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MANUAL DE ÉTICA GERAL

Os autores:
Padre Elton João C. Laissone
Padre Jorge Augusto
Padre Luís Alberto Matimbiri

BEIRA
FEVEREIRO DE 2017

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INTRODUÇÃO

O discurso ético é tanto antigo quanto é antiga a história do ser humano. Desde as suas origens,
sobretudo quando ganhou a consciência da sua presença como ser diferente, e desde que começou
a fazer a experiência da sua existência e busca de realização, o ser humano sempre se inquietou
sobre como estar com os outros, como agir, como deve ser e fazer. Por isso, pode-se sustentar que
o discurso ético inicia com grandes questionamentos, tais como: Quem sou eu? De onde vim? Para
onde vou? Em que mundo vivo? Como é que vivo? Até quando viverei? Como viver e agir perante
os outros e a natureza? E o que será o depois da minha partida deste mundo?

Boff refere que o capitalismo neo-liberal levou-nos a acreditar em dois infinitos totalmente
ilusórios: o infinito dos recursos naturais (convencimento de que os recursos que a natureza nos dá
são sempre renováveis) e o infinito do crescimento (a ideia do crescimento ilimitado, sobretudo o
crescimento económico).

E, com estes infinitos, o séc. XX legou-nos uma aliança entre dois tipos de desumanização:

a) O primeiro vem das profundezas do tempo (a nossa própria história cometeu erros) e traz
guerra, massacre, deportação, escravatura, fanatismo, entre outros;
b) O segundo vem do âmago da racionalização, que só conhece o cálculo e ignora a pessoa,
seu corpo, seus sentimentos, sua história, sua alma, sua emoção, e que multiplica o poderio
da ciência e da técnica, criando assim uma cultura de morte e de servidão técnico-industrial.

Portanto, estamos diante duma aliança de morte: é só pensar nas armas nucleares (guerras ABC 1),
nos novos perigos (morte ecológica, drogas, violências, solidão, angústia existencial, e muito mais).
De facto, hoje é comum ouvir expressões como: este nosso século sofre de falta de autenticidade,
o séc. XXI ou será ético ou não será; a espécie homo está a ser auto-destruidora; cuidemos da nossa
terra, paremos de agredir e de destruir o nosso planeta, pois, o nosso futuro e o da terra é o mesmo.

Por meio duma profunda conversão, precisamos de repensar a nossa aliança com a própria vida,
com Deus, connosco mesmos e com a natureza em que vivemos e da qual fazemos parte.

O presente manual nasce da necessidade de despertar o universo ético em todos os estudantes da


Universidade Católica de Moçambique. A Vice-reitoria para a área da Pastoral e Extensão

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Armas atómicas, biológicas e químicas.
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Universitária, tendo verificado a existência de várias cadeiras ligadas à ética nas diferentes
Unidades Básicas, e sentido a dispersão em relação à orientação ética plasmada na política da
própria Universidade, achou por bem propor um único manual a todas elas como forma de
harmonizar a orientação ética nas mesmas Unidades Básicas para os estudantes dos primeiros anos.
Tal ideia foi aprovada pela Reitoria. Assim, três capelães foram indicados para elaborar o manual
e apresenta-lo no encontro de todos os capelães. O manual foi elaborado e apresentado. Depois, a
Vice-reitoria para a área da Pastoral e Extensão Universitária deu a forma final ao manual e o seu
devido encaminhamento para que o manual pudesse hoje estar nas nossas mãos.

É de salientar que o objectivo do manual é de oferecer, em termos gerais, as ferramentas necessárias


para despertar nos estudantes a postura ética desejada pela Universidade, e tão querida nos dias de
hoje, pois assim se reconhece a contribuição que ela está a dar para a formação do ser humano, a
partir da visão cristã que ela tem do ser humano e do mundo. Por isso, este manual entra na lista
daqueles manuais característicos, identificativos e distintivos da UCM.

Sendo assim, o manual apresenta a seguinte estrutura: A primeira unidade apresenta a natureza da
ética. A segunda unidade faz um breve historial da ética desde a antiguidade até aos nossos dias, e
inclui a questão dos ideais éticos. A terceira unidade fala da pessoa humana como fundamento da
ética. A quarta unidade fala da pessoa humana como sujeito de valores. A quinta unidade fala dos
direitos e dos deveres fundamentais da pessoa humana. A sexta unidade apresenta a pessoa humana
como um ser social e político. E a sétima unidade discute a problemática ligada à ética, à pessoa
humana e ao ambiente, centrando a sua reflexão na Carta Encíclica do Papa Francisco Laudato Si’
sobre o cuidado da nossa casa comum.

Portanto, espera-se que este manual, aparentemente denso de conteúdos, (a) possa, de facto,
despertar a sensibilidade ética em todos os que dele fizerem uso, sobretudo aos docentes e
estudantes, (b) possa oferecer as ferramentas necessárias para a adequada compreensão do dever
profissional dos estudantes por meio das cadeiras de ética profissional dada nos finais da sua
formação académica, e (c) possa também provocar uma profunda conversão, de modo a podermos
repensar a nossa aliança com a própria vida, com Deus, connosco mesmos, com os outros e com a
natureza em que vivemos e da qual fazemos parte.

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UNIDADE I – NATUREZA DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA PRIMEIRA UNIDADE


1.1- Estudo etimológico do termo ética
1.2- Riqueza terminológica e expressiva
1.3- Objecto de estudo da ética
1.4- Para uma conceitualização e definição da ética
1.5- Características da ética
1.6- Tipologia da ética
1.7- Ética e moral

OBJECTIVO PRINCIPAL DA PRIMEIRA UNIDADE


Esta unidade pretende levar os estudantes a conhecer a natureza da ética a partir da sua etimologia,
do seu objecto, dos seus métodos, das suas tipologias, procurando também discutir a
conceitualização e a definição da ética e a distinção entre a ética e a moral.

1.1- Estudo etimológico do termo ética

Etimologicamente, o termo “ética” vem do grego ethos. Quando escrito éthos, com acento agudo
(em grego, inicia com a letra épsilon), representa a ideia fundamental de usos, costumes, que na
vida de um povo ocupam um lugar importante no conceito próprio de moralidade, e, portanto,
identificando-se mais com a moral e, quando escrito êthos, com acento circunflexo (em grego,
inicia com a letra êta), significa carácter ou modo de ser, e dá, portanto, a ideia de disposição
interior, de personalidade. Portanto, podemos dizer que o universo ético compreende esses dois
pôlos: o pôlo exterior (próprio da moral, dos costumes), e o pôlo interior (próprio da interioridade,
do carácter).

Originariamente, o conceito era tomado a partir do seu carácter exterior, de vida colectiva. Daí o
conceito ser usado para acções que promovam o bem comum ou a justiça no meio social. Devido
ao facto de que os gregos a utilizavam no sentido de hábitos e costumes que privilegiassem a boa
vida e o bem viver entre os cidadãos, com o tempo tal palavra passou a significar modo de ser ou
carácter. Enfim, tinha que se garantir um modelo de vida que deveria ser adquirido ou conquistado
pelo homem por meio da disciplina rígida que lhe formaria o carácter e que seria transmitida aos
jovens pelos adultos. Na Grécia, o homem aparece no centro da política, da ciência, da arte e da
moral, uma vez que para sua cultura até os deuses eram humanos com seus defeitos e qualidades.

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O primeiro filósofo que escreveu sobre ética foi Aristóteles. Com esse título, Aristóteles escreveu
duas obras: Ética a Nicómaco (seu filho) e Ética a Eudemo (seu aluno).

Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às ideias de felicidade da vida presente e do sumo
bem. Nos textos antigos, ética quase sempre parece estar relacionada com desejo inato ao homem
de busca da realização do sumo bem. A filosofia grega preocupa-se com a reflexão sobre ética
desde os primórdios. Isso porque ética, ou a sede de justiça, é uma das três dimensões da filosofia.
As outras duas seriam a teoria e a sabedoria. Em Roma, ética passa a ser denominada “mores”; que
significa “moral”. No direito romano a palavra ética refere-se a normas de conduta ou princípios
que regem a sociedade ou um determinado grupo e em uma determinada época. Numa palavra: lei.

A ética é histórica, o que se deve ao facto de estar solidificada em noções de valor, que mudam à
medida que se descobrem novas verdades. O agir ético não será apenas uma simples reprodução
de acções das gerações anteriores, mas uma actividade reflexiva que oriente a acção a seguir num
determinado momento de nossa vida pessoal. Quando surgem questionamentos sobre a validade
de determinados valores ou costumes, e a realidade exige novos valores que possam orientar a
ética, surge a necessidade de uma teoria que justifique esse novo agir, uma vez que é impossível a
acção ética sem que o agente compreenda a racionalidade dessa acção. Aqui aparecem os filósofos
que produzem uma reflexão teórica que oriente a prática ou a crítica do viver ético.

1.2- Riqueza terminológica e expressiva

Os significados principais da ética podem ser sintetizados da seguinte forma, como expõe Carlos
Maria Martini, na sua obra Viagem pelo vocabulário da ética (citado em Ética geral:
apontamentos, s.a.: p.2):

a) Ética significa costume, o que se costuma fazer, aquilo que normalmente se faz. Ethos, em
língua grega, indica o costume social, o modo de comportamento próprio de uma determinada
sociedade.

b) Outro significado mais específico indica uma sociedade bem orientada, isto é, uma sociedade
que se pode definir ‘boa’, que segue comportamentos que brotam da experiência e da sabedoria,
como elementos positivos para a paz, a ordem social e o bem comum.

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 Vem depois o sentido absoluto que significa: aquilo que é bom em si mesmo, aquilo que
deve ser feito ou evitado a todo o custo, o que é digno do homem, o que se opõe ao que é
indigno, o que não é negociável, nem se pode discutir ou transgredir.

c) Por fim, temos também o significado de reflexão filosófica sobre os comportamentos humanos
e sobre o seu sentido último.

Diz o cardeal Martini:

Penso que a ética deva ser principalmente um lugar onde as pessoas sejam
permanentemente encorajadas, animadas e confortadas. A grande palavra da ética é: podes
fazer mais e melhor, na vida és chamado a ser algo superior; é possível ser honesto e é
uma aventura extraordinária do espírito. (Martini, 1994, citado em Ética geral:
apontamentos, s.a.: p.2)

1.3- Objecto de estudo da ética

A ética estuda as acções humanas. Sendo assim, seu objecto distingue-se em material e formal. O
objecto material diz respeito aos actos humanos que se devem distinguir dos actos do homem.

Os actos humanos são acções praticadas de forma livre, consciente, deliberada e voluntária, acções
essas que afectam a própria pessoa, a outras pessoas, ou a determinados grupos sociais ou mesmo
a sociedade no seu todo.

Os actos do homem são aqueles praticados de modo inconsciente e involuntário, ou seja, são
aqueles actos em que a vontade humana não entra ou a sua liberdade não entra em jogo.

O estudo do objecto da ética leva-nos à conclusão de que a pessoa antes de praticar qualquer acção
deve analisar os prós e os contras e estar preparada para assumir os riscos e as consequências. Por
outras palavras, toda a acção ética deve visar algum bem. Portanto, ela deve buscar todos os meios
possíveis para alcançar esse tal bem.

1.4- Para uma conceitualização e definição da ética

A ética, partindo do seu étimo, pode ser entendida como o abrigo que confere protecção e segurança
aos indivíduos (cidadãos), aqueles responsáveis pelos destinos da pólis (cidade). Ela é, por um
lado, o produto das leis erigidas pelos costumes, e, por outro, das virtudes e hábitos gerados pelo
carácter dos indivíduos. Por isso, a ética não só diz respeito aos costumes culturais ou sociais, mas
também se refere ao perfil, a maneira de ser e a forma de vida adquirida ou conquistada pelo
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homem. A ética imprime o carácter da pessoa: mostra-me como te comportas e eu te direi o grau
da tua ética.

A ética pode ser definida como a teoria acerca do comportamento moral dos homens em sociedade,
ou seja, ela trata dos fundamentos e da natureza das nossas atitudes, e se manifesta efectivamente
na conduta do homem livre. Por isso, o mundo do ethos é composto por dois lados: a colectividade
(intersubjectividade) e a subjectividade (individualidade). Existem condicionantes internos
(carácter) e externos (costumes) que determinam a conduta do indivíduo. Portanto, o que se está a
dizer é que a prática do bem e da justiça envolve o respeito às leis da pólis (heteronomia) e a
intenção individual de cada sujeito em fazer o bem (autonomia).

Mas a boa conduta é também determinada pela educação (em grego paidéia). Paidéia é todo o
processo de formação do homem grego. É, portanto, o que chamamos de educação. Ela fornece as
regras e ensinamentos morais aos indivíduos; orienta os juízos e decisões dos homens no seio da
comunidade; e transmite valores acerca do bem e do mal, do justo e do injusto. Ela constitui-se
como elemento fundamental para a construção da sociabilidade do ser humano.

A função do ethos é promover a excelência moral, ou seja, a prática das virtudes (areté). E o
exercício das virtudes tem como fim último a felicidade (a vida boa, a vida virtuosa). A ética trata
do comportamento do ser humano, da relação entre sua vontade e a obrigação de seguir uma norma,
do que é o bem e de onde vem o mal, do que é certo e errado, da liberdade e da necessidade de
respeitar o próximo. Ela se impõe como a condição fundamental de possibilidade para a prática das
virtudes e o exercício da cidadania.

A ética também diz respeito ao saber científico específico que caminha em direcção ao bom. O
ético expressa uma qualidade ou uma dimensão da realidade humana em relação à responsabilidade
das pessoas. O ético é o que revela bom carácter, boa conduta, ao passo que o antiético é o oposto,
ou seja, o que manifesta conduta duvidosa, uma conduta que deixa muito a desejar.

1.5- Características da ética

Estas anotações de síntese levam-nos à reflexão das características da ética. De facto, como
resultado da análise do universo moral, surgem diversas características próprias deste fenómeno.
Das várias, e inspirados no manual de Ética geral: apontamentos, vamos apresentar sete, que
achamos serem principais.
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1.5.1- A ética é irredutivelmente diferente

Ainda que confundível e, de facto, frequentemente confundido com outras realidades, o moral é
essencialmente diferente e não redutível a elas. O que se verifica nomeadamente com relação aos
imperativos ou normas sociais, religiosas, jurídicas, etc. As diversas tentativas ‘redutoras’ do moral
– como a psicanalítica, a teoria emotiva, a da escola sociológica, etc., – revelam-se insustentáveis,
cometendo frequentemente o paralogismo que consiste em passar indevidamente do que se refere
à génese psicológica para o que diz respeito à essência ou natureza da realidade em estudo.

1.5.2- A ética é relativa à liberdade

O bem ou o mal moral só se consideram existentes, propriamente falando, nos actos livres; só são
atribuídos às pessoas que agem (ou são supostas a agir) livre e responsavelmente. Por outras
palavras, a moralidade é universalmente percebida como implicando essencialmente a liberdade.
O valor moral apresenta-se como o valor próprio do agir livre e do agente livre.

1.5.3- A ética é “pessoal”

Formulando de outro modo o acima dito: é convicção universal que a moralidade não se verifica
em qualquer acto realizado por um ser humano, mas apenas naqueles de que este é verdadeiro
autor, que pode chamar verdadeiramente ‘seus’ e pelos quais é, por isso mesmo, responsável. Tais
actos, verdadeiramente ‘pessoais’, são os que, em terminologia escolásticas (também adoptada
pelos autores não escolásticos) se designa por actos humanos, por contraposição aos actos ditos
simplesmente do homem (mas não da pessoa).

1.5.4- A ética é “humana”

O valor moral está assim ligado ao que no ser humano é mais ‘seu’, mais pessoal, mais humano.
Este carácter eminentemente humano do moral patenteia-se eloquentemente no facto conhecido da
linguagem comum, que reserva o sentido moral aos adjectivos bom/mau quando usados sem
qualquer especificação: dizer de alguém que é bom, sem mais, equivale a dizer que é moralmente
bom. O que sugere que o valor do ser humano como ser humano, está ligado ao que ele vale
moralmente.

O valor moral é universalmente humano: coextensivo a todos os sectores da existência humana e a


todos os indivíduos humanos. Isto significa duas coisas:
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a) O valor próprio do ser humano enquanto ser humano (o valor moral) não se refere apenas a um
determinado sector ou sectores da vida humana, mas estende-se a todos (individual, familiar,
profissional, económico, etc.). A moralidade penetra toda a vida humana, desde que aí esteja
implicada a liberdade.
b) O mundo moral estende-se a todos os seres humanos, a todos os seres que partilham a mesma
‘natureza’ que os faz seres humanos. E isto em nada contradiz, antes pelo contrário, a
diversidade individual e as variações históricas entre os homens.

1.5.5- A ética é relativa a normas

Como se verifica em todas as avaliações, também a atribuição de valor moral aos actos humanos e
seus autores é feita mediante a sua confrontação (implícita ou explícita) com as normas que se
julga deverem reger a conduta humana. Nisto consiste precisamente o “emitir um juízo de valor”,
afirmar a conformidade ou não entre o que ‘é’ e o que ‘devia ser’.

1.5.6- A ética é incondicional

A normatividade moral é geralmente concebida – pelo facto de que é experimentada desta forma
por cada um – como possuindo um carácter de irrecusabilidade, graças à qual o ser humano,
mesmo tornando-se capaz de a desrespeitar, não tem a possibilidade de a anular. Portanto, a
exigência moral apresenta-se como incondicional, absoluta e categórica, ou seja, nem ‘hipotética’,
nem ‘disjuntiva’. Tudo isto aparece mais claramente, embora não exclusivamente, nos casos em
que o valor moral se apresenta como obrigatório, como dever.

1.5.7- A ética é transcendente

O carácter incondicional ou absoluto de que aparece revestido o valor moral faz com que ela surja
como superior a todos os outros (com a excepção, até certo ponto, do valor religioso, o qual está
de resto intimamente ligado a ele), preferível a qualquer outro, não sacrificável perante nenhum,
inegociável. Isto faz com que, em vez de se apresentar como um valor para o ser humano, parece
que, pelo contrário, é o ser humano que para ele está orientado e a ele submetido. E esta é uma
questão fundamental e decisiva, em cuja elucidação culmina a tarefa da filosofia moral.

