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Agradecimentos
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Glossário de sigas
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Resumo
O presente trabalho será dividido em duas partes, sendo que a primeira visa a
matéria da Justiça Constitucional em Portugal numa perspetiva teórica, fazendo
referência à sua evolução histórica. Serão introduzidos os conceitos de
constitucionalidade e inconstitucionalidade, fazendo-se em seguida uma análise aos
tipos de inconstitucionalidade no nosso ordenamento jurídico. Abordaremos os
processos de fiscalização da constitucionalidade, onde será realçado o processo de
fiscalização por omissão e nesse sentido analisaremos também a responsabilidade civil
extracontratual do Estado-Legislador.
Será abordado o papel do Tribunal Constitucional, adiante designado TC, bem
como o do Provedor de Justiça em matéria de Justiça Constitucional.
A segunda parte do trabalho será dedicada à análise de um caso concreto do
nosso ordenamento jurídico, o caso do Aquaparque do Restelo. Será feita uma breve
descrição do caso e em seguida serão analisados dois pareceres relativos ao mesmo,
nomeadamente o parecer do Gomes Canotilho e o parecer de Diogo Freitas do Amaral
e Rui Medeiros.
Este trabalho pretende dar uma visão breve e percetível da realidade jurídica em
Portugal.
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Introdução
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Índice
Agradecimentos ………………………………………………………………………………..3
Glossário de siglas…………………………………...………….….……….…………………4
Resumo …..…………………………………………………………...…………….…………. 5
Introdução………………………….………………………………...…………………………6
Capítulo I
1.1 Conceitos constitucionalidade e inconstitucionalidade…………….………………8
Capítulo II
2 Enquadramento histórico – Justiça Constitucional…………………….................9
2.1 Evolução Histórica em Portugal……………………………….…………………….11
2.2 Direito comparado…………………………………………………….……………...15
Capítulo III
3 Tipos de inconstitucionalidade………………………………………………………17
3.1 Inconstitucionalidade por ação……………………………………………………...18
3.1.1 Processos de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade……..............19
3.2 Inconstitucionalidade por omissão………………………………………………….21
3.2.1 A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão……….……………………..23
3.2.2 Responsabilidade civil extracontratual do Estado-Legislador …………………...23
Capítulo IV
4 O Tribunal Constitucional……………………………………………………………26
4.1 As decisões do Tribunal Constitucional…………………………………………….28
4.1.1 O conteúdo das decisões…………………………………………………………....28
Capítulo VI
6 Caso Concreto do Aquaparque do Restelo – os factos …………………………..32
6.1 Análise dos pareceres ……………………………………………………………….33
6.2 O acórdão …………………………………………………………………………….36
Conclusão ……………………………………………………………………………………..37
Bibliografia …………………………………………………………………………...............38
Netgrafia ……………………………………………………………………………………....39
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Capítulo I
1. Conceitos constitucionalidade e inconstitucionalidade
“Um Estado forma-se com elementos diferenciadores que o caraterizam face a
outras organizações sociopolíticas de poder e vincula-se sempre a um conjunto de
normas jurídicas fundamentais que regulam estrutura, organização e atividade. Tal
conjunto de normas fundamentais do Estado é a Constituição, enquanto expressão
jurídica da União entre governantes e governados” (Miranda, 2016).
Desta forma, a Constituição, enquanto Lei Fundamental de um Estado e base de
um ordenamento Jurídico, tem de ser acompanhada por um sistema de garantias, tendo
o sistema de fiscalização judicial da mesma o papel principal e mais relevante no
controlo do cumprimento da Lei Fundamental.
Os princípios basilares da Constituição são a garantia que representa a
concretização, no sistema jurídico, do Estado de Direito Democrático e a sua própria
integridade.
Hans Kelsen define a Constituição como “o princípio supremo que determina a
ordem estatal na sua totalidade” e estabelece que a ordem jurídica é composta por um
conjunto de fontes de direito que devem ser estruturadas/ hierarquizadas. Aponta a
Constituição como a lei superior de todo e qualquer ordenamento jurídico, tal como se
encontra consagrado no artigo 3.º n. º3 da CRP.
(…)
Capítulo I
Artigo 3º
“A validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas,
do poder local e de quaisquer entidades públicas,
depende da sua conformidade com a Constituição.”
(…)
Assim, para que o respeito pela Constituição seja efetivo, deve a mesma prever
a existência de mecanismos de garantia e controlo, designadamente um modelo de
justiça constitucional.
O modelo de justiça constitucional existente em cada ordenamento jurídico é,
hoje em dia, apontado como o elemento definidor do constitucionalismo, podendo a
apresentar-se apenas centrado na fiscalização de normas ou, pelo contrário,
abrangendo também a fiscalização de atos, proporcionando um modelo mais
protecionista e mais próximo dos cidadãos.
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Desta forma pode-se afirmar que “constitucionalidade e inconstitucionalidade
designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre a Constituição e um
comportamento que lhe está ou não conforme, que cabe ou não no seu sentido, que
tem nela ou não a sua base”. (Miranda 2016)
Capítulo II
2. Enquadramento histórico da Justiça Constitucional
Em 1609, surge o primeiro exemplo de invocação da necessidade de as leis
parlamentares respeitarem a Constituição, no caso jurisprudencial do Dr. Bohman, no
qual o juiz Coke, na fundamentação da decisão, desenvolve a sua conceção do valor
da Constituição, formulando a doutrina segundo a qual cabia aos juízes ingleses a
competência de garantir a supremacia normativa da common law, entendida, portanto,
como a higher law. A doutrina de Coke (como passou a ser conhecida) expandiu-se
para as colónias inglesas no norte do continente americano onde, após a Revolução
Gloriosa de 1688 terá exercido uma influência bastante significativa sobre os colonos.
Embora a doutrina desenvolvida pelo juiz Coke tivesse surpreendido o mundo
jurídico, a aplicação prática imediata não produziu efeitos na ordem jurídica inglesa, por
ordem do rei que receou perder o seu poder. No entanto, serviu de inspiração para a
oposição da colónia norte-americana, a qual utilizou o mesmo fundamento para se
posicionar contra as leis do Império Inglês, vindo mais tarde a servir de base à
elaboração da Constituição Americana, após a independência em 1787.
O início da afirmação da competência efetiva dos tribunais para fiscalizarem a
constitucionalidade das leis foi marcada definitivamente pelo caso Marbury vs. Madison,
em 1803. Nessa altura, o juiz Marshall afirmou que todo o ato legislativo contrário à
constituição era inválido e que caberia aos tribunais americanos verificarem a
constitucionalidade das leis.
