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Editorial ...................................................................................................................................................................... 2
SUMÁRIO
JANELA DO TEMPO
O culto ‘vodou’: Identificações em São Luís e no Haiti .......................................................................... 17
Domingos Vieira Filho
NOTÍCIAS ........................................................................................................................................... 19
Roza Santos
ÁLBUNS DE RECORDAÇÃO
Zelinda Lima2
O
hábito de trocar frases, decla então adolescente
rações de amor, apreço e ami José Nascimento
zade é comum entre adoles- Moraes Filho, que
centes. Hoje, vendo o intenso relacio- viria mais tarde
namento estabelecido pelos meus ne- afirmar-se como um
tos com seus amigos via internet, refli- importante intelec-
to que esse hábito decorre de uma ne- tual e poeta de nos-
cessidade humana antiga: relacionar-se, sa terra.
estabelecendo laços. Colocar em práti- Hoje, amarela-
ca a máxima filosófica que diz sermos dos, os cadernos são
todos animais sociáveis. lembranças de um
Lembro, com satisfação, de um im- tempo que se foi, mas
portante meio de relacionamento ado- são também conexão
tado pelos adolescentes de minha épo- com a era atual, mos-
ca: os cadernos de recordações. Falo de trando que sentimen-
uma adolescência vivida na São Luis tos como amor e ami-
dos anos 40, tempo em que, efervescen- zade nunca envelhe-
te, fazendo pulsar todas as linguagens cem, encontrando sem-
artísticas simultaneamente. Fomos ado- pre uma forma de se
lescentes embalados por poemas, peças reinventar e sobreviver.
teatrais, exposições de pintura e tantas
outras “artes” que inventávamos nos grê- Livro de Recordação de Zelinda Lima - 1942-1965.
mios recreativos e sociedades culturais Páginas de Nascimento Morais3
existentes em praticamente todos os co-
Um álbum de pensamentos e idéias, de conceitos e reminiscências ou lembranças é
légios da cidade. Além disso, reuniamo- relíquia que com o tempo mais se estima. Se a grafologia expressa traços da psicologia
nos todos os finais de semana para dis- individual, o álbum é uma excelente coletânea de caracteres e de temperamentos. Pro-
cutir assuntos diversos, divagando sobre miscuamente se encontram em suas paginas coletivadas instintos revelados pela frase
antigos e novos valores sociais e cultu- elegante e ternas os sentimentos profanados pelo coração. E mais: quem o lê com aten-
rais, pintura, política ou simplesmente ção certo reconhecerá que em cada uma de suas paginas está em síntese um romance ou
para tocar piano, declamar poesias, fes- um poema vivido ou sentido em tempos passados, nunca jamais esquecidos e que se
tejar a vida, a juventude e a amizade. transmudam na personal saudade, companheira fiel e amiga sincera dos que fazem do
Como forma de selar essa amizade é sofrimento a beleza do poente e a policromia do horizonte derradeiro...
que costumávamos cultivar os precio-
sos álbuns ou cadernos de recordações. Alvorada da Glória Horizonte Vesperal
Havia dois tipos mais comuns: aquele Ao espírito sonhador de Zelinda Á Zelinda
em que guardávamos autógrafos de ído-
Escuta!.. Escuta as eclosões bravias Bradou-me um dia uma visão: “Avante!
los, autoridades ou artistas famosos que Que no horizonte rubro destes vasos O teu caminho a luz apoteosa!
por São Luís passavam, já que nossa Flutuam... bailam como sons imensos A Glória te acompanha, parte, Atlante...”
cidade integrava o roteiro de turnês ar- De escalas sensuais de melodias. (E olhando a plaga elísea e esplendorosa):
tísticas internacionais; e os dedicados
às mensagens trocadas entre amigos, Olha!.. Olha as labaredas de harmonias O azul é o teu troféu; ergue-o, triunfante,
onde um declarava ao outro sua per- Que entre clarões de ritmos dispersos No pedestal de um coração. Desposa
cepção, carinho e, por que não, amor. Estortigam, lambendo os universos A rútila Conquista do Levante
Na alvorada da glória dos meus dias! Do sonho de teus dias!” Dolorosa
Era ali que muitas vezes começava um
flerte que poderia avançar para um Então, verás na ardência dos lampejos, Jornada, então, rompí; do ritual
namoro. Lembro de amigas que vive- E no sangue da flama voluptuosa Do amor aceito e cumpro a férrea lei,
ram histórias de amor começadas na Meu coração em cósmicos apelos Buscando-te na altura alcantilada!
troca de mensagem nestes cadernos.
Geralmente os cadernos eram cultiva- Que vibrando, qual nota de desejos, Mas... és meu horizonte vesperal,
dos pelas moças, ficando os rapazes na Pulsa, crepita, exulta e apoteosa Onde assim como o sol eu morrerei
Sobre a clave de sol dos teus cabelos! Na cósmica ilusão de outra alvorada!
disputa para escrever nos mesmos. Tam-
bém ali já despontavam talentos. Um Nascimento Morais Filho José do Nascimento Morais Filho
dos meus álbuns guarda poemas do
2 Pesquisadora de Cultura Popular e autora dos livros Pecados da gula: comeres e beberes da gente do Maranhão, Rezas, benzimentos e orações: a fé do povo e
outros. Membro Titular da Comissão Maranhense de Folclore.
3 José do Nascimento Morais Filho – professor, poeta, jornalista e folclorista maranhense falecido, participante do Modernismo no Maranhão
(WWW.antoniomiranda.com.br – acesso em 12/01/2012).
4 Boletim 50 / agosto 2011
sa Tenda Espírita de Umbanda Rainha Ie- dizada. A sua identificação com a umban-
A MINA MARANHENSE E A
manjá, na cidade de Codó, regido pelo no- da é tão forte que, na prática, são tidas como
UMBANDA/JUREMA
nagenário babalorixá Bita do Barão. sinônimos. Assim, um ritual de Jurema não
Apesar de a Mina-jeje, representada se diferencia muito, pela estrutura, do ri-
Mina ou Tambor de Mina é a denomi-
pelo modelo da Casa das Minas, ser vista tual dos orixás. Foram assimilados à Jure-
nação genérica dada às manifestações reli-
como referência principal para o Tambor ma: exus e pombagiras; o processo de reco-
giosas afro-brasileiras ao Norte do Brasil.
de Mina, é, contudo, com o modelo da lhimento, sacrifício, assentamentos e fes-
São Luís é sua referência geográfica. Cida-
Mina-nagô, ligado à Casa de Nagô que a tas de apresentação nos processos iniciáti-
de onde dois grandes terreiros se destaca-
denominação mais se identifica, tanto no cos, além da roda de santo (gira), o tambo-
ram como centros de culto aos voduns je-
Maranhão como no Norte do país. Sua res (elus), os cânticos, pontos riscados, os
jes, orixás iorubanos e entidades caboclas
principal característica é a abertura para trabalhos mágicos (linhas de direita e es-
de diversas origens: a Casa Grande das Mi-
outras entidades e ritos. Na Casa de Nagô, querda) etc. Por outro lado, as mesas de Ju-
nas, que, segundo Verger (1990), foi funda-
além dos orixás, cultuam-se os voduns je- rema vão desaparecendo, restando sua re-
da por uma rainha-mãe do Dahomé (atual
jes, os gentis (fidalgos), gentilheiros, meni- miniscência na chamada Jurema de chão.
República do Benin), levada para São Luís
nas e uma miríade de caboclos cujas princi- A bebida da Jurema vai se tornando cada
como escrava, e a Casa de Nagô. Hoje, en-
pais linhas são da água salgada (os turcos), vez mais simbólica.
tretanto, para falar de Mina maranhense
da mata (Codó) e os da água doce (cura).8 No ritual de Jurema batida (com toque
devemos considerar que o modelo das ca-
A Umbanda, em João Pessoa, caracteri- de elu e roda de santo), começa-se com a lou-
sas matrizes já não é suficiente para expli-
za-se pelo culto aos orixás e entidades diver- vação a Exu, em seguida louva-se Pombagi-
car a diversidade que a palavra abrange.
sas do panteão umbandista, matizados lo- ra, entidades muito prestigiadas nesses ritu-
É importante destacar que a Mina se
calmente. Nela podemos perceber nitida- ais. Logo depois, eles são despachados. Abre-
diferencia bastante das outras denomina-
mente elementos da “síntese refletida”, con- se, então, a gira pedindo permissão aos san-
ções afro-brasileiras, seja na organização das
forme disse Ortiz (1999). Estão presentes os tos católicos, orixás (especialmente a Oxós-
entidades em complexas famílias de paren-
elementos africanos (desafricanizados e rea- si), pretos-velhos ou outras entidades. Faz-se
tesco, nas relações das famílias (voduns,
fricanizados ao mesmo tempo), católicos, a louvação à Jurema com o corpo vergado e
orixás, gentis, gentilheiros, guias, caboclos,
kardecistas e da cultura popular. Podemos os joelhos no chão. Começam, então, as lou-
meninas, espíritos) entre si e das entidades
divisar nitidamente dois lados da Umbanda vações para as entidades: caboclos (de pena,
com os santos católicos, seja na pouca prio-
em João Pessoa. Um, no qual se cultuam os índios, pajés, caboclinhas); mestres (boiadei-
ridade dada aos sacrifícios de animais. Ou-
orixás baianos, em número de 12 (Exu/Pom- ros, Zé Pelintra e uma infinidade de “zés”),
tra característica que se destaca é o fato de
bagira9, Ogum, Ossaim10, Oxossi/Odé, Oba- mestras (com nomes pessoais. Algumas fo-
os caboclos pouco se associarem a espíritos
luaê/Omulu, Nanã, Xangô, Oxum, Iansã, ram pombagiras, outras ciganas ou caboclas
de índios, os antigos moradores da terra:
Ibeji, Iemanjá, Oxalá). O ritual é celebrado que se tornaram mestras), pretos e pretas
Os caboclos, além de serem antigos na em português, língua usada também pelas velhas, baianas (pouco se fala em baiano). As
Mina, há muito deixaram de ter vida terre- entidades; são oferecidos diversos tipos de crianças aqui baixam como caboclinhos (as).
na. No Tambor de Mina, eles não são índi- sacrifícios, incluindo os de sangue, e os ritu- O povo cigano não é regularmente cultua-
os, embora tenham, geralmente, alguma ais centram-se no transe e na possessão. do; normalmente, eles são associados a pom-
relação com eles. De acordo com a mitolo- Entre os adeptos, esse lado é visto como o bagiras ou exus ciganos.
