Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
O olhar envenenado:
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)
Karen Shiratori
Rio de Janeiro
2018
i
Karen Shiratori
O olhar envenenado
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)
Rio de Janeiro
2018
ii
Shiratori, Karen
O olhar envenenado: da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)./ Karen
Shiratori. – Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS-MN, 2018.
413 f.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Oiara Bonilla
iii
Karen Shiratori
O olhar envenenado
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)
BANCA EXAMINADORA:
______________________________
Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
PPGAS/MN/UFRJ (Orientador)
______________________________
Prof.ª Dr.ª Lydie Oiara Bonilla Jacobs
UFF (Co-orientadora)
______________________________
Prof.ª Dr.ª Aparecida Vilaça
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________
Prof. Dr. Renato Sztutman
PPGAS/USP
iv
______________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Lino Costa
PPGAS/IFCS/UFRJ
______________________________
Prof.ª Dr.ª Joana Miller
UFF
______________________________
Prof. Dr. Márcio Goldman
PPGAS/MN/UFRJ (suplente)
______________________________
Prof. Dr. Orlando Fernandes Calheiros Costa
PUC (suplente)
v
Este trabalho é dedicado à Fátima, Crista e Kali in memoriam
vi
Agradecimentos
vii
conhecimento sobre o médio Purus; os funcionários da Funai de Lábrea, em especial,
Shel, Preto, Careca, Capiau e Zé do Carrasco, grandes companheiros e conhecedores
das matas.
Ao amigo Daniel Cangussu devo um agradecimento especial. Este trabalho
deve muito às nossas conversas intermináveis e projetos mirabolantes. Foi também
graças ao cuidado e amizade de Daniel, Beth e Carmem que Lábrea tornou-se um
lugar querido que deixa sempre saudade.
Aos professores das aldeias Jamamadi com quem partilhei tantas refeições e
conversas agradeço pelo companheirismo.
Às funcionárias do Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc pela
gentileza e paciência em todos esses meses que frequentei diariamente as salas de
estudo para a escrita deste trabalho.
Aos meus pais e minhas irmãs, pelo carinho e apoio irrestrito sem o quais esse
trabalho não seria possível.
Ao Mauro, meu companheiro, pelo porvir.
Finalmente, mas não menos importante, agradeço aos Jamamadi por terem me
acolhido e me mostrado que o mundo pode ser sempre maior.
viii
ix
(...) une plante est un chant dont le rythme déploie une forme certaine, et dans
l'espace expose un mystère du temps"
( Paul Valéry, Dialogue de l'arbre, 1943).
x
RESUMO
Esta tese é uma etnografia dos Jamamadi, povo falante de uma língua arawá que
habita a região do médio curso do rio Purus (Amazonas). Trata-se do exercício de
pensar a humanidade a partir dos aspectos materiais, morfo-fisiológicos e das
elaborações metafísicas jamamadi sobre as plantas. Na primeira parte, a tese detém-se
no xamanismo vegetal cuja relação com as plantas, cultivadas e não cultivadas, são
cruciais. Após a descrição da visita das almas e a apresentação de alguns de seus
cantos-fala, faço uma exposição sobre a iniciação xamânica, cujo objetivo final é
adquirir o noko koma, "o olhar envenenado". A ideologia venatória, elemento central
no xamanismo amazônico, é um dos focos da discussão, uma vez que a pregnância
das plantas entre os Jamamadi propõe questionamentos acerca do lugar prático-
conceitual atribuído aos animais. No segundo momento da tese, exploro em quais
termos o aspecto vegetal da humanidade é formulado pelos Jamamadi a partir das
elaborações acerca do desenvolvimento do corpo humano e do vocabulário aplicado à
sua morfologia. Porém, é sob a égide do processo escatológico que a tese encontra o
seu maior rendimento: a transformação corporal e a fragmentação dos componentes
da pessoa com a morte permitem entrever em toda sua radicalidade a metafísica
vegetal. A terceira parte, dividida em dois capítulos, aborda a reflexão mítica sobre a
origem da humanidade a partir de uma origem vegetal comum. Em seguida, procedo à
discussão sobre a recorrência da organização social em subgrupos nomeados entre os
povos que habitam a região do interflúvio do Juruá-Purus.
xi
ABSTRACT
xii
Nota sobre a convenção ortográfica Jamamadi
i. as semi vogais [i] e [u] podem ser grafadas "i" ou "y" e "u" ou "w";
ii. a oscilação no uso entre [j] e [y];
iii. a flutuação ocasional na escrita e na pronúncia de algumas palavras em jamamadi e
português em virtude da alofonia entre os pares de fonemas [l] e [r]; e, [x] e [s]. No
primeiro caso, o critério é a pronúncia [l] quando antecedido por [a] ou [i]; para o outro
exemplo, pronuncia-se [x] se sucedido por [i].
iv. por fim, a marcação da glotalização ([di'disaha], "arco", é escrito didisaha) e das
vogais duplas ([ooni], "nome", é escrito oni).
13
I. Quadro de fones em Jamamadi
Vogais
Consoantes
14
h rato hiyama (queixada)
15
Mapa da Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati (Christian Crevels, 2018)
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 19
17
7.3 A MORTE COMO FRAGMENTAÇÃO DA PESSOA 252
7.4 O RESGATE DAS ALMAS E A VIDA PÓSTUMA 260
CAPÍTULO 8: KAKATOMA: O OLHAR GERATIVO E AS RELAÇÕES DE CRIAÇÃO 277
8.1 OS FILHOS-PLANTA E A INVERSÃO PÓSTUMA 287
8.2 ADOÇÃO DE CRIANÇAS 311
8.3 OS ANIMAIS DE CRIAÇÃO 315
ANEXOS 401
18
Introdução
William Blake
Coordenação Regional da Funai de Lábrea, viajei pela primeira vez às aldeias desse
povo, localizadas à margem esquerda do médio curso do rio Purus, na Terra Indígena
com a família de Badá, o antigo cacique geral da aldeia São Francisco, que aceitara
receber-me em sua casa. Contudo, no dia marcado, o cacique apareceu para me avisar
que eu não iria mais com ele devido ao desmoronamento de um barranco que havia sido
perigosa. As águas deste igarapé alternam o sentido de seu curso no período de seca e
certo que um acidente ocorra. Como a canoa de um dos filho de Badá alagara pouco
19
tempo antes, ele preferiu combinar com Berinawa, o cacique da aldeia Buritirana, para
que me levasse por outro caminho, segundo ele, mais perto e seguro.
varadouro até a margem de um grande lago, onde havia uma canoa, ainda menor, na
da embarcação, conforme avançávamos, tínhamos que retirar a água que entrava pelas
frestas e acabamos por retirar as embalagens das compras para calafetar a canoa
cuidando para manter uma distância razoável dos jacarés, alcançamos depois de
Chegando no porto de verão, usado nessa época de seca, arrastamos a canoa para
descarregar as mochilas e tentamos acomodar nos espaços que sobravam o rancho que
acabara ficando espalhado na canoa depois que rasgamos as sacolas. Caminhamos por
que tentava, sem sucesso, pousar num lago próximo, coincidindo curiosamente com a
nossa chegada. As poucas casas estavam vazias, todos tinham corrido para observar,
desistir e retornar à Lábrea. A “má fama” do Purus remonta às primeiras viagens dos
exploradores que praguejavam sobretudo contra as nuvens de piuns que infestam suas
praias no inverno. Os Jamamadi não poderiam discordar mais do hábito daqueles que
vivem nas margens, como os seus vizinhos Paumari, por isso preferem os pequenos
20
afluentes e a terra firme, menos frequentados por aqueles insetos, embora não livre
deles; reiteram que por precaução é preciso manter uma boa distância do rio.
Tema de discórdia com seus vizinhos Jarawara, a região do lago Buritirana havia sido
ocupada recentemente pelos Jamamadi, de modo que havia poucas casas e roças. No dia
seguinte, eu continuaria minha viagem para a aldeia São Francisco, onde Badá e sua
aldeia naquele mesmo dia. Caminhando em torno das casas, ele me mostrou algumas de
suas plantas, ensinando-me seus nomes em sua língua; apontava orgulhoso uma por
uma bananeira, descrita por Berinawa como demo, “moça”, o cacique falava com rancor
de seus parentes do São Francisco. Ele e sua família haviam se mudado recentemente de
longe e ele, retoricamente, dizia já não ter forças para caminhar tanto; ademais, lá
colhiam as frutas ainda verdes do pé. De fato, posteriormente, eu veria muitas brigas
motivadas por frutas retiradas sem autorização, comentários maledicentes referentes aos
roçados alheios, sem contar os sermões que as crianças ouviam de seus pais quando
primeira vista desleixada, uma “massa” indistinta de árvores frutíferas num emaranhado
encomendas que eu não deveria esquecer em minha próxima visita. Além de miçangas,
21
roupas usadas e filhotes de cachorro, eles insistiam para que eu levasse pesticidas para
matar as saúvas que “roubam” seus roçados, além de sementes das plantas consumidas
na minha cidade. O trajeto entre a aldeia do lago Buritirana e a aldeia São Francisco,
paramos algumas vezes para descansar, pois estávamos muito carregados, e outras
tantas vezes para marcar os locais com bons cipós para cestaria, as árvores com frutas
maduras, os rastros e pegadas recentes deixados por algum animal, e também para
Naquele momento, o que me saltava aos olhos não era tanto o interesse geral que eles
floresta, mas a etiqueta necessária no trato com elas e as metáforas usadas para
descrevê-las. Enquanto caminhavam, eles tomavam cuidado para não bater com o
terçado nas plantas, preferiam fazer grandes desvios para não passar perto de uma
pegar os frutos já caídos, jamais arrancando-os ou forçando sua queda. Ao falar das
desenvolvimento humano: “essa é uma bananeira moça” (como havia dito Berinawa),
22
“o buriti rapaz”, “aquela pupunha ainda não tem peitos”, “essa palmeira é uma criança
de colo, ainda mama”, “o filho da castanha” (para se referir ao ouriço), “os ossos da
folha” (para se referir à nervura), “a pele da árvore” (para se referir à casca) etc.
Perto da aldeia, passamos por capoeiras e áreas de roças até que meus companheiros
anunciaram que havíamos chegado ao nosso destino. Sorri desconcertada para meus
qualquer margem a dúvidas. Porém minha impressão era de que ainda estávamos “no
meio do mato”, quer dizer, eu não havia notado uma transição clara entre as roças que
cercam a aldeia e que eles foram me indicando conforme nos aproximávamos e a aldeia
em si. Mandiocas tinham sido plantadas atrás das casas, abacaxis se amontoavam junto
com bananeiras ao lado das cordas do varal presas nos galhos de um abacateiro, árvores
cresciam por todos os lados ameaçando derrubar os telhados, laranjas e cajus eram
facilmente colhidos das janelas, até mesmo sob as casas eles cultivavam pequenas
mudas protegidas por cerquinhas de madeira, em suma, visualmente a aldeia parecia ser
uma "extensão" da roça. À exceção da pista de pouso cuja grama estava metodicamente
cortada e dos terreiros em frente às casas, capinados com alguma regularidade, a aldeia
23
Fig.1 Roçado de mandioca na aldeia São Francisco
impactante na aldeia São Francisco, tanto por sua proximidade quanto pela dimensão, a
tal ponto que árvores acabavam sendo incorporadas como elementos da arquitetura. Os
utensílios domésticos; botas, enxadas, terçados e paneiros ficam dispostos nas espátulas
mais baixas das palmeiras; algumas televisões estão do lado de fora das casas,
instaladas sob a copa de uma árvore frondosa cuja sombra parece delimitar um espaço
homólogo ao do interior da casa; bancos são talhados diretamente nas raízes; arcos e
espalhadas ou tivessem sido esquecidas fora de seu lugar. Porém, aos poucos, a
atenção extrema que devotam às plantas e o que me parecia descuido tornou-se cuidado.
Passei a notar que eles sempre limpavam em volta das plantas jovens que ainda estavam
24
para que as formigas não as atacassem. Cotidianamente, visitavam seus roçados para
principalmente, para “espiar” (tradução do verbo kakatoma), ação que abarca o cuidar,
Da mesma forma que o cacique do Buritirana havia me apresentado sua aldeia através
das plantas que ele cultivava, Badá me convidou para conhecer o São Francisco me
apresentando a seus moradores e suas respectivas plantas, pois ele fazia questão de que
eu soubesse quem as havia plantado para que eu não as desrespeitasse, colhesse frutos
tão importante quanto saber os nomes das pessoas era conhecer os nomes das plantas,
eles foram explícitos para que eu anotasse corretamente seus nomes e aprendesse a
distingui-las. O problema é que eu não era capaz de fazer a contento deles nem uma
coisa nem outra, pois logo me esquecia dos nomes e confundia as espécies deixando-os
25
Na obra "O pensamento Selvagem", Lévi-Strauss cita um trecho da etnografia de Smith
Bowen sobre os Tiv que descreve bem essa situação (Smith Bowen apud Lévi-Strauss
2009 [1962]:21): “[e]sse povo é cultivador: para ele, as plantas são tão importantes, tão
de minha parte, eu nunca vivi em uma fazenda e não estou mesmo muito segura de
distinguir as begônias das dálias ou das petúnias. As plantas, como as equações, têm o
hábito traiçoeiro de parecerem semelhantes e serem diferentes ou de parecerem
diferentes e serem semelhantes. Consequentemente, atrapalho-me em botânica tanto
quanto em matemática. Pela primeira vez em minha vida, encontro-me em uma
comunidade onde as crianças de dez anos não me são superiores em matemáticas, mas
estou também num lugar em que cada planta, selvagem ou cultivada, tem uma
utilidade e um nome bem definidos, em que cada homem, cada mulher e cada criança
conhece centenas de espécies. Nenhum deles poderá jamais acreditar que eu sou
incapaz, mesmo que o queira, de saber tanto quanto eles.
Essas cenas impressionistas tentam dar conta do espanto de quando cheguei pela
primeira vez a uma aldeia jamamadi, assombrei-me com a profusão visual das plantas
que crescem em toda parte e, dentro das limitações de quem viveu toda a vida na cidade,
tive que lidar com a insistência de seus moradores para conhecê-las com minúcia e
dedicação.
***
Maizza (2012, 2014) com os Jarawara, povo vizinho com o qual os Jamamadi mantêm
26
territoriais, apesar das articulações serem incipientes no contexto do movimento
indígena local. Tal fato não implica a ausência de relações por vezes ambíguas
seduzir no parentesco Jarawara” (2014), Maizza aborda temas que orientaram meu
campo e inspiraram a formulação do objeto que ora esboço. Além de iluminar aspectos
levar adiante sua intuição acerca da originalidade da metafísica dos roçados jarawara,
com destaque às suas expressões escatológica e xamânica. No cerne de sua análise está
vínculos entre o céu e a terra, entre a vida e a morte dependem e são mediados pelas
todo indíviduo Jarawara está relacionado por laços de ‘consanguinidade’ (na verdade,
de familiarização) a espíritos chamados inamati, que são as ‘almas’ das plantas que
cultivaram na Terra e que subiram ao céu. Eles chamam estes espíritos de ‘filhos’(...).
No dia em que um indivíduo Jarawara morrer, estes espíritos virão buscá-lo para levá-lo
a sua moradia póstuma no céu. Além disso, os inamati dos xamãs são seus espíritos
auxiliares que, nas sessões de cura, recuperam as almas dos humanos capturadas por
outros seres. (Maizza 2012:76)
Na presente tese, entende-se por “planta” não a dimensão circunscrita, fixa a um reino
27
como um domínio da cultura que se opõe à animalidade e à vegetalidade naturais
(Viveiros de Castro 1996, 2002, Descola 1986, 1992, 2005). Acredito que para os
ocidente pela vida vegetal, no presente estudo as plantas são investidas de dignidade
histórica (Balée 1993, 1999; Clement et al. 2015, 2016; Levis et al. 2018) e
etnobotânica (Berlin 1992, Balée 1999, Conklin 1954, Ellen 1986 etc.) centrados em
modo que eles compõem uma bibliografia secundária cuja relevância se mostra nas
considerações que faço tanto sobre o manejo das plantas pelos isolados Hi-Merimã
Ainda a respeito das pesquisas com os povos arawá, há dados relevantes sobre as
plantas cultivadas e sua importância ritual entre os Deni (Florido 2013), o uso da
ayahuasca pelos Kulina (Cerqueira 2015), os rituais alimentares ihinika realizados pelos
suícidio suruwaha (Aparicio 2013, 2017 e Huber 2012), sem contar a importância do
tabaco no uso disseminado do rapé pelos povos que vivem em toda a calha do Purus.
28
Retornarei oportunamente a estas pesquisas, por ora, as menciono com a intenção de
expandir o escopo de minha própria análise, dado que por vegetal não trato somente das
espécies úteis à vida humana, mas incluo além destas, as árvores de grande porte, as
várzeas e nos chavacais, a grama da pista de pouso, os tubérculos venenosos dos quais
concreto (Lévi-Strauss 2009[1962]), não se justifica por elas serem “boas para comer”,
mas por serem “boas para pensar”. Pode-se ir além, as plantas não se limitam a objeto
para pensar e igualmente “boas para se relacionar” (Ingold 1991 e 1992, distorcendo um
pouco a formulação do autor que se referia aos animais), quer dizer, as plantas não são
com as plantas.
Um dos meus intuitos consiste em contribuir para o desenvolvimento dos estudos sobre
os grupos arawá e a região do médio rio Purus. Além dos trabalhos de Maizza sobre os
2009, 2013, 2016) sobre os Paumari e as de Huber (2012, 2016) sobre os Suruwaha,
29
presente tese. Ademais, é preciso reconhecer a dívida desta pesquisa com a atual
renovação dos estudos dedicados ao Purus e seus povos: as coletâneas organizadas por
Gilton Mendes dos Santos (2011); o volume organizado por Marta Amaroso e Gilton
Mendes dos Santos (2013) no qual constam diversos artigos sobre a região do Purus; a
continuação da coletânea sobre o médio Purus e seus povos por Miguel Aparicio e
Gilton Mendes dos Santos (2016); os artigos e a tese de Marcelo Florido sobre os Deni
(2008, 2011, 2013); e os vários textos dedicados aos Suruwaha escritos por Miguel
comparada a outras áreas etnográficas, o mesmo não pode ser dito sobre as línguas
artigos nas décadas de 1970 e 1980 sobre aspectos do idioma Jamamadi. Contudo, as
melhores referências para o estudo das línguas madi são o dicionário de Alan Vogel
(2006) e a gramática de Robert Dixon (2004) sobre a língua Jarawara. Ainda sobre os
indigenistas, tais como o relatório realizado por Schröder (2008) no âmbito do Projeto
30
Fora do médio curso do rio Purus, há diversos trabalhos centrados na relação das
Rival acerca da relação dos Huaorani com as plantas (2001, 2009); de Descola (1986) e
Taylor (2000) a respeito da dinâmica social com as roças e a floresta para os Achuar;
textos de divulgação geral (Tassin 2016; Pollan 2001); os estudos botânicos (Hallé
2002); as propostas de filosofia ecológica (Coccia 2013 e 2016; Marder 2013; Houle
2011; Hall 2011); além de estudos filosóficos variados sobre o tema (Nealon 2016;
metafísica das plantas cultivadas para os Jarawara a partir do enfoque nas relações de
Jamamadi.
31
As informações obtidas nas expedições de monitoramento realizadas pela Frente de
Hi-Merimã ocupam uma posição analítica importante nesta tese: funcionam como
Tendo reconhecido minha dívida em relação às obras elencadas acima para a confecção
etnologia indígena. Embora não constitua o foco da tese, não é desprovido de interesse
que a relação dos Jamamadi com as plantas ofereça um contraponto aos devaneios do
discurso filosófico que não raro contribuiu para perpetuar a posição subalterna e
instrumental das plantas no ocidente. Minha aposta é que no encontro com as plantas,
em particular as que figuram nesta tese, o pensamento possa afetar-se por sua vitalidade
e, quem sabe, sem mais projetar suas razões sobre uma imagem idealizada das plantas,
1
As Frentes de Proteção estão vinculadas à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
(CGIIRC) da Fundação Nacional do Índio (Funai).
32
ii. Trabalho de campo e metodologia
tantas que, por diversas vezes, considerei inviável prosseguir a pesquisa ainda que os
perguntas ou insistiram para que eu me conformasse com suas negações, mesmo quando
demorou a se fazer visível dado o seu empenho em ocultar-se e em despistar mesmo nas
patrões, ora sobre o mau atendimento dos serviços oferecidos aos povos indígenas.
algumas histórias da violência promovida pelos patrões dos quais eram fregueses são
33
notórias, contudo, por muito tempo eles se abstiveram de tocar no assunto, preferindo
permanência não eram claros para a maioria, gerando toda sorte de desencontros de
tempo antes de minha chegada houve duas outras tentativas de pesquisa etnográfica,
mas não puderam ser levadas a cabo, os contornos e tentativas de categoriazação do que
serem atendidos por um profissional da saúde. Também fui tomada como um tipo de
missionária, pois são eles que passam temporadas longas nas aldeias da região, se
interessam pela língua e por aspectos da vida indígena desprezados pela maioria dos
brancos.
2
Amplamente utilizado pelos indígenas da região para designar os brancos, "jara" é emprestado do
nheengatu, língua geral de origem Tupi, e significa "dono", "mestre". Outro termo que os Jamamadi
empregam, com menor frequência, é "cariú", derivado da palavra tupi-guarani "kariwa", também utilizado
para denominar os brancos.
34
No mais das vezes, a relação com os Jamamadi pautou-se pela necessidade flagrante de
aos benefícios sociais que intensificaram os deslocamentos das aldeias para a cidade,
quase mensalmente. Neste cenário, ora as conversas eram motivadas pelo seu interesse
tipo de "agente do governo" que estava ali para "fazer papéis", ora chamavam-me para
dar aulas de português e, por isso, imaginavam que cabia ao antropólogo cumprir o
escolas dos brancos, uma vez que não há política de educação específica para os povos
indígenas na região.
malogro das tentativas recentes, e com o meu progresso no aprendizado da língua graças
levavam a ir "tão longe e sozinha dos meus parentes" tornaram-se um pouco mais
plausíveis. O que não os fez deixar de dizer com sarcasmo que ficar longe de casa era
ruim e, por isso, não se imaginavam fazendo esse trabalho. No caso das mulheres, sua
35
Devo dizer que somente com o aprendizado da língua é que pude pensar junto a eles
aulas que fossem mais estimulantes. Aprendê-la foi essencial na condução da pesquisa,
pois somente os homens mais velhos, com idade superior a cinquenta anos (Badá,
Berinawa, Deki, Chagas Arnica, dentre outros), e que serviram de mão-de-obra para os
retornando à área indígena, eles se deram conta do meu interesse continuado em sua
pesquisa.
Recente Contato na Amazônia Brasileira", foi outro fator que ajudou a amenizar o
que comentassem: "Ah, quer dizer que existem outros como você. Tem muita gente,
36
anfitriões passaram ao entusiasmo verborrágico: eles começaram a fazer questão de que
***
Retornei à Lábrea para meu primeiro campo do doutorado em julho de 2013, onde
ao longo do qual retornei à Lábrea somente em duas ocasiões pontuais. Ainda em 2015,
fiz outra incursão em campo entre os meses de julho e novembro. Por fim, permaneci na
campo.
proliferavam: objetos desaparecidos, sons estranhos no meio da noite, cães latindo sem
motivo aparente passaram a ser responsabilidade das ações dos fugitivos. Para piorar,
37
naquela época, Lábrea sofria com apagões diários de várias horas e, não raro,
mês quando vêm para receber seus pagamentos. Juntos no eixo central, os indígenas se
Foi em uma dessas ocasiões que ocorreu meu primeiro encontro com os Jamamadi, em
uma caminhada em direção à praça. Duas mulheres deste povo carregadas com cestos
acenavam para que eu fosse vê-las. Pouco depois, conheci Badá, a principal liderança
Jamamadi. Assim como muitos indígenas, ele procurava ajuda para sacar sua
baixam em grupos para Lábrea na mesma época do mês, permanecendo por poucos
Em 2012, a maioria dos Jamamadi quando estava na cidade se hospedava na casa dos
Jarawara ou na casa onde vive o missionário, poucos tinham sua casa própria. Já em
2016, muitos tinham empenhado seus cartões para a compra de casas na cidade, com
preferência ao bairro da fonte. Os Paumari, por outro lado, além deste bairro, fazem
suas casas numa região da cidade chamada beira mar onde construções de palafitas se
Esperei alguns meses em 2013 até obter a autorização de ingresso na área indígena dos
38
Jamamadi. A palavra final estava condicionada ao aceite do cacique geral, Badá
transcorreu com os Jamamadi sem sobressaltos, e Badá decidiu que eu poderia realizar a
ministrado por professores indígenas aos jovens que vivem na cidade e não são fluentes
***
387 pessoas que vivem em 6 aldeias permanentes (Pauzinho, Embaúba, São Francisco,
para onde vão as famílias extensas durante a época das chuvas no inverno e nos
períodos das expedições de extração do óleo de copaíba. Estas aldeias estão localizadas
recentemente são a aldeia Jatobá (Kamowabaki) das famílias de Luis e Robi, a aldeia
39
Parte considerável da pesquisa foi realizada na aldeia São Francisco, centro da terra
aldeias: Vitória, Embaúba e Buritirana. Na aldeia São Francisco, vivi na casa da família
abrigava a radiofonia – instalada em 2015. A aldeia Carapanazal, por sua vez, foi
desfeita em 2015 e seus moradores se mudaram para o outro lado da terra indígena, num
afluente do rio Piranha, de modo que em virtude da distância, esta foi a única aldeia que
não pude conhecer. O trânsito constante dos Jamamadi entre as diferentes áreas de seu
território – que logo ganhará sentidos mais precisos –, não obstante, possibilitou o
contato frequente mesmo com aqueles que viviam mais afastados. Outra referência
esgotamento dos recursos das áreas do entorno. Nos últimos anos, houve um aumento
das caças e na seca dos igarapés durante os meses de verão. Por conseguinte, as idas à
dos hábitos alimentares que é tanto um problema de saúde pública quanto uma grave
questão cosmológica. Nos idos de 2013, ainda não havia na área atendimento de saúde
40
entanto, não resultou na melhora do atendimento dos Jamamadi que seguem morrendo
Desde muito pequenas, as crianças acompanham seus pais nas longas caminhadas
carregando seus paneiros diminutos, mesmo aqueles com mobilidade reduzida não
abandonam o hábito dos constantes deslocamentos. A vida transcorre na terra firme, não
é incomum encontrar quem se negue a viajar de barco pelo Purus por temor de suas
águas. Ademais, a errância pelo território aos poucos revelará sua importância nesta tese
como método de apreciação e relação com as plantas. Não à toa, frequentei durante todo
viajar para tomar mingau em outra aldeia, buscar uma muda de banana de um parente, ir
ver as pupunhas de um tio numa capoeira distante, pescar e nadar com as mulheres no
igarapé e roçar.
Além de acompanhar meus anfitriões em suas tarefas diárias nos roçados e auxiliar as
mulheres nos trabalhos domésticos, visitava com a mesma frequência as outras famílias
limitar os assuntos em debate. Pude contar com o entusiasmo de muitos deles, e alguns
tornaram-se interlocutores centrais para este trabalho: Badá e seu esposa Sabira, os
meus pais adotivos; Mowe, sobrinha paralela deste casal, que me acompanhou ao longo
senhores mais velhos com boa fluência em português; além de Salgado e Abadias que
41
ensinou sua língua durante os primeiros meses de campo e veio a falecer em 2017 de
forma trágica. Opto por abreviar os nomes dos pajés a fim de preservar-lhes a
identidade, uma vez que sua prática é alvo de perseguição por parte dos missionários e
dos Jamamadi convertidos. Por escapar do escopo deste trabalho, não me adentro na
dizem crentes, embora muitos frequentem os cultos realizados nas aldeias, segundo eles,
para cantar. No período em que estive em campo, somente alguns jovens e a família do
por um outro: "quem te disse isso?", costumavam me perguntar a fim de checar a fonte.
“Ah, mas fulano ainda é uma criança pequena"; “Eu já era formado [adulto] quando
fulano ainda era criança, então, ele não sabe bem”; “Eu criei muito ele. Ele não sabe
falar certo3”, eram enunciados ditos com a intenção de deslegitimar as falas dos
vizinhos de outros grupos e "alertar-me" de seus equívocos. Sem dar o braço a torcer,
arrematavam lembrando: Owa bara, "eu sou outro/diferente [dele]". As outras aldeias,
3
De forma alternativa podem dizer que alimentaram tal pessoa com os produtos do seu roçado:
"essa pessoa foi minha criação, comeu muito do meu fadara, roçado". Também os Suruwaha quando
querem ofender alguém ou repreender uma criança mal-educada dizem algo semelhante: Abiji ahyra aru
hwawaxu!, "[me respeite pois] eu não me alimento dos cultivares do teu pai". Em um contexto distinto,
mas seguindo a mesma lógica, os Suruwaha dizem: Aruwa nakamunysama! Wahyra/ ubahiria hawa
niasangani/ niasanawanki, "Não fique com saudade de mim, pois você não se alimentou dos meus
cultivares/ as caças que abati". As informações e traduções da língua suruwaha são de Adriana Huber
(com. pess.).
42
por outro lado, são formadas por famílias nucleares e sua dinâmica é menos pautada na
43
iii. A terra firme vista das margens: o nome "jamamadi"
Não resta dúvida de que a questão "qual o nome da sua etnia?", mormente quando
por outro lado, bem menos evidentes são as respostas à versão nativa da questão, tika
ede oni?, "qual o nome da sua árvore?". Antes de enfrentar as variações etnonímicas e a
primeira questão. Para tal, me deterei nas controvérsias inerentes à extensão e aplicação
deste nome; no tópico seguinte, recupero os registros históricos e relatos dos viajantes
que estiveram no Purus desde o início do século XIX; por fim, volto-me para a
estabilização atual do nome "jamamadi" como etnônimo adotado por esta população do
médio Purus.
A segunda pergunta tika ede oni?, por sua vez, trata da versão indígena da pergunta,
pouco profícuas para os Jamamadi, e talvez para os demais coletivos madi, por motivos
semelhantes àqueles apontados por Bonilla (2007:299-305) para o caso Paumari. Resta
perguntar como os Jamamadi pensam sua socialidade e quais os termos mais produtivos
44
para abordá-la. Este será tema do capítulo final desta tese, por ora, detenho-me no
etnônimo "Jamamadi".
***
tais registros correspondem àqueles que hoje são conhecidos como Jamamadi, na região
deixadas pelos viajantes com um povo específico implica em boa dose de especulação,
com a pressão exercida pelas sucessivas frentes extrativistas que invadiram seus
ruptura, parte da constituição atual dos povos indígenas no Purus e alhures. O contato e
Como se verá adiante, o termo "jamamadi" era aplicado de forma genérica a todos os
margens e os cursos d'água mais caudalosos. Fato que, segundo algumas análises,
estaria subjacente à etimologia do termo. Seu caráter englobante revela não ser possível
45
determinar com precisão se todas as referências aplicam-se aos Jamamadi atuais do
médio Purus, dado que o termo era usado para identificar uma miríade de grupos,
muitos dos quais foram exterminados, enquanto outros hoje são conhecidos segundo
etnônimos diferentes. Todavia, tal aspecto permite retraçar informações sobre o contato
contraste entre as margens e a terra firme, o rio e a floresta; de maneira ainda mais
ilustrados pelos Paumari (cf. Bonilla 2007: 45-46; 95; 137), em oposição àqueles
mais embrenhado no interior, mais inculto e avesso ao contato com os brancos era o
povo. Menos que um etnônimo, "jamamadi" era uma qualificação inclusiva aplicada à
dissonância dos registros dos viajantes e etnólogos, basta lembrar a inquietude do padre
metade do século XX, "com o caráter fluido dos etnônimos e das categorias, o que o
a um grupo social" (Campello & Sáez 2016:14). A polissemia dos nomes e o dissenso
4
Vale a pena frisar que os povos considerados isolados são melhor descritos como "em situação" de
isolamento voluntário, pois, como sobreviventes de conflitos e correrias, cativos de patrões, foragidos de
missões catequizadoras, preferiram abster-se do contato com os brancos e, muitas vezes, até mesmo dos
povos indígenas vizinhos.
46
de sua aplicação tornam improdutivas as tentativas de equacionar de forma unívoca um
povo a um nome, ou ainda, de saber quais relações os grupos poderiam manter entre si;
talvez compusessem grupos falantes de uma mesma língua, talvez refletissem uma
Outro aspecto importante a ser ressaltado é a correlação entre o extermínio dos povos
que abundavam ao longo de toda calha do Purus "desde a sua foz e continuando rio
revela. Como sugeriu Andrello (2016:19): "o processo colonial não apenas dizimou uma
população, mas também seus nomes, que passaram de centenas para dezenas. Olhar
para os etnônimos nos revela, por contraste, essa aversão do regime colonial a qualquer
lembrou Sáez (2016:14): "os etnônimos mantêm não poucas vezes uma guerrilha
Das referências históricas aos "Jamamadi", duas podem ser bem localizadas hoje: a
primeira corresponde aos povos que viviam na região entre os rios Cuniuá, Mamoriá,
Pauini, Teuini e Inauini, Capana e Xeruã, e a segunda, àquelas da região entre os rios
Caihã, Bawaná e Uricuri. Essas são regiões de cabeceira e de igarapés de terra firme,
5
Em seu relato cita os seguintes grupos: os Cuchiguará, que possuem o mesmo nome atribuído ao rio
Purus; Cumayaru; Guaquiari; Cuyariyayane; Curucuru (possível corruptela dos Purupurus?); Quantafi;
Mutuani e, por fim, os Curiguerê. Também menciona os Caripuna e os Zurina (apud Kroemer 1985:19).
47
pouco afetadas pela variação hidrográfica das mudanças sazonais amazônicas. A
primeira é atribuída aos Jamamadi, falantes de língua madiha, que vivem nos limites
dos municípios de Boca do Acre e Pauini, entre eles há os do igarapé Capana, na Terra
Inauini. A segunda trata dos também chamados Jamamadi, falantes de língua madi, que
Jarawara que habitam nesta mesma T.I., dos Banawá, da terra indígena homônima e,
Stefan Dienst (2016)6 propõe a subdivisão da família linguística Arawá nas línguas
a divisão interna em dois ramos: Madiha, falada pelos Kulina, Jamamadi Ocidentais e
Deni, e Madi, falada pelos Jamamadi Orientais, Banawá e Jarawara. Não adoto a
nomenclatura sugerida pelo linguísta com a função de etnônimo por precaução que a
que são feitas aos Jamamadi do alto e do médio Purus. Prefiro manter o etnônimo
"Jamamadi" para ambos os povos, de acordo com o uso feito pelos mesmos, remetendo-
6
"O Kulina, o Deni e o Jamamadi Ocidental constituem o ramo Madiha da família linguística Arawá. Os
Kulina são o mais numeroso de todos os grupos Madiha. Eles vivem no Alto rio Purus no Acre e no Peru,
no rio Envira no Acre e nos rios Tarauacá, Juruá e Jutaí no Amazonas. Os Deni vivem no Amazonas entre
os rios Purus e Juruá. Um dos dois grupos Deni vive no Cuniuá, um afluente do Tapauá, que é um
afluente esquerdo do Purus. O outro grupo vive no Xeruã, um afluente direito do Juruá. Os Jamamadi
Ocidentais também vivem no Amazonas, nas municipalidades de Boca do Acre e Pauini no Purus. Entre
os grupos Jamamadi Ocidentais há os Jamamadi de Capana na terra indígena Capana e os Sivakoedeni na
terra indígena Inauini/Teuini. Também existe uma etnia conhecida como Jamamadi na terra indígena
Jarawara/Jamamadi/Kanamanti na municipalidade de Lábrea no Amazonas. Eles falam Jamamadi
Oriental, uma variedade de Madi (...)" (Dienst 2016:259).
48
Jamamadi (orientais) falantes de língua madi que habitam o médio Purus e os Jamamadi
"Yamamadi" para os Jamamadi (orientais) seguindo uma variação gráfica comum entre
eles, dado que muitos escrevem com as letras "j" ou "y" indiscriminadamente, apenas
sugere que a grafia mais acertada é Zamamadi, para os Jamamadi do alto Purus, por não
haver o fonema [j] nesta língua madiha e "zama" ser um termo que em diferentes
línguas arawá tem o sentido de "mata", mantendo a corruptela antiga da expressão jiwã-
mãgi, erroneamente dita ser de origem paumari, cujo sentido seria "homem do mato".
Linguístas como Dixon (2004) seguem essa etimologia sugerida no início do século XX
por Steere, segundo a qual o termo seria composto por duas palavras: yama, "mato", e
madi, "pessoa".
Discordo da análise feita por Rangel, uma vez que zama, nas línguas madiha e
"it" em inglês – e madi7, na língua madi – a homonimia pode indicar a origem do nome
da língua –, ser um coletivizador ou pronome pessoal. Isto posto, uma tradução possível
para Jamamadi seria tão somente "pessoa" ou "pessoal". Feitas estas considerações
7
Notar que o pronome na terceira pessoa do plural em Jarawara é mai alternando com a forma mee em
Jamamadi. Na avaliação de Dixon, tal pronome é uma gramaticalização a partir do substantivo madi,
"pessoa", através das transformações madi>mai>mee. Dada a alofonia entre [t] e [d] em Jarawara, há a
forma mati para o substantivo; Dixon lembra que a forma mai do pronome na terceira pessoa do plural
ocorre em músicas jarawara, o meio por excelência que preserva arcaísmos da linguagem (Dixon
2004:77).
49
preliminares, passo aos relatos históricos dos viajantes e etnológos que estiveram no
Purus.
50
iv. A literatura histórica e os relatos dos viajantes
Ao que tudo indica, é nos relatos da expedição científica dos naturalistas Johann Baptist
von Spix e Carl Friedrich von Martius, levada a cabo entre os anos de 1817 e 1820, que
se menciona pela primeira vez, ao descreverem suas impressões sobre o Purus e seus
povos, a existência dos Amamatis, uma das diversas variações gráficas do nome
"jamamadi". Muito embora não registrem a localização do grupo, pode-se supor com
Quanto à grafia "jamamadi", uma das primeiras menções provém dos relatos de Manoel
pelo governo de sua majestade britânica no Rio Branco" (Kroemer 1985:46). Manoel
Urbano viajava pelo Purus, muito antes de 1845, em busca das chamadas drogas do
sertão – a região era conhecida por sua abundância em salsaparrilha, óleo de copaíba,
51
tartarugas, peixes de diversas espécies, castanha e breu –, e para tal atraía as "quatorze
mandioca e outras plantações" (idem), dentre as quais cita a "nação Jamamadi, que tem
muitas malocas" – novamente, suas localizações não são mencionadas. Por gozar da
confiança dos indígenas, Manoel Urbano foi nomeado "principal das nações por ele
Castelnau, esteve no Purus em 1847 e noticiou a existência dos "Jamaris", ele era o
instalara uma missão para evangelizar os índios Mura; por seu conhecimento da região,
Bruno de Souza forneceu informações a respeito dos povos indígenas do médio rio
Purus até o rio Pauini e cita que "no interior [do rio Pauini], moravam tribos menos
povos que habitam o "interior", ou seja, as matas da terra firme, e aqueles das margens e
"anfíbios" e "aquáticos", por seu modo de vida em franca familiaridade com a água9.
Wallace, naturalista inglês que esteve na região na primeira metade do século XIX,
9
Sobre esta caracterização histórica dos Paumari, a análise de sua proximidade como universo aquático e
a pregnância simbólica de sua ontologia associada, conferir os estudos de Bonilla (2007). Na esteira das
análises propostas por esta autora, conferir a etnografia de Vieira (2013) sobre a pesca do peixe-boi e a
importância desta entidade na cosmologia Paumari.
52
primeiro, cujas cabeceiras não se alcançam senão com três meses de viagem. Quanto
aos povos que habitam o Purus, o naturalista enumera cinco, já conhecidos dos
negociantes:
Dos índios que se encontram nas margens daquele rio [Purus], consegui também obter
algumas informações. Cinco são as tribos ali conhecidas dos negociantes: 1) Os muras,
que ficam a sessenta dias de viagem rio acima, desde a sua barra; 2) Os purupurus,
trinta dias de viagem também, rio acima; 3) Os catauxis, na mesma zona dos purupurus,
porém que estão localizados nos igarapés e lagos do interior; 4) Os jamamaris, no
interior da margem ocidental; 5) Os jubiris, nas margens dos rios acima dos purupurus
(Wallace 2014 [1849]: 608, grifos meus).
A respeito dos "jamamaris", destaca apenas que habitam a terra firme e limita-se, sem
mosqueados, embora isso não seja em tão grande extensão (idem)". O viajante nota que
esse grupo se autodenomina pamouris, mas que são chamados pelos habitantes não
(...) tal doença consiste no aparecimento de umas manchas e pústulas, que se espalham
por todas as partes do corpo, e que são de uma cor esbranquiçada ou amarela ou, então,
mais ou menos negra, de tamanhos e formas irregulares, e tendo um aspecto muito
desagradável. Quando ainda jovens, a sua pele é clara; porém, quando se tornam mais
crescidos, a pele fica-lhes mais ou menos manchada. Outros índios, de outras tribos, são
também atacados por essa doença; e, quando afligidos por dita moléstia, diz-se que eles
têm o purupuru. Não se sabe se a doença é assim denominada pelos índios que mais são
53
atacados por ela, ou se os índios é que são assim apelidados, por causa da moléstia.
Dizem alguns que a palavra é portuguesa (Wallace 2004 [1849]: 611)10.
Serafim da Silva Salgado, em seu "Relatório sobre a exploração do rio Purus" (1852),
nota que na foz do igarapé Macuiany habitava "uma horda da tribo Jamamadi,
igualmente que habitavam muitos índios Jamamadi (Salgado apud Kroemer 1985: 49).
Em 1854, João Wilkens de Mattos, diretor geral dos índios à época, nos relatórios sobre
a extinção da missão de São Luís Gonzaga (fundada no lago Uamurá, 98 milhas distante
da foz do Purus) e nos relatos da viagem que participou no vapor Monarca (da
pelo governo da província para explorar o Purus com vistas a descobrir uma passagem
ao rio Madeira, que entre as tribos do Purus havia os Jamamadi, vizinha dos Ipuriná, e
Coutinho (1862), em seu relatório acerca do Purus, localiza os Hymamadys acima das
três malocas Hypurinás que estavam perto da foz do rio Tapauá, bem como nas
10
Para mais informações sobre a doença cf. Bonilla (2007).
11
Sem a pretenção de ter realizado um levantamento bibliográfico exaustivo dos relatos históricos que
mencionam os Jamamadi, arrisco afirmar que esta é a única referência feita a práticas antropofágicas por
este povo, levantando a suspeita de tratar-se mais de comentário fruto de preconceito que de uma
observação acurada.
54
proximidades das barreiras de Hyaerhery, de onde partiam dois caminhos para o centro:
[Teruã], onde havia uma maloca dos Hypurinás (Coutinho 1862:52). No rio Hynauiny
terra firme:
Geographical Society entre 1864 e 1865, situa os Jamamadys nas seguintes localidades:
nas proximidades do igarapé Mamoriá Mirim12, entre o rio Pauini e o Mamoriá Grande,
e acima do rio Sepatini até o rio Hyacu. O geógrafo comenta que os índios da região
levanta a hipótese dos Culinos e dos Jamamadys serem possivelmente a mesma tribo,
12
Em todos os relatórios da Funai, quando se faz referência ao Mamoriá Grande, trata-se do rio localizado
na margem esquerda do rio Purus e sua foz está acima da boca do igarapé São Benedito. Atualmente, a
margem esquerda do igarapé grande é composta pela Resex Médio Purus e pouco acima, por terra
devoluta. Na margem direita está a terra indígena Camadeni. O Mamoriazinho ou Mamoriá Mirim é
chamado em jamamadi de Fakoma - lit. "rio da dor" nome que alude aos intensos conflitos ocorridos
nesta região. Importante lembrar que há diversos nomes de igarapés no médio Purus chamados Mamoriá.
55
conhecidos com nomes distintos, e que ambos não fazem uso de canoas. Outra vez, o
relato marca a preferência dos Jamamadi pela terra firme, à margem esquerda do Purus,
e a evitação dos rios, perceptível pela ausência de canoas, nas palavras de Chandless:
Acima do rio Sepatynin e deste rio até o rio Hyuacú, cerca de trezentas milhas (omitindo
as curvas), ao longo deste rio extende-se a tribo Hypurinás (...). Ao lado esquerdo, a um
ou dois dias de viagem do rio, acham-se os Hyamamadys, que se extendem pelo interior
dos Hypurinás, em toda a sua extensão, mas no lado direito nem sequer conhece-se o
nome de outra tribo do interior. A despeito de todas as outras distinções, os índios nessas
regiões podem ser divididos em índios da terra e índios da água. Os Hyamamadys são
exclusivamente uma tribo da terra, vivendo em pequenos igarapés somente, e não usam
canoas. Os Hypurinás também são uma tribo da terra, mas não de modo exclusivo, e
seguindo os tributários do Purus, cruza-se com os Hyamamadys (Chandless 1866: 96).
O coronel Antônio R. P. Labre, por sua vez, no relato que fornece de suas viagens
dificuldades oferecidas pelo rio Madeira, descreveu os Jamamadi como agricultores que
etnólogo americano Joseph B. Steere, que esteve no Purus entre 1873 e 1901. Segundo a
56
Purus. Menciona que um caminho largo tinha sido aberto da cidade até o Mamoreá na
outra perto de sua foz, não tendo encontrado outros grupos Jamamadi no interior. A
aldeia visitada havia sido recentemente destruída, quase por completo, por uma
epidemia de sarampo, de modo que ele apenas pôde ter uma vaga ideia de sua condição
anterior. Menciona ter visto dois chefes, contudo, estes pareciam exercer pouca
autoridade sobre o grupo. Nota que os índios vestiam tangas. Homens e mulheres
perfuravam os lóbulos das orelhas e o septo nasal. Ainda segundo Steere, a residência
permanente dos Jamamadi era uma grande casa comunal de forma cônica de celas ou
quartos para todas as familias da aldeia. Estas eram colocadas em círculos dentro da
Steere narra uma de suas incursões às aldeias Jamamadi, localizadas nas cabeceiras do
Planejava uma viagem pela juzante do Purús até a fóz do Mamoreá, quando na tarde do
segundo dia dois homens, um cearense e um Ipuriná, chegaram à aldeia pelo mesmo
caminho que tínhamos seguido. (...) Contaram que os Jamamadi estavam em sua aldeia
57
na parte superior do rio, mas que os Ipuriná já o tinham descido. (...) aproximando-nos
do Mamoreá, passámos por extensa área de antigas derrubadas, atualmente cobertas por
pequenas árvores, mas com touceiras de bananeiras ainda produzindo. Eram as antigas e
desertas plantações dos Jamamadi. (...) O dia seguinte foi gasto remando rio acima da
canôa sobrecarregada. (...) Ao meio dia paramos numa das margens e os homens
dirigiram-se a uma antiga derrubada dos Jamamadi e trouxeram um carregamento de
cana-de açúcar e abacaxis meio maduros para ajudar nossa refeição de farinha e peixe.
(...) Pouco antes de anoitecer chegamos a São João, o reduto do senhor João Nogueira, o
único acampamento de seringueiros em funcionamento no Mamoreá. (...) Vários
macacos de espécies diversas corriam por ali ou estavam acorrentados às paredes. Estes,
êle me disse, foram comprados dos Jamamadi. Sabendo que desejava visitar a maloca
dêsses índios, êle concordou em acompanhar-me no dia seguinte e nessa mesma noite
terminamos os nossos simples arranjos para a viagem. Devíamos levar dois dias na
viagem por barco, rio acima, mas êle calculou que seguindo um velho trilho através da
floresta nós poderíamos fazê-la em um dia. (...) O rio agora se estreitava formando um
canal de vinte ou trinta pés de largo, mas rápido e profundo e cheio de troncos que se
curvavam sobre a água. (...) encontramos tantos troncos que era impossível prosseguir,
assim abicamos em terra e continuamos a pé. Bem nêsse lugar estavam as canôas da
aldeia Jamamadi (1949 [1873-1901]:901).
Steere visitara uma grande maloca há pouco abandonada porque dos seus 130
Em junho de 1900, apenas há nove mêses, esta era a residência de cento e trinta pessoas.
(...) Então, um membro da tribo, que tinha ido até o Purús, trouxe o sarampo, contraído
dos viajantes de um navio (...) Depois que a moléstia cessou, ainda estavam vivos
apenas uns trinta. Estes temiam voltar para a aldeia, mas estabeleceram-se perto dela.
empregadas por eles, cuidando para citar os principais cultivares plantados em seus
58
vastos roçados; menciona as ferramentas que utilizam no plantio, como os machados de
aço, e descreve aquelas que usam na caça, a saber, a zarabatana, o arco e as flechas
envenenadas; por fim, Steere cita a confecção de canoas feitas de casca de Jutaí e de
comerciantes:
Os Jamamadi são lavradores e caçadores. Seu método de cultivo é pelo fogo. Cortam as
árvores, queimam as folhas e a vegetação rasteira durante a estação sêca, limpando
assim a superfície do solo que é então plantado entre os troncos e tocos. Obtêm cêrca de
duas colheitas e depois deixam que a floresta recubra novamente a terra. (...). Possuem
atualmente alguns machados de aço que obtiveram dos seringueiros. Cultivam milho,
mandioca, abacaxi, bananas, a palmeira pupuya, fumo, cana de açúcar e algumas outras
plantas. (...) São grandes caçadores e suas armas constam da sarabatana, flechas
envenenadas, arcos e flechas. É sob todos os aspectos, semelhante às das tribos do
Amazonas Peruano. (...) Os Jamamadi usam canôas de casca feitas de uma única peça
tirada de uma árvore que dizem ser o jutaí (...). Outrora eram conhecidos por fazerem
boas redes de entrecasca, mas agora preferem trocar com os seringueiros macacos
domesticados por redes baratas de algodão do Pará (...) (Steere 1949 [1873-1901]: 217-
219).
que os Jamamadi estão entre aqueles povos menos conhecidos, lembrados apenas en
Mamoriá Mirim e o rio Pauini, espalhando-se até o rio Juruá, abrange ambos os grupos
13
O viajante fornece descrições detalhadas da cultura material, das técnicas de tecelagem, de plantio, de
pesca e caça. Aborda o uso difundido do rapé e as técnicas de sua produção. Também fornece as
primeiras descrições dos rituais de iniciação feminina e xamânica, além das técnicas terapêuticas
empregadas pelo pajé.
59
atualmente identificados como Jamamadi, os de língua madi e os madiha. Segundo
Ehrenreich, os Yamamadi habitam as matas altas e densas da terra firme "de medo da
praga dos insetos"14 e, uma vez que não possuiriam canoas, praticavam a pesca somente
feitas sobre a praga dos insetos, responsável pela diminuição expressiva da ocupação
das margens na estação das cheias, e que fazem a má fama deste rio:
O Purús tem pessima fama devido incrível flagello dos insectos. Por meio de
mosquiteiros extendidos sobre a rêde de dormir gosa-se de algum descanço durante a
noite; não assim de dia, quando o pobre viajante torna-se victima inerme dos assaltos de
myriades de piuns e borrachudos, especie de trombidium communissimo na estação
chuvosa, nas margens de todos os rios do Brasil. Abanar-se e por outros modos,
procurar afugentar estes insectos, é de muito pouco effeito; estes pequenos vampiros em
pouco tempo não deixarão intacto de sua ferretoada o minimo logar na vossa epiderme,
a não ser que prefiraes, como os indigenas, trazer uma mascara no rosto e enleiar
pescoço e braços em pannos, o que, porém, provoca calôr nestas partes para quem não
esteja habituado. (...) O unico preservativo seria fazer como fazem os indios, evitando as
margens do rio, ir morar na sombria matta da terra firme, onde o pium só apparece
isolado. Verdadeiros mosquitos são alli raros e não permanentes, limitando-se a certos
logares (Ehrenreich 1929:300).
Ehrenreich salienta que os Jamamadi "procuram ter o menor contacto possível com os
brancos, porque receiam pegar doenças. 'Catarro não tem?' é igualmente entre êles a
escala, afirma que sofrem da mesma doença de pele que acomete os Paumari, também
14
O flagelo dos mosquitos que povoam a região foi sucessivamente reiterado pelos viajantes que
estiveram no Purus: "it would be well if there were no worse plagues; but in parts, between pium-flies all
day and mosquitoes all night, rest is almost impossible, and one is driven to and from as if between the
gate of Hell and Acheron" (Chandless 1866:91).
60
pinto, caraté (cf. Bonilla 2007:45 e 66)15. Menciona ter observado outro tipo de
construção feita pelos Jamamadi, distinta das registradas anteriormente por Steere, cuja
base seria elíptica, quase oval, medindo 12m de diâmetro no maior e 6m no menor.
Trata, como fizeram os demais viajantes e etnólogos, das lavouras Jamamadi, afirmando
que: "as tentativas, feitas há uns dez anos, de estabelecer uma missão no Pôrto da
Providência junto à foz do Mamoria Mirim não tiveram êxito, não tardando os índios a
Índios, o extinto SPI, foi registrada a violência a que eram submetidos os Jamamadi ao
serem aprisionados em expedições armadas a fim de servir como mão de obra escrava
nos cauchais e seringais do Purus. Conhecidas como "correrias", estas incursões eram
toda sorte de violência. Não raro, as populações que estivessem em território cobiçado
eram dizimadas em quase sua totalidade pela ânsia exploratória que avançava sobre as
15
De acordo com Bonilla, trata-se de uma doença provocada pela bactéria Treponema carateum, espécie
de sífilis não venéria que marca a pele com manchas escuras, vermelhas ou violáceas.
16
A respeito do impacto das correrias e da invasão do território jamamadi pelos seringueiros, no início do
século passado, Kroemer escreve: "A grande tribo dos índios Jamamadi, cujo habitat se estendia do
interior da margem esquerda do rio Cainã até o rio Pauini, foi 'pacificada' até o seu desaparecimento,
embora pequenos grupos sobrevivessem entre os rios Cainã e Mamoriá, como seringueiros e fornecedores
de produtos agrícolas" (1985:89).
61
No rio Inauhiny, o inspetor encontrou um acampamento de caucheiros peruanos que
tinham a seu serviço sessenta índios Yamamadi. Estavam presos num círculo formado
por numeroso pessoal armado de rifles para evitar qualquer tentativa de fuga. Haviam
sido aprisionados em sua maloca, muitas léguas distante, e de lá conduzidos ao cauchal
sob toda sorte de violências, inclusive fome, porque nenhum alimento lhes foi dado
durante todo o percurso. Alguns morreram durante a viagem, outros, ao chegarem ao
acampamento (Ribeiro 2009[1970]:59-60).
No relatório da Primeira Inspetoria Regional do SPI, datado de 1943, acerca das regiões
hoje correspondentes aos territórios dos Jamamadi do médio Purus, menciona-se que no
subgrupos nomeados como indicam os sufixos -deni acrescidos a cada um dos nomes
Outro estabelecimento do SPI no rio Purus era o posto indígena do rio Tuini, chamado
17
O posto Manauacá tornou-se o centro de uma grande população Jamamadi: "fornecendo o agradável
aspecto de um vilarejo próspero e feliz, onde esses novos desafortunados patrícios possam gozar a velhice
com regular conforto" (SPI apud Kroemer 1985). Contudo, não durou muito e em 1943 foi transferido a
cinco milhas de distância de seu local original; na época, 28 Jamamadi eram assistidos, os demais
retornaram às suas malocas. Em 1945, o posto acabou sendo completamente desativado.
62
e castanha. Esse posto fornecia produtos agrícolas e servia para controlar a área entre os
constantes viagens pelas malocas dispersas, para convencer os mais arredios das
vantagens de virem todos para o posto, onde melhor poderão ser atendidos em suas
Dantas, também conhecido como Mariené, localizado no rio Seruini, verificou-se que
ali viviam 65 pessoas, sendo 22 homens, 21 mulheres, 22 crianças, dentre eles havia
uma Jamamadi e uma Marimã. Em 1942, no igarapé Duque, afluente do rio Mamoriá,
mulheres eram todas Jamamadi e os homens, Apurinã. Há também menções nos rios
18
"Todos perfaziam um total de mil indivíduos", cita o inspetor. Os relatórios dão conta das sucessivas
investidas e chacinas sistemáticas que levaram ao extermínio dos Mamori, Katukina e Ximarimã, no rio
Cuniuá; dos Jamamadi, no rio Pauini, e dos Juma, do rio Mucuim e seus afluentes (Kroemer 1985: 96-
97). Possivelmente, os Marimã, Beidamam, Marimam e Ximarimã de que tratam os relatos sejam os Hi-
Merimã, grupo falante de um dialeto madi atualmente em isolamento voluntário, vizinho dos Jamamadi e
Banawá
19
Seguindo a análise de Rivet e Tastevin, araua seria um subgrupo da familia linguística arawak,
conforme sugerido por Daniel Brinton (1891: 292-293) a partir do povo homônimo que fora exterminado;
nele estariam compreendidos os Araua, os Kapinamari, os Kulina, os Pama, os Pammana, os Pammari, os
Puru, os Purupurú, os Yamamadi, os Yuberi, e também os Amamati, os Kulina ou Kurunawa, os Kuria,
os Kuriana, os Sewaku e os Sipó que estão no entorno dos subgrupos pré-andinos a norte e noroeste.
(Rivet e Tastevin 1921: 478). Os autores recolheram listas de vocabulários inéditos, em 1912, em Belo
63
região dos atuais Jamamadi madiha, e também no médio Purus e afluentes, onde vivem
mesma etnia, variando apenas o nome, dadas as várias semelhanças linguísticas (Rivet e
formam uma mesma tribo com nomes diferentes. Linguísticamente, eles são
Schultz e Chiara (1955), ao informarem sobre os índios do alto Purus, descrevem duas
aldeias Jamamadi no seringal São Miguel, situadas na margem esquerda do rio Purus.
castanhais em que viviam. Contam que uma epidemia havia reduzido ainda mais o
grupo (já descrito como pequeno), e, embora tratem mais especificamente dos
Monte, a montante do Marary, no Purus, de um informante Yamamadi que vivia entre o Chiruan [Xeruã]
e Pauini. Outro vocabulário foi recolhido em 1922 no rio Chiruan, de um informante branco que
empregava os Yamamadi. Essas informações estão no artigo de 1938 no qual há análises linguísticas
mais detidas e esboços acerca da proximidade entre as línguas da região.
64
Além deles, cita os Jamamadi que vivem próximos do município de Boca do Acre, nos
65
v. Os Jamamadi madi e os Jamamadi madiha
A partir das imagens produzidas na literatura de viagens e nos relatos dos etnólogos,
das altas terras firmes, evitando aproximar-se dos cursos mais fartos dos rios e dos
em suas embarcações. Atribuído por terceiros, como soe ser a sorte dos etnônimos, o
com aqueles que habitavam as margens dos rios e lagos, caso dos Paumari, ilustres por
percalços das longas distâncias dos trajetos acidentados. Pelo seu modo de vida, a pesca
diminuição drástica da população – como dão conta muitos relatos lembrados pelos
Jamamadi mais velhos. Diferentemente dos Hi-Merimã, os Jamamadi não optaram pelo
Outro aspecto relevante é o fracasso tonitruante das missões que tentaram estabelecer-se
66
eram inconstantes, não se convenciam a permanecer na missão findados os presentes e a
de considerar os povos arawá e arawak como partes do mesmo tronco linguístico, sendo
a primeira uma subdvisão da segunda (Ehrenreich, 1891; Rivet & Tastevin, 1921;
20
"Frei Matteo andava em companhia de um índio Paumari, que lhe servia de intérprete. Conseguiu atrair
50 índios Jamamadi, mas estes, por medo dos Apurinã e por falta de farinha na missão, não quiseram
ficar. Eles só iriam ficar perto da missão se recebessem comida, presentes, roupas e ferramentas. O frei,
impaciente com a inconstância dos Jamamadi, voltou-lhes as costas e dirigiu-se aos Apurinã do rio
Sepatini, que já estavam em contato com os brancos e ele considerava fiéis, constantes e industriosos.
Mas não sabia para onde levá-los, pois eram inimigos dos Jamamadi, no Mamoriá-mirim. Novamente
voltaram ao projeto de aldear os Jamamadi do Mamoriá-mirim. Desta vez, fizeram uma viagem ao
interior do rio, e, depois, de oito horas, chegaram à primeira maloca, onde permaneceram três dias. Lá,
convenceram 23 pessoas para descerem à missão, e os índios mostravam-se aparentemente contentes com
as roupas e as ferramentas. Vendo que desta vez havia farinha, ficaram, mas não se deixaram animar para
os trabalhos na missão. (...) Os Jamamadi, depois de comerem a farinha, voltaram à sua vida tribal. Os
religiosos abandonaram a missão no rio mamoriá-mirim (...)" (Willeke apud Kroemer 1985:72, grifo
meu).
21
Além da localização, dos aspectos materiais e da organização social que distinguem os Jamamadi em
dois grupos, as informações linguísticas reforçam essas diferenças. Ehrenreich (1897:67-71) registrou
uma lista com 247 palavras em sua viagem ao Purus, dentre as quais consta "yamamadi", este grupo é
localizado pelo etnólogo na margem esquerda do rio Purus, nas imediações do igarapé Mamoriá-Mirim, e
no alto curso deste mesmo rio, nas proximidades de Pauini. Steere (1949[1873-1901]:373-87) também
ocupou-se em listar 57 palavras em jamamadi; o viajante atentou para as diferenças linguísticas, dos
ornamentos e de moradia em relação aos povos vizinhos. William C. Farabee (manuscrito s/d), que esteve
no Brasil entre 1913 e 1916 coletando objetos para o Museu da Universidade da Pennsylvania, recolheu
duas listas de palavras - no caderno II, há 75 palavras, e no caderno XV, 120 - identificadas como sendo
da língua jamamadi. Também Rivet e Tastevin, como dito acima, compilaram palavras a fim de
estabelecer uma primeira comparação entre as línguas da família arawá; nesta lista, além dos registros
feitos por Ehrenreich e Steere, há materiais originais registrados por Tastevin em 1912 e em 1922 (1938-
76). Novamente, a descrição da localização aponta para o grupo Jamamadi falante de língua madiha
(Dienst 2016). Segundo o relato, este grupo também era chamado de Kapinamari, os Apurinã os
chamavam de Kapaná e os Kanamari de Koló. O mesmo ocorre com os registros feitos por Montserrat e
da Silva (1991) sobre um grupo autodenominado Sivakoedeni cuja localização entre os rios Capana,
Pauini e Santo Antônio, todos tributários do Purus, não deixa dúvidas de se tratar dos Jamamadi madiha,
do alto Purus. A análise lexical realizada por Dixon confirma tais diferenças, concluindo que as palavras
registradas por Ehrenreich, Steere e parte dos registros de Farabee foram feitos com os Jamamadi do
médio Purus, falantes de um dialeto madi, ao passo que os registros de Rivet e Tastevin, Montserrat e da
Silva e do caderno II de Farabee provêm do grupo Jamamadi falante de outra língua da família arawá, o
madiha.
67
Nimuendajú, 1944; Métraux, 1970). Em pesquisas posteriores de Ayron Rodrigues e de
com traduções interlineares e artigos sobre aspectos variados das línguas arawá.
Explicitadas as diferenças entre os dois grupos Jamamadi, advirto que este nome será
de língua madiha. Precipitado da relação com os brancos, "Jamamadi" trata-se mais bem
sobre os outros, não sobre quem está em posição de sujeito. Os etnônimos são nomes de
do rio e das margens, dos comerciantes que invadiram o Purus e de outros povos
indígenas com maior trânsito entre eles. De categoria genérica, tal nome cristalizou-se
consonância com os relatos dos indígenas, foi somente da década de 1960 em diante que
Uma ressalva é fundamental neste ponto, o nome "jamamadi" não tem sentido
conhecido para as pessoas que respondem por este nome, muito embora aceitem serem
chamadas assim. Como abordarei, os Jamamadi são o resultado da fusão de grupos que
68
foram exterminados quase inteiramente, incorporando vários coletivos sob o mesmo
epíteto. Não obstante, essa não é uma categoria estável o suficiente para fixar fronteiras
organização.
69
vi. A estrutura da tese
Essa tese está estruturada em três partes. A primeira aborda o xamanismo vegetal: após
a descrição da visita das almas e a apresentação de alguns de seus cantos-fala, faço uma
exposição sobre a iniciação xamânica, cujo objetivo final é adquirir o noko koma, "o
descontrolada do seu olhar. No terceiro capítulo, abordo a relação do pajé com os seus
espíritos auxiliares. Os vínculos entre os xamã e as almas das plantas seguem como
tema do quarto capítulo centrado na chamada guerra mundial, conflito entre as aldeias
terrenas dos vivos e aquelas das plantas e dos mortos no céu. Nos dois capítulos finais
termos de uma ideologia venatória, uma vez que a pregnância das plantas entre os
animais.
Meu intuito no segundo momento da tese é explorar em quais termos o aspecto vegetal
dos componentes da pessoa com a morte permitem entrever em toda sua radicalidade a
70
olhar é recuperada, todavia, numa potência inversa: trata-se do olhar gerativo,
A terceira parte, dividida em dois capítulos, aborda a reflexão mítica sobre as plantas e
o processo de hominização com suas diferenças internas a partir de uma origem vegetal
71
Parte 1: Xamanismo vegetal
A Poison Tree
William Blake
72
Capítulo 1: A visita das almas e a despedida do campo
Este trabalho começa pelo final, na noite anterior à viagem de volta que encerrou o
período de meu trabalho de campo. Quando o pajé D., da aldeia Pauzinho, concordou
com meu pedido de ir chamar as almas celestes de plantas e parentes falecidos para
virem à terra cantar. A estratégia de iniciar a tese com um episódio sobre o qual não tive
seus aspectos centrais, uma vez que requer o trabalho acurado de tradução; contudo, por
pregnância metafísica das plantas, sua descrição sumária e análise limitada são, por ora,
suficientes.
escutar os cantos noturnos das almas22 celestes – espíritos vegetais auxiliares do pajé,
almas de parentes falecidos e almas de plantas predadoras. Por sorte, naquela noite, a
situação era propícia, pois meu pedido coincidia com uma reunião marcada em alguma
Conforme combinamos, fui à noite para sua casa, localizada na parte mais afastada da
22
Apesar da longa história do termo e dos problemas encerrados em sua carga semântica, mantenho esta
tradução do princípio anímico/agentivo das plantas (e dos humanos) para concordar com a escolha
tradutiva dos Jamamadi.