Foi com as revoluções do final do século XVIII, e com o nascimento das
constituições que daí resultaram, que se desenvolveram as ideias de
constitucionalidade, não só como necessidade de garantia da constituição mas também
como exigência de controlo dos poderes instituídos e de garantia da supremacia da lei.
A justiça constitucional inglesa e americana fizeram nascer o modelo de fiscalização
judicial associada à sempre presente e vincada necessidade de “checks and balances”,
que em português forma o sentido de “controle e equilíbrio” entre os diferentes poderes.
Um modelo distinto ao mencionado anteriormente surgiu em França no pós-
revolução. Foi num clima de desconfiança existente em relação ao poder judicial que se
atribuiu ao poder político e ao legalismo democrático toda a credibilidade. Desta forma,
os representantes do povo eleitos democraticamente eram tidos como os maiores
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protetores da Constituição e dos direitos e como tal, em princípio, não produziriam leis
inconstitucionais. Seriam ainda os únicos elementos com legitimidade suficiente para
suscitar a controlo da constitucionalidade da atuação do Estado.
É já no século XX que a verdadeira justiça constitucional e a preocupação com
a garantia de direitos fundamentais, bem como o respeito pela lei maior de uma ordem
jurídica, surge na Europa. Num primeiro momento, surge pela mão de Hans Kelsen, em
que este configura o ordenamento jurídico como uma estrutura em pirâmide em que no
vértice da mesma deve estar a Constituição, cuja garantia teria de ser feita através de
um tribunal, sendo este especializado em questões constitucionais. Surge assim o
modelo de justiça kelsiano.
A evolução da justiça constitucional levou à distinção entre dois modelos de
justiça constitucional: o modelo americano (de fiscalização judicial difusa) e modelo
europeu-kelsiano (de fiscalização concentrada).
O sistema americano deriva da vontade de se estabelecer a supremacia do
Poder Judiciário (o denominado “governo dos juízes”) sobre os restantes poderes,
particularmente sobre o poder legislativo, constituindo um ato de confiança nos Juízes.
Já o modelo kelsiano representa um ato de desconfiança em relação aos juízes,
desenvolvido para salvaguardar o princípio da segurança jurídica. Desta forma, foi
criado um tribunal especial que tinha como função controlar, de forma abstrata e
concentrada, a constitucionalidade das leis.
Dentro do modelo de fiscalização judicial, que foi o que vingou tanto nos Estados
Unidos como na Europa, ainda que só a partir do século XX, pode optar-se por uma
divisão mais lata, apontando apenas dois modelos: o modelo unitário e o modelo de
separação, na doutrina do Professor Gomes Canotilho. No seu entendimento, o modelo
unitário “configura-se por uma justiça constitucional em que cabe a todos os tribunais
da ordem jurídica o controlo e fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos,
não existindo uma autonomia organizativo-institucional. Desta forma, justifica-se o facto
da inexistência de uma jurisdição especificamente competente para apreciar as
questões da constitucionalidade”. Este modelo de justiça constitucional, designado por
modelo americano, está diretamente ligado aos sistemas de fiscalização difusa,
existente ainda hoje em países como os Estados Unidos, Austrália, Índia, Japão, Brasil,
Suíça, Estados Escandinavos.
O modelo de separação, contrariamente ao modelo unitário, é constituído por
uma ordem jurídica composta por diversas jurisdições, existindo autonomamente uma
justiça especializada em questões constitucionais, com tribunal próprio competente.
Este modelo, ao autonomizar a justiça constitucional, procura estabelecer e reforçar a
especialidade das questões constitucionais. Este modelo é hoje acolhido por países
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maioritariamente europeus, nomeadamente, Alemanha, Itália, Áustria, Portugal,
Espanha, Bélgica, e alguns estados sul-americanos, como o Chile, Perú e Guatemala.
Designa-se, muitas vezes, este modelo por modelo europeu ou kelseniano.
“(…)
Título III
Secção III
Art.º 63
O Poder Judicial, desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes
impugnar a validade da lei ou dos diplomas emanados do Poder Executivo
ou das corporações com autoridade pública, que tiverem sido invocados, apreciará a sua
legitimidade constitucional ou conformidade com a Constituição
e princípios nela consagrados.
(…)”
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No entanto, esta função só poderia ser desempenhada quando a questão de
invalidade da lei tivesse sido suscitada por uma das partes que interviesse no processo.
Apesar da inovação constitucional levada a cabo pelos constituintes de 1911, na prática
o sistema de fiscalização da constitucionalidade das leis não teve qualquer efeito, uma
vez que só ao parlamento cabia fiscalizar a lei, por ser o seu único e legítimo criador.
Em 1933 surge uma nova Constituição, então associada ao regime ditatorial do
Estado Novo implantado por Salazar. A Constituição de 1933 vem, de certa forma,
alterar a geometria da justiça constitucional, consagrando um sistema misto de
fiscalização da constitucionalidade. Embora o sistema de fiscalização judicial difusa se
mantivesse, apenas seria aplicável quanto a questões de inconstitucionalidade material,
ficando questões de inconstitucionalidade formal ou orgânica entregues à fiscalização
política da Assembleia Nacional. A principal alteração do regime foi a atribuição aos
tribunais da competência de, oficiosamente, conhecerem da inconstitucionalidade das
normas.
“(…)
TÍTULO V
Dos tribunais
Art. 123.º
Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o
disposto nesta Constituição ou ofendam os princípios nela consignados, cabendo-lhes, para o
efeito, apreciar a existência da inconstitucionalidade, salvo se o seu conhecimento for da
competência exclusiva da Assembleia Nacional, nos termos do n.º 2.º deste artigo.
1.º A lei poderá concentrar em algum ou alguns tribunais a competência para a apreciação da
inconstitucionalidade referida no corpo do artigo e conferir às decisões desses tribunais força
obrigatória geral.
2.º A inconstitucionalidade orgânica ou formal da regra de direito constante de diplomas
promulgados pelo Presidente da República ou de normas constantes de tratados ou outros
atos internacionais só poderá ser apreciada pela Assembleia Nacional e por sua iniciativa ou
do Governo, determinando a mesma Assembleia os efeitos da inconstitucionalidade, sem
ofensa, porém, das situações criadas pelos casos julgados.
