e a transmissão das suas tradições e sua presença

6
O apologista Raulino (1998, p. 43) define sextilha como: “uma estrofe com rimas deslocadas, constituídas
de seis linhas, seis pés ou de seis versos de sete sílabas, nomes que tem a mesma significação”.
7
Infelizmente, não temos o nome das canções aqui mencionadas. Este aspecto, como já dito anteriormente,
parece ser uma das peculiaridades desse meio: a circulação intensa de CDs, com capas sem distinção de
nomes muitas vezes, numa produção caseira, ou mesmo às vezes “pirateado”. O cantador Cesanildo Lima faz
gravações de CD atendendo a pedidos. Neles a gravação da mídia acompanha apenas o título das faixas
escrito à mão em pequeno papel.
6

nos centros urbanos; seja cantando temas atuais a públicos diversos, seja lidando com as
mídias e novas formas de divulgação de seus trabalhos. A seguir, uma estrofe da mesma
sextilha colocada anteriormente, que aborda simultaneamente religião/preconceito racial:
Aonde existe o racismo
Também tem ódio e rancor
Porque o preto e o branco
Nenhum é inferior
Deus nunca salvou ninguém
Por preferência de cor

Interessante observar que ao mesmo tempo em que se alinha ao politicamente


correto, introduz aspecto que em sua arte é muito frequente, ligado ao mais antigo de sua
arte e até mesmo de sua formação: a idéia de Deus. Esse aspecto invariavelmente é
incorporado de formas diversas à cantoria e explorado sempre dentro do quadro de
referências de nossa formação social, na qual a religiosidade ocupa papel importante.
Além da sextilha, existem, entre os estilos, o “sete linhas” ou sete pés; o mourão; o
galope a beira-mar; toada alagoana, remo da canoa, entre outros. (RAULINO, 1998)

III – “Uma décima, prá esquentar” ou um “Encontro Luminoso”

De um modo geral a cantoria “esquenta” ou se aproxima de seu clímax aos poucos


até chegar ao desafio. Nesse caminho de intensificação da peleja, do repente, se passa
invariavelmente por um estilo bastante apreciado pelos cantadores, sobretudo pelo grau de
dificuldade que apresenta na sua feitura que é a décima, ou estrofe em dez versos ou pés.
Partiremos para análise de uma das glosas do CD “Cantando a Realidade” 8. As
canções, glosas ou desafios presentes neste são compartilhados entre dois cantadores. A
composição do CD é diversificada, revelando mais uma característica da arte do cantador: a
multitemacidade. 9
Este aspecto perpassa a cantoria tanto quando se trata de temas mais comuns,
ligados ao regionalismo enraizado na tradição e memória do cantador, como também
8
O CD foi adquirido no mercado da cidade de Patos-PB. Não traz nenhuma referência a seus autores, apenas
a capa com o título. Este aspecto de identificação da autoria nos coloca diante de uma prática antiga na qual a
cultura popular está envolta. Assim, não pudemos identificar de quem a autoria da glosa e nem seus
intérpretes.
9
Esta abundância de temas, ou a pluralidade temática, que aqui chamamos de multitematicidade, ocorre com
relação ao próprio disco e muito frequentemente no interior de uma única glosa. Parece ser uma característica
da cantoria contemporânea, que foge a esse aspecto quando o mote é dirigido a algo específico. Assim, é
comum o recurso a um argumento que envolve temáticas diversas em uma “canção” que de modo geral é
visto como sinal de erudição e sabedoria do cantador.
7

quando apresenta construções mais elaboradas, mais arrojadas 10, expondo temáticas mais
políticas, mostrando o cantador sempre atualizado e atento ao dinamismo das relações
sociais.
É desta forma que sugerimos a compreensão desta experiência, como re-invenção
constante da arte e do próprio sujeito que a empunha como forma de vida, e não presa às
regras, mas utilizando-as. No dizer de Zunthor (2000, p. 33) ao relembrar e interpretar suas
experiências com a música ainda como estudante:

O que eu tinha então percebido, sem ter a possibilidade intelectual de analisar era,
no sentido pleno da palavra, uma “forma”: não fixa, nem estável, uma forma-
força, um dinamismo formalizado; uma forma formalizadora, se assim eu puder
traduzir a expressão alemã de Max Luthi, quando ele fala a propósito de contos,
de Zielform: não um esquema que se dobrasse a um assunto, porque a forma não
é regida pela regra, ela é a regra. Uma regra a todo instante recriada, existindo
apenas na paixão do homem que a todo instante, adere a ela, num encontro
luminoso. (grifos nossos)
Baseados nessa idéia de formas-força é que selecionamos algumas cantorias. Essa
aqui selecionada foi identificada, pela falta de título, através do mote: “O silêncio é a arma
preferida/ pra matar a pessoa sem ferir”.
Trata-se, portanto, de uma glosa - de oito estrofes, terminada com os versos acima,
totalizando dez pés - que se encaixa no conhecido estilo de cantoria de “Décima”, um estilo
clássico e ainda bastante apreciado, tanto pelo público, como entre os próprios cantadores.
Este estilo é apropriado para o uso de motes (sempre declamado no final da décima). Neste,
especificamente, a glosa é praticamente um aconselhamento.
Apesar de algumas leituras confirmarem que as temáticas mais ricas e elaboradas,
resultado do processo de “reciclagem” (OSÓRIO, 2005) e modernização também absorvida
pelo cantador, são as mais aplaudidas, é inegável a continuidade de temas ainda fortemente
ligados ao campo ou a valores alimentados dentro das práticas mais rurais, sertanejas.
Foi percebido, durante a audição das letras11, um maior número de temas que
tratam: do homem e da mulher, traição, princípios de conduta incorporados na vida do
homem, o severo poder de Deus e religiosidade, sobretudo.

10
Raulino (1998) ao apontar as características das glosas atribui esses adjetivos ao se referir ao uso de temas
ligados à política por exemplo. O mesmo aspecto abordado pelos cantadores entrevistados por Osório (2005)
colocam este aspecto como sendo um diferencial da cantoria arte em detrimento desta vista como folclórica.
11
Como procedimento metodológico se optou por uma escuta sensível das letras para posterior identificação
de temáticas e mesmo das formas de elaboração, que já são por sua vez prescritas como forma ou estilos de
cantoria.
8

Durante a música selecionada, podemos perceber vários trechos que “aconselham” o


homem ao conformismo diante de algumas injustiças. Atitude fortemente apregoada nos
sermões católicos, associando ao poder de Deus a única possibilidade de castigo ou
compensação. Segue abaixo a primeira estrofe da glosa:
Se você vem guardando no seu peito
Uma mágoa causada há tantos anos,
Por alguém que causou-lhe desengano,
Não revide nem use preconceito
Que o ódio no céu não é aceito.
Só quem ama é quem pode construir
Quem odeia um irmão pode cair
(N)Uma vala por Deus desconhecida
O silêncio é a arma preferida
Pra matar a pessoa sem ferir
Percebemos este fato logo na primeira estrofe, ao tratar dos ressentimentos e
mágoas sofridos por alguém, mas quem alimenta o ódio sobre esses pensamentos também
no “céu não é aceito”. É o silêncio, o conformismo do homem, e deixar que Deus decida as
possíveis conseqüências.
Tal idéia é reafirmada na segunda estrofe:

Jesus Cristo também foi humilhado


Pelas mãos criminosas dos judeus.
Espancado por bárbaros fariseus,
Tudo isso por causa do pecado
Suportou numa cruz firme e calado
Não queria odiar nem denegrir.
Nós também precisamos de cumprir
Essa calma por Ele construída
O silêncio é a arma preferida
Pra matar a pessoa sem ferir.
No momento citado Jesus (o filho de Deus) é empregado como bandeira, já que
também foi humilhado, mas “SUPORTOU firme e CALADO”. Desta forma seguindo o
exemplo da forte referência cristã, identificados com o salvador, somente “Cristo do céu
que pode punir a pessoa ruim e corrompida” e nesse momento mais que uma justificativa é
utilizada. A idéia de se vergar ante as forças maiores também está dentro das táticas
empregadas para viver, sabendo que, no entanto, a verdadeira força se revelará ao final.
Além disso, a descrença na possibilidade de justiça terrena e dos homens coloca em outro
plano o momento no qual se definirá toda e qualquer injustiça, e nela só se chega com o
plano ardiloso de matar sem ferir...
9

IV – O que é que me falta fazer mais?

Como exemplo da “modernização” ou “urbanização” da cantoria como o


surgimento de temas atuais (guerras, cidade, violência, tecnologias dentre outros) e a
permanência de outros aspectos ditos “tradicionais” como a religião, a seca e etc.
Analisaremos a letra de um repente no estilo “O que é que me falta fazer mais?” 12 , o
repente apresenta-se em estrofes em decassílabo e uma melodia que se diferencia um pouco
da musicalidade mais tradicional das cantorias. Por ser mais melódica, mais ritmada, já
mostra uma prévia da letra, ao ouvir, o público espera uma letra mais leve, mais engraçada,
e a primeira prévia disto está nos primeiros acordes da viola.
Nesses versos gravados no CD ”De repente cantoria” 13, os cantadores narram
algumas “proezas realizadas” por eles e a glosa sempre termina com o verso “O que é que
me falta fazer mais”, que funciona como um refrão, ou seja, um ou dois versos que são
repetidos ao terminar as estrofes e são invariáveis dentro da canção.
Porém, o repente é algo que vai sendo construído, geralmente por dois cantadores
diferentes entre si, e nessa troca de experiências podem surgir na mesma cantoria
interpretações diversas para o mesmo mote como acontece na 2ª, 3ª e 4ª glosa, onde eles
passam a falar dos ensinamentos bíblicos e cristãos:
Não temi o tamanho de Golias/ Enfrentei os leões com Daniel/ Conversei com
Maria e Isabel/ Assisti à mudez de Zacarias(...)Rezo e canto os louvores divinais/
Amo ao próximo, perdôo os meus rivais/ Dou esmola aos carentes sempre ajudo/
Para vê se me salvo eu já fiz tudo(...)Sempre fui um discípulo de Jesus/Sem faltar
um minuto em sua Sé/Onde existe tristeza eu levo a fé/Se alguém vive na treva eu
mostro a Luz/Para Deus que morreu por nós na Cruz/Quando eu peço uma ajuda
Ele me traz/De ferir um irmão não sou capaz(...)
A performance está situada a um tempo de dois ou mais espaços distintos, contextos
distintos. Ela se encontra, por assim dizer, fazendo a intersecção entre mundos, entre o real
e o imaginário, entre o rural e o urbano, entre sujeitos de mundos e temporalidades distintas
e nem sempre próximas, entre o tradicional e o moderno.
Para Dell Hymes (apud ZUNTHOR, 2000, p. 36-37) a perfomance pode ser
analisada a partir de quatro traços básicos: 1) seria a realização de um material tradicional