1.6- Tipologia da ética

Existem vários tipos de ética. Dentre eles podemos destacar os seguintes:


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a) Ética filosófica: reflecte sobre o significado do ser ético. A questão fundamental que se coloca
aqui é, “o que significa ser ético?”
b) Ética religiosa: faz o confronto entre a ética e a religião e vice-versa.
c) A ética cristã: reflecte sobre o agir cristão. Reflecte sobre a identidade ou originalidade cristã.
d) Ética social: reflecte sobre o agir da sociedade, o ordenamento das instituições sociais, e se
correspondem aos padrões éticos.
e) Ética sexual: reflecte sobre os aspectos da ética que dizem respeito a questões da sexualidade
humana, incluindo o comportamento sexual humano. Em termos gerais, a ética sexual diz
respeito à conduta humana em relação a questões de consentimento, das relações sexuais antes
do casamento ou quando casado (tais como a fidelidade conjugal, sexo antes do casamento e
sexo fora do casamento).
f) Ética profissional: reflecte sobre o agir deontológico (deveres) e diciológico (direitos) na
profissão.
g) Ética económica: reflecte sobre o agir económico, o bom andamento ou funcionamento da
economia.
h) Ética política: reflecte sobre a conduta e o agir político.

1.7- Ética e moral

Como foi afirmado acima, ética provém do grego ethos e significa costumes, bem como “carácter”
e “modo de ser”. A palavra moral, porém, provém do latim mos ou mores e também significa
costume ou costumes, no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. (Vázquez,
1978, p. 14). Por esta feliz coincidência etimológica e conceptual, estudiosos há, que preferem
afirmar que a ética e a moral são a mesma coisa, visto que todas dizem respeito aos costumes e
ambas tratam das questões teóricas bem como práticas do agir humano. Outros estudiosos vão mais
longe separando uma da outra. Esses últimos se agarram aos argumentos de que, enquanto a moral
estuda os costumes contextualizados, a ética julga a moral distinguindo o bem do mal.

A presente reflexão irá na linha do segundo grupo dos estudiosos, aqueles que distinguem a moral
da ética. Neste sentido, partindo da etimologia das duas palavras, tem-se o seguinte: a moral é o
conjunto de regras, princípios e valores que determinam a conduta do indivíduo, enquanto a ética
é o instrumento fundamental para a instauração de um viver em conjunto, a base para a construção
do mundo sociopolítico, condição necessária para a sobrevivência da espécie humana.
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Eis então as diferenças fundamentais entre a ética e a moral:

Ética

a) Disciplina filosófica – pensamento crítico


b) Revelação de valores que norteiam o dever-ser dos humanos
c) Conjunto de juízos valorativos manifestados livremente na acção individual de cada um
d) Reflexão construída e reconstruída incessantemente
e) Expressão do ser humano como exigência radical
f) Disposição permanente para agir de acordo as próprias exigências.

Moral

a) Limita-se ao estudo dos costumes e da variante das relações


b) Conjunto de regras que se impõem às pessoas
c) Impulso que move o grupo
d) Acção colectiva que tende a agir de determinada maneira
e) Comportamentos automatizados
f) Receio de reprovação social
g) Cumprimento sem questionamento
h) Consolidação de práticas e costumes.

Enquanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é teórico, corresponde a uma
generalidade abstracta e formal. A ética estuda a moral e as moralidades, analisa as escolhas que
os agentes fazem em situações concretas, verifica se as opções se conformam aos padrões sociais.

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UNIDADE II – BREVE HISTORIAL DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA SEGUNDA UNIDADE


2.1- A ética na Antiguidade (a ética grega): os sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles, os Estóicos
e os Epicuristas.
2.2- A ética na Idade Média: uma ética totalmente religiosa e cristã.
2.3- A ética na Idade Moderna: uma ética totalmente antropocêntrica.
2.4- A ética na Idade Contemporânea: várias orientações.
2.5- Os ideais éticos.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SEGUNDA UNIDADE


Levar os estudantes a discutirem a origem e a problemática da ética, fazer com eles um percurso
histórico do universo ético naquilo que tem de mais essencial no processo da evolução tanto do
termo como da sua compreensão desde a Antiguidade até aos nossos dias, e garantir que eles sejam
capazes de discutir o sentido dos ideais éticos ao ponto de eles compreenderem hoje quais sejam
os ideais éticos para os nossos dias e para cada um deles.

2.1- A ética na Antiguidade: a ética grega

2.1.1- Os sofistas

Estes constituem um movimento intelectual na Grécia do séc. V (a.C.).

A palavra "sofista" significa mestre ou sábio, e vem da palavra “sofia” que significa sabedoria.
Portanto, os sofistas consideravam-se detentores da sabedoria. Eles não ambicionam o
conhecimento gratuito especulativo, mas cobram para ensinar.

Os sofistas ensinam a arte de convencer, de expor, argumentar ou discutir, colocam em dúvida não
só a tradição, mas a existência de verdades e normas universalmente válidas. Para eles, não existe
nem verdade nem erro, e as normas — por serem humanas — são transitórias.

Para Protágoras (491/481 - ? a.C.), tudo é relativo ao sujeito, ao "homem, medida de todas as
coisas”. Aqui temos uma confirmação inconfundível do relativismo ou subjectivismo. Górgias, por
sua vez, sustenta que é impossível saber o que existe realmente e o que não existe.

2.1.2- Sócrates (470-399 a.C.)

Este compartilha o desprezo dos sofistas pelo conhecimento da natureza, bem como sua crítica da
tradição, mas rejeita o seu relativismo e o seu subjectivismo.
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Para Sócrates, o saber fundamental é o saber a respeito do homem (daí a sua máxima: "conhece-te
a ti mesmo"): (1) é um conhecimento universalmente válido, contra o que sustentam os sofistas;
(2) é, antes de tudo, conhecimento moral; e (3) é um conhecimento prático (conhecer para agir
rectamente).

A sua ética é conhecida como Ética racionalista pelas seguintes razões:

a) Uma concepção do bem (como felicidade da alma) e do bom (como o útil para a felicidade);
b) A tese da virtude (areté: capacidade radical e última do homem) como conhecimento, e do
vício como ignorância (quem age mal é porque ignora o bem; por conseguinte, ninguém faz o
mal voluntariamente)
c) A tese, de origem sofista, segundo a qual a virtude pode ser transmitida ou ensinada.
d) (1) é um conhecimento universalmente válido, contra o que sustentam os sofistas; (2) é, antes
de tudo, conhecimento moral; e (3) é um conhecimento prático (conhecer para agir rectamente).
e) A bondade, o conhecimento e a felicidade se entrelaçam estreitamente.
f) O homem age rectamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de praticá-
lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.

2.1.3- Platão (427-347 a.C.)

Foi discípulo de Sócrates. Para ele, a ética se relaciona intimamente com a filosofia política, e a
polis é o terreno da vida moral. A ética de Platão depende:

a) da sua concepção metafísica: dualismo do mundo sensível e do mundo das ideias permanentes,
eternas, perfeitas e imutáveis, que são a verdadeira realidade, e têm como cume a Ideia do Bem,
divindade, artífice ou demiurgo do mundo;
b) da sua doutrina da alma: princípio que anima ou move o homem. A alma consta de três partes:
razão, vontade ou ânimo e apetite. A razão que contempla e quer racionalmente é a parte
superior, o apetite, relacionado com as necessidades corporais, é a inferior.

Como o indivíduo por si só não pode aproximar-se da perfeição, torna-se necessária a presença do
Estado ou da Comunidade política; isto é, o homem é bom enquanto bom cidadão. A Ideia do ser
humano se realiza somente na comunidade. Por isso, a ética desemboca necessariamente na

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política. O homem se forma espiritualmente somente no Estado e mediante a subordinação do
indivíduo à comunidade.

2.1.4- Aristóteles (384-322 a.C.)

Foi discípulo de Platão e fundador da sua própria escola, o Liceu, cujos discípulos eram chamados
de peripatéticos (de perípatos, que significa caminhar por), pois ele ensinava os seus discípulos
caminhando.

Para Aristóteles, na continuidade do seu mestre Platão, o homem se forma espiritualmente somente
no Estado e mediante a subordinação do indivíduo à comunidade. O fim último do homem é a
felicidade (eudaimonia) e esta se realiza mediante a aquisição de certos modos constantes de agir
(ou hábitos) que são as virtudes. Estas não são atitudes inatas, mas modos de ser que se adquirem
ou conquistam pelo exercício e, já que o homem é ao mesmo tempo racional e irracional.

Existem duas classes das virtudes:

a) As virtudes intelectuais ou dianoéticas: que operam na parte racional do homem, isto é, na


razão.

b) As virtudes práticas ou éticas: que operam naquilo que há nele de irracional, ou seja, nas suas
paixões e apetites, canalizando-as racionalmente.

Mas o que é virtude para Aristóteles? Para ele, a virtude consiste no termo médio (in medio virtus)
entre dois extremos (um excesso e um defeito). A virtude é um equilíbrio entre dois extremos
instáveis e igualmente prejudiciais.

Vício por excesso VIRTUDE Vício por deficiência


Temeridade CORAGEM Cobardia

Libertinagem TEMPERANÇA Insensibilidade


Esbanjamento SOBRIEDADE Avareza
Vulgaridade MAGNIFICÊNCIA Vileza
Vaidade RESPEITO PRÓPRIO Modéstia

Ambição PRUDÊNCIA Moleza

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Irascibilidade GENTILEZA Indiferença
Orgulho VERACIDADE Descrédito próprio
Zombaria AGUDEZA DE ESPÍRITO Falta de civismo
Condescendência AMIZADE Enfado
Inveja JUSTA INDIGNAÇÃO Malevolência
Tabela 1: Apresentação das virtudes e seus vícios (por excesso e por defeito) de acordo com Aristóteles.
Fonte: Adaptado de Silva (1998, p. 131).

A comunidade social e política é o meio necessário da moral, e o homem é, por natureza, um animal
político. A vida moral é uma condição ou meio para uma vida verdadeiramente humana (a vida
teórica na qual consiste a felicidade) acessível a uma minoria ou elite. A maior parte da população
mantém-se excluída não só da vida teórica, mas da vida política. Para Aristóteles, a vida moral é
exclusiva de uma elite, pois só ela é que pode realizá-la. O homem bom (o sábio) deve ser um bom
cidadão.

2.1.5- Os Estóicos (384-322 a.C.)

O Estoicismo foi fundado por Zenão. O nome Estoicismo vem de stoá, que significa pórtico. Zenão
ensinava os seus discípulos aos pés de um pórtico. Para esta corrente, o bem supremo é viver de
acordo com a natureza racional, com consciência do nosso destino e de nossa função no universo,
sem se deixar levar por paixões ou afectos interiores ou pelas coisas exteriores.

Praticando a apatia e a imperturbabilidade, o homem (sábio) se firma contra as suas paixões ou


contra os reveses do mundo exterior, e conquista a sua liberdade interior bem como sua autarquia
(auto-suficiência) absoluta.

O indivíduo define-se moralmente sem necessidade da comunidade como cenário necessário da


vida moral. O estóico vive moralmente como cidadão do cosmos, não da polis.

Os principais representantes desta corrente são: Zenão, Séneca, Epícteto e Marco Aurélio.

2.1.6- Os Epicuristas (384-322 a.C.)

O nome dessa corrente provém do nome do seu fundador: Epicuro. Segundo essa corrente, tudo o
que existe, incluindo a alma, é formado de átomos materiais que possuem um certo grau de
liberdade, na medida em que se podem desviar ligeiramente na sua queda. Não há nenhuma

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intervenção divina nos fenómenos físicos nem na vida do homem. Por isso, libertado do temor
religioso, o homem pode buscar o bem neste mundo.

O bem, para Epicuro, é o prazer. Mas há muitos prazeres, e nem todos são igualmente bons. É
preciso escolher entre eles para encontrar os mais duradouros e estáveis, que não são os corporais
(fugazes e imediatos), mas os espirituais que contribuem para a paz da alma. O epicurista alcança
o bem, retirado da vida social, sem cair no temor do sobrenatural, encontrando em si mesmo, ou
rodeado por um pequeno círculo de amigos, a tranquilidade da alma e a auto-suficiência.

A ética epicurista e estóica, que surgem numa época de decadência e de crise social, a unidade da
moral e da política, sustentada pela ética grega anterior, se dissolvem.

2.2- A ética na Idade Média: uma ética totalmente religiosa e cristã

2.2.1- Algumas premissas importantes

Quando o cristianismo nasce, por meio das perseguições, espalha-se em todo o império romano e
em todo o mundo grego. No séc.IV, Roma converte-se ao cristianismo e este torna-se a religião
oficial do Estado. Toda a cultura passa a se deixar transformar pela mensagem cristã. Assim, na
Idade Média, temos verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem com o seu
criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação no outro mundo.
Deus é concebido como um ser pessoal, bom, omnisciente e todo-poderoso. O ser humano tem seu
fim último em Deus, que é o seu bem mais alto e o seu valor supremo. Deus exige a sua obediência
e a sujeição a seus mandamentos, que têm o carácter de imperativos supremos.

O que o homem é e o que deve fazer definem-se essencialmente não em relação com uma
comunidade humana (como a polis) ou com o universo inteiro, e sim, em relação a Deus. Todo o
seu comportamento — incluindo a moral — deve orientar-se para Ele como objectivo supremo. A
essência da felicidade (a beatitude) é a contemplação de Deus; o amor humano fica subordinado
ao divino; a ordem sobrenatural tem a primazia sobre a ordem natural humana.

2.2.2- Ética religioso-cristã e as virtudes

As virtudes fundamentais são: a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça, que são as virtudes
morais em sentido próprio, e regulam as relações entre os homens. São virtudes em escala humana.
As virtudes supremas ou teologais são: a fé, a esperança e a caridade. Regulam as relações entre o
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homem e Deus e são virtudes em escala divina. As virtudes elevam o ser humano de uma ordem
terrestre para uma ordem sobrenatural, na qual possa viver uma vida plena, feliz e verdadeira, sem
as imperfeições, as desigualdades e injustiças terrenas. Todos os homens, sem distinção — homens
e mulheres, escravos e livres, cultos e ignorantes —, são iguais diante de Deus e são chamados a
alcançar a perfeição e a justiça num mundo sobrenatural.

2.2.3- A ética em Santo Agostinho e em São Tomás

O cristianismo não é uma filosofia, mas uma religião (isto é, antes de tudo, uma fé e um dogma,
um encontro pessoal com alguém: Jesus). Ele faz-se filosofia na Idade Média para esclarecer e
justificar, lançando mão da razão, o domínio das verdades reveladas ou para abordar questões que
derivam das (ou surgem em relação com as) questões teológicas. Portanto, a filosofia é serva da
teologia. A ética é limitada pela sua índole religiosa e dogmática.

Os principais representantes são: Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1226-1274).
Agostinho defende a elevação ascética até Deus, que culmina no êxtase místico ou felicidade, que
não pode ser alcançada neste mundo. Ele sublinha o valor da experiência pessoal, da interioridade,
da vontade e do amor: “eu Te procurava fora de mim, mas Tu estavas dentro de mim”, “Deus é
mais íntimo do que o meu íntimo”. Para Tomás, Deus é o bem objectivo ou fim supremo, cuja
posse causa gozo ou felicidade, que é um bem subjectivo. A contemplação (ou o conhecimento
entendido como visão de Deus) é o meio mais adequado para alcançar o fim último. Na sua doutrina
político-social, Tomás atém-se à tese do homem como ser social ou político, e, ao referir-se às
diversas formas de governo, inclina-se para uma monarquia moderada, ainda que considere que
todo o poder derive de Deus e que o poder supremo caiba à Igreja.

2.3- A ética na Idade Moderna: uma ética antropocêntrica

2.3.1- As grandes mudanças, a ruptura e busca de autonomia moral do indivíduo

A ética moderna sucede à sociedade feudal da Idade Média e passa por mudanças em todas as
ordens:

a) Económica: forças produtivas e relações capitalistas de produção;


b) Científica: constituição da ciência moderna (Galileu e Newton);
c) Social: nova classe social — a burguesia em contínua ascensão;
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d) Política: revoluções (na Holanda, Inglaterra e França); Estados modernos, únicos e
centralizados;
e) Atraso político e económico de outros países (como Alemanha e Itália), que somente no século
XIX conseguem realizar a sua unidade nacional;
f) Espiritual: a Igreja Católica perde a sua função de guia. Temos o movimento protestante e a
reforma.

Há ruptura em várias dimensões, como vem apresentado no quadro a seguir:

RAZÃO – FILOSOFIA ↔ FÉ – TEOLOGIA


NATUREZA - CIÊNCIAS NATURAIS ↔ DEUS -PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS
ESTADO ↔ IGREJA
HOMEM ↔ DEUS
Tabela 2: Apresentação das rupturas provocadas pela revolução antropocêntrica do início da época moderna.
Fonte: adaptado de Grokorriski (s. a.).

Com o Renascimento e a Idade Moderna, junto com a imprensa, e o re-estudo do mundo antigo, a
difusão da cultura (enquanto na Idade Média quase todos os letrados ou simplesmente alfabetizados
eram clérigos), o enriquecimento de uma nova classe — a burguesia — o fortalecimento dos
Estados nacionais, surgem, naturalmente, novos estudos de moral, tanto sobre os aspectos
individuais quanto sobre os sociais e estatais. É nessa fase que surgem as grandes obras de
Maquiavel, Rousseau, Spinoza e Kant.

O que a ética agora desenvolve principalmente é a preocupação com a autonomia moral do


indivíduo. Este indivíduo procura agir de acordo com a sua razão natural. O mundo medieval,
baseado na autoridade da "palavra divina revelada", já está longe. Os homens querem fundamentar
o seu agir na natureza. Assim temos o "direito natural", que contém uma ideia revolucionária em
relação ao "direito divino dos reis", do regime antigo.