73
frente: todos haviam se recolhido antes do horário por saber que receberiam a visita das
almas. Após a saída do pajé, ninguém ousaria sair até o seu retorno porque algumas das
almas visitantes são agressivas e têm o noko koma, o olhar envenenado, capaz de lançar
doenças e outras formas de feitiço. Todos aguardam, portanto, dentro de casa, atentos
aos cantos das almas que virão para visitar a aldeia dos vivos.
Ao entrar na casa, notei que todos estavam deitados em suas redes, exceto o pajé D., que
terminava de se arrumar como se estivesse indo para uma reunião na cidade. Não era
fortuita a escolha do pajé em vestir a calça jeans e a camisa branca que usa
pentear os cabelos com creme, ele justificava o esmero de sua vestimenta dizendo que
haveria uma reunião no céu e, por isso, deveria se vestir de acordo. Antes de sair, avisou
sua esposa que poderia demorar para voltar por não saber se a reunião se estenderia
muito e me sugeriu atar uma das redes para que eu não me cansasse. Depois de sua
saída, tentei acompanhar a conversa de N., esposa do pajé D., com sua neta que
perguntava para onde teria ido o avô e quem estávamos aguardando; era a primeira vez
Quase adormecendo de tanto esperar, despertamos com os latidos desconfiados dos cães
que anunciavam a aproximação das visitas. Um baque surdo e ritmado, cada vez mais
forte, vinha do caminho que levava aos roçados mais distantes. Eram as almas que
despencando de uma grande altura, de fato, a chegada das almas é descrita como a
74
queda de corpos em saltos precipitados do céu para a terra. Deste lado da aldeia, as
almas desciam do céu para visitar os vivos, enquanto que do outro lado, ecoavam da
igreja os hinos evangélicos entoados com fervor pelas crianças sobre a ascensão de
Do caminho que sai do fundo da casa, uma voz aproximava-se cantando, de um modo
distinto dos costumeiros cantos yowiri e wayoma. Contudo, antes de suas palavras
recomendação de que se deve evitar andar e viajar só; é temerário visitar aldeias de
parentes sem estar acompanhado, como indicava a sincronia dos estrondos que marcam
a chegada das almas na aldeia terrena – ouvidos por todos. Algumas cantam brevemente
e partem tão logo chegam, sem ao menos apresentar-se, assim, não é possível
determinar com clareza quem são todos os visitantes. Suas falas seguem em sucessão,
em cantos individuais, sem sobrepor-se, com uma alternância vertiginosa que, somada
altura das vozes e seus variados timbres eram os únicos elementos que me serviram para
Uma alma de mandioca, fowa abono, foi a primeira a chegar, seguida de uma agressiva
alma de seringa, weke abono; deve-se evitar seu olhar, uma das razões pelas quais as
pessoas permanecem durante todo o ritual dentro de suas casas com as lanternas e
lamparinas apagadas, sem ousar espiar através das brechas. As almas de Weke não usam
75
potencialmente predatório, traduzida em um trecho de seu canto sobre os conflitos
celestes:
mai ibi mono mai ati yawineni elas brigam e suas falas são alteradas
Um canto familiar, distinto dos demais, chama a atenção; trata-se de um yowiri, canto
feminino entoado nos rituais pubertários ayaka. Sem dúvida, a alma de uma mulher
Jamamadi. O canto é iniciado com a fórmula tradicional desse gênero musical: e yowiri
ri yowiri ri, e yowiri ri yowiri ri. N. pergunta para a alma que está chegando: ebenika
yowiri towiti?, "de quem é este yowiri que estou escutando?". Ela também quer saber o
nome da visitante: oni wada mani tina awini! "diga o teu nome!". Owa oni
nome de alma que traduzido de forma literal seria "o barulho que as caças fazem quando
brincam”. Segundo a justificativa da visitante, sua irmã mais velha brincava quando um
homem atirou nas caças próximas da aldeia onde moravam. Assustadas, as caças se
dispersaram ruidosamente.
No caso das almas dos Jamamadi, fala-se de korimari, ao passo que as almas de plantas
são referidas como abono. Aprofundarei esta diferença mais adiante. Banimonisiwanai
era conhecida em vida como Sonake, mãe de Asawiri, atualmente um senhor já idoso.
76
Ela fora esposa de Ai Nake, morto pelos Wayafi, e depois viúva juntou-se com Maka,
seu segundo marido. A alma continua seu canto, um relato da festa ayaka que está
acontecendo no céu no momento em que ela canta na terra. As almas estão reunidas em
sua aldeia para cantar, elas entoam os cantos yowiri e wayoma. Nas palavras de
Banimonisiwanai ou Sonake: inamadi mai tabori-ya toha, "os espíritos estão na aldeia";
mai yorotokana, "eles estão reunidos/misturados"; mai wayoma mai yowiri namoneni
neme-ya mai korimari, "as almas dos mortos cantam wayoma e yowiri no céu". Os
cantos femininos no ayaka anunciam à exaustão os nomes dos animais de caça, bani,
a bani mai oona a bani mai oona são a caça jacaretinga, são a caça jacaretinga
ai haanini chamamos
Silêncio. As almas partem abruptamente. Outro canto se inicia, agora uma voz mais
jovem, bastante aguda. A voz chama por sua mãe, ami-i ami-i, ao escutar N. sussurra
dizendo que é o korimari de Koeto, seu filho falecido durante a infância. Bem próximo
da casa, Koeto pergunta pela saúde da mãe porque ele sabe que ela esteve doente nos
77
últimos meses, menciona em seu canto o período de sua internação na Casai de Lábrea e
conta que sente muitas dores nas costas e na lombar que a impedem de trabalhar. O
korimari do filho diz sua opinião, atibodi, sobre o estado de saúde da mãe: Ami,
sisibarini; "Mãe, tu-tudo bem"; Hibati-ya yama owateni, "eu vi como era antes"; ai ka
yama anini amosabone, "o trabalho melhorará"; oteni ami ai atibodi amosa hanima;
"essa é minha boa opinião, mãe"; ai atiterani ani hanima tiriyahi, "não se comenta
[fofoca], você não pode trabalhar assim"; Aami hanimatina tiwa-ya mai dadaba;
"Mãmãe, eles [os parentes] te acompanharão [nos teus afazeres]". O korimari do filho
prossegue comentando o trabalho solitário do pai nos seus roçados, notando a beleza
das mandiocas que estão crescendo bem, resultado de sua dedicação, embora os
parentes tenham expulsado seu genro, que, pelo padrão de residência, deveria
permanecer nos primeiros anos da união vivendo em sua aldeia, e junto dele a filha do
pajé que ajudava a mãe nos trabalhos domésticos23. Koeto conta que, do céu, está
zelando, kakatoma, por seus parentes vivos, leia-se, agora que ele é pajé e auxiliar de
seu pai, ele está atento ao assédio das almas sempre prontas a lançar seus feitiços, bem
como à desatenção dos parentes que contribuem para a suscetibilidade a tais ataques.
Koeto também dá noticias de sua aldeia, que a mãe desconhece, contando que trabalha
em seus roçados com ajuda da esposa bimeta abono, uma pimenta. Fala das outras
aldeias enfatizando seus distintos modos de trabalhar nos roçados. Koeto foi iniciado ao
nomes antigos que as pessoas carregaram, weye na, em vida. Wehinare é seu novo
nome, ele conta à mãe. Por mais que N. siga se referindo ao filho por seu antigo nome,
23
Trata-se de um longo conflito intermediado pela Funai envolvendo as famílias da aldeia Pauzinho e que
resultou na retirada do único genro do pajé que vivia próximo.
78
no céu ninguém o chama de Koeto. Semelhante à imagem que se faz do passado
anterior ao contato, a vida das almas no céu é marcada pelos incessantes conflitos entre
suas aldeias; em um desses ataques, a alma de Koeto fora perseguida pelos inimigos,
yawa, e atingida gravemente, por isso, temendo pela segurança e vida de seu pai, Koeto
A voz desaparece abruptamente. Outra vez silêncio. Pergunto ansiosa se as almas não
continuarão seus cantos. N. pede que eu aguarde porque o varadouro que vem do céu é
muito longo, e as almas vêm caminhando de suas aldeias, "não têm voadeira". As almas
assobios, aguardam recuperar o fôlego para iniciar seus cantos. Enquanto esperávamos,
outros parentes falecidos. Seu sobrinho Funaya, morto há mais de uma década, hoje
Baiweyena, outra parente falecida, está casada com uma alma de yawida, pupunha, que
tem pelos longos no corpo à semelhança dos Jara24. A esposa do pajé lembra os relatos
que as almas fazem de suas cidades celestes, com missionários americanos, brancos
agressivos, ruas com carros, festas com cachaça etc. Assim como na cidade de Lábrea,
há muitas brigas no céu, sobretudo quando as almas se embriagam nas festas. Nessas
ocasiões, é possível ouvir, mesmo os que não são pajés, a cantoria ébria e as danças
trôpegas aqui da terra, ela conta. Em outra conversa, Dossobi, uma das filhas do pajé B.,
reafirmou essa informação contando-me que há alguns meses escutara uma festa que
24
O termo Jara designa "brancos" em oposição a "indígena", ai. Ele, porém, não assume aqui o sentido de
"dono" ou "mestre"; acepção comum aos povos tupi.
79
cantoria nas músicas de Pepe Moreno; ela foi precisa sobre esse detalhe diante do meu
estranhamento.
Após a morte, o pai de N. casou-se novamente no céu. Ele vive na aldeia Vitória,
mesmo nome da aldeia terrena localizada num afluente do igarapé Mamoriá Mirim, com
uma alma do veneno iha (Strychnos solimoesana) com quem já tem alguns filhos. As
aldeias Jamamadi. Há outros céus acima deste, porém somente as almas das pessoas
lugares hostis habitados por espíritos agressivos que não têm roçados – alertam os
Jamamadi. Um desses céus é um gramado muito vasto – "como os pastos onde vivem os
bois", na comparação que costumam fazer – , onde nada cresce devido ao calor extremo
– mahi, o sol, vive numa aldeia que está nas cercanias deste patamar. Acima de todos os
céus, muitos deles desconhecidos, está um neme yokana, "céu verdadeiro", moradia de
Deus e sua família; no entanto poucos o conhecem, já que "está muito longe, e o acesso
é difícil".
um novo canto. Desta vez, ela impede seu prosseguimento e pede que a alma vá
embora. Sem me dizer quem era a alma visitante, N. apenas esclareceu que suas
palavras eram towe, "feias/ruins". Voltamos a aguardar, um tanto apreensivas desta vez.
Quando outro canto começou, N. não esperou para perguntar tika ede oni?, "qual o
nome de seu povo/etnia?". A resposta a deixou aliviada, era uma awa abono, alma de
árvore. Sasako abono (planta não identificada) chega pulando e rindo. Ela canta quase
engasgando por causa das risadas: ahihi, ahihi, badira we weyenawa yana-ya!, "(risos)
80
o pai [de alguém?] carrega as coisas que ele cria!". Fico sem entender sobre o quê a
alma de Sasako cantava, N. somente me descreve as pernas compridas desta alma que
além de tudo costuma ser trapaceira, "ela gosta de enganar e dar coceira". Outro canto
começa e N. pede que a visitante se apresente. Mayo ama oni, "eu sou pequiá", diz a
alma quase sem ar reclamando do varadouro. A alma do pequiá conta que sua aldeia
entrara em conflito depois de terem flechado um rapaz de uma aldeia vizinha. Não
consegui acompanhar o longo relato que a alma fez a N., que escutava a visita com
muito interesse.
"Avó, estou ouvindo outra música agora", a neta chamava a atenção da esposa do pajé
para a estranheza do canto. "Sim, são as almas do céu cantando que nós escutamos
embriaguez. "O kawi, cachaça, me deixou assim", a alma cantava com raiva, bufando
owati timitahi, "escute-me!"; himata tiwa ati yawaneni?, "por que você está fazendo
esse barulho raivoso?", perguntou a esposa do pajé. A alma foi embora sem responder.
Outra voz jovem aproximou-se cantando e batendo nas tábuas das paredes da casa.
"Quem está ai?", pergunta N. É seu cunhado, a alma de Felipe, irmão mais velho de D..
A neta não conheceu o irmão do avô, então, ficou interessada em saber mais dele e das
circunstâncias de sua morte. Como as demais almas, esse korimari fala de sua aldeia,
das caças e dos cultivares de seu roçado celeste. Outros sons de quedas, novas almas
vêm conversando e logo desaparecem. Outra voz, mais grave, canta prosseguindo a fala
escutando? Vocês me escutam?". Duas almas cantam uma em sequência da outra. Uma
81
delas pede comida, quer saber se há carne de caça cozida; a outra me parece que apenas
ri. Algumas almas não se aproximam e seus cantos mal podem ser distinguidos à
distância; outras cantam na porta da casa, por vezes batendo em suas tábuas, de um
As almas param de cantar, quase adormecemos. Elas precisam andar por varadouros
acidentados, o que atrasa suas viagens. Ademais, elas vêm de aldeias diferentes no céu e
as distâncias não são as mesmas. Uma alma mais velha chega depois do longo silêncio.
N. me avisa que é uma alma de Sami abono, alma de abacaxi. É um homem muito
grande. Qual o nome dele?, pergunto. N. chama a alma, que responde com um assobio.
Tiwa madi ka oni?, "qual seu nome de espírito?", ela quer saber. A alma responde: owa
oni?, "o meu nome?". Owa noko komateni, "eu tenho veneno no meu olhar". Ne-
nemerisa ama oni, "meu nome é Nemerisa". Além desse nome, a alma de abacaxi
Banimonitonaketimawi. Ele mora na mesma aldeia do pai de N. e diz que é como seu
irmão mais novo. Dessa alma de abacaxi, a esposa do pajé tece comentários afáveis,
mulher para transar. A avó e a neta fazem piadas e brincam com a alma, que não
demora em sua visita. Novamente a alma de Felipe, seu cunhado, em seu canto-fala, ele
quer saber quem é a jarafana, branca, que está na casa. N. me apresenta à alma de seu
cunhado que responde sibarini, "tudo bem". Novo silêncio, sem sobreaviso, a voz do
pajé reaparece. D. entra em sua casa com o rosto suado e a aparência cansada. A reunião
82
tinha sido relativamente breve aquele dia; em outra data eles terminariam de abordar os
reclusão a fim de serem iniciados como pajés, poucos completaram sua formação a
contento. A maioria exerce suas habilidades xamânicas de forma restrita, sem que sejam
capazes de extrair os projéteis de feitiço ou viajar para as aldeias celestes. Os pajés "de
suas almas.
cidades celestes nas quais eram frequentes os encontros com as almas de seu filho e
fotográfica na casa dele [no céu]. Eu vou te trazer uma foto de lá; você vai ver como é
bonito", ele dizia. Sua boa vontade em atender os parentes doentes e cantar os wayoma25
em suas festas não foram suficientes para lidar com todos os contratempos e dissabores
25
Os cantos Jamamadi podem ser distinguidos em duas grandes categorias, baseadas no gênero: wayoma,
cantos masculinos, e yowiri, cantos femininos. Além da distinção pelo gênero, o estatuto ontológico do
enunciador e o contexto em que os cantos são performados são relevantes para sua categorização. Os
cantos xamânicos são chamados genericamente de inawa ka wayoma (ou inamadi ka wayoma, expressão
que encerra a ambiguidade da condição do pajé em proximidade com os espíritos); os cantos de um pajé
específico, por sua vez, serão apenas chamados de X (nome do pajé) ka wayoma. Os cantos do ritual da
menarca, ayaka, são referidos em conjunto (sem distinguir se masculinos ou femininos) remetendo-se ao
nome da menina moça, assim, Damaris ka ayaka é tanto o ritual feito para Damaris como o conjunto de
cantos entoados em seu ritual. Os hinos religiosos são conhecidos por Deoso ka wayoma, "hinos de
Deus".
83
que tornaram sua vida na aldeia conturbada, talvez insustentável. Ele e sua família
foram paulatinamente marginalizados nos últimos anos, em virtude, mas não só, dos
casamentos controversos de duas filhas suas, uma com um homem Apurinã e outra com
bruscas e ações por vezes violentas causara sucessivos conflitos. Tampouco foi
irrelevante para sua expulsão definitiva o fato dele ser branco e filho de um dos patrões
que há anos os explora. Nos dias que se seguiram à reunião que decidira sobre a saída
de sua filha e seu genro, o pajé D. adoecera "por causa das palavras ruins dos parentes".
xamânica e à possibilidade de conciliá-la com a vida crente também foi decisivo para
quadro crônico de reumatismo, segundo avaliação dos médicos, ou feitiço lançado pela
alma da taboca teke (a mando de alguma parente), segundo o pajé. Em outras versões, o
feitiço teria sido lançado por um pajé de um povo vizinho e agravado com o olhar do
dafi (ver adiante). Após ser liberada sob justificativa de sua condição "não ter mais
tornou-se recluso e D. cada vez mais cabisbaixo. Pesava sobre os parentes a acusação de
feitiçaria e de negligência com a expulsão do único genro que vivia em sua casa. Com a
mulher doente, sem as filhas e os genros, restava-lhe todo trabalho a ser feito
solitariamente.
84
Tais esclarecimentos biográficos são importantes para situar a importância do ritual
constrangimentos não foram suficientes para impedir D. em seguir com suas atividades
como pajé. Diga-se de passagem que menosprezar as almas lhe acarretaria problemas
não menos embaraçosos. Por mais razoável que seja o pessimismo de pensar que o
rituais e das relações com as almas das plantas – seja por sua associação com o "Mal",
seja por serem manifestações da "Cultura", desprezada pela juventude como sinal de
***
vivos, as almas dos mortos, korimari, e uma miríade de almas, em especial, aquelas das
cosmo. A visita não se prolongou durante toda aquela noite. Em geral, os pajés retornam
com a aurora, que acontece com o anoitecer nas aldeias celestes, uma vez que dia e
noite estão invertidos nessas referências. Diversas almas visitaram a aldeia, algumas
85
seus cantos e da conversa entretida com os anfitriões, no entanto, da breve descrição
No capítulo seguinte abordarei a iniciação xamânica, que pode ser terrena ou póstuma,
muito embora a maioria dos pajés jamamadi seja iniciada exclusivamente após a morte;
a participação de uma alma de Weke, seringa, não é fortuita no processo; como se verá,
do olhar segue como tema deste trabalho, a ser recuperado, todavia, numa potência
inversa: trata-se das ações de proteção e zelo que se expressam, em outros contextos, no
olhar gerativo, kakatoma (seu correlato agentivo é atisoma, "a boa palavra") um aspecto
crucial das relações de criação tanto dos cultivares como dos animais domésticos. A
almas, korimari, dos irmãos e filhos mortos podem se tornar auxiliares prestativos na
irrefreável do conflito em curso no céu que transborda à terra, na captura das almas dos
vivos. Os vínculos entre os xamã e as almas das plantas seguem como tema do quarto
capítulo centrado na chamada guerra mundial, conflito perene que envolve numa
dinâmica intrincada de vingança as aldeias terrenas dos vivos e aquelas das plantas e
86
espelha a hidrografia e geografia terrenas. Se poucas foram as vezes que escutei
descrições dos céus ou subterrâneos mais distantes, estes têm todavia relevância
pessoa na morte. Nos dois capítulos finais desta primeira parte, busco nuançar a
medida que a pregnância das plantas entre os Jamamadi propõe questionamentos acerca
sofre um declínio, nem abandona a relação com essa virtualidade vegetal ante o contato
87
Capítulo 2: Produzindo um corpo envenenado
diferentes seres que neles habitam. Durante o longo período em que permanece recluso,
amarelada resinosa, a pedra xamânica aona assemelha-se mais aos metais – por seu
brilho – que a uma pedra comum. O pajé mais velho, inawa bote, responsável pela
iniciação, succiona seu próprio corpo, em regiões distintas, e cospe suas pedras
comutação perspectiva, com os outros seres, com destaque aos diferentes espíritos de
Em geral, o pai do rapaz solicita a um pajé mais velho para iniciar seu filho.
26
A exposição que se segue não resulta de observações diretas das iniciações, interrompidas com a morte
do pajé Siko em 2012. Além disso, não seria possível acompanhar o processo, dado que a presença das
mulheres atrapalha seu andamento. O capítulo baseia-se em diversos relatos, sobretudo aqueles dos pajés
B e D acerca de suas próprias iniciações.
27
O sina, rapé, é composto pelas folhas do tabaco (Nicotiana tabacum) secas e piladas ao qual é acrescido
as cinzas das cascas de várias espécies de cacau (Theobroma subincanum), responsável pela força e
potência da mistura. Os Deni possuem ainda um rapé chamado baduhu-tsina composto pela planta
Pyrenocarpous lichen. E os Paumari fazem um rapé de uso ritual chamado koribo, composto de tabaco
(Nicotiana tabacum) e de koribo (Tanaecium nocturnum), e o kawabo feito de Virola elongata. Para uma
breve descrição do preparo específico de cada rapé, cf. Prance 1973. Para uma análise dos mitos de
origem do tabaco nos povos arawá do médio Purus, ver Aparacio 2017.
88
introduzir as pedras xamânicas, além de acompanhar diligentemente o noviço. Cabe ao
preceptor alimentar o noviço que, uma vez recluso, estará impedido de se comunicar
com os demais. É ele quem deverá cuidar de sua saúde, paulatinamente debilitada pelo
uso constante de doses elevadas de rapé, pela potência venenosa das pedras xamânicas,
etapas do processo a fim de que passe pelas provações e desafios sem esmorecer, já que
os primeiros encontros com os espíritos, via de regra, são com seres assustadores que
irão persegui-lo na tentativa de matá-lo; sem ter ainda seus espíritos auxiliares nesta
etapa, é necessário que o pajé mais velho permaneça atento caso seja necessário intervir
Embora haja um pajé responsável pela condução da iniciação, é desejável que outros
pajés soprem rapé e introduzam pedras xamânicas no rapaz em formação para que ele
pedras que compõem aquele corpo. Assim, dizem "Bahawi soprou muito em B."; "Siko
colocou um bocado de pedra no neto, R."; "Foi meu pai, Madokihi, quem soprou em
mim"; "Samo, Modo, Bahawi, Maka, muito inawa soprou em D.", etc. Voltarei a este
Pelas duras restrições características da iniciação, recomenda-se que o rapaz seja jovem
para que possa obedecê-las e não desistir antes de seu término. Desde muito cedo, os
89
meninos são acostumados ao uso de rapé, em pequenas quantidades, para que possam se
tornar pajés quando crescerem. O seu uso não se restringe a eles: os homens não
iniciados e as mulheres consomem rapé largamente tendo em vista outros fins, como
propiciar bons sonhos, aplacar o cansaço ou fortalecer-se para realizar uma atividade
física. Os meninos têm seus próprios frascos de rapé com seus inaladores individuais,
firi, com os quais acompanham os mais velhos nos momentos de tomar rapé,
principalmente quando vão se banhar e antes de dormir. Ao atingir os dez anos, os pais
iniciação do filho, agora com idade suficiente para ser posto em reclusão. O tabaco
provém do roçado do pai, mas são sempre a mãe e as irmãs mais velhas quem preparam
o rapé que será consumido pelo pai e os irmãos. Uma quantidade considerável de folhas
de tabaco serão secas e guardadas na palha do telhado para serem usadas ao longo dos
O menino será mantido em reclusão nos arredores da aldeia, afastado do convívio com
estiverem fixadas e estáveis – processo longo, que requer sua retirada e reintrodução
para melhor encaixar e acostumar as pedras ao novo corpo – , o noviço não poderá
sentir cheiros fortes, "catinga" na fala regional, como perfume, sabonete, urucum, pêlo
antes de comer qualquer alimento, o noviço deve cheirar rapé para neutralizar o cheiro
da comida e evitar que este afete suas pedras. A instabilidade das pedras tornam seu
90
corpo vulnerável, o que implica no controle estrito de suas ações para impedir que elas
se desprendam e caiam retornando para o corpo de seu preceptor, que sentirá dor com o
retorno da pedra.
Durante esse período, o noviço não pode se coçar com as unhas, para isso se vale de
uma flechinha feita de patauá com a qual delicadamente tocará o corpo; ele não pode
beber muita água e as pequenas doses devem ser mornas; nos primeiros meses, o noviço
não pode se banhar porque a água levaria suas pedras (ademais, alterar o cheiro do
corpo compromete igualmente a fixação); o calor também lhe é ruim porque as pedras
saem pelo suor, logo, ele não deverá permanecer sob o sol; seu caminhar precisa ser
lento para não mover as pedras do lugar; e, sobretudo, o noviço deverá se abster de toda
atividade sexual, pois, sendo o contato com as pedras interdito para os não iniciados,
desprendendo-se pelo sêmen, a pedra seria inseminada como um veneno letal. Por estes
motivos, o local em que o noviço é mantido recluso tende a ser pouco frequentado pelo
medo das pessoas de pisar em alguma pedra que tenha se desprendido de seu corpo ou
O pajé mais velho utiliza-se de seu firi, inalador, feito com o fêmur do gavião real
(Harpia harpyja), para soprar sina, rapé, tanto quanto o rapaz for capaz de suportar. Até
acostumar-se com o efeito do rapé misturado com as pedras, o rapaz irá vomitá-las. Esse
efeito emético, ainda que colateral, não é de todo indesejado pois atua na purificação do
corpo do noviço, ação necessária para a boa fixação posterior das pedras. Os pajés
salientam que as pedras de seus corpos não são em nada semelhantes às pedras comuns,
aquelas têm coloração amarelada e a consistência menos rígida, "é bonito e brilhante
como o ouro". As pedras podem ser referidas pelo efeito que provocam, por isso, são
91
chamadas yama kome, "veneno", "doença" ou "dor", de modo que a iniciação é
essa ideia de que a intoxicação é o meio através do qual o corpo do noviço adquirirá os
para que sua alma possa voar sem despencar do céu – alguns comparam as pedras "com
os pilotos sem o quais o avião não voa para o céu" – , a dureza de sua carne própria dos
É pelo rapé que as pedras são estabilizadas no corpo e são por meio destas que se torna
almas dos cultivares, yamata abono, dentre diversos outros seres. São também as pedras
pacientes e extrai-los succionando-os, v.t toma na, até cuspi-los materializados como
flechinha, sereini, ou retirando-os com as mãos, v.t. tamo na, esfregando e pinçando o
corpo para, em seguida, assoprá-los para longe ou de volta para o corpo do agressor. A
Entre os povos arawá, a iniciação xamânica parece ocorrer, em linhas gerais, de maneira
similar com a introdução de uma substância descrita à semelhança de uma "pedra" que,
extraída do corpo do pajé preceptor, esta será, por sua vez, introduzida no corpo do
xamânicas. Esta mesma substância, uma vez fora de seu corpo, age como feitiço ao ser
lançada em outros corpos. Os corpos dos inawa, pajé, Jarawara, são compostos pelas
pedras, inseridas em seus corpos durante os meses de sua iniciação, as quais permitem
92
diferentes acepções: i. feitiço; ii. pedra xamânica, conhecida por yama nakora; iii.
iniciam os noviços ao longo de um período que pode durar de cinco a seis meses,
verdade uma resina de árvore, extraídas de seu preceptor. Contendo o poder xamânico,
as pedras ijori permitem ao pajé cantar e emprestar sua voz aos espíritos, ademais,
pedras podem cair, fato que ocasionará sobretudo o adoecimento de seu preceptor.
Também o calor e os cheiros fortes afetam a estabilidade das pedras ainda não bem
xamânicas, e conforme elas são retidas, menos sua perda o afetará. A capacidade
corpo.
Entre os Kulina, a substância xamânica é chamada de dori, que pode ser uma pedra ou
(Altmann 1994:76); ela permite ao zupinehe, pajé, ver as almas tokorime28. O campo
28
Para uma descrição detalhada da iniciação xamânica entre os Kulina, conferir a etnografia de Cerqueira
(2015).
93
Num primeiro momento a iniciação consiste na introdução do dori no corpo do
aprendiz, como uma objetificação dos espíritos tokorime, e é o que confere a capacidade
o habilita a retirar o dori, i.e., feitiço, do corpo do doente, seja por gestos rápidos ou por
sucção do local.
Já os Deni chamam katuhe a pedra xamânica que é inserida no corpo do pajé aprendiz e
extrai das colmeias de abelhas na floresta” (Koop & Lingenfelter 1983:44). Em termos
gerais, o processo de formação do zuphinehe, pajé, é um período que dura vários meses
aproximação gradativa dos espíritos auxiliares ocorre quando o aprendiz acompanha seu
substância xamânica pode ser uma pedra, um coquinho ou um pedaço de pau (Kroemer
de iniciação resumido ao ato de soprar elevadas doses de rapé por alguém cujo tabaco é
alimentando-se pouco e mascando folhas de katsowaru. É por meio destas folhas que
dos povos arawá, a cada pedra do corpo do pajé apurinã, meetu, Apurinã atribui-se uma
94
associada. Talvez a pedra mais importante seja aquela recebida da onça que encontrará
etnográficas (Costa 2007) a respeito dos Kanamari que habitam atualmente a bacia do
rio Juruá. A substância xamânica dyohko impregnada no corpo dos pajés, baoh, está
presente nos corpos dos chefes queixadas e nas árvores dyohko-omam. De aparência
pelos feiticeiros para fabricar seus dardos envenenados, partes de animais ou outros
Voltando aos Jamamadi, a dieta do noviço por meses se restringe a quantidades ínfimas
de certos cultivares, escolhidos por seu preceptor de acordo com sua evolução em
aceitar as pedras. Há uma sequência para a reintrodução dos alimentos que considera
sal e gordura. No início, todas as carnes e peixes estão vetados ao noviço. Nos dois ou
três primeiros meses, ele mal consegue se alimentar, dados os efeitos do rapé. Aplacado
bili, verde assada. Milho assado também é permitido em pequenas quantidades; os pajés
chegam a contar os grãos antes de oferecê-los. Nenhum alimento pode ser ingerido cru.
95
Não pode comer banana, abacaxi, cará, nada doce. No começo, só um pedacinho de
macaxeira assada sem sal. Depois, ele fica mais dois meses até voltar a comer outra
coisa. Então, o pajé mais velho dá a pontinha do rabo do macaco prego, biyu, e depois
de mais um tempo um pedaço do nariz do queixada, hiyama ka widi, com um pouco
de massa de mandioca, iyawa. Tudo assado. Quando ele puder comer banana madura,
o pajé novo, inawa yati, poderá voltar a ver as pessoas. Isso demora muito tempo,
quase um ano. O seu professor vai dar um pedacinho de abacaxi e um pouco de carne
de caititu, kobaya. Tudo bem pouco para ele acostumar a comer.
A dieta do pajé em formação deve ser cumprida à risca para não adoecê-lo. A
fazer uma flecha de patauá e com ela moquear um peixe pequeno. A quantidade da
comida também aumenta aos poucos, conforme o rapaz recupera seu corpo debilitado e
volte a ter condições de ingerir alimentos mais fortes, kitini, ou agressivos, hamini.
Passados alguns meses, o preceptor irá mandar o noviço seguir por um caminho mais
afastado e passar a noite no mato sozinho. Essa será a primeira ocasião em que ele verá
almas agressivas irão correr atrás dele tentando matá-lo. O noviço se esconde ou foge
sem ter como se defender, neste estágio ele "ainda não tem seus companheiros", as
gritará por socorro e seu preceptor irá em seu encalço ou enviará um de seus espíritos
auxiliares para resgatar o aprendiz. Pode ser que esse espírito acabe se tornando um
auxiliar do noviço, caso o preceptor assim o deseje: "Agora não vai mais soltar, vai ficar
96
Ocasiões semelhantes voltarão a se repetir ao longo da iniciação. O pajé mais velho irá
mandar o seu aprendiz se banhar no porto, ele suspeita que as almas irão a seu encontro.
Uma alma aparecerá repentinamente para perguntar da sua iniciação: "ka!29 você já está
formado?". Ao final da conversa, a alma lhe dirá que "ainda não terminou, falta um
pouco para poder voar". Esse encontro anima o noviço que se alegrará em prosseguir
inserindo as pedras. Faltam ainda mais alguns meses, o tempo varia porque é preciso
esperar que mais tabaco cresça na roça para retomar a iniciação. Reiniciado o processo,
o pajé dirá para seu aprendiz ir para o mato, seguir pelo varadouro e esperar. Dessa vez,
O pajé jovem escuta a zuada de gente vindo, muita gente mesmo. São pessoas
estranhas, por isso, ele tem medo/vergonha delas. Elas falam com ele, mas ele tem
medo e não responde. Ele se encolhe e fica calado. O pajé vai perguntar o que o rapaz
viu quando estava no mato. Ele vai contar sobre seu encontro e diz que não teve
coragem para falar com as pessoas. O pajé vai querer saber o que disseram para o
rapaz. Ainda falta um pouco para que seu treinamento termine. O pajé apenas vai
dizer: 'Tá bom, tem que pôr mais pedra então'.
Aproximando-se do fim de sua reclusão, o noviço será testado novamente. Certa noite,
o pajé mandará o rapaz seguir por um varadouro e esperar sentado sobre uma árvore
kobonebonane, sotatiliahi!: “Olá, não se assuste!". A onça pedirá ao rapaz que tire a sua
camisa para poder lamber o seu corpo e com a língua introduzir suas pedras xamânicas.
Trata-se da forma visível e objetificada da onça, yomahi, um espírito auxiliar, que vive
no interior do corpo do pajé e que, projetada, se revela ao noviço como uma enorme
29
"Ka!" é uma interjeição para susto, surpresa, incredulidade, espanto, etc. Imagino tratar-se de uma
corruptela de "Guá!" interjeição usada em Lábrea como variação da expressão amazonenense "Égua!".
97
onça branca. Inawa yomai towawaha, ai towa wama, "o pajé se transforma em onça, é
gente transformada", eles explicam (voltarei a este tema adiante). A fala da onça é
cantada à semelhança das almas quando visitam a terra. Enquanto rodeia e lambe o
rapaz, a onça dará conselhos ao futuro pajé: "Venho conversar com você, tome cuidado
com os inamadi! Eles gostam de roubar a alma/coração, korimari, para comer assado".
Outros animais também podem aparecer, o mais comum é que uma enorme surucucu se
aproxime do noviço; ela subirá por sua perna direita, enredando-se no corpo para descer
pela perna esquerda e neste movimento inserirá suas pedras em seu corpo. No dia
seguinte, o pajé irá buscar o rapaz: "O que você encontrou desta vez?", ele pergunta
para testá-lo. O rapaz irá contar dos animais que viu, alegrando o pajé: "Está bem, logo
você irá para o céu, saberá curar e eu não vou te ensinar mais".
O fim da iniciação xamânica é marcado pelo encontro do noviço com as almas das
plantas. O procedimento é o mesmo: ele irá sozinho por um varadouro, por ordem de
seu preceptor, até encontrar um tronco caído sobre o qual irá esperar até escutar vozes
do pajé, com as quais irá conversar e de quem receberá uma fruta ou cultivar trazido do
céu e que, por não crescer na terra durante o período do ano de sua iniciação, servirá de
de então, o xamã novo, inawa yati, estará apto a viajar para os patamares subterrâneos e
celestes em busca das almas dos enfermos capturadas pelos inamadi. Quando o pajé for
encontrá-lo no caminho, o rapaz lhe entregará o cultivar: "Este cará foi a alma que me
deu".
98
A introdução de diferentes venenos vegetais no corpo do pajé novo é o momento
decisivo que marca o término de sua iniciação. Por seus riscos evidentes, é nessa etapa
que muitos desistem e acabam não completando sua formação. Se é verdade que o
pajé entre os Jamamadi, então, o uso dos venenos e a intoxicação controlada por meio
do tabaco são os meios para tanto. Com efeito, o pajé é aquele que possui o noko koma,
o rosto com veneno, saliento que a ênfase é dada no sentido metonímico da expressão,
de modo que a melhor tradução seria o olhar envenenado, posto que é através dos olhos
que a peçonha do pajé extravasa seu corpo projetando-se como "raio", "faísca", "luz de
lanterna", etc. Não ceder aos venenos, mas incorporá-los de modo a conferir ao pajé as
caça e aqueles das plantas cujos duplos humanos são reconhecidamente xamãs
preceptor determina o modo como cada um será utilizado: a casca do cedro aguano,
árvore, será mascado; o timbó, kona, e o iha serão bebidos em pequenas quantidades30;
com o bicafa, o barafa, o yakiyokari e o boa, que compõem o veneno usado na caça, o
noviço lavará o seu rosto "igual fazemos com sabonete" para impregná-lo com eles;
outras substâncias podem ser usadas, segundo a escolha do pajé mais velho, como a
água do tofi, um tipo de cipó que provoca coceira e cuja fruta é semelhante à pupunha,
provocando mal-estar quando ingerida; também podem ser usados o "leite" do cupuaçu
30
Seria uma forma atenuada de suicídio?
99
O enrijecimento do corpo do pajé decorre da ação dos venenos, um sinal da
transformação em curso e um alerta para ser cauteloso no trato com ele; mais ainda,
recomenda-se evitar o contato físico, como os apertos de mão, para não correr o risco de
no braço do pajé D., alertei-o assustada por saber quão doloridas são as suas picadas,
mas sua reação foi de indiferença e de certa empáfia. Ele, então, me explicou que o
veneno de seu corpo é pior que aquele da caba e que ela acabaria se dando mal caso
tentasse picá-lo. Ele próprio não sente dor com as picadas dos insetos.
Ao final da iniciação, o pajé neófito receberá um novo nome dado por seu preceptor.
conhecido como Manoatimawi etc. Estes nomes provêm de trocas com as almas de
plantas em suas visitas noturnas à terra, quando elas vêm cantar e conversar com seus
parentes. Não se trata do nome de uma espécie vegetal, mas do nome próprio de uma
alma particular de uma espécie de planta. Ou ainda, pode ser a descrição de um evento
envolvendo as almas de plantas presenciado no céu pelo pajé, como é o caso do nome
recebido por B., Manokamawawi, que descreve o movimento feito pelo braço de uma
alma para chamar os demais, visto pelo pajé Bahawi. Os nomes remetem a relações
entre o céu e a terra, entre os vivos e os mortos, entretidas pelos pajés Jamamadi e as
almas de plantas. Raramente os Jamamadi revelam seus nomes de alma, madi ka oni, ou
nome de verdade, oni yokana, que podem ser muitos e são mobilizados em contextos
100
Os pajés demonstram sua legitimidade ao succionarem uma parte de seu corpo e
cuspirem a pedra dele extraída para, em seguida, fechando-a na própria mão, fazê-la
sumir – devolvendo-a ao próprio corpo. Dizem que os inawa yokana, pajés de verdade,
continham uma quantidade tão grande de pedras em seus corpos que o seu caminhar
espalhadas em todo o corpo, como visto, o rosto é o local de maior concentração das
pedras; o seu excesso transborda através dos olhos, por isso, não se deve encarar
também é outro ponto de concentração de pedras xamânicas. Quando o pajé fala de seu
saber, não raro aponta simultaneamente para o próprio peito. O costume dos brancos de
cumprimentar com apertos de mão e abraços é encarada com certo mal-estar pelos
Jamamadi mais velhos, sempre desconfiados de que o contato físico com desconhecidos
possa introduzir feitiço em seus corpos. Entre os Suruwaha, Huber observa um costume
Quanto ao efeito do toque, os Suruwaha vêem os cotovelos (wakuri) como lugar por
onde escapa o feitiço (mazaru) contido nos corpos. Apesar de afirmarem que só os
xamãs possuem mazaru em sua carne ymy, qualquer pessoa que encosta
acidentalmente numa outra com seu cotovelo é obrigada a sugar imediatamente o local
afetado (husuru kamyza-) para evitar danos maiores. Apontar propositalmente o
cotovelo para uma pessoa (kuky-) constitui um gesto extremamente ofensivo, cujo
destinatário poderá optar por assoprar rapé no agressor para se reconciliar com ele, ou
por ir tomar veneno para demonstrar sua raiva (Huber 2012:268).
Maizza aponta igualmente para o perigo inerente ao toque entre os Jarawara com
especial atenção aos jogos de futebol, contextos nos quais as disputas corpo a corpo
101
assumem ares de brincadeira, ainda que seu caráter agonístico permaneça como
O contato direto é a forma mais evidente de contágio, contudo, o feitiço pode ser
lançado a distância pelo pajé quando este sopra sua pedra xamânica através de seu
presas. Ao lançar sua pedra, ela se projeta fazendo-se visível como um dardo de feitiço,
uma pequena flecha chamada sereini. Todavia há, ainda, outras formas de agressão
xamânica: a introdução das pedras na comida ou em objetos que serão utilizados pela
vítima, pela extrojeção dos animais contidos no corpo do pajé, em particular a onça e a
cobra, por intermédio dos espíritos auxiliares a quem pode ser delegada a tarefa de
soprar feitiço nos desafetos do pajé; sem contar a diversidade do arsenal bélico que pode
ser mobilizado no caso de conflitos que envolvam aldeias afastadas, como abordarei
corpo do pajé: por meio de gestos rápidos; projeção, sopro de flechas ou de outros
102
Os comportamentos desviantes dos animais, sobretudo nas caçadas, são um dos eventos
por meio do corpo ou aparência do animal caçado. Ao ser enganado e tentar caçar o que
se alvo da agressão de outro pajé, disfarçado de presa. Animais que não morrem mesmo
indicam não se tratar propriamente de uma caça comum. Nonobi conta que certa vez
saiu para caçar macacos guariba, yiko, que estavam fazendo zuada perto do roçado e, ao
atirar, atingindo alguns deles, nenhum morria. Ao se dar conta de que não eram de fato
guaribas, mas yiko towe/keye, "guaribas ruins/falsos", Nonobi voltou para aldeia e,
mesmo antes de chegar, já estava sentindo cansaço, febre e dor de cabeça. A "catinga"
do bicho estava impregnada nele, não deixando dúvidas que Nonobi havia caído numa
armadilha. Foi necessário que seu sogro chupasse a "catinga" e o feitiço que invadira
As cobras também podem ser uma forma de materializar as pedras xamânicas ao serem
feitiço. Contra os feitiços inoculados pelas cobras, alertam, não há remédio que seja
cobras para serem tratados na cidade sempre geram muita discórdia com os agentes de
saúde da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), uma vez que os tratamentos dos
brancos são considerados inadequados pelos Jamamadi. As mortes nestes casos são
rápidas e os sintomas mais comuns são febre, tremores, falta de apetite e uma piora
103
brusca. Os médicos cuidam das doenças de brancos; os pajés tratam de doenças
doente extraindo-lhe as flechas de feitiço por meio da sucção de seu corpo para, em
uma dose de rapé a fim de chamar seus espíritos auxiliares que o acompanharão em seus
auxiliares do pajé que vivem no céu e permite, através das pedras de seu corpo,
apalpará o corpo até localizar o objeto a ser chupado, o qual, ao ser retirado,
materializar-se-á como flecha, espinho, dente, prego etc. Em companhia das almas que
chamou para ajudá-lo, o pajé recém-formado lhes entrega o feitiço e pede para que
procurem o responsável pela agressão, o dono do feitiço, sereini ka hidi. As almas falam
cantando através do corpo do pajé enquanto sua alma está ausente, em viagem ao céu,
do agressor. "Eu mandei matar a alma do Teke porque ele enviou as flechas por
maldade, só para matar", é o que disse o pajé D. ao retornar na manhã seguinte do céu.
Os deslocamentos exigem muito do corpo dos pajés que, portanto, não podem ser muito
velhos. Contam que o "ouvido dói quando viaja, tem que ser forte para os ossos não
quebrarem quando pula para a terra. Às vezes, sai sangue do nariz [por causa da
pressão]", explicou o pajé B. Ter dentes é igualmente importante para puxar mais
facilmente o feitiço do corpo do doente, o que dificulta ainda mais a atuação dos pajés
idosos.
104
O adoecimento provocado por feitiçaria e as medidas terapêuticas mobilizadas são
muito semelhantes entre os povos arawá e katukina. Os Jarawara atribuem a causa das
doenças à inserção de pedras ou partes de animais por um pajé inimigo no corpo de sua
vítima; os sintomas mais frequentes são dor e febre. A cura, por sua vez, consiste na
remoção do objeto patogênico por sucção ou puxões com as mãos no local dolorido
até retirar os objetos pontiagudos que foram lançados por um desafeto e os engolem
para depois cuspirem-no. Se for um feitiço forte, um primeiro pajé succiona o corpo do
doente e, não raro, acabará perdendo sua consciência, de modo que precisará ser
chupado por um outro pajé, formando uma cadeia de pajés que tiram o objeto um do
curas hoje se fazem apalpando o local dolorido com as mãos para, em seguida, puxar a
doença e afastá-la para longe (Kroemer 1994: 149). No caso dos Kulina, o pajé primeiro
cheira o rapé e succiona o lugar afetado com força para tirar o dori, a substância
durante os rituais nos quais são chamados os espíritos tokorime que vêm do subterrâneo
para visitar suas aldeias e cantar (Pollock 1985a e 1985b). Quando se sentem
algum djohko alojado em seu corpo; ele o examinará com suas mãos para localizar essa
substância. Sucessivas vezes o pajé irá chupar o corpo do enfermo, já que o djohko pode
estar alojado em local de difícil acesso ou ser mais de um. Diferentemente dos casos
105
inserido no corpo do pajé tornando-se seu xerimbabo (Costa 2007:378-379; Reesink
1993:84).
***
período de inserção das pedras ou aos conhecimentos obtidos através de seu preceptor.
A atividade agrícola é de suma importância por criar as relações que propiciam que uma
alma das plantas ocasionalmente se torne um espírito auxiliar, uma parceira até o final
companheiro, dadaba, para realizar qualquer tarefa, como ir à cidade. Tanto é assim que
Mowe, sobrinha paralela do pajé B, logo foi escolhida para me acompanhar quando
ponto de os nomes serem trocados na ausência de um deles – de modo que, quando não
estou na aldeia, Mowe também é chamada de Karen. Para ir ao roçado, viajar a Lábrea
106
O mito do inawa yati devorado por uma alma cobra, maka abono, i.e., um pajé em
corpo ou transfigurado de cobra, contado pelo pajé B., reforça os perigos de se viajar
desacompanhado. Por ser jovem, o pajé age de modo imprudente e acaba morto
devorado pelas almas das cobras, descritas como "levianas" por rirem de qualquer coisa.
Mais uma vez, são as almas das plantas cultivadas que amparam as pessoas:
Foi uma alma de planta que trouxe o que sobrou do pajé. Os parentes reconheceram as
pernas, que foi o que sobrou dele. O pajé novo vai tomar rapé em cima de um pau
caído em frente à porta da maloca. Ele toma rapé, enquanto isso, uma alma o observa
e acha graça: 'Eu vou ficar olhando'. O pajé novo, então, vai para o céu
desacompanhado, sem seus espíritos auxiliares. Não é alma, não é cobra. Alma de
cobra, maka abono, parece cobra mas não é. Acha graça, ri de tudo, come as pessoas
mas não as mata. A alma da cobra faz um tisão com brasa na ponta e o usa para
queimar o pajé. Ela come o pedaço queimado e assim vai comendo aos poucos, sem
matar. Primeiro queima, então, come. Maka abano não presta, ela comeu o corpo todo
do pajé, exceto suas pernas. Uma alma boa de yamata, cultivar, trouxe as pernas de
volta para a terra e as entregou aos seus parentes (B., 2015).
O envelhecimento dos pajés, somada à falta de interesse dos mais jovens em passar
pelas duras provações da iniciação xamânica, relegaram a formação dos pajés à vida
póstuma, como visto no relato de N. sobre a alma de seu filho falecido, Koeto. Esse
também foi o caso de Yanoaka, iniciado por uma alma de veneno iha após a sua morte.
Em geral, a pedido de um pajé vivo, a alma do parente morto será entregue a uma alma
Esse foi o caso de Koeto, filho do pajé D. que, na ocasião de sua morte, pediu que uma
107
para uma alma do veneno iha e para a alma de Felipe, seu irmão mais velho, a fim de
que o iniciassem até ele ter o noko koma. Hoje, Koeto está formado e é um importante
espírito auxiliar de seu pai, acompanhando-o em suas viagens; de acordo com D.: "Meu
filho tem televisão, rádio e muitas mercadorias que consegue com os patrões. Ele se
parece com um soldado, tem revólver, além de terçado". Muitos dizem que "no céu não
análise conjunta de tais rituais escapa aos limites deste trabalho. Entre os Jamamadi, a
como no céu, e eles negam que existam mulheres iniciadas, ainda que algumas possam
ter pedras xamânicas em seus corpos, introduzidas em pequena quantidade por ocasião
reclusão. Alguns ainda se recordam da existência de mulheres pajés, num passado não
muito distante, contudo, as informações sempre foram vagas e, no mais das vezes, eles
xamânica31.
31
Pode-se especular se não seria como no caso dos Paumari em que as mulheres mais velhas poderiam se
revelar pajés poderosas: "En ce qui concerne les femmes, l’exercice du chamanisme est plus contraignant,
car les prescriptions liées à celui-ci sont plus dures à respecter lorsque l’on est une femme. Cela
s’atténuerait avec l’âge, car les femmes chamanes dont nous avons entendu parler étaient toutes âgées"
(Bonilla 2008: 344).
108
Apresento a seguir um mito e um relato histórico (que fundamentam o argumento
pessoas.
Os rapazes jovens partem numa caça coletiva, dowada. Irão passar alguns dias
dormindo no mato. Eles se espalham seguindo os rastros da caça. Um pajé novo,
inawa yati, ainda está bem magro. Ele saiu há pouco tempo da reclusão. Ele carrega a
cabeça da anta que eles mataram. De repente, o rapaz encontra uma enorme onça
branca. Com medo, ele sobe numa árvore. A onça pede que ele desça, prometendo que
não irá lhe fazer mal algum.
- Desça, não vou te matar.
- Não, você vai me comer! diz o pajé novo, mal conseguindo manter-se nos galhos.
A onça o persuade a descer, ele já estava cansado de ficar pendurado. Ela pede ajuda
ao rapaz, pois seus pelos estavam cheios de parasitas.
- Rapaz, olha meu pelo e tira os mucuins e carrapatos.
O pajé tem medo, mas não tem como recusar. A onça deita. Ele primeiro tira os bichos
de uma perna, tinha muito mucuim. Depois os dos braços, orelhas e cabeça. A onça
acaba dormindo. Na barriga, no pescoço e no rabo tinham muitos carrapatos. Ele vira
a onça e tira os bichos do outro lado. Do dente, ele tira os pelos do hiyama, queixada.
Ele tira os bichos até não ter mais nenhum carrapato ou mucuim.
- Eu vou te colocar mais arabani, pedra xamânica, para te agradecer. Tome sina, rapé,
primeiro, você tem?
Com os dentes, a onça coloca o arabani no pajé, ele fica com medo. Ela lambe todo
seu corpo. (Vou mandar buscar toda a caça que peguei, mas só vou levar a cabeça de
anta comigo.)
- Eu andei por todos esses lugares, vou contar os seus nomes e você deve contar para
os seus parentes, disse a onça.
Ela então ensinou os nomes dos rios e igarapés, bem como os locais de caça e as águas
mais piscosas do Purus
109
A história do pajé Wiyonama
composição corporal aproxima-o dos duplos das plantas, permitindo que se comunique
com elas "sem ter medo nem vergonha". O relato a seguir, narrado a Berinawa por sua
mãe, trata de um pajé chamado Wiyonama; seu outro nome era Bonininarahi e ele vivia
condição do pajé Jamamadi como "um tipo de veneno, que mata tudo", segundo me
explicaram.
Wiyonama era um pajé forte, ele tinha muita aona [pedra xamânica] no corpo. Ele
estava doente, tinha um tumor [furúnculo] no saco escrotal. Sawabokorofe, também
chamado Baonare, seu cunhado, acusou Wiyonama de ter colocado feitiço em seu
filho, que estava muito doente. Ele comentou que o cunhado, Wiyonama, havia
queimado suas pedras e que a fumaça venenosa adoecera o filho. A irmã de
Wiyonama, Yaosakariwaha, ouviu a maledicência e foi contar para ele. Wiyonama
enfureceu-se.
- Ah, é assim? Eu vou acabar com todos vocês. Eu sou como o kona, timbó! Todos os
peixes não morrem quando se coloca kona na água? O kona abono, alma do timbó,
quando lava suas mãos, põe seu veneno na água e mata tudo. Eu sou o veneno, yama
kome!
Os parentes fugiram com medo, mudando-se para outra maloca mais distante.
Somente o neto de Wiyonama ficou com ele na antiga maloca.
- Idi, vovô, tá tudo bem? perguntou o neto Atoni.
- Pega lenha para eu fazer fogo, pediu o pajé.
Wiyonama pediu que o neto juntasse o resto do fogo deixado pelos parentes que
110
haviam se mudado, deixando-o para trás. Com o algodão usado nas flechas de sua
zarabatana, as pedras de seu corpo e o seu cabelo, ele fez uma enorme fogueira. Foi
como fogos de artifício, o fogo subiu bem rápido. O pessoal que estava arrumando as
coisas na outra maloca viu o fogo chegar. A fumaça venenosa foi em direção à maloca
onde estavam os parentes.
- Atoni, quem fez o fogo para o seu avô?", perguntaram para o menino quando ele se
juntou aos demais.
- Vocês não apagaram o fogo dele? Agora ele vai nos matar. Nós vamos morrer! Ele
vai nos matar!, a maloca toda gritava.
Todos caíram, e muitos morreram. Não sobrou quase ninguém, até os animais
morreram.
Mekene Wayafi, Melquides na língua dos brancos, estava trabalhando com os
ribeirinhos e não morreu. Ele foi procurar o corpo do Wiyonama e não o encontrou,
uma de suas almas deve tê-lo levado para o céu. Wiyonama não morreu, ele concluiu.
Ele voltou para a aldeia e os urubus estavam comendo os seus parentes. Ele subiu
numa árvore alta e viu os seus espíritos gritando. Na manhã seguinte, ele desceu da
árvore e foi olhar na beira do igarapé e achou Afiamatei e sua mãe. Afiamatei, que
estava no wawasa [casinha da reclusão pubertária, que fica mais afastada da maloca
principal] e sua mãe, que a estava ajudando, conseguiram escapar. Ele cuidou delas até
melhorarem.
111
2.1 Noko koma: o olhar envenenado
Além de ser rude encarar alguém com insistência, nokotoni, tal gesto é imprudente por
o que manter oculto e estar atento para onde direcionar o olhar são atitudes
imprescindíveis para não adoecer ou ser alvo de feitiços. Noko koma tiwara awalayaho,
"você não pode encarar um olhar envenenado", recomendam os mais velhos às crianças
desajuizadas.
Como descrito antes, conforme as pedras xamânicas são inseridas ao longo da iniciação,
o corpo do pajé torna-se venenoso; seus olhos em particular são o índice de sua agência
xamânica. Tanto é assim que pajés míticos, lembrados por suas capacidades
do mundo. Algumas almas de plantas, como aquelas da taboca teke, uma das mais
agressivas, ficam com os olhos apenas entreabertos, pois seu olhar, mesmo que de
relance, é suficiente para fulminar quem cruzar seu caminho."Não sobraria ninguém em
Lábrea", especulava Arnica sobre os estragos que teke causaria se fosse à cidade.
assemelha-se em seu tamanho a um boi pequeno, com chifres, mas com uma pelagem
ligeiramente distinta. Seus braços são curtos, ele anda por dentro da terra, vivendo
112
é uma fonte de doenças gravíssimas, dificilmente tratáveis mesmo por pajés experientes.
A "catinga" que deixa impregnada no corpo da vítima, transmitida por seu olhar, é o
vestígio inconteste do encontro. "Você pode não ter visto o dafi, mas ele a viu" ou "eles
[os dafi] ficam procurando o pessoal de longe", alertam. O cheiro forte incha
imediatamente o corpo da vítima, que precisa ser socorrida pelo pajé e seus espíritos
auxiliares. À menor aproximação, o dafi sai por algum oco de pau ou buraco no chão
para atacar com o seu olhar, e isso será suficiente. Do mesmo jeito que os Jara criam
gado, os dafi criam seus empregados, dafi ka yoyose, que trabalham para ele, causando
A criação em rebanho é uma prática que os Jamamadi relacionam aos brancos e aos dafi
(não à toa a repulsa à carne de gado). Foi o que aconteceu a Felipe, irmão mais velho do
pajé D., que morreu depois de caçar por engano um veado capoeiro, badehe, criado por
um dafi. "Esse veado é do mesmo jeito, mas é outro", me explicou D.. Felipe viu o
veado e atirou, contudo, ao invés de cair morto, uma vez que havia sido atingido, o
veado saltou em cima dele, que caiu desmaiado. Ao voltar para a aldeia, ele contou a
seu pai o que havia acontecido: "Abi, pai, matei veado só que ele não morreu".
Madokihi, seu pai, não teve tempo de ajudar o filho, que morreu no mesmo dia.
Nenhum espírito auxiliar tampouco pôde ajudar o rapaz. Eles sentenciam: "Quando é
Madokihi, pai do pajé D., foi para o céu encontrar a alma de seu filho para se certificar
de que ele estava bem. Ele havia mandado mane abono, uma alma de banana, levá-lo
em segurança para o céu – Madokihi era o pai da bananeira que resgatou a alma do filho
a seu pedido e a replantou no céu. Lá ele entregou o korimari de Felipe para a alma de
113
veneno iha. Madokihi disse a iha: "você fica com meu filho, coloca pedra nele". O
irmão mais novo de Felipe, o pajé D., conta que hoje seu irmão está casado com uma
alma de matrinxã, aba abono, e tem cinco filhos no céu (ver adiante os casamentos
póstumos no cap.7).
Uma vez a caminho do porto para se banhar, o pajé B. ouviu um animal relinchar. Com
medo, se escondeu no buraco de uma árvore. Eram vários dafi que pareciam uma
mistura de boi e bode, de várias cores. Eles estavam em busca do pajé para matá-lo,
talvez a mando de um pajé de outra aldeia. Em outra ocasião, B. foi acordado no meio
da noite com o estrondo de um dafi, que, saindo debaixo da terra, batia sob o assoalho
da casa onde dormia. B. chamou seus espíritos auxiliares para ajudá-lo porque ele
sozinho nada podia fazer contra o ataque de um dafi, muito comum na aldeia Pauzinho
recuperação são mantidas fora da visão de seus parentes a fim de evitar que piorem.
alterado que possa agravar o adoecimento. Isso porque não são somente os pajés e os
dafi que podem transmitir males através dos olhos, discutirei isto no tópico seguinte.
No início deste capítulo, relatei que a esposa do pajé D. havia permanecido um longo
escondida sob o mosquiteiro, não permitindo que ninguém a visse; não que os parentes
ousassem se aproximar, temendo a ira do pajé. Ao que tudo indica, segundo diferentes
114
explicações que escutei, a esposa de D. também poderia ter sido enfeitiçada por um pajé
de um povo vizinho em uma viagem a Lábrea e, ao retornar a sua aldeia, acabou sendo
A mesma evitação ocorreu quando Sabira machucou-se no cercado das mandiocas que
estavam de molho no igarapé. Ela permaneceu reclusa dentro da casa do filho por mais
de um mês, não sendo permitido a quem quer que fosse olhar sua ferida; nem mesmo as
estranho pôde olhar para a ferida dado o risco de afetar negativamente a recuperação,
seus filhos ajudavam a mãe no tratamento, eles levavam água para que ela se banhasse
Entre os Suruwaha, Huber nota que se atribui ao olhar um efeito destrutivo, em virtude
tais como os adolescentes que passam pelo ritual de iniciação, são obrigados a cobrir os
olhos com envira, no caso das mulheres, ou a olhar para cima, no caso dos homens.
produz seu crescimento, entre os Suruwaha, esse olhar demorado gakia-, gakyza- ou gai
kijaha- faz secar os cultivares no roçado e pode matar os animais de criação (idem):
115
ao roçado, não se aproximam delas e olham para o outro lado (gatukwa-). Se olharem, a
planta seca torna-se vítima da contaminação dos olhos (zubi gagini bahini). As pessoas
não olham suas plantações após terminar o plantio. Só olham quando o tempo da
colheita se aproxima. (Xabi, maloca de Wahidiani, 13/06/09) (Huber 2012:269)
116
2.2 Noki koma: a força do sangue e o veneno do olhar feminino
também têm o olhar envenenado, noki koma, comparado ao do pajé e ao das almas de
plantas agressivas, como a taboca teke ou como o dafi. Muito embora o período de
de seu corpo – meninas magras precisam ficar mais tempo para poder engordar –, é
comum que permaneçam por quase um ano dentro da wawasa, uma casinha feita de
palha, construída próximo à casa de seus pais e de onde ela só sai com o rosto coberto
para fazer suas necessidades e banhar-se, sem jamais entrar completamente na água.
olhos; em alguns casos, nos primeiros dias de sua primeira menstruação, ela poderá
ficar vendada. Somente as mulheres podem vê-la; os homens, por sua vez, temem
circular perto de sua wawasa e os meninos são alertados para evitar brincar por ali, isso
porque o olhar da menina é extremamente patogênico para os homens: aquele que a vir
ou trocar olhares com ela estará fadado a uma morte dolorosa, vomitando todo seu
sangue. Eles traduzem o nome dessa doença, ama komini, como tuberculose.
condição que comparam àquela do pajé, não pela fragilidade do seu corpo durante a
iniciação, mas pela potência do seu olhar depois de formado. Assim que a menina
menstrua pela primeira vez, ela vai para o mato, para longe da casa dos parentes, e
aguarda que alguém vá buscá-la. Ao encontrar sua mãe, ela avisa amakoboneni, "meu
117
sangue chegou". Em seguida, ela é colocada em reclusão dentro da wawasa, wawasa-ya
para que não corra o risco de olhar para nenhum homem, fana foya awaterani. Nos
primeiros meses, ela não pode nem mesmo olhar sua mãe nos olhos; somente quando
seu sangue diminui é que ela volta a olhar para as outras mulheres. Tal como o pajé em
formação, seu corpo é instável e a menina não pode coçar-se com as unhas. Sua dieta é
bastante restrita: nenhuma caça ou peixe pego com veneno pode ser consumido, dado o
risco de tornar o veneno ineficaz. Reclusa, a menina dorme pouco para evitar ser uma
mulher preguiçosa e saber vencer o cansaço; para tanto, sua mãe entrega-lhe dois
pauzinhos, os quais ela deve bater um no outro para mostrar que permanece desperta
durante a noite. Se sua mãe deixasse de ouvir o som dos pauzinhos, ela puxaria a corda
atada ao pé da menina para acordá-la. Também como o pajé novo, a menina recebe um
novo nome após o término de sua reclusão, concluída com o ritual ayaka e o
O nome dado ao ritual feminino é zubuni taharu “aquela que cobre os seus olhos”
porque as iniciandas, ao perceber que começaram a sangrar (ama-), devem
imediatamente cobrir seus olhos com um pedaço de envira de amapá (kaza ymy) e
então são orientadas por suas mães a deitar-se na sua rede. O olhar das moças que
menstruam a primeira vez é dito ser contaminante gagy- (como o olhar dos rapazes
durante a iniciação). Mas enquanto que o olhar dos rapazes que estão prestes a receber
o suspensório peniano é “perigoso” para todas as pessoas (homens e mulheres) porque
ele é “excessivamente destrutivo”/ “predador” e pode transformar os olhados em
presas de animais peçonhentos, o olhar das moças menstruadas é “perigoso” apenas
para os homens porque ele evoca a fertilidade e a geração de novas vidas: Homens
olhados por moças menstruadas perderiam suas habilidades na caça (seu “poder
mortífero”) além de ser acometidos por vários tipos de eczemas. As moças
permanecerão deitadas com os olhos vendados na rede e não poderão comer carne
118
enquanto estiverem sangrando. Quando a menstruação termina passam a “ver
novamente as pessoas”, são levadas para o igarapé mais próximo por algumas amigas,
mergulhadas (kubudy-) na água, pintadas de urucu e então têm seu cabelo raspado. A
“cobertura dos olhos” será usada por elas durante mais ou menos meio ano durante
suas menstruações, e depois “descartada por decisão própria” (tusa ha-)" (Huber 2012:
351)
à semelhança das bananas postas num paneiro que passam do estado borehe,
corpo feminino à semelhança das frutas, a gravidez é o ápice do processo, indicado pelo
escurecimento dos mamilos, hahasa na, dupl. -hasa na, ser preto/pretejar, no sentido de
A casinha ou o mosquiteiro, outra opção para a reclusão, são pequenos justamente por
a escuridão do ambiente abafado no qual estava reclusa Leorisa, que permaneceu por
quase um ano sob três mosquiteiros sobrepostos, de tecido grosso escuro, dentro da casa
da irmã. Sua pele alva e o rosto não mais infantil sugeriam que logo seria organizada a
caçada coletiva para o ritual ayaka32. Durante esse período, a menina permanece
sua rede. O aparecimento dos seios é o sinal mais contundente do término da formação
suas filhas não tardem a despontar. Ouvi o mesmo comentário a respeito do estágio de
32
Para uma análise do ritual jarawara da menarca, conferir Maizza 2017a e 2017b.
119
amadurecimento das bananeiras de um roçado: "aquela bananeira ainda não tem peitos,
escuridão de seu abrigo de reclusão pubertária são como os paneiros nos quais as
corpo feminino?