gia, são brancos europeus, turcos (mouros) mais nobre, o mais puro e o que pede mais Conforme salientou Boaes (2009), es-
e crioulos, de origem nobre ou popular que respeito, pois os orixás estão associados di- ses dois lados, apesar de conviverem no
entraram na mata ou na zona rural, ou ain- retamente ao panteão de santos católicos, mesmo espaço, são mantidos separados. Há
da que, renunciando ao trono e à civiliza-
incluindo o próprio Jesus Cristo e o Deus uma preocupação entre os adeptos da Um-
ção, aproximaram-se da população indíge-
na, miscigenando-se com ela e distancian-
Supremo ou ligados aos deuses Africanos. banda em não misturar diretamente os ori-
do-se dos padrões de comportamento das O outro lado refere-se à Jurema, que – xás com a Jurema (há algumas exceções).
camadas dominantes. São também, em dito por muitos e difundido como uma es- Assim, em gira de orixá, não se louva e não
menor escala, índios ‘civilizados’ (acabo- pécie de mito fundador – é uma manifesta- baixam entidades da Jurema. Da mesma
clados) ou miscigenados, recebidos na Mina ção genuinamente paraibana da cidade de forma, nos rituais de Jurema, os orixás não
como caboclos. (FERRETTI, 2000, p.86) Alhandra. O que percebemos, entretanto, arreiam diretamente, apesar de serem lou-
é que o que se designa por Jurema não é vados, especialmente Oxóssi, conhecido
De forma geral, na Mina, podemos dis- simplesmente a “ciência dos mestres”, que como o patrono da Jurema devido a sua
tinguir três grandes eixos além de várias ori- em tempos passados, comandava rituais de relação com as matas. Oxóssi se manifesta
entações mais difusas, nas quais se combi- mesa de Jurema com forte inspiração kar- na Jurema através de seus mensageiros, os
nam elementos das três. São elas: Mina-jeje, decista, do espiritismo popular e do catoli- caboclos. Dizem que o culto aos orixás é
Mina-nagô e o Tambor da Mata ou Terecô. cismo popular. Também não é o ritual indí- limpo, ao passo que na Jurema predomi-
Este último também identificado como a gena do culto à árvore da jurema, na qual se nam a cachaça e a fumaça.
linha de Codó7. Além disso, o campo religio- bebia uma infusão das partes dela (especial- A porta de entrada para a Mina em João
so afro-brasileiro no Maranhão não se limi- mente das raízes) para entrar em transe e pessoa foi o Terreiro Afro Ogum de Malê,
ta à Mina. Há terreiros que seguem o mode- propiciar o encontro com o mundo dos fundado na década de 70 e funcionou até
lo do Candomblé baiano e do Xangô per- invisíveis. A Jurema que é praticada hoje, 2010, quando seu titular – pai Moraes –
nambucano, além daqueles que se umban- embora preserve elementos das mesas dos resolveu fechá-lo por motivos de saúde. En-
dizaram há algumas décadas, como a famo- mestres e do ritual indígena, está umban- tretanto, o fechamento do terreiro matriz
7 Cidade maranhense localizada a 292 quilômetros da capital São Luís. É considerada importante pólo das religiões afro-maranhenses.
8 “Na Mina, as entidades caboclas são também agrupadas em ‘linhas’ de água salgada, da mata, da água doce e do astral (por domínios da natureza). A linha de
água salgada é considerada a mais antiga e a verdadeira linha de Mina. A ela pertencem todas as entidades caboclas que, como os voduns e os gentis, vieram
de terras distantes e civilizadas, pelo mar, e que têm origem nobre (como os turcos)” (FERRETTI, 2000, p. 81).
9 Sobre Pombagira, muita polêmica se desdobra. Alguns pais de santo a admitem na gira dos orixás, enquanto outros não a aceitam.
10 Na maioria dos terreiros frequentados (Umbanda), este orixá não faz parte do xirê; entretanto, ele figura entre os doze, porque, em alguns terreiros, por ocasião
da feitura de filhos, ele recebe oferendas e no dia da apresentação pública é o primeiro a sair com o iniciando.
6 Boletim 50 / agosto 2011
CONTINUAÇÃO
não fez desaparecer a Mina em João Pes- tidades caboclas que irradiam (“focalizam”) assim, a cabocla Mariana ainda atende al-
soa, pois, pelo menos dois ou três filhos fei- alguns dos dançantes. No geral, os encan- gumas pessoas, mas seu trabalho é só de
tos por pai Moraes continuam realizando tados que baixam no terreiro de pai Mora- iluminação e de banhos. Pai Moraes disse
os rituais do povo das águas. es e dos seus filhos, pertencem às famílias que, por causa disso também, não iniciou
Pai Moraes (José Raimundo Moraes do Rei da Turquia, de Légua Boji e da Baía. nenhum filho na Mina em João Pessoa,
Araujo) nasceu na pequena cidade da bai- Segundo pai Moraes, o fato de louvar pois os axés são diferentes. Sobre isso, veri-
xada ocidental maranhense, chamada Be- apenas os caboclos e não as outras entida- ficamos uma contradição a partir do que
quimão. Ainda criança, mudou-se para São des, deve-se à falta de suporte material e nos informou mãe Dilene, pois, segundo
Luís, onde completou seus estudos, tendo mesmo espiritual para cultuar voduns e ela, além dela mesma, pai Moraes iniciou
concluído o curso científico em importan- orixás12. Assim, os toques de Jurema são mãe Iolanda (primeira mãe pequena do ter-
te escola maranhense, o Centro Caixeral mais adequados para se cultuar o povo das reiro), pai Léo (filho carnal de mãe Dilene)
Benedito Leite. Aos 18 anos, casou-se com águas, porque no toque de orixá, a “panca- e Josy (neta de santo, filha de mãe Zefinha).
uma paraibana, que seria, dez anos mais da” (a batida dos tambores) teria que ser Compreende-se, contudo, que, ao dizer que
tarde, responsável por sua transferência diferente. Além disso, teriam que ser invo- não havia iniciado ninguém na Mina em
definitiva para a cidade de João Pessoa, em cados Dom Manuel, Dom Rei Sebastião, João Pessoa, não é o mesmo que dizer que
1969. Em São Luís, morando no bairro Dom Luís Rei de França (Gentis) e Tom- não tenha “assentado” entidades na Mina.
Monte Castelo, onde nas proximidades se bossa (Oxum), Badé (Xangô), Barba Soeira Na verdade, como pudemos notar, os “as-
localiza um importante terreiro de Mina, o (Iansã) e outros voduns. Acrescenta ainda sentamentos” eram feitos no processo de
Terreiro de Yemanjá, do já falecido pai de que a religiosidade na Mina é a toda prova, iniciação da Jurema. Mãe Dilene nos disse
santo Jorge de Itacy (Jorge Babalaô), pai ou seja, há muitas exigências que não exis- que as entidades da Mina só podem ser as-
Moraes relata que, mesmo não gostando tem na Umbanda. Por exemplo, antes do sentadas se o adepto já tiver dado obriga-
da religião, certa vez foi tomado de sobres- toque, é preciso que se faça uma procissão ção completa na Jurema (se iniciado em
salto por uma entidade enquanto dormia em volta do terreiro, pedindo permissão a todas as linhas da Jurema, dos exus/pom-
e, por último, inconsciente, foi aparecer Liçá (Oxalá), e, antes de entrar no terreiro, bagiras aos pretos e pretas velhas, passando
neste terreiro durante um toque.11 todo filho deve se dirigir às seções de ba- pelos caboclos (as), mestres(as) e baianas).
Mas a sua iniciação na religião afro-bra- nho localizadas nas laterais. Lá deve tomar Isto nos indica que o “povo da Mina”, aos
sileira veio ocorrer mesmo quando já estava um banho normal, depois banhar-se com poucos, vai se transformando em uma li-
residindo em João Pessoa. Nesta cidade, co- águas de cheiro, trocar toda a roupa do dia- nha a mais dentro do panteão da Jurema.
nheceu um pai de santo, que, embora tives- a-dia pela roupa de santo (branca) e entrar Sobre os “assentamentos”, destacamos
se terreiro na cidade de Recife, era filho de no quarto do segredo (peji), firmar seus uma divergência entre as informações da-
santo de Mãe Beata de João Pessoa. Em Re- guias, botar seu cordão no pescoço e só das por pai Moraes e as fornecidas por mãe
cife, em 1969, recebeu o bori e, sete anos então estará pronto para o toque. Exigên- Dilene. Segundo o primeiro, na Mina não
depois, recebeu o iaô, concluindo a sua con- cias que o povo da Umbanda não está acos- há “assentamento” como há na Jurema e
firmação no orixá. Lá também, entre o bori tumado. Seria ainda muita temeridade ba- no Orixá, ou seja, com alguidar e pedra; no
e o iaô, foi iniciado na Jurema. A partir daí, ter para os voduns, pois se trata de uma seu lugar se colocam apenas os príncipes e
pôde abrir o seu terreiro, que, como muitos energia muito pesada e limpa para ser sus- princesas, isto é, copos e taças cheias d’água
em João Pessoa, diz-se Umbanda com nagô; tentada sem outras pessoas suficientemen- que permanecem no peji da Jurema. Para a
desenvolvendo rituais para os orixás e para a te preparadas para tal. segunda, o assentamento é feito em algui-
Jurema em dias separados. A diferença, en- Tudo indica que pai Moraes escolheu dar com a pedra. Aliás, informou que a ca-
tretanto, em relação aos demais, é que pas- apenas aqueles elementos da Mina consi- bocla Mariana possui dois assentamentos,
sou a cultuar o povo das águas do panteão derados menos poderosos, ainda que mui- um que foi feito por pai Moraes, em João
da Mina maranhense, na qual também foi to populares – os caboclos – para cultuar Pessoa, e um feito por mãe Diquinha, em
iniciado em São Luís. na Jurema, considerando as limitações men- São Luís. Pai Moraes, ao “assentar” a cabo-
No terreiro de pai Moraes, a Mina en- cionadas: falta de abatás (tambores com cla Mariana para mãe Dilene, devido às li-
trou pela porta da Jurema e não pelo culto duas membranas tocados sobre um cavale- mitações já mencionadas, não conseguiu
aos orixás. O povo das águas se tornou hós- te ou entre as pernas, dependendo da linha estabelecer a ligação ideal entre a entidade
pede da Jurema. Segundo este pai de santo, a ser louvada); abatazeiros (ogãs) conhecedo- e a filha. Por isso, quando a entidade vinha,
e, conforme pudemos constatar nos diver- res dos toques específicos da Mina; alguns maltratava-lhe muito, primeiramente por-
sos rituais que observamos, apenas algumas ritos específicos que não poderiam ser fei- que não se manifestava como cabocla, mas
entidades do complexo panteão “mineiro” tos aqui, como os banhos propiciatórios, como sereia, arrastando-se no chão e “esba-
são cultuadas em João Pessoa: os caboclos, uma vez que não há, em João Pessoa, as er- queando” a matéria. Neste assentamento,
que como já dissemos anteriormente, são vas utilizadas na sua preparação; e, em senti- havia um alguidar, uma pedra e outros ob-
distintos dos caboclos cultuados na Jurema, do mais geral, falta de pessoal com conheci- jetos, como moeda, flores etc. Por causa
ou seja, espíritos de índios. Assim, os outros mentos de doutrinas, rezas e demais elemen- dessa deficiência, mãe Dilene precisou ir a
do panteão “mineiro” (voduns-jeje, gentis tos ritualísticos da Mina maranhense. São Luís para ser iniciada na Mina. Esteve
(fidalgos) e gentilheiros) não são cultuados. Algumas destas dificuldades também lá três vezes. Na última, lá permaneceu oito
Pai Moraes incorporava no terreiro, estariam na base das limitações que impe- dias, quando a sua iniciação foi concluída.