Assim temos Rousseau (1712-1778), com o ideal de uma vida melhor graças ao retorno às
condições naturais, anteriores à civilização. Também temos Kant, que busca descobrir em cada
homem (e neste sentido é antiaristocrata e burguês) uma natureza fundamentalmente igual, porém
natureza livre. O agir de acordo com a nossa natureza, em Kant, é portanto bem diferente dos ideais
aparentemente paralelos dos gregos (estóicos e outros), dos medievais e de Rousseau. Para os
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gregos, isto significava uma certa harmonia passiva com o cosmos. Para o medieval, significava
uma obediência pessoal ao Criador da natureza. Para Rousseau significava um agir de forma mais
primitiva. Mas para Kant, a natureza humana é uma natureza racional, o que equivale a dizer que
a natureza nos fez livres, mas com isso não nos disse o que fazer, concretamente. Sendo o ser
humano um ser natural, mas naturalmente livre, isto é, destinado pela natureza à liberdade, ele deve
desenvolver esta liberdade através da mediação de sua capacidade racional.

2.3.2- A ética kantiana: formal e autónoma

Kant (1724-1804) é tido como o expoente máximo do iluminismo alemão. As suas principais obras
ligadas à ética são: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática
(1788).

Ele toma como ponto de partida o factum da moralidade. De facto, é um facto indiscutível que o
homem se sente responsável pelos seus actos e tem consciência do seu dever. Esta consciência
obriga a supor que o homem é livre.

O problema da moralidade exige que se proponha a questão do fundamento da bondade dos actos,
ou em que consiste o bom. E o único bom em si mesmo é a boa vontade. A bondade de uma acção
não se deve procurar em si mesma, mas na vontade com que se fez. É boa a vontade que age por
puro respeito ao dever, sem razões outras a não ser o cumprimento do dever ou a sujeição à lei
moral. O mandamento ou dever que deve ser cumprido é incondicionado e absoluto.

O que a boa vontade ordena é universal por sua forma e não tem um conteúdo concreto: refere-se
a todos os homens em todo o tempo e em todas as circunstâncias e condições. Daí o imperativo
categórico de Kant: “Age de tal modo que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne
uma lei universal”.

Se o homem age por puro respeito ao dever e não obedece a outra lei a não ser a que lhe dita a sua
consciência moral, é legislador de si mesmo, autónomo. Por isso, tomar o homem como meio é
profundamente imoral, porque todos os homens são fins em si mesmos e, como tais — isto é, como
pessoas morais —, formam parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins.

Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independentemente da
sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autónoma (e opor-se assim às

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morais heterónomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação
da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval.

Por conceber o comportamento moral como pertencente a um sujeito autónomo e livre, activo e
criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes
de tudo como ser activo, produtor ou criador.

2.3.3- Hegel e a crítica à ética kantiana

Completando a obra do pensamento moderno, Hegel considerou demasiado abstracta a posição


kantiana, lembrando que seu igualitarismo postulado não levava realmente em conta as tradições e
os valores, o modo de ver de cada povo; ignorava, portanto, as instituições históricas concretas e
não chegava a uma ética de valor histórico. Hegel liga, então, como já vimos, a ética à história e à
política, na medida em que o agir ético do homem precisa de concretizar-se dentro de uma
determinada sociedade política e de um momento histórico variável, dentro dos quais a liberdade
se daria uma existência concreta, organizando-se num Estado.

Talvez pudéssemos agora perguntar: se a ética grega era uma estética, e a ética medieval cristã uma
atitude religiosa, não se deveria dizer que a ética hegeliana é uma política? Talvez sim, mas também
é verdade que provavelmente Hegel não consideraria esta afirmação, absolutamente, como uma
crítica. Todo agir é político, inclusive e principalmente o agir ético.

2.4- A ética na Idade Contemporânea: várias orientações

2.4.1- A ética, uma questão de discurso

Na segunda metade do século XX, a questão do comportamento ético modificou-se mais uma vez.
As atenções se voltaram principalmente para a questão do discurso, mas isto de duas maneiras mais
ou menos independentes. Por um lado, e ainda por influência do pensamento de Esquerda, as
reflexões éticas passaram a analisar os discursos com vista a uma crítica da ideologia. Por outro
lado, filósofos de inspiração anglo-saxónica passaram a ocupar-se principalmente com uma crítica
da linguagem, dentro da qual se desenvolve também a crítica ou a análise da linguagem ética.

A crítica da ideologia busca descobrir, por trás dos discursos sobre as acções humanas, individuais
ou grupais, os (verdadeiros) interesses reais, materiais, económicos ou de dominação política. Por

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trás dos apregoados interesses éticos e universais, descobrir a hipocrisia e revelar o cinismo dos
interesses económicos, políticos e particulares. Esta crítica da ideologia tem ajudado inclusive a
reescrever a história da ética.

A análise da linguagem, dentro principalmente das diversas linhas da filosofia analítica, tem os
méritos do rigor formal, quando se concentra na análise das formulações linguísticas através das
quais os homens definem ou justificam o seu agir. É extremamente interessante, por exemplo, ver
um autor como E. Tugendhat demonstrar que a afirmação "eu te amo" não tem sentido,
logicamente, uma vez que o sentido desta proposição só se encontraria, ou melhor, só seria
encontrado pela segunda pessoa na observação dos actos empíricos da primeira. E não deixa de ser
instrutivo ler, por exemplo, como Moritz Schlick (1882-1936), membro do Círculo de Viena e
grande inspirador de muitos filósofos actuais, analisa o que seriam as acções boas: "Boas acções
são aquelas que se exigem de nós…"

Por mais que variem os enfoques filosóficos ou mesmo as condições históricas, algumas noções,
ainda que bastante abstractas, permanecem firmes e consistentes na ética. Uma delas é a questão
da distinção entre o bem e o mal. Agir eticamente é agir de acordo com o bem. A maneira como se
definirá o que seja este bem é um segundo problema, mas a opção entre o bem e o mal, distinção
levantada já há alguns milénios, parece continuar válida.

Um dos pseudónimos de Kierkegaard, definido exactamente como "o Ético", afirmava, por isso:
"meu dilema não significa, em primeiro lugar, que se escolha entre o bem e o mal; ele designa a
escolha pela qual se exclui ou se escolhe o bem e o mal". Neste sentido, poderíamos continuar,
dizendo que uma pessoa ética é aquela que age sempre a partir da alternativa bem ou mal, isto é,
aquela que resolveu pautar seu comportamento por uma tal opção, uma tal disjunção. E quem não
vive dessa maneira, optando sempre, não vive eticamente.

Numa apresentação da moral tomista, encontramos a seguinte definição: “A moral é uma ciência
prática, cujo objecto é o estudo e a direcção dos actos humanos em ordem a conseguir o último
fim, ou seja, a perfeição integral do homem, no que consiste a felicidade. Os actos humanos são
particulares, e assim, enquanto ciência prática, a moral deve atender e descer ao particular" (Fraile,
1956). Ora, os homens discutirão sempre sobre os actos particulares, isto é, as acções concretas de
cada um. O julgamento concreto de cada acção exige exactamente todos os pressupostos éticos. Já
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se discutirá menos sobre a questão da busca da felicidade, e se discutirá menos sobre a relação
entre o agir ético e a perfeição do homem enquanto homem.

Kierkegaard criticava, no século passado, a especulação idealista, porque, segundo ele, ela distraía
o sujeito, com grandes apresentações históricas, fazendo com que ele se esquecesse que tinha de
agir, e que tinha de escolher entre o bem e o mal. O perigo desta distracção talvez venha, no século
XX, daquelas teorias que insistem sobre a análise formal do discurso, e que muitas vezes parecem
esquecer de que, fundamentalmente, a ética é uma ciência prática, que trata, portanto, de uma
questão prática, da acção, e não apenas do discurso.

Mas parece que de resto os homens do século XX estão mais conscientes de que eles não são
espectadores, e sim actores, que não estão na plateia, e sim no palco, como diziam os pensadores
da existência. A questão actual é principalmente saber se, mesmo sabendo isto, os homens de hoje
ainda se sentem em condições de agir individualmente, isto é, agir moralmente. A massificação, a
indústria cultural, a ditadura dos meios de comunicação e mesmo as ditaduras políticas são
fenómenos que têm de ser analisados também nesta perspectiva, para sabermos até que ponto o
homem de hoje ainda pode escolher entre o bem e o mal.

Adorno, em sua análise do fetichismo da música coloca a questão: nosso mundo individualista não
estaria acabando exactamente com a individualidade, estrutura básica de um agir moral?

2.4.2- Tentativa de classificação da ética contemporânea

Hoje, a ética, devido à sua diversidade na abordagem, possui diferentes critérios de classificação.
Mas, para o nosso caso, preferimos a seguinte: ética empírica, ética de bens, ética formal e ética
valorativa.

A- Ética empírica

A experiência e a observação dos factos são a fonte para orientar e compreender o comportamento
humano. Para essa compreensão os preceitos disciplinadores do comportamento estão implícitos
no próprio comportamento, ou seja, na prática, no quotidiano da vida.

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Esta ética não questiona o que o ser humano “deve fazer”, mas examina o que “o ser humano
normalmente faz”. Sendo, assim, cada ser humano age de uma maneira e isso nos leva para o
relativismo ético.

Correntes filosóficas empiristas: anarquismo, utilitarismo e cepticismo.

B- Ética de bens

O ponto de partida desta ética é: há um bem supremo fundamental. A criatura humana é capaz de
se propor fins, eleger meios e colocar em prática os últimos, para alcançar os primeiros. O ser
humano tem fins superiores que orientam o comportamento humano.

Há posições que diferem qual é o bem supremo que deve orientar o comportamento humano:
hedonismo (o prazer), idealismo (os ideais), eudemonismo (a felicidade), etc.

C- Ética formal

Essa ética defende a consciência racional a partir da lei moral. O racional é tido como o campo da
lógica. O importante é cumprir logicamente o que tem de ser feito. Tudo aquilo que deve ser feito
deve-se cumprir conforme as exigências da consciência racional e não conforme os sabores do
ambiente externo. O filósofo por excelência dessa doutrina é Kant. Ele advoga que o certo é fazer
o que é lógico ou racional.

D- Ética valorativa

Para esta ética, o comportamento moral deve ser orientado e pautado por aquilo que é valioso. Do
ponto de vista da organização social, a existência do valor está associada àquilo que a sociedade,
por sua vez, compreende, aceita e respeita como sendo valioso e isso é determinado pela maioria.

Isso é convenção dos valores, que se expressa nas leis ou nos códigos morais aprovados pela
sociedade através do legislativo municipal, provincial ou nacional (constitucional).

2.4.3- Critério ético e posturas morais

Tais posturas referem-se às mais comuns que as pessoas adoptam frente a situações que têm que
decidir. Assim, dessas posturas, derivam: a ética essencialista, a ética individualista, a ética da
responsabilidade, e a ética da resposta-responsabilidade.
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A- A ética essencialista

A acção é sempre orientada por um conjunto de normas, que devem servir de base para
comportamento moral das pessoas em toda e qualquer situação. Tais normas são princípios que
funcionam como reguladores, são universalistas, ou seja, se é mentira aqui, onde moro, também é
mentira, lá longe, do outro lado do mundo. Um exemplo é a pessoa religiosa que acredita em
verdades absolutas. Para esse tipo de pessoa, não há contextualização ou reforma daquilo que se
tem afirmado. Por isso, esta moral é típica das sociedades tradicionais.

B- A ética individualista

Para esta moral, não existem verdades universais ou absolutas, mas cada um, segundo a sua
consciência, tem a sua própria verdade. A razão humana é que determina quando e como agir. Não
há um ser superior, que pré-estabelece ou um plano divino que orienta as acções humanas. Cabe
ao ser humano cuidar de si mesmo, pois é detentor de si mesmo. Portanto, temos a autonomia e a
liberdade dos indivíduos. “Cada um cuida de si mesmo”: esta é a máxima individualista. A moral
individualista é própria da sociedade capitalista e de mercado actual.

C- A ética da responsabilidade

O grupo ou o meio colectivamente é que decide de maneira consensual os padrões de conduta que
devem ser seguidos. Estes padrões não são vistos como universais, imutáveis (ética essencialista)
ou que favoreçam a um indivíduo em particular (ética da convicção), mas são relativos a cada
situação, tendo sempre o julgamento da colectividade que analisa o mérito para mudar ou
reconduzir os padrões estabelecidos.

Considera o contexto e, pelos efeitos, as consequências das acções. Um exemplo oportuno é a


consciência ecológica no processo de desenvolvimento sustentável que começa a surgir na
sociedade actual: a necessidade de cuidar do ambiente para nós e as gerações futuras.

D- A ética da convicção

Muller (s. a.) refere que a ética da convicção foi idealizada e teorizada por Max Weber para se
referir, no âmbito político, ao conjunto de normas e valores que orientam o comportamento de um
político na sua esfera privada. Diferencia-se da ética da responsabilidade, pois esta representa o

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conjunto de normas e valores que orientam a decisão do político a partir de sua posição como
governante ou legislador.

E- A ética da resposta-responsabilidade

A comunidade de fé reconhece e está consciente da presença de Deus em forma de apelo (ou pro-
posta). Tal apelo (pro-posta) soa no interior de cada membro (cf. GS, n.16), e este descobre por
meio do discernimento (dokimazein) qual seja a vontade de Deus para aquele momento e naquela
circunstância (cf. Rm 12,2).

A comunidade de fé, representada pelo Magistério, descobre os padrões de conduta que devem ser
seguidos, e submete-se, pelo obséquio religioso, ao ensinamento oficial emanado pelo Magistério
quer em matéria de doutrina, quer em matéria de disciplina. Estes padrões não são vistos como
universais, imutáveis ou que favoreçam a um indivíduo em particular, mas são fruto da evolução
do dogma2 para cada situação histórica, enquanto a comunidade procura ler os sinais dos tempos.
O julgamento cabe ao Magistério, que analisa o mérito para mudar ou reconduzir os padrões
estabelecidos, procurando sempre ser fiel a Deus (ao depositum fidei) e ao ser humano.

2.5- Os ideais éticos

A ética hoje assume várias orientações e tem vários critérios para ser classificada. Mas qual é o
critério da moralidade? O que significa dizer que agir moralmente significa agir de acordo com a
própria consciência? Quando agimos, o que buscamos? Qual seria o ideal da vida ética?

As respostas variam, como fomos vendo nesta abordagem histórica da ética. Para os gregos, o ideal
ético estava ou na busca teórica e prática da ideia do bem, da qual as realidades mundanas
participariam de alguma maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma vida bem
ordenada, uma vida virtuosa, onde as capacidades superiores do ser humano tivessem a preferência,
e as demais capacidades não fossem, afinal, desprezadas, na medida em que o ser humano, ser
sintético e composto, necessitava de muitas coisas (Aristóteles).

2
Dogma é um termo de origem grega que significa literalmente “o que se pensa é verdade”. Na antiguidade, o termo
estava ligado ao que parecia ser uma crença ou convicção, um pensamento firme ou doutrina. Posteriormente passou
a ter um fundamento religioso em que caracteriza cada um dos pontos fundamentais e indiscutíveis de uma crença
religiosa. Pontos inquestionáveis, uma verdade absoluta que deve ser ensinada com autoridade.
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Para outros gregos, o ideal ético estava no viver de acordo com a natureza, em harmonia cósmica.
(Esta ideia, modificada, foi depois adoptada por teólogos cristãos, no seguinte sentido: viver de
acordo com a natureza seria o mesmo que viver de acordo com as leis que Deus nos deu através da
natureza). Os estóicos insistiram mais nesta vida natural. Já os epicuristas afirmavam que a vida
devia ser voltada para o prazer: para o sentir-se bem. Tudo o que dá prazer é bom. Ora, como certos
prazeres em demasia fazem mal, acabam por produzir desprazer, uma certa economia dos prazeres,
uma certa sabedoria e um certo refinamento, até uma certa moderação ou temperança eram
exigências da própria vida de prazer.

No cristianismo, os ideais éticos se identificaram com os religiosos. O ser humano viveria para
conhecer, amar e servir a Deus, directamente e em seus irmãos. O lema socrático do "conhece-te a
ti mesmo" volta à tona, em Santo Agostinho, que agora ensina que "Deus nos é mais íntimo que o
nosso próprio íntimo". O ideal ético é o de uma vida espiritual, isto é, do acordo com o espírito,
vida de amor e fraternidade.

Com o Renascimento e o Iluminismo, ou seja, aproximadamente entre os séculos XV e XVIII, a


burguesia que começava a crescer e a impor-se, em busca de uma hegemonia, acentuou outros
aspectos da ética: o ideal ético seria viver de acordo com a própria liberdade pessoal, e em termos
sociais o grande lema foi o dos franceses: liberdade, igualdade e fraternidade. (Há quem afirme
que a Revolução Francesa buscou concretizar apenas a liberdade, a Russa, a igualdade e a Africana,
ou a do Terceiro Mundo, a fraternidade.)

O grande pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant, identificou bastante o ideal ético com o
ideal da autonomia individual. O homem racional, autónomo, autodeterminado, aquele que age
segundo a razão e a liberdade, eis o critério da moralidade.

Se Kant e a Revolução Francesa acentuaram de maneira talvez demasiado abstracta a liberdade, o


ideal ético para Hegel estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que
preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis
do direito não estivessem nem separadas e nem em contradição. A profunda perspectiva política
de Platão e Aristóteles transparece de novo em Hegel. Mas parece que a realidade histórica não
acompanhou muitas de suas teorias.

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No século XX, os pensadores da existência, em suas posições muito diversas, insistiram todos sobre
a liberdade como um ideal ético, em termos que privilegiavam o aspecto pessoal ou personalista
da ética: autenticidade, opção, resoluteza, cuidado, etc.

Já o pensamento social e dialéctico buscou como ideal ético a ideia de uma vida social mais justa,
com a superação das injustiças económicas mais gritantes. A ética se volta sobre as relações sociais,
em primeiro lugar, esquece o céu e se preocupa com a terra, procurando, de alguma maneira,
apressar a construção de um mundo mais humano, onde se acentua tradicionalmente o aspecto de
uma justiça económica, embora esta não seja a única característica deste paraíso buscado.