Os homens jamamadi têm verdadeiro pavor do sangue menstrual; jamais têm relações
ralar ou enxugar massa de mandioca sob o risco de estragá-la durante os dias de sua
menstruação. O medo dos homens foi visível quando Dowisi menstruou pela primeira
vez e não houve consenso sobre mantê-la em reclusão, já que seu pai, sendo viúvo, não
poderia cuidar dela. Por dias, ninguém ousava aproximar-se da casa temendo se deparar
foi resolvida somente quando seu pai começou a sentir a "doença do sangue" de sua
filha, manifesta na febre elevada, dor de cabeça e dor no corpo; então, acabaram-se as
discussões, decidiram que a menina não poderia "ficar solta". Sua tia materna
120
Fig.3 Casinha de reclusão, wawasa, construída em 2013
Quando Érica menstruou, seus pais estavam viajando para Lábrea. Foi sua tia, aso,
(FBW) quem a colocou dentro do mosquiteiro em sua casa. A tia materna cortou bem
curtinho os seus cabelos para que ela pudesse ser posta em reclusão. O cabelo foi
cortado rente ao couro cabeludo para marcar a passagem do tempo; a reclusão de Érica
só terminaria quando seus cabelos crescessem. Nos preparativos do início deste período,
a mãe busca água no porto com um balde e reúne as mulheres para cortar o cabelo da
121
filha. O procedimento é feito num caminho afastado das casas, numa distância segura,
longe dos homens. Cada mecha de cabelo é guardada cuidadosamente dentro de uma
mesmo tipo que hoje é usado nos dias do ritual ayaka que finaliza a reclusão. Os pais de
Érica queriam que ela permanecesse "muitas luas" dentro do mosquiteiro, bem como
sua avó paterna, Laide, para que tivesse força para carregar os pesados paneiros de
Não se fala em outra coisa quando uma menina menstrua; há um misto de alegria que
reuniram no terreiro da casa de seus pais para cantar o yowiri, gênero de canto feminino.
Os pais ofereceram comida, em geral, bolachas e café, para que as mulheres cantassem.
Os rapazes e homens mais velhos acompanham tudo a uma distância segura sem
ayaka ela terá que dançar todos os dias, à exaustão, até o final, enquanto os homens
somente voltavam a olhar para seus parentes quando eram açoitadas ao fim deste ritual.
Hoje, tal prática foi abolida entre os Jamamadi por influência da ação missionária. O
açoite como técnica de transformação corporal não se limita a este ritual, ainda que no
caso dos meninos o açoitamento seja menos intenso e feito à guisa de "brincadeira",
122
Fig. 5 Fia (MZ) corta o cabelo de Érica, 2015
ficam remosas33 quando engravidam. Foi o que aconteceu com K. que mantinha sua
gravidez escondida por ser solteira. Ela foi visitar o tio, que havia sofrido uma picada de
cobra, e seu olhar o fez piorar repentinamente: a ferida que estava quase cicatrizando
voltou a inflamar a ponto do tio ter a perna amputada. Não à toa, quando andam nos
seus varadouros, as mulheres grávidas sempre vão na frente para que os demais não
33
Literalmente, remoso tem o sentido de gorduroso também para a população regional. Alimentos ou
pessoas remosas são potencialmente prejudiciais para aqueles com a saúde fragilizada. Alguns peixes,
carnes de caça e frutas considerados remosos são interditos por essa razão durante a couvade, a iniciação
xamânica, a reclusão pubertária e os períodos de convalescência.
123
Capítulo 3: Os espíritos auxiliares e o resgate da alma-coração
xamânica, a saber: refere-se ao próprio pajé – como entre os Paumari (Bonilla 2007); às
para se referir somente às pedras xamânicas que conformam o corpo do inawa, pajé. Por
vezes ele pode ser referenciado metonimicamente por suas pedras aona – equivalente a
perspectiva que lhe confere sua condição. É menos evidente, contudo, que os termos
dadaba, ai ka yoyose etc –, uma vez que tal categoria abarca entidades cujas relações
com o pajé não são coincidentes. No caso da onça, localizada no intestino, e da cobra,
que também vive no interior de seu corpo, ambos espíritos auxiliares, verifica-se uma
correlação com as suas pedras, ou seja, são a forma como se fazem visíveis ao serem
espíritos dos Jamamadi falecidos, são com frequência referidos genericamente pelo
termo inamadi, ou ainda por seus nomes próprios, no caso dos mortos, ou pelo nome da
elementos internos ao corpo do pajé, embora sejam entendidos enquanto partes que o
124
Os espíritos auxiliares podem viver no interior do corpo do pajé, como as onças e as
casos tratam-se de partes que o compõem sem serem por ele englobados. Quer dizer,
enquanto pessoas, os espíritos auxiliares são partes de mesma ordem escalar que o todo
de que são partes, descrevendo uma relação merográfica distinta da ocidental, segundo a
qual as partes não equivalem nem podem ser tomadas pelo todo (cf. Strathern 1992).
Assumindo que as relações são internas às pessoas e constituintes de seus corpos, tanto
aqui quanto na Melanésia, as pessoas e suas relações revelam uma equivalência que não
permite a hierarquização assimétrica entre partes e todo, uma vez que "uma pessoa é
igual a todas as relações que a constituem: as relações são integrais à sua composição
como um corpo que vive. Este corpo é feito visível pelos seus atos, e pelos atos de
1991 apud Pinto 2015:77). De todo modo, a constituição corporal de um pajé depende
da decomposição parcial do corpo de um pajé mais velho que lhe transmite suas pedras
entre o pajé e seu preceptor. Assim, "persons create others by shedding parts of
themselves and emerge as the completed acts of others by incorporating their parts"
Conforme dito, o pajé responsável pela iniciação, bem como aqueles que também lhe
sopraram rapé, são lembrados por conta dos vínculos que estabelecem com o neófito na
transferência de partes de seu corpo por meio das pedras xamânicas e, notadamente, dos
espíritos auxiliares. Trata-se de uma relação semelhante àquela descrita por Pinto entre
125
os pajés djeoromitxi, que transmitem armas uns aos outros: "[c]ada pajé [é] composto
internamente de partes de outros pajés: trata-se de uma inscrição corporal cuja origem
Entre os Jamamadi, a onça e a cobra, porém, são partes que somente se destacam
cão de caça que acompanhará as almas dos mortos em sua vida póstuma e não é
transferível. As almas de plantas, por sua vez, podem ser recebidas de um pajé mais
velho, não exclusivamente durante a iniciação. Parece-me que o mais comum é que os
inamadi que trabalham para o pai passem ao filho, nestes casos, sendo este espírito de
planta também um filho do pajé mais velho; a relação entre seus filhos Jamamadi e
espírito auxiliar de ayo, irmão mais velho, e este, de forma correspondente, utilizará o
Tika yama anini oka yahateboneni, "eu vou pegar o seu trabalho", é o que dizem no
caso de adotarem um espírito auxiliar, neste sentido, eles serão como seus filhos de
criação, adotados, também considerados como fregueses dos pajés. Dos espíritos
modo que quando estes "passam a trabalhar", "acompanhar", "ser a parceira" ou "fazer a
que transmite seus conhecimentos. Assim, em comum com outros povos ameríndios das
Terras Baixas, não se trata de uma transmissão oral do saber xamânico do preceptor ao
34
Para uma discussão sobre a composição corporal do pajé djeoromitxi inspirada no contraste e nos
desdobramentos teóricos das etnografias melanésias, remeto o leitor ao texto de Pinto (2015) "Como
possuir uma 'taboquinha': sobre a composição corporal dos pajés djeoromitxi", uma das referências
centrais para a análise deste capítulo.
126
noviço: antes, é a comunicação trans-verbal através da conexão direta com as plantas,
conversas com os interlocutores não nativos, uma estratégia tradutiva a que se recorre
para tratar, principalmente, dos vínculos entre os pajés e seus espíritos auxiliares ou dos
espíritos inamadi e aqueles seres, no mais da vezes animais, que agem a seu mando. O
tema, porém, apresenta expressivo rendimento entre outros povos do médio Purus,
Paumari (2005, 2007, 2016). Embora expressa em termos comerciais, a relação com a
alteridade não se reduz à sujeição, como se poderia pensar diante das descrições que
35
Sobre o aprendizado através da comunicação com as plantas, conferir os trabalhos de Tupper (2002);
Jauregui (2011) e Luna (1984, 1992). Os autores destacam a noção de "plantas professoras", "plantas con
madres" ou "doctores", parte central do xamanismo ayahuasqueiro, em particular no aprendizado dos
cantos terapêuticos. Jauregui mostra como a capacidade para ouvir, aprender e cantar os Ícaros, ou
melodias xamânicas sagradas, dependem da melhora das faculdades, sensibilidade e intuição, o que é
feito por meio da adminstração de plantas específicas, sendo a ayahuasca frequentemente tomada como a
principal professora (idem: 747). No ensaio bibliográfico de Christina Callicott (2017), a autora menciona
diversas etnografias que focam a música como forma de comunicação entre plantas e pessoas, citando
Highpine (2012), dentre outros, para abordar o papel da ayahuasca: "entre os Runa Napo um dos papéis
vitais da Ayahusca é ensinar os humanos acerca das outras plantas... Ela ensinou às pessoas a prática de
sasina [dieta] para que a pudessem usar para aprender a comunicar com outras plantas além dela"
(Highpine 2012:11 apud Callicott 2017:9). Seguindo uma abordagem fitosemiótica, a autora analisa a
aprendizagem xamânica "como um modo de imersão no processo fitosemiótico através da experiência
direta e da interpretação de estímulos fitoquímicos não linguísticos. (...) Dito de outro modo, uma certa
planta pode produzir um único efeito auditivo no aprendiz. Em seguida, a aprendiz interpreta esse som
como o Ícaro da planta e tenta reproduzi-lo numa canção. Deste modo, o xamã é capaz de inverter o
estímulo fitoquímico através da reprodução do seu som característico, o seu Ícaro. Cantá-lo consiste, por
sua vez, em reproduzir o espírito da planta" (Callicott 2017:13-14).
127
ocupando um lugar central nas relações sociocosmológicas, ela é o elemento que
ponto, o que interessa, por ora, é mostrar que há uma inversão dessa dinâmica da
sujeição e que "preferindo a submissão à devoração, eles [os Paumari] talvez controlem
presa, bani, atribuem a ação desviante a uma vontade heterônoma, em geral, trata-se do
perspectiva dos animais, ouvi duas exceções curiosas: i. as almas dos peixes, com
destaque às almas das matrinxãs, aba abono, e ii. as almas dos cupins, mototo abono,
podem, mais raramente, ser espíritos auxiliares dos pajés. Com efeito, a pregnância da
mundo não existem per se, mas dependem inteiramente das relações que o pajé
(...) worlds are not permanent entities; they do not stand per se autonomously, but rather
depend on the shamans’ engagement and relationship to them. The shamans reveal these
worlds by experiencing them, actualizing them throughout their lived interaction. In
doing so, they appropriate a positioning among the many existing ones, literally
incarnating these worlds (Colpron 2013:376).
36
Entre os Suruwaha, as almas das plantas silvestres, agabuji karuji, podem agir em benefício dos
humanos: "[a]liados dos kurimia e, em alguns momentos, aliados também dos humanos, os agabuji karuji
transitam no dossel da floresta e caçam os zamakusa. Alguns recebem atribuições especiais: o espírito da
ucuuba, bahihywy karuji, tem o poder de afastar "as dores da raiva" no coração das pessoas". (Aparício
2015:76)
128
A despeito da complexa topologia do jogo de fazer-se visível enquanto uma parte
não se confundem com o pajé. Em suas visitas à terra, aquelas manifestam-se como
pessoas distintas dele, com uma vida autônoma no céu, mas que mantêm vínculos com
Tanto é assim que na relação do pajé com suas plantas, a forma visível/vegetal terrena,
espécie de avatar, produz e reforça os vínculos de parentesco entre eles. Também entre
termos de filiação: "Le chamane est le père de l’itavari. C’est comme un gouverneur.
Ce que le chamane lui dira, il doit le faire et lui obéir. Comme un employé. Les itavari
ont très envie de travailler et d’être sous les ordres du chamane (...) (K., 06/08/02, Santa
com as almas das plantas, aproximando-as das relações com os animais de criação e as
crianças adotivas.
À noite, o pajé toma rapé no terreiro de sua casa ou se afasta para um caminho mais
distante e assovia longamente algumas vezes chamando suas almas37. Quando as almas
chegam, logo perguntam: "O que aconteceu?". Gostaria aqui de destacar as duas
perguntas recorrentes que abrem tais diálogos: tiwa oni?, "qual o seu nome?", e tika ede
oni?, "qual o teu povo/etnia?". A primeira questão pode ser formulada de outras
37
Maizza descreve de maneira semelhante as visitas das almas entre os Jarawara: "As almas descem à
terra quando chamadas pelo xamã; ao chegarem, dizem seus nomes e suas “origens”: falam algo como
“eu sou a alma da pupunha que a Hinabori plantou, me chamo Nanafina”. Ou então, “você me conhece,
você plantou pupunha, eu sou filho da pupunha, eu sou seu filho”. As pessoas descobrem novos nomes
nessas visitas e podem trocar com as almas das plantas" (2014:506).
129
maneiras como tiwa madi ka oni?, "qual o seu nome de alma?", ou tiwa oni yokana?,
povo/etnia geralmente são respondidas pelas almas com o nome de uma espécie vegetal,
final deste trabalho; já as perguntas acerca dos nomes pessoais, "de alma" ou "de
verdade" são nomes próprios que particularizam aquela alma de planta, tal como
demonstra o diálogo abaixo, de N, esposa do pajé D., com uma alma masculina de
buriti:
Baya! (assovio)
enfermo, ele irá entregar a flechinha de feitiço retirada do corpo do paciente ou ele
mesmo irá carregá-la consigo em sua viagem para o céu, onde irá brigar, acompanhado
de seus auxiliares, com aqueles que roubaram a alma. Tais eventos são descritos como a
introdução de uma substância patogênica visível segundo formas distintas, sendo a mais
130
comum a flechinha sereini, que implica ou tem sua correspondência perspectiva no
roubo da alma da vítima, de modo que os pajés vivem estes eventos duplamente: após a
extração do objeto do corpo do doente, ele parte com seus espíritos auxiliares para
abordarei no tópico seguinte, este conflito é descrito nos termos de uma guerra mundial
entre gentes-planta, na qual se briga com faca, arpão e um arsenal bélico que parece
que tudo indica, os feiticeiros são pajés vivos de outros povos, principalmente os
os pajés são aqueles que tratam as doenças de awabono, das frutas, um jeito de por em
relevo o meio pelo qual as almas de plantas mais frequentemente atacam os Jamamadi.
feitiço na comida é seu modo mais eficaz. Não custa lembrar que os desdobramentos de
totalizantes nem coincidentes, pois, à medida que o sopro do feitiço tem o efeito
38
O termo manakone e suas formas variantes nas demais línguas arawá, a saber, manakone - jarawara;
manako - kulina; manakuni - deni; pavakari - paumari, aplica-se a um campo semântico amplo que se
remete à noção de troca, conforme os exemplos a seguir: oka yama manakone datinahi, "qual é o preço
disso?"; oka yama anini manakone datinahi, "pague o meu salário (o preço pelo meu trabalho)"; oka
yama hani manakone datinaharihi, "responda minha carta"; tiwanabohani oka soho manakone
nanahabani. Tiwa onahahaboni, "você matou o meu irmão mais novo, eu vou te matar como vingança
(sua morte pagará a dele)"; Deoso ai ka manakone-ya nanahabane, "Deus pagou os nossos pecados". Para
uma análise da categoria de troca e reciprocidade entre os Deni, ver "O manakuni dos Deni: prestações e
contraprestações no rio Cuniuá (AM)" (Florido 2013), entre os Jarawara conferir "Propriedade e espaço"
(Maizza 2009:223-227) e entre os Kulina, o capítulo "O manaco na sociedade kulina: dar, receber e
retribuir" (Altmann 1998:43-81).
131
O pajé pode ir visitar as almas sem a intenção de buscar uma alma roubada. No céu, as
almas têm grandes roçados, plantam todo tipo de cultivar e quando estes amadurecem,
beber e cantar, inclusive os pajés vivos que então aproveitam para aprender novos
cantos – uma vez que cantar não faz parte de sua formação no período da iniciação. As
bebidas são consumidas no terreiro da família que a oferta, esse é um modo de integrar
parentes que vêm de aldeias distantes para beber. Segundo a descrição de Salgado no
ritual pubertário de Damaris ocorrido em 2013, pajés e inamadi transitam entre o céu e a
O pajé toma sina, rapé, e vai para o céu aprender o wayoma. O que ele canta, ele
aprendeu com os inamadi. É como se ele estivesse no telefone, ele conta o que ele está
ouvindo, o [ritual] ayaka que está acontecendo lá. O chefe dos inamadi autoriza e o
inawa vai aprender o ayaka lá. Quando tem ayaka aqui é igual. O pajé vai para o céu
antes e convida os inamadi. Ele vai pegar “ficha”, pois precisa de autorização para
trazer os inamadi. Eles "filmam" os Jamamadi para mostrar no céu para outros.
Vieram 4 pessoas para filmar a festa de Armando, eles usam uma máquina semelhante
a uma televisão. O cacique geral aqui também dá autorização para eles virem antes da
festa. [Na festa de Damaris], um inamadi tinha o cabelo comprido, loiro, ele era bem
bonito, não usava cocar mas um pano na cabeça. Outro era parecido com os
Jamamadi. Também veio o finado Funaya e o filho do pajé B., o João.
132
3.1 Yamata abono: as almas das plantas cultivadas
Os Jamamadi se referem ao corpo vivo com o termo abono m./aboni f.; de maneira
abononi é sua forma feminina e abono, a masculina. Cf. Chapman & Derbyshire 1991).
pode designar mais especificamente o tronco, ou seja, o corpo sem os seus membros
Entre os Jamamadi, abono também se refere à forma humana ou duplo dos seres não
humanos, a tradução mais frequente é "alma", ao passo que as almas dos seres humanos
são chamadas de korimari. Assim, um duplo ou forma humana de banana é sibati abono
enquanto a alma de Sonake Jamamadi é referida como Sonake korimari. Quando usados
"gente", "povo", "etnia", "grupo local", de modo que sibati abono parece delimitar um
39
A autora faz referência à noção tal como desenvolvida por Descola: "(…) la physicalité concerne la
forme extérieure, la substance, les processus physiologiques, perceptifs et sensori-moteurs, voire le
tempérament ou la façon d’agir dans le monde en tant qu’ils manifesteraient l’influence exercée sur les
conduites ou les habitus par des humeurs corporelles, des régimes alimentaires, des traits anatomiques ou
un mode de reproduction particuliers." (Descola apud Bonilla 2005:169).
40
A autora faz referência novamente à definição de Descola para "interioridade" como uma "gamme de
propriétés reconnues par tous les humains et recouvrant en partie ce que nous appelons d’ordinaire
l’esprit, l’âme ou la conscience – intentionnalité, subjectivité, réflexivité, affects, aptitude à signifier ou à
rêver » à laquelle on peut également ajouter 'les principes immatériels supposés causer l’animation, tels le
souffle ou l’énergie vitale'" (Descola 2005:168-169 apud Bonilla 2007:149).
133
intervalo ou limite semelhante aos "subgrupos"41 Jamamadi. Voltarei ao tema no último
capítulo desta tese. Korimari remete à alma de uma pessoa específica, no exemplo, a
alma de Sonake; por outro lado, abono não tem a mesma precisão, trata-se de um duplo
de banana qualquer – para especificar de que duplo de banana se está falando, é preciso
descobrir-lhe o nome próprio. Por isso, sibati abono é um duplo de banana genérico e
uma tradução única para me referir ao abono dos seres não humanos, como os cultivares
agrícolas42 yamata abono, a fim de não apaziguar uma dificuldade tradutiva mal
resolvida. Por mais razoável que seja escolher uma alternativa única para traduzir o
termo abono neste caso específico, não me parece desprovido de valor multiplicar as
Quanto ao korimari dos humanos, assumo a tradução dos Jamamadi que, sem variações
pertinentes, dizem em português "alma" neste caso. O termo também designa a sombra,
42
Os Jarawara também chamam de yama korona abono, alma de coisa plantada, os duplos de seus
cultivares (Maizza 2014:503).
134
vista a dar relevo às diferenças sutis de seu campo semântico e ontológico. De acordo
com sua análise, o termo abonoi é utilizado tanto para falar do corpo como da alma, a
parte que depois da morte caminha em direção ao lago dos mortos, Aja’di ka’dako, ou
lago da renovação, cujas águas permitem que a juventude seja recuperada e a alma vá
mediante a submissão a um patrão como sua mão de obra. Um traço distintivo são os
seguinte.
um objeto ou matéria, assim como o eu, o que lhe é próprio: "[a]insi le terme abonoi
désigne le corps, la physicalité d’un être ou d’un objet. Un objet comme le glaçon est un
abonoi d’eau froide (paha pahisiriki abonoki), de l’eau froide matérialisée" (Idem).
Da mesma maneira, entre os Jamamadi, abono designa a "parte principal”, cerne, eixo,
como em sitati aboni ya, “centro da cidade”; kakaro abono, “disco de fuso” e kimi
abono, “espiga de milho”. Também quer dizer “coisa de verdade”, completa, como
yawida abono, fruta de pupunha de verdade, isto é, com semente (ou coração). O termo
boni f./bono m., de forma correlata, é o núcleo de alguma coisa, algo concentrado,
135
remédio"); banibidi bono, "bico de pássaro"; rapi bono, "ponta do lápis"; yiwaha boni,
"panela de barro"; saia boni, "tecido para saia"; neme aboni, "céu inteiro claro" ou
"firmamento" (em oposição a neme sabi, "céu nublado" e neme soki, "céu noturno");
katoso aboni, "cartucho"; ai abono, "nós todos" ou "o conjunto integral dos parentes",
etc. Adiantando um pouco o argumento, o termo bono está presente na palavra que
"fala", ati, do "sopro vital", hasi, que anima o corpo e, o que interessa salientar neste
ponto, o local no qual está o korimari humano, tanto é assim que o roubo da alma
paralelos: a cura se faz pela sucção do objeto patogênico do corpo enfermo e pelo
Por certo, como notou Bonilla para os Paumari, determinar se abono remete-se ao duplo
aspecto ou outro do ser em questão. Pude notar uma menor ocorrência em utilizar o
termo abono para tratar do corpo em sua integridade, e, do mesmo modo que seus
Bonilla sugere a tradução "alma-corpo" para abonoi em vista de salientar tal aspecto. O
mesmo poderia ser dito a respeito da noção de pessoa Jamamadi, como ficará claro no
136
compõem43, contudo, a diferença entre abono e korimari insinua a hipótese de se
tratarem de duas almas ou duplos distintos, uma vegetal e outra humana; seguirei
Quanto ao termo inamadi, ou sua variante madi, escolho traduzi-lo por "espírito". Trata-
se de uma categoria genérica que abarca contextualmente tanto os duplos abono como
frequente é que o termo seja aplicado aos espíritos que assediam os humanos flechando-
os com seus dardos envenenados, cuja presença se faz notar pelo vento, assovio e, no
mais das vezes, pela perda de objetos. Somente de forma secundária, o termo é usado
para se referir aos duplos das plantas, como os duplos dos cultivares agrícolas, yamata
abono, que são os principais auxiliares do xamã. Inamadi não é usado para as almas dos
humanos, mais uma vez, neste caso, utiliza-se exclusivamente o termo korimari.
Cada forma de vida vegetal, não somente as plantas cultivadas pelos Jamamadi em suas
roças e aldeias, diz-se possuir um duplo humano, visível aos xamãs e aos mortos,
chamado abono – portanto, o duplo da castanha é o mowi abono; da temida taboca teke,
é o teke abono; do tamino (árvore não identificada), é o tamino abono, etc. Costuma-se
comentar a aparência física destes duplos, seus hábitos alimentares, seu comportamento,
sua força física e seus poderes xamânicos. O mesmo não se diz dos animais aos quais
não se atribui agência semelhante àquela das plantas; a importância simbólica deles é
43
Escolha análitica que se justifica pela brevidade, ou seria desinteresse, com que tratam a concepção
humana.
137
cultivadas pelos Jamamadi; pode-se afirmar que, no limite, a todas as formas de vida
Cada planta tem seu abono como um grande rei. Esse rei é como um capitalista45, ele
ganha muito porque manda nos outros inamadi para que venham pegar os Jamamadi.
As frutas são do chefe, ele olha suas plantas do céu. Nós não temos a funai? Então,
nós temos polícia também. Os inamadi são de muitos tipos, como as etnias, alguns são
maiores e mais altos que os Jamamadi, eles também falam diferente.
Os yamata abono são os duplos das plantas cultivadas tais como sibati abono, alma da
banana, fowa abono, alma da mandioca, koyo abono, alma da macaxeira, sami abono,
alma do abacaxi, irimao abono, alma do limão, etc. O termo yamata refere-se aos
eficiente deste ato) ou nayana (no caso de salientar a causa final) estabelecida com estas
espécies que conforma os vínculos centrais de filiação entre as almas das plantas e o
44
Cf. Bonilla (2007:296) sobre o duplo jaguar de algumas árvores: "Certains arbres et tout
particulièrement des arbustes et des palmiers épineux non cultivés sont également sujets à la
métamorphose. Tout comme les proies des Paumari, les arbres et plus particulièrement les palmiers
épineux possèdent, eux aussi, une autre forme, qui leur permet d’adopter un point de vue: celui du jaguar,
le jomahihi. Si l’humanité est la forme selon laquelle tous les existants peuvent voir le monde, la «
jaguarité » ou « jaguaritude » est la relation selon laquelle les arbres (ava) peuvent comprendre le monde.
Les Paumari font une différence entre divers types de jaguars: ceux qui sont des transformations d’arbres
(formes jaguars de végétaux sauvages) et les jaguars femelles qui ont un pamoarihi".
45
Apesar da carga semântica de autoridade e controle atribuído ao abono por Salgado, essa não é uma
caracterização recorrente. A tradução me pareceu de valor circunstancial.
138
Fig. 6 Castanheira (mowi) e seu duplo humano (mowi abono)
A distinção entre plantas cultivadas e não cultivadas precisa ser matizada, uma vez que
a diferença entre roça, floresta e capoeira é sempre definida segundo um ponto de vista,
diferença é que o são por outros seres, em especial uma classe de espíritos chamados
não são classificações absolutas, pois se a agricultura não é um atributo exclusivo dos
ponto de criar uma continuidade perigosa entre espaços habitados por diferentes seres,
como bem lembrou Cabral de Oliveira em sua análise sobre a questão para os Wajãpi:
46
Não se trata de reforçar com essa oposição uma imagem da floresta como ambiente prístino e intocado.
Trabalhos recentes de ecologia histórica (Levis et al. 2018, Clement et al. 2015) têm mostrado uma
imagem antropizada de grande parte das florestas amazônicas. Baseados numa profusão de dados
etnográficos, botânicos, linguísticos e arqueológicos, tais estudos mostram que a biodiversidade e sua
distribuição são produtos da ação e ocupação dos povos indígenas que por milênios têm manejado os
recursos florestais, modificando seu meio substancialmente.
139
"em um lugar onde a humanidade não é um atributo exclusivo dos homens e todas as
gentes cultivam suas roças, é fundamental cindir o que é roça e floresta para cada
sujeito" (2016b:130).
espíritos das cobras e o Wifi, cedro aguano (Cedrela sp.), é o local onde mora uma
cajurana, são consideradas perigosas, elas caçam tanto os animais quanto os Jamamadi,
ambos vistos como presas. Seus hábitos culinários indicam um comportamento hostil;
os pajés dizem que as almas de winika não moqueiam bem sua caça, somente “põem
rapidinho a carne no moquém e logo tiram para comer”. Segundo se conta, um pajé viu
uma alma feminina desta árvore, que havia sido abandonada pelo marido, e enquanto
comiam seu filho, sujava a cara com o sangue da carne mal assada. Wifi abono, por sua
vez, é uma das almas de planta mais temidas; elas são caçadoras, descritas como altas,
fortes e carecas, não usam roupas, não moqueiam sua carne e matam qualquer um que
Minha análise corrobora o que Maizza observa (2014:504) em algumas espécies não
cultivadas das regiões de várzea, como o buriti, buritirana e o joari, que são cultivos dos
yama – acredito que seja um ser semelhante ao dafi – e dos yama maka que moram nos
velho', awa bote, segundo os Jarawara, e são associadas às "almas velhas predadoras',
140
pertinência do vocabulário empregado para lidar com o processo de domesticação na
Amazônia, Neves (2017) apresenta reflexões instigantes que levam a repensar a relação
easy to distinguish between wild and cultivated plants in South America, and there are
many intermediate stages between the utilization of plants in their wild state and their
tropical das Terras Baixas da América do Sul. De acordo com o autor, não é possível
árvores úteis, de maneira a sugerir que noções como "agricultura" e "domesticação" não
sejam exatamente adequadas para compreender como tais práticas se dão nas florestas
tropicais (Neves 2017:229). O autor sugere que a "agricultura não domesticada" foi um
segundo as quais antigas sociedades indígenas teriam sido responsáveis pela dispersão
de muitas espécies, notadamente certos tipos de palmeira que, ademais, por sua
demonstra que a linha que separa as plantas domesticadas daquelas selvagens não é
nítida na Amazônia. Isso porque, embora haja evidências de que a distribuição de tais
espécies decorra da ação humana, não há novas espécies resultantes deste longo manejo,
wild, neither domesticated, these species compose an important part of the symbolic and
economic worlds of past and contemporary indigenous societies in the Amazon. (...) It
is thus impossible to separate the life histories of these trees from the life histories of the
peoples that initially planted and then cultivated or managed them" (Idem:241).
141
A pertinência em recuperar os argumentos apresentados pelo autor se torna relevante ao
agrícolas Jamamadi ou, de forma mais ampla, para a relação entre os Jamamadi e o
patauá, a abiorana, jaci, agaú, várias espécies de cacau do mato, sorva, pequiá, açaí e
inquestionáveis da presença dos isolados, pode-se concluir com qual regularidade a área
47
Agradeço ao coordenador da FPEMP, Daniel Cangussu, pelas informações a respeito dos vestígios
coletados nas expedições em território Hi-Merimã e pela disponibilidade em sempre compartilhar seus
conhecimentos sobre os isolados e a botânica da região. Para maiores informações conferir os relatórios
das expedições de monitoramento desta FPEMP para a referência n.13.
48
Talvez o patauá seja a planta mais significativa para os Hi-Merimã tanto pela centralidade na fabricação
dos objetos da cultura material como por fornecer os alimentos base de sua dieta, uma vez que à diferença
de outras palmeiras o patauá libera cachos todo o ano. Do tronco é fabricado o arco; as cepas das
palmeiras jovens são usadas como dardos para zarabatanas; o palmito é consumido; as folhas são
utilizadas para confeccionar os abrigos temporários, os "rabos de jacu", além da cobertura dos
acampamentos maiores. Ainda das folhas fazem panacos e cestos. Os frutos, por sua vez, são consumidos
in natura ou escaldados para extrair o vinho ou o óleo (por vezes comparado ao leite humano por seu
valor nutricional e por ser completamente absorvido pelo corpo humano). A dispersão das sementes pelos
acampamentos e a derrubada dos patauás pela floresta fazem com que essas plantas se concentrem nos
142
processam diferentes produtos, ou dos vários tubérculos do gênero Casimirella,
de índios"49, mostram que a noção de agricultura – e nesta mesma toada, etiquetas como
varadouros e acampamentos dos Hi-Merimã. Portanto, monitorar a presença dos patauás é uma técnica
através da qual é possível compreender o padrão dos deslocamentos e a territorialidade do grupo.
Ademais, nota-se que mesmo a cultura material que não é produzida a partir do patauá possui algum
vínculo com a planta: é o caso das grandes panelas de barro, que podem chegar a 5 ou 6 litros, utilizadas
para armazenar o óleo e o vinho; também os pilões de casca de jutaí, um dos itens mais abundantes
encontrados nos acampamentos, são utilizados para despolpar as sementes do patauá. (Os dados acerca do
manejo do patauá e de outras espécies pelos isolados Hi-Merimã é o tema de pesquisa em ecologia
histórica de Daniel Cangussu a quem, novamente, agradeço pela gentileza em compartilhar estas
informações).
49
O “pão-de-índio” é uma massa vegetal composta tanto da matéria de uma única planta como da
combinação de diferentes espécies. Pode ser produzido a partir do processamento da batata mairá
(Casimirella sp), de amêndoas, a exemplo da castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa) e da castanha-de-
cutia (Acioa edulis), de polpas de frutos como o umari (Poraqueiba sericea), o pajurá (Couepia
bracteosa) e o uchi (Endopleura uchi). Das palmeiras também se extrai a massa ou a fécula, com
destaque do babaçu (Attalea speciosa), da pupunha (Bactris gasipaes), do açaí (Euterpe precatoria), do
buriti (Mauritia flexuosa), do tucumã (Astrocaryum aculeatum), do patauá (Oenocarpus bataua) e da
bacaba (Oenocarpus bacaba). Os tubérculos e raízes usados na fabricação eram geralmente ralados em
estruturas espinhosas de plantas como a paxiúba (Socratea exorrhiza), as castanhas e sementes de
palmeiras eram maceradas em pilões, e sementes e batatas tóxicas, além de raladas e maceradas, recebiam
preparos específicos, semelhante ao que se observa hoje no preparo da farinha de mandioca amarga. Na
região do médio Purus, há indícios de que o processamento da raíz da batata mairá, das sementes do
louro-abacate e da faveira da várzea, por exemplo, era realizado por equipamentos apropriados (como o
tipiti), sendo sua fécula submetida a múltiplas lavagens de modo a ser utilizada, dentre outros fins, na
fabricação do pão-de-índio (defumados e enterrados) ou acondicionada em panacos (cestos de palha) e
armazenada nas águas dos igarapés. Depois de pronto, o bolo vegetal era defumado a fim de criar uma
película espessa, uma embalagem eficiente que garante sua conservação por muito tempo. O "pão" era
armazenado na superfície ou enterrado no solo sombreado da floresta. Segundo relato de indígenas e
ribeirinhos do sul do Amazonas, os pães-de-índio eram utilizados como reserva alimentar em tempos de
escassez ou para consumo em viagens, caçadas, pescarias e grandes varações, estando sempre associados
aos varadouros ou trilhas antigas. (Essas informações foram retiradas da nota "Pão-de-índio: manejo e
manufatura na Amazônia", escrita por Daniel Cangussu e Gilton Mendes dos Santos, s/d).
143
Fig. 7 Travamento do rabo de jacu Hi-Merimã
(relatório Igarapé Grande, 2016. Imagem cedida pela FPEMP)
Por conta disso, o modo de vida e a atitude Hi-Merimã ante as plantas são alvo
constante de questionamentos por parte dos Jamamadi, uma vez que aqueles priorizam a
relação com as árvores frutíferas, awa, que são entendidas como parte da categoria
yamata, das comidas ou comestível, mas somente enquanto uma variação, de "outra
qualidade", bara50 (bara/bare adj. diferente), quer dizer, os isolados priorizam sua
50
Não poderei me deter na questão da "regressão agrícola" e seus pressupostos, no entanto, gostaria de
apontar que a interrupção das práticas agrícolas concomitante à transformação dos padrões de mobilidade
144
relação com os yamata bara com os quais se relacionam em termos distintos daqueles
da criação nos roçados dos yamata yokana, a "comida verdadeira", mais valorizada.
Esta recusa ativa dos vínculos de familiarização com os yamata – de forma alternativa à
do isolamento, pois, inevitavelmente, seus parentes não somente passam fome como
que sem poder contar com a ação das almas dos yamata abono, os Hi-Merimã ficariam
expostos a agressões xamânicas e, mais grave, não garantiriam sua boa morte com a
morto por intermédio das almas de plantas, de modo que permaneceriam na terra
"jogados", vagando sem rumo como espíritos agressivos ai fami prontos a predá-los.
entre os Hi-Merimã parece pouco se desviar da trajetoria histórica predominante dos povos por ocasião do
contato com os brancos. Não se trata de reforçar um papel unilateral de forças exógenas para a
determinação da condição de isolamento, apenas de salientar que o caso Hi-Merimã parece ser mais um
exemplo da ruptura com o exterior no período do boom da borracha. O abandono das práticas agrícolas
foi de par com o fortalecimento do manejo de espécies não domesticadas, saber também manifesto entre
os Jamamadi. Para uma abordagem que oferece um ponto de vista distinto, conferir Costa (2009),
51
Em novembro de 2016, nos dias subsequentes ao término de uma expedição de monitoramento da
Frente de Proteção Etnoambiental na região do igarapé Mucuim que faz fronteira com a terra indígena Hi-
Merimã, surgiu o boato no rádio de que os isolados haviam feito contato tão logo os funcionários da
Funai deixaram a área. Assim que ficaram sabendo do retorno de seus parentes, os Jamamadi se reuniram
em torno do rádio esperando ansiosos por mais noticias. Segundo o relato de um morador da região do
Mucuim, distante vários dias da Terra Jamamadi, toda sua aldeia, apavorada, estava refugiada na escola
temendo o ataque dos isolados. Seriam duzentas pessoas, dentre homens, mulheres e crianças, todos
paramentados como "índios de verdade"; os homens portavam suas armas e tinham uma aparência
particularmente feroz. Naquele momento, os moradores diziam que não iriam atirar nos Hi-Merimã, que
estavam acampados na outra margem do lago, mas que não hesitariam no caso de uma aproximação. Até
a chegada da Funai no igarapé Mucuim, viagem que dura cerca de uma semana partindo do município de
Lábrea, o pânico se instalara e não se falava de outra coisa nas conversas de rádio em praticamente todas
as aldeias da região. Durante esses dias, as lideranças Jamamadi reunidas decidiram organizar uma
comitiva para entregar aos seus parentes Hi-Merimã manivas de mandioca e sementes de cultivares.
"Finalmente, eles poderão voltar a fazer seus roçados", eles diziam com certo alívio. Porém, para
frustração dos Jamamadi, a Funai desmentiu o boato poucos dias depois.
145
noção da passagem necessária do selvagem ao domesticado, pois o isolamento não os
privou dos vínculos com as plantas ainda que sua condição pareça configurar algo como
relação com os ditos "cultivares verdadeiros", uma vez que o modo de vida errante é
apreço dos Jamamadi pela mobilidade requer que conciliem as práticas agrícolas com o
seu abandono temporário durante o qual os yamata bara, sobretudo as frutas das árvores
de inverno para extrair o óleo de copaíba ou às temporadas nas aldeias mais afastadas.
das relações com as plantas não cultivadas mostraria uma reversibilidade intermitente
entre sua sociabilidade atual e aquela dos isolados. Não me parece, porém, que os
Jamamadi concordem com essa objeção, uma vez que é justamente através dos
2012) para ordenar suas plantas baseia-se na cadeia hierárquica que as ordena da mais
forte à mais fraca, de acordo com a força associada a sua fisicalidade52 (relativa a seu
(propriedades medicinais e terapêuticas). Deste modo, o tingui seria a planta mais forte,
52
A autora faz referência ao conceito criado por Descola (2005). Os trabalhos de A. Gell, como Art and
Agency (1998), poderiam inspirar uma abordagem conceitual alternativa dos aspectos morfológicos das
plantas não em termos de uma ordenação taxonômica, porém, como índices de suas agências.
146
da mais forte à mais fraca: siro (uxi), wakaro (não identificada), ora (jenipapo), mato
(pequiá), por fim, o tokowisa (não identificada). A autora nota que a força de cada
No caso dos Jamamadi, a experiência pessoal e a relação que se cultiva com a espécie
vegetal individualmente são mais relevantes para definir suas virtudes xamânicas e
espécies numa sequência fixa, muito embora elas sejam comparadas e avaliadas de
corporais a fim de escolher a mais adequada para acompanhar o pajé ou para servir de
Para resgatar a alma do pai de Ronaldo, que havia morrido em Manaus, foram chamadas
almas de plantas adquiridas na cidade porque elas sabem se deslocar no meio urbano e
se relacionar com os brancos; os duplos do timbó, por sua vez, foram chamados para
buscar a alma de Julião que morrera afogado no igarapé Mamoriá Mirim, pois eles são
bons nadadores e conhecem os seres que vivem nas aldeias aquáticas. É preciso saber
quais as plantas adequadas para lidar com o modo de vida do agente patogênico.
53
As formas classificatórias mobilizadas pelos Jamamadi valem-se de dados como dureza, velocidade de
crescimento (lento/rápido), a produção de frutos comestíveis, etc. Há ainda um modo de categorizar as
plantas segundo sua morfologia e que se remete ao extenso debate sobre life forms e classificações
etnobiológicas, tal como desenvolvido por Brent Berlin (1974,1992), dentre outros, mas sobre o qual não
poderei deter-me. Entre os Wajãpi, Cabral (2016) aborda a multiplicidade das taxonomias ordenadas
segundo diferentes princípios, o que vai no sentido oposto ao de conformar um sistema de classificação
único, seguindo o argumento proposto pela autora, penso que também os Jamamadi se valem de sistemas
concorrentes de classificação, como aquele orientado pela oposição entre plantado (por eles) e não
plantado (plantado pelos inamadi), aquele segundo a posição do duplo humano da planta num gradiente
de afinidade, ou seja, plantas consanguinizáveis e plantas inimigas/canibais, ou ainda de acordo com seu
modo de reprodução, por semente (bono) ou clone (matei).
147
Fig. 9 Badá demonstra o caminhar dos duplos do patauá
ruins, feias e malcheirosas agem na ilegalidade, andam nuas, comem comida sem
As plantas cultivadas são centrais na socialidade jamamadi, não obstante, a análise deve
148
contemplar as plantas não-cultivadas por eles. Cito a caracterização de alguns duplos de
espécies vegetais não cultivadas a fim de ilustrar este ponto. A alma da taboca de fogo,
afia abono, considerada forte, é temida por emboscar os caçadores no mato e cortar suas
mãos, seus pés e seu pênis. Esse caçador precisará do tratamento da alma da embaúba,
boka abono, reputada pajé, que irá costurar seus membros, procedimento semelhante ao
enxerto. Saiha abono, a alma da envira branca, não é um yamata, contudo, pode ser uma
ajudante prestativa. Caso alguém cruze com uma sucuri no varadouro, ela é a alma mais
indicada para matá-la. Saiha abono tem um apetite insaciável, ela corta a cobra em
pedaços com seus dentes e os devora bem rápido. Entretanto, como saiha não é uma
planta domesticada, sua voracidade não está sob controle do pajé, então, não se pode
confiar totalmente nela, pois sua agressividade pode voltar-se contra quem a utiliza. Um
episódio vivido numa caçada por Madokihi, contada por seu filho D., enfatiza tal
ambiguidade:
- Eu não posso passar e não tem nenhuma ponte, terei que voltar, disse Madokihi
quando viu uma sucuri atravessada no caminho.
Ele tomou sina, rapé, e pôs sua espingarda de lado. Logo chegou saiha abono e seu
irmão.
-Ah, esse bicho é uma comida boa! disseram os duplos de saiha abono.
Madokihi quis alertá-los:
- Não, cuidado, esse bicho vai matar vocês.
-Vai nada! E os dois caíram na água.
Saiha abono pegou o pescoço e cortou com os dentes. Jogou a cabeça no mato. A cobra
se enrolou nele, o irmão caiu na água para ajudá-lo e cortou a cobra em pedaços. Eles
comeram tudo rapidamente, de uma vez. Quando quase terminaram, Madokihi se deu
conta do perigo que estava correndo e fugiu:
- Eles vão me comer também!
149
alma da mandioca, fowa abono, que tem sempre o rosto pintado, usa tanga e braçadeiras
kanamo feitas com penas de arara vermelha. Apesar de não ser considerada forte, a
mandioca é um dos yamata a quem mais se confia a tarefa de levar as almas dos mortos
para o céu. Para alguns, a alma do tucumã, haso abono, cujo espinho é como uma flecha
que provoca doenças graves, pode ser um espírito auxiliar confiável, outros o chamam
ayawa abono, uma alma considerada "boa" mas que pode agir circunstancialmente de
maneira vingativa.
aos cuidados necessários daquele que a plantou, chamado de abi, "pai". Se o pai cuida
de seus cultivos juntamente com a ajuda de sua esposa e filhos, as almas das plantas
retribuem mandando sua forma vegetal visível produzir frutos em abundância, além de
protegê-los das almas que estão à espreita para roubar-lhes seus korimari. Conforme me
explicou Sabira:
Adoecemos quando não cuidamos bem das nossas plantas. Não pode maltratar nem
cortar. Tem que cuidar bem. Minha mãe e meu pai cuidam de mim, a pupunha vai
pensar. Aí, outra alma vem e ela manda embora, diz que não pode mexer com o papai
dela. Também dá muita fruta para não deixar o pai e a mãe com fome.
54
Há vários casos de grave adoecimento causado pela ingestão de caju, a ponto de muitos
desaconselharem comer esta fruta no período de convalescência. Certa vez, tive uma experiência
desagradável com o duplo desta planta na aldeia Pauzinho. De madrugada, escutei gritos estranhos e
uivos chorosos do lado de fora da casa onde dormia. No dia seguinte, conversando com meus vizinhos,
contei constrangida o que havia se passado na noite anterior. Constrangida pelo medo que sentira, sugeri
que poderia se tratar de uma onça ou outro animal. Eles descartaram a possibilidade de forma categórica,
pois, para eles era muito claro que se tratava do comportamento típico do duplo do caju, que "gosta de
mangar dos outros". Em virtude do meu interesse insistente pelo tema das plantas, o caju que está
plantado ao lado da casa onde eu vivia quis fazer uma brincadeira comigo. Eles aconselharam fortemente
a plantar minhas próprias árvores e cultivares para que eu tivesse filhos que me protegessem.
150
Há alguns anos Moaci plantou uma mangueira no fundo de sua casa, na aldeia São
Francisco. Contudo, as crianças não a tratavam bem, tiravam seus frutos antes que
amadurecessem, batiam em seu tronco e arrancavam suas folhas. Maka abono, o duplo
da mangueira, ficou com raiva da falta de cuidado do pai e derrubou um dos filhos de
Moaci quando o menino subiu em seus galhos. Ele despencou da mangueira e quase
removidos da aldeia para serem tratados na cidade vão acompanhados de algum duplo
de planta que lhes ajudará no tratamento; boka abono, o duplo da embaúba, e o kakao
abono, o duplo do cacau, são os que com frequência vão nestas viagens. Desde então,
Moaci passou a ser mais atento com sua mangueira. Além de sua mangueira, Moaci
passou a ser mais atencioso com os pés de cupuaçu, pois foi justamente uma alma desta
planta, himafo abono, que em outra ocasião ajudou o pajé B. a trazer o korimari de seu
neto: "ele foi à noite num caminho, onde encontrou o parceiro dele, himafo. Então, deu
o nome da criança e pediu para que ele fosse atrás do korimari roubado lá no céu. E
Mesmo distante, o pajé pode mandar um duplo de yamata para ver como estão seus
filhos, como aconteceu certa vez com André quando estava em uma aldeia dos seus
vizinhos Jarawara e um pajé lhe avisou que seu pai havia mandado um duplo de banana,
chamado de filho da banana porque ele é filho do pajé tanto quanto da bananeira da qual
provém, para ver como ele estava. Batisawa Jarawara foi avisar André que "o irmão
dele está aqui, o pai dele mandou ver". Por ora, basta considerar que se trata de uma
relação de copaternidade entre a planta e sua forma ou duplo humano, abono, e entre o
151
Em suas viagens a Lábrea, os Jamamadi costumam pedir filhotes de cachorro aos seus
conhecidos brancos, animal muito estimado como criação, além de mudas e sementes de
plantas dos seus quintais55. Este procedimento, experimento não isento de riscos, é
meio da criação das plantas que estes cultivam, pois, ao se tornarem seus filhos
específicos detidos pelos brancos. Quando Badá ganhou uma muda de coco proveniente
grande atenção à plantinha, a ponto de construir-lhe uma cobertura de palha para melhor
abrigá-la do sol quente. Tal como o cacau trazido pelo missionário há alguns anos, cujo
duplo humano sabe falar português fluentemente porque foi trazido de Porto Velho, a
expectativa é que o duplo humano do coco se torne um espírito auxiliar que ajude com
"chefe dos isolados". Como retribuição, o antigo cacique geral deu uma muda de
pupunha que foi plantada no quintal do coordenador da Frente, de modo que em suas
idas à cidade ele sempre busca ter noticias do crescimento de sua planta. Esse
procedimento se parece com aquele dos Paumari56 que capturam os espíritos vaso em
suas viagens à cidade para torná-los seus auxiliares, e através dos quais conseguem
56
É particularmente interessante o relato do pajé Nonato Paumari sobre as circunstâncias do encontro com
um de seus vaso, chamado de "coronel da Bahia", na praia de Coroa Vermelha (BA), em uma viagem
realizada à convite do CIMI (Bonilla 2007: 352).
152
Les vaso sont des esprits auxiliaires pouvant prendre et apparaître sous plusieurs
formes. Leur forme première, comme celle de tous les existants humains et non-
humains, est la forme/essence humaine. Ils sont comme des Jara et vivent dans des
villes, sous les fleuves, dans des immeubles ou des maisons. On peut les croiser à tout
moment, à Lábrea, à Porto Velho ou à Brasília. (...) Les vaso sont tous, pour le moins,
bilingues. Ils parlent portugais, car ils ont l’habitude de la ville, mais ils ont aussi
appris le paumari avec leurs parents adoptifs. Lorsqu’un chamane adopte un vaso,
celui-ci est intégré à la parentèle. Il appellera la femme du chamane « mère » (mia) et
leurs enfants « mes frères » (oigamina).
justificativas que escutei dos Jamamadi para o interesse em conseguir sementes e mudas
na cidade vai de acordo com a explicação dada a Cabral de Oliveira pelos seus
153
interlocutores Wajãpi que buscavam novas variedades de mandioca em suas idas para
Apresento abaixo uma tabela para organizar e sistematizar as plantas mencionadas com
seus respectivos nomes em jamamadi e em português (salvo raras exceções que meus
interlocutores não souberam informar), bem como algumas das características pelas
154
motoki/gengibre força descomunal, tem noko acompanha o pajé na guerra
koma mundial
bimeta/pimenta tem noko koma, mata com o acompanha o pajé na guerra
olhar. mundial
himafo/cupuaçu bom parceiro do pajé, não é auxilia nos rituais de cura.
muito forte
ayawa/caju ambíguo, muitos desconfiam não acompanha os pajés. Seu
do caju consumo é restrito.
kona/timbó forte, pescador, mata com resgate de almas capturadas
choque. por peixes ou perdidas na
água.
konabi/tingui forte/duro, todos os pajés acompanha o pajé. Sempre é
devem plantá-los em seus mobilizado nos resgates na
roçados. água.
bocawa/bacaba fraco não acompanha o pajé
hawa/patauá tem cabelo comprido, raramente acompanha o pajé
agressivo
yawida/pupunha alto e cabeludo como os vem visitar os parentes na
brancos. trabalha com terra e cantar
copaíba.
edehe/urucum É bonito, usa pinturas não acompanha o pajé
corporais. É fraco
imi/inguá fraco não acompanha o pajé
kimi/milho fraco não acompanha o pajé
fowa/mandioca brava benévolo, cria as almas dos bom companheiro do pajé
mortos no céu
sokobono/cupuí fraco ajuda o pajé
wefe/algodão benévolo e responsável pela cuida das almas quando
criação das crianças falecidas chegam no céu
no céu
kakao/ cacao médico, não fala Jamamadi, auxilia na cura das almas
somente português
mamao/mamão tem revolver, mas não é pajé raramente acompanha o pajé
samira/abacaxi do mato come comidas cruas, é Em geral não faz mal para os
agressivo. Jamamadi. Caça outros
inamadi para comer.
155
saiha/envira branca come de tudo, até cobra. Não apetite imoderado,
cozinha seus alimentos. ocasionalmente pode ajudar
os pajés, mas não são seus
companheiros
haso/tucumã agressivo, não se pode Caça com seu arpão
confiar. (espinhos), mata outros
inamadi
homa/bananeira selvagem fraco não ataca os jamamadi
koba/copaíba não é agressivo, são não acompanha os pajés
perfumados. Respeita as
regras de casamento em suas
aldeias. Não se casam com
Jamamadi, só com gente-koba
wakana/andiroba não é agressivo. Também não não acompanha os pajé
se casa com os Jamamadi.
mowi/castanha do pará benévolo não acompanha os pajé
ora/açacu Forte, comparado a um não acompanha do pajé
delegado
wifi/cedro aguano extremamente agressivo e mata com sua borduna e come
forte
afia/sorva agressiva, provoca doenças ataca os jamamadi
barafa/balala (Fagara sp.) agressiva não ataca os jamamadi, mas
não acompanha os pajés
bicafa (Curarea toxicofera) agressiva não ataca os jamamadi, mas
não acompanha os pajés
yakiyokari (não identificado) usa macacão, espécie de não ataca os jamamadi, mas
roupa de polícia com cinturão, não acompanha os pajés
bota e chapéu.
iha (Strychnos solimoesana) raivoso, mas bom pajé principal alma a iniciar os
mortos no céu
weke/seringa agressivo ocasionalmente ataca os
jamamadi
fasiroma (não identificado) muito agressivo ataca com sua onça
teke/taboca muito agressivo, tem o noko ataca os jamamadi
koma frequentemente com seu olhar
tofi/cipó ambé Agressivo, trata a carne antes caçador, raramente ataca
156
de comer, come cozido.
157
3.2 Ai korimari: as almas dos mortos
Como dito, os espíritos auxiliares do pajé podem ser os duplos das plantas, bem como
visita das almas que abre esta tese, a esposa do pajé D. conversou com o korimari de
seu filho Koeto, que apesar de ter falecido jovem, foi iniciado no céu e hoje acompanha
seu pai. É comum que as almas dos filhos dos pajés sejam entregues aos duplos dos
venenos para serem por eles iniciados postumamente a fim de se tornarem espíritos
auxiliares de seus pais. Foi o que aconteceu com Edmilson, filho do pajé B., criado no
céu pela alma da taioba, makafi abono, a quem também chama de abi, "pai", e depois
entregue ao veneno iha. Assim como Koeto tornou-se um dos auxiliares de D.,
Abordarei com mais vagar a relação de filiação com as plantas e seus duplos no capítulo
seguinte, por ora, gostaria de destacar a importância e duração da relação de filiação dos
pajés com seus filhos falecidos. As almas dos filhos permanecem zelando por seus pais
vindo visitá-los para ter noticias e protegê-los. Recentemente, após a expulsão do genro
e da filha de D. da aldeia Pauzinho, o pajé caiu enfermo por vários dias. De acordo com
ele, Koeto veio visitá-lo acompanhado de outros duplos ajudantes, todos yamata abono.
pelos Jara, brancos, pois as plantas dos Jamamadi não praticam a medicina ocidental e
não usam roupas brancas. No dia seguinte, o pajé estava melhor, a alma de seu filho,
auxiliada pelos médicos-plantas, retirou várias flechas de feitiço do seu peito e das
costas. Não são poucos os episódios em que os pajés contam que foram salvos graças à
158
alma de Koeto, lembrou-se de como, há alguns anos, a alma de seu irmão, Felipe,
também havia salvado o pai deles, Madokihi, do temido duplo do cedro aguano, wifi
abono:
Papai, Madokihi, foi sozinho para o castanhal. Ele cortou castanha durante o dia todo.
Como estava anoitecendo, ele resolveu dormir no seu acampamento e retornar à aldeia
no dia seguinte. Ele tomou banho, atou sua rede e quando se deitou ouviu barulhos
vindos do mato. O barulho ficava cada vez mais próximo. Aquele era o barulho feito
pela borduna do duplo do Wifi, quando ele golpeia as árvores enquanto caminha. Papai
tomou rapé na tentativa de escapar e ir para o céu, mas, por estar assustado demais,
não conseguiu. Ele sabia que o Wifi estava caçando e que iria matá-lo caso o
encontrasse. Papai tentou chamar algum de seus espíritos auxiliares, só que ninguém
apareceu. Wifi já estava bem próximo procurando por ele quando a alma do Felipe
[oka ayo, "meu irmão mais velho"] chegou para ajudá-lo. Felipe foi criado no céu por
iha abono, por isso, tem o noko koma, muito veneno no rosto. Felipe encarou Wifi e
seu olhar acabou com ele. A alma do rapaz levou seu pai para o céu para que ele
pudesse dormir seguro. No dia seguinte, Felipe o trouxe de volta. Ele morreu há muito
tempo e sua alma foi levada ao céu por fowa abono, alma da mandioca. Agora ele está
sendo criado por um missionário para quem trabalha. Iha, sami (abacaxi) e muitas
outras plantas colocaram pedras xamânicas e sopraram sina, rapé, em Felipe, durante
sua iniciação no céu. Quando morreu, a alma de Felipe chegou muito doente e fraca;
foi um missionário (que vive no céu) quem o recebeu e cuidou dele, alimentando-o
com leite. Eu encontrei Felipe no céu, ele está bonito, parecido com um soldado
porque ele usa revólver.
159
3.3 Inamadi towe: os espíritos predadores
categoria ampla que abarca os duplos das plantas não cultivadas pelos Jamamadi, as
almas das cobras, maka, os dafi, entidades de olhar patogênico que habitam as ladeiras,
áreas alagadas e o topo de algumas árvores, além de uma grande variedade de espíritos
pela mata procurando vítimas potenciais, em suma, o inventário é extenso, mas talvez o
fadara, em oposição ao mato, yama kabani, no qual vivem os inamadi towe e as plantas
não cultivadas – lembrando que a distinção entre cultivada e não cultivada é tênue e que
nem todas estas têm um duplo agressivo – é incessantemente refeito no trabalho diário
Contudo, os limites entre a aldeia e o mato, ou entre o doméstico e o selvagem, não são
cultivada/plantada, ser encontrada dentro dos limites da aldeia, às vezes, nas imediações
de uma casa e, ainda assim, ser mantida. Aceitando a presença ambígua de uma espécie
que não se sabe quem plantou – quem é o dono –, eles preferem plantar um de seus
características da vida anterior ao contato com os brancos. Estes espíritos, em geral, não
têm roçados, leia-se, não costumam plantar os mesmos yamata que os Jamamadi, o que
não exclui relações de cultivo com certas espécies, como entre as cobras e a árvore
160
winika, cajurana – da qual se come os frutos com grande parcimônia para evitar irritar
as cobras –, ou entre o wifi, cedro aguano, e um inamadi que vive acampado sob sua
57
Para uma discussão sobre classificações a partir da oposição plantado/não-plantado e roça/floresta
centrada no sujeito e arranjos circunstanciais, ou seja, não em categorias absolutas, conferir Cabral de
Oliveira (2016a).
161
Desprovidos de ferramentas, os inamadi costumam roubar os terçados dos Jamamadi,
não para plantar, mas para fazer arcos, bordunas e flechas para caçá-los. Por isso, cada
contrário dos espíritos que acompanham os pajés, os inamadi towe andam nus, usam
armas rudimentares e não têm documentos. Os espíritos auxiliares do pajé são como a
polícia que anda sempre armada, protegendo a aldeia e fazendo sua segurança. Elas
estão sempre a caça dos Jamamadi para lhes roubar a alma/coração para comer.
coração da vítima pelo inamadi towe que está caçando e que ao se deparar com um
Jamamadi o verá enquanto animal de caça, bani. O inamadi flecha sua vítima para
comê-la, as vísceras serão postas na beira do fogo para assar, aqui a atenção é dada ao
coração, órgão que precisa ser preservado para garantir a vida póstuma. É preciso que o
pajé recupere a alma/coração antes que esta asse ou seja completamente devorada,
Alguns pajés contam que os espíritos das sucuris, makehe, fazem roçados com esmero,
cuidando para manter os terreiros limpos onde vivem. É preciso ter cuidado quando elas
saem para caçar porque seu olhar é parecido com um imã que atrai suas presas. Manoel
e Makari contam que saíram para tirar macaxeira e banana no roçado que tinham feito
no igarapé preto quando no caminho depararam-se com uma cobra de olhos bem
arregalados. Manoel atirou cinco vezes, porém, os tiros foram insuficientes para matá-la
porque "makehe é como gente mesmo". Passados alguns dias, eles voltaram e
162
encontraram a cobra muito irritada, "fazendo barulho parecido com motor". Dizem que
ainda atiraram algumas vezes e erraram todas elas. Foi somente quando chamaram os
pajés B. e T. que a cobra finalmente foi morta. Manoel adoeceu depois das tentativas de
matá-la, indício de que se tratava de um inamadi e não de uma cobra qualquer. Durante
mais de um mês o pajé Raimundo Soares procurou com seus auxiliares a alma de
Manoel até encontrá-la vivendo nos subterrâneos, wamibodi, capturada pelas almas das
cobras makehe.
Alguns dos duplos das plantas que os agridem com mais frequência são a taboca (tipo
de bambu) de fogo, afia, as tabocas teke, hado (também as variedades hado bili e hado
kosi) e yodo, abundantes nos caminhos próximos aos igarapés; as árvores fasiroma (não
identificada), weke (seringa), wifi (cedro aguano), yowa (bacuri), etc. Com a taboca
hado eram feitas as facas, também chamadas de hado, antes da chegada das ferramentas
de metal, a respeito do duplo desta planta conta-se o mito de hado abono58 – esta versão
foi contada por Daniel – que enfatiza seu apetite imoderado e o canibalismo:
Hado abono (alma da taboca com a qual faziam a faca) vivia sozinho em sua casa no
mato. Numa caminhada, ele escutou rapazes, yetene, e moças, atona, brincando de
kakata [brinquedo semelhante a uma peteca] em outra aldeia. Ele resolveu ir até lá e
pedir uma das moças em casamento já que ele vivia só. Ele sabia enganar bem, então,
o pai entregou uma filha sua e deu um paneiro com massa de mandioca. Hado usava
braçadeiras de penas de arara nos braços. Chegando em sua aldeia [ele havia feito uma
canoa de casca de jutaí], ele mandou a moça ir tirar lenha. Quando ela voltou, ele
puxou o cabelo dela, mas a moça achou que ele estava brincando. Então, ele voltou a
puxar seu cabelo só que dessa vez com força. Puxando a cabeça dela para trás, ele
58
Cf. a versão Jarawara do mito na tradução interlinear de Vogel (2012:398-452).
163
cortou seu pescoço com sua faca hado bem afiada. O sangue que escorria, ele aparava
com uma vasilha. No fogo, ele esquentou a massa de mandioca misturada com o
sangue e fez uma farofa. Mas mesmo depois de comer, ele continuava com fome. Ele
colocou o intestino dela no fogo e foi virando até ficar no ponto. Ele comia com as
duas mãos porque tinha muita fome. Em seguida, ele foi desmembrando o corpo da
moça, que era muito gorda. Ele assou suas pernas e braços. Ele comeu tudo. O resto
durou pouco. Ao final de três dias, ele não tinha mais nada para comer e a fome era
grande. Hado abono voltou na aldeia da moça e disse que sua mulher estava
chamando a irmã. Lá, eles assavam muita carne de caça, caititu, queixada, anta, etc.
Quando voltaram para sua aldeia, ele mandou a cunhada ir tirar lenha. Ela foi sem
suspeitar de nada, embora tenha desconfiado ao ver somente uma única rede na casa.
Ela vai acender o fogo e ele aproveita para matar a moça com uma paulada na cabeça.
Hado abono repete a comilança que novamente dura somente três dias. Novamente,
ele vai até a casa de seu sogro dizendo levar um recado da filha. Há muito peixe em
sua aldeia, por isso, a esposa pede para que a outra irmã o acompanhe. Ela vai com
ele, mas assim que chega desconfia que algo está errado, pois vê apenas a rede de uma
das irmãs e ela está fria. Hado abono manda a moça tirar lenha e diz que sua irmã já
está chegando. Ela então descobre os crânios das duas irmãs bem escondidos na palha
do telhado. As lágrimas vêm e ela se apavora. Hado chama de novo a cunhada, mas,
ela foge. A moça fura uma de suas canoas e vai embora com a outra. Hado abono
corre para a beira, diz que sua irmã chegou e está chamando. Ela foge e chora em sua
viagem de volta. Hado segue faminto, ele não aguenta e corta um pedaço de si, com
uma vasilha apara o sangue e com ele faz uma farofa. Ele não caça nada, só come
gente mesmo. Não doeu, ele não sente nada. E sua fome continua. Então, ele corta
uma perna e moqueia. Conforme a fome apertava, Hado abono ia cortando partes de si
mesmo para comer. Quando só sobrava um pouco de sua carne, seu cunhado apareceu
Hado.
164
Das almas do yowa (não identificada), conta-se que criam onças, mantidas presas com
fortes correntes. Apesar de agressivos, esses duplos não soltam suas onças sobre as
pessoas, mas as levam amarradas em suas caçadas, diferentemente das fasiroma abono
que carregam suas onças nas costas com uma tipóia e as jogam em cima de suas
vítimas.
165
Capítulo 4: A guerra mundial das gentes-planta
"vítimas"; no passado, dos ataques brutais perpetrados, sobretudo pelos Apurinã e Juma,
contra os quais não lhes restava alternativa exceto a fuga constante; e, no presente, dos
assédios dos espíritos agressivos inamadi e feitiços lançados pelos povos vizinhos
contra os quais protegem-se com a intervenção de seus pajés, Jamamadi e Plantas. Neste
sentido, o intuito da ação xamânica não é jamais iniciar um conflito, o que corrobora
com a defesa de atitudes mansas e pacíficas, mas tão somente responder ou vingar um
ataque externo.