Seu Tapindaré (seu guia, a quem se refere dem as entidades da Mina de prestarem Mãe Diquinha, tomada por Chica Baiana
como vodun), Legua Boji, Corre-Beirada, assistência aos adeptos e ou clientes no dia- foi quem realizou o ritual numa praia, pois
Seu Banzeiro e outras entidades cujos no- a-dia. Segundo mãe Dilene, a linha da Mina a iniciação não ocorre dentro do terreiro,
mes não se recorda mais. A mãe pequena – trabalha muito com cura, mas para isso, precisa-se ir para o mar, lugar da encanta-
Mãe Dilene – é guiada pela cabocla Maria- precisa de elementos típicos do Maranhão, ria, onde vive o povo das águas, o povo da
na, também referida como sua coluna mes- por exemplo, o espinho de tucum13, a rosa baía. Lá a entidade é invocada e assentada.
tra. Baixam ainda, caboclo Louro, Maria verde, e outros da fauna e flora maranhen- A “neófita” é submetida a uma série de “tes-
Rita e Mãe Joana, irmãs de Mãe Chica (Chi- se, como o óleo de copaíba e de piqui que tes” para saber se a possessão é verdadeira;
ca Baiana), Seu Maresia e várias outras en- antes não existiam em João Pessoa. Mesmo só então, retorna-se ao terreiro para reali-
11 Para os padrões de classificação racial brasileira, pai Moraes pode ser considerado branco.
12 Aqui ele chama “orixás” os Gentis (fidalgos) como Rei Sebastião, Dom Luís, Dom Manuel etc.
13 Segundo relatou, uma vez comprou em uma casa local de produtos religiosos alguns espinhos como sendo de tucum; contudo, quando sua mãe de santo de
São Luís a visitou, constatou que eram falsos.
Boletim 50 / agosto 2011 7
CONTINUAÇÃO
zar as festas, onde a entidade “baila” a noi- do anti-horário – e começam os momentos Os tambores batiam, o povo cantava e
te inteira. No “assentamento” feito por mãe rituais endereçados a cada linha (nem sem- dançava e alguns se estremeciam. De repen-
Diquinha, há uma pedra escura, das praias pre todas são cultuadas no mesmo toque): te, pai Léo fez sinal pedindo silêncio. Lá de
de São Luís, e duas outras pedras recolhi- caboclos, mestres, pretos velhos, baianas, às dentro do peji, então, ecoou uma doutrina
das em João Pessoa, além de moedas, meda- vezes, louva-se o povo cigano. No dia em que cantada pela própria cabocla Mariana que
lhas, cordões e flores. há toque para o povo das águas, ocorre logo já estava em terra. As cortinas foram levan-
Segundo pai Moraes e mãe Dilene, nos depois que se canta para os caboclos da Jure- tadas e apareceu a grande homenageada:
processos de iniciação na Mina, não há sa- ma. Segundo pai Moraes, abre-se para o “...chegou Dona Mariana...”. Trajava um
crifícios de animais, apenas banhos de toda povo das águas cantando a doutrina: “Eu já belo vestido azul, branco-prateado, saia ar-
espécie e a toda hora. O animal é imolado dividi a terra, agora vou dividir o mar”. Ou mada como das baianas de escola de samba,
apenas para ser servido aos convidados du- seja, já foram saudados os caboclos da terra, no pescoço, um colar de pedras translúci-
rante as festividades; o sangue em si não é agora se passa a saudar os caboclos da Mina, das combinando com os brincos. O rosto
peça fundamental no ritual.14 da água salgada, as famílias da encantaria cuidadosamente maquiado, os cabelos pen-
Diante disso, pai Moraes afirma que maranhense que chegaram pelas “estradas” teados e amarrados. Na mão, segurava um
apenas ele e mãe Dilene são iniciados na (linhas) do mar. A partir desse momento, a maracá coberto com contas brancas for-
Mina, os outros possuem alguma entidade gira que era fechada, abre-se, ou seja, no lu- mando uma estrela de cinco pontas e al-
assentada, hospedada dentro da Jurema. gar do círculo em movimento, formam-se guns pingentes azuis e translúcidos. Can-
Deve-se ressaltar também, que a junção duas fileiras, uma de frente para a outra, tou, dançou, abraçou as pessoas. Dirigiu-
dos caboclos da Mina com a Jurema, dá-se separadas por um espaço livre, onde as enti- se a pai Léo, abraçou-o entregando-lhe o
ainda por existir algum nível de parentesco dades irão “bailar”. Os adeptos começam a se maracá; ele, então, estremeceu o corpo e
semântico entre eles: as mesmas palavras (“ca- deslocar para frente (para o centro do salão) recebeu o Menino Louro, um caboclo da
boclo”, “aldeia”, “guerreiros”) e instrumen- e para trás, numa espécie de dança que lem- família de Légua. Em pouco tempo, outros
tos (maracá), o trabalho com cura e as posi- bra bastante as coreografias do bumba-meu- caboclos e caboclas foram “arreando”.
ções hierarquicamente inferiores e mais boi do Maranhão. No salão, realizaram-se evoluções (dan-
populares que ocupam nos seus respectivos Os tambores permanecem os mesmos ça), a cabocla Mariana banhava-se com per-
conjuntos, o que os torna mais receptivos e utilizados anteriormente, a batida conti- fumes presenteados pelas pessoas, enquan-
flexíveis quanto aos seus preceitos rituais. nua a mesma da gira dos caboclos da Jure- to o Menino Louro distribuía comida para
A única vez em que ocorreu um toque ma. Nenhum instrumento específico da todos (peixe frito).
de Mina completo, “Mina pura”, em João Mina é acrescentado (cabaças ou aguês, O salão foi decorado com fitas e enfei-
Pessoa, segundo pai Moraes, foi no ano de agogô, ferrinho). Raríssimas vezes, pudemos tes nas cores azul e branco. Havia um mane-
2000, quando recebeu uma expedição de “mi- ver uma das participantes chacoalhando quim (tamanho de uma pessoa) vestido com
neiros” em seu terreiro: “Há uns dez anos uma cabaça grande coberta por uma rede roupa parecida com as da cabocla Mariana,
atrás, veio um terreiro todinho, veio um de contas. Há também pequenos maracás usava um turbante branco e na mão esquer-
ônibus cheio. Foi o terreiro de mãe Maria, feitos de cabaça, sacudidos por alguns adep- da, segurava um maracá. De cada lado dele,
do bairro do João Paulo, com todos os seus tos, coisa que também pode ocorrer na gira em tripés de metal, havia uma bacia de ágata
filhos de santo. Ficaram hospedados no ter- de caboclos da Jurema. com água cheirosa e, por trás, na parede, se
reiro, e lá fizeram um toque de Mina puro.” Na “festa” dedicada à cabocla Maria- estendia uma grande bandeira da Argenti-
Mãe Diquinha também esteve várias na17, para qual fomos convidados por mãe na.18 Mesas com frutas, comidas salgadas e
vezes em João Pessoa. A sua “coluna mes- Dilene, o toque desenrolou-se tal como des- doces (um bolo confeitado) e bebidas distri-
tra”, Mãe Chica, ou seja, Chica Baiana (bai- crevemos acima com poucas diferenças. Por buíam-se pelo salão. Havia sete recipientes
ana de baía e não da Bahia) foi quem con- exemplo, cantou-se para Exu e Pombagira de louça contendo, cada uma, um pombo
firmou tanto pai Moraes como Mãe Dile- de forma traçada (alternando, ora para um, sacrificado: cinco deles numa mesa de fru-
ne na Mina. Por intermédio dela, aconte- ora para outro). Depois que o povo da rua tas próximo ao peji, um próximo aos elus e
ceu o encontro entre a “ciência da Mina” e foi despachado, a Jurema foi aberta (não outro na entrada do salão. Na viga central
a “ciência da Jurema”. houve louvação com os joelhos no chão). de sustentação do telhado, foram colocados
Falemos agora do toque de Jurema no Começou-se cantando para os caboclos da em sequência, da rua para dentro: um imã
terreiro de pai Moraes. Deve-se ressaltar que Jurema, houve poucas incorporações. De- coberto por moedas; um pombo branco vivo;
nem em todo toque de Jurema, nesse terrei- pois de algum tempo, foi cantado ponto de uma espécie de cordão de contas amarelas,
ro, havia ritual para o povo das águas.15 Ini- despedida dos caboclos. Então, o pai de san- brancas e vermelhas; e um peixe de escamas
cia-se com as louvações a Exu, em seguida to anunciou que ia “abrir” para o povo das (uma tainha grande).
canta-se para Pombagira. Depois de algumas águas e entregou o microfone para mãe Depois de uma hora e meia, aproxima-
incorporações, estes são despachados. Abre- Dilene que cantou a toada de abertura (“Eu damente, bailando no salão, os caboclos co-
se a Jurema, cantando louvações que se refe- já dividi a terra, agora vou dividir o mar”). A meçaram a “subir”, deixando em terra ape-
rem à Jurema (árvore, cidade, entidade), tam- festa se desenrolou ao som da mesma bati- nas a cabocla Mariana. Pai Léo, já desincor-
bém a santos ou personagens da tradição da utilizada para os caboclos da Jurema. porado, aproximou-se da mesa onde estavam
judaico-cristã (Jesus Cristo, Salomão, São Em determinando momento, mãe Di- as comidas salgadas e doces, chamou a cabo-
José etc), mestres, caboclos, pretos e pretas lene entregou o microfone para outra pes- cla Mariana para ser homenageada. Todos
velhas.16 Uma vez aberta a Jurema, formava- soa e foi juntamente com pai Léo para den- cantaram os “parabéns pra você” e ele acres-
se a gira propriamente dita rodando em sen- tro do peji da Jurema. Ela estava se reco- centou que assim se fazia no Maranhão,
tido horário – ao contrário da maioria dos lhendo para incorporar e vestir a cabocla embora lá, houvesse mais coisas que em João
terreiros de Umbanda que giram em senti- Mariana, a grande homenageada. Pessoa não se podia fazer.
14 Contudo, mãe Dilene admitiu que, para a cabocla Mariana, ela sacrifica pombos; fato que pudemos constatar na festa de Mariana, onde sete pombos
sacrificados foram espalhados pelo salão.
15 Descreveremos apenas a Jurema batida (com tambores e gira de santo), pois nunca tivemos a oportunidade de observar uma Jurema de chão nesse terreiro.
