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qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!

)
quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso
para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição
de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino,
quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar bênção. Ele me recusou a mão, disse
homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade
de velhos patriarcas. Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote.
Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha
servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas. Vovô tirou o paletó, desabotoou o
colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para
quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde,
a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô
Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação. No outro dia dei com vovô Tomé aparando
pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma
colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua
utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe
ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não,
gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo
absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar
mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens
de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por
perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se
dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse.E vovô
Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele
porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E
brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico
imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens.
Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do
não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações,
apenas ia aparando as suas fitas e caracóis. Vovô não tinha a pachorra e a tranqüilidade
de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores
madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não
podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisas e
uniformes, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ela já agora conceituoso. Ele
tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética
nenhuma, era um puro artista do nada. Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se
aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha
diante de si o puro nada. E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para
Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que
me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas
perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha
que ele tinha morrido. Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele
morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar,
tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada. Vovó Naninha me deu o seu
canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu
nada.
(In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do
século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2000)
fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que
começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, de caracol, sem pressa,
preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento a conversa, que
esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de
certa dama de nossa cidade. E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados
para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para
atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera.
Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não
minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida
atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas. Seu Vítor
Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se
dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de
palmas. Seu Bê, me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para
comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque
francês. Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre
ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura
mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a
Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível
morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de
alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir
depois da morte por enforcamento de tio Zózimo. Mas antes mesmo do primeiro desses
tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito
em parte que foi a tentativa de manter as mãos ocupadas para vencer a opressão e a
angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava
fazer um longo, caprichando e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito. Os outros
podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô
Zé Mário, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão
e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovó Tomé. Mas é um caso
longo não é para agora. Não, não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em
vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um
circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele,
ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais
velhos lá no alto das arquibancadas. Me lembro (e isso mamãe e vovó Naninha
confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado
no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas
velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida.Quando vovô Tomé viu e me chamou.
João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma
idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material. Ele me deu a mão e eu
estava muito feliz. Não era meu aniversário quando, como fazia com os netos e
afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver
Deus. No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô
perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com
o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu
Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu
levo. Seu Bernardino olhou pra min, olhou para vovô Tomé, e disse com ficamos, seu
Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu
Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe
mandarei no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia
acreditar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé. Aprendi
então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer
cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e
artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta
nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e
mesmo estranhos. Os elogios que recebiam valiam por uma paga ao artista, que acabava
por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca
ser usada. O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno,
gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da
antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto
da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de
verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos
oficiais. O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria.
Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos
anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à
extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional,
que não mais existia, e passear de carro pela cidade. Tudo se desculpava no coronel
Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-
grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele
rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do
Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a
própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram
outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel
Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau finamente
trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir
para coisa nenhuma, puro deleite. E agora se apresenta a pura, a sublime, a
extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia
aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo.
Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas
do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a
salvação. Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do
que afirmava os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto)
vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada , era um dos
amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se
atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à
juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da arte.
Vovó Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da
primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao
sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e
isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara,
cada vez mas longe e mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o
etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a sue
lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas, nenhuma
delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando
viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua
aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico,
acolitou o Dr. Viriato. Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência,
aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vence
a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir. O mais elevado ideal dos membros
dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando
atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro
aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a
do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação. Eram os carapinas do
mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o
sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher
de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal
noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao
vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe
(como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da
historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa
só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos
nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético
linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário. Não
que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passa-tempo (santo remédio
para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se
dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-
nascidos. Tão alto-crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão
antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos
mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era. Quando, quem inventou
tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu
Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e
aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à
gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu
acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que,
partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua
vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos
protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada. Seu Donga ficou um
tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim,
dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas
cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito
aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia.Porque havia três categorias de livres
oficinas que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples
canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do
compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do
nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos
mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e
meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível
ensinar a arete e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas.A primeira
categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação
de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto,
não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a
receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante.Não
há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera
operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no
pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo
do chicote. Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos
de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral
exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para
auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a
madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres. A segunda categoria, os
marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que
falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam
Desventurada que eu sou, por ser tão indomável! Não era para isto que eu vos tinha criado,
ó filhos, não foi para isto que eu sofri trabalhos e passei torturas, suportando as dores
agudas de dar à luz. Coitada de mim, que em tempos tive tanta esperança em vós, que
havíeis de amparar-me na velhice, e que, depois de morta, me havíeis de arranjar por vossas
mãos, piedosamente, causando inveja aos homens; e agora se foi o doce pensamento.
Porque, privada de vós, eu levarei uma vida amarga, e para mim dolorosa. E vós nem
sequer ao menos vereis a vossa mãe com esses queridos olhos, porque tereis passado a outro
gênero de vida. Ai! Ai! Porque fitais em mim os olhos, ó filhos? Porque sorrides pela última
vez? Ai! Ai! Que hei de eu fazer? O ânimo fugiu-me, mulheres, desde que vi o olhar
límpido dos meus filhos. Não, eu não seria capaz. Deixá-las ir, as minhas decisões
anteriores. Levarei desta terra os filhos, que são meus. Para que hei de eu, para afligir o pai
deles com a sua desgraça, infligir a mim duas vezes os mesmos males? Não, eu não, por
certo. Deixá-las ir, as minhas decisões. E contudo, que se passa em mim? Quero provocar o
escárnio dos meus inimigos, deixando-os de castigo? Tenho de me atrever. Ah! Mas que
vileza a minha, ter sequer admitido pensamentos de brandura no meu espírito! Ide, ó filhos,
para casa. A quem não agradar assistir aos meus sacrifícios, é consigo. O meu braço não
estará enfraquecido. Ai! Ai! Mas não, meu coração, tu, ao menos, não farás isso. Deixa-os,
ó desgraçada, poupa as crianças. Vivendo lá conosco, eles serão a tua alegria. Juro pelos
gênios da vingança, que estão no Hades, nunca acontecerá que eu entregue os meus filhos
aos inimigos para lhes sofrerem as insolências. É assim, absolutamente, e não há que fugir-
lhe. E é certo que com a coroa na cabeça, envolta no peplos, a noiva perecerá, eu bem o sei.
Mas eu sigo pelo caminho mais desgraçado, e a estes vou mandá-los por um ainda pior!
Quero dizer adeus aos meus filhos. Deixai-me, ó filhos, deixai à vossa mãe apertar a vossa
mão direita. Ó mão tão querida, ó boca mais cara de todas, e figura e rosto nobre dos meus
filhos, gozai de felicidade, mas lá; que a daqui vosso pai vo-la tirou. Ó doce abraço, ó terno
corpo e sopro suavíssimo dos meus filhos! Ide, ide. Já não estou em estado de olhar mais
para vós, que sou dominada pelo mal. E compreendo bem o crime que vou perpetrar mas,
mais potente do que a minha vontade, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os
mortais.