"Aqui ninguém não briga", "antigamente, a gente vivia fugindo", "nós não gostamos de
falar com força/raiva"59, são frases comuns que escutei ao longo do campo, ditas com o
propósito de marcar as diferenças em relação aos vizinhos cuja postura mais combativa
59
A "fala com força/dura", ati kita, em oposição a ter uma "fala boa", ati amosa, se remete ao contraste
cada vez mais marcado entre modelos distintos de chefia. O cacique ou liderança deve escutar e ponderar
sobre o posicionamento dos seus parentes nas reuniões, ele se manifesta no início e no final sem se
sobrepor aos demais, sem querer "tomar uma decisão" ou "tomar a iniciativa". Sua opinião importa menos
nesses momentos do que sua capacidade de sintetizar o pensamento dos demais. Tanto é assim que nas
reuniões têm-se a impressão de que ninguém decidiu nada. Os pedidos geralmente são mascarados, pois
seria demasiado ofensivo ser direto. Se alguém convoca uma reunião, ela não acontece ou tarda para
acontecer. É indecoroso querer submeter quem quer que seja a ordens. Da fala do chefe jamais emana
autoridade, caso ele sucumba a tal vaidade, essa é sua ruína. Aqueles que, por outro lado, são impositivos
e irritadiços, falam alto na tentativa de mimetizar o jeito dos brancos, transformam-se em motivo de
chacota e fofoca. Uma das lideranças, certa vez, tentando mimetizar o modo dos brancos de se reunir,
convocou seus parentes a comparecer em sua casa num determinado horário. Evidentemente, ninguém
apareceu. Ele resolveu usar o seu berrante para chamá-los. Seu gesto não poderia ter sido mais
inadequado segundo a etiqueta política jamamadi. Ele soprou muitas vezes, mas, quanto mais ele soprava,
mais as pessoas faziam questão de demonstrar indiferença.
166
que pese contradição moral, num esforço contínuo, as condições de possibilidade da
vida. As plantas estão em guerra no céu, uma "guerra mundial"60, mas vale dizer que os
Mais uma vez, os Jamamadi são veementes em dizer que as ações de seus pajés somente
respondem a uma agressão, supondo que não a inicie, muito embora paire incerteza e
ambiguidade nesta consideração, como mostram o respeito e a reserva no trato com tais
violência do xamanismo aos seus espíritos auxiliares, ou seja, é como se não houvesse
problema o pajé mandar matar alguém desde que não seja ele próprio a realizar a
execução.
meteorológicos e celestes: estrelas cadentes são bombas lançadas entre aldeias no céu –
nos dias subsequentes a este evento é comum que muitos caiam enfermos, como
presenciei certa vez, resultado de um desses ataques, ainda que distante ou não dirigido
60
Em outro contexto etnográfico, Marques (2015) menciona que os Hupda, rio Negro (AM), descrevem
alguns de seus conflitos também recorrendo às imagens da "guerra mundial", semelhante àquela dos
brancos.
167
à terra; ventanias são efeito do pouso e decolagem dos aviões; tempestades, trovões e
conflito entre as plantas, não exclui outros seres, apenas enfatiza seus principais
expressão, uma hipótese seriam as imagens de guerra provenientes dos filmes de ação,
guerra mundial por sua brutalidade e dimensão, uma vez que implica diferentes
Os recursos bélicos mobilizados não ficam atrás daqueles dos filmes: bombas, armas de
calibres variados, aviões, facas, além das armas tradicionais como terçados, lanças,
olhar dos pajés que têm o noko koma, o olhar envenenado. A potência do olhar de
outra arma, sua mirada é o suficiente para exterminar seu inimigo. Nesta guerra de
plantas, teme-se menos ser visto por um jaguar que não conseguir se esquivar e ocultar-
teke. A seguir, os três cantos xamânicos do pajé Siko, cantados por seu filho Salgado,
descrevem cenas de guerra nas quais o duplo da planta kiya, um tubérculo do gênero
Casimirela que era consumido antigamente, rasteja com o corpo rente ao chão para
168
ocultar-se no combate; no canto seguinte, o duplo do teke persegue seus inimigos,
abatendo-os com seu olhar; por fim, atacado por sua própria onça de criação, que
carrega consigo na tipóia, a forma humana da planta fasiroma busca por novas vítimas
Wane toki momo winawa Foi atrás [perseguiu] onde eles estavam
Owa dai mowana owawi Eu vou lutar com vocês quando encontrá-los
Dai fori manahi teke abano deitem-se [cair como efeito de seu olhar], disse
o duplo do teke
Ati wahe "sia sia" teke abono a ati "sia sia" [onomatopéia para a queda], são as
palavras do duplo do teke
169
Yome ya hohoro a onça arrasta
Nos diálogos noturnos do pajé com seus espíritos auxiliares, ele pedirá notícias dos
parentes falecidos e solicitará ajuda caso algum parente esteja enfermo, então, entregará
a flechinha de feitiço retirada do corpo do paciente ou ele mesmo irá carregá-la consigo
em sua viagem para o céu onde irá brigar acompanhado de seus auxiliares com aqueles
espíritos inamadi que roubaram a alma. Tais eventos são descritos duplamente como a
introdução de uma substância patogênica visível segundo formas distintas, sendo a mais
referências que não coincidem, embora estejam vinculadas: após a extração do objeto
do corpo do doente, ele parte com seus espíritos auxiliares para manakonebonane,
170
"vingar-se", "dar o troco" ou "brigar na guerra mundial" e resgatar a alma-coração.
Novamente, toda agressão é uma vingança que se justifica como resposta a uma ação
não iniciada pelos Jamamadi. Jamais escutei acusações de feitiçaria que pesassem sobre
os parentes corresidentes. Ao que tudo indica, os feiticeiros são pajés vivos de outros
selvagens, não cultivadas. Não custa lembrar que os desdobramentos dos eventos
implicam que sejam analisados considerando perspectivas não totalizantes, pois, uma
vez que soprar o feitiço tem o efeito correlato do roubo da alma, a agressão xamânica
implica igualmente uma decalagem de pontos de vista, tal como dá conta o relato sobre
do pajé Maoyetekanawi:
Quando a fruta cai e fica no chão, nós sentimos o cheiro e vamos devagar procurando,
por isso o pajé recebeu esse nome, Maoyetekanawi [ou seja, trata-se de uma alma de
planta]. O pai dele de verdade morava no céu, mas ele vinha sempre visitar o filho. O
pai dele gostava muito dele. Ele falava para sua mulher:
- Eu gosto muito do meu filho, eu tenho que visitar ele. Eu quero conhecer a mulher
do meu filho [o pai dele é pajé mesmo].
O pai de Maoyetekanawi sempre vinha para a terra soprar nele até que o filho se
tornou um pajé forte e foi para o céu.
- Eu sou pajé de verdade, agora não brinco mais, disse Maoyetekanawi.
O pai chamou vários inamadi para ele conhecer. Agora ele não precisa mais de seu
pai. Ele falou para o inamadi [na sugestão de Salgado, que me ajudou na tradução, o
termo "inamadi", neste contexto, poderia ser traduzido por "freguês"]:
- Você pode me acompanhar e acompanhar meu pai também, disse Maoyetekanawi ao
inamadi.
- Papai, você tem que dormir, falou o inamadi para o seu chefe. Eu estou indo embora,
disse a alma. A alma foi embora e o pai de Maoyetekanawi voltou para sua casa.
O pai de Maoyetekanawi escutou uma buzina avisando que teria o ritual ayaka no céu.
Ele resolveu ir e seguiu por um grande varadouro; no meio do caminho ele se sentou
para descansar numa sacopemba. De repente, o pai de Maoyetekanawi caiu na lagoa
ao ser perseguido pelo cão de Kawehe abono, cunhado de Maoyetekanawi, que estava
caçando. Ele tenta se esconder, mas Kawehe abono acha que é uma anta e acaba
flechando-o. Ele vira anta mas não é anta. Kawehe abono leva o corpo do pai de
Maoyetekanawi para comer no ritual do céu.
- Cadê a panela? pergunta Kawehe abono quando chega na aldeia
Eles tratam a carne e comem anta. Só que era o pai de Maoyetekanawi. Na festa
ayaka, Maoyetekanawi pega um pedaço da carne de anta, que era seu pai. Da carne,
sai a voz do pai. Então, o filho cospe. Do corpo do pai só sobrou o coração.
Maoyetekanawi recupera o coração e o leva para o hospital, onde boka abono, o duplo
da Embaúba, vai consertar para ele nascer de novo, como uma bananeira. Ele renasce,
brota de novo. O filho tira dinheiro para pagar o hospital. Depois que o pai saiu do
171
hospital, Maoyetekanawi vai falar com outras almas para se vingar na guerra mundial.
Ele chama Kawehe abono para olhar uma casa [ele engana bem] e prende o cunhado
com ajuda de seus companheiros. Kawehe abono não conhecia cadeia, por isso, não
desconfiou de Maoyetekanawi. Polícia é alma de árvore. Kona abono, a alma do timbó
também ajudou o pajé, ela ficava na porta da cadeia para dar choque, caso Kawehe
tentasse sair. O cunhado ficou cinco anos preso. Quando ele saiu estava muito magro.
Ele não tomava água boa, só água quente e tinham outros castigos [caso contrário, ele
não pagava a morte do pajé]. Ele quase não tinha mais sangue. A alma da embaúba,
boka abono, refez, costurou como roupa, o pai de Maoyetekanawi no céu (Badá e
Chagas, 2015).
terão de desempenhar, leia-se, eles são chamados tendo em vista suas habilidades
ocorrerá. Se uma alma for capturada na água, é preciso chamar almas que saibam nadar;
no caso da alma estar na cidade, uma alma que saiba falar português é a mais indicada.
morfofisiológicas das plantas, porém, sua ação depende igualmente da relação do pajé
com aquela alma. Não é um dado objetivo, ainda que não inteiramente aleatório.
No relato, boka abono faz novos membros, comparados aos enxertos, no hospital do
céu, para aquelas almas que tiveram seus membros amputados em guerra. Contudo,
boka não é médico justamente porque não é Jara, branco. Por isso, o interesse que
experimento de controle e amansamento dos Brancos por meio de suas plantas. Esta é
uma prática importante para o xamanismo, pois através da adoção dessas espécies a rede
cupuaçu são xamãs prestigiados, porém, não sabem curar as enfermidades dos brancos,
de modo que é preciso adotar espécies provenientes da cidade para que o xamã possa ter
172
espécies desconhecem. As almas do cacau (de uma árvore cuja semente foi obtida em
Porto Velho) costumam ser chamadas para tratar os pacientes internados na Casai de
Lábrea, elas também dirigem um hospital no céu para onde muitos Jamamadi vão em
seus sonhos em busca de tratamento; segundo B., elas são ortopedistas competentes.
Outro caso foi o roubo da alma do pajé Siko por uma alma de seringa, Weke abono. O
pajé trabalhava em seu roçado e saiu de casa sozinho, sem os seus espíritos auxiliares.
Repentinamente, Weke abono apareceu e o convidou para visitar sua aldeia: "bora na
minha casa para comer, naki, "amigo/companheiro"? Depois você volta". Siko deixou o
seu terçado para trás e o acompanhou. Havia araras brincando numa árvore. Weke
abono as matou com sua zarabatana. "Nós vamos comer quando chegar na minha
aldeia", ele falou para Siko. O pajé não desconfiou que weke não se referia às araras, ele
é que seria a refeição. Ao chegarem na aldeia, muitas pessoas apareceram para comer a
arara e nada foi oferecido a Siko. "Ah, naki, a arara é muito pequena", disse Weke
abono. A alma de Weke oferece água para Siko, mas era leite de seringa, não água: "Ah,
esqueci de te dar água". Ele deu um copo com o leite para o pajé beber. Siko se lembra
dos seus vigias, espíritos auxiliares, e logo quatro vieram correndo até a casa de Weke
abono. Siko estava quase terminando de beber o que achava ser água, quando seus
seguranças apareceram e tomaram o copo de suas mãos. O leite da seringa fez mal para
os inamadi que vomitavam muito. "Pajé, essa não é sua casa para você passear", disse-
lhe uma de suas almas. "Eu nunca mais venho para cá", concordou Siko. Weke abono
estava com muita raiva, ele dizia: "quase nós o comemos, devíamos ter matado ele
173
Siko foi morto em 2011 pelas almas enviadas pelos pajés de um povo vizinho. Segundo
seu filho, ele estava no porto trabalhando em sua canoa, sem seus espíritos auxiliares,
disfarçado. Não era seu sobrinho, mas um inamadi enviado para se fazer passar por ele.
Porém, sua alma já tinha sido levada. Siko só teve forças para voltar e avisar seus filhos,
pois sua "casca" ou corpo já estava vazio. Ele sabia que daquela vez não tinha jeito.
Hika atibodi kitara, "o coração dele não tinha força". A alma de Siko foi comida pelos
inamadi e parte do seu coração foi resgatado por suas plantas auxiliares. Algo
semelhante aconteceu com a esposa do cacique da aldeia Embaúba. Ela estava voltando
por um caminho quando encontrou seu filho A., que na época estava vivendo na aldeia
de um povo vizinho. O filho deu um pouco da coca-cola que levava para a mãe beber.
Por sentir saudade, ela estava exposta aos ataques dos inamadi. Na verdade, tratava-se
de um inamadi disfarçado que queria levá-la para sua aldeia. O inamadi com a
aparência de seu filho disse que queria agradecer pelo brinquedo kakaro que ela havia
feito para ele. Logo que bebeu o refrigerante, seu peito começou a doer. Ela chegou em
casa e perguntou pelo filho. Ninguém sabia dele, pois fazia tempo que o rapaz não
aparecia para visitá-los. Os pajés não tiveram tempo de ajudá-la. Até hoje, o filho de
dela é responsabilizado por sua morte, consequentemente, seu trabalho como agente de
saúde indígena, AIS, não é aceito por muitos, que recusam seu atendimento.
174
4.1 Beterina e os médicos Kakao abono
A narrativa abaixo foi contada por Beterina, cunhada (WZ) do pajé B. Há alguns anos,
ela foi removida de avião da aldeia São Francisco por uma equipe da Sesai em virtude
de seu adoecimento repentino. Segundo ela conta, os médicos desacreditavam que seria
possível sua recuperação. Apesar disso, ou justamente por causa do veredito dos
brancos, o pajé B. mandou suas almas de cacau acompanhá-la durante sua internação na
Casai (Casa de Saúde Indígena). "Eles são muito melhores do que os médicos de
Lábrea", frisava o pajé B. enquanto sua cunhada me contava sua história. A versão
Eu estava doente, desmaiada, por isso, não vi quando embarquei no avião. Quando o
avião chegou em Lábrea, eu também não vi. Não vi pousar. Eu não me dei conta
quando me deitaram na cama do hospital. Eu não vi as pessoas que me levaram para o
hospital. Eu acordei dentro da Casai. Um Jara me levou para a Casai. Me colocaram
deitada numa cama e eu não notei. Eu acordei um pouco e foi aí que eu vi as almas
chegarem, não eram médicos. Eles me chamavam para eu acordar.
- O doutor te deu remédio? as almas me perguntaram.
- Não, ele ainda não me deu remédio.
- Eu vou passar "pomada" na sua perna, na sua mão e no seu nariz. Quando eu passar
o remédio, você não pode dizer nada [para os médicos], falaram as almas.
Uma das almas passou o remédio em todo o meu corpo, no pé, nos braços, no rosto,
no nariz. Depois que ele terminou de passar o remédio, ele ficou no pé da cama me
olhando. Então, de repente, eu comecei a me sentir melhor, a mexer as mãos. A alma
riu.
- Ah, agora estou bem! eu disse para a alma.
- O meu trabalho não é doutor, saúde, eu não sou médico. Essa doença que você tem
não adianta tomar remédio. Você já morreu, o kakao abono me disse. Enfermeira,
doutor, operação, não é meu trabalho. Você sabe quem eu sou? Eu fico perto de você,
eu sempre te acompanho. Eu não sou doutor. Eu venho enviado por outra pessoa, teu
cunhado me plantou. B. é meu abi, pai.
Essa alma não usava chapéu, ele tinha a franja bem cortadinha.
- Agora eu estou vendo [reconhecendo as pessoas], disse Beterina quando acordou.
Quando ele voltou de novo, o kakao abono, perguntei se ele era doutor e ele disse que
não.
- Agora, eu vou embora para a casa do meu pai, você aguarda aqui que nós
voltaremos. Quando eu for embora, eu vou pegar minha dormida.
Mas, ele não voltou de novo.
- Uma mulher parecida com Jara virá te visitar, ela é bem bonita, de cabelo comprido
175
[a alma do kakao não podia ficar muito tempo]. Eu vou mandar ela vir, falou o kakao
abono e foi embora.
A mulher chegou, pegou a minha mão e perguntou:
- Como está sua doença, melhorou? me perguntou a mulher
- Sim, eu estou melhor, disse Beterina.
-Você não vai adoecer mais, meu irmão que veio cuidar de você?
- Sim, eu vi.
Ela andava muito, saia e voltava [não era como a enfermeira, era a irmã do kakao
abono]. Ela foi embora e não voltou. Agora a enfermeira branca mesmo, Jara yokana,
chegou para cuidar de mim.
-Você tomou remédio? falou a enfermeira Jara
- Não, ainda não. Eu não tomei remédio porque você não me deu.
- Nós entregamos o remédio para o teu marido.
- Tua mulher não tem doença não, o médico Jara falou para o Luís, meu marido. Se
tua mulher estivesse com doença grave, nós daríamos remédio para ela. Se tua mulher
se sentir mal, você me chama na minha casa.
- Não, eu não posso ir até a sua casa.
Eu não tomei nenhum remédio, foram as almas do kakao que me ajudaram. O doutor
não cuidou de mim, foram as almas que me deram remédio antes. Eles não voltaram
na Casai. Quando eu melhorei, saí e dormi três dias na casa do missionário.
- Amanhã, vamos voltar para a aldeia, falou o Luís [marido de Beterina].
Essa fruta, awabono, é muito boa para mim, vocês não devem mais comer seus frutos
verdes, nem jogar paus, maltratar, eu falava para as pessoas. Ele estava me
acompanhando na cidade. Eu "sonhei"61 com ele e melhorei. Talvez eles voltaram
antes para a aldeia porque eu não voltei a ver eles. Eu vim depois. Era como um
sonho. Talvez eles estavam comigo e eu não vi. Quando cheguei, B., meu cunhado,
falou que eles estavam comigo. Agora eu conheço as almas do kakao e sei que elas
são boas.
61
Desenvolvi o tema em outro lugar, ver Shiratori (2013).
176
4.2 O sonho do pajé B. no hospital celeste da alma da Embaúba
A saúde do pajé B. vinha se deteriorando nos últimos anos, todavia, apesar das
recomendações dos missionários e dos parentes crentes que condenavam seus vínculos
almas dos mortos e das plantas. Sob pretexto de cumprir com suas obrigações – não
somente profissionais, pois alguns também o faziam por motivações religiosas –, muitos
funcionários da saúde indígena endossavam o coro contrário ao uso, que eles chamam
que ele pode causar à saúde. Contraditoriamente, para muitos deles, não causa igual
para evitar ser repreendido como por saber que, via de regra, os sintomas são tratados
sempre com o mesmo analgésico. Apesar das minhas insistentes recomendações para
ele procurar os enfermeiros, B. teimava em não fazê-lo. Ele sentia dores constantes e
passando grande parte do dia deitado em sua rede. Contudo, qual não foi a minha
surpresa quando, inesperadamente, recebi uma visita sua na época em que estava
caminhada desde a aldeia São Francisco, onde B. mora. Fazia menos de uma semana
que não o via, então, me espantei com seu vigor, não parecia que há pouco tempo sua
177
oferecido pelos enfermeiros. Ele negou e passou a me contar que foi graças à viagem
que fizera em sonho ao hospital das almas do kakao que ele estava melhor:
Eu estou melhor, curado, porque sonhei com o kakao abono. No meu sonho, eu fui
para o hospital do kakao abono no céu. Encontrei com a alma do kakao e perguntei
se não haveria hospitais por lá, onde ele mora. Kakao me levou para um lugar onde
me tratou, como nos hospitais dos Jara. Me mandaram para uma sala onde tiraram
as flechas de feitiço, tinham muitas flechas. Quando entrei na sala, tinham duas
enfermeiras, uma delas era irmã do médico kakao que fazia o trabalho, como um
pajé. Ele passava a mão assim na minha canela, perna e pés. Ele tirou flechas bem
pontiagudas. Do peito, das costas e do rosto kakao tirou o feitiço e me mostrou. Eu
estava deitado como no hospital. Quando acordei, estava me sentindo bem melhor
e não demorou para eu ficar forte de novo. Não foi a primeira vez que me tratei
com o kakao, ele é muito bom, melhor que médico! Foi por isso que vim passear
hoje.
178
Capítulo 5: O pajé como modelo do horticultor
A partir da discussão apresentada, faz todo sentido que no entorno da casa de B.,
reputado como um dos pajés mais sábios, cresçam laranjeiras, limoeiros, abacateiros,
buritis, embaúbas, abacaxis, maracujás, melancias, taiobas, batatas e carás, para citar
proximidade das plantas com as casas, elas crescem formando divisões, circunscrevendo
os espaços dos diferentes núcleos familiares, não como muros alheios e externos – as
chamadas cercas vivas –, mas como parte integrante do parentesco. O que explica
mundo vegetal quando de minha primeira temporada na área indígena (ver introdução).
Deixar de ver as plantas sob o epíteto “paisagem”, um ruído de fundo das etnografias, é
crucial para o argumento que construo nesta tese. Não almejo voltar ao tema da seleção
antrópica como fator fundamental para construção do espaço, o ponto que interessa
externas às relações sociais. Não há tal paisagem natural tomada como espaço a-social,
inabitado e isolado. Reitero que minha intenção não é ponderar sobre a pertinência da
62
Os elementos do relevo - tais como as ladeiras, os morros e os vales -, as pedras, os rios, os lagos e os
igarapés têm importância secundária para o argumento.
179
noção de paisagem para os povos ameríndios das Terras Baixas da América do Sul, mas
plantas no primeiro plano da análise, sem que estas formas de vida se subsumam à
roçado, em observar que os brotos e botões escondem o vigor das grandes árvores, em
63
Como sugeriu Coccia (2013:212), as questões biológicas são igualmente estéticas quando se trata de
pensar a vida das plantas: "[o] que chamamos crescimento e destruição são as maneiras e as formas
infinitas de dar-se forma. A vida vegetal é o dar-se forma. A vida que se abrevia no dar-se forma para si
mesma. É o lugar onde cada problema biológico é problema estético, e cada problema estético é problema
de vida ou de morte". Em livro recente, Coccia segue o raciocínio: “La plante n’est pas qu’un
transducteur qui transforme le fait biologique de l’être vivant en problème esthétique et fait de ces
problèmes une question de vie et de mort” (Coccia 2016:27)
180
Ao longo dos meses de campo, pude observar o pajé B.64 tratar com devoção cada uma
das árvores plantadas no entorno de sua casa65. Ele dizia que elas são seus filhos e filhas
e suas almas deveriam protegê-lo contra o assédio dos espíritos que rondam a aldeia
seu segurança, sua vigilância; e sua forma física visível é também um habitante da
aldeia, por este motivo eles faziam tanta questão de apresentar-me suas árvores e
cultivares, bem como seus respectivos donos, desde o início do campo. Cuidando bem
das plantas, elas montarão guarda para evitar a aproximação de espíritos indesejados e
retribuirão com partes de si, a saber, os frutos, as raízes, as folhas – “meu papai cuidou
bem de mim, não vou deixá-lo passar fome”, elas dizem nos cantos (de queima do
roçado)66. Assim sendo, vale para os Jamamadi a caracterização já feita por Maizza
sobre o pajé Jarawara segundo a qual “um bom xamã seria antes de mais nada um bom
cultivador” (2014:506).
64
A quem passei a chamar abi, pai, quando uma de suas filhas pediu explicitamente para eu fazê-lo, nesta
altura, todos já se referiam a mim como filha de B., contudo, eu até aquele momento me sentia
encabulada de usar os termos de parentesco.
65
A lenha que utilizam geralmente são os restos da queimada do roçado que paulatinamente são
transportados para a aldeia. Recém-cortada, a lenha verde além não ser tão adequada para o uso,
sobretudo culinário, é inapropriada do ponto de vista moral. Somente a madeira morta, preparada pelo
fogo pré-culinário da coivara, é que pode ser queimada. O uso de madeira viva/verde é um ato de
agressão contra as almas dessas árvores. Contrariar essa recomendação talvez seria, como apontou Lévi-
Strauss para os Yurok e outros povos da Califórnia, um ato de canibalismo cometido contra o mundo
vegetal (2004[1964]:180-181).
66
O que faz lembrar a lógica da adoção pelos patrões entre os Paumari, na qual os filhos adotivos mantêm,
ao mesmo tempo, a posição ambígua de empregados alimentando seu pai/patrão em troca de ser protegido
por ele (cf. Bonilla 2005, 2007, 2013, 2016).
181
relacionará de forma efetiva com os espíritos-de-planta uma vez que estiver morto; já
o xamã não somente se relaciona com eles enquanto vivo, mas também exerce um
certo controle sobre eles (Maizza 2012:76).
produtividade dos seus roçados. É essencial que ele tenha muitos espíritos auxiliares, de
diferentes espécies, visto que cada um é dotado de habilidades e forças específicas, isso
para limpá-los, para conversar com as almas dos cultivares e para olhá-los, kakatoma,
ação fundamental para o crescimento (ver capítulo 8). A escolha da área para o novo
roçado, a derrubada da vegetação e a queima são tarefas que cabem exclusivamente aos
homens; até o plantio, a participação feminina limita-se aos cantos que são entoados à
beira do roçado, sem adentrá-lo. Chegada a hora do plantio, a área é dividida entre os
membros da família que ali farão, de forma interdependente, o seu roçado. A despeito
de trabalharem juntos, o conjunto total das plantas ou partes que compõe o fadara,
roçado, é referido como propriedade do pai que, no limite, é o seu dono, hiyi.
núcleo familiar, já que não é recomendado expor ao olhar dos outros os próprios
cultivares. Isto explica a desconfiança suscitada por meus pedidos para conhecer os
como mão de obra para ajudar nos trabalhos agrícolas porque, uma vez tendo plantado
meus cultivares naquele local, minha presença se justificaria. No entanto, digo que a
solução foi parcial, pois acabei criando um novo problema, agora com filhos-planta
182
espalhados por tantas roças, minhas obrigações ultrapassaram a capacidade que eu tinha
de cumpri-las.
Isto se deve ao fato das almas das plantas cultivadas na terra pelos Jamamadi estarem a
eles vinculados por laços de filiação, em outros termos, como seus filhos-planta, é
crescimento. As almas das plantas zelam por seus pais e irmãos permanecendo sempre
por perto para impedir que os espectros dos mortos se aproximem para assediá-los, para
vegetação dos roçados e aquela que cresce em abundância perto das casas são
não é nada fortuita. Como me explicou Berinawa: “vocês não têm polícia? Então, essa é
vegetação que prospera em toda a aldeia não é fruto de negligência, pelo contrário, é
também uma forma de reverter sua potência predadora a favor dos horticultores
Jamamadi.
183
plantae, ou um termo englobante o suficiente para abarcar a diversidade vegetal67. Seria
necessário um estudo detalhado com foco nas classificações botânicas nativas e seus
que foram plantadas pelos Jamamadi, os yamata, e aquelas que ninguém sabe quem
plantou, quer dizer, que crescem no mato, kabanika-ya, sem requerer os cuidados dos
Jamamadi, como é o caso da maioria das árvores e palmeiras, awa. O mais comum é
que as plantas sejam referidas pelo nome da espécie ou de sua variedade, mesmo em se
tratando dos venenos, cuja categoria mais ampla pode ser referida como tehe, "veneno",
tanto é assim que dizem em português "temperar o veneno". O termo que utilizam para
animais, em geral os mamíferos, são chamados de bani, que também significa "presa",
"caça"; os pássaros seriam bani bidi ou “presas pequenas”; por fim, os peixes são
chamados todos de aba, termo que também é usado para a matrinxã, espécie
67
A ausência de um termo genérico para "planta", categoria com alto grau de inclusão, assim como para
outras categorias taxonômicas abstratas, de ampla aplicação, é mencionada por diversos autores: conferir
para os Krahô (Morim de Lima 2017, nota 7), os Huaorani (Rival 2012:133), os Wajãpi (Cabral de
Oliveira 2006), dentre outros.
184
continuidade entre xamanismo, guerra e caça. No que se refere à articulação entre
guerra enquanto inversão perspectiva do ponto de vista das presas (Lima 1996, 2002),
intencionalidade humana aos animais à exemplo de outras cosmologias que negam tal
1986:245-246 apud Viveiros de Castro 1996), embora esse também seja o caso dos
Sabe-se que o perspectivismo não se aplica a todos os animais, mas incide mais
constritoras e aves de rapina, animais carniceiros, como os urubus, bem como sobre as
presas dos humanos, como queixadas, caititus, peixes etc. Por não se aplicar igualmente
68
Excetuando-se as chamadas "plantas de poder" de efeito alucinógeno, cujo interesse, pode-se dizer,
deriva de seu uso xamânico e cinegético.
185
predação constitui o contexto pragmático e teórico propício ao perspectivismo (Viveiros
de Castro 2002:353). Não obstante a presença indelével das plantas nas cosmologias
ameríndias, seu lugar é coadjuvante nas análises, quando não ocupada por uma versão
aplica a todas as plantas como registra Viveiros de Castro na seguinte nota: “nas
personificação das plantas parece ser ao menos tão saliente quanto a dos animais” (idem
Ocorre que no xamanismo vegetal jamamadi, o animal tem uma relevância reduzida se
permeia a descrição da prática xamânica em geral. Mostrei que as plantas podem ser
feitiço para roubar-lhes a alma-coração que será devorada, brigam na guerra mundial
que a potência predatória de algumas plantas, como a árvore wifi e a taboca teke, é mais
Grosso modo, também no trabalho agrícola o pajé tem papel crucial nas diferentes
etapas: da escolha da área a ser derrubada ao trabalho diário de cuidar do cultivos. Sua
186
intervenção é fundamental no período de abertura do futuro roçado (a escolha da área, a
A presença das mulheres da parentela do pajé, dono do roçado, será crucial na queima,
pois são os cantos femininos que chamam as almas das plantas alimentares yamata
abono para viver no roçado, garantindo sua fertilidade. Os homens preparam a futura
aldeia das plantas, perfumando-a com as cinzas e limpando-a das plantas indesejadas.
situação semelhante para o pajé yagua: "la contribution active du chamane yagua à la
fertilité du sol, au bon rendement des essarts, à la protection des espèces cultivées
ponto de partida da reflexão, não me parece suficiente substituir “animal” por “vegetal”,
recalibrando e fazendo os devidos ajustes das ferramentas conceituais, uma vez que as
187
anterior às diferenças instituídas pela mitologia, notável na atração dos mortos pelos
corpos vegetais.
Vejamos o que a mitologia pode acrescentar ao argumento (ver adiante capítulo 9). As
humanos e os animais (outros seres e fenômenos podem ser incluídos). Cada espécie de
ser aparece para si como humana e assim é vista pelos outros seres, apesar de já
vegetal, fenômeno meteorológico etc. Tal diferenciação entre natureza e cultura não é
um processo evolutivo que parte do animal para o humano, ou seja, que atribui
como os animais perderam os atributos que foram mantidos pelos humanos. Nestas
(Viveiros de Castro 1996, 2002), os humanos seriam aqueles que continuaram iguais a
à versão jamamadi segundo a qual os animais são ex-humanos e os humanos seriam ex-
plantas.
demais seres, de acordo com a mitologia jamamadi: os animais são aqueles que
188
perderam sua humanidade e os humanos são aqueles que perderam a perenidade
proposta por Descola segundo a qual “o referencial comum a todos os seres da natureza
apud Viveiros de Castro 2002:356). Esse esclarecimento é central, não opera através de
uma lógica histórica-evolucionista, pois não basta atribuir precedência às plantas sem
questionar o que se entende por humanidade. A condição humana enquanto ideal moral
a metamorfose, a partir das quais teriam se originado todos os seres do universo, qual
vida atual? Quais as implicações conceituais resultantes de se pensar uma ontologia que
não considera a humanidade como seu alicerce? Adiantando um pouco o argumento que
cultivado através das atividades agrícolas, na prática xamânica, nos rituais funerários,
etc.
189
O exemplo do pajé jamamadi é eloquente porque sua ambivalência ou a capacidade de
original, oculta ou somente pressuposta como destino póstumo aos não iniciados,
Jamamadi aguardam é ser plantado nas roças das almas de plantas, ser por elas criados e
a liberdade de substituir onde havia "animal" por "planta", adapto as linhas abaixo de
acordo com a versão jamamadi. Há uma modificação extra a ser feita, pois trocar
"animal" por "planta" é apenas a metade da história. Para ser precisa, a especiação deve
maior que sua pertinência para os Jamamadi e talvez outros povos arawá –, temos:
Como todos os humanos eram plantas no começo de tudo, todos os homens serão
plantas no fim de cada um: a escatologia da (des)individuação reencontra a mitologia
da (pré-)especiação. Os espectros dos mortos estão, na ordem da ontogênese, como as
plantas na ordem da filogênese: “no começo, tudo era gente…”. Não é de surpreender
portanto que, enquanto imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo
humano, os mortos sejam atraídos pelos corpos vegetais; é por isso que, na Amazônia,
morrer é transformar-se em uma planta: se as almas das plantas são concebidas como
tendo uma forma corporal humana prístina, é lógico que as almas dos humanos sejam
concebidas como tendo um corpo vegetal póstumo, ou como entrando em um corpo
vegetal que será eventualmente morto e comido pelos viventes. (Viveiros de Castro
2015:288)69
69
Trecho original: “como todos os animais eram humanos no começo de tudo, todos os homens serão
animais no fim de cada um: a escatologia da (des)individuação reencontra a mitologia da (pré-
190
Assim, um dos objetivos desta pesquisa não é pensar o que as plantas possuem em
comum com os humanos, uma vez que a categoria vegetal não está subsumida à
concebida como fitologia, as plantas não se reduzem a uma fonte de inspiração, a forma
de vida preferida dos poetas, porque a imagem do pensamento é vegetal, dito de outro
modo, pensa-se como planta à medida que se pensa na forma-planta70. Tomando como
uma premissa parcial do problema, pois, o que se entende por humanidade também está
pelo perspectivismo, mas, o argumento avança para uma direção insuspeita. Não basta
mobilizar o argumento segundo o qual a planta é humana porque tal condição estaria
inscrita no passado mítico, sua precedência lógica modifica a ordem das cartas
humanas, então como relacionar-se com elas? Pois, sendo os Jamamadi, em alguma
)especiação. Os espectros dos mortos estão, na ordem da ontogênese, como os animais na ordem da
filogênese: “no começo, todos os animais eram gente…”. Não é de surpreender portanto que, enquanto
imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo humano, os mortos sejam atraídos pelos
corpos animais; é por isso que, na Amazônia, morrer é transformar-se em um animal: se as almas dos
animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana prístina, é lógico que as almas dos
humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou como entrando em um corpo
animal que será eventualmente morto e comido pelos viventes.” (Viveiros de Castro 2015:288)
70
Se, de acordo com a hipótese que proponho, as plantas são a forma primária da existência, a figura
prototípica de sua alteridade poderia ser o tempo?
191
192
Capítulo 6: Um xamanismo sem xamãs?
comigo supondo que eu me interessava sobre os assuntos recorrentes das conversas que
ele tinha com os Jara: o trabalho para os patrões, a vida antes da chegada dos
ataques que sofriam de povos canibais, sobretudo, os temidos Juma; e as epidemias que
conversar sobre o roçado, as plantas da aldeia e as almas das plantas, o tom mudava
No início, as tentativas de conversar com outras pessoas sobre as plantas e seus abono
raramente eram bem sucedidas, os mais jovens se constrangiam dizendo ignorar tais
assuntos; outros me sugeriam conversar com B., afinal, “ele é o nosso inawa, xamã, e é
bote, velho”; poucos homens falavam abertamente sobre as plantas, contando-me como
a alma de determinada planta é amosini, “boa”, porque estava criando o filho falecido
resistência de B., porém, não durou muito, dado que eu residia com sua família e por
mais que num primeiro momento ele não quisesse me contar sobre suas atividades
xamânicas e espíritos auxiliares vegetais, tudo era realizado na minha frente, sem
aparentemente sozinho; as famílias dos doentes o chamavam para que ele os curasse e
B. consumia enormes quantidades de rapé. Foi por ocasião do ritual de saída da menina
193
que estava em reclusão pubertária que a disposição dos meus anfitriões em falar sobre
“Nós gostamos do rapé que você nos traz da cidade, não deixe de trazê-lo quando voltar
para a aldeia, mas não conte para ninguém do outro lado da pista (de pouso)”. Essa foi
uma das muitas recomendações que recebi nos primeiros meses de trabalho de campo a
fim de manter o bom convívio com os missionários que atuam entre os Jamamadi. As
latinhas de rapé com imburana, menta, canela e cravo eram uma novidade inesperada
para eles, que não imaginavam que alguns Jara de longe também produziam e
consumiam o tabaco em pó. Sabendo do uso disseminado do rapé pelos povos indígenas
que habitam a região, levei de presente algumas latinhas do rapé produzido no estado de
Minas Gerais, sem saber se eles iriam apreciá-lo; minha intenção era somente
apresentar-lhes essa variação como uma curiosidade. O rapé saborizado foi usado
principalmente para “temperar”, pois aquele produzido na aldeia era consumido puro
ante a falta de rapé temperado, sem dúvida preferido em relação à versão enfraquecida
dos Jara. A presença assídua da missão, porém, passou a afetar o cultivo do tabaco e,
latinhas de Minas passar a ser diária e, meu presente, insuficiente para atender a tantos
tempo necessário para produzir o rapé para o consumo dos pajés convidados para
aldeia orientavam-se a partir da pista de pouso que separava a maioria das famílias
194
Jamamadi das casas da Missão. Os do outro lado da pista que não poderiam saber do
rapé incluiam também aqueles Jamamadi cujas casas avizinhadas aquelas dos
pista de pouso, gerador de energia, poço, casas, igreja e escola – eram alguns dos que
empenhavam-se em difundir o evangelho entre seus parentes tanto nos cultos como na
Sob pretexto dos supostos efeitos nocivos causados à saúde pelo consumo do tabaco, o
missionários contam ainda, repito uma vez mais, com o respaldo de muitos funcionários
da saúde indígena que, movidos por razões não menos religiosas, pregam
195
abandono das “drogas”, entendidas como quaisquer substâncias com potencial de
Muitos dos homens mais velhos, alvos preferenciais dos que combatem o rapé, após
rapé ao longo do período em que estive em campo, os frascos eram mantidos nas casas e
às escondidas para evitar sonegá-lo. Uma alternativa que tornou-se popular entre eles
preparação do rapé com as folhas que eles cultivam. Recentemente, com o aumento da
demanda por rapé pelos brancos, em particular aqueles que trabalham para as
organizações indigenistas, muitos dos que haviam deixado de cultivar a planta voltaram
e os cultos evangélicos, entre os cantos dos espíritos inamadi e aqueles de Deoso, entre
o uso do rapé e o seu abandono, entre uma moralidade crente e aquela dos antepassados,
o mais comum tende a ser conciliar o que passou a ser chamado muito recentemente
71
Atualmente, uma dose de rapé, correspondente a uma colher generosa de sopa, é vendida a dez reais em
Lábrea. Essa tornou-se uma fonte de renda importante para os indígenas que vivem na cidade, dada a
demanda constante tanto dos brancos como de outros indígenas residentes de Lábrea, que por este motivo
já não fazem seu roçado. Na aldeia, o preço, para os Brancos, é ajustado segundo as variações da cidade,
entre eles o rapé jamais é vendido.
196
entre eles de “cultura", com as mudanças implicadas em “ser crente”72. Nas palavras de
Totinha, “nós gostamos de tudo: Deus, rezas, pajés, bolacha, café, peixe, etc”. Se a
juventude tende a aderir mais ao discurso evangelizador, até mesmo porque nos últimos
pastores e catequistas, as gerações mais velhas não abdicam do contato com os espíritos
inamadi e dos vínculos mantidos pelos seus pajés com os outros patamares do cosmo.
O envelhecimento dos pajés, somado à falta de interesse dos mais jovens em passar
pelas duras provações da iniciação, relegou a formação dos pajés à vida póstuma, tanto
é assim que a maioria dos pajés Jamamadi são as almas de parentes falecidos. Como
visto, esse foi o caso de Koeto, filho do pajé D., bem como de Edmilson, filho do pajé
B. Chamo a atenção para este ponto a fim de ressaltar que durante meu período nas
informações sobre esse processo. A deslegitimação da ação dos pajés não se restringe
aos Jamamadi, situação semelhante, por motivos que não se restringem à conversão
religiosa, já foi amplamente notada, tal como o relato de Maizza acerca dos Jarawara:
Temos poucas informações sobre o processo de 'se tornar' xamã, pois a última formação
deste tipo aconteceu faz mais de cinquenta anos. Existem hoje apenas três xamãs vivos,
eles estão na faixa dos setenta anos de idade. Nenhum jovem se interessou ou aprendeu
a exercer as funções do xamã, pois eles dizem que 'é muito difícil ficar na floresta sem
comer', mas acreditamos que a falta de interesse se deve também à presença de
missionários e cultos evangélicos na aldeia (Maizza 2012: 77).
Após a morte em 2012 do pajé Siko, considerado o último grande pajé jamamadi, não
72
Esse é um tema que escapa ao escopo deste trabalho mas que requer um desenvolvimento mais
aprofundado. Apesar de muitos frequentarem os cultos e lerem as partes traduzidas da Bíblia disponível
em traduções para o jamamadi, uma pequena parte afirma ser crente. O que é ser crente, do ponto de vista
Jamamadi e como ocorre a conversão são dois aspectos importantes que devem ser melhor discutidos, o
que não poderei fazer nesta tese.
197
houve a iniciação xamânica de nenhum outro jovem e aqueles cuja iniciação estava em
curso não puderam terminá-la, conquanto houvesse outros pajés habilitados para a
tarefa. A iniciação de H., neto de Siko, fora interrompida abruptamente com a morte do
avô, e as pedras xamânicas introduzidas no corpo do menino, por não estarem bem
importância dos pajés e dos indigenistas em “fortalecer a cultura" não são suficientes
restrições necessárias à iniciação73. C., em uma de suas idas a Lábrea, chegou a negociar
com um conhecido pajé Apurinã o pagamento e as condições para que ele iniciasse seu
filho mais velho, contudo, a perseverança do pai não foi suficiente para vencer a
irrelevante para compreender a recente interrupção das iniciações, uma vez que para tal
foco para algum povo vizinho, este sim com muitos pajés de verdade. A pergunta é
tomada como uma acusação indireta e, nestes casos, o mais prudente, assim como em
outras matérias, é contornar a questão direcionando-a, como fazem com frequência, aos
Jarawara e aos Paumari, seus vizinhos mais próximos. Além disso, a formulação da
73
Os jovens têm um grande desprezo por tudo o que compreendem como “cultura”. Muitos deles não
participam dos rituais, não querem aprender as músicas e não se engajam nas atividades cotidianas.
Muitos deles mal ajudam seus pais nos trabalhos do roçado. As mulheres, neste sentido, estão mais
próximas da “cultura”, são elas quem trabalham nas roças, colocam suas filhas em reclusão e cantam nos
rituais. Os rapazes jovens são os que mais estão suscetíveis à vida urbana e suas mercadorias.
198
Jara, considerada pouco polida. Neste sentido, afirmar-se peremptoriamente como pajé
propósitos e, no limite, abre uma fresta para futuras queixas, pois, melindrável, o pajé
Um pajé não se reconhece publicamente enquanto tal, mas é assim reconhecido por seus
atualmente entre os Jamamadi. No caso de B., sua idade avançada é um empecilho para
realizar sessões de cura; como me explicaram, sem possuir todos os dentes, ele não
do doente, e sem ter boas condições físicas, já não aguenta a pressão em seu nariz e
pressão. E no caso de D., o pajé mais ativo atualmente, os conflitos envolvendo seu
genro gerou uma indisposição ainda não superada entre seus parentes, isolando-o ainda
mais.
Cabe ressaltar que a iniciação parcial permite a visualização dos espíritos inamadi e, em
alguns casos, até uma comunicação restrita, todavia, os inamadi não se tornam seus
espíritos auxiliares e esses homens não serão capazes de transitar entre os diferentes
patamares e extrair feitiços. Eles são reconhecidos como “um pouco" pajé, por terem
passado pela inciação sem, no entanto, tê-la concluído, de modo que, no limite,
praticamente todos os homens mais velhos são, em maior ou menor medida, de acordo
com o tempo em que permaneceram reclusos e da quantidade de rapé que lhes foi
199
são submetidos os noviços – privados de companhia, exceto aquela de seu preceptor –,
como a falta de uma alimentação que lhes saceie, a privação de sono e de contato com
as mulheres.
substância central nas práticas xamânicas indígenas, bem como o desinteresse dos mais
jovens, não fizeram minguar a comunicação com as almas das plantas, curiosamente,
até o abandono completo do rapé, como foi o caso do pajé D., não pareceu afetar o
trânsito entre o céu e a terra, entre os vivos e os mortos, entre Jamamadi e gentes-planta;
e a falta de jovens iniciados na terra parece ser suprida pelas iniciações póstumas.
200
201
Parte 2: Plantar os mortos: a morte é a infância das plantas
202
Capítulo 7: Da vegetalidade humana
Se bem que a discussão precedente ensejou uma formulação parcial do problema desta
miríade de outras entidades que povoam o mundo é distinta do modo como estes seres
interna ou 'essência' humana quando estão em suas aldeias, experimentando seus hábitos
e comportamentos nos termos da cultura (Viveiros de Castro 2002:350). Isto posto, não
203
imanente ao ponto de vista, sempre inscrito no corpo, a perspectiva não é uma
Concordo com a consideração feita por Lima (1996:26), de acordo com a qual a
atribuição de características humanas e sociais aos seres naturais pode ser uma
bom grado, seja para encurtar a conversa, seja para corresponder às expectativas do
antropólogo, quando não ambas as coisas. As proposições "plantas são gente" e "gente e
planta é a mesma coisa", ditas sem qualquer gravidade por vários interlocutores
Jamamadi, vão na direção apontada pela autora, uma vez que, se tomadas na forma de
um universal, além de serem falsas, acabam por assumir a forma de uma aporia. Sob
contextualização, haja visto que nem todas as plantas são gente sempre, e que a
unilateral de uma condição ou fundamento a priori dos humanos sem que a noção do
mais ocupando o topo da cadeia dos seres terrenos (Lovejoy 2005)74 – grosso modo,
74
Segundo Lovejoy, mesmo tendo sido formulada anteriormente, “foi no século XVIII que a concepção
do universo como uma Cadeia do Ser e os princípios que constituem a base dessa concepção – plenitude,
continuidade, gradação – alcançaram sua mais ampla aceitação.” (Lovejoy 2005:182). Diferentes autores
recuperaram essa noção ao longo da história da filosofia; são conhecidas as proposições de Leibniz em
"Nouveaux essais de l’entendement humain" (1990[1765]:43) de acordo com as quais “nada se faz de
repente” e “a natureza não dá saltos”, que reiteram a imagem da escala dos seres obedecendo a um
ordenamento sem vazios ou saltos no qual o homem está em destaque dentre os seres sensíveis ou
materiais. Nesse sentido, é particularmente ilustrativa a seguinte passagem de Locke em seu "Ensaio
concernente ao entendimento humano" (2012[1690]:484-485): "provavelmente há mais espécies de
criaturas inteligentes acima de nós que espécies de criaturas sensíveis e materiais abaixo de nós. [...] Não
encontramos no mundo corpóreo visível nenhuma falha ou hiato. E mesmo lá embaixo caminhamos sem
dificuldade numa série contínua de coisas que, a cada mudança, mal diferem umas das outras. Há peixes
204
uma atribuição antropocêntrica corrente no pensamento ocidental que pensa o lugar do
homem e o seu estatuto em relação às demais espécies vivas de acordo com a imagem
pano de fundo antropomórfico (Viveiros de Castro 2012:345-400). Sem que com isso se
repita que o homem seja a medida de todas as coisas, a julgar que a expansão dos
uma pacem perpetuam, visto que “ali onde toda coisa é humana, o humano é ‘toda uma
outra coisa’” (Viveiros de Castro 2015:54), e os perigos dessa humanidade difusa são
irrevogáveis. Na bela formulação de Lima (1996:27): "o ponto é que os animais estão
longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida humana muito
perigosa".
descrevê-las pareciam apontar para sua personificação – como certa vez num roçado
uma senhora me perguntou se eu escutava o choro dos carás que nós plantávamos –,
logo fui alertada a distinguir o aspecto vegetal terrestre do duplo celeste, este sim
humano. Ao perceber a persistência do meu interesse pelo tema, o pajé B. fazia questão
com asas que não estranham as regiões aéreas. Pássaros de sangue frio vivem nas águas como peixes [...].
Alguns animais estão a meio caminho entre os pássaros e os quadrúpedes. Anfíbios ligam os animais
terrestres aos aquáticos. [...] Fala-se de sereias e homens marinhos. Alguns animais irracionais parecer ter
tanto conhecimento e razão quanto outros, que se chama de homens. O reino animal e o vegetal estão tão
juntos que, se tomares o animal mais inferior e o vegetal mais superior, dificilmente perceberás muita
diferença entre eles. Mesmo nas partes mais inferiores e inorgânicas da matéria encontramos
muitas espécies ligadas entre si, diferindo por graus insensíveis. Se considerarmos o infinito poder e
sabedoria do Criador, teremos razão para pensar que é consoante a magnífica harmonia do universo, ao
grande designo, à infinita bondade do arquiteto, que espécies de criaturas também ascendam,
gradualmente, sem dificuldade, desde o homem até a infinita perfeição – a exemplo da descida gradual
que vemos partindo de nós".
205
de esclarecer em suas explicações que as plantas, a parte perceptível terrestre, não é
determinados contextos. Aliás, engano similar era pensar que o zelo das almas das
plantas com o morto, as práticas de adoção e os casamentos póstumos com essas almas
vegetal em sua morada celeste. Não se avista a dimensão básica da relação humano-
a saber:
::
É evidente que não basta deslocar o problema ou substituir uma das variáveis pois o que
muda é a própria correlação entre os termos que compõem a equação entre humanidade
circunlóquios e para meu espanto, que “planta e gente é a mesma coisa”. O fundamento
dessa semelhança heteróclita, insistia ele, não é a humanidade dos Jamamadi, porém, de
maneira inesperada, é a vegetalidade das plantas, uma lógica vegetal comum a ambos –
em termos um tanto simplistas, não é a planta que é gente, mas o contrário. Ele tentava
me explicar que as plantas provêm o modelo da vida e da existência aos humanos tanto
quanto o antropomorfismo organiza as relações sociais dos viventes, sem com isso
206
vegetalidade – no entanto, não torna o cosmo Jamamadi um anime japonês, com
desconcertante sobre a vegetalidade75 ativa no cosmo: "Kali, tudo [ele apontava para as
plantas] tem alma senão as coisas não poderiam morrer". Ao contrário das expectativas,
a morte ocupa o lugar que se atribui à vida por não ser um processo qualitativamente
antagônico (cf. Taylor 2012:216), mas por fazer parte do mesmo contínuo.
Viveiros de Castro 2015). Com isso, ante o quadro analítico que se configura, deve-se
que, por ora, apresentei a respeito da importância das práticas agrícolas no xamanismo
almas dos cultivares e a centralidade das plantas para a fabricação do corpo masculino e
o feminino.
ingere e incorpora em sua iniciação, ele não é "como" veneno – que se projeta por meio
75
Não me parece ser o caso de adotar o arcabouço conceitual proposto por Chaumeil (1989:15-24) para o
contexto Yagua, pois, lá, o "fluxo constante de energia vital vegetal" circulante se expressa em termos
fisiológicos ou em uma linguagem de substâncias inadequadas ao caso jamamadi em foco. Por ultrapassar
o escopo do trabalho, não poderei elaborar as diferenças entre um caso e outro.
207
analógica entre humanos e plantas. Quando o pajé Wiyonama (p.107) anuncia que ele é
o veneno, evidencia-se de forma sumária que a referência literal aos afetos e afecções
engendrada na iniciação xamânica tanto quanto conjurada nas práticas rituais femininas.
antropomorfismo basal, pois, perguntar o que significa dizer que os animais (ou
plantas) são pessoas?76 não equivale à questão desta tese, a saber, o que significa dizer
Levando adiante a intuição esboçada, anuncio que o objetivo deste segundo momento
entendidos como processos similares nas plantas e nos humanos, que se distinguem em
76
"Entre as questões que restam a resolver, portanto, está a de saber se o animismo pode ser descrito como
um uso figurado de categorias do domínio humano-social para conceitualizar o domínio dos não-humanos
e suas relações com o primeiro. Isto redunda em indagar até que ponto o “perspectivismo”, que é um
como corolário etno-epistemológico do “animismo”, exprime realmente um antropomorfismo analógico,
isto é, um antropocentrismo. O que significa dizer que os animais são pessoas?" (Viveiros de castro
1996:122).
208
1998, 2012) sobre os Huaorani77. A onomástica e a teoria da concepção são mobilizadas
para dar continuidade à construção da ideia base deste segundo momento da tese.
questão encontra o seu maior rendimento: sendo a morte uma catástrofe que incide
necessário articular vida e morte não em estados extremos e opostos, mas em fluxos ou
processos inacabados.
morremos como as plantas"; "a alma-coração é plantada para a vida rebrotar no céu";
"gente e banana é a mesma coisa"; são alguns dos enunciados a serem encadeados no
humanos a partir delas –, refraseando a proposição, pode-se dizer que a vida expressa
77
Os Huaorani conceitualizam o crescimento, o desenvolvimento e a maturação humanos a partir das
percepções sensíveis que associam o corpo à energia vital contida nas folhas ou brotos e, por sua vez, o
processo de envelhecimento à decadência vegetal. A samaúma, a balsa e a pupunha são as três espécies
enfocadas que, em virtude de suas características distintivas de crescimento, amadurecimento e
reprodução, são relacionadas ou aplicadas às conceitualizações do crescimento humano. Assim, as
categorias naturais não são somente vistas como metáforas para as categorias sociais (Rival 1993). O
crescimento, por exemplo, é identificado de forma similiar nas árvores e nos humanos, diferenciados
somente em relação à longevidade. O desenvolvimento fisiológico das pessoas resulta da mesma energia
vital encontrada nas folhas, brotos e plantas de crescimento rápido, com muita energia, por isso usadas
para estimular o crescimento dos bebês - associados às folhas novas não somente por sua beleza mas
porque ambos são vigorosos e cheios de vitalidade. A pele das pessoas idosas é descrita como as folhas
velhas que perderam a suavidade e o brilho. Da mesma forma, os seios das mulheres caem à semelhança
das folhas. Diferentemente do argumento de Rival centrado nas diferenças entre crescimento rápido/lento,
ciclo longo/curto, madeira macia/dura, o que importa para a presente reflexão é a resistência, resiliência
vegetal.
209
em grau menor, em âmbito circunscrito, o que a morte desvela exarcebadamente. A
póstuma, leia-se desencadeado pela morte, de modo que a escatologia oferece uma
Contudo, na ampliação recente de tal modelo com a intenção de abarcar o caso das
centradas na domesticação da amazônia (Fausto & Neves 2018), seus autores não
com a biodiversidade não agrícola e aqueles com os cultivares (ver capítulo 8 adiante).
preponderância da ação humana em sua relação com as plantas. Acredito que a crítica à
tentarei mostrar que a partir da concepção jamamadi do problema nas interações entre
210
Poder-se-ia pensar a humanidade como "espécie companheira" das plantas tanto quanto
que a diversidade de vínculos estabelecidos com as plantas não são sempre formas de
consanguinização 79.
Por fim, tentarei mostrar que a decomposição das relações que compõem a pessoa
evidencia sua vegetalidade e acaba por revelar uma imagem divergente do humano que
78
Em diálogo com o conceito de "espécies companheiras", proposto por Haraway (2003), Anna Tsing
escreve, valendo-se do exemplo dos fungos, contra o "excepcionalismo humano" e a domesticação -
modelo que se aplica também ao controle de mulheres e plantas. A história da agricultura e, de maneira
geral, do controle da natureza salienta a autonomia humana em detrimento da interdependência entre as
espécies. A autora vai mais longe e propõe: "what if we imagined a human nature that shifted historically
together with varied webs of interspecies dependence? Human nature is an interspecies relationship. Far
from challenging genetics, an interspecies frame for our species opens possibilities for biological as well
as cultural research trajectories. We might understand more, for example, about the various webs of
domestication in which we humans have entangled ourselves" (2012). A domesticação é concebida em
termos de um processo unilateral do controle humano sobre outras espécies, ignorando o que tais relações
podem ter nos afetado. Na contramão de tal ideia, Tsing sugere que os cereais poderiam ter domesticado a
humanidade, pelo menos no caso do Ocidente, e relaciona-os à emergência das hierarquias sociais e à
origem do Estado: "intensive cereal agriculture can do one thing better than other forms of subsistence:
support elites. States institutionalize the confiscation of a share of the harvest. Across Eurasia, the rise of
states and their specialized civilizations is associated with the spread of intensive cereal agriculture. In
some places, states followed agriculture; in other places, agriculture followed states" (Idem). O
argumento da autora repisa a narrativa de Engels em "A origem da familia, da propriedade privada e do
Estado" a fim incluir as mulheres no escopo de sua análise contra a domesticação visto que o controle
masculino da reprodução em famílias humanas inspira-se nas noções de propriedade que regulavam a
reprodução dos rebanhos.
79
As biodiversidade não agrícola é fundamental para a vitalidade genética dos sistemas biológicos (cf.
Politis 2007). Lévi-Strauss já escrevera sobre esta questão: "farming always accompanies, and is never a
substitute for, the exploitation of wild resources" (apud Rival 1998:237).
211
não se conjuga à parte da vida vegetal. Levando a sério a antropologia jamamadi, nos
convite que eles nos fazem de vegetalizar o que entendemos por ser humano.
***
Raramente os Jamamadi realizam suas tarefas cotidianas sem uma longa caminhada,
isso nem tanto por serem necessariamente grandes as distâncias, mas devido ao apreço
que eles cultivam por andar e observar as plantas encontradas no percurso. Tanto é
assim que, muitas vezes, saem para caminhar "apenas" para kakatoma, "olhar", as
plantas. O olhar pode ser dirigido para buscar frutas maduras, palhas para a cobertura
das casas, cipós para a cestaria, copaíba para extrair o óleo, remédios, etc. No entanto, a
caminhada não tem necessariamente uma utilidade prática, e mesmo sendo o caso, não
se restringe a ela, dado que, esse olhar, em nada prosaico, se interessa igualmente em
floresta guarda as marcas das atividades das pessoas que ali viveram nas gerações
enorme prazer, as plantas funcionam como registros dessa proximidade silenciosa. Não
se trata, por certo, de transferir aos Jamamadi a imagem do filósofo ou poeta que,
encantado pela botânica, imputa uma inocência apaziguadora ao mundo vegetal, espécie
212
introspecção ensimesmada. Aqui, a profusão e exuberância vegetais são entendidas
um olhar neutro ou à plena transparência de um saber não mediado80; pelo contrário, são
fatais81. A guerra mundial que envolve as plantas em incessantes conflitos canibais traz
consanguinidade. Herbanizar não é ação do flaneur ocioso pois este olhar não é passivo:
ele é causa tanto do crescimento como da destruição das plantas, vide a ação
devastadora do olhar envenenado, noko koma (ver capítulo 8). Tal atitude sugere que,
para os Jamamadi, as questões biológicas são igualmente estéticas (Rival 1998) quando
às plantas.
As manhãs costumam ser preguiçosas na aldeia: assim que acordam, as pessoas vão se
bolacha ou farinha. Assim que o dia esquenta um pouco, as pessoas iniciam suas tarefas
diárias que incluem, dentre outras coisas, roçar o terreiro de suas casas e cuidar da roça.
Manter o terreiro limpo em torno da casa é importante para afastar as cobras e as plantas
80
Refiro-me aos "Fragments de botanique" de J.-J. Rousseau. Em um ensaio de Alexandra Cook
(2004:75-87), a autora cita um trecho que condensa o desejo do filósofo de superar a "diferença" para
alcançar a transparência, o acesso sem intermediários à natureza, contornando as limitações da linguagem
humana: "Le botaniste ne souffre point d'intermédiaire entre la nature et lui. Il n'admet pour vrai que ce
qu'elle lui montre, il rejette tout ce que les hommes y veulent ajouter de leur chef" (idem:75).
81
"O que chamamos de 'ambiente' é para eles [os ameríndios] uma sociedade de sociedades uma arena
internacional, uma cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedade e
ambiente, como se a primeira fosse o 'sujeito', o segundo o 'objeto'. Todo objeto é sempre um outro
sujeito, e é sempre mais de um" (Danowski & Viveiros de Castro 2014:94, grifos dos autores).
213
indesejadas. Os Jamamadi inspecionam as plantas rotineiramente, checam o
cerquinhas em seu entorno para afastar predadores ou as transplantam para garantir que
cresçam melhor. Sob as casas, cercas e telas protegem as pequenas mudas que ainda
estão germinando e não estão prontas para serem transferidas a outro lugar. Latas,
panelas velhas e vasilhas de plásticos estão espalhadas em todos os cantos com plantas
a terra cheirosa, as folhas varridas dos terreiros são queimadas com os restos das
fogueiras para serem postas ao redor das plantas que se alegrarão com o cuidado de seus
parentes. Ao depositar as cinzas nas raízes dos açaís que crescem em seu pátio, Sabira
me dizia contente que os seus cachos, fare daby, crescerão grandes e que a planta, leia-
se sua alma, abono, vai pensar: "Minha mãe gosta de mim. Ela vem todo dia me ver.
Também é pela manhã que as pessoas partem para trabalhar no fadara, roçado. Não há
divisão de gênero que demarque uma exclusividade do trabalho agrícola, se bem que as
mulheres frequentem mais as roças simplesmente porque são elas que se encarregam,
ainda que seus maridos e filhos possam ocasionalmente ajudá-las, das etapas da
à torra da massa.
O espaço aberto para o plantio da roça é dividido entre os pais e seus filhos, de modo
que sempre se identifica a quem pertence um cultivar de acordo com o local em que ele
214
foi plantado82. Apesar destas divisões internas, o dono do roçado é o pai, responsável
pela negociação imprescindível com as almas das plantas que serão derrubadas para
servir de lugar ao futuro fadara. Deste modo, no roçado de Badá, antigo cacique geral,
estavam plantados os seus cultivares e aqueles de seus filhos solteiros Bafita, Damião,
Dossobi e Marikiya. Seus filhos já casados, Fasokore, Bonoaiya e Maneoke, por sua
vez, fazem roçados separados, mas, muitas vezes, próximos ao do pai. Não se pode
ou feminino, pois, embora seja dito que pertença ao pai, o plantio, o cuidado diário de
Irmãs acompanhadas de seus filhos pequenos, os casais e os pajés84 são aqueles que
dedicam mais tempo aos roçados; os rapazes solteiros quando muito ajudam a carregar
os pesados paneiros com mandiocas. Os únicos a frequentar sozinhos seus roçados são
82
Recuperar o trânsito dos cultivares entre as roças permite retraçar caminhos do parentesco jamamadi e
da relação com a alteridade, uma vez que as variedades encontradas em capoeiras durante expedições na
mata, aquelas recebidas dos brancos na cidade ou das almas das aldeias celestes também são itens
valiosos nessa rede de trocas. Em geral, as pessoas se lembram de quem receberam cada um de seus
cultivares e em qual circunstância. O timbó plantado pelo pajé B., por exemplo, é um dos mais cobiçados
por causa de sua potência. Esse timbó havia sido plantado por seu irmão Siko que, por sua vez, o trouxera
dos roçados da alma da taboca teke. Nós estavámos "espiando" o roçado quando B. me contou a origem
de seu timbó: "Siko trouxe pupunha e timbó do céu. Naquela época, Siko estava sem pupunha, aí resolveu
ir buscar um pouco nas aldeias das almas. O sogro de Siko tinha morrido e ele estava com muita raiva. No
céu, as almas estavam fazendo festa, tinha muita comida e cachaça. O pessoal já estava alumbrado
[bêbado], aí esqueceram os seus yamata. Os companheiros do Siko, as almas de iha e tamino, falaram
para ele: "Naki [termo genérico para afinidade, comumente traduzido por 'companheiro', neste contexto, é
usado porque as duas espécies, tamino e iha, não são cultivadas pelos Jamamadi, ou seja, não estabelecem
uma relação de consanguinização], tu vai levar as sementes de pupunha e um pouco de rapé". Os
companheiros, que eram seus yoyose [espírito auxiliar], colocaram tudo numa sacolinha e deram para ele.
Eles também colocaram um pedacinho do timbó que teke abono, alma da taboca, tinha plantado em seu
roçado".
83
Diferentemente da visão da agricultura como atividade predominantemente feminina entre os Achuar
(Descola 1986) e Taylor (2000); entre os Wajãpi (Cabral de Oliveira 2006, 2012); entre os Krahô (Morim
de Lima 2017), etc.
84
Os pajés também caçam, todavia, a atividade tende a mobilizar mais os homens jovens, pois aos filhos e
genros cabem a responsabilidade de caçar e pescar.
215
os pajés que quase todos os dias visitam seus filhos-planta para se certificar de seu bom
preciso fazer uma ressalva, pois, nestas situações, os pajés não estão completamente só,
conforme dito no capítulo anterior: eles andam sempre na companhia de seus espíritos
auxiliares. Boa parte do dia é preenchida pelas atividades agrícolas e pela atenção às
plantas da aldeia, bem como a comentar o tamanho dos cultivares dos roçados dos
parentes; a reclamar das saúvas que devoram as plantas; a arrancar as plantas intrusas e
a podar a fim de manter os cultivares afastados uns dos outros – algumas plantas gostam
dos abacaxis; a colocar suportes para segurar os cachos pesados das bananeiras; em
suma, pode-se dizer que quando não estão trabalhando na roça, provavelmente, devem
buriti ainda é rapaz, yifo yetene; que a bananeira do roçado não está madura porque não
tem peitos, logo, ela ainda é demo, categoria das meninas que não passaram pela
reclusão pubertária e ainda não se tornaram atona; que os filhos de Lobi, Lobi ka bidi,
estão começando a cair, neste caso, os ouriços da castanheira plantados por ela; que os
filhos da pupunha, yawida ka ewe, estão começando a se fazer visíveis no solo, esta
roçado; que as macaxeiras não estão maduras e ainda são crianças de colo, ewe borehe;
que as espigas de milho, kimi, estão felizes porque tornaram-se adultas e terminaram sua
85
Para um exemplo de comportamento antissocial das plantas, ver Hall (2013: 1001-1002).