16 Algumas vezes, antes de cantar o ponto de abertura, é feita a louvação com os joelhos no chão.
17 Este toque ocorreu no terreiro de pai Léo de Xangô, filho carnal de mãe Dilene e filho de santo de pai Moraes. Depois que pai Moraes fechou o seu terreiro em
2010, o terreiro de pai Léo passou a ser a nova referência (em atividade) para Mina em João Pessoa. Este terreiro está localizado em um bairro periférico, ocupando
um grande terreno que se estende de uma rua à outra. Na “rua de cima”, pai Léo mantém outro terreiro, de Candomblé ketu, denominação da qual também é
babalorixá; na “rua de baixo” está o terreiro de Umbanda onde ocorreu a “festa” da cabocla Mariana. Os dois terreiros são separados pela residência do pai de santo.
18 Interrogada sobre essa bandeira, mãe Dilene afirmou que ela representava a nação da cabocla Mariana, com suas cores azul e branco. Não sabemos se a
atribuição dessas cores à Mariana já é uma adaptação feita em João Pessoa, ou se vem do Maranhão; embora saibamos que lá, as cores da família do Rei da
Turquia, à qual Mariana pertence, são o verde, o amarelo e o vermelho.
8 Boletim 50 / agosto 2011
CONTINUAÇÃO
A impressão geral que ficou da festa é a ser assentada, é necessário que o filho já pai Euclides, embora levado de Recife, di-
sua semelhança com o chamado ritual de tenha Jurema completa – o que significa ferencia-se em muito da nação Ketu, por
“vestir o santo”, característico do candom- que aqueles são mais “nobres” que estes. ter incorporado elementos da Mina. E uma
blé, no qual o orixá homenageado é levado Também, enquanto Mariana recebe sacri- de suas preocupações é evitar que seja to-
para o peji, e depois “sai” paramentado para fício de pombos (ave que voa, ligada ao céu mado como um pai de santo de Mina em
dançar no salão (dar rum ao santo). Tal prá- e histórias bíblicas), as outras entidades da João Pessoa, afirma-se enfaticamente como
tica está sendo levada para Umbanda, po- Jurema “comem” bodes e galinhas, bichos pai de santo de Candomblé Ketu.
pularizando-se nas homenagens à Pomba- da terra. Assim como os orixás, os caboclos CONSIDERAÇÕES FINAIS
gira. Tivemos a oportunidade de assistir a da Mina possuem cores características, ao
alguns toques, nos quais “fulano iria vestir passo que as entidades da Jurema não as Apresentamos a confluência entre a Ju-
sua Pombagira”, conforme dizia o convite. possuem, suas cores são genéricas. rema e a Mina, sendo vista esta, como hóspe-
Desta forma, a festa da cabocla Mariana de daquela. Os caboclos da família dos Tur-
A MINA E O CANDOMBLÉ cos, de Légua Boji e da Baía, são as entidades
nos mostra algo da adaptação que a Mina
vem sofrendo em João Pessoa, pois, até O encontro da Mina com o Candom- que se manifestam em João Pessoa, conheci-
onde sabemos, as festas oferecidas às enti- blé em João Pessoa manifesta-se, conforme dos como o povo das águas. Destacamos que
já dissemos, transversalmente, pois o pai de há uma “ajuremação” do povo da Mina, adap-
dades em São Luís, não acontecem desta
santo que foi a São Luís, foi para ser inicia- tações nos rituais quanto às batidas dos tam-
maneira. Em relação à roupa, por exemplo,
do por pai Euclides no Candomblé, deno- bores, a ausência de instrumentos específi-
como diz Ferretti (1997, p.7) “é preciso lem-
minação que não é original de São Luís e cos e elementos materiais usados nos rituais,
brar que as entidades espirituais na Mina
que foi levado para lá por este pai de santo, a formato da festa de Mariana que se asseme-
não usam paramentos muito elaborados.
partir de sua aproximação com os terreiros lha ao ritual de “vestir o santo”, comum, hoje,
Os mineiros costumam dançar “fardados” nas homenagens prestadas à Pombagira. Des-
– todos de calça ou blusa branca e saia ou de Recife. Assim, diferentemente da Um-
tacamos também, que apesar desta “ajurema-
camisa da mesma cor (branca, vermelha, banda, quase nenhuma ocorrência signifi-
ção”, os caboclos da Mina parecem gozar de
verde, amarela, azul, rosa, estampada).” cativa da Mina foi verificada no terreiro de
maior prestígio frente às entidades da Jure-
Os caboclos da Mina, em relação aos pai André.
ma. Por outro lado, no que se refere ao Can-
caboclos da Jurema, parecem assumir uma Sua ida a São Luís deu-se por acaso.
domblé, a influência da Mina, mostra-se se-
posição superior quanto ao prestígio. Al- Inicialmente, recebeu um bori “vermelho” cundarizada. No geral, a direção inicial do
guns aspectos colhidos a partir da presença das mãos de pai Cláudio, irmão de santo de estudo se mantém: em João Pessoa, a Mina
da cabocla Mariana nos mostram isso. Para pai Euclides. Aquele, entretanto, por razões maranhense não se afirmou autonomamen-
mãe Dilene, a cabocla Mariana, juntamen- diversas, desistiu do “sacerdócio”. Por in- te, torna-se, aos poucos, uma linha de cabo-
te com suas outras irmãs Jarina e Erudina, termediação de pai Cláudio, pai André vol- clos dentro da Jurema; no Candomblé, sua
filhas do Rei da Turquia, quando foram tou-se para pai Euclides. O processo de ini- presença é secundária.
encantadas no mar, passaram a ser filhas de ciação começou em 1994 e se concluiu em O estudo teve um caráter exploratório,
Iemanjá, o que justifica, por exemplo, as 2001. Pai André morou em São Luís por visando criar bases sólidas para investigação
suas cores predominantes, o azul e o bran- dois anos, de 1998 a 2000, período crítico posterior. Devido a isto, não é prudente to-
co. Lembrando que a própria mãe Dilene é da sua feitura (iaô). O restante do tempo mar seus resultados como conclusivos. E por
filha de Iemanjá. Assim, então, entre a ca- foi preenchido com idas e vindas constan- fim, ressaltamos as diversas dificuldades en-
bocla Mariana e os orixás se estabelece uma tes de João Pessoa a São Luís. Destacamos, contradas para a construção dos dados. A
relação direta, o que não acontece com os portanto, que a ida de pai André a São Luís, pouca receptividade de alguns pais de santo
caboclos da Jurema, a não ser de forma di- não foi motivada pela busca de iniciação quanto às entrevistas, destacou-se neste
fusa com Oxossi, o patrono das matas. Por na Mina, ocorreu por acaso. quesito.
outro lado, a cabocla Mariana canta dou- Contudo, o contato com São Luís, le-
trinas claras e bonitas em português, ao vou-o a conhecer de perto a Mina. Segundo
REFERÊNCIAS
passo que os caboclos da Jurema balbuci- conta, assistia aos rituais da Mina constan-
am ou emitem sons parecidos com grunhi- temente. E, uma vez, teve uma incorpora- BOAES, Giovanni. África e Brasil: separação
dos. Os movimentos de Mariana são pare- ção violenta com a entidade cabocla da fa- simbólica/social no campo das religiões afro-
cidos com as danças de entidades africa- mília da Turquia, chamada Jurandi. Esta pessoenses. In Revista Caos – Revista de
nas, ao passo que os outros imitam o toré entidade, apesar de não ter sido “assentada”, Ciências Sociais. n. 14, set. 2009. pp 86-94.
indígena, ou movimentos de caçada. As incorpora esporadicamente em pai André BOURDIEU, Pierre. A economia das tro-
roupas de Mariana são muito belas, estilo em João Pessoa, em situações fora do Can- cas simbólicas. 3 ed. São Paulo: Editora Pers-
das baianas das escolas de samba, saias ar- domblé, ou quando muito, no final do “sam- pectiva, 1999.
madas e coloridas de azul, branco e pratea- ba de angola”. Pai André não foi iniciado na CARLINI, Álvaro. Cachimbo e Maracá: o ca-
do, usa belas maquiagens e penteados, en- Mina, pois pai Euclides não inicia nesta timbo da missão – 1938. São Paulo: CCSP, 1993.
modalidade os filhos de santo do Candom- FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na
quanto os caboclos vestem-se de penas, com
blé, para que não tenham dupla pertença, guma: o caboclo do tambor de mina em um
penachos na cabeça, carregando arcos, fle-
correndo o risco de misturar as coisas. terreiro de São Luís. 2 ed. São Luís: EDUF-
chas e bodoques. Além disso, corrobora o
Assim, segundo informou, muito pou- MA, 2000.
fato de Mariana receber pombos nas ofe- FERRETTI, Mundicarmo. Tambor de mina
rendas, tal como os orixás mais nobres (Oxa- co há no seu terreiro que proceda da Mina:
e umbanda: o culto aos caboclos no Mara-
lá, Iemanjá), de vir à terra apenas para bailar. algumas rezas utilizadas em rituais priva-
nhão. Disponível em < http://
E, quando, por ventura, vai desenvolver al- dos (de purificação), algumas cantigas utili-
w w w. g p m i n a . u f m a . b r / p a s t a s / d o c /
gum trabalho, este ocorre apenas para ilu- zadas no xirê (na abertura para Exu, e para Mina%20e%20Umbanda.pdf >, 1997.
minação e cura, com velas e banhos de ervas, Bessen), além de cantar para algumas dei- Acesso em 22 mai. 2011.
não se usando cachimbo, nem cachaça. Usa- dades Ashanti (“Oduíra” e “Asase”). Todas ORTIZ, Renato. A morte branca do feiti-
se água de cheiro e perfume em demasia. essas aproximações, entretanto, foram fei- ceiro negro: umbanda e sociedade brasilei-
Na verdade, ficou a impressão de que a tas em São Luís por pai Euclides; ele (pai ra. São Paulo: Brasiliense, 1999.
supremacia do povo das águas não ocorre André) nada acrescentou aqui em João Pes- VERGER, Pierre. Uma rainha africana mãe
só em relação aos caboclos da Jurema, mas soa; pelo contrário, tem procurado elimi- de santo em São Luís. Revista USP, São
em relação a todas as outras entidades da nar alguns desses elementos no seu terrei- Paulo, n. 6, p. 151-158, jun./jul./ago. 1990.