Finalmente, não há como negar que exactamente a maioria dos países ricos actuais se caracteriza
por uma ética que em muitos casos lembra a busca grega do prazer, porém, nem sempre com
moderação. O prazer, depois do século XIX, época da grande acumulação capitalista, reduziu-se
bastante à posse material de bens, ou à propriedade do capital. Em nome da defesa do capital, ou,
mais modestamente, em nome da defesa da propriedade particular, muito sangue já foi derramado
e muita injustiça cometida. O grande argumento do pensamento de Esquerda é que não foi a
Esquerda quem inventou a luta de classe. E que a propriedade é um direito básico para todos.

A reflexão ético-social do século XX trouxe, além disso, uma outra observação importante: na
massificação actual, a maioria hoje talvez já não se comporte mais eticamente, pois não vive imoral,
mas amoralmente. Os meios de comunicação de massa, as ideologias, os aparatos económicos e do
Estado, já não permitem mais a existência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e
participantes, de consciências com capacidade julgadora. Seria o fim do indivíduo? Talvez seja
necessário determo-nos agora nas questões ligadas à pessoa humana, sua dignidade, seu valor
fundamental.

26
UNIDADE III – A PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA TERCEIRA UNIDADE


3.1- Conceito de pessoa humana
3.2- A pessoa humana e a consciência moral
3.3- A pessoa humana e o discernimento
3.4- A pessoa humana e a lei moral
3.5- A pessoa humana e a opção fundamental
3.6- A pessoa humana e a liberdade

OBJECTIVO PRINCIPAL DA TERCEIRA UNIDADE


Levar os estudantes a discutirem em torno do conceito de pessoa humana, a descobrirem na sua
vida e experiência o valor e a actuação da consciência moral, a experimentarem a importância do
discernimento moral-prático, a alimentarem na sua vida o sentido de lei moral (lei que obriga por
dentro, ao nível da consciência), a organizarem a sua vida (moral) em torno duma opção
fundamental num espírito de liberdade.

3.1- Conceito de pessoa humana

3.1.1- A complexa tarefa de definir da pessoa

Há dentro da filosofia várias definições do ser humano, razão pela qual poderemos encontrar, neste
nosso estudo, várias definições, desde a Antiguidade à época moderna. Neste sentido, o conceito
de Pessoa deve ser abordado sob duas vertentes, mas partindo da questão: Quem sou eu?

A- Vertente clássica

Esta vai cingir-se a alguns filósofos da Antiguidade e de Idade Média, como Cícero, Boécio e São
Tomás. Cícero (106-43 a.C.) define a pessoa como sendo sujeito de direitos e deveres. Boécio
(c.480-524) entende pessoa como uma substância individual de natureza racional. São Tomás de
Aquino (1225-1272) entende a pessoa como um subsistente de natureza racional.

Há, nestes últimos dois filósofos (Boécio e Tomás), algo comum: referência ao individuo
subsistente, coeso, uno, total, e de natureza racional. A natureza racional confere ao ser humano a
capacidade de saber que sabe, consciência de ter consciência. Esta racionalidade subentende na
Pessoa uma dimensão espiritual.

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B- Vertente moderna e contemporânea

Nesta linha, sobressaem Descartes (1596 -1650), Kant (1724 -1804) e Martin Buber (1878 -1965).
Difere da vertente clássica por esta ressaltar, nas suas direcções definitórias, as características
psicológica, ética e social. Resgata-se, portanto, o sentido de individualidade e intencionalidade. O
mérito de Kant foi de ter apresentado a pessoa como fim e nunca como meio. Mas é necessário
sublinhar que os elementos, tanto da vertente clássica como os da modernidade, se completam.

a) Psicológica: Esta direcção toma como referência Descartes, o qual toma a consciência como a
característica definitória da Pessoa.
b) Ética: esta direcção, conforme Kant (citado por Chambisse, 2003, p. 38), sublinha a liberdade
como o constitutivo da pessoa.
c) Social: esta direcção, segundo o autor acima, juntando-se ao Personalismo e, de modo particular,
a Martin Buber, destaca na definição de Pessoa a relação desta com o(s) outro(s). Importa
ressaltar que o Personalismo tem como traço geral a sua insistência na realidade e no valor da
pessoa e sua tentativa de interpretar a realidade e a afirmação da liberdade humana e do
fundamento pessoal da realidade.

Immanuel Kant (1724-1804): Este filósofo concebe ainda o ser humano como necessitado por ele
ter necessidades, enquanto pertence ao mundo sensível, e nesse aspecto, a sua razão tem uma
missão de se ocupar dos seus interesses, elaborando máximas práticas com vista à felicidade desta
vida e de uma vida futura.

Karl Marx (1818-1883): Para este filósofo, a pessoa humana é, ao mesmo tempo, social e natural,
portanto meramente material, sem a dimensão espiritual e transcendental, já que tudo no universo
do real, incluindo o ser humano, se reduz à matéria.

A pessoa humana como um ser social: a sociedade é a união perfeita do ser humano com a natureza,
a verdadeira ressurreição da natureza.

A pessoa humana como um ser natural: O ser humano é directamente um ser natural, porque ele
sofre, condicionado e limitado como animais e plantas.

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O trabalho, essência da pessoa humana: Esta é o produtor e o produto de seu trabalho. A essência
da pessoa humana está em seu trabalho (homo faber). O espelho para ver quem é o ser humano é o
seu trabalho. O ser humano é o criador de si mesmo.

Importa sublinhar que Marx não se apercebe da dimensão transcendental da pessoa humana
limitando-se apenas aos aspectos sensíveis, à materialidade. Portanto, o ser humano fica reduzido
a ser simplesmente natural, resultante da evolução da natureza natural.

Para Andrea Mercatali, a pessoa é um indivíduo dotado de consciência, inteligência, razão, capaz
de distinguir o verdadeiro do falso; dotado de moralidade, isto é, capaz de distinguir entre o bem e
o mal, responsável das próprias acções que age segundo motivos válidos na relação com os outros.

Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, a pessoa é um prius para o direito, isto é, uma categoria
ontológica e moral, não meramente histórica ou jurídica. Pessoa é todo indivíduo humano, homem
ou mulher, por sua própria natureza e dignidade, à qual o direito se limita a reconhecer esta
condição. Para Baracho, o conceito de pessoa e o direito à vida são essenciais para explicitar a
concepção de direitos humanos e a internacionalização dos mesmos e, portanto, para consagrar a
dimensão da dignidade da pessoa humana.

Aliados a estas tentativas de definir o ser humano, alguns filósofos existencialistas, como, por
exemplo, Jean-Paul Sartre e Karl Jaspers, depois de tanta investigação no sentido de conhecer o ser
humano, expressaram no seu pensamento, um desapontamento neste termos:

a) Sartre: “O estudo do ser humano trouxe-nos muitos conhecimentos, mas não nos deu a conhecer
o ser humano na sua totalidade”.
b) Karl Jaspers: na mesma linha, este autor manifesta o que poderíamos denominar de desilusão,
dizendo que “o ser humano é profundamente mais do que o que pode saber acerca de si mesmo”
(Opus cit. p. 316).

Na filosofia contemporânea, depois das filosofias da existência, vários autores, sobretudo


franceses, desenvolveram a corrente personalista. Dentre eles, encontra-se Emmanuel Mounier.

Mounier desenvolveu um conceito nuclear de pessoa, porém não a definiu devido à impossibilidade
de fazê-lo, pois, segundo ele, “só se definem os objectos exteriores ao homem, que se podem

29
encontrar ao alcance da nossa vista. Mas a pessoa não é um objecto, antes, é exactamente aquilo
que em cada homem não é possível de ser tratado como objecto” (Mounier, 1961c, pp. 42-44). No
Manifesto ao Serviço do Personalismo, Mounier (1961b, p. 45) faz ressalvas em relação à
conceitualização da pessoa e afirma:

Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma forma de subsistência e de
independência em seu ser; mantém esta subsistência mediante a adesão a uma hierarquia
de valores livremente adoptados, assimilados e vividos num compromisso responsável e
numa constante conversão; unifica assim toda a sua actividade na liberdade e desenvolve,
por acréscimo, e impulsos de actos criadores, a singularidade da sua vocação.

Esta é uma simples caracterização da pessoa e não se pode considerá-la uma verdadeira definição.
Segundo Mounier, a pessoa não se pode definir num sentido estrito, pois, em última análise, pessoa
é “a própria presença do homem”.

Mounier afirma que a pessoa está num processo de personalização constante. Ela não se pode
definir. E a sua filosofia é caracterizada pelo movimento de personalização; isto é, a pessoa
constrói-se a si própria a partir das experiências. Vejamos mais o que ele diz: “A pessoa não é o
mais maravilhoso objecto do mundo, objecto que conhecêssemos de fora como todos os outros. É
a única realidade que conhecemos e que, simultaneamente, construímos de dentro. Sempre
presente, nunca se nos oferece” (Mounier, 1961a, pp. 24-25).

3.1.2- A pessoa e a sua dimensão transcendente

Edgar Shelfied Brightman, na definição da pessoa, afirma que pessoa é potencialmente


autoconsciente, racional e ideal ou seja, um si que é capaz de reflectir sobre si mesmo, de raciocinar,
de reconhecer fins ideais à luz dos quais está em condições de julgar as próprias acções. O traço
mais característico da personalidade, segundo Brightman é a autoconsciência. Na transcendência,
a pessoa se eleva para um nível mais alto de existência. Pessoa, na sua dimensão ontológica3, quer
dizer: autonomia no ser, domínio de si mesmo, invisibilidade, inviolabilidade, irrepetibilidade,
intransmissibilidade, unicidade. Pessoa é substância indivisível, inviolável, irrepetível,
intransmissível. Pessoa é ser em relação, que entra em comunicação com as coisas, com os outros
e com Deus. (Mondin. 1980).

3
Ontologia vem de on, ontos do grego, que significa o ser, a essência. Refere-se à pessoa na sua essência, pessoa
enquanto pessoa.
30
A pessoa é constituída por quatro elementos principais: autonomia quanto ao ser, autoconsciência,
comunicação e autotranscendência. A pessoa humana pertence à abertura à transcendência: o
homem é aberto ao infinito e a todos os seres criados. A pessoa humana tende à verdade e ao bem
absoluto. Ė também aberto ao Outro, aos outros e ao mundo, porque somente enquanto se
compreende em referência a um tu pode dizer eu. Sai de si, da sua conservação egoísta da própria
vida, para entrar numa relação de diálogo e de comunhão com o outro.

A pessoa é abertura à totalidade do ser, ao horizonte ilimitado do ser. Tem em si a capacidade de


transcender cada objecto particular que conhece, efectivamente, graças a esta sua abertura ao ser
sem limites.

3.1.3- A concepção africana da pessoa

A- Conceito do homem africano

Nesta parte, queremos reflectir em torno de cinco realidades: o conceito de ser humano para o
africano, os elementos vitais, a família africana, o poder da palavra, e o ser humano como ser de
relações. É preciso salientar que, nesta reflexão, os conceitos ser humano, homem e pessoa são
tidos como sinónimos e traduzem o sentido do termo africano ubuntu, um termo que jaz na esteira
da seguinte afirmação: EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!

A palavra «muximu» revela a mentalidade nativa do africano: significa coração (equivale à alma),
é o ser humano interior, é como que o pequeno homem dentro do mesmo homem. O conceito de
homem não é equívoco nas tradições africanas. É formado por dois elementos: o primeiro, a alma,
vem do Deus Criador e está ligado ao corpo temporariamente, e o outro, o corpo, é transmitido
pelos antepassados. O que vemos e tocamos são aparências. A realidade humana encontra-se dentro
e é chamada «sombra vital» que subsiste mesmo depois morte. Esta «sombra vital» está presente
em toda a parte do corpo, e aí habita como que numa casa vivente. Depois da morte, a alma
transforma-se numa força que possui a capacidade de ubiquidade, a capacidade de conhecer o
presente e o futuro (omnisciência), a posse activa sobre os viventes, que influencia a bondade e a
maldade do mundo sensível. O pensamento, a memória e a inteligência são entendidas de forma
concreta de modo que, se em Descartes, temos o «Penso, logo existo», já no africano temos o «Eu
sinto as coisas, logo existo» (Laissone & Santos, 2000, pp. 16-17).

31
No pensamento africano, a pessoa humana possui vários elementos vitais: o espírito (que liga a
linhagem), o sangue (recebido da mãe), o corpo e a sombra da pessoa, e a respiração. Não são todas
as culturas que acreditam que o homem tenha todos estes elementos, mas reconhece-se o facto de
serem tipicamente duma visão africana. São o suporte da vida humana e servem de intermediários
da complexa, mas necessária, rede de relações que torna o homem dependente do transcendente
(Laissone, 2001, pp. 9-10).

Na concepção africana, a família é tida como o centro da vida do homem e da sociedade. O africano
não se define somente enquanto indivíduo, mas enquanto visto no meio duma comunidade, duma
família. A família é um elemento fundamental da tradição africana por ser uma instituição de
referência e de identidade da pessoa. Pertencer a uma família é um dom, uma riqueza, pois implica
uma identidade social e cultural. Aí, o africano encontra as suas raízes e os valores de referência, e
é aí onde se realiza o provérbio, "a árvore cresce quando afunda no solo as suas raízes". Para o
africano, a família é o lugar onde nasce e se desenvolve a vida; é também o ambiente natural onde
o homem nasce, cresce, encontra protecção e segurança, encontra as razões de continuar a viver,
etc. Não se pode entender o africano fora da família. Esta, sempre entendida no sentido alargado,
é o centro da vida e da sociedade. Na mesma família, vive-se uma boa solidariedade. Esta consiste
precisamente em partilhar com os outros aquilo que alguém tem; por isso ela é concebida como a
arte de saber estar com os seus «irmãos». Nas línguas bantu, o verbo «ter» traduz-se por «estar
com». Assim, dizer «Eu tenho um irmão» significa dizer que «Eu estou com um irmão» (Kalumba,
2002, pp. 22-23).

Para o africano, a palavra possui um grande poder. Isto vale dizer que o africano dá grande valor
ao uso da palavra, pois é por meio dela que ele consegue transmitir a experiência vital que possui
quando entra em contacto com as coisas e com os outros. É por meio da palavra que ele expressa
as riquezas do pensamento e do coração; e é também por meio da palavra que os valores culturais
e tradicionais se transmitem de geração em geração. Lembremos que a oralidade até hoje tem sido
de grande importância embora possa ser muito ameaçada com a modernidade. A palavra é, para o
africano, vida, principalmente quando é dita pelos mais velhos. Ressoam em nós provérbios como:
“Cada velho que morre é uma biblioteca queimada”; ou “A mão do ancião pode tremer, mas a sua
voz costuma acertar o alvo”: pode ser velho sem forças, mas a sua palavra, cada vez que a idade
avança, contém mais sabedoria. A palavra se transforma em existência e exprime-se de vários

32
modos: pela dança, choro, riso, grito e em vários outros acidentes da vida: "eu falo, logo existo"
(Laissone & Santos, 2000, p. 17; Kalumba, 2002, p. 23).

O ser humano é um ser de relações: com os espíritos, com Deus, com os outros. A existência do
vasto número de espíritos que habita o universo (antepassados, espíritos bons e maus, etc.)
confirma a inter-relação entre os homens e o mundo dos espíritos. As boas relações com estes
espíritos são de grande importância para o bem-estar da pessoa. A doença ou qualquer infelicidade
são causadas pela pessoa por manter más relações com o transcendente, com o mundo ou com os
outros. Toda e qualquer violação dos tabus ou a falta de lembrança dos antepassados ou do Criador
resulta em doença ou infelicidade. Para se efectuar a cura ou a eliminação da infelicidade é
necessário, antes de tudo, restabelecer a harmonia entre os elementos principais que constituem a
pessoa humana. Mas isto será ineficaz se, simultaneamente, não se restaurar as relações com o
ambiente e com Deus, os espíritos, os antepassados e outras pessoas. É daí que possamos afirmar
que o sistema africano de cura e a solução de problemas é moldado pela visão africana da realidade
(Laissone, 2001, p. 15).

B- Para o africano, ser homem é ser ético-religioso: o ético e o religioso

A ética do homem africano

A ética do africano se baseia na relação cósmica através de dois princípios: o bem e o mal. O bem
consiste no respeito da harmonia cósmica que se funda em Deus e no contacto com os antepassados,
enquanto que o mal significa o corte dessa harmonia e desse contacto, que pode ser provocado por
um mau acto humano ou pela acção destruidora do chamado «bulogi», «mfiti», «muloyi»: o
feiticeiro. Quando há harmonia então há união numa solidariedade profunda com os outros vivos
ou mortos, mas quando há desarmonia, então dá-se a experiência do mal que gera o medo, a tristeza,
o sofrimento etc.

A vida é um valor sagrado. O amor à vida é característica do homem africano. Este organiza-se e
estrutura-se em volta da vida. Ela é a chave para entrar na alma, na filosofia e na espiritualidade do
africano. Tem um caracter sagrado, por isso deve ser respeitada e protegida para crescer sempre
mais. A morte, neste sentido, é concebida como a continuação da vida no outro mundo. Assim se
compreende o culto aos antepassados e a sua veneração (Kalumba, 2002, 22).

33
Tabus e leis. A vida dos bantu é repleta de tabus e leis tradicionais que regem a conduta humana.
Os tabus diferem das leis. Os tabus actuam por si mesmos, isto é, se alguém viola um tabu, as
consequências recaem directamente sobre ele. Por isso, o tabu é mais forte que a lei, porque pode
se violar a lei e ficar-se impune, basta não ser descoberto. Mas quando se trata de tabu, a coisa é
outra. Basta que se viole um tabu para que a sanção recaia sobre a pessoa. O tabu é entendido em
duas linhas: religiosa (do sagrado) e moral:

a) Na linha religiosa, é tabu, por exemplo, não tirar lenha nem deitar fogo no bosque sagrado.
Quem o fizer terá consequências drásticas na vida: pode morrer ele e toda a sua família ou ele
pode ser devorado por uma fera ou ser engolido por uma jibóia.
b) Na linha moral, por exemplo, é tabu não matar a pessoa humana. Quem matar, morrerá errante
no mato enlouquecido e o seu corpo será comido pelas aves de rapina. Também é tabu não
manter relações sexuais com a irmã legítima porque isto pode causar a morte da mãe ou, se
casarem, só nascerão filhos mortos.