4) Considerando o texto de Autran Dourado reproduzido abaixo, discuta a


orquestração da narrativa, tendo em vista as implicações do jogo entre autor,
narrador e personagem.

Os Mínimos Carapinas do Nada

No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu


Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes,
no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e
gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os
potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima,
maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se
comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio... Nas janelas das casas terreiras
de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas,
onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se
debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na
esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e
novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era
carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de
futura e soberba galhada...Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos
sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas
Encontrar em cada escritura uma metáfora da escrita tornou-se um exercício
crítico demasiado óbvio para se extrair dele algum benefício ainda.
(CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993. p. 244.)

Analise o poema seguinte, de Paulo Henriques Britto (Macau, 2003), levando em


conta a afirmação frequente de que, num mundo pouco afeito à poesia – e por isso
mesmo – os poetas tendem a produzir discursos de pequeno alcance, voltados ao
próprio fazer poético, ensimesmados.

BIODIVERSIDADE

Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,


que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.

Porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,


como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.

Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,


de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,


incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?

3) Segundo a concepção de Goethe (apud LESKY, Albin. A Tragédia Grega, São Paulo:
Perspectiva, 1996. p. 31), todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. E, de
acordo com Vernant, a tragédia “tem, como matéria, a lenda heroica. (...) Mas, no espaço do
palco e no quadro da representação trágica, o heroi deixa de se apresentar como modelo,
como era na epopeia e na poesia lírica: ele se tornou um problema. O que era cantado como
ideal de valor (...) acha-se no decorrer da ação e através do jogo dos diálogos, questionado
diante do público; o debate, a interrogação de que o heroi é doravante objeto atingem,
através de sua pessoa, o espectador do século V, o cidadão da Atenas democrática”
(VERNANT, Jean-Pierre e NAQUET, Pierre Vidal, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, São
Paulo: Perspectiva, 2002,. p. 91).