216
Fig. 13 Bananeiras demo, “moças”, em sua tabora, “aldeia”
chamada de ewe borehe, pessoa imatura como um fruto verde ou um broto que acabou
de se fazer visível no solo; os filhos são os pequenos de alguém, bidi, como os brotos
que germinaram das sementes que caem de uma planta; as crianças, quando começam a
andar, passam a ser chamadas de madehe, assim como as plantas um pouco maiores
mas ainda não maduras; os rapazes solteiros são referidos com o termo yetene, tal como
o buriti do exemplo acima; as meninas que não passaram pela reclusão pubertária são
chamadas de demo e, após passar pelo ritual da menarca, quando seus seios aparecem,
semelhança de uma planta que atingiu a maturidade e pode frutificar; por fim, os
mamilos da mulher ao engravidar escurecem indicando que ela está madura, hada/hasa,
da mesma forma que um fruto escurece ao amadurecer, verbo ha hasa na. Assim sendo,
86
Para exemplos de imagens do crescimento humano pensado em termos vegetais para povos Jê, conferir
Morim de Lima (2017:460).
217
uma bananeira madura com frutos que podem ser colhidos, sibati hadani/wahini, é uma
planta já formada, adulta do mesmo jeito que uma pessoa que não é mais adolescente, ai
hadani/wahi ka waha.
218
Etapa do desenvolvimento Humano Planta
os exemplos em diferentes línguas que vão nesta direção: "cabeça de alho", "pé de
alface" e "olho de batata" são algumas expressões metafóricas mas de uso bastante
"oreilles en feuilles de chou" (orelha de abano), mão de alface, "poil de carotte" (ruivo)
219
ou "ginger hair" (cabelo ruivo) tampouco implica outra coisa além de imagens vegetais
Por outro lado, a intercambialidade das categorias para expressar tanto o crescimento
humano quanto aquele das plantas tem consequências distintas aqui, não limitadas ao
uso metafórico, uma vez que é indecidível de partida determinar se tais categorias são
a moça impúbere é uma bananeira sem peitos? Se ambas são verdadeiras, onde estaria o
menina que não passou pela reclusão pubertária quanto para a bananeira não madura.
indiscernibilidade dada de antemão não permite concluir se são elementos vegetais que
estão sendo mobilizados para tratar a ordem social – o caso do totemismo com suas
categorias que organizam a vida social que estão sendo usadas para falar das espécies
O risco a ser evitado é o de repor os limites dos domínios da Natureza e da Cultura, com
220
(Viveiros de Castro 1996, 2002; Lima 1996, 2002; Vilaça 2002; Descola 2005; dentre
visto que:
O argumento não para neste ponto, uma vez que o alargamento ou continuidade
características sociais ao seres naturais" (Descola 1996:99) não deve obliterar a outra
acordo com a qual aspectos humanos são expressos segundo elementos e processos
vegetais. Arrisco dizer que o complemento da face animista desta afirmação não conduz
221
classificação ou do ordenamento lógico do social tributário de diferenças entre espécies
naturais.
seus pressupostos e consequências são irredutíveis e se opõem aos termos dos nossos
debates e quadros teóricos, vide o clássico dualismo entre Natureza e Cultura (Viveiros
de Castro 1996, 2002). O que interessa no presente argumento, tendo em vista a referida
esquema reflexivo ou aperceptivo etc – segue como o nome da forma geral do sujeito
(Idem) e o que se entende por humano não pode mais ser um pressuposto. A questão
222
7.1 Morfologia e onomástica
corporal, notável na alteração do olhar da grávida, por isso, interdita de ver os enfermos
constitui o feto. Dizem que "quem tem semente é o homem", logo, é o seu "trabalho",
yama anini, no corpo feminino que faz a mulher amadurecer e engravidar, v.t.
produção do corpo do bebê em gestação. Apesar do sangue paterno ser a substância que
agência masculina.
diferentes cultivares e carnes, sobretudo o de frutos silvestres tais como o boroma (um
tipo de embaúba), o sami yawa (uma variedade de abacaxi selvagem), winika (cajurana)
e o yosi (planta não identificada), dentre outros, devido a seu efeito abortivo ou
trabalhar em demasia com a massa da mandioca não enxugada que aumenta o vérnix
que envolve o bebê; ela tampouco deve ingerir peixes capturados em armadilhas porque
223
dificultam o parto ou fazem o bebê nascer empelicado. A relação de paternidade se faz
o parto. Tanto é assim que as mães solteiras raramente recebem carne/peixe, uma vez
que provê-la equivale a construir o corpo da criança, ou seja, assumir sua paternidade.
escopo do capítulo, passo, assim, aos aspectos mais cruciais que expressam a noção de
(Bonilla 2007:148; Costa 2007 – etnografia na qual o termo "tronco de árvore", -warah,
possui importantes desdobramentos para o argumento do autor, uma vez que sua
que não cabe decidir taxativamente se são os humanos que têm partes de plantas ou se
são as plantas que têm estruturas humanas. Dada a continuidade ou coincidência das
O tronco de uma árvore ou do corpo humano são chamados pelo mesmo termo, ade
(f.)/ede (m.); a pele humana, a cortiça das árvores e as cascas das frutas são todas
chamadas de atori (f.)/ataro (m.), e que combinado com a palavra yehe, "dedo", quer
224
dizer "unha", ye ataro; a carne humana ou animal e a polpa das frutas são chamadas de
ime; o cérebro tanto dos humanos quanto dos animais, bem como o palmito das
palmeiras são conhecidos por afone; os ossos e a nervura das folhas são ambos referidos
pelo termo tone; os espinhos vegetais e os pelos corporais são kone; os galhos, as mãos,
as patas dianteiras são todos chamados de yehe ou mani (f.)/mano (m.); tame (f.)/teme
(m.) designam o pé, a pata traseira e a extremidade inferior ou base de uma planta; teme
habo, por sua vez, é o tornozelo ou a raíz; a cabeça humana ou animal e a parte superior
de uma planta são referidas pelo termo tati; os tendões, as artérias e as raízes são
chamadas de habi (f.)/habo (m.); os fungos (que crescem na superfície das plantas) e a
orelha são ditos narabi (f.)/narabo (m.); o termo noki (f.)/noko (m.) compõe diferentes
palavras, como em noko kori, olhos, noko bako, rosto, ou awabono noko, semente; por
fim, boni (f.)/bono (m.) pode ser tanto uma fruta quanto os lábios ou o bico de uma ave.
225
Nome Jamamadi Morfologia Morfologia Vegetal
Humano/Animal
ade (f.) / ede (m.) tronco tronco
mesmo termos, como adone, usado para o sangue humano e a seiva avermelhada de
certas plantas; a gordura e o óleo vegetal são yaha; diversas outras substâncias são
referidas por expressões formadas com o termo fene, a saber, yoha fene, leite materno;
awa fene, látex; maki ka fene, sêmen; noko fene, lágrima; inohoti fene, saliva; yawida
(the) interest in plant growth and maturation is more than mere pragmatic resource
management: they have a genuine aesthetic delight in observing plant life, particularly
the growth of new leaves, and explicitly relate this to certain aspects of human
physical growth (Rival 1993:637).
226
O sistema onomástico jamamadi pode ser caracterizado, em linhas gerais, como
almas de plantas, dos mortos e dos brancos. Cada pessoa possui vários nomes, alguns
são esquecidos ou deixam de ser usados, outros não "pegam" e acabam substituídos,
outros ainda são usados contextualmente por algumas pessoas ou em âmbito familiar.
Os nomes recebidos das almas das plantas, considerados "de verdade", jamais figuram
nos registros oficiais ou documentos por não serem adequados ao contexto das relações
com os brancos com os quais lidam valendo-se de seus nomes "de branco".
despertaram o interesse dos Jamamadi em fazer os seus documentos, suas idas quase
mensais a Lábrea são ocupadas em tentativas vãs de lidar com a burocracia. Para os
documentos que solicitam nomes indígenas ao invés de seus nomes de verdadeiros, das
almas de plantas, eles preferem adotar nomes de plantas cultivadas pelos brancos, como
Morango e Batata, criar outros nomes, como Pedro Selvagem, ou recuperar o nome de
um parente falecido, única situação em que os nomes são repostos. Acredito que os
Caso o nome "de alma" seja o mais utilizado, ele acaba sofrendo modificações, no mais
das vezes reduções, para não ser explicitada a relação da qual provém, já que em sua
forma "original" o nome refere-se sempre à experiência xamânica de um pajé com uma
alma de planta cujo nome pode ter sido emprestado, pode também fazer menção a um
227
evento envolvendo o pajé ou presenciado por ele em seus deslocamentos para os
Até a criança começar a andar e a expressar certa autonomia em relação a seus pais, ela
não receberá um nome pessoal. Durante esta fase da infância, todos os meninos são
yokana, ou "nomes de alma", madi ka oni, são recebidos de um pajé que, em troca de
sementes ou brotos de cultivares, rapé e adornos corporais, pede a uma alma de planta
para que ela ceda seu nome à criança. Ao contrário do que se poderia supor, os nomes
de almas de plantas, em geral, não são aqueles que denominam as espécies, de função
semelhante a dos gentílicos conforme abordarei na terceira parte da tese, de modo que
não há ninguém chamado sibati, banana, mas sim atiweyelinaha, que é o nome de uma
não há um ritual específico de nominação, ocorre que, por ocasião da visita noturna das
almas, alguém pode apreciar o nome do/a visitante e pergunte se seu filho/a ou neto/a
pode ser chamado – o verbo utilizado é weye na, carregar – pelo mesmo nome, sem que
228
Além dos nomes recebidos durante as visitas das almas às aldeias terrenas, há aqueles
seus deslocamentos pelo cosmo. Os nomes sempre vêm de fora, das viagens e encontros
dos pajés com as almas de plantas cultivadas e não cultivadas, por conseguinte, evocam
uma relação externa ou expressam uma perspectiva acerca desse fundo de alteridade
alguns casos, a uns poucos membros, ademais, as pessoas evitam pronunciar seus
próprios nomes, alegando desconhecê-los ou pedindo para que se pergunte a seus pais
ou a um parente mais velho. Badá, o antigo cacique geral, recebeu seu nome do pajé
Bahawi que, em viagem às aldeias celestes das plantas, viu uma mulher inamadi chamar
por seu filho, ela dizia: "vem, Badá, vem aqui!". Tratava-se da alma de uma árvore
frondosa de madeira dura, por isso, o pajé deu para o seu sobrinho o nome da criança
Badá abono. Esse é o nome principal usado por Badá tanto na aldeia como na cidade.
Seu "nome de papel", bebeo ka oni, próprio para os registros e documentos, por seu
turno, é aquele recebido dos patrões que fizeram o contato quando ele ainda era
pequeno; na ocasião, todos de sua maloca foram batizados com nomes de branco: seu
pai passou a se chamar Miguel e sua mãe, Madalena, já ele recebeu o nome Edgar
Moreira da Silva. Badá também recebeu um nome após o término de sua iniciação, foi
Raimundo Soares, seu sogro, quem lhe deu o nome Manokamawawi; segundo a
explicação do pajé, esse nome descreve o movimento centrípeto que o braço de uma
alma fazia durante uma caçada. Moaci, uma importante liderança Jamamadi (Nakanike
229
Na época de meus avós, quando todo mundo era pajé, cada um tinha muitos nomes de
almas, de inamadi. O pajé ia para o céu e do que ele via ou do nome de alguma
criança, filha de alma de planta, ele encontrava o nome para alguém na terra, um filho,
sobrinho ou neto. Minha avó Sonake recebeu esse nome quando um pajé viu uma
alma caindo de seu corpo. O pajé viu o inamadi jogar um korimari de volta para o
corpo de onde tinha saído, como quem despeja água num pote. O korimari assustado
correu do corpo e caiu. Por isso, ela foi chamada de Sonake ["aquela que caiu"]. Já a
mãe do meu pai, Natafi, recebeu o nome de uma alma de mulher de Tamino abano
português, recebeu o nome Bahifaititiwaini; sua irmã Bidama, conhecida como Luzia
alma teria visitado a casa do pajé Raimundo Soares e assim se apresentado Bida iha
ama owa oni, "eu me chamo o amargo iha"); sua irmã Beterina recebeu este nome
devido à uma alma de jarafana, mulher branca, do céu; por fim, sua irmã mais nova,
Bowina, passou a ser chamada de Awanaira (árvore não identificada) após a reclusão.
Recentemente, além dos nomes de almas de plantas, alguns jovens começaram a utilizar
nomes de animais e de insetos, tais como Pato, Wafa (macaco barrigudo), Sinama
(cotia), Abakasai (cigarra), Awida (piau), Dowisi (calango), Titiri (grilo), etc. não para
substituir os nomes recebidos dos pajés, mas como uma alternativa para mantê-los
ocultos. O mais comum é que estes nomes de animais se refiram à espécie, a única
230
exceção que registrei foi o nome de uma menina, neta do pajé G., que recebeu de seu
avô o nome de uma alma de peixe matrinxã, de acordo com seu relato:
A filha da Maria Rita chama Winaha. Esse é o nome de uma matrinxã que morava no
igarapé Canuaru, onde tem muita matrinxã. Eu matei o peixe e coloquei assim no
galho, pendurado. Aí a matrinxã, que já estava morta, falou para mim: "quando nascer
uma criança, dá meu nome para ela. Eu me chamo Winaha". No meu coração eu
pensei/escutei a alma da matrinxã falar.
Chiquito, Valdo, Saturnino, Mundico são alguns nomes de antigos patrões adotados
pelas gerações mais velhas da época do contato na região do rio Piranha. Tiwi
Abrio (corruptela de April), Mainke, são nomes da geração que nasceu na época da
chegada dos missionários americanos. Simão Pedro, Barriga, Ba, Mariquinha, são
alguns comerciantes de Lábrea ou regatões cujos nomes foram adotados pela geração
mais assiduamente tanto o citado município quanto a beira do rio Purus. Por fim, Izac,
Luís, Cangussu, Micaele, Doutor Marde, Doutora Noemia, Dentista, Falcão, Bala, Kali,
Neymar e Rock (do boxeador Rock Balboa), são exemplos de nomes de funcionários da
jogadores de futebol e personagens de filmes cujos nomes são usados pelas gerações
87
A proliferação dos nomes de Jara entre os Jamamadi parece obedecer lógica semelhante àquela da
adoção de nomes e sobrenomes em português pelos Paumari (Bonilla 2007: 207-208).
231
Ademais, há diversos apelidos de duração variável que os jovens solteiros recebem de
colérico): durante alguns meses Damião passou a ser chamado de Masi (morcego)
depois que foi picado por este animal, Kei foi chamada de Dilma à época do
impeachment da antiga presidenta, Ieda, por acumular muitos objetos, recebeu o apelido
Alguns nomes podem ser completamente abandonados, o atual cacique geral, Abadias,
deixou de utilizar seu antigo nome, Torawa, quando se converteu, contudo, esta não é
uma regra, Yiwarinehe não trocou seu nome de alma, recebido de seu avô, mesmo após
converter-se.
232
Nome em português Madi ka oni/yokana, Nome Apelidos/Outros nomes
de alma/verdadeiro
233
Raimunda Mowe (forma curta de Sibati akara (banana quase
Mowelinaha, parte da planta madura)
onde estão as flores)
234
7.2 Plantar os mortos, enterrar as plantas: variações perspectivas fadara-temene
coivara. "Venham morar em sua nova aldeia!", cantam as mulheres chamando as almas
das plantas cultivadas, que se alegram com os cuidados recebidos e o esmero no preparo
Soma-se a isso o desinteresse crescente das gerações mais jovens pelo xamanismo que
acaba por afetar severamente a atividade agrícola (cf. parte I), notável na diminuição da
industrializados.
Agora menos ritualizada, a queima do roçado reúne poucas mulheres para entoar o
yowiri, canto tradicional feminino, enquanto os homens, após negociar com as almas
das plantas derrubadas, adentram a área do futuro roçado com suas tochas de folhas
secas de pupunha. É preciso que o sol esteja a pino para iniciar a queima. Em meio às
fogo que se aproxima cercando-os. O céu e os homens logo são engolidos pela fumaça
e, no escuro, restam suas vozes, a zoada das buzinas e dos berrantes. As colunas de
88
No plantio da batata-doce entre os Krahô, seu crescimento e reprodução seguem a forma circular das
aldeias Timbira (cf. Morim de Lima 2017:459).
235
fumaça, avistadas a grande distância, são admiradas pelos parentes das outras aldeias
que não deixam de comentar sobre os trabalhos e perigos envolvidos na preparação dos
aceitarão o convite de viver em sua nova aldeia. Nas margens da área derrubada em
chamas, as mulheres cantam em uníssono exortando os cultivares para que eles vejam o
yamata tabori boneya mai sarineni eles queimam a aldeia para os cultivares
sibati tabori boneya mai sarineni89 eles queimam a aldeia para a banana
yamata wadibone-ka awa-ya oda aniteni quando os cultivares nos vir trabalhar
Passados alguns dias, homens e mulheres, da mesma extensa família, reúnem-se para
da "perna" (fowa iso); do milho (kimi ino), o "dente"; da banana, a "orelha" (sibati
narabi) etc. O roçado é comparado ao cemitério no qual partes do corpo da planta são
latência pela ação do fogo e dos cantos. "O canto é para as plantas não morrerem",
dizem as cantoras sobre o efeito esperado. Tão pronto começam a brotar, as almas
89
Esta é uma versão reduzida de um dos cantos de queima do roçado, via de regra, enumera-se repetidas
vezes os nomes de todos os cultivares que serão plantados.
236
choram chamando seus pais, aqueles que os plantaram, reclamando de sede e do calor
“nossa aldeia é boa, ela é cheirosa!”; “minha mãe não para de trabalhar mesmo sob o sol
quente”; "pai, estou com sede, me dá água!"; "meu pai fez uma casa para mim!. Os
primeiros dias após brotar são cruciais, o pajé deve se certificar do bom crescimento de
seus cultivares que demandam cuidados por serem ainda crianças pequenas. Um canto
ati nawa nawa hai nawa nawa hai diz a alma da mandioca
wami-ya ohina wai bonehe fowa abono na terra, chora a alma da mandioca que
amadurecerá
ati nawa nawa hai nawa nawa hai diz a alma da mandioca
ati nawa nawa hai nawa nawa hai essa é a sua fala
237
De modo semelhante, no ritual de queima do roçado Suruwaha, as mulheres cantam
para atrair os espíritos das plantas cultivadas, aha karuji (Aparicio 2015:131):
Los dueños de la roza conducían el incendio. Tocaban de manera ritual, solemne, las
trompetas huriatini, llamando a los espíritus de las plantas cultivadas, aha karuji.
Todos gritaban con mucha animación, desafiando al fuego para que este consumiese
troncos y ramas. Las mujeres intentaban atraer con su canto al espíritu de la mandioca,
mama karuji.
Os cantos hawahawi, que compõem uma série de 20 músicas, são performados pelos
Suruwaha na noite seguinte à queima dos roçados. Seguindo a análise de Huber (2012),
eles teriam sido ensinados aos humanos pelo homem-cobra, da espécie hasanawa, no
passado mítico, sob a ameaça de serem picados caso não realizassem corretamente os
rituais de queima e colheita. Sendo imitações da fala da cobra, os textos destes cantos
são parcialmente incompreensíveis atualmente para os Suruwaha: “suas palavras são tão
antigas que ninguém mais as entende” (idem:341). A parte dos cantos cujo conteúdo é
acessível trata da oposição entre homens e mulheres numa comparação entre sexo e
plantio. Segue uma versão resumida do mito sobre a origem dos cantos hawahawi
suruwaha (idem:340):
Os primeiros humanos foram coletar frutas de seringueira, quando uma cobra gigante
desceu da árvore frutífera. A cobra (sem adotar forma humana) mandou as pessoas
terminarem de ajuntar as frutas, e as ajudou a colocá-las num panaco. Depois mandou
as pessoas carregá-la pelo caminho num panaco, e durante a caminhada, lhes ensinou
os cantos hawahawi. Ordenou às pessoas que cantassem [“imitassem”] seus cantos
depois de queimar seus roçados e lhes disse que caso não o fizessem, cobras as
picariam quando fossem plantar mandioca. Além disto, as mandou andar apenas nos
caminhos e não na mata fechada, porque os não-caminhos pertencem às cobras
venenosas (Xagani, Lábrea, 02.04.12).
238
Ainda segundo Huber (com. pess.), os Deni realizam um ritual de queima do roçado e
associam seus cantos ao mito do Mapiri siusiu (que em deni não tem um sentido claro,
mas que em kulina significa “sucuriju”). A presença da cobra nos rituais agrícolas
parece ser um tema comum aos povos arawá; apesar de não colocarem em relevo esta
estas consumiam os produtos de um roçado novo com a intenção de evitar que fossem
picadas por cobras quanto para alegrar as almas das plantas do roçado.
Há diferentes verbos usados para descrever o plantio: o v.t. kama tem o sentido de
aterrar, plantar enterrando, de modo que fowa iso kamahi pode ser traduzido como
conformidade com a segunda acepção do verbo que é jogar ou jogar algo em (fa koro,
"jogar na água", i.e., pescar), assim, fowa mai koronani mai oda wasima, "nós os
239
semelhança de alimentar alguém, awa mai natafaboneni, "eles farão roça"; o v.t. taba
na é a ação de plantar fazendo covas com um objeto pontiagudo, fowa iso ai tabanani,
"plantamos maniva de mandioca cavando a terra"; o v.t. tiha ka- na é plantar fincando
ou batendo na terra como em biha tiha okanaboneni, "eu vou plantar cará"; o v.t. wasa
kanisa é usado para os cultivos que são enfiados na terra, o sentido é de friccionar ou
macaxeira"; o v.t. yiha na é plantar com o sentido de "transmitir", como alguém que
transmite uma doença, desse modo fala-se yiha onabonehe fadara-ya, "vou plantar no
roçado"; por fim, o v.t. yoko na é o plantio empurrando ou apertando, yawida noko yoko
O mesmo v.i. yana é empregado para o brotar das plantas e o crescimento dos humanos
com o sentido de nascer90, donde diz-se indistintamente bidi mai yanateni, "os filhos (os
levantar, sair, aparecer, ou seja, yamata yanineni, "os cultivares brotam", e ai yanineni,
de novo".
Tão logo os brotos dos cultivares irrompem do solo, suas almas vão para o céu, de onde
90
As plantas inspiram imagens do crescimento geracional entre diferentes povos de língua Jê. Morim de
Lima (2017:460) cita algumas passagens de trabalhos que formulam a sucessão geracional em termos
vegetais: "entre os Mebengôkre, o termo genérico para os jovens é 'broto novo', uma das consequências
lógicas de representar as genealogias com os ancestrais na base e as gerações 'descendentes' brotando para
cima e para os lados" (Lea 2012:102). (...) Entre os Apinayé, a imagem do pé de milho evoca a sucessão
das gerações, seus diferentes graus de 'maturação', com as espigas que crescem na parte de cima, geradas
pelos velhos que ficam na raiz (Roberto DaMatta 1976). Entre os Panara, a palmeira de buriti 'cresce no
mesmo lugar de modo análogo à identidade clânica, definida pela fixidez espacial' (Schwartzman 1988)".
240
fragmentação e a liberação da alma é um processo que se repete de maneira bastante
similar no plantio e na morte. Nesta fase, os donos dos roçados, fadara ka hidi,
retirar as plantas invasoras, identificar a presença de formigas (os ninhos são localizados
e destruídos com água quente ou fogo), afastar os animais predadores e conversar com
destruidora do noko koma, "o olhar envenenado", há o olhar dirigido aos cultivares para
obstinado. Apesar de menos frequente, também é usado o v.t. kii na, olhar
As plantas cultivadas são os filhos dos Jamamadi que as plantaram, donde: a alma de
uma bananeira plantada por Bahawi, por exemplo, é o duplo humano da bananeira e
filha/o deste xamã, além de um de seus espíritos auxiliares. São as almas do roçado que
vêm buscar a alma daquele que a plantou para levá-la à sua moradia póstuma; além de
“filho” são reversíveis (não saberia dizer se essa reversão se aplica integralmente a
potenciais pais adotivos. O mesmo não se aplica à filiação "real", que não se desfaz com
a morte do pai ou dos filhos. O processo é semelhante àquele descrito para os Jarawara
(Maizza 2014:504):
241
O processo que separa as almas das plantas de seus corpos se assemelharia a um
nascimento (ou à morte): uma pessoa semeia em seu jardim; algum tempo depois a
planta sai do solo e começa a crescer. Quando ela atinge certa altura, estando ainda
pequena, baixa, sua alma sai de seu corpo e fica ao lado deste, chorando. Os xamãs
dizem que a alma da planta tem a aparência de um bebê humano e é filha da planta da
qual saiu. A alma da pupunha (yawita abono) é filha da pupunha, por exemplo. (...)
Essas crianças que choram ao sair do corpo-planta seriam, além de filhos das plantas,
filhos da pessoa que semeia: 'okatao yokana' é meu filho de verdade, me chama de
okobi (meu pai)', me disse um amigo. (...) Ao sair de seu corpo-planta, a criança-planta
chora e é então levada 'lá para cima' por almas de plantas que já moram no neme [céu]
e descem apenas para buscá-la. Ela é então criada por um casal de gente-planta (não
necessariamente da mesma espécie que ela), que nomeia. Ao crescer, chamará de pais
os componentes do casal.
Ecoando o argumento proposto por Lima (1996:35) acerca da duplicidade dos seres e
ser visto como o enterro para as plantas, pois não sendo um evento único, irredutível a
em seus túmulos. Plantio e enterro são ações correlatas, vividas em concorrência pelos
por isso, parafraseando Lima (1996:31), não se recobrem inteiramente, com efeito, o
91
Recuperando brevemente o argumento da autora: considerando-se parte da humanidade, os porcos
tratam a caçada dos humanos como um confronto no qual tentam capturar estrangeiros, intenção efetivada
caso o caçador humano não respeite a circunspecção exigida no trato com os porcos; por outro lado, do
ponto de vista humano, o evento parece um ataque dos porcos ao serem caçados. Do questionamento da
proposição acerca da existência de uma realidade independente - "o que existe, existe para alguém"-, a
autora dissolve a distinção entre substância e acontecimento na cosmologia Juruna, de modo que não é
suficiente dizer que o que os humanos veem como caça, os porcos veem como guerra, afinal, esses são
dois acontecimentos paralelos, não dois modos de apreensão de um único evento (Lima 1996).
242
que existe para os humanos é apenas parte do que sucede para outrem, neste exemplo as
plantas.
O roçado é, então, a forma terrena dos cemitérios das plantas cultivadas onde partes de
seus corpos – perna, dente, orelha, etc – são plantadas/enterradas e, ao crescerem seus
duplos humanos, são levados para viver no céu. De maneira semelhante – resultado das
temene, cemitério –, o enterro dos mortos humanos ocorre, do ponto de vista das
plantas, como ação agrícola: as almas dos cultivares plantam a alma-coração dos mortos
Vivemos e morremos de um jeito parecido [das plantas]. Quando uma pessoa morre,
seu korimari [alma] é levado para o céu por um espírito inamadi. Lá, ele será criado
(como uma galinha) depois que nascer e passará por todos os rituais. O corpo do
morto a gente planta do mesmo jeito que maniva ou banana. Ela, a maniva, está morta
e fria. Tudo [cultivares] é pedaço de coisa morta. E, se a alma não vem, as coisas não
crescem. Quando corta a maniva, não dói? Dói sim, o yamata chora. No roçado, a
gente planta um pedaço do corpo, do mesmo jeito somos nós. Ai wami-ya kamaho,
'somos plantados/enterrados na terra'. E kamahi wami-ya sibati, 'na terra é
enterrada/plantada a banana'.
Alguns dias após o enterro, a alma do morto brota de seu túmulo e, assim que
localizada, é levada para sua morada póstuma nas aldeias celestes. Por intermédio de
um pajé, as almas dos cultivares são avisadas para procurarem e resgatarem o korimari
do morto, abordarei esse ponto adiante mais detidamente. Não raro acontece de um
encarregado terá mais trabalho para localizá-la e convencê-la a ir com ele. Quando o
243
morto aceita acompanhá-lo, a alma o leva para o céu, onde será cuidado até recuperar-
Assim como as plantas, após o enterro, a alma do morto sai da cova e fica esperando
para ser levada. A grande diferença é que, apesar de ter a aparência humana, ela não
seria uma criança. Quem desceria para buscá-la seriam seus próprios filhos-planta:
almas de plantas que a pessoa cultivou em vida e que foram levadas para o neme [céu]
quando pequenas (Maizza 2014:505).
Fig. 15 Cemitério coberto com telha de alumínio à margem do antigo roçado de Badá
Apresento uma versão do mito de origem da vida breve no qual alguns pontos centrais
deste argumento são elaborados. Nas ocasiões em que me contaram esse mito, um dos
92
O tema da vida breve indica um outro conjunto etiológico, ainda que vagamente esboçado no mito
Jamamadi, a saber, o da origem da agricultura e a aquisição das plantas cultivadas, que abordarei no
capítulo seguinte. Lévi-Strauss (2004[1964]) sugerira em sua análise de um conjunto de mitos Jê que a
morte se impõe aos humanos como preço a ser pago pelas plantas cultivadas, em virtude da vingança da
mulher-estrela ou porque os adolescentes descumpriram a proibição do consumo da carne de sariguê.
244
Uma mulher idosa criava cobras de diferentes espécies, em recipientes de barro,
tampados com abanos. O neto, sem saber das cobras, foi beber água e, ao destampar
os recipientes, acabou picado seguidas vezes no rosto, duas vezes nas bochechas e
outras vezes na testa. A criança “morreu” logo. Seu pai, que era xamã, não se
aborreceu porque ele sabia que o filho só estava "dormindo" e não tinha morrido.
Assim, ele enterrou o corpo para que ele voltasse a viver. O pajé fez um buraco do
tamanho exato para caber o corpo do filho sentado. Naquela época todos eram
enterrados assim para facilitar a saída do “túmulo” que não era totalmente tampado,
apenas coberto com uma leve camada de terra. Por vezes, era erguida sobre o túmulo
uma cobertura de paxiúba e amarrava-se um fio de algodão com uma pena de tucano
na ponta para que o morto puxasse assim que começasse a nascer para sair do buraco.
Contudo, o pai não havia feito essa casinha para o filho por ele ter pressa para caçar.
Ele queria trazer carne de caça para alimentar o filho porque as pessoas ao renascerem
banana): ele “rasgou” a terra, empurrando-a com a pontinha da cabeça que saiu como
um broto. Porém, o pai havia esquecido de avisar para que sua mulher tivesse cuidado
quando fosse limpar o terreiro. Ela desavisadamente arrancou a cabeça do filho que
estava brotando. A terra ficou molhada com seu sangue. O pai voltou com a caça e viu
o sangue do filho, então, enfureceu-se com a mulher. Ele se deu conta de que o filho
não voltaria mais a nascer. Ele a matou arrancando de seu ventre a criança que ela
noite/jupará (Potos flavus), kokosi. Ele se casou com sua filha e com ela teve muitos
cobras em todo o lugar. As pessoas tampouco renascem na terra, por isso, hoje são
enterradas deitadas.
245
Na narrativa acima, um estado de indiferenciação entre humanidade e plantas é descrito
limites do vegetal e do humano. Antes, “nós voltávamos para trás”, eles costumam dizer
solo, empurrando a terra para despontar na superfície; chegam a afirmar que “gente e
banana cresce igual”. Em lugar de afirmar que a animalidade é outra face do humano, a
mera sugestão de que possa existir vínculos "evolutivos" que relacionem humanos e
formulação um tanto rápida, mas adequada com o que diriam os Jamamadi: é intrigante
que eles reconheçam ter mais em comum com as bananeiras que com os macacos.
almas de planta e suas relações de cultivo para completar plenamente sua morte94. A
93
A oposição vida/morte não se expressa aqui através do par duro/mole, perecível/imperecível, tal como
elaborado por Lévi-Strauss no conjunto de mitos sobre o tema da vida breve nas Mitológicas
(2004[1964]). A morte teria sido o resultado da resposta da humanidade ao chamado da madeira
(mole/perecível) ao invés da rocha (dura/imperecível). Interessante observar que apesar da alma-coração
ser comparada às sementes, o processo regenerativo no discurso expressa um modelo de desenvolvimento
vegetativo, por clonagem (ver considerações finais).
94
Haudricourt descreve a Nova Caledônia como um exemplo do que ele chama de "civilização do
inhame". Comparando as práticas agrícolas baseadas nos grãos com aquelas de turbérculos, ele constata
diferenças produtivas acerca da relação entre o homem e as plantas cultivadas. Os tubérculos conformam
uma cultura do clone: "à chaque saison de culture les mêmes individus sont replantés pour être récoltés à
la suivante. Le mot clone désigne l'ensemble des tubercules provenant, par repiquages successifs, du
même individu. Il s'agit donc d'une agriculture dont la base biologique est absolument stable, et
l'agriculteur sait qu'en cas de mauvaise récolte, le sol, son travail et la pluie sont seuls responsables, et
246
perenidade da existência vegetal é o desconhecimento da finitude humana: “a bananeira
pode morrer, mas o filho dela nasce; você queima o roçado e a mandioca cresce de
novo”. Ou nas palavras do pajé D: "Antes, morria, enterrava e voltava para a aldeia. O
inamadi é planta mesmo como yawida, a pupunha. Eram plantados e voltam a brotar de
novo". Os jamamadi eram como os yamata cuja periodicidade tem valor de vida, ao
A capacidade regenerativa das plantas é enaltecida por outros povos que, ademais,
e sociais:
(...) the Huaorani celebrate in their myths and poetry the inherent power that biological
organisms have to grow themselves and be alive, which is especially visible in new
leaves that shine. Today, they say that brightly coloured brand-new clothes shine as
young leaves. The power of self-regeneration does not derive from human
intentionality, and the vitality and will to live such a power signals is not necessarily
attributed to a spiritual force; in any case, the cosmic force that causes plants and
animal and human bodies to grow and live is neither singularised nor
anthropomorphised (Rival 2012:135).
"as plantas não morrem. Até nossos filhos jovens morrem, mas as plantas, não. De
repente, elas voltam a viver", disse-me Berinawa assitindo uma área derrubada em
chamas. Agora, os filhos-planta precisam buscar a alma/coração dos Jamamadi para que
eles alcancem sua morada póstuma, onde serão por ela plantados para que renasçam,
respiração. Em seu destino póstumo, os Jamamadi serão criados por ela, submetidos aos
qu'il ne peut incriminer une 'dégénérescence'" (1964:95). Volta-se aos Jamamadi a questão posta pelo
autor: "[n]e vaudrait-il pas mieux considérer l'homme vivant comme apparenté à son champ, domaine de
la vie journalière, du prévu, de l'attendu, du rationnel, puisque les clones des plantes cultivées y sont
toujours identiques à eux-mêmes?"(idem:100).
247
rituais de iniciação pubertária e xamânica, viverão em suas aldeias, trabalharão para
seus patrões e se casarão com as almas de plantas que cultivaram em vida. Quando
falecerem no céu, o processo se repetirá da mesma forma e a alma da alma será levada
para outro céu mais acima, a capacidade da alma se desdobrar ou brotar é praticamente
ilimitada, muito embora esse retorno cíclico, atávico, não seja entendido como infinito.
distintas:
Todos fazem esse caminho quando morrem: primeiro são tratados como num hospital
e, depois, vão viver na aldeia grande. Os jovens são adotados, os adultos sem demora
se juntarão [casarão] com algum yamata abono. A pupunha é a preferida porque sua
comida é gostosa. Neste céu, há morte também e, depois dele, tem outra vida longa,
mais longa que a da terra.
gente-plantas são cultivadas pelos Jamamadi e os cemitérios nos quais os Jamamadi são
enterrados são os roçados onde essas gente-plantas buscam sementes para cultivar no
liminar aos humanos, instável e perigosa, somente restaurada pela intervenção das
95
A correlação entre ação funerária e atividade agrícola parece-me ecoar aquela estabelecida por Lévi-
Strauss na "cantata do sariguê" (2004[1964]:197:222) na qual o tema da origem da vida breve é uma
função da origem das plantas cultivadas.
248
transformação, ou passagem, de um estado ontológico a outro. Em certa medida, esse
retorno atávico ecoa o argumento proposto por Haudricourt ao aproximar os mortos aos
"inculto" de ambos: "c'est que l'homme vivant qui mange des ignames est le 'cultivé',
alors que, mort, il est devenu un 'inculte', comme le champ abandonné devient jachère"
"de même que la jachère peut redevenir un champ, 'l'inculte' peut redevenir 'cultivé', il
apparaît donc comme le 'dieu' (...)" (idem). O retorno, contudo, como já sugere o texto
96
"Dans les récits traditionnels, les 'résurrections', les retours à la vie s'opèrent par l'ingestion d'un aliment
'cultivé', soit la pomme-canaque (Syzygium malaccensis) qui tombe dans la bouche du cadavre flottant,
soit l 'igname grillée, que 'l'inculte' vomit d'abord et n'arrive le plus souvent à ingurgiter qu'après trois
essais. Dans les récits de retour à la vie recueillis dans le centre (Houailou), l'igname est accompagnée de
la canne à sucre, et son absorption est précédée d'un crachotement d'herbe (procédé usuel des
guérisseurs). Dans les récits du nord (Koumac), l'absorption d'igname est précédée d'un frottement de
noix de bancoul" (1964:100). O autor fundamenta-se em um trecho Maurice Leenhardt: "un homme fut
assassiné en revenant d'un pilou; seul son esprit revint chez lui faire ses adieux à sa femme et à son fils,
puis alla dans la forêt disparaître dans un arbre. Son fils voulut le rappeler à la vie. Il monta à Kondu,
déterra une igname, coupa une canne à sucre, et s'en alla au lieu où son père, autrefois, avait été perdu de
vue. Il fit un sacrifice et pria: 'Père, grand-père, qu'il pleuve à verse, que le tonnerre éclate, que descende
une inondation'. le tonnerre donc éclata, déchira l'arbre où le père était enfermé. Le tronc s'entrouvrit, le
jeune homme bondit, saisit son père, lui donna un morceau d'igname; mais le père le vomit; le jeune
homme lui en donna un autre qu'il avala, puis lui offrit une canne à sucre qu'il vomit; au second essai, le
père l'avala"(1964:100-101).
249
relacionais entre a humanidade vegetal e a humanidade atual. Outrossim, não creio me
afastar do argumento ao afirmar que o referido mito de origem da vida breve não é
engano, uma dessas falhas na comunicação bastante comuns nas narrativas míticas, uma
vez que que os Jamamadi não contam esse mito com a intenção de justificar um
comportamento ou pensamento atual, ainda que ocasionalmente este possa ser o caso,
trata-se mais bem de por às claras "o mundo tal como ele é de um modo altamente
das plantas, um prolongamento da vida que não é a duração perpétua, eternidade, mas
uma “má infinitude” (cf. Marder 2013: 107-112), dado que as plantas não morrem à
própria morte. Quando os animais atingem a maturidade sexual, seu crescimento cessa
quase por completo, ao passo que para as plantas essa etapa do desenvolvimento não é o
97
Conferir o capítulo "Vivre sans jamais cesser de grandir" no livro "À quoi pensent les plantes" de
Jacques Tassin (2016). Da lista de coisas que as plantas estão supostamente privadas, a saber, movimento,
sentimentos, reflexividade e consciência, emerge o crescimento como sua qualidade primária positiva,
tomado como essência definidora da alma vegetativa, de acordo com a caracterização aristotélica
tripartite da psyche: "It's this wild, potentially even cancerous, growth that is both the promise and danger
of vegetable life in Greek thought. (...) It is this 'wild' essence of uncontrolled growth that earns plants
their position as the 'lowest' or most basic form of life (precisely insofar as growth and the ability to
reproduce and die are the rudimentary markers for life in Western thinking" (Nealon 2016:31).
250
O desenvolvimento das plantas não é constrangido por limites temporais, pois “[o]
corpo vegetal é uma indústria morfogenética que não conhece a interrupção” (Coccia
2016: 26). O botânico Francis Hallé é mais preciso, "l'arbre vit et meurt simultanément"
outro momento: ser plantado para brotar em outra vida, em outro céu98.
98
Não poderei demorar na questão da conversão religiosa e as complexas transformações implicadas,
temas largamente desenvolvidos entre diferentes povos amazônicos (Vilaça 2015, 2016a e 2016b). Sobre
o assunto, arrisco somente um breve comentário. A boa infinitude de Deus, a saber, a eternidade, é a
solução evangélica que se contrapõe ao modelo de vida das plantas. Resumidamente, a figura das almas
das plantas cultivadas é substituída pelos deoso ka yoyose, os anjos (tradução literal seria "ajudante de
Deus"), na tarefa de resgatar e levar as almas para a cidade de Deus, no último céu, onde não há mais
doenças e guerras, tampouco qualquer comunicação com a terra, quer dizer, toda atividade xamânica é
interrompida. O tempo divino é estável e homogêneo, um contínuo linear e uniforme não suscetível à
incontinência cronológica da alteridade vegetal. Dizem que no último céu é tudo parado, as coisas não se
desgastam, não ficam sujas e ninguém envelhece. Neste patamar, não há plantas, portanto, não há guerra
mundial ou conflito de qualquer tipo.
251
7.3 A morte como fragmentação da pessoa
Se no passado mítico o túmulo consistia num buraco com as dimensões exatas para
caber o corpo posicionado sentado, hoje, os mortos são enterrados deitados, numa
espécie de casa coletiva coberta com telha de alumínio. Na cova onde o corpo é
depositado, é posto um assoalho feito de ripas de paxiúba para impedir o contato direto
com o chão e, sobre ele, coloca-se uma esteira de paxiúba e um pouco de terra, que não
pode ser em grande quantidade para não atrapalhar a saída dos componentes da pessoa.
A umidade irrita o morto, torna irrascível a alma ao brotar, de modo que é preciso tomar
muito cuidado para que o corpo não se molhe. Ademais, da mesma forma que as
morto reserva-se o céu como destino póstumo, onde chegam por intermédio dos yamata
abono com quem irão se casar, trabalhar e viver. Os animais e o espectro ai fami,
liberados em seguida, têm outro rumo: aqueles vão para o subterrâneo e estes estão
Coração e alma são termos intercambiáveis no discurso centrado na morte, uma das
razões para se evitar definições excessivamente anatômicas do coração como órgão tout
court, pois, se é a sede do saber, da fala (owa atibodi ati, "minha fala/palavras"), dos
sentimentos (owa atibodi koma, "estou triste"; owa atibodi oina, "choro de tristeza";
owa ati bodi arira, "estou assutado"; owa ati bodi yayaineni, "estou feliz"), da
252
própria alma, ele condensa e embaralha aspectos biológicos, estéticos, anatômicos e
ecológicos.
não era oculta, talvez por esse motivo, guarda a potência do crescimento e da
gente”. Seria por esta razão que dos cultivares plantam-se outras partes do corpo além
99
Muito embora, de forma correspondente, as sementes também sejam o coração das plantas. Certa vez,
levei uma bronca porque joguei os tomates que eu comprara na cidade, mas que tinham estragado no
caminho de volta para a aldeia. Ainda que os frutos não servissem para o consumo, as sementes podiam
ser plantadas, eles alegaram. Além disso, desaconselha-se descartar as sementes das frutas sem cuidado
ou em qualquer lugar. Presenciei algumas vezes esse cuidado, quando após comer um fruto, as pessoas
diziam em direção à árvore: "Obrigado, meu parceiro!", e enterravam a semente perto dela. Além disso,
quando vão à cidade de Lábrea, os Jamamadi sempre voltam com saquinhos cheios de sementes das frutas
que comeram para plantar na aldeia. Se algum parente comer melancia, laranja ou maçã e não levar as
sementes para os que ficaram, caso estes tomem conhecimento, com certeza, haverá briga. Quando chego
na aldeia com frutas da cidade, eles não fazem tanta questão de comê-las, e sim de pedir as sementes,
insistindo para que eu as guarde.
253
compactada – como em awabono, fruta; fabono, gelo; hemedibono, comprimido; e
bono, bico de pássaro; ko- e ri- são dois morfemas com sentido pouco preciso. A análise
jamamadi baseia-se na hipótese de que seu sentido base vem de boni/bono como coisa
bunukhude (reto como uma vara ou árvore. Também uma pessoa "comprida", alta, seria
das doenças. A raiva é descrita como o coração batendo com muita força; a tristeza e a
saudade são dores agudas no coração; o carisma é ter um coração forte; “meu coração
sabe” é dito apontando para o peito ao afirmar que se detém um certo conhecimento; a
expressão usada para declarar um ponto de vista é owa ati bodi... cuja tradução seria “de
100
As análises dos termos em deni e suruwaha são de Adriana Huber, com. pess., antropóloga que
trabalhou durante vários anos com estes dois povos e tem profundo conhecimento linguístico das línguas
arawá. Agradeço a ela por estas sugestões.
254
coração das caças abatidas é evitado por medo de que estas possam tomar conhecimento
alma de alguém, leva junto consigo o seu coração, que será posto na borda de uma
fogueira para assar. Diz-se que o enfermo fica se revirando inquieto em sua rede por
causa da dor que sente por ter seu coração moqueado no fogo dos espíritos canibais.
devagar, mas pode acontecer do coração ser jogado diretamente no fogo, ação que se
realiza na pessoa como uma morte abrupta. Esta é a explicação para as variações
recuperação possível.
definitiva, leia-se, não haverá vida póstuma. Recuperar a alma e o coração garante que
se possa seguir morrendo, de acordo com sua concepção de vida em mortes sucessivas
como uma canoa que viaja até a gasolina do motor acabar, segundo a explicação que me
foi dada por Badá. Lembrando que, dos seres vivos, asseveram que todos possuem alma
não porque ela seja necessária à vida, mas inversamente, “porque senão não poderiam
255
morrer”. A morte salientada na proposição não é um estado definido qualitativamente,
O pajé é o responsável pela negociação com as almas dos cultivares que vêm à terra
com seus cães de caça para resgatar a alma do parente recém-falecido101. Ele chama,
"com o seu pensamento que funciona parecido com o celular", as almas das plantas
fortes/duras porque o korimari do morto pode estar bravo e se recusar a ir para o céu.
Ao chegar na terra, a alma manda seu cão em busca de vestígios do morto, que pode
afastar-se bastante de seu túmulo ou ser raptado por um inamadi por estar indefeso. Por
isso, de preferência, o morto é enterrado perto102 de seus antigos cultivares para que
suas almas o protejam103. Se a alma do morto já estiver morando com espíritos inimigos
101
As traduções missionárias buscam dissociar os diferentes sentidos condensados na noção de "coração".
Na construção de uma versão evangélica para o termo que torne obsoleta, ou melhor, nefasta a relação
com os espíritos inamadi, valoriza-se o coração enquanto sede do afeto, do conhecimento e da linguagem,
ao mesmo tempo em que apaga-se seu aspecto vegetal de semente tornando-o perecível e descartável após
a morte. Para tanto, é necessário dissociar o coração da alma, pois, somente esta poderá ter uma duração
póstuma. Nesse sentido, o coração passou a ser referido mais pelo termo atibodi, cujos sentidos focais são
"pensamento" e "sentimento", que por atibonokori, cuja ideia central é "vitalidade vegetal" ou "princípio
concentrado do ser". Então, quando Deus deu o coração para Adão, este começou a falar, pois o coração é
a sede da fala. Contudo, quando dizem que Jesus levou o morto para o céu é somente de sua alma que
estão falando porque não é necessário reconstituir a pessoa através de seu coração, ou seja, plantá-la no
céu. As almas dos cultivares são transformadas em figuras angelicais, Deoso ka yoyose ("ajudantes de
Deus"), que auxiliam Yeso (Jesus) e intervêm em benefício dos homens, porém, de forma limitada se
comparada à importância cosmológica "original".
102
No dia da morte do pajé Siko, seu neto H. o encontrou olhando sua plantação de abacaxis. H. correu
para avisar a mãe, achando que seu avô havia voltado (na ocasião, Siko havia sido removido por uma
equipe de saúde por causa de uma grave doença, porém, o pajé morrera antes de chegar na cidade). Os
parentes foram procurá-lo, mas não era o avô que havia retornado. H. vira apenas sua "casca vazia", i.e., a
alma havia se soltado do corpo e voltara para junto de seus cultivares, possivelmente para esperar que
uma delas o levasse para o céu. No céu, Siko foi criado justamente por essas almas de abacaxi.
103
Diz-se que a embaúba, boka, cresce nos roçados por gostar dos Jamamadi. Essa é uma planta respeitada
256
da terra ou subterrâneo, há brigas para resgatá-la – a alma do cultivar manda soltar seu
parente. Quando a encontra, a alma de planta a levará sobre seus ombros ou o cão a
carregará em sua boca como se fosse um filhote. O pajé pede para que o morto seja bem
tratado: okadao dai nofahi!, "gostem/cuidem do meu filho" – caso o morto seja seu
filho. No céu, a alma será alimentada com leite (à semelhança dos animais de criação,
frisam), crescerá, receberá outro nome, mas não esquecerá seu nome antigo.
Pode ser que o avião de algum yamata abono venha buscar o korimari. Quando ele
chega no céu, é mandado para um hospital onde o médico vai tratar porque está
doente. O médico dá outra carne para o morto, diferente da velha [daquela terrena].
Ele recoloca o fígado, o cérebro, tudo [os órgãos] cresce de novo. Ele pode usar uma
máquina grande, parecida com lava-roupas, e a pessoa sai nova. O pajé remenda com
cola, costura igual roupa, então, as pessoas não morrem fácil nas brigas da guerra
mundial.
entenda-se, uma onça (ai ka yomahi), que é o “cão de caça” que vive no interior de cada
desprende do corpo, encontra-se fraca e doente. Ela fica miando, vagando pelos
arredores do cemitério até ser encontrada pelo yamata abono que irá levá-la para o céu e
entregá-la ao seu dono, o korimari do falecido. Pode acontecer de outra alma afeiçoar-se
por seu poder de regeneração ("Em uma semana, ela já nasceu de novo!", observam). Também o homa,
bananeira do mato (Phenakospermum guianensis), tem capacidade de crescimento semelhante. Ambos
são considerados pajés poderosos pela eficácia de seu tratamento, boka abono e homa abono cuidam das
almas do mortos quando são levadas para o céu.
104
Segundo os Mamaindê (Miller 2007:176), há dentro do corpo versões reduzidas de alguns animais,
somente visíveis ao xamã. De maneira semelhante ao que dizem os Jamamadi, a oncinha que vive no
corpo é a responsável pela vontade de comer carne: "[d]e acordo com o xamã, todas as pessoas possuem
uma oncinha (yanãweikdu, onça filhote), localizada dentro do dente. Assim, ao olhar para o dente, o xamã
enxerga essa oncinha que é, segundo ele, é a responsável pela vontade de comer carne (widagu). Algumas
pessoas também descreveram essa oncinha como um tipo de cachorro bem pequeno. O dente que o xamã
enxerga como uma oncinha é chamado pelos Mamaindê de “dente de onça” (yanãwidu). Quando
sentimos vontade de comer carne, na verdade, é a oncinha que está pedindo comida, portanto, nós
comemos carne para alimentá-la. Um jovem Mamaindê que havia acabado de voltar de um curso para a
formação de agentes de saúde indígenas explicou-me que essa oncinha é como os vermes: fica dentro do
nosso corpo, comendo tudo o que a gente come" (idem). No caso da oncinha Jamamadi, ela vive no
intestino e o barulho produzido pela barriga vazia é o esturro do animal reclamando para ser alimentado.
257
da oncinha e roubá-la; nestes casos, o yamata abono encarregado terá trabalho para
anta (awi), o caititu (kobaya), o veado roxo (bado), o macaco barrigudo (wafa), o
queixada (hiyama) e, na época das chuvas, peixes (aba) – eles não excluem a
dizer se, tal como a onça, estes outros animais estão associados a algum órgão do corpo
humano ("tudo [os bichos] fica miudinho dentro do nosso corpo"), o que eles afirmam a
respeito deste processo é que todo tipo de bicho sai de dentro da pessoa e que os “bichos
são pedaços de nós”106. Como as demais partes da pessoa, esses animais saem fracos da
sepultura, mas ao contrário dela, eles não serão levados ao céu e nenhuma alma de
planta cuidará deles. O destino desses animais é o subterrâneo, wami bodi, para onde vai
o xamã quando seus parentes lhe solicitam uma caçada coletiva, dowada, feita de forma
indireta como uma reclamação de que a aldeia está passando fome. O xamã vai, então,
caçadores. Ele os açoita com uma vara, procedimento usual de transformação corporal,
105
Todo corpo humano possui internamente esses animais, assim sendo, com as almas dos cultivares não
seria diferente. A morte dos duplos das plantas obedece a mesma sequência da decomposição corporal.
106
Abadias, atual cacique geral - liderança que está acima dos caciques e lideranças locais de cada aldeia
jamamadi - e filho de pais Wayafi (antigo subgrupo madi), apresentou-me uma variação interessante a
respeito dos animais que vivem no interior do corpo das pessoas: "Os bichos que saem do corpo são os
que a gente comeu. Eles "pagam a conta" (i.e. vingam-se) de quem [os] comeu. A "sombra" dos animais
sai e come o corpo do morto. É um tipo de manakone (vingança)". De acordo com a explicação que ele
recebeu de seu pai, espectros dos animais vão se acumulando conforme nos alimentamos e, quando
morremos, eles percebem e dão o troco (manakone), vingam-se por terem sido comidos e passam a comer
o nosso corpo. Por fim, saem do solo com a aparência de animais. Para Abadias, nós temos duas onças no
intestino, elas são os únicos animais que vão para o céu, ao passo que os demais permanecem na terra.
258
aldeia. Para se referirem ao aparecimento dos animais de caça dizem que “o corpo do
mansos, quase sempre, estes são partes do morto que retornam à aldeia para serem
poucos dias depois, um macaco barrigudo, wafa (“grande como minha ex-cunhada
Tameribi”) apareceu no terreiro de sua casa, assobiando para ele. Badá quis criá-lo
porque era bonito e manso, contudo, logo chegaram seus vizinhos querendo matá-lo.
Ele tentou alertá-los dizendo que não se tratava de um macaco, mas de sua cunhada
fugiu.
noite ou quando se está sozinho, para não ser atacado pelo espectro, ai fami, que é o
desprovido de pelos no corpo e incapaz de articular qualquer som. Ele vive solitário, em
estado de desejo desmedido e age movido pelo rancor daqueles que permanecem vivos.
Na tentativa de vingar-se dos parentes, ele ronda suas casas para agredi-los ou matá-los.
Meu filho foi caçar faz tempo. Ele mirou no nambu e viu que tinha alguém olhando
ele. Parecia uma pessoa, mas era careca. Zezinho olhou, olhou e percebeu que era ai
fami. Ele é muito bravo, tem catinga forte. Quando vê alguém, seu olho dá doença. Ele
tem raiva da gente, mata e come. Eles gostam de ficar perto do cemitério. O Zezinho
voltou doente para a casa e quase morreu.
259
7.4 O resgate das almas e a vida póstuma
2013, Salgado, filho do pajé Siko, me chamou dizendo que queria me fazer uma
pergunta. Ele estava com a câmera fotográfica de seu primo Eliseu, que o acompanhava.
Salgado foi passando as fotos que fizera do ritual até chegar na foto que queria me
mostrar e que aparentemente não tinha nada de especial. Ele apontou para uma luz,
parecida com um flash, e quis saber se era do meu gravador. Neguei e, em seguida, ele
emendou a justificativa: “João korimari, a alma de um filho morto do cacique Badá, foi
convidado por seu pai para ver e registrar o ritual. Ele tinha um equipamento de
filmagem, parecido com uma televisão, que ele usou para gravar nossas músicas para
mostrar no céu”. Salgado fez um esquema dos diferentes planos do cosmo para me
260
Fig. 16 Esquema simplificado da cosmografia: "Cidade de Deus" (Deoso tabaro),
"Céu" (não identificado), "Céu das almas dos mortos" (ai korimari),
"Aldeia dos Jamamadi" (Yamamadi me tabori) e "Japão"107 (Yapao, onde se come cru).
Salgado não se prolongou nos comentários sobre a chefia da alma do limão, apenas
participação das almas dos Jamamadi mortos nos rituais dos vivos. A alma do limão
viera somente como acompanhante de João, falecido há mais de duas décadas vítima de
107
Há diferentes estratos subterrâneos: o mais superficial é o local no qual estão os animais e o mais
profundo é o Yapao, terra de inamadi guerreiros, apreciadores de carne crua (índice de uma alimentação
canibal), especializados em tecnologias de ponta, como ressaltam ao dizer que “todo motor bom é feito
pelos inamadi do Yapao”. Os Jamamadi tecem interessantes reflexões sobre o Yapao, mas que, por
ultrapassarem o escopo do presente trabalho, não serão devidamente elaboradas. Cada patamar do cosmo
e seus respectivos habitantes são caracterizados de acordo com a experiência pessoal de cada pajé e de
sua relação com os seres. Em comum, porém, afirmam que as plantas de lá são morfologicamente
"confusas", a saber, as folhas e frutos das diferentes espécies são misturadas (“não têm árvores lá como
aqui. O Buriti tem folha igual da pupunha, banana tem folha como do limão e o tucumã tem as folhas
iguais as da banana".); além disso, sempre ressaltam a agressividade dos espíritos japoneses. Talvez por
ser filha de pai japonês, mas não só, o Japão foi um tema recorrente ao longo de meu período de campo.
Em uma dessas conversas, quando contei que muitos pratos típicos são feitos com peixe cru, eles
confirmaram algumas de suas expectativas. Com a aquisição dos primeiros aparelhos de televisão e
celulares, a imagem que passaram a construir desse patamar tornou-se derivada dos filmes de ação com
suas lutas de movimentos exorbitantes, armas tecnológicas e japoneses ferozes (japoneses, chineses,
coreanos são considerados indistintamente).
261
um feitiço soprado pelas almas de Arada e Agostinho, ambos do povo Wayafi,
incorporados aos Jamamadi em meados dos anos 1950. Na época, João havia ido ao
roçado buscar banana para alimentar seu fisi, macaco zogue-zogue, e acabou flechado
na garganta pelas almas. Não demorou para que ele falecesse, apesar dos esforços de
seu pai em recuperar sua alma. Foi o irmão do cacique Badá, o pajé Siko, que mandou
alguns de seus espíritos auxiliares vingarem o sobrinho (FBS) matando as almas dos
Wayafi – cujas almas das almas falecidas foram, por sua vez, para outro céu mais
acima. Os yawida abono, almas da pupunha, a mando de seu pai Siko, que cultivava na
terra as pupunheiras das quais os abono são o aspecto ou duplo humano, procuraram os
responsáveis pela morte do sobrinho do pajé. Foi ele também quem pediu para que um
de seus yamata abono, alma dos cultivares agrícolas, levasse o korimari, alma, e o
replantaria e criaria o menino. Segundo Badá, na última conversa que tivera com o João,
o filho falecido contou que ainda vai esperar para se casar, possivelmente com alguma
alma de pupunha (“a comida delas é boa”, ele explica), por enquanto, prefere somente
dedicar-se ao trabalho.
Poucos dias após a morte de João, filho de Badá, a sua alma, korimari, saíra da
sepultura e permanecera chorando ao lado de seu túmulo. Era um choro baixo, quase
inaudível, porque a alma estava muito fraca. Incapaz de caminhar e defender-se, ela
aguardava por alguém que viesse buscá-la. Seu pai o enterrara na beira de um de seus
roçados e sobre o túmulo construíra uma cobertura de alumínio, com uma parte do
telhado da própria casa, para que seu corpo não se molhasse e apodrecesse, o que
abono, alma da pupunha, encarregada de buscar sua alma, escutou seu choro e a
localizou. Ao encontrá-la, a onça celeste lhe deu carne de caça, pois as almas costumam
262
ter fome quando se destacam do corpo – antigamente, os parentes depositavam comida
no túmulo nos dias subsequentes ao enterro para alimentar a alma recém-falecida. Com
cuidado, a onça carregou a alma de João em sua boca e a entregou à alma da pupunha
que era a responsável por levá-la ao céu. Foi seu tio, Siko, quem solicitara às almas de
suas pupunhas para que procurassem pela alma do sobrinho e a entregassem aos
cuidados da caridosa sibati abono, alma da banana, que dela cuidaria em sua aldeia.
A morte das crianças pequenas é menos complicada, uma vez que o seu korimari ainda
não está afeiçoado aos parentes e não é agressiva como as almas das pessoas mais
velhas. Antes de João, a esposa de Badá perdera um filho logo após o parto. Na época,
ele pediu para que makafi abono, alma da taioba, (uma das que mais se ocupa da tarefa
de cuidar das almas dos mortos quando chegam no céu) o levasse e cuidasse dele.
de Edmilson. Ao completar certa idade, ele foi entregue a iha abono para que
terminasse sua criação iniciando-o no xamanismo. Ao longo dos vários meses em que
permaneceu recluso, iha abono, sendo uma poderosa alma de veneno, soprou muito
rapé no filho adotivo e introduziu pedras xamânicas em todo seu corpo. Edmilson
quem acompanha e protege contra os espíritos inamadi agressivos (cf. parte I).
Ao caminhar sozinho no varadouro, Badá pensa em seu filho e o chama para que ele o
com o próprio corpo guardando-o atrás de si enquanto ele resolve o problema. Forte,
kitini (a tradução literal seria “duro”, a dureza é um dos atributos do xamã) como iha
abono, o rapaz também tem o olhar envenenado, noko koma: ele mata seus inimigos
263
irmão durante sua iniciação xamânica. Hoje, Edmilson trabalha para seus patrões, no
céu, onde vende copaíba para as almas dos Jara e deles compra, à vista ou a prazo, em
suas grandes lojas, guaraná gelado, açúcar, café, rede, terçado, enfim, todas as
mercadorias que desejar. Ele também possui um avião e um rádio, que usa para se
De acordo com seu pai, Edmilson também é conhecido por um apelido que recebeu no
céu, Jara, branco. Ele está morando com Korara, sua tia materna (MZ), e Inohiyawawi,
seu tio materno (MB). Edmilson trabalhava fazendo transportes no céu, ele comprou
dois aviões, que não são como os daqui porque a pista deles é enorme ("muito maior
que da aldeia", Badá garantiu). Um dos aviões dele entra na água e não tem portas. O
outro é de um modelo bastante particular, segundo sua caracterização: "Em cada uma
das asas fica um cachorro. Eles fazem um barulho alto. Não é cachorro de verdade, é
'coisa feita' do mesmo jeito que as bonecas". Com o tempo, Edmilson enriqueceu, tem
todos os dentes feitos de ouro brilhante, e contratou um piloto haso abono, alma de
tucumã para pilotar seus aviões. Badá costuma fazer exposições detalhadas da vida
póstuma nas aldeias das plantas108, no relato que reproduzo abaixo, ele também chama a
108
A descrição das aldeias de Tiwiju onde vivem os mortos Suruwaha com as almas das plantas apresenta
elementos consonantes à concepção Jamamadi da vida celeste: “Na cosmografia dos Suruwaha, no
confim oriental do mundo, se encontra a casa de Tiwiju, onde habitam as ‘almas’ asuma dos falecidos.
Junto com elas, estão os espíritos das plantas cultivadas: do milho (kimi karuji), da pupunha (masa
karuji), das bananas (xaru karuji, xari karuji, katihana karuji), do cará (baxa karuji), da mandioca (mama
karuji), do algodão (waby karuji), da macaxeira (kuju karuji)... Pintados de urucum, os espíritos das
plantas na casa de Tiwiju se destacam pela sua beleza. (...) Os espíritos das frutas silvestres, agabuji
karuji, sobressaem também pela sua excelência. Eles moram num lugar muito bonito, numa casa com
fartura de frutas das quais eles se alimentam, pois são os donos das mesmas. Seus corpos são esbeltos, são
altos e bonitos, com a pele vermelha, e portam as lanças agadaru nas suas caçadas; as frutas são suas
flechas quando atacam os seus adversários” (Aparício 2015:75-76).
264
Tem escola no céu. As almas aprendem a escrever e, quando terminam seus estudos,
vão trabalhar. “Eu vou trabalhar com patrão”, dizem. Uns viram patrão e vendem
coisas dos Jara do céu para os fregueses deles: o sibati abono, alma da banana, o
yawida abono, alma da pupunha, todos compram dele109. Compram guaraná, açúcar,
café, rede, terçado, de tudo eles compram. Todas as frutas compram coisas nas suas
grandes lojas. Eles [almas de plantas] são bons patrões, não deixam ninguém com
fome, dão peixe e frutas. Depois de muitos anos, as almas envelhecem e morrem no
céu também. Em seguida, são enterradas e vão para outro céu. As almas vão casar de
novo, vão ter filhos e vão morrer. Depois, vão de novo para outro céu. Lá ficam por
muitos anos até envelhecer e morrer. Vão para outro céu, ficam jovem outra vez,
envelhecem e morrem. Isso [acontece] muitas vezes. Agora acabou. Não morre mais.
Nos céus de cima, não tem mais doença e é bom de morar. Em baixo também tem céu.
Os parentes de cima é que mandam chuva para nós. Os patrões mandam seus
fregueses soltarem vento e chuva. "Cuidado com meu filho, mande chuva e vento para
ele porque está muito quente", falam os patrões yamata. A gente está na metade [do
cosmo] vivendo. Os rios vão enchendo e a água vai descendo para baixo [os patamares
seguintes] e assim chove nos outros céus. De cima chove até arriar em baixo formando
tempo [chuva]. Quem morre casa com yamata abono. Bani korimari, sombra de
animal de caça, não vai para o céu, fica no mato mesmo. Se alguém casa com bani
korimari? Claro que não.