Porém, a ética bantu não está apenas presa nos tabus e nas normas tradicionais, mas também é
expressa através de provérbios e contos, lendas, etc.

O coração é critério de avaliação moral. A aspiração moral do homem é de possuir um coração


bom e viril. Entre o povo nyungwe, por exemplo, quando se diz "nyacintima cikulu" (o que tem
coração grande), quer-se dizer que a pessoa é má, e quando se diz "nyamtima wakufewa" (o que
tem coração mole), quer-se dizer que a pessoa é boa. Daí que o valor do homem se julgue pelo seu
coração. O homem que domina pela força ou pelas armas será temido, mas não é e nem será
superior porque o homem superior é aquele que tem um coração bom e viril.

Homem africano: profundamente religioso

Não existe nas línguas bantu uma palavra que possa corresponder ao termo «religião». É difícil
perceber a razão desta inexistência principalmente quando se vê e se prova a grande religiosidade
que existe no africano. Talvez a razão reside no facto de ser a própria religiosidade do africano a
lhe definir como homem. De facto, a religião, no africano, «invade» todos os sectores da sua
existência, de modo que a própria dimensão do sagrado já está contida no profano. Não podemos
captar o verdadeiro conceito do homem africano se não o definirmos também e principalmente na
sua dimensão religiosa.
34
O homem africano acredita em dois mundos: o mundo visível e invisível. Por meio do seu corpo,
entra em contacto com o mundo visível. Por meio do seu espírito ou dum adivinho (ou outro
intermediário entre o homem e Deus) ou por meio de sacrifícios ou outros gestos sagrados, o
homem africano entra em contacto com o mundo invisível (Laissone, 2001, pp. 4-5). Ele acredita
na existência do Deus Criador, Supremo, Eterno, Providente e Juiz Justo e na existência dum
mundo espiritual. (EA, n. 67).

C- O ancião: símbolo da sabedoria e «depósito» do património africano


Os anciãos em África, desde os tempos remotos, desempenharam um papel decisivo como
fundamento da família, como condutores da vida, elo de ligação entre o passado e o futuro, como
detentores da sabedoria popular e como educadores da juventude. Eles são os pilares da
comunidade não só porque conhecem a história e a cultura da família ou da etnia, mas também
porque servem de referência aos costumes e segredos da vida A sua importância e respeito
aumentam por causa de estarem mais próximos dos antepassados. Dizia Hempaté Ba: "Velho que
morre, biblioteca que arde". É verdade! Os anciãos são a memória do povo, detém a história do
povo (Kalumba, 2002, pp. 22-23).

O ancião é o ponto de referência para falarmos sobre o homem africano. Ele é o ponto de referência
para a vida humana. E não é por acaso que temos o provérbio: A mão do ancião pode tremer, mas
a sua voz costuma acertar o alvo: pode ser velho sem forças, mas a sua palavra, cada vez que a
idade avança, contém mais sabedoria. Assim, a idade do ancião se associa à sabedoria. Na maioria
das línguas bantu, «ancião» e «sábio» são conceitos coincidentes. Por exemplo, o nome mzee, em
swahili, significa, ao mesmo tempo, sábio, ancião, respeitável. Algo narrado à noite, junto à
fogueira por um ancião é uma autêntica lição de vida (Kalumba, 2002). O homem constitui o valor
fundamental depois de Deus. O termo «munthu» está ligado a «Nzambi Mpungo» (Deus Criador),
pois o homem é criatura de Deus («Munthu Nzambi»).

3.1.4- O conceito de pessoa no ensinamento oficial da Igreja

Uma das chaves de leitura para perceber todo o ensinamento social da Igreja, e que perpassa as
entrelinhas de todos os teólogos e doutrinadores é o conceito de pessoa. Esta, vista como criatura
de Deus, criada à Sua imagem e semelhança, valorizada, redimida e glorificada, constituiu um dos
temas mais caros ao Papa João Paulo II. Já na sua primeira encíclica, Redemptor Hominis o Papa
35
já mostra que o ser humano, enquanto pessoa, é uma das suas grandes preocupações, pois ele é
caminho da igreja (n. 14).

De entre os princípios da Doutrina Social da Igreja, a pessoa é tida como o primeiro princípio, pois
ela é dotada de dignidade, de direitos, a começar pelo direito à vida desde a concepção à morte
natural, também é dotada de liberdades, com particular destaque para a liberdade religiosa. Essa
dignidade, igual para todas pessoas humanas, exige o esforço para reduzir as desigualdades sociais
e económicas excessivas e levar ao desaparecimento das desigualdades e relações iníquas.

Este tema constitui também o primeiro capítulo da primeira parte da Constituição Pastoral
Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje (GS, nn.12-22). E este capítulo é intitulado a
dignidade da pessoa humana. Por isso, não iremos apresentar em detalhes os conteúdos deste
capítulo já que este tema será apresentado nos pontos seguintes. O importante neste momento é
apenas apresentar os pontos que norteiam a dignidade da pessoa humana, apresentados neste
documento. É preciso saber que esses pontos apresentam as principais balizas na compreensão do
conceito de pessoa no ensinamento oficial da Igreja.

O primeiro ponto apresenta o homem como ser criado à imagem de Deus. É importante sublinhar
que o homem não é imagem de Deus, mas é criado à imagem de Deus. O ponto a seguir justifica
esta nossa afirmação: a realidade do pecado. No terceiro ponto, encontramos os elementos
constitutivos do homem. No quarto ponto, temos a dignidade da inteligência, a verdade e a
sabedoria. Mostra-se, neste ponto, o que a inteligência é capaz de fazer e a necessidade de
humanizar as conquistas no espírito de verdade. No quinto ponto, temos a consciência moral e a
sua dignidade. A sua dignidade reside no facto de que ela é o lugar secreto, íntimo da pessoa onde
ela se encontra a sós com Deus e consigo mesma. É a dignidade desta consciência que justifica o
ponto seguinte (sexto): a liberdade. A seguir a este ponto, temos o ponto (sétimo) dedicado ao
mistério da morte como experiência humana única. Depois deste tema, no oitavo ponto, temos as
diferentes formas e causas do ateísmo. No nono ponto, temos o ateísmo sistemático. O ponto
décimo mostra a atitude que a Igreja deve tomar diante do ateísmo. E no último ponto (décimo
primeiro), o documento apresenta Cristo como o Homem Novo, o modelo da humanidade realizada
e plenificada, a Pessoa.

36
3.2- A pessoa humana e a consciência moral

Os preceitos morais, como normas objectivas da moralidade, podem ser comparados com os sinais
de trânsito postos nas estradas para indicar a direcção que a pessoa deve tomar em ordem a alcançar
o seu objectivo. A mera existência destes sinais de qualquer modo não é suficiente para ajudar as
pessoas no seu percurso. Elas precisam dum sentido para perceber tais sinais, para seleccionar,
dentre eles, os mais relevantes, e também para ajudar tais pessoas lá onde estes sinais não existem.
Este sentido é a consciência pessoal. Esta é aquela faculdade moral que diz às pessoas
subjectivamente o que é bom e mau e o que manifesta a sua obrigação moral para isto que é bom
e mau. Na mesma linha, escreveu Confúcio que a consciência é a luz da inteligência para distinguir
o bem do mal. A consciência é a bússola que nos guia pelo caminho recto nem sempre o mais fácil,
mas sempre o mais adequado para se progredir na sabedoria e no amadurecimento do espírito.

3.2.1- Consciência moral e consciência psicológica


Não podemos falar da natureza da consciência moral sem primeiro falarmos da delimitação da
própria consciência moral; isto é, devemos contradistingui-la da consciência psicológica, pois não
existe consciência moral sem uma consciência psicológica.

William May faz uma distinção clara entre a consciência moral e a consciência psicológica. O
termo consciência vem do latim conscientia, ae que significa saber com (cum scire), um saber
compartilhado: é o testemunho do facto ou o testemunho da interioridade. E assim, a consciência
pode tomar dois sentidos: ser responsável (consciência moral) e ser consciente (consciência
psicológica). Uma pessoa não pode ser responsável sem que primeiro seja consciente, mas pode o
caso contrário. É na consciência moral que entra a dimensão religiosa.

A consciência moral e a consciência psicológica não são a mesma coisa, mas não convém separa-
las. A consciência moral pressupõe a consciência psicológica, mas esta não necessita da
consciência moral. Contudo, a consciência psicológica encontra a sua realização segundo uma
imagem ou conceito de ser humano, de vivência, etc. na consciência moral; isto é, a consciência
moral prolonga e termina a consciência psicológica, porque a consciência psicológica e a
consciência moral são distintas por razão do seu próprio objecto, mas não são contraditórias.
Podemos afirmar que a consciência psicológica trata do homem, enquanto a consciência moral trata
do homem enquanto um ser moral e com uma dimensão religiosa.

37
A consciência moral tem um carácter imperativo em dois sentidos:

a) É juízo em ordem à acção. O seu saber não é desinteressado. A consciência moral se orienta
para a realização concreta do ego: é um projecto de vida; age para a realização concreta das
acções; mas não é somente acção concreta, mas sim e muito mais uma realização em relação a
um fim.
b) A consciência moral acrescenta à consciência psicológica o carácter de obrigação que
compromete o ego.

3.2.2- Natureza da consciência moral

A- A subconsciência moral

Para explicarmos a consciência moral, Vidal (1983) refere que temos que primeiro passar por
aquilo que chamamos de subconsciência moral. Trata-se daqueles aspectos e dinamismos que se
dão na consciência moral, mas não formam propriamente o núcleo consciente da mesma.

A consciência moral é o caminho que o homem faz e aí encontra imaturidades e retrocessos. Não
é logo-logo claro o que significa no indivíduo agir com uma consciência moral. Quais são estes
retrocessos e essas imaturidades? Quais são os elementos ou estratos que podem definir a
subconsciência moral?

a) O eco da sociedade: é em parte inevitável, pois sempre estamos condicionados pela história.
Às vezes pensamos que estamos agindo com consciência pessoal, enquanto não somos nada
mais que um eco da consciência social, meios de comunicação social ou outros elementos da
sociedade. Acontece muitas vezes que que nós somos o produto duma investigação
psicológico-socio-económica.
b) Muitas vezes, achamos que a nossa consciência seja como a voz do inconsciente que pode ser
individual ou colectiva. Significa que os aspectos da consciência foram colocados na educação,
no tipo da família, dos valores da sociedade onde o sujeito vive, dos traumas infantis, dos tabus,
das tradições, das proibições, das inibições, etc. Tudo isto não constitui, não prepara e nem
ajuda para a consciência moral.

38
c) A consciência como papel-máscara diante dos outros: quantas vezes nós não agimos na base
daquilo que os outros esperam de nós? e a personalidade fica como que algo desligado de nós
mesmos.
d) A consciência como ideal do ego: o ego desdobra-se e se faz exemplar ou arquétipo de si
mesmo. E nascem assim princípios ou critérios de actuação.

B- A preparação para a consciência moral

A consciência moral não é automaticamente adquirida. Ainda na linha de Vidal (1983), o ser
humano precisa dum processo de preparação e adaptação em relação à definição da própria
consciência. Vejamos alguns elementos que podem indicar o caminho possível para a definição da
consciência moral:

a) Para sermos responsáveis e autónomos, devemos aprender que as dúvidas e os limites nos
indicam o caminho a seguir; o homem não nasce com uma consciência moral perfeita, mas
pode ser que exista uma ’via generationis’ (S. Tomás) para alcança-la. O que se deve afirmar
é que existe no ser humano um crescimento moral.
b) O homem tem condicionamentos biológicos e cósmicos, pois ele está no presente. Isto
condiciona a sua capacidade de entender as coisas. Propor um “homem ideal” para o homem
concreto não parece hoje ser um caminho credível porque para o homem, o ideal está sempre e
mais distante do concreto.
c) A subconsciência pode ser entendida como a força falseadora (ou integradora) da vida moral.
Aqui entende-se aqueles valores que muitas vezes são propostos pela sociedade, religião ou
comunidade espiritual. Estes valores muitas vezes falseiam a verdadeira face da consciência
moral.

C- A consciência moral propriamente dita: norma interiorizada da moralidade

Expor a natureza da consciência moral não passa duma tentativa. E falar da consciência moral
propriamente dita é falar dela como norma interiorizada da moralidade. O que significa isto? É
ainda Vidal (1983) que nos responde.

Com norma interiorizada da moralidade queremos entender o juízo da consciência moral como
sendo uma norma interiorizada. Aqui, julgar significa entre dois elementos, optar por um. Neste

39
sentido, consciência identifica-se com a norma. E assim, afirmaremos que a consciência tem uma
forma normativa; isto é, ela obriga a agir; ou ainda, nenhuma acção humana pode ser considerada,
em concreto, boa ou má se não se referir à consciência. A acção humana em si é amoral; isto é,
está fora do critério da moralidade.

Algo é bom ou mau em dois sentidos (GS nº 16):

a) Aspecto valorativo: A consciência é força manifestativa do valor objectivo em relação a uma


situação pessoal concreta. A consciência manifesta a lei exterior e aplica-a aos casos concretos
da pessoa.
b) Aspecto obrigante: A consciência é força autoritativa; isto é, se eu descubro que uma acção
tem valor (aspecto valorativo), então ela me obriga a realiza-la. A consciência moral não só
clareia a situação pessoal à luz do valor objectivo, mas também obriga e compromete a própria
pessoa. Porque é que tem este sentido obrigatório? Porque ela é eco da voz de Deus no interior
do ser humano, ou porque o ser humano tem uma lei escrita por Deus no seu coração.

O que queremos dizer com o termo “interiorizada”? Queremos dizer duas coisas:

a) A consciência moral é a norma da moralidade por onde passam todas as valorações morais das
acções humanas. Se não houver consciência enquanto norma próxima da moralidade, não existe
nem o bom nem o mau nas acções do homem; isto é, não há acção humana embora este faça
algo.
b) A consciência não é uma norma autónoma. Não faz nem o bem nem o mal; isto é, não cria a
moralidade, uma vez que não cria o homem. A consciência tem, como já vimos, um papel
manifestativo e obrigante. Ela exerce uma função de mediação entre Deus (o valor objectivo)
e a actuação da pessoa. A interioridade está em relação ao valor objectivo (Deus) que é somente
experienciado no interior do ser humano.

D- A consciência como faculdade moral e como juízo moral prático

Falar da consciência implica distinguir entre:

a) A consciência como faculdade moral: esta manifesta ao homem as suas obrigações morais e o
impele para o cumprimento das mesmas.

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b) A consciência como juízo moral prático: esta diz ao homem, na sua situação concreta, quais
são as suas obrigações morais.

A consciência como faculdade moral

A consciência é o processo no qual as normas gerais da lei moral são aplicadas para um acto
concreto, dizendo à pessoa qual é a sua obrigação aqui e agora ou julgando os seus actos passados.
Neste sentido, a consciência é considerada um juízo de razão prática. Para S. Agostinho,
consciência é o lugar dum colóquio amoroso entre Deus e o ser humano, e, por isso, da voz de
Deus, lugar do encontro com Deus. Nesta mesma linha, Boaventura e os grandes místicos da Idade
Média colocam o fundamento da consciência na scintilla animae. É este o centro da alma onde o
homem encontra Deus e é o lugar acessível para a contaminação do pecado.

A consciência pode ser definida como aquela faculdade que faz conhecer ao homem as suas
obrigações morais e obriga-lhe para seu cumprimento. Assim, todo homem está capacitado para
procurar realizar a sua vocação última, que, de acordo com o Vaticano II, é uma e divina para toda
a espécie humana (GS, n. 22).

A base elementar e o núcleo da consciência é chamado synderesis pela teologia escolástica desde
o séc. XII. Synderesis é o hábito dos princípios morais últimos, que não são redutíveis a princípios
mais básicos e são imediatamente perceptíveis pelo entendimento prático. O mais universal
princípio da synderesis é que o bom deve ser feito e o mal deve ser evitado. O conhecimento do
seu fim existencial e dos princípios morais básicos deve igualmente ser atribuído à faculdade inata
da synderesis. Para Tomás, synderesis é o hábito da razão.

A synderesis juntamente com o conhecimento moral prático constitui o hábito da consciência. Este
hábito é a pressuposição e a fonte dos juízos práticos e dos ditames que dizem à pessoa a sua
obrigação moral numa situação concreta.

A consciência como juízo moral prático

A faculdade da consciência entra na acção quando a moralidade duma linha concreta de conduta,
que a pessoa quer seguir ou seguiu, e a obrigação moral nesta situação concreta, estão para ser
julgados. Então, a faculdade moral formula um juízo, que é chamado ditame da consciência ou
simplesmente consciência.
41
A consciência neste sentido é definida como o juízo último e prático na moralidade duma acção
concreta, mandando a fazer o que é bom e a evitar o que é mau. Em muitos casos, este juízo não é
reflexivo, mas espontâneo. O juízo da consciência é expressamente reflectido especialmente em
instâncias de dúvida ou de resistência e desobediência aos ditames da consciência.

A consciência é chamada juízo último e prático em contraposição ao juízo prático de natureza


especulativa. O primeiro diz respeito à acção concreta da pessoa numa situação também concreta;
o segundo formula princípios morais gerais que dizem respeito à moralidade das acções humanas
em abstracto, sem nenhuma relação com uma actividade concreta da pessoa aqui e agora.

O ditame da consciência contém um duplo elemento.

a) O primeiro é o juízo na moralidade duma acção concreta que a pessoa intende emitir ou omitir.
Este juízo pode ser erróneo, porque a consciência pode julgar boa uma linha de conduta que é
objectivamente má/errada ou vice-versa.
b) O segundo é o comando ou a obrigação de que aquilo que foi reconhecido como bom deve ser
feito ou devia ser feito, e aquilo que foi reconhecido como mau deve ser ou devia ser omitido.
Esta obrigação é categórica: é obrigatório fazer assim.