(…)”
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(Texto da Constituição Política da República Portuguesa na versão de 1971)
“ (…)
CAPÍTULO III
Das atribuições da Assembleia Nacional
Art. 91.º Compete à Assembleia Nacional:
1.º Fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las;
2.º Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo ou da
Administração, podendo declarar com força obrigatória geral, mas ressalvadas sempre as
situações criadas pelos casos julgados, a inconstitucionalidade de quaisquer normas.
(…)”
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A fiscalização sucessiva, e de natureza incidental, era já da competência dos
tribunais judiciais, dizendo esta respeito a normas e não a diplomas completos. À
Comissão Constitucional era ainda atribuída competência para apreciar recursos de
decisões judiciais que aplicassem normas inconstitucionais, uma vez esgotadas todas
as instâncias judiciais.
O Conselho da Revolução representava assim o eixo da fiscalização política do
sistema de 1976, com poder de decisão, como “instância concentrada”, sobre a
constitucionalidade das normas jurídicas
A revisão da Constituição em 1982 teve como um dos temas centrais a
reformulação do sistema de fiscalização da constitucionalidade, decorrente das
inúmeras críticas então feitas ao sistema vigente e à necessidade de alteração deste,
em virtude de uma evolução natural na democracia portuguesa, com o progressivo
afastamento das forças revolucionárias militares. É com a revisão de 1982 que é criado
um verdadeiro sistema de justiça constitucional no nosso ordenamento jurídico. As
propostas de revisão constitucional, na sua maioria, previam a extinção do Conselho da
Revolução, o que implicava uma reestruturação do sistema de fiscalização da
constitucionalidade.
Entendeu o legislador que a melhor forma de reorganizar a justiça constitucional
não seria voltar, pura e simplesmente, ao modelo de fiscalização difusa da Constituição
de 1911, inspirado no modelo norte-americano, mas sim estabelecer um modelo misto
em que, num único sistema, se conjugassem as melhores matrizes dos diferentes
sistemas de fiscalização da constitucionalidade. Assim, o modelo português surge como
um único, resultante da aglomeração do modelo norte-americano da judicial review, do
modelo europeu, kelseniano, do modelo francês, e ainda com inspiração na Constituição
da Jugoslávia de 1975.
Foi desta forma que adquiriu contornos de singularidade: pela conjugação dos
poderes de todos os tribunais (art.º 204º CRP) – aos quais cabe a primeira palavra em
questões de inconstitucionalidade – e do Tribunal Constitucional (art.º 280º CRP) – ao
qual pertence sempre a última palavra.
A revisão de 1989 teve como fim a adequação da Constituição ao funcionamento
dos tribunais. Foram assim revistos os artigos que definiam as funções e organização
dos tribunais judiciais e do TC, nomeadamente a extensão das competências deste no
contencioso eleitoral e nas questões dos referendos, para além do alargamento do
objeto do processo de fiscalização da legalidade das leis, incluindo a violação das leis
de valor reforçado. Por fim, foi criado o recurso para o Plenário do Tribunal
Constitucional.
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A revisão de 1997 veio, mais uma vez, incidir em alterações que foram surgindo
como necessárias para o melhor funcionamento do TC e afirmação do mesmo enquanto
um tribunal independente. Foram atribuídas novas competências e alterado o regime de
mandato dos juízes, impedindo que este fosse renovável.
Conclui-se, desta forma, que o sistema português de fiscalização da
constitucionalidade pode ser descrito como um sistema misto e/ou compromissório. Ou
seja, o sistema português é composto por vários tipos de controlo constitucional,
preventivo, sucessivo, difuso e concentrado. No entanto, todos estão entregues à ordem
jurisdicional, tendo sido por completo afastada a hipótese de controlo político com a
revisão da constituição em 1982 e o fim do Conselho da Revolução e da Comissão
Constitucional.
Reino Unido
Dada a sua longevidade e o carácter pioneiro das suas instituições, o sistema
constitucional britânico viria a projetar-se em muitos outros Estados, concretamente
todos aqueles que antes foram colónias do império britânico, na África e Oceânia. Esta
influência registar-se-ia, paralelamente, no próprio sistema jurídico geral.
Ao nível das fontes do Direito, e por inerência do Direito Constitucional, o sistema
britânico insere-se numa das variantes mais singulares dos sistemas jurídicos: o sistema
anglo-saxônico, mais conhecido por sistema da common law.
Ao contrário do sistema romano-germânico que caracteriza a Europa
Continental, o sistema britânico assenta em três pontos fulcrais: a importância do
costume como fonte de Direito, por oposição à fonte legal; a relevância dos tribunais na
realização do Direito e o esbatimento de fronteiras entre o Direito Público e o Direito
Privado.
Estes traços caracterizadores do sistema jurídico britânico são também notórios
no Direito Constitucional, sendo o Reino Unido um dos poucos estados com um sistema
constitucional essencialmente consuetudinário, ao invés do sistema dominante em
outros países, essencialmente protagonizado pela Constituição escrita.
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Pode-se então dizer que a falta de uma base legal codificada, rígida e concreta,
torna menos clara a aplicação da fiscalização da constitucionalidade nos contornos em
que a conhecemos.
França
A grande caraterística da França, quanto ao seu sistema constitucional, define-
se por uma evolução turbulenta, traduzida em numerosas reformas e contrarreformas,
num total de 16 textos constitucionais.
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O constitucionalismo francês seria a consequência da Revolução Francesa de
1789, data que marca a mudança de um regime e de um paradigma de Estado, com a
proclamação das instituições do Liberalismo e Constitucionalismo. No domínio dos
Direitos Fundamentais ficaria célebre o primeiro texto que efetua a respetiva
proclamação, à luz dos direitos naturais: a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (DDHC).
O facto de a França ter sido o berço das Revoluções Liberais na Europa não
deixa, no entanto, de ser “desarmónico com o que sucede na proteção de direitos
fundamentais que que se concebe neste ordenamento constitucional, que podemos
considerar deficiente, pelo menos se comparada com outros”, como refere Bacelar
Gouveia. Ao contrário do que se verifica na maioria dos textos constitucionais atuais, a
Constituição Francesa não contém qualquer elenco de direitos fundamentais, limitando-
se a pontuais alusões e, regra geral, remetendo para a DHHC e para outros textos, o
que evidencia então um texto puramente organizatório.
Também na fiscalização da constitucionalidade a realidade francesa tem
características muito próprias. Em França, a constitucionalidade é verificada de modo
concentrado, em exclusividade, por um Conselho Constitucional, órgão este que tem a
sua legitimidade primeira na Constituição, com a sua composição e competências,
firmemente estabelecidas no panorama constitucional francês. É composto por nove
membros substituídos por triénios, de maneira a assegurar simultaneamente
estabilidade e uma certa mudança.