Foi João quem resgatou com seu avião a alma de Makari, falecida em 2015. Sua morte é
atribuída à vingança da alma do peixe jundiá, raramente comido por ser incomum nos
igarapezinhos da terra firme. Comer aquele peixe a deixara doente, no entanto, sua alma
só partiu definitivamente para a aldeia aquática deles quando Makari se assustou com o
grito de seu queixada de criação. Dizem que seu coração foi embora, ou seja, seu
espírito foi roubado pela alma do jundiá110. Ele a amarrou com suas cordas, que são seus
longos "bigodes", e a levou para morar consigo. Dois filhos do piloto haso abono
acompanharam a alma de João, mas acabaram doentes. Também participaram uma alma
109
Ver as imagens do céu Paumari e os patrões celestes - é o caso de Bahi Kapamoarihi, forma humana ou
patrão da chuva - que regulam o clima (Bonilla 2007: 36 ss)
110
Uma hipótese para a diferença dos destinos escatológicos dos peixes e animais poderia estar
relacionada à origem vegetal dos primeiros. De acordo com o mito que narra a origem dos peixes, um
pajé. ao açoitar a copa da árvore Doba, Amapá, transformou cada uma das folhas que iam caindo na
superficie da água nos diferentes peixes que existem hoje. Contudo, essa é uma especulação frágil porque
os animais ainda que não tenham se originado diretamente das plantas, transformaram seus corpos outrora
humanos mediante a inserção de partes de distintas plantas e o açoitamento com a vara do awa yora, a
mesma usada no ritual da menarca, num processo de especiação.
265
do timbó, uma alma do veneno iha, uma alma de limão e duas almas de boniwa,
morreram. Makari agora vive com o korimari de um filho falecido, casado com uma
Quando Julião, que já era adulto, morreu afogado no igarapé Mamoriazinho, kona
abono, alma do timbó, foi chamado para buscar sua alma que havia se perdido na água.
As almas das piranhas pretas, oma abono, não queriam deixá-lo partir e Julião já estava
acostumado a viver na aldeia delas, de modo que ele reagiu com agressividade às
tentativas da alma do timbó de persuadi-lo. Foi necessário pedir reforços para conseguir
levar Julião e salvar a alma do timbó que quase acabou morta pelas piranhas – o filho
dessa alma de timbó a libertou quebrando o pescoço das almas das piranhas. Ao todo
foram cinco almas de timbó resgatar a alma de Julião, esses yamata abono foram
particularmente longos, usados para agarrar os peixes em seus mergulhos, isto é, nas
pescarias dos Jamamadi feitas com essa planta. Além disso, para realizar essa tarefa, era
necessário que as almas soubessem nadar e tivessem bom fôlego dentro da água.
Outro caso difícil para os espíritos auxiliares convocados foi a morte do pai de Ronaldo
em Manaus. O pajé Siko mandou almas de laranjas, cidras e limões, que conhecem a
cidade (dada a procedência destas espécies) e são consideradas fortes, para procurar a
alma do pai de Ronaldo. Elas demoraram muito tempo até conseguir encontrá-la,
111
Sobre boniwa abono dizem que ele não mora nem no céu nem na terra, mas que vem de longe. Quando
ele fica com raiva, estica seu braço e produz vento e tempestade. Ele gosta de matar as árvores do mato
com sua ventania. Para capturar os Jamamadi, ele derruba uma árvore sobre a pessoa e assim se casa com
sua alma, foi o que aconteceu com Yaka Jamamadi.
266
recuperá-la e levá-la ao céu.
Em ainda outro caso, Tamara, esposa do pajé Siko, e França, seu filho, morreram no
mesmo acidente afogados no rio Curiá, afluente do Piranha, há muitos anos. Na época,
Siko quis mandar um raio, bahi, para acabar com esta terra. Seu irmão o dissuadiu: ele
tinha que deixá-los [a esposa e o filho] morrer. Ele não deveria se enraivecer porque
nascemos para isso mesmo. O pajé B. mandou seus espíritos auxiliares timbó buscar os
korimari da cunhada e do sobrinho. Muitos bichos foram mortos no caminho até que as
almas fossem encontradas e liberadas das aldeias dos peixes (não especificados).
267
filho filha
G-2 nodi - neto nodi - neta nodi - neto nodi - neta
Na tabela acima, o símbolo feminino (♀) significa que as relações são consideradas a
com o padrão da notação inglesa: F para pai (father), M para mãe (mother), D para filha
(daughter), S para filho (son), Z para irmã (sister), B para irmão (brother), W para
esposa (wife), H para esposo (husband), 'e' para "mais velho" (elder) e 'y' para mais
novo (young). Seguindo a estrutura em inglês, as posições devem ser lidas da direita
para esquerda, por exemplo, FBW é "esposa (W) do irmão (B) do pai (F)". A forma
vocativa para a maioria dos termos (especialmente para os parentes afins) está obsoleta,
Na geração acima de Ego, os irmãos do pai são classificados na mesma posição do pai
e o mesmo se passa com as irmãs da mãe na posição da mãe, conforme o padrão dos
terminológica: abi (pai), abise (irmão do pai), ami (mãe) e amise (irmã da mãe), o
sufixo -se significa "outro". Os parentes cruzados nessa geração são referidos com
termos distintos caso tornem-se afins efetivos, a saber, HF, WF, HM, WM passam de
koko (tio/sogro potencial) e aso (tia/sogra potencial) para koma (sogro/sogra), o termo é
268
Na geração de Ego, os germanos são diferenciados de acordo com a idade e,
Ego, por sua vez, são diferenciados entre primos cruzados/esposos potenciais,
naki/anihi (de uso recíproco), com os quais não se casaram, do espos@ real, yibote
específicos para os cunhados reais de mesmo sexo que Ego, ou seja, no caso de ser
kadi. Quando o cunhado real não for do mesmo sexo que Ego, será chamado por um
Ego feminino de yibote owa, "meu outro marido" (ZH e HB), e para um Ego masculino,
de yibote one, "minha outra esposa" (WZ e BW), em consonância com a afinidade serial
Seguindo essa lógica, na geração abaixo de Ego, os filh@s dos irmãos de um Ego
"minha outra filha", e okadawa, "meu outro filho". Os termos one, "outra", e owa,
"reais" que, por sua vez, são referidos por okoto, filha, e okadao, filho. Ademais, eles
daidi, "o primeiro (em relação a algo)", e @ caçula, nowati(ka/ke), "o que vem atrás". Já
os parentes cruzados nessa geração não são distinguidos entre masculinos e femininos,
112
Os casamentos oblíquos, relativamente comuns entre os Jamamadi, são alvo de crítica quando a idade
dos cônjuges for considerada distante, no entanto, caso estejam na mesma faixa etária, a posição
genealógica deixa de ser um obstáculo. Entre os Paumari, as uniões oblíquas impedem que os cônjuges
alcancem o lago da renovação como destino escatológico (Bonilla 2007:318), também os Jarawara
afirmam ter aversão a esse tipo de união matrimonial, de acordo com Maizza (2209:169), os casamentos
oblíquos são considerados "errados".
269
Quando os pais suspeitam que seus filhos estejam se encontrando furtivamente com um
(bilaterais). Sempre que eles se afastam de casa, um irmão mais novo ou sobrinho pode
ser designado para acompanhá-los. Os pais podem ser bastante possessivos e relutar em
permitir que seus filhos se casem, sobretudo fora do grupo local. Se é verdade que os
rituais da menarca costumam ser as ocasiões propícias para negociar com a família do
pretendente a futura união, deixada a cargo dos pais ou do irmão mais velho, amiúde os
jovens casais fogem juntos para o mato, permanecendo escondidos durante alguns dias
para forçar os pais a conceder a união. Nos momentos em que os pais se ausentam da
Foi o que ocorreu em 2012 com N. e F., contudo, os pais de N. não permitiram que ela
se casasse alegando que a filha era muito jovem. Os dois seguiram se correspondendo
por cartas até que em 2016 fizeram nova tentativa e desapareceram por muitos dias.
Apesar da raiva dos pais, eles acabaram cedendo à vontade dos filhos a contragosto. N.
e F., porém, não tinham onde ficar porque seus pais não os aceitavam em suas casas.
Impedidos de levar suas redes e roupas, os dois ficaram hospedados por meses na casa
do tio materno de F. que mora na mesma aldeia que os pais de N, ou seja, a escolha do
local de refúgio não foi aleatória. A princípio, permaneceram reclusos, evitando circular
na aldeia e negando que estavam juntos. Passados alguns dias, os irmãos foram visitá-
270
O início da união costuma ser um período tenso durante o qual muitos casais se
desfazem em razão da pressão contrária exercida pelas famílias; alguns tentam seguir
acaba por separar os casais. Voltando ao caso em questão, a reaproximação dos jovens
foi paulatina, F. destinava parte do que caçava aos sogros e estava sempre à disposição
para ajudar o pai de N. nas tarefas do roçado. A aceitação é lenta e gradual, em geral,
condicionada ao nascimento dos primeiros filhos através dos quais o afeto passa a criar
novos vínculos, estes sim legítimos. Passado mais de um ano, F. ainda ocupa de forma
marcada a posição ambígua de um afim, lembrada por sua sogra quando ela enfatiza o
parentesco com o subgrupo Wayafi que se juntou por último aos demais grupos madi:
O padrão residencial nos primeiros anos da união é uxorilocal, os sogros não poupam
seus genros de críticas caso ele não cumpra suas obrigações, tais como ajudar a fazer
cidade. Alguns meses depois, o casal começará a alternar períodos entre as aldeias dos
pais e sogros. A bilocalidade alternada perdura até que o pai do marido faleça, sem sua
força agregadora o grupo local constituído em seu entorno se desfaz. É somente com o
nascimentos dos primeiros filhos que o casal constrói uma casa separada, em geral, no
próximos da casa de seu pai que exerce um papel de liderança na aldeia. Essa tendência
doméstico onde as refeições são compartilhadas. Na falta do pai, o irmão mais velho
271
As aldeias Jamamadi obedecem a este padrão, exceto a aldeia São Francisco, cuja
densidade demográfica criou uma dinâmica específica, distinta das demais. Chamada de
"cidade grande"113, São Francisco reúne cerca de duzentas pessoas de, pelo menos, seis
113
A aldeia São Francisco não é comparada à "cidade grande" ou "capital" somente por ser mais populosa
que as demais, a intensa monetização das relações é outro fator que justifica a aproximação. Neste
sentido, os moradores das outras aldeias dizem para se contrapor aos do São Francisco que "aqui ninguém
vende comida, aqui tem comunidade". Uma análise mais detida será feita oportunamente, por enquanto,
arrisco dizer que a maior proximidade com a missão, a presença de grupos locais de diferentes subgrupos
e um número crescente de beneficiários dos programas sociais e aposentados são elementos importantes
para entender o fenômeno. A determinação do preço de um produto depende de um cálculo circunstancial
e pessoal, pois, o que menos importa são critérios de ordem objetiva. Trazer mercadorias da cidade para
vender na aldeia é uma prática cada vez mais comum. Assim que voltam da cidade com os paneiros
cheios de pacotes de açúcar, café, sal, latas de sardinha, macarrão instantâneo e suco em pó, todos
comentam a prodigalidade daquela pessoa e combinam de visitá-la depois. O preço dos produtos pouco
varia em relação ao cobrado na cidade, por vezes, há um pequeno aumento justificado pela caminhada.
Trata-se menos de uma prática visando acumular dinheiro que o prestígio de poder vender (e escolher
para quem vender) as mercadorias. Na época em que Raimundo trabalhava como piloto fluvial da Sesai,
ele sempre comprava muitas mercadorias para vender na aldeia. Os pacotes de bala eram os itens mais
comuns, cada uma vendida a dez centavos. Vender é um sinal de distinção, porém, eles não se
transformam em patrões através desse comércio porque não interessa alterar significativamente o valor
dos produtos, tampouco endividar o freguês. Os aposentados são aqueles que pagam mais caro,
juntamente com os assalariados, que são os agentes de saúde indígena e o piloto fluvial, em seguida, leva-
se em consideração a posição genealógica do comprador, os parentes afins geralmente pagam mais caro
que os paralelos. Jamais vi alguém pagar por cultivares ou mesmo trocá-los por mercadorias. A farinha
tampouco é vendida. Apesar do aumento considerável do influxo de dinheiro nas aldeias Jamamadi com o
número cada vez maior de atendidos pelos programas sociais, a base da alimentação são os produtos
provenientes de seus roçados. É na falta da carne de caça, de peixe ou entre as principais refeições do dia
- uma feita pela manhã antes das pessoas saírem para realizar suas atividades fora da aldeia e outra ao
final do dia quando os caçadores/pescadores retornam - que os alimentos industrializados são
consumidos.
272
núcleos familiares distintos ou grupos locais. As outras aldeias, com não mais de 40
moradores, são compostas pelas famílias dos filhos daquele que "fundou", assim, na
Há muitos jovens solteiros que desistiram de se casar após sucessivos fracassos. Lidar
com a raiva dos pais, as reiteradas recusas, a vergonha e a evitação do período que
sucede a união fazem com que muitos jovens prefiram permanecer solteiros (dizem com
certa ironia que o solteiro "não tem que fazer roça grande", "não se aborrece com choro
de criança", "não tem que caçar e pescar para os sogros", "que os homens têm muita
preguiça e só jogam bola", etc) ou procurarem cônjuges potenciais nas aldeias Jarawara
que a distância geográfica seja propícia e que o genro tenha meios de suprir a
Os pais afirmam que a condição para aceitar o casamento de suas filhas é que o rapaz
peça a autorização primeiro, no entanto, o pedido não impede que os pais relutem em
aceitar, de modo que os jovens, por medo, preferem não correr o risco de lidar com a
vergonha de ter seu pedido recusado, desistindo ou optando por "roubar" a moça. São
273
raras as negociações matrimoniais que conseguem evitar os conflitos e agradar as duas
oposto. Esse é o único momento em que a demonstração pública de afeto entre homens
e mulheres parece aceitável, em nenhuma outra situação há contato físico que não seja
entre homens companheiros ou mulheres que são amigas. Todos comentam com alegria
brancos, Jara. Das uniões que pude contabilizar, apenas quatro ocorreram com pessoas
de fora do grupo, sendo que uma delas foi desfeita. Os casamentos com os brancos e os
Apurinã talvez sejam os mais mal vistos, uma vez que muitos residem na cidade e se
do "serviço da noiva" e acabam por afastar a esposa dos parentes. E. foi morar na aldeia
de seu marido na Terra Indígena Caititu, perto da cidade de Lábrea, e há anos não
reencontra sua familia, que mantém a suspeita de que ela seja maltratada por seus afins.
M. também é casada com um indígena Apurinã, assim, ela alterna temporadas na aldeia
de seu pai e na de seus sogros, no rio Sepatini. Sua irmã mais velha, J., recentemente
casamento é tão criticado quanto os outros dois, sempre mencionados como lembrentes
dos riscos de se casar fora dos limites da aldeia. A única união que existia entre um
274
Jamamadi e uma Jarawara foi desfeita em 2012, depois de mais de uma década de
Banawá, ambos falecidos, hoje todos os seus filhos vivem em aldeias Jamamadi.
Feito o parênteses, passo aos casamentos póstumos. Comparadas aos casamentos que
acontecem nas aldeias dos vivos, as uniões póstumas são consideradas melhores,
geográfica na escolha do cônjuge. Dizem que as almas sempre se casam com a "filha do
seu koko (sogro potencial)", que as almas acham tosawari, feio/errado, os casamentos
com parentes paralelos e, principalmente, ninguém "rouba" nem foge para forçar os
das atitudes necessárias para que a união seja bem sucedida não me parecem explicar
sozinhas a falta dos conflitos matrimoniais que são, sem exageros, a regra vigente na
terra, ainda mais porque o céu é o lugar da incessante guerra mundial. A despeito das
exceções, com as almas das plantas que foram cultivadas em vida pela própria pessoa
ou por seu pai. Por isso, a posição das almas das plantas cultivadas é ambígua, uma vez
por meio do cuidado e proteção que, embora não se efetive integralmente – afinal, os
afinidade futura.
Por esse motivo, os Jamamadi preferem os casamentos com almas de plantas de seus
cultivos: a filha de Atimero casou-se com uma alma de limão que havia sido plantado
por seu pai; a alma do pajé Bakorao casou-se com uma alma de veneno iha que era um
275
de seus espíritos auxiliares, por sua vez, seu filho casou-se com uma alma de castanha
do pará, mowi abono (uma exceção por não ser uma planta cultivada, apesar de ser
perguntei se havia alguém casado com alma de copaíba, eles negaram, pois esta planta
ideal de endogamia, as almas de Siko e seu filho França foram morar nas aldeias das
almas da matrinxã, aba abono, localizadas no rio Curiá celeste. De acordo com a
explicação dada pelo pajé B., irmão de Siko, França e sua mãe, Tamara, morreram
afogados no rio Curiá e suas almas foram temporariamente capturadas pelas matrinxãs.
Tamara escolheu casar-se com uma alma de pupunha e foi morar em sua aldeia, mas
França decidiu voltar a viver com as matrinxãs e, após a morte de seu pai, não quis que
este fosse morar com as pupunhas, então, pediu-lhe para que fosse morar em sua casa.
Siko casou-se com duas almas de matrinxã ("brancas como missionárias americanas") e
276
Capítulo 8: Kakatoma: o olhar gerativo e as relações de criação
“É de se admirar...
Como pode uma bruta dessa morando sozinha
numa mata tão longe, tão distante, sem parente nem aderente?”
(mateiro apurinã ao observar uma castanheira 'bêba'
nas proximidades da cabeceira do igarapé Grande)
No início do trabalho de campo, uma das ocasiões em que me dei conta da centralidade
das plantas para os Jamamadi foi quando mostrei as fotografias que havia levado de
minha família, em particular, uma de minha irmã no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Trata-se de um retrato no qual ela está diante de uma paisagem de vegetação de mata
atlântica. Ao verem a imagem, eles primeiro me perguntavam quem era a moça na foto
para, em seguida, passar a fazer incontáveis perguntas sobre as plantas que estavam
atrás dela. O que chamava a atenção deles não era o que para mim estava no primeiro
plano, minha irmã, mas tudo o que estava atrás servindo de fundo, de cenário, uma
queriam saber se aquelas plantas eram nossas, quer dizer, se nós as havíamos plantado.
Diante da minha negação, eles perguntaram quem as havia plantado, de quem eram
aquelas plantas, pois não fazia sentido ou, ainda pior, seria uma enorme falta de respeito
tirar foto posando com plantas de outra pessoa. Eles também queriam saber os nomes de
cada uma das espécies que apareciam no retrato. Como eu não sabia nenhum, o
estranhamento deles só aumentava, afinal, qual a razão de tirar foto com plantas de
algum desconhecido sem ao menos saber identificá-las? Tentei explicar que se tratava
de um jardim público plantado há muitos anos, um local de visita onde as pessoas vão
277
cultivado por alguém seja público e aberto ao olhar de qualquer pessoa não fazia o
menor sentido.
O desencontro do meu olhar com o deles tornou patente o equívoco entre os modos
rotação de perspectiva era imprescindível para que o fundo ganhasse forma e as plantas
fossem para o primeiro plano da análise, abandonando o posto de paisagem. Porém, não
basta pensar numa simples inversão da dicotomia apresentada. O que era um fundo
presentes no retrato. Identificar as espécies e saber seus nomes não eram, portanto,
reconhecer a importância desse fato era o ponto de partida para me relacionar com eles.
A anedota narrada revela não somente o abismo entre o meu conhecimento botânico e o
dos Jamamadi, mas também serve para ilustrar uma distinção epistemológica, expressa
vínculos de minha irmã com as plantas do Jardim Botânico aponta para a importância
da relação com os chamados “elementos naturais”, uma vez que não supõe uma forma
irrelevantes. Para os Jamamadi, por outro lado, minha irmã não estava sozinha no
278
retrato, a presença das plantas pressupunha uma relação com ela, uma familiaridade
de vínculos de parentesco com elas, o que os intrigou foi a ideia de que o propósito
daquele jardim era estar exposto a qualquer olhar: o "jardim público" é a antítese da
Isso ocorre devido à comprensão de que o cuidado diário com o roçado implica em seu
dono "espiar" suas plantas, procedimento que pode ser feito de modo breve ao
interromper uma caminhada para checar com o olhar a situação da roça ou, de maneira
parasitas, podando as folhas, ramas e raízes que se intrometem no espaço dos cultivos
predador, cuja agência aniquila a vida das plantas em desenvolvimento. Como dito
mantêm seus olhos baixos e evitam encarar diretamente os demais, incluindo as plantas,
uma medida para evitar provocar-lhes algum mal. A posição das mulheres grávidas no
início da fila nas caminhadas é um modo das pessoas escaparem do seu campo de visão
e de se precaverem de cruzar com o seu olhar. Por isso, na relação com as plantas, tão
potencialmente predatório.
279
O olhar com capacidade gerativa é dito kakatoma – o verbo sinônimo kiina é de uso
menos frequente –, conforme anunciado antes, sua ação é oposta ao do noko koma,
traduzido em português por "olhar mau", "olho com veneno", "olho com dor/doença" e
nawada, das crianças e dos animais (pets). Nesse sentido, dizem: oka nanayana, "minha
criação"; wafa owa nanayana , "eu crio macaco barrigudo"; yamata abono ai-ka
korimari nayana neme-ya, "as almas dos cultivares criam a alma do morto no céu"; oka
fadara kakatomabani/kiomatia, "vou olhar meu roçado [para ele crescer bem]". Maizza
criação115 (2014:507):
114
Assim como em Jamamadi, em Deni e em Suruwaha, "doer" e "ser venenoso" são sinônimos. Os
Suruwaha se referem à toxicidade do timbó com a expressão kunaha kuwiri, "a dor do timbó". O olhar do
xamã, porém, é dito zubi wasy (... kuru/kasini), "olhos duros/resistentes". E zubi gagini, "contaminação
dos olhos", é a expressão para o olhar das mulheres menstruadas. Novamente, as informações e traduções
das línguas Deni e Suruwaha são de Adriana Huber (com. pess.) a quem agradeço pela disposição e
generosidade em compartilhar seu conhecimento.
115
Maizza grafa as palavras Jarawara de modo levemente distinto das minhas escolhas de grafia. A autora
as escreve de acordo com a pronúncia e para tanto utiliza acentos que não são usados na escrita pelos
Jarawara. Sem uma grafia padronizada e única entre os Jamamadi, opto por escrever suas palavras sem
acentuação, escolhendo as formas mais frequentes em que são escritas por eles e indicando as exceções
quando houver. O desacordo na ortografização da língua Jamamadi é uma questão importante que remete
às disputas entre os diferentes grupos locais, subgrupos, e torna a transcrição dos relatos e mitos uma
tarefa infindável que acende antigas querelas. A plasticidade da língua é outro fator que contribui para a
proliferação de múltiplas variações linguísticas concorrentes. A despeito de dedicarem-se há muitas
décadas na tradução da bíblia, a missão finalizou apenas uma pequena parte, ainda assim, considerada
imprecisa pelos Jamamadi.
280
“cuidar para não morrer”. E o cuidar do roçado se expressa pelo namosá: fatará
onamosá: “eu limpo, cuido, arrumo, deixo bonito, tiro plantas daninhas do meu
roçado”, ou seja, “eu o deixo bom/bonito/adequado para as plantas crescerem”
(Maizza 2014:507).
são mantidas sempre à vista, no colo ou amarradas pelo pé com uma cordinha presa na
suas casinhas fechadas ou presos com uma cordinha para não se afastarem do olhar de
seus donos. Os animais a que são mais apegados raramente ficam soltos, circulando pela
aldeia sozinhos; alguns jamais saem de suas casinhas, a ponto de serem apenas vistos
americano" –, sem dúvida, os animais preferidos dos Jamamadi. Por mais paradoxal que
possa parecer a uma forma de vida séssil, a retenção das plantas no roçado também é
rompe a reciprocidade da relação e faz as almas das plantas abandonarem sua aldeia mal
cuidada em busca de outra melhor, o efeito de sua partida é visível através do seu
116
Durante os meses de campo, só escutei os latidos de Branquinha, Dog e de um cão criado por Mundico.
Por serem especiais para os seus donos, viviam em casas próprias de onde jamais saiam. No outro
extremo, mas sem configurar uma regra, algumas antas e macacos eram criados mais soltos, passeavam
durante o dia e voltavam ao entardecer para suas casinhas, em geral, na hora de serem alimentados.
Diferentemente daqueles que são mantidos presos, esses animais não recebiam nomes pessoais.
281
expressam num idioma de filiação, em especial, na relação entre pais e filhos. Tomo
(1987, 2012) sobre as práticas de criação de animais e uma análise recente de Fausto &
ao ser aplicada às plantas, por três motivos que envolvem problematizações de ordens
distintas:
plantas que não são por eles cultivadas, porém, estes não são vínculos de
dos vínculos com as plantas e suas diferenças. Refiro-me aqui à proposta delineada por
Fausto & Neves (2018, no prelo): "[i]n this paper, we want to suggest that the notion of
117
"A potência do mestre é a capacidade de extrair uma ação do xerimbabo. Esta é a coerção, como diria
Strathern (1988:271). Mas há uma ambivalência aqui, pois não se sabe exatamente quem causa a ação e
quem está agindo. Quem é o agente do canto moropihã do guerreiro araweté, o matador ou sua vítima?
Quem é o curador parakanã, o sonhador ou os inimigos oníricos? (...) Porém, na Amazônia, tal eficácia
está eivada de uma instabilidade constitutiva, pois não se sabe jamais quem adotou quem, quem controla
quem: para serem potentes, xamãs e guerreiros devem assegurar a condição subjetiva e a capacidade de
ação de seus xerimbabos, o que significa que eles não devem jamais se tornar inteiramente mansos e
domésticos (Fausto 1999:949)" (Fausto 2001:343).
118
A despeito da avaliação dos Jamamadi que consideram os vizinhos isolados somente sob o signo da
perda das relações agrícolas, os Hi-Merimã, ao rejeitarem-nas, manifestam sua escolha política e
experiência histórica particular, um modo de organização social que não se traduz em perda cultural ou
retorno à natureza: "they have developed marked patterns of social relationships and cultural values, and a
unique system of resource management that drastically diminishes their dependence on cultivated crops.
(...) such developments represent the constitution of a different body of knowledge and an alternative way
of life" (Rival 1998:244).
282
familiarization, which was previously applied to kinship, shamanism, warfare, and pet-
relation to plants is, to use Haudricourt's words, indirect negative or, to avoid a negative
definition, is part of a more general concern for 'making kin out of others' (Vilaça
2002)";
ii. Em segundo lugar, a inversão póstuma dos vínculos de filiação entre humanos e
controle porque nestas relações, citando a reflexão de Van Dooren (2012:25) acerca das
In making this point Haraway is thinking along the same lines as Anna Tsing when
she prompts us to imagine a “human nature” that shifts “historically together with
varied webs of interspecies dependence”, and consequently insists that “Human nature
is an interspecies relationship”. Both theorists see the co-evolutionary interactions
between humans and various non-humans as ones in which all of us “emerge” through
ongoing and co-constitutive interactions in which some actors have more control than
others, but none is in control.
vista humano ou aquele das plantas, em raros momentos, está livre do gesto
119
Citando o artigo de H. M. Leach "Human Domestication Reconsidered" (2003), Van Dooren escreve:
"[a]s already noted, however, despite the conventional rhetoric of domestication, these plants were not the
283
iii. Por fim, o procedimento heurístico de alargar um modelo calcado na animalidade de
relações entre plantas e humanos. Pois, ao considerar "animal" e "vegetal" como formas
Novamente, ajustar os modelos centrados na figura dos animais para as plantas, questão
esta discutida na parte I a respeito do lugar de destaque dos animais predadores nas
premissas do perspectivismo ameríndio e a redução das "plantas" a este lugar lógico (cf.
only ones changed in these relationships. Amongst humans, new forms of life and ways of living emerged
in these agricultural environments. It is simply impossible to predict how different humans and our lives
might have been if these relationships had never taken hold. Different, however, not just in terms of
religion, science, education (in short, those things usually termed “culture”), but also in terms of nutrition,
immune systems, and more general health and fitness. Helen M. Leach has, for example, argued on the
basis of skeletal and other anatomical characteristics that humans might be understood as having been
“domesticated” themselves in a significant sense" (2012:27). O argumento central do livro "The Botany
of desire" (2000), de Michael Pollan, baseia-se em intuição semelhante ainda que formulado em termos
biológicos de relações co-evolutivas: “All these plants, which I’d always regarded as the objects of my
desire, were also, I realized, subjects, acting on me, getting me to do things for them they couldn’t do for
themselves. And that’s when I had the idea: What would happen if we looked at the world beyond the
garden this way, regarded our place in nature from the same upside-down perspective? This book
attempts to do just that, by telling the story of four familiar plants—the apple, the tulip, cannabis, and the
potato—and the human desires that link their destinies to our own. Its broader subject is the complex
reciprocal relationship between the human and natural world, which I approach from a somewhat
unconventional angle: I take seriously the plant’s point of view.” (Pollan 2000:18-19). O processo
evolutivo também testemunha a proximidade com as plantas, conforme nota Tassin: "notre corps s'est
façonné au contact des arbres où vivaient nos lointains aïeux les primates, et en est même devenu l'un des
prolongements. (…) C'est que, chez nos ancêtres primates, le déplacement dans les arbres a précédé de
plusiers dizaines de millions d'années la marche au sol. Nos mains dotées de doigts flexibles et d'un pouce
opposable, nos bras servis par cette merveille anatomique qu'est l'épaule, la composition de notre visage,
notre vision stéréoscopique indispensable pour évoluer dans les arbres, notre denture et notre régime
alimentaire, pour ne citer que ces traits les plus saillants, témoignent de ce lointain séjour" (2016:15).
284
modelo de episteme que confere às plantas um lugar marginal, tributário da vida animal
Nesse sentido, minha intenção, tomando como inspiração diferentes estudos sobre
imagem diferente daquela da domesticação das plantas pelos humanos como narrativa
aspectos:
120
"[O]n Foucault’s account, it’s with the rise of the transcendentals, in the era of the human sciences, that
animals begin to take priority over plants as the privileged form or figure of life itself. In an era of natural
history where knowledge was characterized by “the apparent simplicity of a description of the visible . . .
the area common to words and things constituted a much more accommodating, a much less ‘black’ grid
for plants than for animals” (The Order of Things: 137 ). Most animals, simply put, have more hidden,
interior space than plants and thereby present a greater volume of “black” or blank space to the gaze of
the classifying naturalist. Foucault writes about this era of representation: “Because it was possible to
know and to say only within a taxonomic area of visibility, the knowledge of plants was bound to prove
more extensive than that of animals” (OT 137 ), precisely because plants can be pulled up out of the
ground and thereby rendered fully visible, from the tip of the roots to the outermost edges of the flower or
leaf. At the dawn of the nineteenth century, however, Foucault traces a mutation of the dominant
epistemic procedures—from a representational discourse that maps external similitude and resemblance,
to the emergence of a speculative discourse that takes as its object hidden internal processes. In short, we
see emerge a discourse that “opposed historical knowledge of the visible to philosophical knowledge of
the invisible” (OT 138 ): knowledge’s privileged practices abandon the surface of objects in order to
plumb their hidden depths instead" (Nealon 2016:6-7). Ver também o capítulo "Extériorisme" no livro "À
quoi pensent les plantes" de Jacques Tassin (2016). O paradigma da "vida oculta" parece ter se voltado
para as plantas e se tornado o leitmotif de boa parte dos livros de divulgação sobre o tema, enfim, o
argumento é que a vida vegetal encerra "mistérios" a serem desvelados: "A vida secreta das árvores: o que
elas sentem e como se comunicam", de Peter Wohlleben (2017); "A vida oculta das plantas", de Peter
Tompkins e Christopher Bird (2000); "À quoi pensent les plantes", de Jacques Tassin (2016) etc.
121
Muitas pesquisas mostram que a humanidade vive literalmente do trabalho de outras criaturas e apenas
uma pequena parte das plantas resultam da ação humana: "In one way, a retrospect on this evolution must
humble us. Few of the edible, nutritional characteristics of the seed plants that now sustain us evolved for
our benefit, under selective pressure from our forebears or through conscious breeding by scientists. We
are literally living off the fruits of other creatures’ labors - those of the birds, bugs, and beasts that loosely
coevolved with seed plants over the last hundred million years" (Nabhan 1989:6 apud Van dooren
2012:26).
285
A domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras
espécies. Que tais relações podem também transformar os humanos é algo
frequentemente ignorado. Além disso, tende-se a imaginar a domesticação como uma
linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem. Pelo fato de essa
dicotomia se basear num comprometimento ideológico com a supremacia humana, ela
apoia as mais incríveis fantasias, por um lado, de controle doméstico e, por outro lado,
de autoprodução das espécies selvagens. Por meio dessas fantasias, as espécies
domésticas são condenadas à prisão perpétua e à homogeneização genética, enquanto
as espécies selvagens são “preservadas” em bancos de germoplasma enquanto suas
paisagens multiespécies são destruídas. Apesar desses esforços extremos, a maioria
das espécies dos dois lados da linha, incluindo os humanos, vive em complexas
relações de dependência e interdependência (2015:184).
interações entre humanos e plantas sugerem uma domesticação mútua em que ambos
122
Em abril de 2008, o governo suíço produziu o documento "The dignity of living beings with regard to
plants" para fomentar o debate sobre os direitos das plantas. Um de seus pontos cruciais é que os seres
humanos não podem reclamar "a absoluta propriedade" destes seres. O foco de maior preocupação são as
condutas das pesquisas genéticas que desrespeitam a dignidade vegetal. O Comitê Federal de Ética sobre
a Biotecnologia Não-Humana da Suíça preparou um relatório intitulado "The moral consideration of
plants for their own sake" no qual afirma-se que interferir na vida das plantas sem uma razão válida é
moralmente inadmissível. Para mais informações conferir: http://www.ekah.admin.ch/fileadmin/ekah-
dateien/dokumentation/publikationen/e-Broschure-Wurde-Pflanze-2008.pdf
286
8.1 Os filhos-planta e a inversão póstuma
O êxito das relações de cultivo é medido através de seus efeitos, a saber, se as plantas
em sua vida póstuma, as plantas devem ser cuidadas como parentes, do contrário,
vingam-se atacando seus filhos ou ele próprio. Chagas, que vive na aldeia São
sua casa, ele relutou em cortá-la, pois sabia que não poderia contornar a raiva que
causaria ao seu duplo humano, mowi abono, porém, ele não tinha escolha, seus ouriços
já haviam matado um de seus animais de criação e ele temia que pudessem atingir seus
Todas as plantas são vivas. É ruim ficar derrubando. Toda noite, elas vêm olhar [a
aldeia]. Se o pai estiver cuidando, a planta fica feliz e manda frutas. Não pode cortar
ou maltratar porque eles ficam com raiva e dão diarreia. A pessoa fica doente se
maltratar o yamata. A gente fica doente quando não cuidamos bem deles. Só o pajé é
que sabe como cuidar bem dessas doenças, doença de awabono, 'fruta'.
apreciem sua aldeia e desejem permanecer habitando-a; ademais, seu dono precisa
alegrar seus cultivares a fim de estimular-lhes o crescimento. Certa vez, pude ver a
123
Bonilla relata (com. pess.) ter presenciado um abonoi foi (recuperação de alma) de uma criança cuja
alma-corpo foi capturada pela forma humana de uma samaúma derrubada pelo pai na proximidade de sua
casa (ele cortou a árvore sem avisar o xamã, que não pôde tomar as precauções necessárias). Seu filho
adoeceu e teve diarréia.
287
preocupação do pajé B. por ausentar-se vários dias de seu trabalho no roçado porque
uma ferida dificultava sua locomoção, obrigando-o a repousar por mais tempo do que
filha havia contado que fora “espiar” os yamata a pedido do pai. B., constrangido com a
notícia, avisou sua esposa que assim que pudesse iria limpar a roça para que os yamata
voltassem a se alegrar. Sabe-se que "comer junto", ai nafi tafahi, é um modo básico ou
compartilham do mesmo alimento (Gow 1991, Vilaça 2002). Por isso, poucas situações,
que são os frutos de seus filhos – partes deles –, a retribuição pelos cuidados
dispensados. Ou, por outro lado, lidar com a frustração e as maledicências de não poder
produtividade do roçado, uma retaliação cabal do cultivar pela falta de atenção de seu
pai.
O inverso também ocorre. Uma única vez presenciei a derrubada e a queima de uma
planta sem que o propósito fosse preparar o terreno para o roçado. Fazia tempo que o
pajé B. reclamava de um buriti plantado nas imediações de sua casa. Desconheço todos
os motivo do desgosto que o fez derrubar a palmeira e queimá-la (seus restos não foram
288
Fig. 17 Buriti em chamas
Para alegrar as suas plantas, na lua nova, os pais açoitam suas crianças pequenas, tanto
os meninos quanto as meninas, para fazer o milho produzir espigas com muitas
bate com certa força, porém não o suficiente para causar ferimentos, nas costas e pernas
menina no ritual pubertário foi abandonado há mais de uma década, o uso do açoite
“brincadeira”. Açoitando-as, os pais pedem a autorização dos yamata abono para que
seus filhos possam comer os seus cultivos sem que estes provoquem doenças e, além
disso, as protegem das picadas de cobra, outro meio comum de vingança das plantas.
No roçado, as plantas choram quando nascem, pedem atenção e proteção de seus pais.
Abi, owa bako hokoni, “pai, estou com sede”, diz o broto do cultivar ao pajé que o
plantou. Tal como as crianças e os animais se incomodam quando faz calor, os yamata
289
choram pedindo água. “As crianças sem tomar banho ficam manhosas quando está
quente, igual é a planta. Quando volta a chover, ela cresce rapidinho”, dizia a filha do
pajé B. quando molhava as pupunhas que cresciam no terreiro de sua casa. Owati wahi!,
“terminei de crescer”; Abi, tifimeraboneni!, “ pai, você não passará fome!”; Abi, hawa
oini, “ pai, já virei homem/mulher”, são as falas dos yamata para seu dono quando
comentário das mulheres Krahô para Morim de Lima, a saber, "batata já brotou para
mim!", evidência que os cultivos não nascem indiferentemente, mas brotam e dão para
alguém que é considerada boa mãe, cuidadosa e generosa (2017:455). Isso porque as
alimentação, posto que a batata é "cultivada enquanto 'parente', pensa e sente, vê e canta
o mundo" (idem:456). Os Jamamadi dizem algo parecido: "Tudo tem pai e mãe, pois se
a fruta cresceu é porque tinha quem cuidasse dela. Do mesmo jeito que nós. A mãe ou o
ofender as plantas, é preciso ter cuidado e proceder corretamente para não enraivecê-las.
Yamata tiwa bore okomatia ai kaba bonineni yaha!, "yamata, eu vou te arrancar, vou te
comer com banha!". Essa é uma fórmula padrão dita à guisa de autorização antes de
cortar um cultivar no roçado. Dizem que as plantas se alegram quando alimentam seus
parentes, então, para animá-las, falam perto delas yaha! yaha!, "banha! banha!", para
avisá-las que serão comidas com carne gorda e caldo. De acordo com Salgado:
A pessoa corta o pé, a mão, a cabeça do seu irmão ou filho [yamata]. Tem que pedir
autorização. Se não pedir, ele fica com raiva. 'Pode pegar?' tem que perguntar. Sem
290
pedir, a pessoa rapidinho sente frio e pega doença. Se o pajé autorizou, o yamata sente
dor quando corta, mas tudo bem porque já pediu.
das plantas para contornar os riscos de que seu consumo seja um ato de canibalismo e
engendre a vingança dos cultivares. Os enunciados ditos na colheita são uma forma de
negociação cuja função é tanto autorizar quanto apaziguar as almas das plantas. Pode-se
das plantas alimentares obedece aos procedimentos que são mobilizados para o
estar ausente para que a identificação ocorra entre humanos” (Fausto 2007:504 apud
Costa 2015:80).
muito cuidado e atenção para não misturar alimentos de origem "vegetal" que podem
provocar doenças e até matar; por outro lado, nunca ouvi nenhum caso de adoecimento
de alimentos de origem vegetal e elas alertam para que se tome precauções sobre quais
alimentos podem ser consumidos por cada pessoa (no caso de estar tomando um
124
Por ser uma atividade restrita aos homens, não participei de nenhuma caçada e minhas informações
baseiam-se em relatos. Como a carne já chega na aldeia tratada e talhada pelos caçadores, ela só é
entregue para que as mulheres terminem de limpá-la e prepará-la. A falta de elaboração sobre o tema
mesmo em conversas posteriores à caçada reafirma o ponto da baixa qualidade de sujeito dos animais
predados, pois não outorgam intencionalidade humana aos animais.
291
medicamento, se estiver em reclusão, se tiver um parente doente, se já tiver se
alimentado com outra coisa, se se tratar de um xamã, se for uma pessoa idosa, se for
uma criança, etc).125 O fato dos animais terem sido humanos, portanto, os preocupa
Do ponto de vista dos cultivos, alimentar os humanos com partes de si tem a função de
penhor visando a uma apropriação futura das almas dos mortos Jamamadi com os quais,
por sua vez, produzirão o seu parentesco. Trata-se de um processo mútuo no qual os
homens alimentam-se das plantas para suprir suas necessidades vitais e fazer seu
das almas dos mortos Jamamadi para fabricar o seu próprio parentesco. Aqui, há uma
distinção pertinente a ser ressaltada. A predação das plantas não equivale a um ato
semelhante à caça e ao consumo de carne, haja visto que a alimentação vegetariana não
implica aniquilar a vida da planta e desfazer os laços com os seus, mais ainda, essa
espécie de "morte parcial", uma destruição incompleta de seus corpos, é prevista, talvez
necessária, na sua constituição, além de ser o que estabelece as relações de criação entre
humanos e plantas. A vida séssil não é um obstáculo à preservação das plantas porque
elas não precisam fugir de sua "morte", este fato se conjuga ao corolário evolutivo do
exteriorismo vegetal que é seu crescimento indefinido, desmesurado. Quem sabe não
125
Refiro-me ao trecho de Hugh-Jones (1996:5): "En changeant de peau, les poissons peuvent se
transformer en gibier. Les chamanes, au moyen d'invocations, sont toutefois capables de retransformer
ces animaux en poissons, et les paroles qu'ils utilisent à cette fin les désignent bel et bien de termes
appropriés pour les poissons qu'ils doivent redevenir. De manière plus radicale encore, lorsque les
chamanes demandent aux maîtres des grands animaux la permission de chasser, ils ne demandent pas des
dons de viande, mais plutôt des dons de végétaux. Les invocations qu'ils soufflent alors sur le produit de
la chasse réitèrent cette transformation, changeant la chair animale en cassave, bananes plantains, ananas
ou autres végétaux cultivés, selon un procédé qu'utilisent également les Piaroa (Overing Kaplan 1975 : 3).
De telles pratiques permettent aux Tucano de se considérer comme des végétariens qui mangent aussi du
poisson, ce qui n'est pas sans évoquer les différentes pratiques et les procédés linguistiques qui permettent
de désanimaliser les carcasses dans les abattoirs du Sud-Ouest, suivant une logique que Vialles baptise du
terme de « végétalisation » (1987:50-53 et 69-70)".
292
será essa a sagacidade das estratégias evolutivas de sobrevivência da vida vegetal? Na
pessoas e plantas de modo a criar laços que ultrapassem a duração da vida terrena126.
Sendo uma das faces do parentesco, as práticas de cultivo criam redes genealógicas que
se estendem da terra ao céu e incorporam tanto filhos humanos quanto filhos de criação
vegetais como efeito das relações de familiarização entre a pessoa que plantou um
126
Maizza (2009) distingue em sua análise a relação baseada na domesticação mantida pelos Jarawara
com o aspecto físico e visível das plantas que permanece na terra, da relação que esta mantém com seu
espírito celeste, entendida como sendo da ordem da consanguinidade plena ou não-relação. A partir da
menção ao estudo de Taylor (2000), a autora afirma que o espírito seria a progenitura da planta, o
resultado de sua autorreprodução ou uma forma de clonagem, não associada exclusivamente às plantas de
reprodução assexuada. Nas palavras de Maizza: “Taylor explica que quando uma mulher jivaro canta o
anent para suas plantas, ela dirige o canto tanto às plantas como a ela mesma, para estimular sua própria
autorreprodução. Nestes cantos horticultores, a mulher fala enquanto ‘mulher nunkui’. Nunkui é a mãe de
todas as plantas do roçado e, ao mesmo tempo, sua própria progenitura; ela é um clone autorreprodutor,
unissexuado (exclusivamente feminino). Para Taylor, esta propriedade faz dela uma figura privilegiada da
consanguinidade e uma antítese da relação de predação. Mais do que isto, ela representa uma relação de
não diferença, ou seja, uma não-relação – neste sentido, a consanguinidade plena seria uma não-relação”
(2012:234). Não tenho elementos para seguir na direção apontada por Maizza. As elaborações Jamamadi
acerca dos vínculos entre as plantas e seu aspecto humano me levaram a considerar este último como o
seu princípio agentivo, um duplo obliterado em condições ordinárias, não como um caso de clonagem ou
autorreprodução.
293
desenvolvimento e morfologia de corpos humanos e vegetais: não se trata simplesmente
frutos de plantas selvagens e semidomesticadas, caça e pesca. A caça tende a ser mais
valorizada que a pesca pelo fato de que a maioria das aldeias está localizada no interior
da terra firme, distante dos cursos mais caudalosos dos rios e igarapés. Enquanto a caça
é uma atividade estritamente masculina (embora algumas mulheres saibam atirar e caçar
pode ser uma atividade de lazer realizada coletivamente pelas mulheres nos pequenos
igarapés, porém, seu intuito central não é o de prover alimento ao grupo. Os alimentos
São Francisco onde a oferta de caça tem diminuído nos últimos anos, aumentando a
composta por carne de caça cozida com bastante caldo e farinha ou a fécula de
essenciais, mas a farinha e a massa de mandioca jamais podem faltar. A caça preferida
prototípica dos Jamamadi é sem dúvida o queixada, por seu valor nutritivo e simbólico.
Poucas espécies são interditas para o consumo, recomenda-se evitar a carne do macaco
sono. As restrições parecem ser maiores para os animais aquáticos, os Jamamadi não
294
O idioma da consanguinidade é mobilizado para descrever a relação com as plantas em
outras paisagens etnográficas, não restritas aos povos arawá, como dão conta as
expressões "enfants végétaux" dos Paumari (Bonilla 2007: 294-295), "enfants feuillus"
entre os Achuar (Descola 1986: 237-265; Taylor 2000); "filhos-plantas" dos Krahô
(Morim de Lima 2017); "filho de verdade" usado pelos Jarawara (Maizza 2014);
A atitude com relação à mandioca reflete-se num discurso sobre o modo de tratar o
vegetal: uma variedade é criada e não somente cultivada ou plantada. Estabelece-se
uma relação de filiação entre a agricultora e as variedades cultivadas. As variedades
têm uma dimensão humanizada que é a tela de fundo do manejo da diversidade
varietal (Emperaire apud Cabral de Oliveira 2006: 188).
Entre os Paumari, a forma humana das plantas cultivadas, o seu pamoarihi, é chamado
de filho pela pessoa que a plantou. Esses filhos de criação vegetais oferecem a seus pais
o que, de seu ponto de vista, é sua produção, o látex, por exemplo, é uma demonstração
parentesco com as plantas se revela na importância de saber que cada cultivar ou árvore
está relacionado a alguém, porque são plantados justamente com esse propósito, ou seja,
fato é essencial na evitação de conflitos. Deste modo, os frutos são símbolos de seu
que a memória genealógica paumari pode alcançar até três gerações ascendentes em seu
295
de acordo com a autora, é possível fazer uma "cartografia genealógica da ocupação
Toutes mes plantations (kodirakhajahi) sont mes enfants (kodisai), et je suis la mère
des bananes de mon mari (Onório kasipatihi kaamia). Lorsqu’elles produisent des
fruits, ce sont en fait mes enfants qui me ramènent quelque chose. Mes plantations qui
donnent des fruits ou qui produisent des légumes, ce sont en fait mes enfants qui me
ramènent des fruits de la forêt. Mes pastèques, quand elles fleurissent, ce sont mes
enfants qui sont en train d’extraire du latex, quand elles (les pastèques) sont bonnes à
manger, c’est du latex qu’elles me rapportent pour que je le vende (Nina, Santa Rita,
03/08/02)".
conhecido, mesmo no caso dele não habitar mais o local ou já ter falecido, fatores que
não afetam a posse da planta e estão na origem de recorrentes disputas sobre o direito de
colher e consumir seus frutos (ibdem). A situação não é muito distinta entre os
Jamamadi, sempre ciosos de seus cultivos. Em meu relato de chegada no campo (cf.
apresentar-me as plantas das aldeias e seus respectivos donos, cautela que ao longo da
É comum que entremeadas às plantas de alguém haja algumas que foram plantadas por
seus frutos ficam intactos até que seu dono ou algum parente venha colhê-lo.
Antigamente, a família de Trajano vivia onde hoje está a família de Badá, então, no
genealogicamente do grupo de Badá, por isso, era comum encontrar Trajano e seus
296
Em outro contexto, o motivo bíblico do fruto proibido, quando narrado pelos Jamamadi,
frequente nos mitos e na socialidade cotidiana – lembrando que as frutas são um veículo
de agressão xamânica127. Uma das passagens bíblicas favoritas do pajé B., que não é
crente nem frequenta os cultos mas gosta de ler a bíblia, é o trecho do gênesis que trata
da expulsão de Adão e Eva do paraíso por terem desobedecido uma regra tácita,
segundo ele, "conhecida por todos": eles comeram o fruto proibido, pegaram sem
los, seja com o olhar intruso e indiscreto em direção a plantas de outra pessoa, seja
colhendo frutos sem autorização, é um modo de agredir o seu dono. Este assunto,
127
Ana Rosa havia pegado malária e estava se recuperando quando piorou bruscamente. Apesar de não ter
feito o tratamento conforme a recomendação dos enfermeiros, a piora de sua saúde fora atribuída a um
caju que ela tinha comido. Ninguém mencionava outra coisa exceto o caju, comida perigosa quando se
está convalescendo por seu abono ser forte. Em seu vômito, todos procuravam pedaços da fruta, mesmo
que ela já tivesse comido outras coisas. O pajé B. retirou as flechas de feitiço de Ana Rosa. Segundo me
explicaram, ela comeu o caju e ele "colou" nela porque Ana pedira permissão para comê-lo, o que irritou
a alma da fruta que soprou feitiço nela. Por ter uma castanha oleosa, afirmam que a fruta tem muito
sangue/óleo (em contraposição ao cará, por exemplo, que tem pouco sangue), outro fator que explicaria a
restrição em comer essa fruta quando se está doente. Na ocasião, eles se lembraram da morte do pai de
Chagas, também provocada por um feitiço do caju, ayawa abono ou ayabata abono (cognato nakanike).
Ele voltou a adoecer quando estava quase se recuperando porque comeu essa fruta. Chagas diz que o caju
somado ao quadro frágil do pai causou sua morte. Um mito nakanike reforça a imagem perigosa dessa
fruta: "Um pajé resolve vingar a morte de seu pai e pede para que as almas deixem cajus envenenados no
caminho para os inimigos comerem. Todos comem as frutas e não conseguem mais andar. Eles têm força
apenas para alcançar suas maqueiras onde se deitam e cantam até morrer. O único sobrevivente é flechado
pelo pajé. Mesmo flechado, o inimigo nada sente e continua cantando. 'Você vai pagar o meu pai (vou
vingar a morte de meu pai), agora você e seus parentes nunca mais vão andar nos caminhos da floresta.
Vocês não têm mais alma e não vão para o céu. Vocês acabaram. Madi towe, os espíritos canibais, vão
comer a alma de vocês". Entre os Suruwaha, o sabor adstringente do caju é um código sensível
mobilizado para falar da mágoa e do ressentimento: "os Suruwaha acreditam que os fenômenos
meteorológicos (a chuva, o vento e o trovão) constituem até certo ponto (às vezes, mas não sempre) uma
materialização ou expressão sonora das emoções de revolta sentidas pelas almas dos recém-falecidos. A
mesma coisa vale para os cajueiros que, segundo eles, nascem em grande quantidade pelas beiradas do
caminho das almas (Masani agiri, “o caminho do leste”). O caráter travoso das frutas de caju (o seu efeito
adstringente sobre as mucosas da boca - asy) é equiparado por eles com o efeito da saudade sobre o
coração de uma pessoa abandonada, e o recurso ao motivo do “cajueiro celeste” como metáfora da
superação de um sentimento de perda é recorrente na sua produção musical" (Huber 2012:447).
297
recorrente na sociabilidade Jamamadi, é elaborado no mito de Yawina, personagem que
que permite promover rituais nos quais é fundamental poder oferecer grandes
quantidades de comida. E, não menos importante, ter grandes roçados é sinônimo de ter
muitos filhos humanos, que auxiliam no trabalho agrícola, e plantas, que são os espíritos
auxiliares.
O mito trata do encontro sazonal que reunia diferentes malocas por ocasião do ritual da
muitos cultivos amadurecem, com destaque à banana com a qual fazem uma importante
Yawina e seu cunhado, as mulheres partem para a maloca daqueles que promoveriam o
agredindo o cunhado através de suas plantas. Ao descobrir, Yawina faz uma borduna
parentes para exterminá-los. Apresento uma versão resumida do mito, o original pode
Os parentes de Yawina queriam levar uma menina "não formada" [em reclusão] para
fazer festa na outra maloca. A mulher de Yawina estava grávida, mas a mãe e o irmão
mais velho dela insistem que ela deve ir, mesmo sabendo que ela, com certeza, vai
parir a criança no caminho. Yawina ficou deitado em sua rede escutando a conversa e
128
Os Jamamadi também produzem uma bebida levemente fermentada de pupunha que é consumida
coletivamente entre diferentes parentelas no inverno, época dos deslocamentos sazonais em que as
famílias passam longas temporadas longe da aldeia principal e, no passado, os grupos se juntavam na
maloca comunal para beber essa caiçuma de pupunha, yawida fene. O consumo ritual da bebida difere da
comensalidade diária das parentelas e produz vínculos de outros tipos. Rival faz uma interessante análise
das qualidades práticas e simbólicas da pupunha que permitem a formação de diferentes alianças com
encontros sazonais de grupos endogâmicos regionais Huaorani (1998:241).
298
esperando a raiva passar.
- Minha irmã mais nova não pode ficar, eu vou levar ela. Dizia o cunhado de Yawina,
irmão mais velho de sua esposa, para a mãe.
- Mãe, eu não posso deixar o meu marido, Yawina não pode ficar.
A sogra tenta convencer a filha a acompanhá-los.
- Yawina tem que ficar, eu estou te chamando, não meu cunhado. Continua insistindo
o cunhado de Yawina até que convence a irmã.
- Yawina, você tem que ficar, eu vou com a minha mãe.
- Sim, vai com a sua mãe. Mas, se sua mãe tivesse avisado logo, eu teria cuidado do
meu yamata, teria colocado forquilha na banana e amarrado meu abacaxi.
- Então, ajeita seu yamata e vem depois.
A mulher de Yawina desatou a rede e colocou dentro do paneirinho para carregar na
viagem. No caminho, havia uma clareira de roçado com muitos cultivares. As plantas
estavam caídas no chão, muitas estavam maduras. Tinha muito yamata jogado na beira
do caminho. Alguém tinha cortado bananas, manivas e pupunhas e deixado espalhadas
para todos verem.
- Ka! Quando Yawina ver os yamata dele cortado, ele vai ficar com raiva. O Yawina
disse que vinha, por quê vocês [os irmãos dela] cortaram os yamata dele? Quando ele
chegar, vai ficar com raiva de nós.
A irmã mais nova de Yawina escuta a conversa e vai contar para o seu irmão o que
fizeram com suas plantas:
- Yawina! Yawina! chamava a irmã mais nova.
- O que foi asima [irmã mais nova]? O que você quer?
-Yawina! Ayo [irmão mais velho], destruíram seus yamata. Vai lá dar uma olhada.
Parece que aquele pessoal que foi embora antes cortou a pupunha que você plantou.
Irritado, Yawina chama um primo para acompanhá-lo e ver se era verdade.
- Anihi [primo], vamos comigo, disseram que mataram os meus yamata. Eu vou dar
uma olhada nas plantas do meu roçado, eu quero saber.
Chegando no roçado, suas plantas estavam mortas. Yawina fica com raiva e decide se
vingar.
- Ka! O pessoal que cortou meu fadara [roçado] é que tem raiva de mim, eu não tinha
raiva de ninguém. Mas, agora, eu estou com raiva de todos.
Yawina saiu e seguiu as pegadas novas deixadas pelos parentes. No caminho, cortou
um pedaço de madeira tara, que é muito dura, para matar todos eles.
sua procedência celeste e narram mitos de uma época na qual havia um intenso trânsito
das almas129. Contam que nessa época as pessoas comiam somente "frutas do mato",
129
Atualmente, os brancos parecem ter assumido uma posição similar no fornecimento de sementes e
mudas de novas espécies e variedades agrícolas. Eles solicitam sempre sementes dos seus visitantes.
Também quando vão à cidade sempre trazem mudas, sacolinhas com as sementes de frutas que comeram,
manivas de outros povos.
299
kabanike awabono, porque desconheciam os cultivares, até que um pajé resolveu ir ao
céu pedir as plantas alimentares para as almas. Os espíritos inamadi recebem o pajé
chamando-o de naki, "companheiro", e viajam com ele ao céu e ao subsolo para mostrar
as plantas, cada uma trocada por um item da cultura material. O pajé trocou um cacho
de pupunha por um cocar e uma braçadeira; um cacho de bananas, por uma tornozeleira;
uma muda de abacaxi, por uma zarabatana, etc. As almas ensinaram os nomes das
plantas, a maneira de cultivá-las e como deveriam ser preparadas: “a pupunha não pode
ser comida crua. Se você não cozinhar, vai ficar com a boca ferida. Você cozinha
primeiro, quando amolecer, pode comer. A banana, a macaxeira e a cana não precisa
cozinhar”, falaram as almas sobre a pupunha e os demais cultivares que hoje eles
plantam em seus roçados. As variedades de mandioca chamadas fowa bili e fowa sawa
foram as primeiras manivas trazidas do céu por esse pajé. O mito, ademais, marca a
frutas, hoje figurado pelos isolados Hi-Merimã, para uma vida sedentarizada, cuja dieta
Outro mito que trata da origem das plantas cultivadas é conhecido pelo nome de sua
quem faz o primeiro roçado, novamente porque naquele tempo as pessoas só comiam
apresento uma versão resumida do mito contada pelo pajé B. e sua esposa:
300
Tobeyo era gente, depois virou pássaro. A mulher-tobeyo foi com seu filho pequeno,
chamado Isaha, e seu marido caçar. O marido de tobeyo matou muito jacu com sua
zarabatana. Quando ela abaixou para juntar os jacus, percebeu que a terra onde
estavam era boa e decidiu ficar.
- Essa terra é boa! Eu não vou voltar, vou ficar aqui. Você leva meu menino para sua
irmã cuidar.
- Mas como ele vai mamar? pergunta o marido de Tobeyo.
Ela tira os peitos, coloca cada um em uma cabaça e os entrega para o marido.
- Não, vamos embora! ele chama de novo.
- Não temos roça, só fruta. Quando ele chorar, você põe o peito na boca dele. O leite
não vai acabar. Eu vou trabalhar muito e você cuida dele.
O marido fica com raiva e vai embora. Ele leva as cabaças com os peitos da mulher e
tampa com algodão. Toda vez que o menino chorava, ele colocava os peitos na boca
dele. Conforme o marido ia voltando pelo caminho, ele escutava as árvores caindo e
pensa que a mulher está trabalhando num roçado grande. Chegando na aldeia,
perguntam por sua mulher.
- Ela ficou, não quis vir, dizia o marido.
- Como assim?
Seus parentes não acreditavam nele, mas ele não sabia responder. Tobeyo tinha dito
para o marido esperar a lua cheia para ir encontrá-la. Quando chegou a lua cheia, ele
foi até o lugar que ela tinha indicado e encontrou um enorme roçado.
- Ka! é muito grande mesmo.
A mulher tinha dito para ele subir na árvore mais comprida porque olhando de lá ele
veria uma maloca. Ele procura a árvore, tira envira e sobe para olhar de cima. No meio
do roçado, de fato, tinha uma maloca grande.
-Ka! minha mulher fez mesmo o que ela disse.
Ele mede a distância e desce, certifica-se do rumo para o qual tem que seguir e vai em
direção à maloca. Esse é o primeiro roçado, antes não tinha roça. Quase todas as
plantas estavam maduras. Ele se aproxima da maloca, tira um pedaço de pau e bate em
cima da palha. A porta se abre do outro lado.
-Vem aqui, a mulher dele chama. Meu marido chegou!
Ela prepara a massa de mandioca, trazida do céu pelos Hi-Merimã, com quem ela
estava morando, e serve com carne de caça para o marido, que come até ficar com a
barriga cheia. Depois, a mulher dá um abacaxi para ele comer.
- Como se chama isso que eu comi?
- Isso é sami, abacaxi!
Ela chama o marido para mostrar as plantas e ensinar-lhe seus nomes.
- Isso é koyo, macaxeira; isso, sami, abacaxi; isso, fowa, mandioca; isso, kana, cana-
de-açúcar, ela vai dizendo. O marido aponta para a planta e ela diz o nome. Eles
andam por todo roçado para ele conhecer os cultivares. A mulher-tobeyo tira duas
espigas de milho, assa e dá para o marido comer. O marido pede para levar as espigas,
mas ela não deixa. Ele só poderia comer ali.
- Eu vou embora, diz o marido.
- Sim, vai e traz meu filho.
Quando ele está saindo, ela pede para ele não contar sobre o roçado. Ele deveria
esperar quatro dias para voltar e trazer o restante do pessoal da maloca. Quando o
marido de Tobeyo chega em sua aldeia, ele diz para sua irmã que ela deveria fazer
tangas novas, cocares, colares de dentes de macaco e braçadeiras para eles irem visitar
sua mulher. Porém, ela não acredita no irmão e pensa que ele está mentindo. Passados
quatro dias, todos saem paramentados e com as franjas bem cortadas para encontrar
Tobeyo. Quando chegam no meio do roçado, o marido de Tobeyo tira uma vara e bate
na palha da maloca para chamar a mulher [esse é o jeito ritual dos convidados
anunciarem sua chegada]. As pessoas saem da maloca fazendo barulhos de bichos
para receber os convidados [como nos rituais ayaka, da menarca]. A mulher-tobeyo
301
[tobeyo fana é outro modo do narrador se referir à personagem] coloca de volta os
seus peitos e volta a ser mulher. O pessoal come os cultivares e canta até amanhecer.
Tobeyo estava descansando em sua rede e sua mãe se irrita com ela porque ela deveria
ajudar o marido na roça e carregar os paneiros.
- Você tem que acompanhar seu marido, vai carregar o paneiro pesado e trabalhar na
roça.
Tobeyo fica com raiva e não vai, não se levanta. A mãe, então, bate nela com o abano
e insiste. Tobeyo sai, dizendo que vai comer caju, mas não volta mais. Ela virou o
bacurau, pássaro tobeyo, e deixou os seus parentes com suas plantas130.
Em M110, um mito karajá de origem das plantas cultivadas, a heroína rejeita o homem-
estrela por sua velhice e feiura, e é sua irmã quem se casa com ele. Após transformar-se
217). O bacurau desempenha no mito Jamamadi o papel do sariguê nos mitos Jê, assim
como o pássaro bunia (Ostinops sp.) na versão karib M116, pois "representa, portanto,
origem das plantas cultivadas entre os povos arawá ou detalhes sequenciais da produção
130
Oportunamente, analisarei esses mitos conjuntamente com suas transformações jarawara (cf. mito do
Bakayona in Vogel 2012), suruwaha (cf. mito de Kawawari in Huber 2012:495-496 e Aparício 2014:80-
81), deni (cf. mito de Mahaniru in Sass 2004: 36-37) e kulina (Adams 1962:140-147). Em uma das
versões do mito de totobeyo da origem das plantas cultivadas, a mulher bacurau recebe as sementes e
mudas dos cultivares agrícolas dos Hi-Merimã. Eles a ajudam na derrubada e na queima do roçado. E
juntos constroem uma maloca no centro do enorme roçado mítico onde residem juntos, contudo, ela se
nega a se casar com eles. A despeito dos Hi-Merimã figurarem no mito como detentores dos cultivares e
das técnicas agrícolas, o discurso corrente dos Jamamadi é que este povo não faz roçados em virtude de
sua vida errante na floresta e da ausência de ferramentas adequadas para realizar tal atividade.
302
agrícola, o mito da mulher bacurau ressalta a inflexão agnática, epitomizada na figura
nutriz, produtora do primeiro roçado, que deixa os cultivares para os seus parentes, mas
isso por função de ser má esposa: no início, abandona o marido e recusa-se a amamentar
o filho entregando os peitos para que ele e a cunhada (HZ) se ocupem da tarefa; ao final
trabalho agrícola. Mas é o desentendimento com sua mãe que faz Tobeyo abandonar os
seus parentes, transferindo a "função nutriz", nesse caso a horticultura, ao marido, i.e.,
os homens. A insistência da mãe para que ela ajude o marido no trabalho no roçado e
enquanto ainda amamentava um filho pequeno, também é marcada pela sua recusa em
manter contato sexual com os Hi-Merimã – outro aspecto da função sariguê de bacurau
que apesar de casada se mantém "casta" – que ocupam a função de "espíritos doadores
dos cultivares".
Não poderei me deter nos outros mitos de origem das plantas alimentares narrados pelos
conjunto de mitos sobre a aquisição das plantas cultivadas. Apresento uma versão
131
Para a transformação deni ver o mito de Mahaniru, a mulher-bomba, em Sass 2004:36. Para a versão
Suruwaha, ver o mito de Kawawari em Huber (2012:495-496). Para a versão Kulina ver Cerqueira
2015:145 e Adams 1962: 140-147.