12
“Derivado da décima, “O que é que me falta fazer mais”, é um mote decassílabo, que se transformou em
gênero pela extraordinária aceitação popular. Rico em conhecimento e doce em musicalidade tende a
permanecer por muito tempo, na primeira linha da preferência dos amantes da cantoria.” Cf.: Raulino, 1998,
p. 52.
13
Referências do CD - faixa dois. snt.
10

conhecido como tal; que realiza, comunica algo que eu reconheço da virtualidade á
realidade; 2) O contexto dessa performance seria ao mesmo tampo cultural e situacional e
que surge como fenômeno, que além disso se sobressai ao contexto e ultrapassaria o rumo
comum dos acontecimentos; 3) haveria uma repetição que não seria redundância nesses
acontecimentos (culturais) ou performances, que seria repetível indefinidamente, seria a
“reiterabilidade” o que os tornaria culturalmente inteligíveis; 4) A performance modificaria
o conhecimento, ela não seria simplesmente um meio de comunicação, “comunicando ela o
marca”.
Pode-se seguindo ainda Zunthor, imaginar essa força invertendo-se e criando-se um
laço entre cantadores, apologistas e público. Laços entre sujeitos de contextos sociais e
históricos diferentes e entre experiências e memórias distintas e com trajetórias próprias
que no momento da cantoria ou da audição da cantoria, se estabelecem em sintonia fina
(para parafrasearmos as ondas do rádio, em freqüência ampla!).
Dessa forma, voltando aos versos, mostra-se um lado mais tradicional, em que a
força da religião ou do cristianismo revela-se muito forte, inclusive na primeira estrofe
onde o cantador diz ter tornado a raça dali (afegãos, iraquianos) cristã. Nas primeiras
cantorias, essa força da religião é bastante observada, exigindo inclusive, dos cantadores
analfabetos pleno conhecimento da Bíblia podemos notar, segundo essas passagens, que
isto não se modificou por completo, sendo atualmente, a religião presente em muitos motes
e glosas.
Na 5ª glosa faz-se referencia agora aos povos específicos do Oriente Médio, citando
os até então, representantes da Palestina: “Arafat aprendeu minha doutrina/Sempre falo
com ele quando posso/Disse a ele o seu Deus não é o nosso/Quem é filho de Deus não
assassina (...)” e de Israel: “Fiz Sharon perdoar à Palestina/Israel recolher seus
arsenais(...)”. Terminando a glosa com a solução do embate recíproco desses dois povos:
“Dividi os terrenos principais/Cada povo eu botei no seu distrito/Pus um ponto final nesse
conflito/E o que é que falta fazer mais?” Dessa forma, o cantador surpreende o público
mais uma vez com sua mensagem.
E por fim, para encerrar “essa nossa cantoria” (feita de verbos e formas de ouvir e
sentir diferentes) com grande estilo, o poeta canta suas próprias glórias. Este sujeito se
11

reconhece como artista e tem consciência da sua importância como exemplo para os futuros
cantadores, ele se situa a um tempo entre passado, presente e futuro:
Fiz da minha viola uma conquista/No Brasil divulgando os meus
valores/Destaquei-me entre os grandes cantadores/Meu país me conhece como
artista/Sou além de poeta-repentista/Premiado em diversos festivais/Um maestro
nas notas musicais/ E o eterno romântico das canções/Grande exemplo pra muitas
14
gerações/E o que é que me falta fazer mais?

Bibliografia

CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984(b).

CASCUDO, Câmara. Vaqueiros e catadores. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1984(a).

DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da


cultura. São Paulo: editorial Boitempo, 2000.

HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: editora da


UFMG; Brasília: Representações da UNESCO no Brasil, 2003.

OSÓRIO, Patrícia da Silva. Modernos e Rústicos: Tradição, Cantadores Nordestinos e


Tradicionalistas Gaúchos em Brasília. Brasília, DF: UNB, 2005. Tese de doutoramento.
Depto. De Antropologia.

RAMALHO, Elba Braga. Música e palavra no processo de comunicação social – A cantoria


Nordestina. Dissertação de Mestrado em Sociologia do Desenvolvimento. Fortaleza: UFC,
1992.

RAULINO, Francisco Wilson. Jaguaribe, o vale das violas. Morada Nova: s/ed., 1998.

ZUNTHOR, Paul. Performance, percepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

14
Faixa dois do CD – “De repente cantoria”

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