Jurema, pois, para uma entidade da Mina ro. Para ele, o Candomblé desenvolvido por
Boletim 50 / agosto 2011 9
CONTINUAÇÃO
Outrora havia, nos cortejos reais ou na sistiu idêntica representação teatral em decer; revivendo a vida sofrida e pacata do
procissão de Corpus Christi, uma dança de Minas Gerais. Não se conhece registro bra- trabalho agrário.
mouros ou mouriscada, com o rei e seus sileiro anterior ao século XVIII. Em Portu- A Mourisca vinha das obrigações devi-
companheiros manejando os alfanjes28, nos gal, há menção desde o século XV, com in- das pelos mouros forros no transcorrer dos
cortejos religiosos. Teófilo Braga (1870) His- contáveis variantes, aparecendo às figuras atos em ocasiões de festas (Monarquia lusi-
tória do teatro português, II, 244, cita a Mou- de Carlos Magno, Oliveiros, Ferrabrás, Al- tana, t. 6, fol. 16, col. 2) e concorria em to-
resca com seu rei mouro e Alfaqui. Havia tam- mirante Balão e a princesa moura Floripes. das as solenidades de monta no reinado
bém, na ocasião, um baile (bailado mouris- Mouriscada em Portugal, como Rafael Blu- português, como se lê na Jornada de Nico-
co) dançado na Corte no século XV, que re- teau32 registrou não a tivemos no Brasil, a lau Lanck-mann37, representante de Fre-
siste até hoje, pelo menos sob esse nome a qual derico III, nas núpcias com Dona Leonor,
mourisca, exibida na ilha da Madeira, já es- irmã de Dom Afonso V de Portugal, des-
tudada por Carlos M. Santos29. compunha-se de muitos moços vestidos à crevendo as festas em Lisboa.
A luta entre Cristãos e Mouros têm mourisca, com seus broquéis33 e varas a A luta de cristãos e mouros ainda se vê
modos de lanças, com o seu rei de alfanje
sua popularidade em Espanha desde época na mão, e este dando o sinal se começava a em Portugal e no Brasil. Gallop (1932)38,
imprevisível. Autos e danças vieram para a travar, ao som do tambor, uma espécie de num tempo não muito distante, também
América, com a colonização espanhola e batalha. estudou uma dessas representações em
portuguesa. No novo mundo, a dedicação Sobrado, perto do Porto. No Brasil, cris-
da Primeira Igreja Católica no Novo Méxi- Também vale ressaltar que nem todas tãos e mouros conservam o aspecto cava-
co, na cidade de San Juan de Los Caballe- as manifestações culturais portuguesas ti- lheiresco de justa leal, findando pela rendi-
ros, representou o drama a caráter Cristia- veram suas influências nos primórdios do ção e conversão dos mouros. Quanto à che-
nos y Moros na noite de oito de setembro Brasil Colonial e nem Imperial, como O gança, onde os mouros participam, ela é ti-
de 159830, data de sua inauguração. Jogo-do-Pau. Mas logo depois desse perío- picamente uma batalha naval. Entretanto,
Em Portugal, a batalha é entre cavalei- do, recriou-se no país, provavelmente, por a batalha entre cristãos e mouros é uma
ros, como ocorre no Brasil, em Goiânia descendentes de portugueses e estabeleceu- página de cavalaria, com volteios, floreado
(GO), conforme registro efetuado por Re- se em acampamentos de comunidades ci- de lanças, interpelações e diálogos em lin-
nato Almeida (Revista da Semana, 05/09/ ganas, sendo jogado (exibido) em suas co- guagem arrogante e belicosa39, que começa
1942, Rio de Janeiro, Manifestações folcló- memorações festivas. Monteiro Miguel no mar e termina em terra firme.
ricas de Goiania), as ocorrências festivas são (1997)34 destaca que
ao mesmo tempo, semelhantes e incompa- CHEGANÇA NO BRASIL
ráveis em relação à indumentária. Com es- [...] o Jogo-do-pau teve em Portugal uma
expansão e uma importância muito grande
ses elementos vivos da simpatia espanhola, Não se sabe, ao certo, quando a Che-
até tempos recentes. Situado no quadro
formou-se no Brasil um auto que é a conti- das sociedades tradicionais dos habitantes gança foi transplantada da Europa para o
nuidade do tempo, das batalhas pelo domí- do Ninho Interior e particularmente das Brasil. Alguns autores dizem que foi mui-
nio cristão na península ibérica e liberta- regiões de Fafe, Bastos e das Terras do Bar- to antes de 1815 e outros 1818, há até quem
ção do Mediterrâneo. No norte do Estado roso, ainda que tenha sido eventualmente, diga que foi provavelmente junto com o
exportada para o Sul de Portugal por via da movimento da nossa independência. Quan-
do Espírito Santo, a festa de São Sebastião migração interna35. Esta mani-festação es-
inclui o Alardo31, onde cristãos e mouros palhou-se por uma área nortenha, compre- to ao termo chegança, alguns especialistas
se batem pela posse da imagem do Santo. endendo as províncias de Entre Douro e afirmam que seja originário de palavras
O motivo histórico e popular da luta Ninho, Beira Alta e Beira Interior, Ribate- náuticas como chegar, dobrar as velas à che-
de cristãos e mouros encontrou na chegan- jo e parte da Estremadura, incluindo Lis- gada do navio, e chegada, no sentido de abor-
boa36. Ainda diz o autor que o Jogo-do-pau dagem; pois sua atuação já se fazia presen-
ça brasileira uma forma que não existe em
foi uma prática social dos proprietários
Portugal nem na Espanha e tampouco na rurais minhotos. A eles estavam associados
te, quando aqui estiveram as Missões Na-
América Latina. Em Alcoy, Espanha, lutam referentes simbólicos próprios da elite tra- turalistas e as Expedições Científicas.
cristianos y mouros pela posse de um caste- dicional agrária. No Brasil, os carros alegóricos, as dan-
lo. Luta simulada representada por ocasião ças mouriscas e outras demonstrações apa-
de festas religiosas ou acontecimentos so- É muito importante clarificar que a receram por volta de 1733 até 1760. Exata-
ciais de relevo. No Brasil, foram vistas a re- representação é um misto de esgrima e ca- mente, sobre esses longes tempos, Astolfo
presentação a cavalo constituída de duas poeira. A sua desenvoltura agrega, além do Serra (1965), em seu Guia Histórico e Sen-
alas inimigas, como descreve o francês Au- som abafado de um tambor, um canto ale- timental de São Luís do Maranhão – capítu-
gustin François Saint-Hillaire, quando as- gre ao amanhecer e murmuroso ao entar- lo Festas e Procissões Antigas –, descreve,
e os estudos do folclorista português Luís Chaves: Danças religiosas, separata da Revista de Guimarães, fascículo 4 de 1941; Danças, bailados e mímicas
guerreiras, separata do v. III, de Ethnos, Lisboa, 1942; Páginas folclóricas (3ª parte, ‘Pantomimas, danças e bailados populares’), Porto, 1942. No México,
Robert Ricard, Sur les fêtes de moros y cristianos au Mexique, ‘Journal de la Société des Americanistes de Paris’ (JSAP), XXIV, 51-84, 287-291, 1932, XXIX,
220-227, 1937, XXX, 357-376, 1930; Compte rendu de la XVIe semaine de missiologie de Louvain, 122-134, Bruxelas, 1938; John E. Englekirk, ‘Notes on
the repertoire of the New Mexican spanish folktheater’, Southern folk-lore quaterly, v. IV, nº 4, Gainesville, Flórida, dezembro de 1940.
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CONTINUAÇÃO
com nitidez, um cenário nostálgico, quan- Ilhéus, viu o desfile com o embate subse-
to a essas encenações em palcos móveis, quente (idem, 86). Na inauguração, da ci- FESTAS JESUÍNAS
conduzidas a pulso pelos homens das Irman- dade de Goiânia do Goiás (1942), Renato
dades religiosas, na forma de padiola, em Almeida estudou o baile equestre de cris- As festas jesuínas foram introduzidas
desfiles pelas ruas de São Luís. Foi assim a tãos e mouros vestidos a caráter, em bata- no Brasil em fins do século XVI. É uma
era religiosa do Maranhão setecentista; lha sob o esquema das velhas quadrilhas de herança da Pastoral Jesuítica de Portugal;
marcada pela influência espiritual da Igre- cavaleiros. Aliás, esses torneios existem se- da Vilâncio da Espanha; da Pastorela da Itá-
ja na América Portuguesa e Espanhola. cularmente na Península Ibérica, desde a lia que, com as adaptações e transforma-
expulsão dos árabes. Não havia cantos e ções de seu ciclo evolutivo, foram se mistu-
As liturgias das procissões eram rigorosa- músicas, como de fato não existem nessa rando às festas populares. Ainda mais com
mente obedecidas nos tempos da Provín- cavalgata. a contribuição de mestiços, negros libertos
cia. Um ofício de 21.01.1777 do Governa- Esse auto que se alterna entre o natal e e escravos, a manifestação assume feições
dor Joaquim Melo e Povoas, consta que peculiares e próprias. As festas jesuínas sim-
o carnaval tem sempre um cortejo inicial,
nesse ano, lhe fez celebrar a procissão de bolizam as caravanas que se dirigiam a Be-
São Sebastião com parada de tropas e sal-
como no teatro grego, cantando e recitan-
vas de tiros. Na procissão de Corpus-Chris- do episódios da vida no mar. Uma nau so- lém, com a finalidade de comemorar o nas-
ti, a Câmara40 pagava os ciganos para freu os efeitos de uma tempestade e vagou cimento do Menino Jesus. São representa-
acompanharem travando diversas danças. errante durante sete anos e sete dias e a ções alegres e brejeiras, nas quais os perso-
Essas procissões como a de Corpus-Chris- fome ataca todos os tripulantes. Na sorte, nagens representam enredos e motivos alu-
ti movimentavam a velha cidade. Traba- escolhe-se um tripulante – o Capitão, que sivos ao júbilo pelo auspicioso aconteci-
lhavam-se para ela o ano inteiro, e além mento. São cortejos que vão de casa em
daqueles ciganos, também, haviam outras
morto, saciará a fome dos demais. Antes de
figuras simbólicas como os farricocos, evo- executarem o capitão, que foi sorteado, Ele casa, cantando e dançando, representando
cações de santos, de quadros bíblicos que, diz que Nosso Senhor fará o milagre de Peças Sagradas, Autos, Cheganças, Pasto-
a caráter dava à solenidade um tom profa- chegarem todos vivos em terra de Espanha. rais e Reisados, a depender da região e da
no e carnavalesco. Esses cortejos religiosos Enquanto isso, Satanás, encarnando-se no época do ano.
valiam por um espetáculo daquela fé extre- Gajeiro, de tudo faz para impedir que isso Juntamos a este trabalho, as pesquisas
ma dos maranhenses41. do Professor José Ribeiro (1970)45 que re-
aconteça. Fazem parte desse teatro popu-
lar os personagens: mestre capitão, coman- presentam uma substancial contribuição
Essas danças dramáticas eram aprecia- histórica, extraídas do pensamento popu-
dante, piloto, cirurgião, Sabóia, marujo e
das pela sociedade, já que eram suportadas lar, sobre as festas jesuínas ou natalinas,
os palhaços vassoura, ermitão e ração.
pela Igreja, a qual, através dos Jesuítas, já enquanto representações culturais.