303
O pajé fora desafiado pelos seus parentes que não acreditavam em seus poderes
xamânicos. Ele sobe numa árvore, o Wifi, cedro aguano, e pede para que seus parentes
coloquem fogo ao seu redor. Em meio ao grande incêndio, o coração do pajé explode
com estrondo e ele vai para o céu. Todos acreditaram que o pajé havia morrido. A mãe
do pajé chorava muito com pena do filho. Só seu irmão mais novo fora avisado de que
ele não morreria de fato e, por isso, deveria voltar em dois meses ao mesmo local do
incêndio. Passado o tempo combinado, ele volta e encontra um enorme roçado com
todas as variedades de cultivares. O irmão mais velho estava morando no meio do
roçado com suas duas esposas-espírito, mas não queria que elas conhecessem o irmão
mais novo por ele ser mais bonito. O mais jovem levou uma banana comprida para a
mãe como prova de que o irmão estava vivo, só que esqueceu de esconder a casca da
banana e foi descoberto pelos parentes. Cada um dos parentes quando foi visitá-lo
ganhou um cultivar (Berinawa, 2016).
aparece o personagem do avô-calango, Towisi, que abandona seu fogo deixando-o para
No mito, Dowisi faz o primeiro roçado com a ajuda de seus irmãos mais novos. Todos
os dias, Dowisi voltava para o céu, onde viviam suas duas esposas que insistiam em
conhecer os cunhados, mas os pedidos eram reiteradamente negados por Dowisi. Porque
os irmãos mais novos que ficavam na terra não sabiam de onde o mais velho trazia
comida todos os dias. Os irmãos comiam escondidos os cultivares trazidos do céu pelo
mais velho para que os parentes não os descobrissem. Então, depois de derrubar a
floresta, Dowisi pediu para que seus irmãos o açoitassem para queimar as plantas
derrubadas. O mais novo dos três chorava de medo e era repreendido pelos outros dois
irmãos. O corpo de Dowisi pegou fogo e queimou o futuro roçado. Passado um mês, os
304
irmãos mais novos voltaram ao local com carne de macaco guariba moqueada e
castanha para descobrirem no meio do roçado a maloca onde Dowisi morava com suas
situa a agricultura do lado dos homens, nesse caso, por meio de relações de mesmo sexo
entre germanos. Dowisi faz o primeiro roçado com a ajuda de seus dois irmãos mais
novos. Diariamente, Dowisi vai para o céu onde vivem suas duas esposas-espíritos e
traz comida para os dois irmãos que permanecem na terra, o que marca novamente a
origem celeste dos cultivares. A mãe do personagem desempenha função oposta àquela
da mãe de Tobeyo: se lá, a mãe foi responsável pela partida definitiva da mulher-
preponderância dos homens; aqui, a mãe de Dowisi e seus irmãos chora a falsa morte do
filho até que as obrigações filiais restituem a convivialidade terrena, antes substituída
pela vida celeste com as esposas-espírito. A aquisição dos cultivares juntamente com as
transformação entre a oposição entre os sexos e a do céu e da terra nos dois mitos: se no
132
O mito paumari do "menino capturado pelos urubus" é uma transformação do mesmo motivo
mítico (cf. Bonilla 2007:437-439).
305
***
Conforme discutido na parte I, a vegetação profusa que cerca as casas na aldeia é uma
todos os lugares: nos terreiros, em vasos, sobre os jiraus, nas estacas que sustentam as
casas onde costumam fazer cercadinhos para que as plantas (em geral, árvores
pequena, as plantinhas são transferidas para o terreiro de onde vigiarão a casa de seus
das plantas cultivadas são os principais espíritos auxiliares dos pajés e são tratados com
majoritariamente homens (ver capítulo 3). As almas dos filhos ou irmãos falecidos
também podem acompanhar o pajé, dadaba, uma vez que os vínculos de filiação e
germanidade não se alteram com a morte, logo, ele segue usando os mesmos termos de
parentesco para chamar essas almas. Os únicos espíritos auxiliares com os quais ele não
estabelece uma relação de consanguinidade são as almas das plantas não cultivadas, por
isso, chamadas de naki, termo genérico para afim, traduzido por "amigo",
"companheiro" ou "compadre".
306
No entanto, a filiação entre o agricultor e suas plantas é "incompleta", uma vez que não
produz uma identificação plena, mas uma relação eivada de ambivalência cuja afinidade
é obviada num esforço mútuo de estabilização que, todavia, não está livre de resvalar na
necessário que permite a transformação da relação com a morte, quero dizer com isto
exigem sua contrapartida, uma repetição que ocorre na vida póstuma em outra direção,
i.e., a figura do "pai cultivador" torna-se "filho de criação" da alma da planta que
A banana, o milho, a mandioca doce, dentre outros cultivos considerados "mansos", i.e.,
que não precisam necessariamente ser transformados pelo fogo culinário para serem
indispensáveis à manutenção da vida, mas também porque suas almas adotam os mortos
plantas, parece-me que este existe com a condição de não durar, por ser uma imagem do
destino que aguarda o horticultor. Aqui o tempo134 cumpre seu papel para reverter as
133
Cf. "The fractal yam: botanical imagery and human agency in the Trobriands" de Mark Mosko
(2009:679): "[P]lants are good for people to act with in respect of themselves, their relations, and theirs
cosmos. (...) I therefore take 'to act' to involve enactments in and with the botanical world which become
or affect transformations in the human world".
134
As relações de parasitismo paumari parecem ter função semelhante em anular o tempo e neutralizar o
potencial predatório do patrão.
307
temporal da relação que, a longo prazo, inverte suas valências, realizando-se em seu
oposto. O estado das coisas futuras exige uma contrapartida presente, realizada em
revela que o controle, leia-se, a ação domesticadora humana, não é um operador útil
para as transformações em jogo, proposta que se verifica nas três dificuldades descritas
acima que não podem ser dissimuladas numa aplicação adequada do modelo para o caso
unilateral tal como descrito na conceitualização das relações com as crianças e animais
assim elaborada por Fausto (1999, 2001, 2008) e Fausto e Costa (2013). Em linhas
gerais, trata-se do “processo pelo qual sujeitos capturados no exterior são consumidos e
(Fausto 1999:949). Arriscaria dizer que se há uma potência volitiva maior ou excedente
de capacidade agentiva (Fausto 2011), ela estaria do lado das plantas, dado que a perda
interdependência atual entre a vida terrena e a vida celeste se manifesta nas práticas
de plantas, a existência póstuma dos Jamamadi. A intervenção das almas das plantas
135
A inversão do sentido das ações não ocorre nas relações de filiação e germanidade "reais" que
perduram com a morte, o que não ocorre no caso da aliança. Edmilson, filho falecido do pajé B., chama
tanto B de abi, pai, quanto a makafi abono, "alma da taioba", que o criou no céu. Quando João morreu,
Edmilson seguiu chamando a alma de seu irmão de ayo, irmão mais velho. Os laços de filiação não se
apagam com a morte, como visto, no início do capítulo 1, quando a alma de Koeto vem visitar seus pais,
ele chama a esposa do pajé D. de ami, "mãe", e D., de abi, "pai".
308
cultivadas tornou-se imprescindível com o advento da morte e a perda da vitalidade
vegetal da humanidade.
309
Fig. 20 Eline mostra sua planta
310
8.2 Adoção de crianças
Yama nafi ai nanawada: yamata, bani, madehe, "de tudo nós criamos: cultivares,
nawada, que engloba as três categorias. O escopo deste breve subcapítulo é abordar
algumas correlações relativas à criação das plantas, intuito que se estende ao tópico
Mulheres mais velhas solteiras que vivem na casa dos pais e os casais sem filhos
embora a adoção não seja ocultada, não é por meio das atitudes que se pode distinguir
os laços "reais", de tal modo que os pais adotivos preocupam-se em ressaltar que
embora a criança seja "de criação", ela é como/quase, nima na, um filho de verdade. As
crianças adotadas, por sua vez, também sabem quem são seus pais "de verdade" e se
Nunca conheci um casal que não criasse, ou tivesse criado, pelo menos um filho junto.
(...) Essa 'criação de criança de outra pessoa' corresponderia ao nayana na língua
jarawara, na qual se diz, por exemplo, Manira owa nanayana, 'Manira me criou',
311
normalmente em contraste com o termo 'de verdade', yokana: Narabi okomi yokana,
'Narabi é minha mãe de verdade' (2014:498).
Este é o caso de Malena, adotada aos dois anos por José e Abadai, sua tia materna;
quando Malena está na aldeia de seus pais adotivos, os chama de abi, pai, e ami, mãe,
mas em visita à aldeia de seus pais "reais", Malena passa a chamá-los de amise (MZ) e
abise (MZH). Messias, outro irmão de Malena, vive com seus avós, idi (FF) e aki (FM),
e sua tia paterna, aso (FZ), de quem é reconhecido como criação. Messias, primeiro
filho de Telmo e Kaviana, nasceu logo após a união do casal, período de instabilidade
no qual parte considerável das uniões matrimoniais são desfeitas. Na época em que
Telmo e Kaviana se separaram, o filho do casal foi viver na casa dos avós e acabou
permanecendo com eles mesmo após os pais reatarem a relação e se mudarem para a
mesma aldeia. Os nascimentos de seus outros filhos, com efeito, estabilizou a união. A
despeito das adoções serem mais frequentes por parentes paralelos, como se sabe, a
determinação da proximidade das relações, o que justifica os casos de adoção por tias
cruzadas, aso.
Crianças mais velhas também podem passar temporadas, que variam de meses a anos,
vivendo com suas tias solteiras, amise (MZ) ou aso (ZF), que se responsabilizam por
parte de sua criação. Assim, Fabono e Helena foram viver na casa de seus avós para
serem cuidados por sua tia Dossobi, irmã solteira mais nova de sua mãe. As meninas
passaram a morar na casa dos avós e ajudavam a tia nas tarefas domésticas;
dormir com a tia que as estava criando naquele momento. A intenção era que as
312
meninas, ao acompanharem a tia, dona de grandes roçados – compreendidos nos limites
dos roçados de seu pai –, além de boa cantora – ela tem a garganta fina/pequena, namidi
iisi, atributo essencial para as mulheres que devem cantar sempre agudo –, aprendessem
a realizar com igual destreza estas tarefas. Depois que as meninas retornaram à casa dos
pais, Dossobi começou a criar outro sobrinho, filho de seu irmão, à contragosto do
As mães solteiras vivem com seus filhos na casa dos pais, que as ajudam na criação dos
netos. É comum que o avô ou um tio materno mais velho assuma parcialmente as
de sua casa nas caçadas, pescarias e trabalhos no roçado. Uma dificuldade se impõe para
tal configuração familiar, pois, por não terem a paternidade do filho reconhecida, as
mães não fazem os documentos das crianças e consideram que benefícios como salário
maternidade e bolsa família não se aplicam a elas que não têm pai, abi wadara (Maizza
Quando adultos, os filhos de criação passam a prover seus pais adotivos, destinando-
lhes parte do que pescaram e caçaram, além de auxiliar-lhes em seus roçados, enfim,
destinam atenção semelhante àquela que dedicam aos "pais de verdade". Durante um
período em que os roçados de Pide não produziram o suficiente, alguns de seus filhos
foram entregues a Elza e Arnica para que os criassem "um pouco". Alimentar a criança
é um dos atos que engendra e fortalece a relação de criação, além originar um afeto
recíproco e duradouro entre pais e filhos. Ainda que hoje eles vivam em aldeias
diferentes, é o dever deles trabalhar para Elza e Arnica, sobretudo agora que o casal está
idoso. Quando chega a época de derrubar o roçado, por exemplo, os filhos de criação
313
são chamados pela radiofonia. Também são eles quem acompanham seus pais adotivos
136
"O missionário nos cria dando comida e remédios do mesmo modo que as galinhas criam seus
pintinhos", foi uma comparação feita por Chagas para explicar a atuação do missionário. Seria importante
considerar a relação de criação entre os Jamamadi e suas transformações partir da subversão lógica
engendrada pelo parasitismo ou ponto de vista da presa, tal como elaborado por Bonilla entre os Paumari
(2005, 2007, 2016).
314
8.3 Os animais de criação
animais de criação perto da casa de seus donos, hiyi: casinhas para macacos construídas
segundo o modelo do “polo base” da Sesai; abrigos para galinhas; casas para cachorros
paxiúba; cercados cobertos com palha para abrigar tamanduás, queixadas, quatis ou
antas; casinhas para caititus, cotias e pacas – construídas sob as casas de seus donos –;
gaiolas para pássaros de todo tipo. Nenhum animal de criação dorme ao relento, ao
contrário, a maioria vive em suas próprias casas e são tratados com carinho e atenção.
Os cães podem dormir ao lado de seus donos em suas redes atadas com mosquiteiros,
cestinhas forradas com cobertas e roupas velhas ou, ainda, um espaço da casa pode ser
reservado para abrigar os cães. Quando Braia ficou prenhe, o filho de Badá fez um
cercado dentro da casa para que ela não fosse incomodada pelos outros cães, lá ataram
Nos dias de frio, as filhas de Badá mantinham os pintinhos dentro de casa protegidos
em suas mãos e, à noite, aqueciam chumaços de algodão para manter a cesta onde
dormiam quente. Nos dias de calor intenso, assim como as crianças pequenas são
banhadas muitas vezes, os animais são lavados por seus donos nos igarapés; os cães
tomam banho, com shampoo de cetoconazol distribuído pelas equipes da Sesai para
matar seus parasitas. No verão de 2016, fui surpreendida pelos chamados de Laide que
pedia ajuda a seus vizinhos porque uma de suas galinhas havia desmaiado devido ao
315
quando nascem os seus filhotes, sejam cães ou galinhas, os animais são banhados com
As criações são também os filhotes capturados dos animais predados nas caçadas.
Aquele que matou a mãe levará o filhote para a aldeia, mas não o criará. O caçador
deverá oferecê-lo para que outra pessoa o crie. Exceto os cães, que podem receber
muitos nomes, os outros animais são chamados pelo nome de sua espécie, seguindo o
padrão do pet vocative (Dienst e Fleck 2009) ou por uma onomatopeia do som que
igualmente notada por Maizza na relação dos Jarawara com seus animais de criação:
As pessoas não dão nome a seus animais e os chamam pelo nome da espécie, por
exemplo, wafa (macaco barrigudo), o que parece demonstrar uma vontade de
explicitar a distância da relação. Elas o alimentam, lavam e, na maior parte do tempo,
os deixam presos, amarrados ou em uma casinha feita para eles (2014:500).
Os animais de estimação são chamados de bani, no caso dos mamíferos, e bani bidi,
usado para os pássaros; no contexto das interações de criação, os termos podem ser
traduzidos por "animal" e "animal pequeno", respectivamente, bem como por "presa" e
os cães, chamados pelo nome de sua espécie, yomahi. A diferença dos termos
empregados tem efeitos diretos na produção dos vínculos com os cães, de maior
proximidade, comparados com os outros animais que, no limite, não perdem sua
316
Nome do dono/dona Nome do cachorro
Arnaldo Bori
Doriana Bonosoki, Toro, Inácio (nomes do mesmo
animal)
Mônica Sabo
Dowisi Neto, Raião (nomes do mesmo animal)
Narabo
Elenita Bado
Ana Rosa Leão
Maika Yodo, Delegado, Madi towe, Bandido,
Ladrão (nomes do mesmo animal)
Dossobi Eri, Dafi, Kopenawa
Bili
Braia
Bafita Carrera
Badá Dog
Arnica Branquinha
Com efeito, os cães, yomahi, mesmo termo usados para as onças, têm um estatuto
distinto daquele conferido a outros animais – no frio são vestidos com roupas, quando
adoecem são atendidos pelos enfermeiros e são medicados, lavados com shampoo e
sabonete, seus donos compartilham com eles sua comida. Tal adoção assemelha-se à
relação das almas com seu cão de caça/onça, animal em miniatura que vive no interior
do corpo humano (também nos corpos das almas de plantas) e tem a mesma trajetória e
semelhantes aos dos mortos humanos, sempre cobertos e, se possível, com telhado de
corporal. Estes túmulos, porém, estão situados perto da casa de seu dono, não em seu
roçado. A morte dos cães é acompanha de grande tristeza e, por vezes, um breve luto.
aproximam-se sem temor, emitem sons estranhos, etc. –, são entendidas como tentativas
317
dos espíritos inamadi predarem os humanos enganando-os ao assumir uma aparência
animal.
Todos os filhotes pequenos são alimentados com leite comprado por seus donos/donas
na cidade e, caso cheguem na aldeia machucados, são tratados com diligência até se
receberão uma parte; se cozinharem macarrão com molho de tomate, uma parte será
para eles; se houver carne de anta com caldo, todos da casa incluindo os cães comerão
carne e beberão o caldo. A adequação da dieta do cão àquela de seu dono altera seu
Porém, se não houver comida suficiente, outra refeição será preparada para os cães.
Dossobi costumava esquentar uma parte do caldo no qual a carne de caça fora cozida e a
servia com farinha para os cães quando não havia carne para todos. Ela servia a comida
momento das refeições, os cães se juntam ao restante das pessoas para comer, a
comensalidade é um aspecto da relação de criação dos cães que reforça a ideia de que
estes animais são parte constituinte da corporalidade jamamadi. As mães que não
vendido na cidade usado para alimentar os cães filhotes e retrucam as críticas dos
enfermeiros mencionando tal prática, afinal, se os cães bebem deste leite, por quê seus
318
Por outro lado, os outros animais criados por eles consomem comidas específicas,
trazer cultivares para suas criações, e caso não tenham cultivos suficientes, preferem
Em tom de brincadeira, os Jamamadi podem se referir aos seus animais usando termos
de parentesco: “sua filha [tamanduá] está com fome, você deveria comprar leite para
ela”, disse Laide para sua nora, dona do tamanduá; “sua filha [caititu] é muito brava",
Dowisi era criticada por conta do temperamento do seu filhote de porquinho; "seu
marido vai brigar com você", dizia Sabira para uma galinha; “Eri, vai com a sua avó”,
Dossobi falava para o seu cão ir com sua mãe; “seu irmão vai demorar para chegar,
Braia”, explicava Maika para a cadela que aguardava o retorno de Bafita, seu irmão
mais velho; “Vovó, não chora, Bafita já vai voltar”, Maika, "mãe do cachorro", fingia
que ele conversava com sua mãe, na brincadeira referida como "avó" do cão.
personalidade e aceitam tanto sua mansidão quanto sua agressividade. Eles não se
valem de técnicas para extrair os dentes e garras dos animais; no caso das aves, suas
asas não são podadas. Yodo, um dos cachorros da família de Badá, já atacou seus donos
comportamento colérico e dão apelidos ao cão – como delegado, bandido, Jara, madi
towe, etc – para rir dele. O pajé B. tinha um galo muito arisco, que corria atrás dele e
ameaçava os visitantes, porém, isso não o impediu de tratar o animal com ibuprofeno
319
quando ele adoeceu. Bonoaiya cria um tamanduá que já atacou vários de seus vizinhos,
porém, ela jamais reprimiu o animal. Noka cria uma anta adulta que durante o dia
passeia pela aldeia e à noite retorna ao seu cercado para dormir e comer; em algumas
ocasiões, a anta atacou as mulheres enquanto elas se banhavam no igarapé e quase feriu
uma criança. Após esses episódios, eles só alertaram para que as pessoas tivessem
cuidado durante o banho, porém, não cogitaram manter a anta em seu cercado fechada.
muito agressivo e invadir as casas próximas, sua dona jamais o mantivera preso, até que
Minha impressão é de que os Jamamadi são menos apegados aos animais criados soltos,
pois, no outro extremo, há a contenção dos cães de caça que são mantidos fechados
dentro de suas casinhas, ocultos aos olhos que não sejam os de seu dono; cuidado
semelhante ao que se tem com as plantas, cujo crescimento é prejudicado pelos olhares
são mantidos perto de seus donos/pais de criação, presos em casinhas ou retidos com
cordinhas para que não se afastem de seu olhar, no caso das plantas pequenas, que ainda
Por tal razão, apesar de ter somente escutado relatos, acredito que os Jamamadi, de fato,
possam comer alguns dos animais de criação, justamente os que são criados soltos. Lobi
conta que quando seu queixada morreu, ela chorou sua morte, mas comeu de sua carne.
O pajé D. diz que sua anta de criação será morta para alimentar os convidados do ritual
que ele planeja há algum tempo. Ao questioná-lo se não haveria algum problema em
matar sua criação, ele me contou a história de uma outra anta, chamada Wakenama,
320
criada por sua avó. Ela não permitiu que a matassem a flechadas para que sua carne
fosse consumida no ritual da menarca da neta, então, ela deu o suco da mandioca
amarga para sua anta beber. O problema não incide no consumo da carne, mas no
321
Fig. 23 Galinha toma banho depois que seus ovos eclodiram
322
Parte 3: Mitologia e a questão dos subgrupos
323
Capítulo 9: As sementes da primeira humanidade
Hiyarabote, lit. "a fala/história dos antigos", é o termo com o qual os Jamamadi se
referem aos mitos, os relatos transmitidos pelos avós. A referência à geração ascendente
G+2 é um modo de dizer que estas narrativas pertencem ao mundo dos genitores mortos
dos mais velhos vivos no presente, a figura dos antepassados. São histórias que não
testemunhado. A impressão inicial de quem escuta uma narração mítica pela primeira
vez é de que esse conhecimento parece estar à beira do esquecimento, não só porque os
jovens demonstram clara impaciência em escutar os mais velhos, como por ser comum
parcial, assim: "Ka! que susto, quase virei branco. Achei que tinha esquecido essa
história!"; "Ah, eu não sei bem, isso faz muito tempo"; "Ninguém conversa comigo
conforme apontam Bonilla (2007) para os Paumari, Costa (2007) para os Kanamari,
Gow (1991) para os Piro, encontra dificuldades entre os Jamamadi, uma vez que eles
não atribuem às suas narrativas míticas um valor inaugural inequívoco com personagens
ou prefiguração das condições atuais do mundo. O que se poderia dizer é que algumas
137
Uma exposição da questão foi tema da dissertação de Aline Balestra "Tempos mansos: história,
socialidade e transformação no Juruá-Purus indígena" (2013).
324
figuras têm a função de balizas ou referências para situar um acontecimento no tempo:
Yawida abono, guerreiro mítico de uma das narrativas preferidas dos Jamamadi, é a
com vários patrões, cada um responsável pela introdução de uma tecnologia, de modo
que não há um único patrão que serve de ícone para este momento. Talvez as figuras
que mais se aproximam dessa posição sejam o casal Robert e Barbara Campbell, cuja
ação foi decisiva na reunião dos remanescentes dos grupos madi e no tratamento das
A fim de situar suas narrativas, os Jamamadi utilizam o termo "época", mesmo quando
falam em Jamamadi: "a época das guerras de Yawida abono (alma da pupunha)"; "a
época em que Chico Cudero (corruptela de Cordeiro?) chegou no igarapé Aripuanã"; "a
dizem que a época em que o céu e a terra eram invertidos antecedeu a época das guerras
de Yawida abono que, por sua vez, cessaram com a chegada dos patrões e, por fim, com
o estabelecimento dos missionários, isso não implica que tais "épocas" não possam se
tempos estão "fora de seus gonzos". Cada figura – personagens míticos como Yawida
pensadas como parte de um contínuo de mudanças não abruptas que não cessaram de
ocorrer. Isso se explica pela perenidade de tais figuras: Yawida abono faz parte de um
325
coletivo vegetal com o qual os Jamamadi costumam se casar na vida póstuma; os
descendentes dos patrões da época do contato vivem na região, alguns deles seguem
permanece entre eles há três gerações, com presença intermitente desde sua chegada na
brancos no modo de vida e sociabilidade que alguns mitos começaram a aparecer nas
conversas. Pelo que me lembro, o mito de Yawida abono foi o primeiro que me
contaram, de todo modo, este é um dos mitos que os Jamamadi mais apreciam narrar e,
por isso, foi um dos que mais escutei. Em geral, todos conhecem a história de Yawida
abono. Há narradores melhores que outros, mas todos sabem as passagens principais e
com variações interessantes: ora os inimigos são os Juma, ora são os Apurinã. Em
acontecimento menos longínquo, vivido por alguém conhecido, mas que obedecia à
mesma sequência do mito do guerreiro Yawida. Isso também se deve ao fato do conflito
do mito não estar restrito ao passado mítico, pois ele é presente na vida celeste das
326
almas. A guerra mundial do passado e da futura vida póstuma estão em continuidade,
daí o vigor do motivo do mito de Yawida. E é contra esse pano de fundo de agressão e
violência que a vida misturada ai yorotokana (ver capítulo 11) transcorre. As qualidades
xamânicas de Yawida abono fazem dele um pajé insuperável, aspecto que justifica o
grande número de espíritos auxiliares que os pajés têm desta espécie; além disso, as
almas das pupunhas são uma preferência conjugal póstuma frequente dos mortos
mais importantes.
Essas são as palavras dos avós, de antigamente. As mulheres foram arrancar mandioca
no roçado. Havia muitos tucanos comendo frutas nas árvores. As mulheres contaram
que viram muitos tucanos comendo fruta quando voltaram para aldeia. Yawida abono
estava esquentando suas flechas e ouviu as mulheres conversando. Seu irmão mais
novo se anima com a notícia e diz que vai matar os tucanos. 'Calma, espera, eu é que
vou flechá-los', diz o irmão mais velho, Yawida. 'Tudo bem', concordou o irmão mais
novo. Os tucanos estavam na beira no roçado, Yawida matou-os com a zarabatana e os
juntou num canto. Conforme os tucanos iam caindo no chão, ele torcia seus pescoços e
os colocava de lado. De repente, Yawida abono escutou o barulho de vozes se
aproximando; era muita gente. Logo, essas pessoas começaram a atirar muitas flechas
nele. Eles estavam armados com flechas, lanças afiadas e bordunas. O pessoal que
ficou para trás na aldeia de Yawida escutou o barulho da briga e tentou ir ver o que
estava acontecendo, mas Yawida abono avisou para eles se esconderem para que os
inimigos não os vissem. O tio materno, badise (BM) de Yawida, seu irmão mais novo
e as mulheres ficaram na aldeia, os homens jovens e os rapazes haviam saído para uma
caçada coletiva. Yawida abono era um pajé que sabia muito. Então, ele abriu um
buraco na terra para esconder seus parentes. Depois que todos entraram com pressa,
ele tapou o buraco. 'Badise, me escute! Não saia do buraco até eu avisar'. Mas, o irmão
mais novo não escutou o que dizia Yawida abono. Enquanto isso, os inimigos
atiravam, mas nenhuma flecha atingia Yawida, que desviava de todas. As flechas, os
arpões e as bordunas caiam no chão e Yawida ia recolhendo todas elas. Ele atirava as
flechas de volta e, sozinho, ia matando um por um os inimigos. O irmão mais novo de
Yawida abono saiu do buraco e acabou flechado porque não tinha escutado o irmão
mais velho. Em seguida, o tio materno escutou o sobrinho gritar e saiu para socorrê-lo:
'Ah, flecharam meu sobrinho, estou escutando a voz dele!'. Quando o tio saiu do
buraco, ele também foi atingido por uma flecha e, em seguida, seu peito foi perfurado
com um arpão, matando-o. 'Aia, aia, daha (irmão mais velho), me flecharam, bateram
em mim', gemia o irmão mais novo. Yawida ouve os lamentos do irmão e fica com
raiva. 'Eles acertaram meu tio e meu irmão mais novo'. Ele pegou a borduna e
terminou de matar os inimigos quebrando o pescoço e as costas deles com suas
próprias armas. Era muita gente, só que dois conseguiram fugir porque Yawida abono
327
não os viu. Eles fugiram correndo e gritaram quando já estavam longe. Eles desistiram
de brigar. Yawida abono estava muito cansado, ele suava, mas não estava ferido. Ele
foi curar seu irmão e seu tio porque ele era um pajé que sabia muito. Logo os dois
voltaram a viver. Os parentes chamavam de dentro do buraco. Gritavam pensando que
Yawida abono estivesse morto. Os parentes pulavam de dentro da terra querendo sair.
'Eeeeeeee!', Yawida respondeu de volta e tirou seus parentes do buraco. Yawida
juntou a carne dos inimigos para dar para os urubus comerem, depois limpou a aldeia
toda para ela ficar bonita de novo. Os parentes pensaram: 'Esse pessoal veio para
brigar com Yawida, acharam que iam matar todo mundo. Eles não vão mais voltar'.
***
"qual o nome do teu povo/etnia?", tika ede oni?, a saber, "qual planta da tua origem" ou
"de que planta você provém?" sugeririam que o sistema etnonímico jamamadi poderia
da consubstancialidade com as plantas que dão nome aos grupos às pessoas que a ele
largamente exposta neste trabalho. A profusão da flora indica igual diversidade humana,
pois dizem que "assim como tem todo tipo de planta, tem todo tipo de gente". Esta
humanidade do interlocutor. Crianças que se portam mal, parentes que sovinam comida,
pessoas não comedidas que falam "com força" ou brigam são chamadas de bani, termo
que designa genericamente "presa", em especial os mamíferos que eles caçam, mas
328
admite neste contexto o sentido mais amplo de "animal".
pessoas e plantas expressa nos etnônimos. Em seu discurso, proferido em reunião, ele
tentava explicar para a audiência que sem a terra, não há roça e não há índios. Suas
palavras não versavam sobre o valor econômico da terra, a intenção era explicar-lhes
plantas, cada um dos subgrupos e dos povos vizinhos brotaram de diferentes sementes:
massaranduba; os Apurinã, yati madi, brotaram das sementes do milho (outros dizem
que da planta com a qual produzem suas flechas). Trata-se de uma reflexão sobre o
começo da vida na terra que em sua origem estava desabitada até que os diferentes
semente, ela não nasce?", ele perguntava. “Foi desse jeito que nós nascemos, também
nossos cultivares são todos nascidos. Tudo veio da terra, todos nascemos de sementes.
Quando os Jamamadi asseveram que: "a gente é como fruta do mato, awabono", "assim
como nossos cultivares, nós também nascemos da terra" e "tudo é nascido, gente e
atual a partir das sementes das árvores. Do fato de Salgado, José ou Badá
assentem à gênese mítica do seu grupo a partir das sementes do patauá: "foi da semente
329
do hawa, 'patauá', que nasceram os korimari, 'alma', dos hawa madi, 'pessoal do
Nós nascemos da terra, wami-ya hawa mai yanana metemoneni. Nascemos como
yamata; é a mesma coisa. No começo não havia ninguém. A gente não joga semente
de fruta depois que come? É assim, nós nascemos assim. Também nossos yamata,
tudo é nascido. Tudo veio da terra. Todos nasceram de sementes. Cada tipo de
Jamamadi é um tipo de pau, de madeira. Mai ede oni? "Qual o nome da etnia?, as
pessoas perguntam. Tem kosiba, wadi, amara... Cada árvore é uma etnia. Tem índio
tucumã, kore, etc. Todas as etnias nasceram das árvores. Quando a semente cai na
terra ela nasce. Nós somos do mesmo jeito.
Mas as pessoas criadas primeiro por Ajimarihi não conseguiam falar direito. Falavam
línguas feias, incompreensíveis, e Ajimarihi as mandou embora. Estas pessoas
desprezadas por Ajimarihi tornaram-se os ancestrais dos povos estrangeiros: as criadas
de sementes de ucuqui deram origem ao povo dos Juma, as criadas de sementes de
patauá, aos Zamadi, as criadas de sementes de habaru, aos Jakimiadi e aos policiais e
soldados do exército, as criadas de sementes de sorva, aos sorveiros, as criadas de
sementes de abiurana, aos jara de pele branca como você – sim, você é uma ex-
semente de abiurana!. (Huber 2012:224)
Foram Berinawa e Badá quem me contaram que no passado remoto, antes da "época dos
avós", o céu e a terra eram invertidos. Nesse tempo não havia nada porque as plantas
terra para o céu. Depois que o céu ficou em cima e a terra embaixo dele, começaram a
nascer as árvores, awa bote, os seres mais antigos das narrativas míticas. Há um detalhe
330
taiya, soba e mafiyu, símbolos da vida anterior aos cultivares, leia-se, antes do cultivo
da mandioca. Nos mitos são referidos com os termos aki, avó, ou idi, avô (conferir o
canto xamânico do avô kiya abono, p.166). Foi preciso que o céu estivesse acima da
terra para que os seres começassem a habitá-la. Os cultivares ainda demoraram para
aparecer porque são coisas do roçado, já "as árvores são árvores mesmo, são outro tipo
de gente", advertem. Não à toa, os mortos Jamamadi raramente se casam com almas de
árvores. Ou seja, elas não são como os animais que antigamente compartilhavam da
sementes caídas do céu, trazidas pelo vento e jogadas por outras pessoas que comeram
frutas. Não custa enfatizar que as plantas primordiais continham em seu interior
diferenças infinitas que não permitem que no estado mítico sejam contidas nos limites
de um reino biológico, pois a vida vegetal sempre foi também humana, sendo
2015:82).
diferentes espécies e cuspia suas sementes, fazia brotar delas os diferentes tipos de
pessoas, homens e mulheres: "quando alguém come uma fruta e joga a semente, ela não
nasce? Então, nós somos do mesmo jeito. Nós saímos da terra", prosseguiram Badá e
enfim: "as pessoas nascem do mesmo jeito que as plantas e morrem como elas".
331
Do tempo em que céu e terra eram invertidos, não há muito mais a ser dito, os
Jamamadi limitam-se a comentar que não havia nada porque as coisas "caíam" por não
adversas. Não custa frisar que é de pouca valia esperar que os mitos obedeçam a uma
sucessão temporal; o início parece estar "fora do tempo" e a sua anterioridade deve ser
entendida como lógica, não cronológica. Ademais, a linearidade das narrativas míticas
nunca foi preocupação para meus interlocutores que, de bom grado, aceitam versões
distintas e concorrentes acerca de um mesmo evento mítico. Por não terem sido
testemunhadas por nenhum de seus parentes, não é possível – esta questão passa ao
empiricamente ao mundo" (Danowski & Viveiros de Castro 2014:87): "[a] ação do mito
transcorre em um tempo no qual ainda não havia nada, mas já existiam as pessoas"
(idem). A parte da humanidade que permaneceu igual a si, que passou incólume às
332
primordial (seja simplesmente pressuposta, seja fabricada por um demiurgo) como a
única substância ou matéria a partir da qual o mundo viria a ser formado. Trata-se
assim de narrativas sobre o tempo de antes do começo dos tempos, uma era ou um éon
que poderíamos chamar 'pré-cosmológico' (Viveiros de Castro 2007). Após uma série
de peripécias, parcelas da humanidade originária - não completamente humana, pois,
embora antropomorfa e dotada de faculdades mentais idênticas às nossas, essa raça
primeva possuía grande plasticidade anatômica e uma certa propensão para condutas
imorais (incesto, canibalismo) - parcelas desta 'primigente' vão-se transformando, de
modo espontâneo ou, mais uma vez, em resultado da ação de um demiurgo, nas
espécies biológicas, acidentes geográficos, fenômenos meteorológicos e corpos
celestes que compõem o cosmo atual. (idem:87-88)
uma vez, a atribuição de intencionalidade ou distinção espiritual às plantas não pode ser
secundária ou derivada dos animais (cf. Viveiros de Castro 1996), pois tal atitude
reino vegetal. Novamente: são as plantas que compõem o solo pré-cosmológico que
333
Aqui me permito fazer uma breve digressão a partir de um recente trabalho do filósofo
Emanuele Coccia em "La vie des plantes: une métaphysique du mélange" (2016). Sabe-
se que foram as plantas que transformaram a terra, tornando-a habitável aos outros seres
recíproca entre sujeito e meio, corpo e espaço, vida e ambiente. Se uma crítica à noção
de paisagem pode ser feita a partir desta reflexão, eu diria que ela irrompe da imersão
criada pelas plantas, no ponto em que noções como "limite", "meio" (milieu) e
relação aos seres que o habitam: “si tout vivant est un être dans le monde, tout
[l]'existence des plantes est par elle-même une modification globale du milieu
cosmique, c'est-à-dire du monde qu'elles pénètrent et par lequel elles sont pénétrées.
C'est déjà en existant que les plantes modifient globalement le monde, sans même
bouger, sans commencer à agir. Être signifie por elles faire monde, et, à l'inverse,
construire (notre) monde, faire monde, n'est qu'un synonyme de l'être (idem:55)
Mas o que essa discussão poderia interessar à mitologia Jamamadi? A vida vegetal é um
ato cosmogônico, de criação do mundo para os outros seres, pois é o autotrofismo das
das plantas como cosmogonia, ela é a condição de possibilidade e o produto da vida que
334
abriga. Com efeito, essa potência criativa que engendra o cosmo também o permeia
desse sopro metafísico vegetal. Do mito se diz que viver, portanto, é essencialmente
viver a vida de outrem. Não é possível separar a planta do mundo, dada sua adesão
integral ao meio. Pelo menos a título heurístico, as formas de vida podem ser uma
tautologia cósmica: elas se pressupõem e não produzem outra coisa que elas mesmas.
regra topológica da autoinclusão, quer dizer, não precisam da mediação de outros seres
para viver. Talvez se possa dizer que os Jamamadi levaram essa ideia ao limite ao dizer
que as plantas produzem o mundo e as formas de vida humana e animal são formas
“Être-au-monde signifie nécessairement faire monde: toute activité des vivants est un
Findado o parênteses, devo ressaltar que as intuições aqui esboçadas requerem uma
próximo capítulo.
335
Capítulo 10: Lost in translation
o objetivo de abordar as relações dos Jamamadi e dos Banawá com seus vizinhos Hi-
reunião, Abadias Jamamadi interrompeu a sequência das narrativas míticas que estavam
etnônimo adotado pelos Banawá. No tom elegante e provocativo que lhe é de costume,
o cacique geral dos Jamamadi (que havia substituído Badá) queria saber qual o nome
dos Banawá, pois ele não estava convencido de que o nome "Banawá" poderia referir-se
tanto à etnia quanto ao igarapé onde eles vivem. De acordo com seu argumento, pode-se
dizer "aqueles do banawá" para se referir às pessoas que vivem nesta localidade, a
saber, o igarapé banawá; no entanto, a lógica para determinar o nome de uma etnia –
rio Curiá, mas nem por isso me chamo "Curiá". Qual o nome da etnia de vocês?",
138
Há uma mútua desconfiança, por muito tempo, a FPEMP nutriu desconfiança explícita em relação aos
Jamamadi, de modo que o diálogo escasso, o não compartilhamento das informações obtidas nas
expedições de vigilância e monitoramento os mantiveram afastados da atuação do órgão e de seus
propósitos, levantando dúvidas sobre um possível desaparecimento dos Hi-Merimã. Do ponto de vista da
Frente, os Jamamadi seriam a principal ameaça ao isolamento e integridade do território dos isolados,
pois, em busca do cobiçado óleo de copaíba, os Jamamadi adentrariam regiões com fortes indícios de
ocupação. Muitos Jamamadi, por sua vez, questionam a atuação da FPEMP cujo propósito não condiz
com as justificativas dadas no momento da implantação das Bases de Proteção Etnoambiental, origem de
rusgas e mágoas não superadas.
139
O encontro "Diálogos sobre isolamento e contato: os Hi-Merimã e os povos do seu entorno" realizado
entre os dias 23 e 26 de novembro de 2016 pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em colaboração
com a Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus (FPEMP) e a Coordenação Geral dos Índios
Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai, no âmbito do projeto "Proteção Etnoambiental de
Povos Indígenas Isolados e Recém-contatados", ocorreu na Base Piranha, localizada na Terra Indígena
Hi-Merimã. Participaram representantes Jamamadi das comunidades Pauzinho, São Francisco, Kosi e
Vitória, Banawá das comunidades Paraíba e Maloca, Jarawara da comunidade Água Branca e Paumari
das comunidades do rio Tapauá, além dos representantes das organizações indigenistas que promoveram
o encontro e os antropólogos convidados.
336
provocou Abadias. Avessos à querela mas satisfeitos com a provocação, as lideranças
problema. Uns diziam que o nome correto seria Banawá-yafi, outros falavam em
Alguns Banawá se incomodaram com o que lhes parecia ser uma pergunta
Banawá, agente de saúde indígena, aceitou sem qualquer embaraço a provocação e quis
"esclarecer a confusão" de Abadias: "Eu vou te explicar, Jamamadi. Você está dizendo
que nós não temos etnia? Nossa residência é no igarapé Banawá, nossa aldeia se chama
Banawá, nosso sobrenome é Banawá, nossa etnia é Banawá. Filho de jacaré é jacaré,
filho de preguiça é preguiça. Por isso, nossa identidade é Banawá, não importa quem
veio primeiro".
Quando os ânimos pareciam ter se acalmado e a dúvida ter sido posta de lado, Inácio,
uma importante liderança Banawá, entrou na conversa para lembrar que, na verdade, o
nome "Banawá" foi atribuído pelos brancos e que na língua indígena o igarapé é
chamado de Kitiya. Sem se dar por vencido, Abadias voltou a perguntar, satisfeito com
a desordem que causara: "então, Banawá, por que vocês não se chamam Kitiya?".
337
perguntou: "como fala tika ede oni em português? Tá errado perguntar qual o nome da
proliferando-os com rapidez e diversidade inusitadas para mim, tal operação foi
Abatonei, Adao Owa, etc. Se alguns desses nomes eu sabia que se referiam a certas
parentelas, outros eu escutava pela primeira vez. De saída, era evidente que essa
"subgrupo", "clã", "linhagem", etc. Neste ponto, importava menos tentar descobrir o
nome dos Banawá que pensar nas diferentes lógicas mobilizadas na produção dos
not that which impedes the relation, but that which founds and impels it: a difference in
perspective" (2004:10).
338
cabia à parcela não-indígena da plateia. A questão, quando formulada em português,
implicava em equacionar, como fizera Pedro Banawá, o nome de uma etnia a uma
unidade social específica e delimitada, i.e., uma aldeia a um povo, segundo uma relação
pensado em termos de "etnia", fazia coincidir a aldeia, o povo e a localidade, uma vez
que a lógica que a abrange pressupõe a estabilidade de unidades sociais bem definidas.
Em termos indígenas, a pergunta aponta para desdobramentos distintos, posto que não
estatais como única resposta. A tradução literal da pergunta tika ede oni?140 é "qual o
nome do teu tronco?", de forma livre sugiro traduzi-la como "qual sua planta de
origem?" ou "de qual árvore você provém?", o termo ede tem um sentido metonímico
De pronto, adianto que a minha sugestão tradutiva não implica uma relação objetiva ou
trata exatamente de uma relação do tipo totêmica entre unidades sociais discretas, da
ordem dos subgrupos humanos e espécies vegetais das quais manifestariam certas
autores.
mais amplo, ainda que o rendimento dessa abordagem seja bastante limitado, a despeito
140
Tika - 2psg poss.; ede - subst.m., "tronco", "haste", "caule"; oni - subst.m., "nome".
339
djapa dos Kanamari, os -deni dos Deni e dos Jamamadi (madiha), os -dawa dos
revelar unidades efetivas. Talvez seja preciso projetar sobre outros planos, distantes da
semelhante aos conjuntos endogâmicos podem ser encontrados na vida póstuma, num
exclusivamente na organização social terrena são de pouca valia para tratar os dados,
pois tentam salvar os fenômenos com o risco de produzirem novas taxonomias etéreas.
A natureza dos vínculos entre os grupos, os nomes e as plantas é a matéria mesma deste
ilimitada dos nomes que, embora possa revelar unidades, o faz somente para mostrar
340
dinamismo dos nomes deste dava ares de dubiedade à fala de Abadias, prontamente
imaginário local, em comparação com os povos vizinhos, como aqueles não maculados
deveras oportuno para mantê-los apartados da vida política e das decisões que lhes
concernem. É comum escutar sobre os Jamamadi que "eles são pacíficos e não gostam
de brigar", "são inocentes e ainda não aprenderam a enganar como os outros povos",
"são como crianças e devem ser orientados pelos brancos que trabalham com eles", para
citar apenas alguns comentários. Em incontáveis situações, é notável que, quando estão
na cidade, o comportamento – andam todos juntos, muitas vezes em fila como nos
bancos observando os passantes; pedem auxílio aos transeuntes para retirar seus
141
Os Jamamadi se apropriam das categorias classificatórias dos brancos conferindo-lhes outros sentidos,
ora confluindo ora divergindo das noções ocidentais de selvageria e civilização. O pacifismo e a
mansidão são características que os Jamamadi tendem a se atribuir, em contraste com povos considerados
guerreiros e bravos, tais como os Apurinã e, antigamente, os Juma. Contudo, a respeito do tempo dos seus
antepassados, a vida era marcada pela guerra e violência constantes, de modo que os atributos dos antigos
eram outros, mais próximos daqueles que hoje são usados para qualificar povos de índole guerreira. Os
sentidos de "manso", "medroso" e "pacífico" são contextuais e apontam para modos de vida em tempos e
lugares distintos. Para uma análise etno-histórica das variações e contrastes Kulina e Paumari das imagens
de "bravo" e "manso", conferir "O que significa ser 'manso'? A selvageria e a civilização sob diferentes
perspectivas", de Aline Balestra (2016).
142
O português falado pelos Jamamadi é bastante característico, uma vez que ecoa a ordem OSV das
constituintes, objeto precede o sujeito e o verbo, e há ampla alternação da transitividade de muitos verbos
(conferir o estudo sobre a morfologia das classes verbais feito por Vogel, 1991). Ademais, no inventário
341
diacríticos que reforçam o lugar marginal em que são vistos143. No lançamento do Plano
com as chacotas da plateia, que via no jeito jamamadi motivos para rir, e revidou: "Sim,
nós podemos ser pequenos e baixinhos. Podemos andar todos juntos na cidade. Não
gostamos que vocês manguem de nós. Não esqueçam, podemos ser pequenos, mas
somos como as formigas de fogo e as cabas que espantam até uma cobra grande. Se nós
do rio Madeira, dentre eles alguns povos de língua Kagwahiva, altivos no trato e
reconhecidos por sua articulação política madura. Ao som dos risos abafados e pedidos
fonético da língua jamamadi, identificam-se os alofones para os fonemas a seguir: a oclusiva bilabial [b] é
geralmente vozeada, mas pode não o ser, de modo que "pato" pode ser realizado, sem mudança de
sentido, como "bato"; a oclusiva velar [k] é vozeada [g] principalmente no início de palavra, assim,"gato"
pode ser pronunciado como "kato"; a fricativa lábio-dental [f] pode ser vozeada ou não, logo, vaca é dito
tanto como "vaca" ou "faca"; o tap pós-alveolar [r] pode se realizar como aproximante lateral [l], no
mesmo ponto de articulação, logo, "laranja" é pronunciado tanto como "laranja" como "lalanja"; por fim,
a aproximante palatal [j] pode ser realizada como a semi vogal [y], por exemplo, em "jamamadi" ou
"yamamadi". Embora seja menos claro, pode-se dizer que a aproximante lábio-velar [w] e a vogal [o] são
alofones (conferir discussão em Dixon 2004:20-23); porém, este último contraste tem pouca relevância
quando se expressam em português. Estas referências à fonética e aos processos fonológicos
exemplificam as peculiaridades da fala jamamadi e da estranheza que provocam ao falante nativo de
português.
143
Presenciei conversas acaloradas na aldeia sobre as diferenças de comportamento dos indígenas e dos
brancos. Os Jamamadi que viajam assiduamente a Lábrea orientavam os demais dizendo que, na cidade, é
preciso usar garfo e faca em vez de colher; que as pessoas devem caminhar umas ao lado das outras e não
em fila - "na cidade cada um faz o seu caminho", eles dizem com frequência -; que o jeito "certo" de
cumprimentar é apertando a mão; que é necessário apresentar-se no início das reuniões dizendo o nome e
a aldeia onde vive; que, após cada fala em uma reunião, é preciso bater palmas, etc.
342
343
10.1 Ai yorotokana: "nós, misturados"
quando em oposição aos brancos, Jara144, assume o sentido de indígena. Para designar
os demais povos indígenas é acrescido ao termo "ai" o adjetivo bara (f) / bare (m),
"diferente", "distinto", "de outra qualidade", deste modo, ai bara é usado para todos os
indígenas não Jamamadi. Não custa lembrar que a autodesignação não é uma forma de
repor o essencialismo negado aos subgrupos, como se sua "veracidade" delimitasse uma
região do ser realmente legítima porque afirmada pelos indígenas; antes, trata-se mais
(...) e os pronomes, por muito que a palavra aluda a uma substituição - estão lá em
nome do nome - não representam necessariamente um nome; o nome pode
simplesmente não existir, e os pronomes existem porque agem de um modo diferente
ao do nome. Sobretudo, porque não são essenciais. Pronomes exercem como sujeitos
ao igual que os nomes, sem ser, como os nomes, facilmente objetiváveis (Calávia Sáez
2013:9).
Sobre o termo "kanamati", presente no nome da Terra Indígena, meus interlocutores são
para se referir aos Nakanike, isto é, a todos os coletivos de língua madi que viviam a
344
Jamamadi abarca os remanescentes de alguns grupos falantes de dialetos da mesma
língua madi que viviam na região compreendida no interflúvio entre o rio Piranha, o
igarapé Mamoriazinho (referido como Mamoriá Mirim em alguns relatos) e o rio Purus,
Piranha; por fim, alguns mencionam ainda os Wadi, que teriam vivido na região do
As localizações são imprecisas porque o modo de vida no passado era marcado pelos
fusões. Atualmente, alteridade e identidade são construídas segundo termos que não
resta perguntar se haveria alguma relevância destes antigos nomes ainda hoje.
hoje, ou a atribuir pouca relevância a eles, chegando a equivocar-se sobre a qual grupo
cada pessoa estaria vinculada. Essas diferenças são pouco pertinentes para a maioria –
, principalmente para os jovens que não se identificam segundo esse critério, preferindo
345
circunstancialmente o pertencimento a um dos grupos citados. Para Marikiya, que tem
cerca de 25 anos, o reconhecimento de que seus avós paternos eram Hawa e que os
maternos eram Kosiba não altera nem interfere na sua exclusiva identificação como
"Jamamadi".
De modo geral, assentir a esse parentesco parece não ter qualquer consequência para os
mais jovens. Ao repetir a questão sobre o pertencimento aos subgrupos na casa ao lado,
na qual vive Bidama, uma das tias maternas de Marikiya, o tema não teve grande
sugeri a Bidama que ela poderia ser Kosiba em concordância com o que dissera Sabira,
sua irmã mais velha, ela respondeu, sem dar muita atenção ao assunto, com um simples
"pode ser".
sei" categórico. Os nomes que ainda operam contrastes de forma pontual são "wayafi",
nome adiante. Isso por que dos Wayafi se conhece de forma razoável a história recente
filhos de Joana Banawá e Samo Jamamadi – o único casamento que registrei entre os
145
Para uma análise das uniões matrimoniais "erradas" entre os Jarawara e os Wayafi e os rearranjos na
rede genealógica pela inserção deste grupo, conferir Maizza (2012:182-183, 238).
346
dois grupos – podem ser identificados como Banawá, ressaltando suas peculiaridades
nenhum traço distintivo vinculado a este grupo é apontado. Ermina e sua esposa
morreram em uma das epidemias que assolou o Sabuhã e seus filhos acabaram criados
por outra família que vivia em aldeia distinta, identificada como Nakanike.
Por fim, ainda mencionam os brancos na composição dessa mistura, em virtude dos
muitos casos de violência contra as mulheres perpetrados pelos patrões: "Tem muito
sangue de branco entre nós", escutei não poucas vezes. O antigo cacique B. me
explicava sua ambivalente proximidade com os brancos porque ele próprio teria o
"sangue misturado", leia-se, sua mãe fora coagida a manter relações com um branco
Namidi como seu pai e não o patrão que violentara sua mãe.
Muitos afirmam que foram os brancos e os missionários que passaram a referir-se a eles
"todo mundo é um só", diferente de antes em que eram muitos. Agora, são todos
todos aprenderam a falar a mesma língua e a casar entre si, dizem, a mistura que os
define prepondera sobre as diferenças dos pequenos grupos que caracterizavam a vida
anterior ao contato. Contudo, os ecos das antigas diferenças resistem como um ruído de
146
Ai - pronome 1 pess. pl. Yoro na - verbo. Yorotokana - morf. do verbo intransitivo, "estar todos
juntos", "estar misturado": yoro (raiz verbal) + to- (incoativo, indica mudança de estado) + ka-
(comitativo) + na (auxiliar).
347
fundo, notável na abundância de uniões matrimoniais mal sucedidas, em virtude da
das preferências, bem como na incessante dispersão territorial com abertura de novas
Na direção oposta àquela apontada pelo discurso que enfatiza a mistura, o padrão
que persistem, talvez a mais marcada seja em relação aos Wayafi que vivem em aldeias
feita de folhas usada para moquear peixe é chamada de karafa pelos Wayafi e de katafa
jamamadi.
região do Sabuhã que dizem ayabata para "caju", ao passo que os Jamamadi dizem
ayawa; "caldo" é dito sahari pelos Nakanike e saari pelos demais. Embora o contato
com os Hi-Merimã tenha sido interrompido há muitos anos, alguns velhos Wayafi se
recordam do que contavam seus pais e avós sobre o modo como os Awabodi ou
Awabodi yafi, nome Wayafi usado para os Hi-Merimã, diziam "queixada", yama kaili;
348
monitoramento organizada pela FPEMP em território Hi-Merimã. A orientação que o
cacique Abadias Jamamadi recebeu de lideranças mais velhas o alertava para que ele se
com os isolados. Ao que tudo indica, as relações entre os Hi-Merimã e os Wayafi eram,
conflitos prevaleciam, como mostram os relatos das hostilidades e mortes que estes
propagaram no alto Sabuhã há várias décadas. Os dois relatos a seguir, narrados por
Os Hi-Merimã estavam passeando na maloca dos Nakanike. "Eu tenho muitas irmãs,
vou dá-las para você como esposas", disse o visitante Hi-Merimã a Tonahi, que era
Nakanike. Mas Tonahi já estava pensando em matar o Hi-Merimã para ficar com as
suas esposas. Seu plano não funcionou e ele acabou morto pelo visitante Hi-Merimã.
Watanoafe, uma velha Nakanike que entendia bem a língua deles, foi avisar as esposas
do Hi-Merimã para que elas fugissem: "O marido de vocês matou Tonahi, vão embora!"
As mulheres rapidamente desataram suas maqueiras, amarraram-nas em torno da cintura
e não voltaram àquela maloca.
349
partiram para a aldeia deles, mas só havia mulheres e velhos. O pajé capturou duas
meninas para levá-las para sua irmã criar [uma dessas crianças era a avó de Ida
Jamamadi, esposa de Chagas].
Conforme dito acima, os Hi-Merimã são um dos grupos remanescentes que constituem
os Jamamadi atualmente, de acordo com Yima, Anieo, Saba e Regina, filhos de Ermina
como seus vizinhos Nakanike, foram quase exterminados em sua totalidade por uma das
primeiros seriam aqueles que foram atacados por Madokihi Nakanike a mando do
Hi-Merimã com os quais já se encontraram, uns de baixa estatura e pele morena, outros,
147
A reorganização da ocupação do território com a mudança em 2015 dos moradores da antiga aldeia
Carapanazal, majoritariamente wayafi, e a abertura da aldeia Kosi na área do igarapé Aripuanã, associada
ao coletivo hawa, da parentela de Badá, era uma questão da política interna jamamadi que gerou
desentendimentos e conflitos. A escolha do local da aldeia Kosi era alvo de questionamentos diversos, no
mais das vezes, punha em relevo as diferenças internas entre os diferentes grupos locais que compõem os
Jamamadi: os novos moradores Wayafi do Aripuanã não poderiam justificar a mudança de território
baseando-se no parentesco com os Hawa, moradores tradicionais da região, porém, se tais vínculos não
poderiam ser reclamados, a antiga proximidade com os Hi-Merimã foi uma alternativa conveniente e bem
vinda, respaldada no encontro organizado pela FPEMP mencionado acima, para aplacar as desavenças. Se
o parentesco com os Hawa não era visto como próximo o suficiente para legitimar a mudança, os vínculos
350
os Wayafi e os Hi-Merimã que habitavam a região do Mamoriazinho148 passou a ser um
dos temas diletos sobre os quais Berinawa e seu irmão Tati, ambos Wayafi, tomaram
gosto. Entre os anos de 2012 e 2016, período em que realizei meu trabalho de campo, a
estive entre os Jamamadi, eram raros aqueles que "sabiam" alguma coisa sobre os
vizinhos isolados, por mais que eu perseverasse no tema; muitos chegavam a negar sua
Por mais estranho que possa parecer à nossa sensibilidade excessivamente realista,
relações entre estes coletivos estavam somente obviadas ou latentes por sua irrelevância
situacional. Não é demais repetir que reativar tais vínculos manifesta vitalidade social
Assim, Berinawa "de repente" lembrou-se do trecho de uma música hi-merimã que sua
148
A fuga deste grupo Hi-Merimã teria sido resultado de um conflito com os Apurinã no Mamoriazinho.
Na época em que os avós de Berinawa eram vivos, os Hi-Merimã iam com grande frequência visitar as
aldeias Wayafi e Jamamadi, mas não as Jarawara. Berinawa também se lembrou de um conflito entre
Sokainawa [que ele chamou de Jamamadi, porém, essa história é anterior à reunião dos Wayafi com os
demais grupos madi]. Sokainawa matou um porquinho de criação de um Hi-Merimã, que estava visitando
sua maloca, porque ele havia derrubado as cinzas do cacau que ele estava preparando para fazer rapé. O
visitante, com raiva, comeu uma cobra venenosa - uma jararaca pico de jaca - e guardou suas presas. Ao
ver que Sokainawa estava saindo para pescar, o Hi-Merimã se adiantou e deixou as presas no caminho
para que ele pisasse. Assim que Sokainawa pisou na armadilha, caiu sem forças. Com dificuldade, voltou
cambaleando para casa. Por ser pajé, ele chamou uma onça para retirar os feitiços de seu corpo. O espírito
auxiliar curou Sokainawa. Logo que ele se recuperou, decidiu vingar-se do Hi-Merimã, que ainda estava
em sua aldeia. Ele avisou para que os visitantes Hi-Merimã fossem todos embora e quando eles estavam
no caminho, Sokainawa flechou todos eles e terminou de matá-los com golpes de borduna. Todos
morreram.
351
mãe cantava "bem baixinho, quase chorando": neme-ya kerowi wanai, "a preguiça mora
no alto, nas cabeceiras". Essa memória o deixava nostálgico e o fazia especular se não
seria sua mãe também Hi-Merimã. Em outra ocasião, Tati, seu irmão mais velho, cantou
um trecho de uma música que seu avô Mekene Wayafi teria escutado num ritual ayaka
promovido pelos Hi-Merimã: Kona, tiwa komene ene aba. Kobatone aba tobotonee;
"Timbó, seu veneno faz os peixes morrerem", numa tradução parcial feita por Tati. A
preciso reconhecer que a rotina etnográfica está aquém da sutileza dos meandros da
Wayafi:
Papai, Kao, encontrou com um conhecido Hi-Merimã, isso aconteceu quando eles
moravam lá no Apaha [afluente do Mamoriazinho]. Naquela época, eles faziam grandes
roçados e plantavam os mesmos yamata [cultivares agrícolas]. Papai não compreendia
muito bem a língua do companheiro dele, que era um bocado diferente. Eles foram
juntos para o roçado para tirar pupunha madura, então, o Hi-Merimã olhou para o papai
e falou assim para ele: "tosi, tosi!". Ele não entendeu o que o Hi-Merimã queria porque
"tosi" para os Wayafi é o movimento que as pessoas fazem na dança [balançando o
corpo de um lado para o outro]. Como o companheiro dele insistia, papai começou a
dançar, mexendo o quadril do jeito que as pessoas fazem no ritual ayaka. Ele não
entendeu; achou que o companheiro queria fazer festa. O Hi-Merimã começou a rir
muito! Ele só estava pedindo uma vara, que nós chamamos awa, e que na língua deles é
tosi, para poder tirar a pupunha madura.
Certa feita, como parte da agenda proposta num evento, o coordenador da FPEMP fez
acampamentos, quebradas e cortes nas árvores dos varadouros, além de itens da cultura
352
material Hi-Merimã.
principalmente os Jamamadi, já que seus cestos e abanos são idênticos aos dos Hi-
os cestos e abanos são os mesmos, como quase todo o resto, alertaram. "É igual porque
foram eles que ensinaram a gente a fazer desse modo", contou Tati.
As peneiras, as redes, o ralador de paxiúba, em suma, quase toda cultura material teria
sido ensinada pelos Hi-Merimã. Primeiro, eles ensinaram os Wayafi, que eram seus
vizinhos, depois estes ensinaram os demais quando se juntaram aos outros grupos madi.
"Antes de ter o nano, "tipiti", a gente usava o kaimaro para espremer a mandioca.
Foram os Wayafi que ensinaram o resto a usar o nano porque os Hi-Merimã ensinaram
informações, sabe-se apenas que o sogro do cacique da aldeia Pauzinho pertencia a este
sobreviveram somente dois irmãos, Hama e Tatiwarafo. Além dos coletivos madi
imprecisa e os Abatonei que, segundo a descrição de Mekene Wayafi, que os teria visto,
conta Berinawa, viviam nas árvores e tinham uma espécie de apêndice semelhante a um
"rabo": não cabe decidir aqui se seriam estes humanos com características animais ou o
353
inverso.
voraz da frente extrativista. Não à toa, o contato coincide com o início da patronagem e
dos povos da região. Todavia, preciso fazer uma ressalva. Conquanto a deambulação
viram forçados com a chegada dos comerciantes que inundaram seu território em busca
compostas por uma grande casa comunal, cada qual abrigava uma família extensa.
mistura prepondera sobre as distinções dos grupos locais. O abandono das malocas deu-
se com a adoção das casas construídas segundo o estilo regional sobre palafitas;
paxiúba pelo de tábua e passaram a fechar suas casas construindo paredes. Conforme
explicação corrente, o importante é ter portas para evitar que os parentes cobicem suas
354
mercadorias.
tradicionais e à fuga para regiões mais protegidas nas imediações do rio Curiá,
localizado numa parte mais afastada dos grandes rios e que, por conta disso, tornou-se a
tema, os relatos pouco variam. Contam que seus pais e avós desceram os rios e igarapés
sobraram poucas pessoas após a epidemia de sarampo que assolara uma grande maloca
que havia na cabeceira do Sabuhã; dos Hawa, Boti, Kosiba e Hi-Merimã restaram
apenas poucas pessoas cujos trajetos feitos em fuga mal podem ser reconstituídos. Com
o esgotamento das seringueiras mais próximas das várzeas e o aumento da demanda por
ficaram órfãos durante as fugas, e as memórias dessa época trágica são entrecortadas; na
seu afluente Canuaru e o Piranha passaram a ser intensamente povoados por colocações
e barracões que deram origem a diversas comunidades ribeirinhas, algumas ainda hoje
existentes.
O grupo derradeiro a se juntar aos demais foi o Wayafi, vindo do Apaha, em virtude de
um conflito com os Apurinã que o dispersou em duas direções: um grupo partiu rumo
149
Considerados como o mais temível dos povos da região, os Jamamadi contam que eram atacados em
suas malocas e capturados para serem devorados pelos Juma que apreciavam sua carne.
355
teria sido motivado pelo assassinato de uma moça Apurinã pelo pai de Berinawa.
Segundo seu relato, a moça não aceitara unir-se com seu pai que, movido pela raiva,
matou-a a tiros. A irmã da moça conseguiu escapar e voltou para a aldeia dos pais. Por
vingança, os Apurinã atearam fogo nas malocas dos Wayafi que fugiram abandonando o
Apaha. Os que não conseguiram fugir foram mortos e comidos pelos inimigos. Os
mortos Wayafi foram desenterrados e suas carnes salgadas, para serem transportadas
Outro fator decisivo para a reunião dos remanescentes desses grupos e sua
pistas para entender a formação de grandes agrupamentos, como é o caso da aldeia São
356
dos assentamentos dos grupos madi.
357
10.2 "Jamamadi é só um nome"
Internamente, dizer-se Jamamadi funciona apenas como uma identidade coletiva porque
dos coletivos madi sob um único nome, iniciada com a chegada dos patrões e
intensificada pela ação missionária, encontra no Estado mais um fator para reduzi-los a
histórica adotada pelos professores das escolas municipais indígenas deste povo.
Aceitam a singularidade do nome porque sabem que este é o pressuposto para acessar
seus direitos básicos, sem esquecer, porém, que a função política do nome restringe-se
às relações fora da aldeia. Se dizem que são Jamamadi, o fazem somente a fim de, em
seguida, como ouvi algumas vezes, lembrar que "Jamamadi é só um nome", insuficiente
A despeito de assentirem contextualmente à solidez dos grupos sociais, por seu valor
nome" é uma frase dita como um lembrete de modo a refrear a tendência explicativa que
nos ronda, tentando repor o lastro dos nomes para transformá-los em coisas nomeadas –
que parecem querer dizer ao negar conhecer o conteúdo do nome "Jamamadi". Como
notara Wagner: "[os termos] são significativos não por causa da forma como descrevem
algo, mas por causa da forma como contrastam com os outros" (Wagner 2010:246).
358
Perante os brancos, as diferenças são amenizadas em benefício dos seus direitos
enquanto povo, mas se equivocam os que acreditam ser possível reduzir as divergências
internas por tais motivos. O horror que parecem nutrir pela unanimidade é o estorvo que
desponta no caminho de todas as ações e projetos pensados para atender aos Jamamadi
uma parcela considerável opôs-se tanto em virtude do local escolhido para abrigá-lo –
ao lado dos bolsões de casas da parentela do antigo cacique geral, de um grupo Hawa do
rio Piranha –, como por ser uma afirmação imprescindível da autonomia política das
parentelas dissidentes. Passados mais de três anos, muitos preferem comprar seus
precário e negligente.
a toque de caixa, o Plano Político Pedagógico Indígena (PPPI) para a terra jamamadi.
respondidos. A reunião prevista para ocorrer ao longo de dias não durou mais que
vindos de tão longe. O documento pensado para nortear a "educação escolar Jamamadi"
não comportava a multiplicidade das versões concorrentes dos grupos locais, logo, a
história das diferenças subjacentes deveria ser apagada. Por mais que saibam extrair
359
polissêmico, usado com extensão variável e convivendo com denominações
destotalizantes.