3.2.3- Tipos de consciência


A consciência pode ser: antecedente (se o juízo na moralidade duma acção e a obrigação para
realizá-la ou omiti-la se passa antes da realização da acção; portanto, a consciência antecedente
comanda, exorta, permite, proíbe) ou consequente (quando avalia um dado já feito ou omitido;
portanto, a consciência consequente aprova, escusa, reprova ou acusa).

Mas para que a actuação da consciência seja perfeita, se requer que haja rectidão com verdade e
com certeza. Só assim é que uma acção será justa. Se a consciência não é recta, ela é viciosa, se
ela não é certa, então é duvidosa, e se não é verdadeira, então é falsa ou errónea (vencível –
culpável, ou invencível – inculpável).

A- A rectidão da consciência: se não é recta, a consciência é viciosa

A consciência recta é a consciência que actua com a autenticidade da pessoa (e a discussão que
daqui sai é quem definirá tal autenticidade? qual o critério?). E precisa-se que a pessoa aja duma
maneira prudente e procure encontrar o eco de Deus no seu interior. A rectidão é a qualidade
42
fundamental da consciência moral, porque a consciência recta é a norma necessária da moralidade
dos próprios actos. Ela é como que a conditio sine qua non4 da moralidade dos nossos actos. Não
podemos estar em desacordo com a consciência em nossas acções humanas. Sem a rectidão não é
possível agir humanamente. A consciência recta tem todos os direitos da consciência. Existe uma
obrigação moral de seguir os ditames da consciência recta. Existe também o direito de segui-la. E
a sociedade, na teoria, não deveria pôr obstáculos neste direito. A rectidão da consciência é o que
une os cristãos com os homens de boa vontade (GS, n. 16). Ela faz com que seja possível um
diálogo entre os cristãos e os não-cristãos.

A consciência viciosa é a consciência da pessoa que não é sincera consigo mesma, conhece bem o
caminho, mas não actua. Aqui temos todos os vícios, que são contrários às virtudes. Esta não tem
nenhum direito. Por isso, há um dever de formar a consciência para que seja recta, pois ser recto
não se nasce, mas aprende-se.

B- A verdade da consciência: se não é verdadeira, a consciência é falsa (errónea)

A consciência verdadeira é aquela que está de acordo com a verdade objectiva; há uma adequação
da verdade pessoal (rectidão) com a verdade objectiva (verdade). Portanto, a consciência é
verdadeira quando se põe em acção: a de perseguir a verdade objectiva e a ela se adaptar.

A consciência falsa é aquela que não está de acordo com a verdade objectiva. Ela é também
designada por consciência errónea. Ela existe em duas formas: a consciência vencivelmente
errónea (é culpavelmente errónea quando o erro pode ser vencido ou superado) e a consciência
invencivelmente errónea (o erro não pode ser descoberto nem superado; a consciência é
inculpavelmente errónea).

Na consciência invencivelmente errónea, é possível que exista o erro na consciência sem que, por
isso, esta perca a sua dignidade e seu valor obrigatório, porque é considerada regra próxima da
moralidade (Rm 14,23; GS nº 16), e porque o homem age de boa-fé, por isso é regra próxima da
moralidade. Ela, por isso, deve ser seguida. Mas a consciência vencivelmente (e por isso
culpavelmente) errónea não pode nunca ser regra de moralidade. É preciso sair dela porque é uma
situação falhada e, por isso, dela sairá falseado qualquer conteúdo da acção. Não deve ser seguida.

4
“Conditio sine qua non” é uma expressão latina que significa “condição sem a qual”.
43
A definição completa e perfeita da consciência se dá quando há uma adequação entre a verdade
subjectiva e a verdade objectiva. A consciência não é autónoma nem heterónoma, mas “teónoma”:
a consciência não deve seguir uma norma extra (senão fica em jogo a liberdade) nem seguir a
norma inventada pela razão (pois esta é falível e sozinha não é suficiente para a realização moral),
mas deve seguir a voz de Deus que soa no seu interior. É nesta adequação onde se fundamenta a
rectidão (verdade subjectiva) da consciência. A verdade objectiva deve ser igual à verdade da
consciência.

C- A certeza da consciência: se não é certa, a consciência é duvidosa

A certeza significa que existe uma obrigação de buscar e formar uma consciência que seja certa,
porque somente na certeza é que é possível a regra da moralidade. Não se trata de certeza física ou
metafísica, mas de certeza moral prática. Nunca se pode agir com uma consciência duvidosa; pois
é, por consequência, sempre uma acção pecaminosa. É preciso que, antes de agirmos, devamos
tirar todas as dúvidas.

A consciência certa deve ser sempre obedecida quando manda fazer ou quando proíbe. Sempre
deve ser seguida. A razão disto é que a consciência é aquela faculdade apropriada do ser humano
que lhe diz quais são os seus deveres morais.

3.2.4- O desenvolvimento e a formação da consciência

A- O desenvolvimento da consciência

Certa distinção deve ser feita entre a consciência evoluente na criança, que é predominantemente
uma consciência autoritária (must-conscience), e a consciência madura, forma adulta de
consciência (ought-conscience). O importante aqui é saber que no caminho da maturação, a
consciência autoritária da criança se desenvolve em consciência pessoal da pessoa madura.

A consciência da criança se caracteriza por comandos paternais, restrições e proibições. De facto,


a criança não sabe porque deve ou não fazer algumas coisas. Obedece as ordens porque assim estão
prescritas pelos pais. A imitação e a identificação jogam um papel muito importante no
desenvolvimento da consciência da criança.

Como a criança cresce e progride em direcção à maturação, a must-conscience deve ir dando lugar
à ought-conscience do adulto. Esta não é sustentada pelas punições ou imitação externa, mas se
44
origina a partir da convicção do próprio valor da obrigação moral, a partir da própria lei da natureza
humana e do apelo divino.

Mas essa transição duma para outra consciência nem sempre se efectua com sucesso. O
crescimento físico, intelectual e moral nem sempre vão juntos. Há pessoas que permanecem com a
consciência autoritária e não alcançam a maturidade e, assim, o seu comportamento moral tem
como seus princípios, leis externas. Existem vários possíveis estágios na transição da must-
conscience para a ought-consience. E a maturidade perfeita da consciência, aquela que chega ao
ponto de fazer seu o dito de Santo Agostinho (ama e faz o que queres), é muito rara.

B- A formação da consciência

Na linha de Haring (1960), e de acordo com o ensinamento da Igreja, há uma necessidade de formar
a própria consciência para que o juízo moral prático possa coincidir com a vontade de Deus e para
que a consciência autoritária da criança chegue a ser a consciência perfeitamente madura do adulto.
Tal formação da consciência deve realizar-se em cada indivíduo no sentido de:

a) Assumir as implicações dos princípios básicos da moralidade;


b) Aprender a como aplicar as normas de tal forma que possa haver um juízo razoável da
consciência;
c) Escutar a verdade e procura-la a partir das fontes onde ela, de facto, pode ser encontrada.

Na formação da consciência, cada um deve estar consciente dos princípios básicos da moralidade
e sobretudo na escuta da voz interior, que é norma interiorizada. Certamente, uma consciência bem
formada é caracterizada por quatro atitudes: racional, autónoma, altruísta, e responsável.

A pessoa deve estar pronta para escutar o que é que a lei prevê como correcção dos seus próprios
pontos de vista e como uma auto-salvaguarda ou defesa contra as influências deformantes dos seus
juízos. Esta cedência à lei não é submissão imatura, mas é a aprovação resultante da iluminação
das próprias limitações e do conhecimento de que as leis morais são fruto da experiência e do
trabalho comum de muitas gerações.

Portanto, a consciência moral, no ser fundamento maior da dignidade humana, deve ser formada.
O dever formal e moral mais fundamental do ser humano é formar a sua própria consciência: “Se
a luz que há em ti se converte em trevas... quão grandes serão as essas trevas” O meu dever formal

45
é moral quando é realizado no concreto. A consciência é fazer (e não pensar ou sentir ou teorizar)
o bem e evitar o mal.

3.3- A pessoa humana e o discernimento

A consciência moral é a necessária mediação subjectiva (rectidão) da moralidade. A consciência


não gera a moral porquanto ela não cria a moralidade (o bem e o mal). A matéria do bem e do mal
estuda-se fora da consciência. Contudo, por causa da força manifestativa e obrigante (ou
aplicativa), a consciência exerce uma função de mediação entre a realidade (valor objectivo) e a
actuação da pessoa (situação pessoal). Esta função de mediação é feita por meio do discernimento.
Não é tão claro isto, porém na definição do bem e do mal, o homem é chamado a ter uma saída.
Isto não é feito por uma lei que coage o indivíduo, mas pelo discernimento. Não há moralidade
sem discernimento. O contrário do discernimento é o cumprimento da lei.

A fonte funcional da consciência enquanto estrutura subjectivadora da moralidade é o


discernimento. O verbo discernir refere-se aos processos mentais de juízo através dos quais se
percebe e se declara a diferença que existe entre várias realidades. Utiliza-se comumente em relação
a situações de conteúdo de ânimo interior do homem. Pode ser tratado em dois campos: no terreno
da espiritualidade (quando falamos da discrição do espírito) e no terreno da moral (onde temos o
“discernimento ético” que se chama δοκιμάζειν5).

Em síntese, podemos dizer que o discernimento é busca da vontade de Deus no concreto duma
situação determinada. Não é conduta aleatória, nem abstracta, mas significativa e significante no
momento presente. Coloca-se o eu em discussão contínua e a realidade sujeita a esta discussão
contínua.

3.4- A pessoa humana e a lei moral

3.4.1- A noção da lei moral

A mediação subjectiva da moralidade (a consciência) precisa de categorias das mediações


objectivas (valores e normas). Não há consciência se não estão claros aqueles pressupostos que dão
sentido a essa consciência. A consciência dá princípios teóricos duma possível acção. Os valores e

5
Lê-se dokimádzein. Uma palavra grega que significa discernimento prático. É diferente de diakrínein, que é
discernimento no sentido teórico.
46
as normas são dados como actualizações, concretizações, realizações destes princípios. Não é a lei
que determina a acção, mas esta é consequência do que o ser humano quer ser, da sua opção
fundamental.

Na moral tradicional utilizou-se uma categoria para englobar as formas de mediação objectiva da
moralidade. Tal categoria é a lei. As mediações objectivas da moralidade (leis), tendo já clara a
mediação subjectiva da moralidade (a consciência), manifestam-se de múltiplas e várias formas,
das quais, podemos sublinhar três: o valor, a norma e o juízo moral.

A- Conceito de lei moral

Se é verdade que o ser humano lhe foi dado um fim objectivo pelo Criador, então ele deve se
submeter à obrigação de fazer desse fim objectivo o seu fim subjectivo. E quando ele olha para
este fim, uma ordem que deve ser seguida torna-se visível para ele: é a ordem moral. Esta ordem
moral mostra-se por meio da lei moral. Mesmo sabendo que o homem sempre tende a resistir às
leis em nome da liberdade (que é uma falsa liberdade), há um acordo geral de que o homem precisa
de normas morais e de protecção institucional.

Lei, em geral, é um meio ou caminho constante de agir ou reagir, uma regra directiva de actividade.
Existem vários tipos de leis, mas a moral teológica se preocupa por aquelas leis que resultam da
obrigação que o homem tem de orientar toda a sua actividade em direcção a um fim último. Esta
definição inclui demandas obrigatórias como conselhos, recomendações, permissões, proibições,
etc. De acordo com esta definição, toda a lei moral genuína deve ser boa e santa no sentido de que
ela deve cuidar que a actividade humana contribua para a realização do fim último da história
humana e de toda a criação, e prevenir que o homem não se desvie desse fim.

B- A norma moral e a sua ligação com o valor moral

A norma moral é a expressão do valor moral; isto é, uma mediação através da qual se formula o
valor moral. Ela é a expressão lógica enquanto formula com exactidão o conteúdo do valor moral.
Ela é também a expressão obrigante, já que com ela se manifesta a exigência interna do valor moral.
E, por fim, ela é a formulação de princípios morais concretos passando pela estrutura lógica do
discernimento.

47
Haring (1960, p. 297) sustenta que a norma da acção, nos casos concretos, costuma apresentar-se
sob forma negativa (“não deves mentir”), ou sob forma positiva (“diz sempre a verdade”). A ideia
de proibição ou de preceito (obrigação) parece ocupar o primeiro plano. Mas, na realidade, ela
somente pode exercer a sua função orientadora partindo de um valor que solicita, e, não em
primeiro lugar, de uma vontade eu impõe a obrigação. Por exemplo, o valor da lealdade. Este valor
é, em si, muito mais rico do que o simples enunciado normativo, que a ele se refere (sobretudo na
sua formulação negativa). Toda a norma autêntica enuncia um valor. E, reciprocamente, todo
valor tende a ser normativo. Até mesmo a mais perfeita realização dos valores morais cai ou pode
cair sob a ideia de norma a ser seguida. Não é a norma como tal, mas o valor, que constitui o
verdadeiro objectivo do acto moral. Somente ele, pela sua própria natureza de valor e pela relação
que ele estabelece comigo, está em condição de traçar-me uma regra de conduta ou uma norma
para o meu comportamento.

Uma norma moral não é uma coacção arbitrária exercida contra a liberdade humana. É um apelo,
que, partindo do objecto, dirige-se à liberdade. É um convite imperioso no sentido de se preservar
e cultivar o valor encarnado pelo objecto, e, por isso mesmo, de preservar a liberdade. Uma norma
que não tivesse como fundamento um valor e não constituísse um dever “válido”, não chegaria a
tornar-se uma obrigação moral. Mesmo em ordens e mandamentos que, de si, podem assumir
formas diversas (preceitos puramente positivos), mister é que esteja contido algum valor, que
coloque a vontade diante de uma solicitação.

3.4.2- A divisão da lei moral

A lei moral, como norma objectiva da moralidade, divide-se em lei natural, lei revelada e lei
humana.

a) Lei natural: é aquela ordem moral que emerge da natureza do homem e de toda a criação e que
pode ser reconhecida pela razão humana. Esta lei é também chamada lei divina natural porque
a sua origem é directamente fundada na vontade de Deus que criou a natureza e que quis que
as leis resultassem da própria natureza.

b) Lei revelada: a lei revelada é, com certeza, de origem divina. Ela pode pôr em palavras ou em
escrito as obrigações da lei natural para imprimir um conhecimento claro sobre eles, como, por

48
exemplo, os 10 mandamentos. Ou ela também pode criar obrigações adicionais, tal como os
preceitos sobre o descanso sabático, de leis cerimoniais no AT, ou dos sacramentos no NT. Em
contradistinção à lei divina natural, a lei revelada é chamada lei divina positiva. É chamada
“positiva” porque é posta ou submetida pela vontade autoritativa de Deus que endereça o
homem na revelação. No sentido estrito, leis positivas são somente aquelas obrigações que não
são ao mesmo tempo obrigações da lei natural; isto é, são aquelas cuja existência depende dum
decreto adicional da vontade salvífica de Deus.

c) Lei humana: a lei humana, quer seja natural quer seja revelada, distingue-se da lei divina. A
sua fonte imediata de origem é a autoridade humana, a lei humana pode também reafirmar
obrigações da lei natural; por exemplo, a proibição de assassinar ou roubar. Ainda em alguns
outros casos, a lei humana instituirá regulamentos que não são requerimentos directos da lei
natural, mas sim fruto da vontade razoável do legislador; como por exemplo, a fixação do
período necessário para a prescrição duma dívida. Onde o objecto da legislação humana são as
leis naturais, as sanções pela transgressão dessas leis, que são normalmente adicionados pela
lei criminal, não são preestabelecidas pela lei natural. A lei humana se subdivide em: lei civil
do Estado e lei eclesiástica da Igreja, que, na Igreja Católica, é chamada lei canónica. A lei
canónica está contida no Código do Direito Canónico.

Usualmente, a lei humana distingue-se da lei moral no sentido estrito, a qual (a lei moral)
compreende somente a lei natural e a lei divina positiva. Mas sustenta-se que toda a lei humana
justa une-se à consciência. Mas, por outro lado, as leis injustas de princípio não se ligam com a
consciência e, assim, não é aconselhável obedecer tais leis, o que significa que do ponto de vista
da moral, elas não são leis válidas ao todo. Desde então, toda a lei humana justa leva à obrigação
moral.

3.4.3- A lei nova

A lei antiga não existe mais. Ela era uma lei exterior e de formulação negativa. Agora temos uma
lei nova: é a lei do coração, de dentro. Não diz “não matarás”, mas diz “a vida humana é um valor
primário”. Não diz “não roubar”, mas diz “tudo te pertence, mas respeita as coisas do outro”. É,
portanto, preciso mudar o coração.

49
3.5- A pessoa humana e a opção fundamental

As acções humanas não constituem uma pluralidade de acções isoladas e desconectadas. Todas
elas têm normalmente as suas raízes nas decisões básicas que dão um sentido e uma determinação
à vida do ser humano enquanto um todo. Assim acontece porque a vida é uma tarefa coerente, que
deve ser cumprida pelo ser humano. Cada empreendimento criativo que o ser humano realiza não
é a partir de decisões independentes e separadas, mas é na base dum plano ou projecto fundamental,
existencial, dando assim à vida um sentido de unidade. É na base desse plano ou projecto
fundamental que as acções particulares poderão ser preferidas ou admitidas ou rejeitadas.

A decisão por meio da qual a pessoa abraça esta orientação básica pode ser denominada de opção
existencial ou fundamental. Apenas decisões dessa natureza fazem com que alguns actos sejam
moralmente graves, ou capazes de trazer consigo o comprometimento com a bondade ou a
santidade, situação que os cristãos chamam de estado de graça, ou trazer aquela radical recusa da
pessoa ao seu destino verdadeiro, que chamamos de pecado mortal. Na opção fundamental, a
pessoa decide qual será o valor que irá adoptar como o supremo valor para a sua vida. Por isso,
este tipo de escolha deve ser distinto das escolhas particulares.

A escolha fundamental é aquela em que a pessoa joga a sua existência. E a decisão aqui tomada é
uma decisão para ser ou para não ser, para dizer sim ou não a Deus. E, por meio das acções diárias,
cada um escolhe o tipo de pessoa que quer ser de acordo com o sim ou o não fundamental que tiver
dado a Deus, e que orienta a sua existência. É nesta linha que o pecado torna-se pecado como
decisão de dizer não a Deus.