O sistema francês continua a caraterizar-se por uma forte dinâmica evolutiva, ao
ponto de hoje ser já possível alegar a constitucionalidade em litigâncias, num claro
processo de judicialização inédita do sistema. A revisão constitucional de 2008 veio
permitir o controlo concreto, ainda que de forma limitada, quando estão em causa
liberdades e direitos garantidos pela Constituição, com envio para o Conselho
Constitucional por parte do Conselho de Estado ou do Tribunal de Cassação. Permite,
finalmente, que o poder judiciário possa contestar a constitucionalidade de uma lei,
depois da sua promulgação, face a um processo concreto.
Capítulo III
3. Tipos de Inconstitucionalidade
A constituição como lei fundamental é vista como paradigma de todo o
ordenamento jurídico sob pena da decorrência de vícios de desconformidade
específicos, as designadas inconstitucionalidades.
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Sempre que qualquer norma viola a CRP é inconstitucional. Esta relação pode
ser por via de comportamentos positivos – ações – ou por via de comportamentos
negativos – omissões.
Por força do princípio da constitucionalidade dos atos consagrado no artigo 3.º,
n.º 3, da Constituição (Soberania e legalidade), todo e qualquer comportamento
infraconstitucional está subordinado à Lei Fundamental. Também por força do disposto
no artigo 204.º da CRP (Apreciação da inconstitucionalidade), aos feitos submetidos a
julgamento não podem ser aplicadas normas que infrinjam o disposto no texto
constitucional. Estamos, assim, perante uma máxima do princípio da hierarquia das
fontes de Direito, consequência da piramidal estrutura kelsiana do nosso ordenamento
jurídico, que integra a CRP como o ato padrão de conformidade relativamente a toda a
ordem jurídica portuguesa.
Esta desconformidade assume, nestes casos, a designação de
inconstitucionalidade, visto ser desconforme com um ato padrão que reveste natureza
constitucional. Desta forma, verifica-se que podem existir duas grandes categorias de
inconstitucionalidades, consoante a violação seja por via positiva ou ocorra por via
negativa dos órgãos com competência legislativa e que são respetivamente as
categorias de inconstitucionalidade por ação e de inconstitucionalidade por omissão,
que pode também ser fiscalizada pelo TC.
– A inconstitucionalidade formal
Sempre que os órgãos legislativos violam regras constitucionais que se prendem
com a forma dos atos ou regras constitucionais procedimentais, isto é, que se prendem
com a preterição de formalidades constitucionalmente estabelecidas;
– A inconstitucionalidade orgânica
Se as regras violadas são regras que se prendem com a competência, ou seja,
um determinado órgão aprova um ato para o qual a Constituição não lhe atribui essa
competência. Este vício não é mais do que uma incompetência qualificada ou agravada
,atenta a natureza constitucional da norma violada, uma vez que a CRP é o ato padrão
e de referência para todo o ordenamento jurídico nacional;
– A inconstitucionalidade material
É o vício residual e prende-se com o conteúdo e com a violação de regras ou
princípios constitucionalmente estabelecidos, como seja a violação do princípio da
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igualdade ou da não discriminação, e é sem dúvida um dos mais importantes, não
existindo qualquer forma de sanação pois a violação atinge os próprios princípios
constitucionalmente estabelecidos.
A inconstitucionalidade pode ainda ser originária ou superveniente, consoante o
ato seja desconforme desde a data da sua aprovação ou após um processo de revisão
constitucional, respetivamente. Pode também ser total ou parcial, consoante atinja todo
o diploma ou apenas uma parcela ou parte do mesmo.
Jorge Miranda estabelece ainda a diferença entre inconstitucionalidade presente
e inconstitucionalidade pretérita. A primeira desconformidade atende a uma norma que
está em vigor, a segunda é relativa a normas (infraconstitucionais) que não se
encontram em vigor.
Fiscalização preventiva
A fiscalização preventiva é aquela que é feita antes de concluído o processo de
formação da norma, ao contrário da sucessiva que ocorre apenas quando a norma está
perfeita e publicada no Diário da República. Tem como objetivo impedir a entrada em
vigor de normas aprovadas pelo poder legislativo e que são inconstitucionais, ao
contrário do instituto do direito de veto, que visa impedir a entrada em vigor de normas
que não têm o apoio político do Presidente da República.
A fiscalização preventiva deve ser requerida no prazo de oito dias, nos termos
do disposto no artigo 278.º, n.º 3, do texto constitucional (Fiscalização preventiva da
constitucionalidade), ou seja, passado o prazo de oito dias a contar da data da receção
do diploma e, se o Presidente da República, adiante designado PR, não requerer a
fiscalização preventiva da constitucionalidade, podemos concluir que o irá promulgar ou
exercer o seu direito de veto político.
Nos termos do artigo 278.º, n.º 4, da Constituição (Fiscalização preventiva da
constitucionalidade), pode a intervenção do TC ser solicitada pelo Primeiro-Ministro ou
por um quinto dos Deputados em efetividade de funções e o prazo para solicitarem tal
intervenção vem previsto nos artigos 278.º, n.ºs 5 e 6, da Lei Fundamental, ficando,
nestes casos, o PR impedido de promulgar o decreto. Estamos assim perante a figura
da promulgação vedada. Quer isto dizer que o chefe de Estado não pode, mesmo que
o deseje, promulgar o diploma, já que o TC pode ser chamado a pronunciar-se acerca
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de uma pretensa inconstitucionalidade, arguida nos termos do artigo 278.º, n.º 4, da
Constituição.
No que diz respeito ao prazo para o TC se pronunciar este é de 25 dias, nos
termos do artigo 278.º, n.º 8, da Constituição, não existindo, contudo, sanção jurídica
para o caso de o Tribunal não se pronunciar tempestivamente.
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já que os próprios tribunais oficiosamente conhecem da conformidade constitucional ou
legal das normas.
Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria, podem e devem emitir um juízo
sobre a constitucionalidade e a legalidade das normas. O incidente da
inconstitucionalidade no tribunal tem de ser suscitado antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria em causa, ou seja, antes de esgotado o poder
jurisdicional sobre a matéria a que tal questão de inconstitucionalidade diga respeito, já
que, por regra, o poder do juiz se extingue quando profere a sentença.