Em meio à algazarra das histórias dos antigos, a voz de Chagas levantou-se para
reclamar que seu nome não cabia no documento: "Eu vou ter que mudar meu
documento? Chagas Jamamadi é meu nome de documento, os outros não servem para
isso". Em seguida, veio dizer que ele é de outro "pessoal" chamado Adao Owa, algo
como "outro Adão", portanto, seu nome seria Chagas Adao Owa Jamamadi... Isso
consistia um problema segundo sua avaliação, pois o nome da Terra Indígena não
contém Adao Owa. Depois desse episódio não voltei a escutar o nome Adao Owa nem
mesmo de Chagas, que parecia ter descartado essa relação. Assim, os nomes podem ser
esquecidos, relembrados, descartados ou inventados com igual facilidade já que não são
pensados para durar, mas para criar contrastes contextuais. A advertência de Wagner é
nossos problemas, mas nós os levamos conosco quando visitamos outras culturas, junto
Talvez, antes da chegada dos brancos, fosse possível associar um coletivo a uma
concentração dos remanescentes dos coletivos em aldeias centrais alterou sua dinâmica
autores que trabalham com povos arawá, Pollock (1985a e 1985b), Lorrain (1994) e
Gordon (2006) para o caso Kulina; Koop e Lingenfelter (1983) sobre os Deni; Rangel
(1994) para os Jamamadi madiha; Huber (2012) e Aparicio (2013) para os Suruwaha.
360
grupo nomeado, associado à uma espécie e à uma localidade específica, não se verifica
para os Jamamadi. Não há expectativa de manter uma relação imediata entre subgrupos
parte dos Jarawara com relação a este tema, pois, como mencionado, eles jamais falam
nenhum documento histórico do século XIX e início do século XX". Bem como Bonilla
"Actuellement, les principaux groupes locaux paumari peuvent être considérés comme
des villages (Crispim, Santa Rita, São Clemente dans le Marahã, Ilha Verde) agglutinant
plusieurs groupes locaux. Ils se caractérisent également par un idéal d’endogamie clair
et exprimé comme tel (même s’il n’est pas forcément respecté) leurs membres se
reconnaissent en tant qu’appartenant au même groupe local. Mais ceux-ci ne sont
aucunement nommés à partir de noms d’animaux ou d’espèces végétales. Ces
caractéristiques ne nous permettaient donc pas d’en déduire qu’on avait affaire à des
sousgroupes de type madiha surtout parce que, une fois sur le terrain, les Paumari ne
semblaient attacher aucune importance à cette question. Interrogés sur une possible
existence passée de ces sous-groupes ils répondaient systématiquement, un peu
décontenancés par notre insistance, qu’ils avaient toujours habité tout le long du Purus
et qu’il n’existait pas de groupes nommé par des noms d’espèces naturelles, hormis les
Mamori kapamoarihi" (Bonilla 2007:304).
escolha dos locais para abertura das aldeias familiares; destino tanto dos breves passeios
361
das famílias extensas, períodos de caça e coleta de frutos, como das longas estadias na
estação das chuvas. A escassez dos topônimos no repertório dos nomes dos grupos
madi, salvo o único caso dos Nakanike, poderia sugerir que diferentemente da inscrição
territorial que se supõe comum às unidades sociais arawa, a topografia não seja o cerne
As espécies plantadas, domesticadas ou não, são pistas deixadas pelos antepassados que
os açaís e patauás plantados por um tio, as pupunhas plantadas por um irmão ou mesmo
uma castanheira que ficava próxima da casa de um parente – com a qual ele
possivelmente deveria ter relação, leia-se, com sua forma humana, abono, mesmo que
não tenha sido plantada por ele – materializam as relações sociais no território. As
plantas são marcos mnemônicos da passagem dos parentes e, como seus filhos de
Jamamadi gostam de passear para ir espiar, kakatoma, as plantas dos seus mais velhos,
150
As incrições feitas nas árvores pelos Suruwaha permitem uma comparação produtiva (cf. Huber
2012:79, nota 68): "Uma vez, participei de uma pescaria coletiva com timbó, e no momento do retorno
para a maloca, ao ajeitar minhas coisas fui exortada pelos meus vizinhos a fazer uma incisão circular na
casca das árvores onde tinha amarrado minha rede. Quando eu (sem ainda entender o por quê de tal
ordem) repliquei que não ia fazer isto porque a árvore ia morrer e eu não via motivos para isto, eles
insistiram e afirmaram que se eu não fizesse isto, eu morreria logo. Que se tratava de uma questão de
escolha entre a morte da árvore e a minha própria morte. Que eles achavam que eu deveria optar pela
primeira, porque de toda forma, uma vida humana se acaba logo. E que as árvores, depois da minha
morte, ainda teriam todo o tempo do mundo para crescer e multiplicar-se. Com seus conselhos, meus
interlocutores obviamente estavam tentando convencer-me da importância de “deixar rastros (mesmo que
provisórios) de minha presença enquanto eu existisse”, e de possibilitar aos meus netos saberem “por
onde eu tinha andado” (nas palavras de minha interlocutora: “Você não quer que futuramente, teus ex-
descendentes conheçam teu ex-lugar (idukuni-kiaba)? Você se considera uma pessoa sem importância
(jadawa ini dumurini)?”.
362
10.3 Tika ede oni?: "qual o nome da sua árvore?"
A sugestão das traduções "qual a planta da tua origem?" ou "de qual árvore você
provém?" para a questão tiwa ede oni?, não remete a formas empíricas preexistentes,
tampouco representam grupos que, no limite, podem nem existir – seria o caso do nome
Adao owa que escutei somente uma única vez? Os nomes são mobilizados a fim de criar
figuras de alteridade transitórias e contextuais, nas palavras de Gow (Gow apud Gordon
2006:42) "a invenção dos subgrupos é, no fim das contas, mais importante que os
subgrupos em si mesmos".
parecem ter o mesmo estatuto que os demais. O primeiro designa todos aqueles grupos
que moravam a montante – nakani, "rio acima", + ke, suf. decl. –, nas cabeceiras do
Sabuhã; sua aplicação, portanto, não corresponde aos limites dos grupos locais. Wayafi,
consonância com os demais nomes de coletivos madi, alude a uma espécie vegetal, a
árvore waya (não identificada). Descarto, então, uma sugestão de Maizza (2012:27) de
acordo com a qual "yafi" pode funcionar como um sufixo que designaria unidades de
tipo subgrupo. Os Kosiba, por sua vez, são associados ao babaçu, kosi; os Hawa, ao
patauá, hawa; os Boti, ao ouricuri, boti. O mesmo sistema onomástico vegetal também é
palmeira inajá; os Apurinã151 são conhecidos como Wati, a flecheira; os Paumari são os
151
Os nomes jamamadi usados para se referir aos Apurinã são kimi (madi), "gente milho", de uso menos
frequente, e wati (madi), "gente flecha": o primeiro, por um motivo que desconheço, associa esse povo
aruak ao milho, ao passo que o segundo enfatiza seu comportamento beligerante (a forma verbalizada
desse nome é wati na. Sua forma transitiva é wati kana: "ir atrás", "atacar", "planejar contra").
363
Wakari, alguns supõem tratar-se da árvore Awa Wakari (não identificada); e os Banawá
atribuir um sentido específico, no entanto, o nome que os Wayafi utilizavam para esse
grupo, Awabodi, possivelmente uma espécie de árvore (awa - subst. fem. árvore,
dinâmica que impede que o sistema se feche, o que aponta para o que Erikson chamou
comparada à mistura dos diferentes tipos de gente vivendo juntos nas aldeias. À
tipo de gente ao modo das plantas – a intercambialidade entre "roça" e "aldeia" não é
fortuita.
Outro desdobramento importante dessa aproximação é o abismo que ela cria em relação
364
outros termos, negar a sociabilidade atual, pautada na rede genealógica que abarca os
Jamamadi e as almas das plantas, um parentesco atual terreno e aquele virtual celeste.
lembram: "O cará está sempre sufocando a garganta da banana que mora ao lado"; "A
bananeira está fazendo sombra no tabaco e não deixa ele crescer"; "Aquela castanheira
machuca com seus filhos, os ouriços, os yamata [cultivar agrícola] que estão vivendo
embaixo" etc. A base da comparação entre tabora, "aldeia", e fadara, "roça", não é uma
metáfora eventual pelo mesmo motivo que os grupos são nomeados segundo espécies
aldeia Jamamadi ou espaço doméstico, é uma cópia "falha", um arremedo possível, das
aldeias celestes das almas das plantas; fadara, roçado, é a aldeia dos cultivares, seus
filhos de criação. Neste sentido, o fadara é a extensão do espaço doméstico de cada uma
das família nucleares e, de fato, é uma aldeia, o yamata ka tabora, a "aldeia dos
cultivares". E o que se poderia dizer acerca das aldeias jamamadi, compostas pela
mistura de grupos nomeados segundo espécies vegetais, e as aldeias celestes das almas
constrasta com os nomes dos antigos grupos que carregariam resquícios da vida anterior
365
ao plantio, quais sejam, hawa, "patauá", kosiba, "babaçu", boti, "ouricuri", waya e
kiriya, os três primeiros são nomes de palmeiras e os dois últimos são árvores de grande
porte (não identificadas), todos aparentemente com baixo grau de domesticação. Não há
nomeado, pois esse sistema diz respeito às diferenças, e não a uma realidade objetiva –
toda sorte de zombaria aflora quando se questiona sobre a atribuição das características
das plantas aos membros de um grupo nomeado. Esse repertório etnonímico, embora de
relevância limitada, revela uma linguagem vegetal que opera com vigor em diferentes
âmbitos e com tal recorrência que sugere uma problemática mais interessante que
Em concordância com a análise proposta por Maizza, as aldeias póstumas das almas de
aldeias celestes expressariam as ideias de organização social, pois as almas das plantas
de espécies vegetais distintas têm aldeias próprias nas quais concentram um grupo
matrimoniais das almas dos mortos Jamamadi mostram que estes vivem e se casam com
divisão dos grupos em termos vegetais não se limita à vida terrena; antes, decorre de um
em suas aldeias, separadas das almas de banana que, por sua vez, também estão
(2012:273):
366
Quando nos voltamos para o céu Jarawara, conseguimos ver com mais clareza os ideais
da organização social do grupo. O céu é formado por diferentes tipos de gente, que
moram em lugares específicos (“pessoal do leste”, “pessoal do oeste”, “Lábrea”), que
possuem funções específicas (“pessoal do ferro”, trabalham com artefatos de ferro,
“pessoal do céu”, seguram o céu), ou que são todos filhos de plantas (“pessoal do
tingui”)332. Os entes celestes, que são canibais, brigam permanentemente entre si: os
inimigos sendo todos aqueles que não pertencem a uma mesma aldeia. Mas existem
também aldeias de aliados no céu, onde ocorrem as festas, como o chicoteamento dos
espíritos dos mortos. No céu, as aldeias possuem xamãs (que cuidam dos espíritos-de-
onças) e um chefe, que normalmente é o pai ‘biológico’ ou adotivo de grande parte dos
habitantes da aldeia. Os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai, e aqueles que não
são filhos ‘biológicos’ do chefe pertencem ao grupo em que foram familiarizados, sem
deixar de ser o ‘tipo de gente/espírito’ que eram antes. Assim, no céu jarawara
encontramos uma forma de organização praticamente idêntica à que foi descrita para os
subgrupos nomeados do tipo madihá: grupos localizados espacialmente, com nomes de
plantas e artefatos; nomes que correspondem a diferentes ‘tipos de gente’.
atualizada do "passado", digo atual porque não superado, além de ter sido transformado
Procurei mostrar que no céu as prescrições tendem a ser respeitadas: "no céu, todos se
casam certo, com o filho/a do seu koko"; "as aldeias não são misturadas como as daqui";
"os rituais ayaka são bem feitos e as meninas são açoitadas", "meu tio se casou com
Muito embora este capítulo tenha se focado nos aspectos históricos dos nomes dos
grupos jamamadi, reconheço que essa onomástica não pode ser abordada somente pelos
152
Também em conformidade com a etnografia sobre os Jarawara, não há nomes de grupos que façam
referência a animais (2012:274). No caso Jamamadi, não há aldeias de almas de animais no céu porque
aos animais não se atribui "forma humana", abono, exceto curiosamente aos peixes, muito embora as
uniões matrimoniais com suas almas sejam raras.
367
outras áreas etnográficas. A ideia de 'grupo' ilumina apenas parcialmente um aspecto
organização social.
Certa vez, um dos mateiros mais experientes da região disse, admirando a floresta
enquanto caminhávamos por um dos varadouros Jamamadi, que "cada planta é como
uma nação de gente". Torcendo sua formulação, chegamos à versão jamamadi: "cada
etc. da mesma forma que há sibati madi, "gente banana", yawida madi, "gente
pupunha", kona madi, "gente timbó", mowi madi, "gente castanha" etc. Quanto aos
brancos, não há dúvidas: "Jara não nasceu da terra, eles vieram do rio. Índio é que
368
Considerações finais
O exercício proposto nesta tese consistiu em pensar a humanidade a partir dos aspectos
das Terras Baixas. Elenco abaixo as principais consequências decorrentes desta tese:
Ocorre que no xamanismo vegetal jamamadi, o animal tem uma relevância reduzida se
153
Postagem da planta Midori-san em seu blog (atualmente inativo). Seu interesse não se deve ao teor
poético dos escritos da autora, mas ao esforço humano subjacente em antropomorfizar as plantas na
tentativa de aproximá-las.
369
comparada às plantas, cultivadas e não cultivadas. E o pajé não é o caçador, mas a
paisagem natural tomada como espaço a-social, inabitado e isolado, e sim uma
III) São as plantas que compõem o solo pré-cosmológico que antecede o humano e o
pressupõe porque o mundo é um fato vegetal antes de ser um fato humano ou animal. A
relação com as plantas. Deste modo, busca-se uma imagem diferente daquela da
370
interações entre humanos e plantas, ninguém está incontestavelmente no comando.
Irrompe aqui uma imagem distinta na qual as interações entre humanos e plantas sugere
póstuma dos vínculos de filiação entre humanos e plantas. Portanto, pode-se pensar os
VI) A itinerância Hi-Merimã oferece uma perspectiva que põe em xeque a ideia da
é correlata à rejeição da relação com os cultivos. Em suma, o modo de vida dos isolados
vegetal no ocidente. Sobre isso, não é de todo fora de propósito repassar em linhas
371
gerais alguns momentos que elucidam a história da construção de tal menosprezo. As
considerações que se seguem organizam algumas referências que retraçam isso e, frente
***
A chegada de Robinson em sua ilha, após o naufrágio, é assim narrada por Michel
Peu à peu la forêt s’épaissit. Aux épineux succédèrent des lauriers odoriférants, des
cèdres rouges, des pins. Les troncs des arbres morts et pourrissants formaient un tel
amoncellement que Robinson tantôt rampait dans des tunnels végétaux, tantôt marchait
à plusieurs mètres du sol, comme sur des passerelles naturelles. L’enchevêtrement des
lianes et des rameaux l’entourait comme d’un filet gigantesque.
Ele prossegue a descrição da caminhada nesta vegetação densa na qual estão ausentes os
menores traços humanos e a presença de animais. Essa floresta se assoma ao céu como
somente quando Robinson avista a silhueta de uma cabra que ele encontra propriamente
a vida. Este animal é descrito como o primeiro ser vivo que o personagem teria
encontrado na ilha (idem 25). Dizendo isso, Michel Tournier só reafirma algo
O desencontro do olhar ocidental com o dos Jamamadi se torna patente nos modos
como cada um compreende as relações entre humanos e plantas. O olhar destes opera
372
uma rotação de perspectiva, de modo que esse fundo homogêneo e desinteressante passa
visto como um fundo verde disforme passa para o primeiro plano. Identificar as espécies
e saber seus nomes não eram, portanto, detalhes etnográficos, longe disso, pessoas e
plantas partilham de certa igualdade e reconhecer a importância desse fato era o ponto
simbólica das relações com as plantas, contrastam com o desprezo à vida vegetal no
ocidente. Sobre isso, não é de todo fora de propósito repassar em linhas gerais alguns
momentos que elucidam a história da construção de tal menosprezo. Não vem ao caso
apatia” – não sendo esse seu significado primevo –, sugerindo ou conferindo com isso
Aristóteles encarava o vegetal como “um ser dotado de uma ‘alma’ nutritiva, mas não
sensitiva, levando uma vida somente metabólica, colocando-o, segundo uma hierarquia
Francis Hallé afirma, sem medo de ser desmentido, que “o ser humano, não importa a
época e não importa o lugar, sempre preferiu os animais às plantas”155. Para São Tomás
154
Por alma, é preciso entender aqui princípio de vida, e não princípio espiritual .Ver "À quoi pensent les
plantes?", de Jacques Tassin (2016:12).
155
Ver "Éloge de la plante: pour une nouvelle biologie", de Francis Hallé (1999:17).
373
de Aquino, até mesmo os animais mais brutos são mais nobres que as plantas (apud
Nealon xii). Ainda que distantes, pode-se encontrar a mesma atitude de menosprezo aos
vegetais em Heidegger, que contribui com seu quinhão para este recalcamento,
(espécie, gênero, ordem etc.), de sorte a refletir a própria ordem da natureza. O autor diz
que
il n’y a aucune différence absolument essentielle et générale entre les animaux et les
végétaux, mais que la Nature descend par degrés et par nuances imperceptibles d’un
animal qui nous paraît le plus parfait à celui qui l’est le moins, et de celui-ci au
végétal. Le polype d’eau douce sera, si l’on veut, le dernier des animaux et la première
des plantes. […] On peut donc assurer avec plus de fondement encore que les animaux
et les végétaux sont des êtres du même ordre, et que la nature semble avoir passe des
uns aux autres par des nuances insensibles, puisqu’ils ont entre eux des ressemblances
essentielles et générales, et qu’ils n’ont aucune différence qu’on puisse regarder
comme telle.
A descoberta do pólipo de água doce fez com que essa criatura rapidamente fosse
tomada “como o há muito tempo buscado elo perdido entre as plantas e os animais”156,
156
Ver "A grande cadeia do ser", de Arthur Lovejoy (2005:232). E de Georges Gusdorf, conferir "Dieu, la
nature et l’homme au siècle des lumière" (1972:284-285).
374
o que de certa maneira conferiu maior força a ideia de cadeia ininterrupta dos seres e,
por conseguinte, tornou mais difícil sua separação e classificação. Onde termina o reino
vegetal e onde começa o reino animal? Contudo, mesmo reconhecendo que não há
considerar que os animais ocupam uma posição superior aos vegetais, arbitrando uma
separação entre os dois reinos. O animal vem a ser “a obra mais completa da natureza”,
plantas mal parecem estar vivas. Aspectos que as plantas compartilham com os seres
camuflando sua vitalidade sob aparência de inatividade158. As plantas nos oferecem uma
reagir aos estímulos externos, assim, comparado às plantas, um paciente nessa condição
157
Ver "Comparaison des animaux et des végétaux" na Histoire naturelle, de Buffon, tomo II. (2007:134).
158
Sobre a precariedade da vida vegetal, conferir Nealon 2016:14-27.
159
Jennett B, Plum F. Persistent vegetative state after brain damage. A syndrome in search of a name.
Lancet1972; i:734–7. O autor propõe a expressão “vegetative state” como a mais adequada para
caracterizar os pacientes que sofreram dano cerebral e permanecem em coma, ele faz referência ao
Oxford English Dictionary que define vegetate como “to live a merely physical life, devoid of intellectual
activity or social intercourse” e vegetative é usado para descrever “an organic body capable of growth and
development but devoid of sensation and thought”. Essa condição pode ser igualmente descrita como
vegetative mindless state.
375
imediata, entre os seres animados e os inanimados. Aristóteles (Cf. De anima)
reconheceu que as plantas manifestam três dos quatro tipos de movimentos: elas mudam
seu estado, crescem e estão sujeitas à corrupção, mas não alteram sua posição no
espaço. Essa imobilidade lhes conferiria uma existência precária, uma expressão
Buffon – que pretende, como Descartes, explicar mecanicamente todas as ações dos
animais – é a seguinte: “se nós entendermos por sentir somente se movimentar por
(Mimosa pudica), cujos folíolos das folhas se juntam quando estimulados pelo toque ou
calor, era já bastante conhecida na época de Buffon e suscitou bastante interesse uma
vez que parece demolir a fronteira entre os animais e os vegetais, pois capaz de
semelhantes: elas fecham suas folhas à noite, reabrindo-as de manhã. Assim como os
160
O que parece contrastar com a metáfora da "alma selvagem" como murta inconstante/informe versus a
"alma ocidental" pétrea figurada no mármore, segundo o texto de Viveiros de Castro (cf. 2002: 183-264).
161
Buffon. Histoire naturelle. « Histoire générale des animaux ». Tome II. Paris : Éditions Champion,
2008, p. 104.
162
Ver "Le herbier des philosophes", de Jean-Marc Drouin (2008:197).
376
dentre eles Buffon – o mero efeito mecânico de um choque, fundando a hipótese do que
A desvalorização metafísica das formas de vida vegetal163 vai de par com sua
objetivação extrema, entretanto, sua violabilidade não é matéria de debates éticos, como
é o caso dos que defendem os direitos dos animais e sua liberação164. Mais do que isso,
é possível dizer que a violação e a exploração (de animais ou plantas) acontecem apenas
Como não lembrar aqui dos cartesianos do século XVII ou de entusiastas de algumas de
Descartes: “quase não havia mais solitário [como eram chamados os autores de Port-
Royal] que não falasse de autômato. Não se fazia mais um caso ao bater em um
nos dias de hoje esforços semelhantes que tentam repensar a relação humano-planta. Do
163
Para uma abordagem filosófica distinta do lugar das plantas no pensamento cf. “A filosofia das plantas
(ou pensamento vegetal)” de Andrzej Marzec (2016), disponível em http://chaodafeira.com/wp-
content/uploads/2016/06/cad_46-1.pdf
164
O tema conta com vasta bibliografia: com Plutarco em seu tratado "S’il est loysible de manger chair";
passa por Montaigne em sua famosa "Apologie de Raimond Sebond", dentre outros autores. Ver também
Peter Singer, A liberação animal (2010).
377
mesmo modo que o ocidente rompe simbolicamente com a ideia de homem-máquina
Cito como exemplo os esforços do governo suíço que vão nesta direção ao propor o
debate acerca dos direitos das plantas – que não fez senão despertar os preconceitos já
conhecidos e proliferar mal entendidos (ver “The dignity of living beings with regard to
biologia molecular, à matéria bruta que será consumida por humanos e animais, em
suma, estão destituídas de si, subsumidas ao consumo através do qual encontrariam seu
fim. Hegel, por seu turno, diz: “The silent inner being of selfless nature attains in its
fruits the stage where nature, duly self-prepared and digested, offers itself as material
for the life which has a self. In its being useful for food and drink it reaches its highest
165
Rousseau (na sétima caminhada de seus Devaneios) também nos fala sobre a exterioridade fundamental
das plantas - porém, sem instrumentalizá-la (1959:1063-1064; 1964:198) -, em oposição aos reinos
mineral e animal. Segundo o filósofo, as riquezas do reino mineral estão enterradas no seio da terra, como
que escondidas para não tentar a cupidez humana. Para alcançá-la, o homem deve mergulhar nas
entranhas da terra. Já o reino animal é acessado com mais facilidade, no entanto, a condução de seu
estudo é difícil de ser praticado, pois, sem a agilidade para seguir os animais em liberdade e sem o gosto
de mantê-los em cativeiros, é incontornável “estudá-los mortos, rasgá-los, desossá-los, remexer suas
entranhas palpitantes”. Por isso, “o estudo dos animais não é nada sem a anatomia; é por ela que se
aprende a classificá-los, a distinguir os gêneros e as espécies” (1959:1068). O horizonte que se avista a
partir dessa metodologia é o da ação invasiva marcada pela crueldade: "quel appareil affreux qu’un
amphitheatre anatomique, des cadavres puans, de baveuses et livides chairs, du sang, des intestins
dégoutans, des squeletes affreux, des vapeurs pestilentielles! Ce n’est pas là, sur ma parole, que J. J. ira
chercher ses amusemens" (idem:1069). Afastando-se do quadro medonho de uma sala de anatomia,
Rousseau lembra e prefere a sutileza do estudo botânico, que não tem nada do horror do estudo animal,
nem da insalubridade das empresas mineradoras. Rousseau se dedica aos objetos que são apreendidos em
sua exterioridade, sem precisar escavar o interior de um bicho qualquer ou da terra, valendo-se tão
378
identidade, resta a planta uma corporalidade pura a ser apropriada e consumida por
animais e humanos.
Sendo assim, seu valor estaria, então, apenas na utilidade para o homem? O valor da
meramente em lenha de uma fogueira? A completude da vida das plantas, segundo este
Rousseau já havia percebido o caráter absurdo desse pensamento: "ne disons point dans
nôtre imbécile vanité que l’h[omme] est le Roi du monde, que le soleil, les astres, le
firmament, l’air, la terre, la mer sont faits pour lui, que les végétaux germent pour sa
subsistance, que les animaux vivent afin qu’il les dévore" (Rousseau 1969:1100).
Defrontar-se com o desprezo da filosofia pelas plantas requer uma crítica mais ampla de
humanidade se arroga.
pensamento e da limitação dos humanos em perceber ou ver (na maioria das vezes
fingem ou preferem não ver) qualquer semelhança entre sua vida e aquela das plantas.
sua relação com o mundo, donde o julgamento negativo do valor das plantas e o lugar
subalterno que ocupam na versão moderna da “cadeira dos seres”. Insisto no fato de que
somente de uma pinça e uma lupa: "Les plantes y sont naturellement. Elles naissent sous nous pieds, et
dans nos mains pour ainsi dire" (ibdem).
379
Como se viu, o olhar sobre as plantas se definiu a longo da filosofia por uma lógica
exemplos. Não é, todavia, o caso de repetir uma história já conhecida. Cabe ressaltar
que os nomes dos autores e doutrinas não constam aqui com um valor substancial.
incapacidade do ocidente perceber no reino vegetal outra coisa que não um fundo
inesgotável esperando para ser explorado. Há uma homologia estrutural entre todos
Seguindo esse mote, considera-se que o verde é “uma simples tintura de pano de fundo
que não retém nossa atenção” (Tassin 2016:14), tal como a cena de abertura na qual
figura Robinson Crusoé. Uma mera paisagem. Jean-Marc Drouin (2008:9) observa que
a vegetação é uma realidade tão familiar em seu viés decorativo e, ao mesmo tempo, tão
distante em seu caráter agentivo. Se sua única função é paisagística ou decorativa, não é
de todo absurdo pensarmos nossa relação com as plantas resvalando nos limites de uma
botânica fictícia desvelando uma visão distópica de flores e folhas de plástico. A vida
380
para a finalidade decorativa que lhes foi relegada, substituídas, por isso, pelas tristes
considerar a vida vegetal imperfeita, encontra na sua "parca" existência motivos para
Delaporte, por sua vez, inicia seu texto (2011[1979]:11) dizendo que, “em geral, é a
“vegetalidade”?
Esse método analógico tem suas limitações. Para citar apenas um, o “zoocentrismo” que
analogia com o mundo animal e, ainda, se os animais até bem pouco tempo também
381
reconhecer as plantas pelo que elas são, sem encará-las através da imagem do animal ou
de nós mesmos?
plantas, haja vista que o autotrofismo não é avesso à predação; que a suposta fragilidade
de sua constituição esconde sua resiliência; que o humano pode derivar sua existência e
fazer uma imagem da vida a partir das plantas. Ao torcer a questão, não se trata mais de
pensar o que haveria de humano nas plantas (sentimento, dor, prazer, crescimento,
ontológica a elas, faríamos algo semelhante aos Jamamadi e, de maneira menos óbvia,
***
166
Sem que essa pergunta reconduza às imagens da morte (o estado vegetativo), privação, catividade,
subserviência ou fragilidade (vide o verbo deflorar no sentido de desvirginar, abusar ou estuprar), como
no seguinte trecho de O mistério da estrada de Sintra, de Eça de Queirós (1881): “Oh doce vida das
árvores e das plantas! passividade da relva, irresponsabilidade da água, pacífico sono dos musgos, suave
pousar da sombra! Quantas vezes me consolaste, e me ensinaste a sofrer calada!”. Talvez fosse o caso de
num experimento como no livro de Han Kang, escritora sul-coreana ganhadora do Man Booker prize
deste ano, que inspirada pelo verso de Yi Sang “I believe that humans should be plants”, se imaginou
virando árvore em The vegetarian: “do you know how I found out? Well, I was in a dream, and I was
standing on my head…leaves were growing from my body, and roots were sprouting from my hands…so
I dug down into the earth. On and on…I wanted flowers to bloom from my crotch, so I spread my legs; I
spread them wide…” (20016:82).
382
Fecho estas notas com um breve exercício inspirado na contribuição recente de
Strathern (2017) focada na figura do rizoma, tal como formulada por Deleuze e Guattari
na introdução de "Mil Platôs" (1980), acreditando ser posível alargar a questão proposta
pela autora de modo a abarcar também a Amazônia: "what would the (tropical) cultivar
look like – how would one describe it – if one’s model were the rhizome?" (idem:30). A
favor da tentativa, sabe-se que à semelhança das práticas de cultivo das plantas
propagação vegetativa, por clonagem, é preferida àquela por sementes – sem com isso
people know that many vegetatively propagated plants can be reproduced from seed,
cultivators in New Guinea propagate them vegetatively, a preference that has been
Aqui, as plantas são imagens e exemplos de ideias, não casos botânicos particulares,
de modo que a oposição central que permeia o argumento não é binária ou axiológica.
Essa ideia se deve à oposição traçada por Haudricourt em "L'origine des clones et des
Occident, agriculture d'une lignée choisie avec beaucoup d'individus variables; Orient,
horticulture d'un petit nombre d'individus renvoyant à une grande gamme de « clones
». N'y a-t-il pas en Orient, notamment en Océanie, comme un modèle rhizomatique
qui s'oppose à tous égards au modèle occidental de l'arbre? Haudricourt y voit même
une raison de l'opposition entre les morales ou les philosophies de la transcendance,
383
chères à l'Occident, celles de l'immanence en Orient: le Dieu qui sème et qui fauche,
par opposition au Dieu qui pique et déterre (la piqûre contre la semaille). (Deleuze
&Guattari 1980:28)
Sem buscar estabelecer contornos botânicos para o conceito, a autora delimita uma
"cortar", aspecto que as aproxima das plantas, em uma linguagem vegetativa: "What is
metapersons (“spirits”), is what they have in common with plants: they are planted
from cuttings. In Hagen it is not just that they are sometimes called “cuttings people”,
A partir desta breve recapitulação, qual poderia ser a imagem do rizoma no caso
rebaixar todo o reino vegetal à categoria dos seres de puro crescimento, ou de alma
plantas"; "A alma-coração é plantada para a vida rebrotar no céu" [aqui, apesar da
coisa", foram alguns dos enunciados que escutei repetidas vezes. Acredito que estas
comparações rizomáticas também permitem pensar que das roças jamamadi emergem
384
385
Referências bibliográficas
BIRD, Christopher; TOMPKINS, Peter. 2000. A vida secreta das plantas. Expressão e
cultura.
________ 2013. "Os Suruwaha e sua rede de relações. Uma hipótese sobre localidades e
coletivos arawá". In: AMOROSO, M & MENDES DOS SANTOS, G. (org.) Paisagens
ameríndias. Lugares, circuitos e modos de vida na Amazônia. São Paulo: Editora
terceiro nome.
386
________. 2015. "Espíritos não humanos, espíritos desumanos: o mundo da
sobrenatureza nos Suruwaha do rio Purus". In: Espaço Ameríndio, v. 9, n.3, pp.63-85.
________ 2017. "A explosão do olhar: do tabaco nos arawa do rio Purus". In: Mana, v.
23, n.1, p. 9-35.
________. 2016. "O que significa ser manso? A selvageria e a civilização sob diferentes
perspectivas". In: MENDES DOS SANTOS, G. & APARICIO, M. Redes Arawa:
Ensaios de etnologia do Médio Purus. EDUA: Manaus.
________ 2005b. "O bom patrão e o inimigo voraz: predação e comércio na cosmologia
Paumari". In: Mana, Estudos de Antropologia Social, v. 11, n.1, pp. 41-66.
________ 2007. Des proies si désirables. Soumission et prédation pour les Paumari
d´Amazonie brésilienne. Tese de Doutorado. Nanterre: Université de Paris X.
________ 2013. "Be my boss! - Comments on South African and Amerindian forms of
subjection". In: Journal of the Royal Anthropological Institute, v.19, pp. 246-247.
Buffon. 2007. "Histoire naturelle. Comparaison des animaux et des végétaux". [Tome
II]. In : Œuvres. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.
387
CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2006. Classificações em cena: algumas formas de
classificação das plantas cultivadas pelos Wajãpi do Amapari (AP). Dissertação de
Mestrado, Universidade de São Paulo.
CHANDLESS, William. 1866. "Ascent of the River Purus". In: The Journal of the Royal
Geographical Society, v. 36, pp. 86-118.
___________. 1869. "Notes on a journey up the River Jurua". In: Journal of the Royal
Geographical Society, v. 39, pp. 296-311.
388
COCCIA, Emanuele. 2013. "Mente e matéria ou a vida das plantas". In: Revista Landa.
v.1, n2.
________. 2016. La vie des plantes: une métaphysique du mélange. Paris: Éditions
Payot & Rivages.
CONKLIN, Harold. C. 1954. The relation of Hanunóo culture to plant world. Yale
University, Tese de doutorado.
COSTA, Luis Antonio. 2007. As faces do jaguar: parentesco, história e mitologia entre
os Kanamari da Amazônia Ocidental. Tese de doutorado em Antropologia Social.
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro.
COUTINHO, João Martins da Silva. 1864. "Relatório da exploração do rio Purús". In:
Relatório da Repartição dos Negócios da Agricultura Commercio e Obras Públicas
(1864), apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3a. sessão da 12a. Legislatura,
em 15 de maio de 1865. 1863. Anexo 0:5-96.
CUNHA, Euclides da. 1909. À margem da história. Portugal, Porto: Editora Chardon.
DANOWSKI, Déborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2014. "Há mundo por
vir? Ensaio sobre os medos e os fins". Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto
Socioambiental.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Milles Plateaux. Paris: Minuit.
________ 1992. "Societies of nature and nature of society". In: KUPER, A. (ed.),
Conceptualizing society. Londres: Routledge and Kegan Paul, p. 107-125.
389
________ 2005. Par-delà nature et culture. Paris: Ed. Gallimard.
DIXON, Robert. 2004. The Jarawara Language of Southern Amazonia. New York,
Oxford University Press.
EHRENREICH, Paul. 1929. Viagens nos rios Amazonas e Purus. Revista do Museu
Paulista, vol. XVI : 277-312.
ELLEN, Roy. F. 1986. Ethnobiology, cognition and the structure of prehension: some
general theoretical notes. J. Ethonobiology. p. 683-98.
________. 2004. "Qu est-ce qu’un ethnonyme?". Les Cahiers ALHIM, 10.
FARABEE, William C. MSS notebooks from 1913-16 field trip to Brazil. University of
Pennsylvania Museum Archives.
FAUSTO, Carlos. 1999. "Of Enemies and Pets: Warfare and Shamanism in Amazonia".
American Ethnologist, USA, v. 26, n.4, p. 933-956, 1999.
________. 2007. "Feasting on people: eating animals and humans in Amazonia". In:
Chicago Journals, v. 48, n.4, p.497-530.
390
________. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. In: Mana, v.14,
n.2, pp. 329-366.
FAUSTO, Carlos & NEVES, Eduardo. 2018 [no prelo]. "Was there ever a neolithic in
the Neotropics? Plant familiarization and biodiversity in the Amazon".
FECHNER, Gustav. 1921. "Nanna; oder, Über das Seelenleben der Pflanzen".
Disponível em versão castelhana em:
https://issuu.com/gabrielbriasbuendia/docs/nanna_o_acerca_de_la_vida_espiritua
GOW, Peter. 1991. Of mixed blood: kinship and history in peruvian amazonia. Oxford:
Clarendon Press.
HALL, Matthew. 2011. Plants as persons: a philosophical botany. New York: Suny
Press.
________. 2013. "Talk among trees: animist plant ontologies and ethics". In: The
Handbook of Contemporary Animism. Harvey Graham (ed). London & New York:
Routlege.
HARAWAY, Donna. 2003. The Companion Species Manifesto: dogs, people, and
significant others. Chicago: Prickly Paradigm.
391
________. 1964. "Nature et culture dans la civilisation de l'igname : l'origine des clones
et des clans". In: L'Homme, tome 4, n. 1. pp. 93-104.
________. 2016. "Vozes alheias. A poética dos cantos suruwaha". In: MENDES DOS
SANTOS, G. & APARICIO, M. Redes Arawa: Ensaios de etnologia do Médio Purus.
EDUA: Manaus.
________. 1992. "Culture and the perception of the environment". In: CROLL, E. &
PARKIN, D. (orgs.). Bush base: forest camp. Culture, environment and development.
Londres: Rotledge, pp. 14-32.
JENNET, B & PLUM, F. 1972. "Persistent vegetative state after brain damage. A
syndrome in search of a name". Lancet: 734–7.
________. 1985. Dicionário Deni - Português. Versão Online. Anápolis: SIL Brasil.
392
KOPENAWA, David & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: as palavras de um
xamã yanomami. São Paulo: Cia das Letras.
KROEMER, Gunter. 1985. Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Paulo: Edições
Loyola.
LABRE, Antonio R. P. 1872. Rio Purús. Notícia. Maranhão: Typ. Do Paiz, M.F.V.
Pires.
LIMA, Tânia S. 1996. "O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma
cosmologia tupi". In: Mana, v. 2, n. 2, pp. 21-47.
________. 2002. "O que é um corpo". In: Religião & Sociedade. vol. 22, n.1, pp. 9-20.
________. 2005. Um Peixe Olhou Para Mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo:
UNESP/ ISA/ NUTI.
LOCKE, John. 2012[1690]. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Editora
Martins Fontes.
LORRAIN, Claire. 1994. Making Ancestors: The symbolism, economics and politics of
gender among the Kulina of Southwest Amazonia (Brazil). Tese de Doutorado. King´s
College, University of Cambridge.
________. 2000. "Cosmic Reproduction, Economics and Politics among the Kulina of
Southwest Amazonia". In: The Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 6, n. 2,
pp. 293-310.
LOVEJOY, Arthur. A grande cadeia do ser. Tradução de Aldo Fernando Barbieri. São
Paulo: Editora Palíndromo, 2005, p. 232 .
393
LUNA, Luis Eduardo. 1982 “El concepto de plantas que enseñan, entre cuatro
shamanes mestizos de Iquitos, nordeste del Perú (con un apéndice musical de Alfonso
Padilla)”. In: Revista Colombiana de Antropología, v. 24, pp. 43-74.
________. 1992. “Icaros: Magic melodies among the mestizo shamans of the Peruvian
Amazon”. In: J.E. Langdon & G. Baer (eds.), Portals of power. Shamanism in South
America. Albuquerque, NM: University of New Mexico Press.
LUNA, L.E. & AMARINGO, P. 1999. Ayahuasca visions: The religious iconography
of a Peruvian Shaman. Berkeley, CA: North Atlantic Books.
MARZEC, Andrzej. 2016. A filosofia das plantas (ou pensamento vegetal). Chão de
Feira, Belo Horizonte. Disponível em http://chaodafeira.com/wp-
content/uploads/2016/06/cad_46-1.pdf.
METRÁUX, Alfred. 1948. "Tribes of the Juruá-Purus basin". In: Julian H. Steward.
Handbook of South American Indians. Volume 3: The Tropical Forest Tribes. Washington:
Smithsonian Institution : 657-686.
394
MONSERRAT, Ruth M. & SILVA, Abel O. (Kanaú). 1991. Gramática da língua kulina:
dialeto do Igarapé do Anjo. Rio Branco, Acre: CIMI-Acre.
MORIM DE LIMA, Ana Gabriela. 2016. “Brotou batata para mim”: Cultivo, gênero e
ritual entre os Krahô (TO, Brasil). Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
________. 2017. "A cultura da batata-doce: cultivo, parentesco e ritual entre os Krahô".
In. Mana, v. 23, n. 2, p. 455-490.
MOSKO, Mark. 2009. "The fractal yam: botanical imagery and human agency in the
Trobriands". The Journal of the Royal Anthropological Institute. v. 15, No. 4, pp. 679-
700
NEALON, Jeffrey Thomas. 2016. Plant Theory: biopower and the vegetable life.
Stanford, California: Stanford University Press.
NEVES, Eduardo. 2017. A Tale of Three Species or the Ancient Soul of Tropical
Forests. Tropical Forest Conversvation: Long-Term Processes of Human Evolution,
Cultural Adaptations and Consumption Patterns. 1ed.Mexico: UNESCO , p. 228-245.
POLITIS, Gustavo. 2007. Nukak: Foragers of the Amazonian Rainforest. London: UCL
Press.
POLLOCK, Donald 1985a. Personhood and illness among the Culina of Western
Brazil. Tese de Doutorado. The University of Rochester.
________ 1985b. Food and sexual identity among the Culina. Food and Foodways 1:
25-42.
________ 1985c. “Looking for a sister: Culina siblingship and affinity”. In: SHAPIRO,
J. & KENSINGER, K. (eds.). The sibling relationship in lowland South America.
Working papers on South American Indians, 7. Vermont: Bennington College. 8-15.
________ 1988. Health care among the Culina, western Amazonia. Cultural Survival
12(1): 28-32.
395
Albuquerque: University of New Mexico Press. 25-40.
________ 1993b. Death and afterdeath among the Kulina. Latin American
Anthropology Review 5: 61-64.
________ 1996. Personhood and Illness among the Kulina. Medical Anthropology
Quartely 10: 319-341.
________ 1998. “Food and gender among the Kulina”. In: COUNIHAN, C. &
KAPLAN, S. (eds.). Food and gender: Identity and power. Amsterdam: Harwood.
________ 2002. “Partible paternity and multiple maternity among the Kulina”. In:
BECKERMAN, S. & VALENTINE, P. (eds.). Cultures of multiple fathers: Partible
paternity in lowland South America. 42-61.
________ 2004. “Siblings and sorcerers: Shamanism and the paradox of kinship”. In:
WHITEHEAD, N. & WRIGHT, R. (eds.). In darkness and secrecy: The anthropology
of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham: Duke University. 202-213.
_________. 1978. "The poisons and narcotics of the Deni, Paumari, Jamamadi and
Jarawara Indias of the Purus River Region". In: Revista Brasileira de Botânica, v.1, n.1.
p. 71-82.
396
RIBEIRO, Darcy. 2009 [1970]. Os índios e a civilização. São Paulo, Companhia das
Letras.
________. 1998. “Domestication as a historical and symbolic process: wild gardens and
cultivated forests in the Ecuadorian Amazon”. In: Balée, William L. (ed.). Advances in
historical ecology. New York: Columbia University Press, pp. 232-250.
________. 2001. "Seed and clone: the symbolic and social significance of bitter manioc
cultivation". In: Rival, L & N. Whitehead, N. (eds.). Beyond the visible and the
material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford, New
York: Oxford University Press. pp. 57-79.
RIVET, P., and TASTEVIN, C. 1938-9. Les langages Arawak du Puriis et du Jurua
(Groupe Arua). Journal de la Société des Americanistes de Paris, 30: 71-114, 235-88;
31: 223-48.
ROUSSEAU, J-J. 1959. Les rêveries du promeneur solitaire. Œuvres Complètes. Tome
I. Paris: Éditions Gallimard, 1959, pp. 1063-1064,
__________. 1964 . Discours sur l’origine de l’inégalité. Œuvres Complètes. Tome III.
Paris: Éditions Gallimard, 1964, p. 198.
SASS, W. (org.). 2004. Ima bute Denikha. Mitos deni. São Leopoldo. Oikos-Comin.
_________. 2004. Tronco velho. Histórias apurinã. Tese de doutorado. Campinas, SP:
Unicamp.
397
Terras Indígenas do Complexo Médio Purus II. Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ.
SCHULTZ, Harold. & CHIARA, Wilma. 1955. "Informações sobre os índios do Alto Rio
Purus". In: Revista do Museu Paulista, N.S., vol. 9.
SOUZA, Ingrid Pedrosa de. 2015. Gentes da mata: histórias, alteridades e sociedades
entre os Jamamadis do médio Purus. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Amazonas, Manaus.
SPIX, J. B. Von; MARTIUS, C. F. P. 1981 [1823]. Viagem pelo Brasil 1817-1820. (3).
São Paulo: Editora Itatiaia.
_________. 2017. "Gathered Fields: a tale about rhizomes". In: Anuac. v.6, n.2, pp. 23-
44.
STEERE, Joseph. B. 1949 [1873-1901]. "A narrative of a visit to indian tribes of the
Purus river, Brazil". In: Report of the United States National Museum for 1901. Ann
Arbor Michigan, Washington: Government Printing Office. pp. 359-393.
398
TAYLOR, Anne-Christine; CHAU, Ernesto. 1983. "Jivaroan magical songs: Achuar
anent of connubial love". Amerindia, VII:87-127.
TUPPER, K.W. (2002). "Entheogens and existential intelligence: The use of plant
teachers as cognitive tools". In: Canadian Journal of Education. v. 27, 499-516.
VAN DOOREN, Thom. 2012. “Wild seed, domesticated seed. Companion species and
emergence of agriculture”. In: Philosophy, Activism, Nature, v.9, pp. 22-28.
VILAÇA, Aparecida. 2002. "Making Kin out of Others in Amazonia". In: The Journal
of the Royal Anthropological Institute.v. 8, n. 2, pp. 347-365
________. 2006. "A Floresta de cristal". In: Cadernos de campo, n. 14/15, pp. 1-382.
399
VOGEL, Alan. 1989. Gender and gender agreement in Jarauára (arauan), M.A. thesis,
University of Texas at Arlington.
WAGNER, Roy. 2010[1974]. "Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?.
In: Cadernos de Campo, São paulo, n.9, pp. 237-257.
WALLACE, Alfred Russel. "Viagens pelo Amazonas e Rio Negro". Brasília: Senado
Federal, 2004. 630 p. (Edições do Senado Federal, v. 17).
WOHLLEBEN, Peter. 2017. A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se
comunicam. Editora Sextante.
400
Anexos
401
one one one (homem
falando)
- oka yibote tika yibote hika yibote yibote owa cunhado
owa owa owa (mulher
falando)
anihi oka anihi tika anihi hika anihi anihi prima (o)
dã/maki* oka dawa tika dawa hika dawa dawa sobrinho (filho
do irmão)
- okotone tikotone hikotone oda ka tone sobrinha (filha
do irmão)
* vocativos em desuso
** o par aso/koko pode ser substituído por aki/idi sugerindo um processo de
consanguinização dos afins de G+1 ao longo do casamento.
402
Canto da alma do timbó, kona abono
Wayoma do pajé D. cantado à noite. Os trechos em itálico são a fala da matrinxã, aba
abono, e os sublinhados são da alma do timbó, kona abono, plantado pelo pajé D.
se eu pegar a matrinxã, vou dar para você comer, disse o kona abono ao pajé
você veio atrás de mim e me pegou porque eu estou cansada, disse a matrinxã
Kona abono estava segurando o braço da matrinxã e disse: eu já matei o seu pai
você deve fazer um panaco para carregar a sua matrinxã, disse o kona abono ao pajé
Aba abono, a matrinxã, disse: o kona abono matou outra irmã minha
quando minha irmã estava aqui, nós brincávamos à tarde na água, disse o aba abono
lembrando da irmã
minha irmã morreu, depois kona abono voltou e matou outra irmã minha.
403
não, eu não sei correr, disse a mãe.
se Kona abono tivesse chegado na minha casa, ele teria me matado [kona abono está
caçando].
quando eu ficar grande, eu vou pegar a matrinxã para você [falou o kona abono para o
pajé]
eu vou dar fruta para ela, ela vai comer e vai morrer
eu acho que ela não tem comida, quando ela estiver com fome, será fácil matá-la
vocês me conhecem.
Faha boyo omatiya faha boyo omatiya fahaya boboyo ama oni fahaya boboyo ama oni
fahaya boyo omatiya fahaya boyo omatiya kona abono atinawa wahe kona abono
atinawa wahe faha boyo omatiya faha boyo omatiya kona abono atinawawahe kona
abano atinawawahe aba kananini aba kananini oka ababanani oka ababanani kiyoba
tinaho kiyoba tinaho kona abano atinawawahe atinawawahe oka aba kananane kananane
404
kiyoba tinaho kiyoba tinaho oka aba kabibanaha kabibanaha kiyoba tinaho kiyoba
tinaho kona abano atinane atinane aba kananini kananini aba kanana ati amanini aba
kanana ati amanini a,abi a, abi hibatiya onabanini hibatiya onabanini abi aba onabanini
aba onabanini abi aba onabini aba onabini yabasiya aba kawahi aba kawahi yabasiya
yabasiya oka sima fawanama kini oka sima fawanama kini aba atinairihi aba atinairihi
yawa mai momowa yawa mai momowa oka sima fawa namakini oka sima fawa
namakini yawa ihi yawa ihi aba atinawawahe atinawa wahe yawa mai momowa yawa
mai momowa oka sima to-towama omatiya to-towama omatiya oka sima fawa namakini
fawa namakini oka si-sima oka si-sima oka sima to-towama omatiya to-towama omatiya
oka sima fawa namakini fawa namakini oka sima fawa nini fawa nini oka sima
fawanamakini fawa namakini oka sima to-towama onahi to-towama onahi oka sima
fawa nama kini oka sima fawa nama kini oka sima to-towama omatiya to-towama
omatiya oka sima aba waini oka sima aba waini kana onahi kana onahi kana oni kana
oni wami maraya ka-kana ama oni ka-kana ama oni wami maraya wami maraya ka-
kana ama oni ka-kana ama oni wami maraya wami maraya kana onahi kana onahi faha
kanani owatoterani kanani owatoterani faha kanani to-tomi obe-ya kanani to-tomi obe-
ya faha kanani ti-tomi onahi to-tomi onahi aba hasina ati nawa waini atinawa waini faha
kanani to-tomi obeya to-tomi obeya kana onahi kana onahi aba hasina atinawa waini
atinawa waini faha kanani to-tomi onahi to-tomi onahi aba hasina atinaro atinaro aba
hasina kanani eya nini eya nini aba hasina ye nini ye nini
405
Mito de Yawina
Mako bote mai kake mai amonake mete moneni fai-ya mai kake mai kobo nake mete
moneni hini Yawina-ya, Yawina-ya mai kobona,mai-ka atona mai kake, mai kobona
mai-ya mai winake mete moneni. Mai-ya mai winake mai-ya mai hiyara, mai wayoma,
mai tafa, bani mai-ya mai kaba, na mete moneni mai amoni 10 tohi-ya mai tokoma mete
moneni. Ai ye kafama nima niya oda tabaro-ya oda tokoma boneni mai ana, hini mai ati
nima mai tokoma mete moneni Ami tikoto hima tinama bone, tina hima tinami bana?
Ane mata monane. Okoto oda tofamama boneni okoto nabadi nafe, hini owa-ya okoto
dori wada boneni ana mete moneni oka sima tosawima boneni ane, mata monane. Idi
yawina kawine mata monane hika ami hima hina, ati yanana mete moneni Ami osawima
bone dai ana, idi Yawina itebama kare, ana mete moneni Yawina ite bonane, tiwa hare
tisawima boneni Anidi ane mata monane.Anidi ati-ya mita, ati bodi a arira, maki-ya
hana mete moneni Yawina tiwi-ta mata bawini okomi oda tofamama bone, anani ana
mete moneni hehe ami dai tofa mamahi ane mata monane. Ami ati yana kabote na mani,
hibati-ya oka yamata ora bata neni ane mata monane oka sibati raba tarihi, oka sami
soki rihi, nani ane mata monane.Yamata hawa tini-ya tiyo toyahi fadi ana mete moneni
oyo tabani owa amoni ai ye kare nima niya oko make bani ane mata monane. Hehe ana,
hika yifo-ya kadaba, hika hisiri bide-ya hika yifo-ya weye kana, na mete moneni mai
yama tonama mai-ya tosawima mete moneni. Mai toka temika, fara hawi-ya awa ita
mete moneni hawi-ya hika awa ita-ya hika yamata kawita mete moneni fowa toha, sibati
toha, yawida toha, sami toha na, hawi-ya yamata kawiyi tokoma mete moneni. Sibati
tina kawi-ya, fowa iso tine kawi-ya, yawida mone tine kawi-ya ne mata monane hai fadi
eye yoto, yamata mai hina haba, kawiya-ya awe, ati yanane mata monane Ka! hai idi
Yawina-ka yamata-ya mai nanaba mai nani mai ihi tohawa, ane mata monane. Yawina
ati amose, fadi tosawima hika yamata rabati-ya hawa towe-ya ai ye kare nima amoni ne-
ya kamaki bona ane-ka yamata-ya mai nana habinihi ane mata monane. Hima mai ai
towasi maki-ya mai ai fiya kibanani ane mata monane fadi bidi-ya weye nimisa, mai
towa kamaki kita mete moneni mai kamaki hare mete moneni yamata-ya mai naka maki
harero. Mai tokomake, yamata abi toko farama mete moneni hini hawi-ka yamata aba-
ya mai awa, mai kama mete moneni mai kobonama, Yawina-ya hana mete moneni
Yawina, Yawina ana mete moneni Yawina-ka sima mete moneni fai-ya hanamaro. Hika
sima hahine, sima eme tiniti ane mata monane Yawina ha tika yibote naba maidi hiwa
kama mone tika yamata-ya yokanini tika yamata abi tiwamahi tika yawida kame, ti-
tinakosene mai tokoma mai inihi mai ana mete moneni. Mai fanawi-ya a anai mata
mona, ani ani ane mata mona, nakiri-ya haneri naiki ai fame, yamata mai hina haba
mone owama mati-ya ane mata monane hehe ai fama bani ane mata monane. Mai towa
kama mete moneni fadara-ka yamata aba-ya mai awa bonehe hika yamata aba-ya
towame, ati yawe mata monane Ka! mai okakora oka yamata-ya mai nana habinihi hiba
mai okako wai bonehe, Yawina ati yawe ane mata monane. Makobote mai towa
kamake, mai tokoma mai tame-ya mai kasawe mete moneni mai towa kamake, tara wai-
ya awe, tara-ya tinakose,
406
Relato do adoecimento de Beterina
Kiya ona, owaba kosa, makobote afiyao-ya ofo-yani yama owara meteni. Makobote
yama owarani, afiyao owa-ya kobo kaneno-ya odafe maroni. Makobote yara owa-ya
mai towa kiyoma, Kasai dori-ya ofore maroni. Kama-ya owa-ya mai nafore, ofore
maroni. Makobote kamaki marine kamaki owa-ya hane, tiwa-ya yara mai keteni ? ane
marine. Haha mai kama keni mai amanikani ona maroni ati omite, yara owa-ya mai
keterani ona maroni. Tiwa-ya hemedi da ona boneni ane, hemedi-ya owa-ya wikone
marine owa teme-ya hemedi-ya wiko, owa mano-ya wiko, owa noko-ya wiko, owa
widi-ya hidi tokana nemarine. Fa-fai-ya yama nafi owato wama maroni fai-ya ka-
katome itari, ati yanane marine dai-ka inawa mediko tohe wadare mane ? ane marine.
Hehe oda-ka inawa toha tene ane marine fare-ka dai-ya naka makine ane marine fai-ya
hiyare sabewa-ya watarire marine. Hini-ya noko kone tai kase marine yara toware
marine tati kone seokani-ka tisora ihi tokoma maroni. Mai-ya owa awi oware mai-ya
owa mara maroni makobote ina madi kamaki kamarene ona maroni. Tiwa owama tasa
bani ane kamare marine makobote fana hini tiwa nimana-ta kama bisa maroni noki
seokasi bara maroni fara-ya awe, ha yara makarini ? ane marine. Kamatasa, owa ye-ya
wara tona, ati yanana maroni tika yama kome fawana boneni ana maroni okoyo tiwa-ya
nakame tiwini ? ana maroni. Hehe oda awene ane marine makobote kama oda ka-
katoma fawa namaki tasa maroni fa-fai-ya mai oda awamara maroni. Yama nafi
honamara,yara-ta mai tono kosa bisa maroni makobote, femeira kama hemedi yome
tiraniha ana maroni. Hemedi yome orani ona, owati-ya kamine, fana hemedi-ya
yomerani ane marine hemedi-ya tika yibote-ya oda danaba, tika yibote-ka yama kome
wadarani mai ana maroni. Yama kome tika yibote-ya nafi-ya hemedi oda dana bani oda
hatini-ya mai ana maroni sibarni ane marine hemedi yome ora maroni. Madi mai toko
makeni owa-ya mai-ka hemedi-ya mai dani bisa maroni owa mano-ya mai hidi tokana,
owa iso-ya mai hidi tokana, nibisa mai owama bisara maroni. Kasai dori-ya mai fawana
maroni mako bote okitama oda ka-kama hini oda-ka yobe-ya oda amokani 3 toha
maroni makobote ai towa kama mina boneni ane, fa-fai-ya oda ka-kama maroni. Haha
mai dai nima mete wineni idi Bada-ta mai hiwa bisa mete wineni mai owamara maroni
mai eye oda kama mete wineni. Fa-fai-ya eya yama na maroni oki tama maroni Feye
mani.
407
O contato e a chegada dos patrões
As narrativas do contato coincidem com aquelas que tratam da chegada dos brancos e
episódio pontual que inaugura o início das relações com os brancos, em tais relatos, o
composta por brancos, em geral, enfatizam o contato como a passagem de uma vida de
compartilhá-las.
Jacó foi o primeiro patrão a chegar às malocas do Curiá. Nessa época, eles não
conheciam os brancos, suas mercadorias e suas doenças. Logo que chegou, contam,
vestiu roupas por cima das tangas de envira que usava e mostrou como quebrar
castanhas para que fornecessem a ele. Em troca das castanhas, ele lhes oferecia roupas:
Depois da morte de Jacó, os Jamamadi do Curiá seguiram trabalhando com seu filho,
Chita, para quem forneciam copaíba, além da castanha. Sabira, esposa de Badá, que era
criança nessa época, diz que: "nós estávamos aprendendo com Chita e passamos a usar
408
O terceiro patrão do Curiá foi Alcides, casado com Nega; esse casal apadrinhou muitos
Jamamadi, batizando-os e mudando seus nomes. Ele vinha num navio a vapor, Sabira se
Curiá trabalharam para outros patrões que paulatinamente os foram "amansando", neste
café e a cachaça.
dele, contam ter chegado um patrão chamado Zé Lino para quem os Jarawara também
trabalharam. Os Jamamadi contam que foi esse o patrão que teria reunido os Jarawara e
os "amansado". Zé Lino era casado com Akoda, uma mulher Jarawara, e com ela teve
vários filhos: Margarida, Luisa, André, Chico Antônio, José, Marco, Valdemar,
Raimundo Soares e Nene. Quando moravam na boca do igarapé Missão - hoje território
correram para contar para os demais. Eles não conheciam aquela língua e sabiam não
ser a dos Jarawara. "Se eles não forem bons, voltaremos para a aldeia", disse o pai de
Zé Lino conhecia um pouco da língua Jarawara por causa de sua esposa, Akoda. Ela o
impressionaram ao descobrir que ela havia se casado com Zé Lino. Akoda contou que
os brancos faziam muita guerra com eles – o grupo que hoje mora na aldeia Casa Nova.
Todos corriam e se perdiam no mato, portanto, ela teria se casado com ele numa
409
encontro, o patrão Zé Lino mostrou o sal e os ensinou a comer comida temperada,
lembram os Jamamadi.
(Cordeiro?). O cacique Badá conta que era criança quando Chico chegou à maloca em
mato no dia de sua chegada. A mãe de Badá dizia tratar-se um espírito inamadi. Em
pouco tempo, Badá foi trabalhar para outros patrões em diversas colocações, por isso,
raramente pode retornar para seu lugar de nascimento. Um dos patrões para quem
muitos Jamamadi trabalharam nessa região foi Firmino Cunha. Foi a mando deste
patrão que Badá, Manduca e Manoelzinho fizeram contato com os Banawá na década de
1950.
Segundo Erinawa, um patrão chamado Antonico foi o branco que primeiro contatou a
anos, diz que foram os irmãos Titino e Marcelino os patrões que efetivamente os teriam
"amansado". Ele conta que ao voltarem de uma caçada, os homens encontraram a rede
de Titino atada próxima ao porto. Eles voltaram para a maloca para avisar o restante do
pessoal, a maioria só ouvira falar dos brancos, pois eles ainda não circulavam no Sabuhã
naquele tempo. Erinawa conta que os irmãos levaram de tudo: sal, terçados, linha de
amolar etc.
167
Pela proximidade com o rio Purus, a porção sul do território jamamadi, notadamente a área do igarapé
Mamoriazinho e seus afluentes, foi onde ocorreram os primeiros encontros com os patrões e seringueiros.
Os registros históricos corroboram essa tese. A chegada dos brancos na porção correspondente à bacia do
rio Piranha ocorreu numa segunda frente, alguns anos depois, pelos sorveiros, castanheiros, pescadores e,
por fim, madeireiros. A extração de seringa da terra firme e das várzeas do Piranha era inexpressiva, haja
vista sua qualidade inferior, dita "fraca" para a produção da borracha quando comparada às espécies
predominantes da H. brasiliensis das várzeas de água branca do Purus.
410
Titino e Marcelino tinham muito interesse nas peles dos animais e pagavam muito por
elas. Com a pele de uma onça pintada, conta, era possível conseguir uma arma de fogo.
Os brancos chegavam gritando, conta Erinawa: "Não, não, voltem! Ei, ei, vem cá!". O
pessoal corria com medo dos brancos e da sua gritaria. Eles esperavam escondidos, no
caso dos forasteiros não irem embora, eles voltavam no dia seguinte para espiá-los.
eram bons, davam muitos presentes, ensinavam a atirar e a beber café. Naquela época,
tínhamos medo de café porque parecia com o veneno que usamos para caçar. Titino
tirava muito sarro do meu avô por ele não conseguir atirar com a arma de fogo, também
porque não aguentava beber a cachaça que ele dava", prossegue Erinawa. Titino e
para seus roçados e os ensinaram a cozinhar a carne, pois, naquele tempo, só se comia
carne moqueada.
Depois apareceu no Sabuhã um patrão chamado Clóvis. Ele veio acompanhado de seu
filho Isaias e de seu neto, Jorge, que matou a tiro uma menina Jamamadi chamada
Marina, fato que causou o conflito que acabou por expulsá-los dessa maloca. Com a
saída de Clóvis e sua família, vieram Chicó, sua esposa Otília e seu filho, Manuel, que
os ensinaram o que são os dias da semana e que não se deve trabalhar no sábado e no
domingo, contou Fono Jamamadi. Por menos tempo, também estiveram nesse afluente
Nazaro, que levou um padre, pela primeira vez, para batizar os Jamamadi.
411
A geração com idade superior a 70 anos ainda tem memórias do tempo em que vivia-se
nas malocas, usavam-se tangas de envira e algodão trançado - yayafa, a tanga feminina,
esposa de Arnica, é saudosa da beleza dos adornos e pinturas corporais, das tangas
sempre tingidas de urucum com esmero e dos cabelos impecavelmente cortados. Todos
em seus tornozelos.
A beleza, a fartura e a generosidade desse tempo são contrastadas com uma imagem
ferramentas e da presença dos brancos. Em grande medida, seus vizinhos isolados são a
imagem duradoura desse tempo e o discurso jamamadi sobre eles enfatiza as ameaças a
que estão sujeitos por esse modo de vida errante, à mercê das intempéries, das doenças e
de acidentes168.
168
De forma mais ou menos assertiva, os Jamamadi são contrários à política da Funai de não fazer o
contato com os Hi-Merimã. A respeito desse tópico bastante delicado, voltarei adiante com mais vagar,
por ora, adianto alguns fatores que subjazem e embasam tal posicionamento, a saber: I. Muito embora não
seja suficiente nem razoável atribuir à presença da Missão na área jamamadi a única fonte para justificar a
crítica ao isolamento, o proselitismo missionário exorta o contato e contribui de maneira evidente para
tanto. A estratégia discursiva que recorre a temas como "solidariedade", "sofrimento", "culpa", dentre
outros, dá pistas para fundamentar essa hipótese; II. A FPEMP nutriu por muito tempo uma desconfiança
explícita sobre os Jamamadi, de modo que o diálogo escasso, o não compartilhamento das informações
obtidas nas expedições de vigilância e monitoramento os mantiveram afastados da atuação do órgão e de
seus propósitos, levantando dúvidas sobre um possível desaparecimento dos Hi-Merimã. Soma-se ainda o
fato de que nos últimos cinco anos não houve nenhum encontro entre os dois povos, tampouco foram
achados vestígios recentes dos vizinhos isolados; III. A interrupção abrupta da outrora intensa circulação
de pessoas entre os grupos, expressa nos laços de parentesco, no xamanismo e em práticas rituais comuns,
é considerada com pesar pelos Jamamadi; IV. Finda a época dos conflitos intensos e das epidemias,
causas decisivas das migrações do passado, os Jamamadi argumentam que não haveria motivos
atualmente para prosseguir os incessantes deslocamentos; V. A participação de alguns Jamamadi em
expedições organizadas por missionários e patrões com o intuito de contatar povos isolados, como de fato
ocorreu com os Banawá há várias décadas a mando do patrão Firmino Cunha, é mencionada em vista de
justificar um conhecimento prévio, fundamentado na experiência, que os habilitaria a lidar com os Hi-
Merimã no caso do contato; VI. Por fim, a evitação do contato é também tomada como a reafirmação da
412
moralidade característica dos brancos cujo traço maior seria a avareza, expressa na recusa em
compartilhar as tecnologias que somente eles detêm.
413