O auto é alçado pela marcha que dan-
havia utilizado os artifícios expressivos da
ça, com passos marcados, sacudido pelas
dança, da música e do teatro para catequi- músicas próprias e parte versada ou recita- MOUROS
zar índios. Já a Chegança, como dramalhão da, os quais são chamados de jornadas. Em
de rua, só começou a se popularizar no Bra- algumas partes do Brasil, essa opereta é com- Quanto à coreografia, mouros e cris-
sil, no início do século XIX – momento em posta de canções brasileiras e de algumas tãos formam duas hostes distintas, separa-
que os autores românticos abandonaram narrativas populares portuguesas em verso das por uma grande distância. A festa reali-
as regras de composição e estilo dos auto- (xácaras), mas o diálogo ainda é predomi- za-se à beira-mar e os disputantes vestem-
res clássicos e passaram a escrever e divul- nante com relação ao canto, que manifesta se com roupas flutuantes. Emissários esta-
gar seus temas em antigas tradições ibéri- os mitos locais. É uma dramatização da vida belecem comunicação entre as facções, le-
cas. Romances altamente bem difundidos no mar, que representa as aventuras das vando e trazendo recados por correios a ca-
porque narravam as grandes expedições embarcações marítimas portuguesas, que valo. Vestem-se com trajes cômicos. Os cris-
náuticas e, também, as representações tea- representa fome, tribulações, naufrágios, tãos mandam um convite aos mouros para
trais conhecidas como mouriscas, que usu- tempestades, romances, danças, anedotas, se batizarem, convertendo-se, consequen-
almente encenavam o combate entre cris- ditos, lendas e orações. temente, ao catolicismo. Os mouros repu-
tãos e mouros, relacionados a episódios da Vestidos de marinheiros, os atores dan- diam o convite. É declarada a guerra entre
vida marítima e às lutas memoradas entre çam ao som de instrumentos de corda, acor- os oponentes. Os mouros desembarcam e
esses dois povos. deom, percussão e com um sapateado pró- os dois exércitos travam combate na beira
Em 1814, Henry Koster42 presenciou prio da brincadeira. Este dramalhão é uma da praia. Lutam corajosamente. Por fim,
na ilha de Itamaracá na Bahia, a tomada de das heranças ibéricas mais rica e mais viva, os cristãos saem vitoriosos e exigem o ba-
um castelo marítimo dos mouros pelos cris- ainda presente na cultura popular brasilei- tismo do Rei dos Mouros.
tãos. O botânico Carl Friedrich Phillip Von ra, somente variando o nome, de acordo
Martius43 - que chegou ao Brasil em janei- com a localização: fandango, marujada, bar- NAU CATARINETA
ro de 1817 -, em 1818, viajando pelas Mi- ca, chegança de marujos e nau catarineta.
nas Gerais, assistiu à cavalgada luxuosa no Estas apresentações obedecem a um calen- A Nau Catarineta é um episódio épico
Tejuco, comemorando a aclamação de Dom dário instituído nas diversas localizadas que lembra a Odisseia, relatada por Homero.
João VI. Cristãos e mouros vestiam veludo onde existem. A escalada de apresentação É uma Ode romanceada que, pelo fascínio
azul e vermelho, bordados a oiro44, e fize- da Chegança começa no último mês de cada do seu enredo dramático e pelos mirabolan-
ram um lindo jogo de agilidade, com ron- ano. Ainda por coincidência é o mês da tes efeitos pictóricos da coreografia, trans-
das e giros fidalgos, antes da batalha (in Natividade, mês do surgimento do cristia- forma-se em um bailado. A estória se desen-
Antologia do folclore brasileiro, p. 83). Em nismo no século I. volve a bordo de um navio que parte do lugar
40 Eram obrigações das Câmaras com as Igrejas custearem esses rituais de fé.
41 SERRA, Astolfo. Guia Histórico e Sentimental de São Luís do Maranhão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1965.
42 KOSTER, Henry. Viagem ao nordeste do Brasil, 221, 415. São Paulo, 1942. (Coleção Brasiliana).
43 VON MARTIUS, Carl Friedrich Phillip. In: Antologia do folclore brasileiro. S. Paulo: Ed. Martins, 1944.
44 Oiro: variação de Ouro.
45 RIBEIRO, José. Brasil no Folclore. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora Limitada, 1970. p. 426-429.
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CONTINUAÇÃO
de apresentação à consagrada Lisboa na épo- continua e, afinal, a Nau Catarineta alcan- As festas dos praieiros do norte quase sem-
ca das conquistas marítimas de mil quinhen- ça seu destino. No desembarque, desco- pre giram em torno de cultos populares:
São Pedro, Nossa Senhora dos Navegantes,
tos e quarenta e dois. Depois de cruentos brem um contrabando com os guardas- Bom Jesus dos Navegantes, São José do
combates e lutas dolorosas, chega, afinal, a marinha, que são presos e a mercadoria Ribamar etc. Enfeitam-se as povoações de
um porto seguro. Abaixo, quem afirma este apreendida. Os marinheiros cantam alegres bandeirolas e fogueiras. Estouram fogue-
desenrolar facetado é o renomado mestre e e felizes, com o fim da jornada, depois das tes, rojões. Cores. Luzes. Sons. E, no meio
pesquisador José Ribeiro46, o qual mostra peripécias, nas quais a vida parece chegar de tudo isso, o agitar das canoas e jangadas
engalanadas no mar e o bulir das gentes nas
outra variação desse dramalhão. Sua indu- ao fim e, ao mesmo tempo, renascer. praias onde o canto, a dança e a música
mentária é caracteristicamente de navegado- dominam. Tudo se movimenta. Tudo assu-
res, e o auto se divide em três partes: CHEGANÇA NO NORDESTE me ar festivo, alegre, feliz 48.
1) Surge um navio sobre rodas arrasta- BRASILEIRO
Para que melhor se compreenda a ra-
do pelos marujos. Formam-se em filas, de
zão do fervor com que o povo praieiro do
braços dados, e balançam o corpo, como se A chegança de Mouros, ou simplesmen-
Brasil faz estas festas, bastará ler, nas pági-
tivessem a bordo. O Comandante da nau te chegança, como é chamada pelo povo,
nas do citado artigo – o qual nos descreve
avisa o emissário do navio dos mouros, que continua a vigorar no nordeste, nos Esta-
lhe traz intimação para que se renda. Recu- dos da Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande com opulência de cores – as ações de uma
sa-se. Travam combate entre os dois navi- do Norte, Ceará e Maranhão. Aparece apre- rapsódia popular, cujo tema revive a luta de
os. Vencem os cristãos e exigem que o filho sentando somente temas marítimos ou cristãos e mouros, através de pitoresca ce-
do Sultão se converta ao catolicismo, sob encenando a luta entre mouros e cristãos. nografia ao ar livre. Afirma, entusiastica-
pena de morte. Ele, para não morrer, con- Em Sergipe, é dançada no período na- mente, o consagrado autor que:
corda em mudar de religião. Eis que chega talino e, às vezes, em outras épocas do ano. Numerosas são as festas locais dos praiei-
o Sultão Pai e desespera-se ao saber que o Empregam o termo marujada para indicar ros e sempre relacionadas com o padroeiro
filho se converteu. Amaldiçoa-o e suicida- as cenas de inspiração náutica e o conjunto da região. No litoral do Maranhão tornou-
se famosa a festa de São José do Ribamar.
se em seguida. Seu corpo é atirado ao mar. dos personagens que as executam. Já o ter-
Nas praias do Recôncavo Baiano constitu-
2) Esgotam-se os víveres da Nau Catari- mo mourama indica ora a representação da em uma nota pictórica de relevo as procis-
neta e grassa a fome entre a tripulação. O luta entre mouros e cristãos, ora os persona- sões marítimas de Nossa Senhora dos Na-
Capitão resolve tirar a sorte para decidir gens mouros, enquanto o folguedo como um vegantes. E assim noutras localidades lito-
quem deverá ser comido, e o seu nome é sor- todo é denominado Chegança. Conservam râneas (Idem, p. 40).
teado. Preparam-se para a execução, e o Capi- ainda certo aspecto religioso. É representa- As Cheganças são também festas das
tão manda o gajeiro (que é o diabo, em figura da no dia de Reis, quando se celebra a festa Janeiras, como se chamava antigamente
de gente) ver se avista terra. O Gajeiro galga o de S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário, todos os divertimentos das noites de Reis,
mastro, mas, da primeira vez, só avista sete integrando-se aos demais grupos folclores o que nós hoje chamamos de Reisados. Em
espadas para matar o seu superior; este insis- que vão à igreja fazer louvação aos santos 1976, desvendando esse auto, a antropólo-
te em afirmar sua visão por longo tempo e, padroeiros. Participantes dessa manifesta- ga Beatriz Góes Dantas (1959)49 narra uma
finalmente, o Gajeiro informa: Já vejo terras ção explicam que a Chegança resulta de uma versão contemporânea da Chegança, ain-
de Espanha, / Areias de Portugal! / Também promessa feita por tripulantes de uma em- da com aspecto religioso em duas cidades
vejo três meninas / Debaixo dum laranjal. barcação que, durante uma viagem, enfren- sergipanas, Lagarto e Laranjeiras, já men-
O comandante declara que são as suas tou forte tempestade, recorreram à Virgem cionado anteriormente, com devoção a São
próprias filhas e as oferece ao gajeiro, se ele do Rosário e, por sua intercessão, foram Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
o salvar. O Gajeiro, entretanto, exige como milagrosamente salvos. Assim explicam a Desafiando a perspicácia dos estudio-
recompensa a Nau Catarineta. O Capitão encenação do auto na festa da Virgem e ra- sos, continuam a vigorar no Nordeste as
responde que lhe dá todas as três filhas, suas zão da longa louvação no interior do Tem- duas formas de Chegança: uma represen-
terras, todo o seu ouro e prata, menos a Nau, plo após a celebração da missa. tando exclusivamente temas marítimos; a
demonstrando que é uma parte de si mes- Nas páginas da obra do mestre Luís da outra encenando em trechos da luta entre
mo, como se fosse sua alma. Então, o Gajei- Câmara Cascudo (1962)47, encontra-se vas- mouros e cristãos, acrescida de movimen-
ro exige sua alma, para levar para o inferno. tos textos sobre a Chegança e outras danças tos de inspiração náutica. Auto popular
O Comandante diz que sua alma pertence a dramáticas. Consta que, na Paraíba, a che- constituído de várias partes ou jornadas
Deus, a atira-se ao mar. Três Anjos o salvam. gança é chamada Barca; no Rio Grande do independentes entre si, quase sempre sem
3) Os marujos consertam as velas e rea- Norte, a manifestação é relativamente re- sequência preestabelecida em sua represen-
lizam outras tarefas normais de bordo, en- cente, data de 1926; e em Alagoas apresen- tação, a Chegança é, às vezes, representada
quanto cantam melodias ligadas às suas vi- tam-se, também, cheganças unicamente numa armação de madeira em figura de um
das aventureiras, de almas errantes. Sobre- com elementos femininos. Diégues Júnior barco. (DANTAS, 1976, p. 4)
vém uma tempestade e a Nau quase vai a informa a existência da Chegança Flor do Baseado em registros disponíveis, Andra-
pique, mas é salva pela arrojada tripulação. Mar, no município de Marechal Deodoro. de (1959, p. 122) afirma que, na segunda me-
Trava-se uma discussão entre o Capitão e o O escritor Joaquim Ribeiro – em sua tade do século passado (XVIII), já existiam as
Piloto, os dois lutam, e o último ferido des- jangada, navegando em direção às praias do duas Cheganças que, possivelmente, teriam
falece. Pedem a prisão do responsável. Mas, nordeste – descreveu, em seu livro Os bra- sido organizadas mais ou menos literalmen-
quando o Capelão vem para ministrar os sileiros, um capítulo que trata das Festas te por alguns poetas e alguns músicos mais
sacramentos grita que ele ainda vive, já que dos Jangadeiros, outra contribuição subs- ou menos no princípio do século XIX.
o Gajeiro não morre, pois ele é o próprio tancial à cultura brasileira de notável refe-
diabo em forma de gente. Enfim, a viagem rência, que destaca: Continua no próximo Boletim da CMF.