O TC não está vinculado à qualificação como inconstitucionalidade feita pelo
tribunal nos termos do disposto no artigo 79.º c) da Lei da Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC, (Poderes de cognição
do Tribunal). Por outro lado, a lei permite que cada cidadão possa suscitar a
inconstitucionalidade de uma qualquer norma que lhe esteja a ser aplicada e, depois de
esgotado o recurso ordinário, há a suscetibilidade de recurso para o Tribunal
Constitucional.
Mesmo que o Tribunal Constitucional julgue a inconstitucionalidade de uma
norma, ela continuará a produzir os seus efeitos na ordem jurídica, até que seja
revogada, ou que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade com força
obrigatória geral.
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forma mais específica, está em causa a conciliação entre a liberdade de conformação
normativa do legislador e o dever de legislar imposto em certos casos pela Constituição.
Em Portugal existe, à luz da Constituição de 1976, um controlo “misto-complexo”,
conforme designa Gomes Canotilho. Assim, prosseguindo com uma tradição que vem
da Constituição de 1911, está consagrado o controlo concreto e difuso (de matriz norte-
americana), cabendo a todos os tribunais controlar a conformidade constitucional das
normas, não devendo aplicar aquelas que julgue inconstitucionais (art. 204º CRP).
Existem quatro tipologias de situações de omissão constitucionalmente
relevante: situações de ausência, de desadequação e de deficiência ou insuficiência,
que passamos a explicar:
a) As situações de ausência podem consistir na omissão pura e simples de
adoção das medidas legislativas necessárias para dar exequibilidade às normas
constitucionais impositivas (por outras palavras, na falta ou inexistência total de normas
a regular uma determinada matéria). Podem, de igual modo, existir situações de
ausência quando determinadas normas constitucionais não possuem suficiente
densidade para se tornarem exequíveis por si mesmas, reenviando implicitamente para
o legislador ordinário a tarefa de lhes dar exequibilidade prática.
Como exemplo deste tipo particular de situação, a doutrina menciona a
necessidade de definição legal dos crimes de responsabilidade política e esta hipótese
só adquire autonomia quando as normas constitucionais não se configurem,
juridicamente, como ordens concretas de legislar ou como imposições permanentes e
concretas.
b) As situações de inadequação – que alguma doutrina mais recente invoca –
surgem na sequência do não cumprimento, por parte do legislador ordinário, da
obrigação de melhorar, atualizar, aperfeiçoar ou corrigir as normas existentes. Gomes
Canotilho defende que em relação a elas a omissão não consiste “na ausência total ou
parcial da lei, mas na falta de adaptação ou aperfeiçoamento das leis existentes”.
Segundo o autor, “esta carência ou défice de aperfeiçoamento das leis assumirá
particular relevo jurídico-constitucional quando, da falta de «melhorias» ou «correções»,
resultem consequências gravosas para a efetivação de direitos fundamentais”.
c) As situações de insuficiência ou deficiência podem também individualizar duas
hipóteses. Temos os casos de omissão legislativa parcial, bem como aqueles casos em
que a concretização de uma determinada norma constitucional impositiva está ela
mesma dependente do posterior desenvolvimento legislativo de uma lei já existente (por
exemplo, foi emanada uma lei de bases, a qual, porém, carece de subsequente
desenvolvimento através dos respetivos Decretos-Leis.
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3.2.1. A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
O regime constitucional da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
está previsto no artigo 283.º da CRP (Inconstitucionalidade por omissão).
A Lei Fundamental portuguesa consagra a fiscalização da inconstitucionalidade
por omissão, estabelecendo-lhe como objeto a apreciação do não cumprimento das
normas por ausência de medidas legislativas necessárias para lhe dar exequibilidade
(art.º 283º n. º1 CRP). Não se trata desta forma de um não agir no sentido amplo, mas
da não edição de atos legislativos que se afiguram indispensáveis à plena aplicação de
dispositivos constitucionais, funcionando, portanto, a sua inexistência como verdadeira
condição suspensiva da respetiva eficácia.
Estabelece o artigo 283.º da CRP que a fiscalização da inconstitucionalidade por
omissão ocorre por iniciativa do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou,
com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os quais, ao denotarem que existe
uma omissão de adoção de medidas legislativas essenciais ao cumprimento da
Constituição podem e devem levar a questão ao TC, para que este aprecie se existe,
efetivamente, violação da Constituição e possa interpelar o órgão legislativo competente
para suprir essa mesma omissão.
Evolução
A ideia de responsabilizar o Estado pelos seus atos era desconhecida antes dos
inícios do século XIX, uma vez que a manifestação da vontade do soberano não podia
gerar qualquer obrigação de indemnizar.
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Após as sucessivas Revoluções e consequentemente com a entrada em vigor
das respetivas Constituições, a ideia de responsabilizar o Estado pelos seus atos foi-se
tornando possível.
Até há uma década atrás, a responsabilidade civil extracontratual do Estado era
regulada pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967, publicado na
sequência do Código Civil, mais concretamente referindo-se ao seu artigo 501º, sobre
a chamada responsabilidade do Estado e de outras pessoas coletivas públicas.
A partir da década de 90, os sucessivos Governos tentaram aprovar,
infrutiferamente, propostas destinadas a substituir o Decreto-Lei n. º48051. Foi com XVII
Governo Constitucional que se concluiu e fez aprovar na Assembleia da República a Lei
n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
Esta lei aprova em anexo o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado e Demais Entidades Públicas, sendo que já conheceu uma alteração,
constante da Lei n.º 31/2008, de 17 de julho.
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Com efeito, os pressupostos de que depende o sucesso de uma ação de
responsabilidade civil do Estado-Legislador por omissão de providências legislativas
necessárias a tornar exequíveis normas constitucionais coincidem, com as devidas
adaptações e especificidades, com os pressupostos gerais do instituto da
responsabilidade civil. (Revista e-Pública., 2017).
Um dos requisitos gerais do instituto da responsabilidade civil é a omissão, que
se traduz na inobservância, por parte do legislador, de um dever de legislar
constitucionalmente prescrito em normas não exequíveis por si mesmas. Está em causa
um ato jurídico de omissão.
Relativamente a outro requisito, as ilicitudes, encontram-se conjugadas duas
vertentes: a vertente objetiva– incumprimento de um dever de legislar que resulta de
uma norma constitucional não exequível por si mesma; e a vertente subjetiva – violação
de direitos fundamentais (e outros) e a segurança jurídica.