Portanto, pode-se dizer que ter uma opção fundamental significa:

a) Ter um modelo de vida;


b) Ter uma consciência recta, verdadeira e certa;
c) Ter ideia de quem a pessoa é.

Isto constitui a premissa de todo o viver moral. Mas o problema grave que o homem enfrenta é que
ele próprio sabe que não há um modelo de vida, ele sabe que a sua consciência, não poucas vezes,
se encontra viciada, no erro e na dúvida, e ele próprio sabe que a pergunta quem sou eu? constituirá
sempre uma questão aberta e sem resposta satisfatória.

50
O homem deve, em cada dia e em cada momento da sua vida, procurar descobrir o seu modelo de
vida, deve sempre escolher o mesmo e esta escolha deverá consistir na anulação total das outras
alternativas, que também são boas.

Então qual será o caminho a seguir? J. Fuchs vai dizer que a opção fundamental é uma decisão
básica ou um acto maduro de autodeterminação. Isto significa que a opção fundamental é uma
decisão de coerência interna e compõe-se dum conjunto de valores. E podemos concluir dizendo
que é a força que move e determina o agir do ser humano.

3.6- A pessoa humana e a liberdade

Diz a Sagrada Escritura: “Deus quis deixar ao homem o poder de decidir” (Eclo. 15,14). Por isso,
a dignidade do homem exige que ele possa agir de acordo com uma opção consciente e livre;
movido e levado por convicção pessoal e não por força de um impulso interno cego ou debaixo de
mera coacção (Pontifício Conselho “Justiça E Paz”, 2002, n.135).

O que caracteriza a pessoa humana é a liberdade. Perante este facto, uns afirmam a existência da
liberdade e outros a sua não existência. Estas tendências partem de como definem o homem. Para
definir o homem podemos encontrar duas tendências: uma individualista que encerra o homem na
sua individualidade, afirmando que o homem é ser em si mesmo, e outros de tendência altruísta
que afirmam que a pessoa humana é um ser em relação.

Descartes definiu o homem a partir de si mesmo. Ė no “cogito ergo sum” que encontramos o
significado do homem. Para Descartes o homem é um ser egoísta e individual, cujo centro de
atenção é ele mesmo. Martin Buber, diferentemente, vai dizer que o homem é um ser de relações.

O idealismo hegeliano não dá liberdade ao homem. A pessoa é ser de relação com o absoluto. Na
relação com o absoluto o homem é absorvido. O absoluto engole a pessoa.

No marxismo, como no idealismo, o homem é apresentado como um ser de relações. O homem é


o ser que entra em relação com a comunidade e esta o devora. A comunidade é o centro das
atenções. Não existe o homem individual, mas o homem colectivo.

O existencialismo está mais para o sentido. O que existe está para fora. Gabriel Marcel diz que a
pessoa está na relação eu-tu, através do diálogo comunicativo. O homem é ser com os outros. Karl
51
Jaspers distingue três elementos na pessoa: ser histórico, ser em si mesmo e ser comunicativo.
Sartre distingue o homem dos outros objectos. O homem é ser para si. O nada cria-se a partir do
ser.

A antropologia teológica afirma que o homem é pessoa enquanto tem relação com Deus. Deus é
para o homem um “eu” e um “tu”. O homem é pessoa na medida em que se personaliza em Deus.
O homem é um ser livre porque Deus é absolutamente livre. Ė livre na medida em que pode
escolher. O homem em comparação com o animal é livre porque o animal não muda de
procedimento, não tem capacidade de escolher, não tem projecto, não pode progredir nem regredir,
depende de sua condição natural.

Liberdade é a capacidade de dizer sim ou não ao bem e também de dizer sim ou não ao mal. Por
isso, perante o sim ao bem, o homem recebe louvores e graças por parte dos homens e de Deus, e
perante o sim ao mal o homem recebe repreensão e castigo. Por isso, na liberdade, está implicada
uma responsabilidade. A liberdade de (escolha) é ao mesmo tempo uma liberdade para
(responsabilidade). “Liberdade é capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir
ou sua omissão, respectivamente para este ou aquele agir” (RABUSKE, Edvino A., Antropologia
Filosófica, Petrópolis, Vozes, 2001. p.89).

Trata-se de um poder, do eu mesmo que se refere a um acto que tem um objecto. Isto implica duas
situações: primeira, determinado acto deve ser posto ou não e, segundo, eu me decido ou não por
este ou aquele modo de agir. No acto livre, a decisão da minha liberdade é a causa primeira para
que a minha liberdade se torne assim e não de outra forma. Então, no querer livre aparece o agarrar-
se à possibilidade ou aos objectivos. Por isso, a liberdade não é somente a capacidade duma escolha
mas uma decisão sobre mim mesmo e as possibilidades da minha própria existência. A liberdade
de escolha pressupõe como condição de possibilidade que o homem seja livre e tenha autonomia,
espontaneidade, abertura ao ilimitado, e não esteja amarrado, determinado. Esta propriedade é
liberdade fundamental.

A liberdade é uma propriedade da vontade, do querer, do tender. O que pretende é o bem, o valor.
A capacidade de decidir-se livremente por um determinado bem supõe o conhecimento de que este
bem é parcial. Mas o homem não é simplesmente livre como uma pedra. A consciência da liberdade
deve ser conquistada pelo homem.
52
UNIDADE IV – A PESSOA HUMANA COMO SUJEITO DE VALORES

CONTEÚDOS DA QUARTA UNIDADE


4.1- Conceito de valor e de valor ético
4.2- Objectividade e subjectividade do valor e dos valores
4.3- Historicidade dos valores
4.4- Hierarquia dos valores.
4.5- Alguns valores éticos: a sinceridade, a honestidade, a felicidade, etc.
4.6- A pessoa humana, os valores e as virtudes.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA QUARTA UNIDADE


Levar os estudantes a discutirem em torno do conceito de valor e de valor ético, a saberem
distinguir entre o valor em si e o valor ético (moral), a fazerem a distinção entre o valor e os valores,
sua objectividade e sua subjectividade, a analisarem alguns valores éticos (como a sinceridade, a
honestidade, a felicidade, etc.), a analisarem a questão da hierarquia dos valores de acordo com
diferentes critérios e diferentes autores, e a discutirem a importância das virtudes como disposições
e como frutos dos valores no crescimento moral da pessoa humana.

4.1- Conceito de valor

Etimologicamente, valor provém do latim, valere, ou seja que tem algum custo. O conceito de valor
frequentemente está vinculado à noção de preferência ou de selecção. Não devemos porém,
considerar que alguma coisa tem valor apenas porque foi escolhida ou preferida, podendo esta ter
sido escolhida ou preferida por um motivo específico. Segundo Rokeach, valor é uma crença
duradoura em modelo específico de conduta ou estado de existência, que é pessoal ou socialmente
adoptado, e que está embasado em uma conduta preexistente. Os valores podem expressar os
sentimentos e o propósito de nossas vidas tornando-se muitas vezes a base de nossas lutas e de
nossos compromissos. A cultura, a sociedade e a personalidade antecedem os nossos valores e as
nossas atitudes, sendo o nosso comportamento a sua maior consequência. Podem se destacar alguns
valores, como por exemplo: o respeito, perdão, generosidade, amor, etc.

Podemos também definir o valor de seguinte maneira: aquilo que faz com que uma coisa seja digna
de ser tal, uma acção seja digna de ser actuada, e uma pessoa seja digna de existir como pessoa.
Portanto, entra a questão de dignidade, merecimento inerente a si. Dizer que viver é um valor
significa dizer que vale a pena viver, é digno viver independentemente da pessoa que vive.

53
4.2- O valor moral

4.2.1- Tentativa de definição

Pode-se entender o valor moral como sendo toda aquela atitude ou conduta que uma determinada
sociedade considera indispensável para a convivência, o bem geral e a ordem. O valor moral
participa da natureza e das características próprias do valor em geral. Não existe característica
própria do valor moral, porque este tem sentido se o valor em geral tem sentido. Acerca da
definição, o que podemos fazer é dá-la ou a nível ético ou a partir de convencimentos culturais
religiosos, ou a partir de alguns elementos tradicionais. Existe teoricamente alguma pista do valor
(algo de específico) na linha moral: o valor moral se coloca na estrutura da acção humana enquanto
humana; isto é, enquanto a acção humana define o próprio ser humano. Se a acção humana define
o ser humano, então o valor moral se coloca nessa acção humana. O valor moral tem por “natureza”
acções livres nas quais o homem se define a si mesmo. As acções livres definirão, portanto, o valor
moral.

4.2.2- Características do valor moral

a) O valor moral faz referência imediata e directa à subjectividade. Esta subjectividade deve ser
entendida como “intencionalidade”, como “liberdade” e como “compromisso interno”. A
liberdade tem que ter um aspecto objectivo e a acção tem que ser concreta e exteriorizada,
porque os outros (a sociedade, a cultura, a Igreja, etc.) devem julgar a minha acção para dizer
se o valor é ou não objectivo. Se não há subjectividade do valor moral então não pode haver a
objectividade do valor moral.
b) O valor moral se impõe por si mesmo; isto é, tem uma justificação por si mesmo.
c) O valor moral tem como características: a relação com os outros valores; não estão separados;
e existe uma ordem de valores, que têm uma inter-relação entre eles (ex.: liberdade –
responsabilidade – justiça, andam juntos).
d) O valor moral é o que condiciona a pessoa na sua realização; dá razão, justifica o facto de a
pessoa ser homem, onde existe e há interligação entre responsabilidade e liberdade.

Nesta referência, o valor moral fala em relação à construção normativa do humano. Na realização
ideal do humano reside o constitutivo do valor moral. E, para se realizar este valor moral, podem
ser usadas diversas fórmulas como a seguinte:
54
a) O constitutivo intra-mundano do valor moral cristão consiste no dinamismo da humanização
crescente, na história da humanidade. Para Paulo VI, esta ideia significa promover todos os
homens e o homem todo, pois:
b) O homem é um processo histórico e não uma realidade abstracta.
c) O dinamismo, sempre crescente, não é repetição de algo previamente dado. Há que
experimentar se as leis preexistentes respondem a este dinamismo crescente ou não.
d) A libertação de cada homem e de todos os homens realiza-se sem concessões fáceis por um
lado a visões totalitárias que esvaziam o valor do indivíduo e, por outro lado, a visões liberais
que não têm proposições libertadoras em relação à actividade humana.
e) O desenvolvimento da humanidade eleva as capacidades humanizadoras do “ego” e do “outro”
e das “estruturas sociais”.
f) O homem comprometendo-se no concreto e utilizando uma imaginação criadora, busca uma
nova humanidade.

4.3- Objectividade e subjectividade do valor e dos valores

Comecemos com a seguinte pergunta: o valor é inerente à coisa em si ou diz respeito à pessoa que
o aprecia num outro objecto? A resposta é: o valor é inerente à coisa em si e diz também respeito
à pessoa que o aprecia. Ou por outra, o valor é ao mesmo tempo objectivo e subjectivo. Para tal,
temos que levantar o assunto da quantificação dos valores: quantos valores existem? Há mais
importantes e menos importantes? Objectivamente falando, existe o valor principal gerador de
todos os outros? A ideia de que Deus é o valor supremo é aceite por todos? Haverá pessoas que
negam que a vida seja um valor para todos? Se se pode falar da perca de valores, a vida em si
também pode perder o seu valor? Quando dizemos que alguma coisa perdeu seu valor, certamente
pretende-se dizer que a coisa já não tem função para a pessoa. Aqui levanta-se a questão do
relativismo dos valores: são relativos ou absolutos? Enquanto algo mantiver o seu valor,
necessariamente empenha a pessoa para a sua realização. Os valores mexem connosco, criam em
nós motivos e forças suficientes para fazermos o que o valor requer para a sua efectividade.

Por um lado, existem tantos valores quantas coisas, acções e pessoas existem. Mas por outro lado,
no sujeito, existe um e somente um valor: a disposição do sujeito para reconhecer o valor de cada
coisa e deixar-se arrastar por ele. Tal disposição interior é fruto de educação, de assimilação, de

55
processo de interiorização (consciente e inconsciente), de meditação, pois essa disposição interior
implica uma certa postura ético-religiosa de simpatia, de sinergia, de afeição, de amor, de estima
diante das coisas, das acções e dos outros.

Portanto, o valor tem sua existência na fusão, no contacto, na relação entre a pessoa e a outra
realidade, uma relação que torna possível a realização da pessoa nesse contacto com tal realidade.
O valor tem uma carga de objectividade (por causa da ligação directa à realidade) e uma carga de
subjectividade (porque empenha o sujeito na sua compreensão e na sua realização). Nos valores, a
pessoa e a comunidade realizam a sua identidade quer como indivíduo, quer como grupo. Por isso,
dizemos também que o valor está ligado à imagem de homem e de comunidade que temos de nós,
o valor está ligado à realização dessa imagem em nós. Por isso, os valores são um dos elementos
básicos em que uma cultura que tem uma identidade própria joga a sua existência.

Mas pensemos nisso: o valor moral refere-se, por um lado, a realidades absolutas, e, por outro lado,
é, ao mesmo tempo, e dialecticamente, imutável e mutante, único e diverso, universal e situacional.
Tendo em conta que os valores são mutáveis podem condicionar as futuras normas, para daí fazer-
se o juízo moral. Portanto, o valor é o fim dum processo. Os valores morais são mutantes, plurais
e situacionais na medida em que tal constitutivo se encarna necessariamente na história e na cultura
de cada um, em particular, e de todos, em geral. A “captação” dos valores a partir da consciência
moral e mediante o discernimento ético é a assimilação dos valores éticos que se realizam e se
convertem em atitudes (acções). Neste contexto, se as atitudes não estão de acordo com a estrutura
ética, então o homem não é moral. (Laissone, 2012).

O valor da pessoa humana, da vida e de outros aspectos ligados à dignidade da pessoa humana não
são discutíveis, mas são definidos como algo que deve ser respeitado por todos sem qualquer
distinção. Seriam, neste caso, valores objectivos. Esses valores, numa sociedade que prima por uma
vida moral elevada, são caracterizados por uma condição constitucional ou jurídica normada, isto
é, são contemplados como leis positivas, com carácter de obrigação jurídica.

4.4- A perenidade e a historicidade dos valores

Com o evoluir do ser humano e da comunidade cultural, os valores mudam, pois estes acompanham
a evolução da história e da cultura do povo. O tipo de respostas que cada sociedade precisa de dar
para os seus problemas concretos muda com o andar do tempo. Isto não significa perda de valores,
56
mas significa renovação dos mesmos valores em função da nova imagem da comunidade e do
indivíduo que se vai impondo gradualmente com o andar do tempo.

Mas entre os pensadores desta problemática, há uma séria discussão: Serão os valores perenes, isto
é, independentes do tempo, do espaço e dos seres humanos concretos que os realizam? Ou, pelo
contrário, dependem das épocas, dos homens e das culturas? Os defensores da primeira tese fazem
parte das chamadas correntes essencialistas ou substancialistas, os da segunda pertencem às
correntes relativistas.

4.4.1- Teorias essencialistas: perenidade dos valores

Segundo as teorias da perenidade dos valores, as coisas, os objectos, as acções dos homens, são
portadoras de valores, mas estes estão mais além, numa esfera distinta que poderemos designar
como ideal. Os valores, que são realidades irreais, tornam-se reais, isto é, assumem uma existência
concreta, encarnam-se. O valor não é um ser em si mesmo, mas um ser que está noutro ser. Assim,
por exemplo, um valor estético converte-se em existencial no quadro do pintor; o valor ético, na
acção do homem virtuoso. O quadro do pintor passa a chamar-se ‘belo’; a acção do homem, a
chamar-se ‘boa’. Isto é: os valores, portanto, só podem tornar-se existenciais sob a forma de
qualidades, características, modos de ser. Não possuem um ser independente, mas são de certo
modo “trazidos”, “sustentados” pelos objectos nos quais se realizam; estes objectos tornam-se o
seu “suporte”. As coisas são então “portadoras” dos valores.

Nestas correntes, o conteúdo dos valores é absoluto e imutável. A apreensão que fazemos dos
valores pode variar com os costumes, os hábitos, as instituições, as épocas, as culturas e os
indivíduos, mas os valores, enquanto essências situadas num plano ideal, permanecem intactos.
Podem ser melhor ou pior captados ou formulados, mas, em si mesmos, permanecem absolutos e
imutáveis. (Johannes Hessen, A filosofia dos valores).

4.4.2- Teorias relativistas: historicidade dos valores

Estas teorias rejeitam o carácter absoluto e objectivo dos valores e afirmam a sua historicidade. Os
valores não pairam fora do tempo, não são imutáveis mas relativos. Dependem dos contextos
culturais e civilizacionais, das épocas e dos indivíduos concretos que os produzem.

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De um modo geral, as teorias relativistas partilham a tese segundo a qual descobrir os valores é
descobrir a actividade do sujeito. Não faz sentido falar de valores abstraindo-se o sujeito ou
minimizando-o, como defendem as teorias essencialistas que tratam os valores como formas
intemporais. Pelo contrário, para os relativistas, o sujeito é o elemento decisivo e os valores são o
resultado da sua actividade. Neste sentido, os valores são subjectivos, isto é, são o resultado da
acção e da apreensão de um sujeito.

Assim, para o relativismo axiológico, os valores respondem às características e às necessidades


específicas das sociedades, dos indivíduos ou dos períodos históricos determinados. Como tal, são
mutáveis, tal como os homens e as sociedades que os produzem. Não existem valores universais.

4.5- A hierarquia dos valores

O grande problema sobre os valores está na determinação da sua hierarquia. É fácil dizer que há
uma hierarquia, mas o difícil é formulá-la. É importante a reflexão feita por Vieira Miguel Manuel
(2015), no seu artigo intitulado Classificação, hierarquia e polaridade dos valores, que ora
apresentamos.