A
batida é típica, característica: cia do Brasil em 1822, José Bonifácio realizava, na sua residência, a festa com
quem conhece não se engana. sugeriu a D. Pedro I que optasse pelo muita afluência da população local.
Quem nunca a ouviu se admi- titulo de Imperador em vez de o de Rei. Mas foi em 1924, conforme relatos da
ra pela mágica do batuque cadenciado A festa tem o seu ponto culminan- Sra. Inez Loureiro, que uma grande
que parece refletir o gingado das cai- te no dia de Pentecostes, cinquenta festa foi realizada por iniciativa de dona
xeiras. dias após a páscoa, e se reveste de mui- Petronila Durans ou dona Pituca. Dona
Assim é a Festa do Divino, evocan- tas formalidades. Segundo relatos de Francisquinha Castro e dona Amélia
do não somente a devoção religiosa, Gustavo Beyer, 1813, no Rio de Janei- Ubaldo foram escolhidas para Mordo-
bem como, todo um culto às cortes dos ro, o imperador era escolhido por sor- mas régias. Cada uma delas dispunha
reis e rainhas que ainda povoam o ima- teio, podendo recair sobre uma crian- de uma aia, sendo que a de dona Amé-
ginário do nosso povo. ça ou um adulto. Durante todo o perí- lia foi a garota Severa Pessoa, enquan-
As homenagens prestadas ao Divi- odo, o imperador presidia todas as fun- to Geny Jinkings foi a aia de dona Fran-
no Espírito Santo são muito antigas e ções e fazia jus a muitas honrarias, in- cisquinha. Para a imperatriz, cuja es-
sempre estiveram associadas a um for- clusive a de receber continência da tro- colha caiu sobre a mocinha Flora Du-
te apelo popular ou folclórico. No ini- pa, baixar alguns decretos e ter a pre- rans, dona Pituca preparou uma sala
cio do corrente milênio, vários movi- cedência de lugar, na igreja, onde en- muito bem enfeitada, tendo, ao fundo,
mentos religiosos espalharam pela Eu- trava em procissão. Na casa do impera- o trono da imperatriz. Da mesma for-
ropa muitas idéias consideradas heréti- dor, a mesa era sempre farta para o ma, as Mordomas prepararam salas e
cas pela Igreja. Acenavam com o retor- deleite do povo que o acompanhava. tronos para as suas aias.
no de novos messias que, iluminados Fogueiras e fogos de artifícios queima- O dia da Festa era precedido por
pelo Santo Espírito, libertariam da vam todas as noites que antecediam o nove noites; quando, após as rezas e a
opressão os pobres e desamparados. dia de Pentecostes. dança das caixeiras e bandeiras, eram
Estas crendices encontraram fértil ter- No Maranhão, a festa do Divino é servidos aos presentes chocolates, bo-
reno na Alemanha, logo após a morte comemorada em vários municípios, mas los e doces variados, além das brinca-
em 1190, do carismático e muito vene- deiras de pau de sebo e das prisões, no
é em Alcântara onde assume ainda todo
rado Imperador Frederico II. mastro, com pagamento de prendas.
o esplendor dos tempos antigos e se cons-
Estes fatos juntamente com muitos No domingo de pentecostes, após a
titui em um dos mais importantes even-
outros que proliferaram entre os povos missa solene, na Igreja Matriz, todos
tos do seu calendário turístico-cultural.
europeus, ao longo da Idade Média, le- participavam do grande almoço, feito
Segundo Carlos Lima, a festa pos-
varam a hierarquia eclesiástica a uma com as doações recolhidas durante o
sivelmente teve seu inicio em Alcânta-
luta sem trégua para dissuadi-los des- período que antecedia a festa. Era cos-
ra por ocasião da frustrada visita de D.
sas heresias e resgatar a devoção ao tume da Imperatriz levar, em cortejo,
Pedro II àquela cidade (1888).
Divino Espírito Santo. Uma das reações o almoço aos presos, na cadeia públi-
Desde o século passado (século
positivas em favor dos objetivos da Igre- ca, na Praça da Matriz.
XIX), os preparativos começavam no
ja ocorreu em Portugal, quando, por Na década de 1940 e inicio de 1950,
ano anterior, com a escolha do impera- a festa do Divino era realizada, segun-
iniciativa da rainha D. Isabel – esposa
dor ou imperatriz e da mordoma ou do a mesma tradição, por dona Galiana
de D. Diniz, que reinou no início do
século XIV –, foi construída uma igreja mordamo régio. Um grupo de pessoas e dona Rufina que residiam à antiga da
na cidade de Alenquer, consagrada ao entre caixeiras, bandeireiras, dentre Faveira. Mais recentemente, a respon-
culto do Espírito Santo. Durante o rei- outras, iniciava a chamada Folia do sabilidade ficou com dona Iponina Cruz
nado de D. João II (1521-1556), a festa Divino. A visitação para angariar do- que buscava, assim, manter essa antiga
já era muito popular e até constava no nativos se fazia em todo o município e tradição em nossa Pinheiro.
Código Afonsinho. nos municípios vizinhos. Levavam uma Mas pelo que se pode atualmente
Para o Brasil, os festejos foram tra- coroa do Divino e uma pomba em ce- constatar, essas manifestações de cunho
zidos pelos primeiros colonizadores. O râmica branca, evocando o Espírito folclórico-religioso vêm encontrando, a
imperador ou imperatriz, o mordomo Santo. cada ano, grandes dificuldades para a
ou mordoma régia eram componentes Embora não haja relatos a respei- sua promoção. A crise financeira do País
que não podiam faltar. Uma pomba to, acredita-se que, destas visitas que e as mudanças de costumes da socie-
branca representava o Espírito Santo e chegavam até Pinheiro, tenham surgi- dade tem, nesse contexto, marcada in-
a coroa com o cetro, ambos de ouro in- do as primeiras iniciativas para que os fluência. Ao poder público, compete
crustados de pedras preciosas, davam o pinheirenses festejassem também o estimular e garantir a realização desses
caráter real à corte. Em fins do século Divino. festejos pelo retorno que dão em em-
XVII, a festa já estava bastante difun- Os primeiros registros dão conta de pregos, impostos e, principalmente,
dida em várias províncias e gozava de que, na segunda década do século XX, como atração turística, de forma a as-
crescente prestígio, a tal ponto que, dona Madalena Peixoto, provecta se- segurar, através dos tempos, o curso das
quando da declaração da Independên- nhora residente à rua do Cemitério, já nossas tradições.
50 Extraído do livro GOMES, Francisco José de Castro (Org.). Coisas da nossa terra: subsídios para a Historia do Município de Pinheiro. [S.l.: s.n.], 2004. p.221-
223. (Coletanea de artigos publicados no Jornal Cidade de Pinheiro de 1921 a 2003)
51 Professor da UFMA e membro da Academia Maranhense de Medicina.
14 Boletim 50 / agosto 2011
O
desenhista maranhense João São Luís. Segundo Iramir Alves Araújo do matracas, cofos61 e abanos, etc.
Affonso do Nascimento, que, (2007, p. 10): Suas publicações mais significativas
segundo o mestre Domingos foram: Anos Bons, Festas e Reis; Nati-
Vieira Filho, era “o nosso Ângelo Agos- João Affonso tinha os olhos sobre a cidade vidade; O Guri e o Seringueiro. Sua
tini55”, nasceu no dia 14 de abril de e nada escapava à sua pena. Sua crítica era obra prima é “Três Séculos de Moda”,
responsável, pois apontava os problemas
1855, em São Luís, Maranhão. Filho de publicada para as comemorações do
que via e os expunha em seu jornal como
portugueses, seus pais foram o comer- contribuição para o melhoramento dos ser- tricentenário de Belém, em 1916, cida-
ciante João Affonso do Nascimento e a viços de limpeza pública, segurança, trans- de na qual residia na época. Segundo o
costureira Germana Maria de Carva- portes, água e iluminação. Afora sua lin- jornalista Murilo Menezes, em seu co-
guagem sarcástica, caricata e mesmo mor-
lho Nascimento. Nos anos de juventu- mentário na Folha do Norte, em 1930,
daz, sua atuação jornalística cumpria um
de, estudou no tradicional Liceu Ma- papel de lembrar aos governantes de suas o livro Três Séculos de Moda era um
ranhense, então localizado no Largo do debilidades no que concerne à atuação mais trabalho pioneiro sendo que:
Carmo, em prédio anexo à Igreja Nos- visível da política: aquela que é estabeleci-
da com o cidadão, no dia-a-dia.
sa Senhora do Carmo. Esta obra, inteiriça, fruto de pacientes pes-
Ainda na juventude, começou a de- quisas, além do seu valor como obra de
senvolver pendor para as artes, tendo Seus trabalhos mais conhecidos são informação fidedigna e pitoresca da histó-
as charges feitas para o jornal A Fle- ria da indumentária através da civilização,
como um dos primeiros mestres o emé- vinha confirmar os seus predicados de fino
rito desenhista Domingos Tribuzi, além cha, na qual retratava aspectos do coti- observador, espírito culto e viajado, e, so-
da forte influência ideológica do pro- diano e da cultura popular nesta cida- bretudo, como crítico de arte.