Relativamente ao requisito da ilicitude objetiva - que, nos termos do n.º 5 do
artigo 15.º do diploma em analise depende da prévia verificação da inconstitucionalidade
por omissão por parte do Tribunal Constitucional, ou seja, a constatação do
incumprimento de um dever de legislar emanado por normas constitucionais não
exequíveis por si próprias, esta não pode ser declarada por uma qualquer instância
jurisdicional portuguesa, remetendo-se para o Tribunal Constitucional a competência
exclusiva para esse efeito.
Neste caso, parte da doutrina questiona a constitucionalidade do referido
normativo, uma vez que o cidadão comum não tem legitimidade processual ativa para
requerer a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão que, ao abrigo do artigo
283.º da CRP, está confinada ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça e,
com fundamento na violação de direitos das regiões autónomas, aos presidentes das
respetivas Assembleias Legislativas.
Fundamentam esta posição, argumentando que está em causa uma violação do
direito de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º da CRP) e uma restrição
injustificada do direito fundamental à reparação dos danos (artigo 17.º, n.º 3 do artigo
18.º e artigo 22.º. da CRP). Desta forma a referida doutrina aponta inconstitucionalidade
material do preceito, ou seja, desconformidade do conteúdo dos atos dos poderes
públicos com o conteúdo da Constituição.
Existem, no entanto, autores que contradizem essa teoria, entendendo que o n.º
5 do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007 não padece de inconstitucionalidade, uma vez que a
Constituição não prevê um sistema de fiscalização concreta e difusa de omissões
constitucionais. Daí que apenas o TC se possa debruçar sobre as mesmas. Salientam
ainda que tal possibilidade seria extremamente prejudicial para o Estado da Nação.
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Quanto ao requisito da culpa em sentido objetivo, a proporção da censura
imputada ao comportamento do legislador relaciona-se com as circunstâncias concretas
de cada caso e/ou à inércia do mesmo, subsequente à declaração de
inconstitucionalidade por omissão ou à declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral por parte do Tribunal Constitucional e ainda a ocorrência de eventuais
causas de exclusão da culpa.
Quanto ao requisito do dano, exige-se a presença de um dano anormal, isto é,
de um sacrifício que ultrapasse os custos próprios da vida em sociedade e que, pela
sua gravidade, mereça a tutela do direito.
Por último, o nexo de causalidade em matéria de responsabilidade por omissão
do Estado-Legislador pressupõe uma relação de causa-efeito entre a omissão
legislativa e os danos causados, de tal forma que se as normas omitidas estivessem em
vigor, o dano (anormal) não se teria produzido. (Revista e-Pública, 2017).
Capítulo IV
4. O Tribunal Constitucional
O Tribunal Constitucional é um verdadeiro tribunal com competências
jurisdicionais e os juízes que o compõem estão vinculados à Constituição e à lei,
possuindo garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e
irresponsabilidade, bem como estão sujeitos às incompatibilidades previstas para os
juízes dos outros tribunais. O TC Constitucional detém autonomia administrativa e
financeira, não estando submetido ao controlo de qualquer outro órgão, ao contrário do
que acontece com a jurisdição comum, que está submetida ao controlo por parte do
Conselho Superior da Magistratura.
O acesso ao TC é feito apenas por via de recurso interposto pelas partes ou pelo
Ministério Público. Fica assim vedada a comunicação direta entre o juiz da jurisdição
comum e o juiz constitucional, não podendo o primeiro socorrer-se da competência
especializada do segundo. Aquando da suscitação da eventual inconstitucionalidade de
uma norma, tem o juiz do processo o dever de decidir a questão ele próprio, sob pena
de omissão de pronúncia artigo 668.º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
O TC apenas interferirá no processo caso seja interposto recurso de
inconstitucionalidade e este seja admitido. Assim, o TC apreciará a questão e decidirá
pela sua inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade. Remete então a sua
decisão para o tribunal comum o qual deverá julgar o caso concreto tendo em conta a
apreciação de inconstitucionalidade.
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Às diferentes categorias de tribunais, estabelecidas no artigo 209.º da CRP, é
atribuída a competência de defesa da Constituição, podendo estes recusar a aplicação
de qualquer norma que lhes suscite dúvidas quanto à sua constitucionalidade.
O TC entra também no âmbito do artigo 204.º da CRP, enquanto guardião da
Constituição, fora das suas competências de instância de recurso, no âmbito da
fiscalização da constitucionalidade. Pode assim aferir incidentalmente da
inconstitucionalidade quando tiver de exercer qualquer das suas competências
jurisdicionais previstas na Constituição e na LTC, designadamente, nos processos
eleitorais (artigo 223.º n.º 2, alínea c da CRP e artigos 92.º e ss. da LTC), no contencioso
partidário (artigo 223.º n.º2 alínea e da CRP e artigos 103.º e ss. da LTC) e ainda no
próprio exercício de competências de fiscalização, quanto às respetivas normas
processuais, quando arguida apenas a ilegalidade da norma sub judice.
Paralelamente, nas características de modelo concentrado, o TC, ao ser um
tribunal com competência específica, vê limitada a sua atuação às questões de natureza
jurídico-constitucional. Ao mesmo tempo, é a máxima instância decisória relativamente
a essas questões. Assim, no processo de fiscalização concreta, o Tribunal
Constitucional “funciona como máxima instância de recurso no hemisfério de um
processo de controlo com base difusa.” (Morais, 2005)
O TC surge assim como “juiz dos juízes e juiz do legislador”, como refere Maria
Lúcia Amaral. É exatamente pela adoção no modelo português de um sistema misto
que se consagra um sistema de fiscalização difuso de base e concentrado no topo, com
a existência de um tribunal especializado, mas que não tem a competência exclusiva do
conhecimento das questões constitucionais, que se levantam problemas quanto à
relação entre as duas jurisdições.
Ao conferir-se a ambas as jurisdições poderes de decisão e ao atribuir-se a
qualquer juiz o poder de desaplicar normas que considere inconstitucionais, sem
necessidade de reenvio da questão para a jurisdição especializada, a ordem jurídica
está a desafiar o equilíbrio das competências. Principalmente quando, de seguida,
atribui às partes e ao Ministério Público a possibilidade de interpor recurso da decisão,
para a instância especializada.
Assiste-se então a uma sobreposição de decisões e a um afastamento da
primeira decisão por força da segunda decisão, quando contrária. Assim, dada a
existência do recurso para o TC, os tribunais comuns são obrigados a acatar a decisão
do tribunal de topo e a reformular a sua decisão de acordo com esta, o que potencia
conflitos entre a jurisdição comum e a jurisdição constitucional.