Tendo isso em vista, explique o modo como essas concepções do trágico se manifestam
no trecho abaixo da Medeia, de Eurípides, versos 1021-1080.

Ó filhos, filhos, vós tendes país e tendes morada, na qual, depois de terdes abandonado esta
desgraçada, habitareis, para sempre privados da vossa mãe. Eu tenho de partir para o exílio,
para outra terra, antes de ter gozado a vossa companhia e de vos ter visto felizes, antes de
ter adornado o leito, e a noiva, e o tálamo, e de ter pegado nos fachos nupciais. Oh!
PARTE I
1) Leia a citação e responda ao que se pede.

A leitura é uma experiência e se encontra, como tal, submetida a um


conjunto de variáveis que a priori não são da competência da teoria literária.
No grande jogo das interpretações, as forças do desejo e as tensões da
ideologia têm um papel decisivo. Em todo caso esse jogo só é possível na
medida em que os textos o permitem. Isso não significa que um texto
autoriza qualquer leitura, mas simplesmente que ele é marcado por uma
precariedade essencial, que ele próprio possui um jogo. Aqui, talvez, um
espaço para se explorar. A leitura, tal qual aparecerá neste livro ou tal qual
ali será tratada, é um objeto construído (a construir). Não se trata de estudar
as leituras realmente praticadas desta ou daquela obra nesta ou naquela
época. Trata-se de examinar como um texto expõe, até mesmo “teoriza”,
explicitamente ou não, a leitura ou as leituras que fazemos ou podemos
fazer; como ele nos deixa livres (ou nos torna livres) ou como ele nos
reprime.
(CHARLES, Michel. In. Rhétorique de la lecture [Retóricas da leitura]
(1977), apud. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002. p.
31)

O texto acima, de autoria de um precursor dos estudos da recepção na França,


pressupõe que a teoria literária tivesse sua competência limitada no tocante às
“forças do desejo” e às “tensões da ideologia”. Por outro lado, desde a Poética
aristotélica até as tendências críticas da pós-modernidade, poucas vezes se buscou
delimitar precisamente esse campo de competência. Caracterize essa problemática
traçando um panorama das diferentes tendências da crítica literária surgidas no
século 20.

***

PARTE II
Responda uma das questões abaixo, a sua escolha.

2) Leia os dois trechos abaixo e responda ao que se pede.

O curso da História no Ocidente tem resultado de um esforço cumulativo


para apartar o homem do mundo-da-vida, graças à crescente divisão de
tarefas e à supremacia do valor-de-troca e das suas máscaras políticas sobre
o trato primordial e afetivo com as pessoas e a Natureza. Nesse sentido, os
nossos tempos são, como já observavam, com filosofias opostas, Leopardi e
Hegel, hostis à poesia, que só se tolera como atividade ilhada, abstraída da
prática social corrente e, daí, reificada.
(BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1993. p.
120)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
Tel.: (41) 360-5097

ÁREA DE ESTUDOS LITERÁRIOS

PROCESSO DE SELEÇÃO 2009/2010 – PROVA ESCRITA

CADERNO DE QUESTÕES

INSTRUÇÕES

1. A prova terá duração máxima de 4 horas.

2. No Caderno de respostas, entregue em separado, devem ser evitadas marcas de


identificação, exceto na capa, no campo indicado. Portanto, NÃO PREENCHA OS
CAMPOS constantes nas folhas internas do Caderno de respostas. Marcas de
identificação nas folhas internas daquele Caderno poderão resultar em
desclassificação do candidato.

3. A prova prevê que o candidato responda a um total de duas questões.

4. A prova está dividida em duas partes. A questão da Parte I é obrigatória para todos
os candidatos. Não respondê-la implica desclassificação.

5. A outra questão deve ser escolhida entre as demais, na Parte II, a critério do
candidato.

6. Este Caderno de Questões e o Caderno de Respostas deverão ser entregues aos


Aplicadores.

7. Os resultados desta prova serão divulgados pela internet, na data prevista pelo
Edital.

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