motor de justiça Celso Magalhães, um de. Além de denunciar, através de suas
dos iniciadores dos estudos folclóricos crônicas e textos diversos, hábitos re- Assim como o comentário de Muri-
no Brasil. Ligou-se a um seleto grupo trógados (e atuais) de uma sociedade lo Menezes, o livro retratava de forma
de moços talentosos, os quais deram à marcada por fortes laços escravocratas, fiel a evolução da indumentária utili-
vida a um periódico denominado “Jor- eurocêntricas e burguesas, ele teve cui- zada pela sociedade desde 1616 a 1916,
nal para todos” e, anos mais tarde, a dado em retratar a cultura popular de destacando seus desenhos e formando
outro meio de comunicação, notabili- forma não depreciativa, demonstrando, o material como um manual de moda
zado pelos desenhos, denominado “A através de inúmeros desenhos deixados explicativo, ligando cada imagem ao
Flecha”. Nestes dois veículos de comu- no jornal A Flecha e no livro Três Sé- tempo e ao espaço que a constituía.
nicação, na segunda metade do Séc. culos de Moda, a riqueza e a diversida- Além de todas as suas qualidades
XIX, João Affonso teve ativa colabora- de do folclore e da cultura popular do como artista gráfico, João Affonso ain-
ção de Arthur Azevedo, Aluízio Azeve- Maranhão. São seus alguns dos únicos da exerceu as atividades de cenógrafo,
do e Américo Azevedo. Além destes registros de manifestações e ofícios teatrólogo, professor de desenho, cro-
dois jornais, Joafnas (como era também oriundos do folclore e da cultura popu- nista, jornalista, escritor e crítico de
conhecido) trabalhou nos Jornais A Pa- lar no Maranhão, a partir da segunda arte. Passou a residir no estado do Pará
cotilha, Diário Maranhense, Folha do metade do Séc. XIX, dentre os quais após sua aprovação em concurso públi-
Norte e O Malho. cita-se o desenho de uma integrante da co da empresa estrangeira Porto Of
Grande chargista e cronista contu- manifestação carnavalesca do baralho56 Pará, exercendo a função de chefe do
maz, João Affonso foi uma voz irrefreá- (negrinha do baralho), a negra mina, tráfego do cais do porto de Belém. Foi
vel ante ao poderio quase que absoluto negros de ganho, os personagens cruz- membro fundador da Academia Para-
da Igreja Católica e foi, também, críti- diabo57, pai Francisco58, divineira do ense de Letras e membro corresponden-
co mordaz dos costumes de uma cida- Espírito Santo59, fofão60, as festas de te da Academia Maranhense de Letras,
de provinciana do nordeste brasileiro, largo, malhação de judas, pessoas usan- ocupando a cadeira de número 3, fez
52 Contendo valiosas contribuições de Diego Lobato, pesquisador da vida e obra de João Affonso do Nascimento.
53 Membro da Comissão Maranhense de Folclore.
54 Esp. em Biblioteconomia e membro da Comissão Helenense de Folclore (in construction).
55 Cartunista pioneiro e artista gráfico do Segundo Reinado, nasceu em Vercelli – Itália em 08 de abril de 1843 e faleceu no Rio de Janeiro em 28 de janeiro de
1910; fez carreira no Brasil e notabilizou-se pelos desenhos publicados na “Revista Ilustrada”.
56 Manifestação carnavalesca tipicamente maranhense e caracterizada pela presença maciça de negros.
57 Personagem típico do carnaval ludovicense, nascido, provavelmente, no século XIX; tinha como principais características macacão grande, feito de seda nas
cores preta e vermelha e máscara representando o diabo.
58 Personagem do bumba-meu-boi.
59 Integrante da Festa do Divino Espírito Santo, conhecida também como tiradeira de jóia.
60 Personagem típico do carnaval maranhense, caracterizado por um macacão grande de chita e máscara com características horripilantes e cômicas.
61 Utensílio muito utilizado por maranhenses feito por trançado de palha de palmeiras diversas.
Boletim 50 / agosto 2011 15
CONTINUAÇÃO
REFERÊNCIAS
Janela do Tempo
O CULTO VODOU:
Identificações em São Luís e no Haiti66
Domingos Vieira Filho67
71
Notícias – Roza Santos
fessor André Arruda Machado, da Uni- Naquela ocasião, os terreiros que se dis-
II SIMPÓSIO DE fesp, lançou o livro “A quebra da mola ponibilizaram a participar da referida
real das sociedades: a crise política do An- comissão foram: Casa Fanti-Ashanti (Pai
HISTÓRIA tigo Regime português na província Euclides), Ilé Omo D´Ossaim (Pai Ma-
OIT OCENTIST
OITOCENTIST A
OCENTISTA Grão-Pará (1821-1825). Além da apre- riano), Terreiro Fé em Deus (Mãe Elzi-
sentação de outra web revista “Alma- ta), Terreiro das Portas Verdes (Dona
“Disputas Políticas e Práticas de Po- nack Braziliense”, pelo professor André Maria de Jesus), Terreiro do Justino
der” foi o tema do II Simpósio de História Machado, foi lançado novo lay-out da (Dona Mundica Estrela), Terreiro de
Oitocentista no Maranhão, realizado revista eletrônica “Outros Tempos” que Iemanjá (Dona Florença e Sr Biné), Ter-
pela UEMA, de 07 a 10 de junho. O even- divulga trabalhos de pesquisadores do reiro Kwue-se To Vodun Badé Só (Pai
to recebeu pesquisadores e professores de Curso de História da UEMA. Lindomar). Além destes, foi acordado
História de todo Brasil que discutiram as- que outros terreiros podem participar
suntos relacionados à Formação do Esta- SEMANA DE POVOS desta comissão desde que manifestem
do Brasileiro e do Maranhão, bem como interesse e participem das reuniões de
a escravidão – gênero e identidades do INDÍGENAS 2011 trabalho.
Brasil nesse período. Coordenado pelo
professor do Departamento de História O Centro de Pesquisa da História Na- 160 ANOS DA
da UEMA, Marcelo Cheche, o evento tural e Arqueologia do Maranhão-(CPH-
reuniu alunos e professores das Universi- NA-MA) realizou a V Semana dos Povos JUCEMA (1851-2011)
dades: Federal Fluminense; Federal de Indígenas (10 a 14 de junho) com o obje-
São Paulo; Rural do Rio de Janeiro; Fe- tivo de estimular discussões sobre a iden-
deral do Pará; Federal de Pernambuco; A Junta Comercial do Estado do Ma-
tidade cultural indígena. Durante a Se-
Federal da Paraíba, Federal do Mara- ranhão celebra 160 anos de serviços ao
mana foram abordados diferentes aspec-
nhão, Estadual Paulista e Fapema. Em seu estado. Criada em 31 de março de
tos da cultura dos índios brasileiros em 1851, com a finalidade de registrar o nas-
seis mesas redondas, nove simpósios te- que se fizeram presentes: Secretários de
máticos, duas conferências e 80 comuni- cimento de todas as empresas do Mara-
Cultura (Bulcão), de Educação (Olga nhão, os arquivos da Jucema guardam a
cações científicas foram abordados, en- Simão) e de Igualdade Racial (Claudett
tre outros, temas como a Balaiada, a par- história dos registros dos primeiros comer-
Ribeiro); representantes da Fundação ciantes, atas com transcrição de fatos
ticipação da mulher na economia do es-
Nacional do Indio, José Piancó Neto, e importantes sobre a criação e fechamen-
tado e o processo de modernização de
das Organizações Indígenas da Amazô- to de todas as fábricas surgidas no Mara-
São Luís nos anos de 1800.
nia, Sonia Bone Guajajara; além de re- nhão e as marcas e patentes registradas.
presentantes de instituições ligadas aos Nesses 160 anos de atividades, passou por
LANÇAMENT OS DE
LANÇAMENTOS povos indígenas, dos próprios índios e co- várias mudanças: foi extinta, restabele-
LIVROS NO II munidade em geral. cida, transformada em autarquia, reor-
ganizada novamente e comemora as vi-
SIMPÓSIO VI EMCAB tórias acumuladas. A partir da década de
1990, “seu objetivo principal é a presta-
Durante o II Simpósio de História ção dos Serviços do Registro Público de
Oitocentista no Maranhão da UEMA A Tenda São Jorge Jardim de Oeira Empresas Mercantis e Atividades Afins
foram lançados livros sobre História do da Nação Fanti-Ashanti, popularmente na área da circunscrição territorial do
Maranhão: “Maranhão Ensaios de Bio- conhecida como “Casa Fanti-Ashanti”, Estado do Maranhão, de acordo com a
grafia e História” – coletânea que reú- vem realizando, desde janeiro, reuniões lei Federal nº 8.934, de 18 de outubro de
ne 20 ensaios biográficos; “Epaminon- preparatórias para o VI EMCAB – En- 1994, abrangendo o registro e arquiva-
das Americano” que conta a história de contro Maranhense de Cultos Afro-Bra- mento dos atos dos empresários, socieda-
um advogado português que chegou ao sileiros – 2011, que deverá ocorrer de 10 des empresariais e cooperativas”. Em 2009,
Maranhão no século XIX, ambos de a 12 de novembro. As reuniões de traba- pelo Decreto 25.343 de 4 de maio de
autoria de Marcelo Cheche e Yuri Cos- lho objetivam discutir propostas de tema, 2009, é vinculada à Secretaria do Estado
ta, professores da Uema; “Uma Atena data e programação; dar continuidade da Indústria e Comércio-SINC, denomi-
Equinocial: a literatura e a fundação de ao processo de preparação do encontro, nada, hoje, Secretaria de Estado do De-
um Maranhão no Império brasileiro”, de bem como analisar e atualizar o Docu- senvolvimento, Indústria e Comércio-
José Henrique Borralho, resultado de mento de reivindicação do V Encontro SEDINC, através do Decreto nº27.225,
sua tese de doutorado defendida na Uni- Maranhense de Cultos Afro-Brasileiros, de 3 de janeiro de 2011, que ratifica esta
versidade Federal Fluminense, em entregue aos órgãos públicos do Estado vinculação. Para expandir a prestação de
2009; Relançamento do livro “Percorren- do Maranhão, durante o V EMCAB, serviços, realizou três ações: o Projeto de
do Becos e travessas: Feitios e Olhares realizado no período de 06 a 08/11/2009. Interiorização – criação de escritórios re-
da História de Caxias” coletânea, orga- Em plenária, foi definida a criação de gionais em diversos municípios mara-
nizado pelas professoras Jordânia Pes- uma comissão de trabalho que em con- nhenses; disponibilização de informações
soa e Salânia Melo, do Centro de Estu- junto com a Casa Fanti-Ashanti, é res- no site www.jucema.ma.gov.br; e do ser-
dos Superiores de Caxias/MA. O pro- ponsável pela realização do VI EMCAB. viço de Ouvidoria.
71 Roza Maria dos Santos - Comunicóloga; membro da CMF.
20 Boletim 50 / agosto 2011
PERFIL POPULAR
Isabel Mineira - Cururupu72
Mundicarmo Ferretti73
72 Baseado em texto publicado em: FERRETTI, M. Maranhão Encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA Editora,
200, p. 109.
73 Dra. Antropologia; Pesquisadora de Religião afro-brasileira e Cultura popular; Membro da CMF.