A possível conflituosidade entre as duas jurisdições advém então de o modelo
português permitir que todos os tribunais possam decidir questões de
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inconstitucionalidade, bem como, não prever a existência do mecanismo de suspensão
da instância, que atribua apenas a um Tribunal a competência de decidir e com efeitos
erga omnes. Não esquecendo também que o TC, enquanto instância máxima de
decisão nas questões jurídico-constitucionais, pode revogar as decisões dos tribunais
comuns e obrigar à reforma das mesmas, quando tenha sido interposto recurso, ainda
que apenas quanto à matéria constitucional. É então ao TC que é atribuída a última
palavra quanto à questão da constitucionalidade nos feitos submetidos a julgamento.
O TC assume assim um papel preponderante na ordem jurídica, como o guardião
superior da Constituição, e tribunal dos tribunais, dada a sua natureza especializada e
a sua posição privilegiada para a resolução dos conflitos jurídico constitucionais. Os
mecanismos de recurso obrigatório do Ministério Público para o TC são a expressão da
supremacia deste. Como consequência tem-se verificado “um efeito irradiante dos
direitos constitucionais à totalidade da ordem jurídica” (Botelho, 2010), embora as
decisões na fiscalização concreta da constitucionalidade não tenham efeitos erga
omnes, não constituindo um verdadeiro precedente, apenas podendo influenciar como
corrente jurisprudencial interpretativa conforme à Constituição.
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fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (art.º 283.º, n.º 2, CRP), as decisões
do TC proferidas em sede de fiscalização concreta traduzem-se, quando no sentido da
inconstitucionalidade de uma determinada norma, num “julgamento de
inconstitucionalidade” (decisão positiva ou de acolhimento), e, quando no sentido
oposto, num “não julgamento de inconstitucionalidade” (decisão negativa ou de rejeição)
– art.º(s) 280.º, n.º 5, e 281.º, n.º 3, CRP.
Decisões interpretativas
As decisões interpretativas implicam, frequentemente, uma interpretação
conforme à Constituição, consistindo numa técnica de decisão em que o TC, diante de
uma norma que admita mais de uma interpretação, rejeita aquela ou aquelas que
conduziriam à sua inconstitucionalidade e acolhe a interpretação que for compatível com
a Constituição. (Correia, 2002)
Na sua formulação básica, o princípio da interpretação conforme à Constituição
impõe que, “em caso de normas polissémicas ou plurissignificativas, o Tribunal
Constitucional escolha a interpretação que lhes dê um sentido em conformidade com a
Constituição”. (Canotilho, 2003).
Trata-se, portanto, de uma forma de o TC neutralizar violações constitucionais,
optando pela interpretação normativa que possibilite a emissão de um juízo de
conformidade constitucional. Todavia, a aplicação desse princípio comporta, como é
evidente, determinados limites, os quais estão adstritos, por um lado, ao teor literal do
preceito – o conteúdo da norma interpretada não pode ser totalmente redefinido – e, por
outro lado, à vontade do legislador – o objetivo pretendido pelo legislador não pode ser,
na sua essência, ignorado. (Correia, 2002)
Importa dizer que, no sistema português de fiscalização concreta, as decisões
interpretativas têm a sua origem e fundamento não só na aplicação jurisprudencial do
princípio da interpretação conforme à Constituição, mas igualmente em disposição legal
expressa, mais precisamente na norma do n.º 3 do artigo 80.º da LTC. (Rego, 2010)
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correspondência num segmento semântico autónomo do preceito que a contém,
figurando apenas como um seu segmento ou secção ideal.
Conforme assevera Gomes Canotilho, “o recurso ao «texto» para se averiguar o
conteúdo semântico da norma constitucional não significa a identificação entre texto e
norma. Isto é assim mesmo em termos linguísticos: o texto da norma é o «sinal
linguístico»; a norma é o que se «revela» ou «designa»”.
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Capítulo V
5. O papel do Provedor de Justiça
O Provedor de Justiça é, nos termos da Constituição, um órgão do Estado eleito
pela Assembleia da República, que tem por função principal a defesa e promoção dos
direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando,
através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos.
A faculdade de iniciativa da fiscalização da inconstitucionalidade tanto por ação
como por omissão que lhe conferem os art.º(s). 281º e 283º da CRP prende-se, sem
dúvida, ao art.º 23º, que fala em "ações ou omissões dos poderes públicos", seja essa
faculdade concretizada na sequência de queixa de um cidadão ou dirigida à garantia
objetiva da ordem constitucional de direitos fundamentais.
Os poderes do Provedor são assim direcionados para a defesa dos direitos dos
cidadãos e não somente de direitos fundamentais, sendo que o Provedor não deve
exercer o seu poder de iniciativa quando não estejam em causa, direta ou indiretamente,
tais direitos.
Segundo o art.º 20º, nº 1, alínea b) do atual estatuto do Provedor de Justiça,
cabe ao Provedor assinalar deficiências da legislação e emitir recomendações para a
sua interpretação, alteração ou revogação ou sugestões para a elaboração de nova
legislação, as quais serão enviadas ao Presidente da Assembleia da República, ao
Primeiro Ministro e aos Ministros diretamente interessados e, igualmente, se for caso
disso, aos presidentes das assembleias legislativas regionais ou aos presidentes dos
governos regionais.
A Constituição da República Portuguesa assume, no seu artigo 281, n.º2, a
legitimidade do Provedor de Justiça para pedir a apreciação e declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral de normas.
No mesmo sentido, confia-lhe, em exclusivo com o Presidente da República (e
em certos casos com os presidentes das assembleias legislativas regionais), a iniciativa
de requerer a apreciação e verificação do “não cumprimento da Constituição por
omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais” (art. º283, n.º 1 CRP).
A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão pressupõe a ausência de lei
que confira exequibilidade a normas (programáticas ou preceptivas) não exequíveis por
si mesmas - quer dizer, normas constitucionais que, para adquirirem plena efetividade
e conformarem as situações e relações sociais, dependem da interposição
complementadora do legislador. A formulação de recomendações ou de sugestões, ao
invés, pressupõe a existência de lei que o Provedor considere deficiente ou
inconveniente.
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O Provedor não pode fazer recomendações ou sugestões aos órgãos legislativos
relativamente a normas constitucionais não exequíveis, porque isso teria de assentar
numa competência de conhecimento da inconstitucionalidade por omissão que
pertence, em exclusivo, ao Tribunal Constitucional.
Se entender que falta a necessária lei, “o Provedor não poderá prescindir da
indagação a cargo do Tribunal (assim como, em contrapartida, fora desta hipótese, não
faria sentido que se lhe dirigisse). Algumas dificuldades apenas poderão suscitar-se
quando se trate de omissões parciais. O princípio da competência obriga; e, em última
análise, a competência constitucional do Tribunal haveria sempre de primar sobre a
competência legal do Provedor” (Miranda, 1995).
32
período de quatro anos, quando o prazo legal é de quatro meses. Só em novembro de
1998, cinco anos após a morte das crianças, é que o Tribunal enviou o caso para
julgamento. Viria a ser demasiado tarde e em Tribunal ninguém respondeu
criminalmente pelas mortes das crianças.
Um ano após o acidente no Aquaparque, os pais de uma das crianças
avançaram com uma ação contra o Estado por omissão de legislação específica para o
funcionamento de parque aquáticos. O julgamento desta ação decorreu no primeiro
semestre do ano 2000, terminando com o Tribunal de Primeira Instância a declarar o
Estado culpado por omissão legislativa.
Após a sentença, o Estado português recorreu entregando juntamente com o
recurso um parecer de Joaquim Gomes Canotilho, em que este constitucionalista
defendia não existir relação entre a falta de legislação sobre parques aquáticos e a
morte das duas crianças. O parecer responsabilizava a empresa por ter negligenciado
a vigilância no parque.
Os pais apresentaram uma contra-alegação ao recurso do Estado, nela incluindo
pareceres do professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa Freitas do Amaral
e do então diretor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Rui
Medeiros.
A 15 de Maio de 2002, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão do
Tribunal de 1º Instancia reafirmando a inconstitucionalidade por omissão.
Perante esta decisão, o Estado português voltou a recorrer, desta vez junto do
Supremo Tribunal de Justiça. Apesar do recurso hierárquico, a então Ministra da Justiça,
Celeste Cardona, manifestou disponibilidade para encerrar o assunto por via
extrajudicial.
As partes chegaram a acordo, num documento assinado no dia em que
passavam nove anos sobre a morte de uma das crianças, pondo fim à ação cível contra
o Estado por omissão de legislação e a todos os litígios pendentes.
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Canotilho começa por levantar uma questão que considera mais gravosa,
nomeadamente o facto do processo crime intentado contra a empresa proprietária do
Aquaparque ter prescrito, referindo no documento que “era por demais evidente que o
Estado, deixando, como deixou, prescrever o procedimento criminal, deveria ser
considerado responsável por facto da administração da justiça”.
Baseando-se no art.º 20 da CRP, Gomes Canotilho frisa que num estado de
direito democrático-constitucional os cidadãos têm direito à decisão da causa num prazo
temporalmente adequado, estando reunidos, a seu ver, todos os pressupostos da
responsabilidade do Estado.
Em virtude de ações ou omissões dos titulares de órgãos de administração da
justiça praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, Canotilho
considera que “houve violação de direitos, liberdades e garantias, desde logo, do direito
de acesso ao direito e à justiça”. Como nota crítica, o autor afirma então que “perdeu-
se uma boa causa para testar e comprovar a responsabilidade jurídico-constitucional do
Estado”, acrescendo que foi perdida uma boa ocasião para esclarecer “se a prescrição
do procedimento criminal não será, em certos casos, um ato ilícito da função
jurisdicional”.
Contrariando a sentença do Tribunal de Primeira Instância, Gomes Canotilho
afasta então a existência de omissão ilícita (que seria pressuposto de
inconstitucionalidade por omissão) com base no nexo de causalidade, considerando que
este só estaria verificado quando “a verificar-se uma atuação positiva e
constitucionalmente exigida do poder legislativo, o dano, segundo um juízo de
probabilidade próximo da certeza, não se teria produzido”. Concretamente, refere então
que não há lei que valha perante omissões dolosas como as que se verificaram no caso
dos autos – a não colocação de grelhas de proteção e inexistência de vigilância
adequadas.
Artigo 22.º
Responsabilidade das entidades públicas
O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma
solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações
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ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício,
de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
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particular. Pelo contrário, estando em causa o direito à vida, a questão ganha novos
contornos. (…) Como atesta o caso Aquaparque, a omissão em causa releva para
efeitos da privação pura e simples do direito à vida de um cidadão”.
6.2 O acórdão
Uma leitura do acórdão do Tribunal da Relação permite-nos perceber com
clareza a posição concordante do juiz com o entendimento transmitido pelo parecer de
Freitas do Amaral e Rui Medeiros.
Sustentado na postura da generalidade da doutrina portuguesa, para a qual o
artigo 22º da Constituição consagra o tipo de responsabilidade subjetiva do Estado por
atos legislativos ilícitos e culposos, o acórdão recusou assim os fundamentos do
recurso, confirmando a existência de uma omissão ilícita por parte do Estado.
A questão da competência para fiscalizar a existência de inconstitucionalidade
foi usada pelo Estado como argumento, considerando este que perante a inatividade do
legislador “não pertenceria ao tribunal dar execução ao principio constitucional do artigo
22º da CRP (…) se se entendesse existir um verdadeiro e especifico dever de legislar
(…) só o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar”.
Sobre este ponto refere o acórdão que “a omissão por inconstitucionalidade, ao
contrário do que alega o recorrente, pode ser apreciada pelos tribunais judiciais, e não
apenas pelo Tribunal Constitucional”, fundamentando com a posição de Jorge Miranda:
"a inexistência de um sistema de fiscalização difusa da inconstitucionalidade por
omissão, não impede o reconhecimento jurisdicional da omissão que seja pressuposto
da responsabilidade”.
Perante os diversos acidentes ocorridos nos parques aquáticos e as chamadas
de atenção do Instituto do Consumidor e da Deco para os riscos que envolviam os
parques aquáticos e para a necessidade de legislação própria para esses meios de
diversão, considerou então o juiz que “devia o legislador ter aprovado legislação
adequada para os parques aquáticos a fim de proteger a vida dos seus utentes. Dúvidas
não há que a omissão do dever de proteção do direito à vida e à segurança das pessoas,
através da não aprovação de legislação especifica sobre parques aquáticos, constitui
uma grave violação do dever de proteção dos direitos fundamentais que recai sobre o
legislador”.
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Conclusão
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Bibliografia
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, 2013
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Netgrafia
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