A certeza que temos é que não atribuímos a todos valores a mesma importância. Na hora de
tomarmos uma decisão, cada um de nós hierarquiza os valores de forma muito diversa. A
hierarquização é uma propriedade que tem os valores de se subordinarem uns aos outros, isto é, de
serem uns mais valiosos que outros. As razões porque o fazemos são múltiplas. Por exemplo, a
maioria da população mundial continua a passar graves carências alimentares. Todos os anos
morrem milhões de pessoas por subnutrição. É de esperar que na hierarquia dos valores destas
pessoas, a satisfação das suas necessidades biológicas esteja em primeiro lugar.

Os valores têm a particularidade de se distinguirem uns dos outros, de estabelecerem entre eles
uma relação de polaridade que os faz distinguir em negativos e positivos, de se distinguirem entre
eles como valores mais altos e mais baixos, encontrando-se ao mesmo tempo numa relação de
hierarquia uns com os outros.

À problemática da hierarquia dos valores, dedicou-se sobretudo Max Scheler (citado em Manuel,
2015), que nos forneceu cinco critérios para determinar a altura dos valores:

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a) Em primeiro lugar, é o critério da duração: os valores são tanto mais altos quanto maior for a
sua duração. Duradouro é o valor que se prolonga no tempo. Dos valores faz parte o fenómeno
de duração e perdurabilidade. Os valores mais baixos são os mais transitórios e de menos
duração e os mais altos são os eternos.
b) Em segundo lugar, é o critério da indivisibilidade: os valores são tanto mais altos quanto menos
divisíveis forem. Enquanto os bens materiais, para poderem ser participados por todos, têm de
ser divididos (tal acontece com os recursos alocados à saúde, para todos poderem participar
deles, têm de ser distribuídos), com os valores espirituais tal não se passa, uma vez que é da
sua essência serem ilimitados, não sofrendo divisão; a contemplação do divino é algo que pode
ser realizado por uma pluralidade de sujeitos, não sofrendo por isso qualquer tipo de divisão ou
de diminuição.
c) Em terceiro lugar, é o critério da fundamentação: o valor que serve de fundamento a outros é
mais alto que os que se fundam nele.
d) Em quarto lugar, é o critério da satisfação profunda: os valores são tanto mais altos quanto
mais profunda é a satisfação que a sua realização produz em nós.
e) Em quinto lugar, é o critério da relatividade: os valores são relativos. Existem valores que só
podem ser praticados por determinados seres. O valor da saúde (valor vital), por exemplo, só é
relativo aos seres com vida, aos seres vivos.

Estes critérios para determinar a altura dos valores foram alvo de algumas críticas sobretudo da
parte de Hartmann (citado por Manuel, 2015), que considerou que originavam uma escala muito
grosseira e que as distâncias entre os vários valores se encontram esboçadas ainda de uma forma
muito sumária. Em todo o caso pode-se sustentar que o trabalho feito por Scheler foi muito
importante, na medida em que já permitiu com alguma objectividade determinar a altura das
diferentes classes de valores relacionando-os uns com os outros.

É evidente que não valoramos toda a acção moral da mesma maneira, mas a nossa consciência
valorativa consegue atribuir mais valor à acção de um profissional de saúde que, com uma decisão
ponderada, conseguiu salvar a vida a um doente, do que a um acto de dar esmola a um pobre.

Eis um exemplo concreto duma hierarquia dos valores no diagrama seguinte:

59
Figura 1: Hierarquia dos valores
Fonte: adaptado de Hierarquia de valores.

Como se pode ver neste diagrama, a conexão entre o valor primário e os secundários se realizam
por meio do que se pode chamar de convivência social condicionada.

A vida (vida humana) é o valor fonte ou fundamental do qual depende a existência do ser humano
(a pessoa). A vida é um valor vital: nascer vivo é condição da personalidade. A vida em sociedade
(convivência social condicionada) é condição intermediária e indispensável para o
desenvolvimento do ser humano, pois o ser humano não se realiza vivendo isoladamente, sem
contacto com seus semelhantes. É na convivência social onde se realizam e se tornam necessários
os valores secundários, a saber, o amor, o respeito, a dignidade, a verdade, a bondade, a justiça etc.
Todavia, implícito no amor encontramos o respeito, o perdão, a complacência, a condescendência,
o afecto, a pureza, a obediência. A verdade implica rectidão, franqueza, sinceridade. O bom
envolve o benévolo, o bondoso, o benigno. Belo é o agradável, o sublime, o majestoso, o grandioso,
o imponente. Útil é o favorável, o lucrativo, o proveitoso, o vantajoso. Nobre é o generoso,
longânime, o magnânimo (grandeza de alma). Bem é o que é certo (correcto) o que causa felicidade
e benefício nas pessoas. Justo é o equitativo, o imparcial o preciso. Digno é o apropriado (o
adequado), a decência e o decoro que exigem respeitabilidade.

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Depois desta breve reflexão sobre a hierarquização dos valores, podemos extrair os seguintes
princípios gerais acerca duma escala ou hierarquia de valores:

a) Os valores espirituais prevalecem sempre sobre os valores sensíveis;


b) Se exceptuarmos os valores religiosos, na classe dos valores espirituais o primado pertence aos
valores éticos;
c) Para aqueles que os admitem, os mais altos de todos os valores, são os valores religiosos; todos
os outros se fundam neles.

4.6- A tipologia ou classificação dos valores

4.6.1- Tipos de valores

Os valores são como que a coluna vertebral de uma convivência sã entre os seres humanos. Mas
essa coluna vertebral constrói-se com os nossos valores individuais, com nossos valores familiares,
incluindo até os nossos valores regionais e nacionais. Mas tudo começa com a pessoa.

Não existe um ordenamento desejável ou uma classificação ou tipologia única dos valores. As
hierarquias valorativas são mutáveis, flutuam de acordo com as variações do contexto. É
importante que a maioria das classificações propostas inclua a categoria de valores éticos e valores
morais. Estes são alguns dos muitos valores que regem a nossa vida e o nosso comportamento:

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Figura 2: Tipologia dos valores
Fonte: https://sites.google.com/site/wikiejetransformadorescolar/, 2 de Fevereiro de 2017.

Uma outra classificação ou tipologia dos valores consiste na distinção entre valores instrumentais
e valores finais (ou terminais). Para Rokeach (1973, citado por Sousa Jr., 2010), os valores finais
são os valores desejáveis e referem-se às metas que uma pessoa gostaria de atingir em sua
existência. Já os instrumentais, contêm os valores preferenciais de comportamento ou os meios
para se atingir os valores terminais. De acordo com a pesquisa deste autor, os grupos de valores
podem ser subdivididos conforme o critério no foco para o qual está centrado, ou seja, centrado na
pessoa ou indivíduo (self-centered) ou no grupo (social-centered), conforme demonstrado no
esquema a seguir:

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Figura 3: Tipologia dos valores de acordo com a sua natureza (terminais versus instrumentais)
Fonte: adaptado de M. Rokeach (1973, citado por Sousa Jr., 2010).

4.6.2- Valores éticos fundamentais: liberdade, justiça, responsabilidade e verdade

Os valores éticos podem ser muitos, muito variados e com diferentes percepções. Mas o ser humano
conta com quatro valores éticos fundamentais, que poderia dizer-se, são a base ou o alicerce da
educação das pessoas entre elas mesmas. Estes valores estão presentes e enraizados dentro da nossa
consciência e do nosso actuar. Quando se fala de algo fundamental, está-se a falar de algo sem o
qual nada podemos fazer. Por isso, esses valores são de extrema importância.

A aplicação desses quatro valores é fundamental para uma sã convivência do ser humano em
sociedade. Agora vejamos em que consiste cada um deles.

a) A liberdade: Define-se como sendo a qualidade que qualquer ser humano tem de escolher o seu
destino, de decidir por si mesmo sobre os seus próprios actos, quer dizer, eu sou livre quando
não há nada e ninguém que decide por mim. Algo importante que se deve recordar em relação
à liberdade é que assim como sou livre para escolher os meus actos, assim também devo ser
responsável pelas consequências desses mesmos actos, caso contrário, estaria a cair na
libertinagem, que significa não assumir as consequências dos meus actos. É nessa linha que a
liberdade pode-se definir como a capacidade que o ser humano tem de escolher o melhor para
o seu crescimento e, consequentemente, o crescimento da sociedade.

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b) A justiça: Este valor ético é a qualidade de dar a cada um aquilo que por direito lhe corresponde,
seja bom ou mau. A justiça é cega, quer dizer que não olha para quem julga. Desta maneira,
não haverá parcialidade no momento de dar o seu merecido a uma pessoa.
c) A responsabilidade: A responsabilidade é a faculdade humana de assumir as consequências dos
seus próprios actos, é cumprir com as obrigações contraídas, quer seja por meio de um contracto
legal ou seja pela palavra dada a uma pessoa. Ser responsável é cumprir com os deveres
contraídos, apesar de todos estes não serem cómodos. Um exemplo prático de responsabilidade
é quando se tem um filho, o qual é consequência do acto meu e da minha parceira, este filho
vai precisar do meu sustento económico, imputa-me a responsabilidade de ter que lhe dar de
comer e de vestir, e para isso, devo conseguir um trabalho, que, mesmo que seja pesado, devo
aceita-lo para proporcionar o sustento ao nosso filho, e isto far-nos-á responsáveis desse nosso
acto.
d) A verdade: A palavra verdade é muito usada para se referir a uma pessoa honesta, sincera e de
boa-fé, uma pessoa na qual podemos confiar. A verdade é o que define o real do falso, algo
verdadeiro é algo que podemos comprovar. O ser honesto significa cumprir com o que ofereço.
“A verdade vos libertará” é uma frase que se encaixa perfeitamente, já que só com a verdade
poderemos distinguir o bem do mal e sermos pessoas melhores.

4.6.3- Alguma lista de definições de alguns valores éticos

A lista é muito grande. E nem pretendemos esgotar todos os valores éticos. Mas, partindo de
Aristóteles, podemos dizer que ele sintetizou os valores éticos em: coragem, temperança, liberdade,
magnanimidade, mansidão, franqueza e justiça. A moral relaciona-se com a nossa maneira de agir,
enquanto a ética conduz-nos à reflexão em torno do que é certo ou errado naquilo que fazemos. Os
valores, por sua vez, definem o que eu quero, o que eu posso e o que eu devo, porque nem tudo
que eu quero eu posso, nem tudo que eu posso eu devo, e nem tudo que eu devo eu quero.

Eis alguns valores éticos e suas definições:

a) Justiça: é o conjunto de regras estabelecidas em cada sociedade, com as quais se consegue uma
convivência cordial, respeitando os direitos iguais dos demais seres humanos. Isto se consegue
autorizando, permitindo ou proibindo certas acções específicas que podem afectar ou beneficiar
o colectivo social.
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b) Honestidade: define-se como uma característica humana que faz com que o ser humano se
deixe conduzir na sinceridade e na justiça, expressar o respeito por si mesmo, por alguém em
si mesmo assim como em suas acções, e respeitar a todos os demais.
c) Pertença: é um valor no qual se considera cada um dos membros da nossa comunidade ou
grupo como família e portanto junto com essa pessoa se assumem e se afrontam seus sucessos
e fracassos. A pertença não se infere, ela se sente, se experimenta.
d) Respeito: trata-se de reconhecer os direitos iguais de todos os indivíduos assim como da
sociedade em que vivemos. O respeito consiste em aceitar e compreender as diferentes formas
de actuar e de pensar do outro ser humano, sempre e quando não contradizem nenhuma norma
ou direito fundamental. Respeitar a outra pessoa é colocar-se no seu lugar, cuidar de entender
o que é que a motiva e, com base nisso, ajuda-la se for o caso.
e) Lealdade: a lealdade, sendo uma característica que leva o ser humano a ser fiel e agradecido a
uma outra pessoa ou entidade, consiste em nunca abandonar ou deixar a sua sorte uma pessoa,
ou grupo social ou país. O contrário da lealdade é a traição. Por isso, nunca trair uma pessoa
ou uma nação é ser leal.
f) Humildade: a humildade consiste em aceitarmo-nos tal como somos, com os nossos defeitos e
as nossas virtudes, sem querermos nos enaltecer por causa das nossas posses materiais ou por
causa do nosso grande conhecimento intelectual. Ser humilde é incompatível com o ser
pretensioso, egoísta ou interesseiro.
g) Responsabilidade: é o valor moral que permite a uma pessoa administrar, Valor moral que
permite a una persona administrar, reflexionar, orientar e valorizar as consequências dos seus
actos. Ser responsável é sempre imputar-se os actos realizados por nós mesmos, aceitando as
consequências, sejam elas boas ou más, do nosso agir quer no âmbito pessoal ou laboral.
h) Sinceridade: é o valor ético que dignifica os seres humanos pelo facto de terem uma atitude de
acordo com os seus princípios e consequentes consigo mesmos, mantendo a sinceridade diante
de diversas situações, sendo honestos para com todos. Uma pessoa sincera sempre dirá a
verdade mesmo que isto custe algum prejuízo para ela ou mesmo para a sua família.
i) Tolerância: este valor é tido como parte do processo que temos na vida de admitir a igualdade
de direitos humanos respeitando as múltiplas diferenças existentes entre os seres humanos, com
o fim de conservar melhores relações pessoais.

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j) Solidariedade: se define como a capacidade de trabalhar em equipa respeitando e ajudando os
outros o mais que se pode, comprometidos por uma meta em comum. A solidariedade provém
do instinto humano de buscar a convivência social, de se sentir irmanado com os seus
semelhantes, estabelecendo com eles uma total cooperação em projectos ou metas em comum.

4.7- A pessoa humana, os valores e as virtudes

4.7.1- A natureza das virtudes

A virtude é um hábito que nos dá ao mesmo tempo a inclinação e a força para fazer bem aquilo que
é moralmente bom. Diz o Catecismo da Igreja Católica que a virtude é uma disposição habitual e
firme para fazer o bem. Ela permite não só a pessoa praticar actos bons, mas também a se empenhar
para dar o melhor de si. Com todas as suas forças sensíveis e espirituais, a pessoa virtuosa tende
sempre ao bem, procura-o e escolhe-o na sua vida prática. Mas este bem deve ser reconhecido
como um bem maior.

Por isso, na linguagem religiosa, as virtudes têm em vista o supremo bem, que coincide com Deus
e com a realização da sua vontade. Dizia S. Gregório de Nissa que “o objectivo da vida virtuosa é
tornar-se semelhante a Deus” (nº1803). Neste sentido, uma virtude genuína brota a partir duma
correcta opção fundamental. Ela está enraizada numa inequívoca e bem definida orientação para
um fim supremo, que é a glorificação de Deus e a realização do seu plano salvífico para o ser
humano e para o mundo todo. É essa orientação que dispõe a vida da pessoa no seu todo e imprime
nela uma ordem. Todas as virtudes particulares ganham o seu sentido na medida em que
permanecem enraizadas numa opção verdadeira e numa escolha existencial, que consiste no
inequívoco amor a Deus e à sua vontade.

4.7.2- As virtudes humanas

As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência
e da vontade que regulam os nossos actos, ordenando todas as nossas paixões e tendências
instintivas e guiando-nos segundo a razão e a fé. Propiciam assim a facilidade, o domínio e a alegria
para levar uma vida moralmente boa. Uma pessoa virtuosa é aquela que por vontade totalmente
livre, escolhe e pratica o bem (CIC, nº1804).

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As virtudes humanas são adquiridas pela educação, por actos deliberados e por uma perseverança
sempre retomada com esforço. O religioso acredita que elas são purificadas e elevadas pela graça
divina, pois, com o auxílio de Deus, elas forjam o carácter e facilitam a prática do bem. Por isso, o
homem virtuoso sente-se feliz em praticá-las (CIC, nºs 1810-1811).

4.7.3- A primazia da caridade e a diversidade das virtudes

A caridade é a maior de todas as virtudes. Diz o Concílio Vaticano II que “o primeiro e o mais
necessário dom é aquela caridade por meio da qual nós amamos Deus acima de todas as coisas, e
o próximo por causa de Deus” (LG, nº 42).

A principal virtude, neste caso a caridade, adquire a sua perfeição se e somente se o ser humano
possui todas as outras virtudes particulares ancoradas a esta virtude principal. De facto, a caridade
só pode ser perfeita somente se o ser humano não é apenas justo, generoso e honesto, mas também
quando for paciente, compassivo, dócil, agradecido, etc. Assim, a caridade não pode coexistir com
algum hábito mau. Nesta vertente, a proposição dos estóicos é verdadeira: o ser humano ou tem
todas as virtudes ou não tem nenhuma. Por isso, a adesão deliberada ao vício torna-se totalmente
incompatível com a virtude da caridade, ou por outra, a virtude da caridade não pode coexistir com
algum vício sério.

A diversidade ou a distinção entre as virtudes reside no facto de que a principal virtude da caridade
precisa de ser aplicada aos diferentes objectos ou às diferentes situações. A distinção principal é
feita entre as virtudes teologais e as virtudes morais. A tradição elenca três virtudes teologais: a fé,
a esperança e a caridade. Entre as virtudes morais, existem quatro importantes, chamadas de
virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança.

4.7.4- As virtudes teologais e cardeais

A- As virtudes teologais

As virtudes humanas se fundam nas virtudes teologais que adaptam as faculdades do homem para
que possa participar da natureza divina. As virtudes teologais assim são chamadas porque se
referem directamente a Deus, isto é, têm Deus como seu objecto imediato. Na mesma linha, temos
também outras virtudes, como virtude de religião, temor de Deus, etc. As virtudes teologais
fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do homem crente, sobretudo do cristão.

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Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para
torná-los capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da
acção do Espírito Santo nas faculdades do ser humano. Existem três virtudes teologais: a fé, a
esperança e a caridade. (CIC, nºs 1812-1813).

a) A fé: A fé é a virtude teologal pela qual o ser humano crê em Deus e em tudo o que Ele disse e
revelou, e que a Santa Madre Igreja ensina para crer, porque Ele é a própria verdade. Pela fé, o
homem livremente se entrega a Deus. Por isso o fiel procura conhecer e fazer a vontade de
Deus. O dom da fé permanece naquele que não pecou contra ela. Mas é morta a fé que não
estiver acompanhada com as obras, porque isto mostra que ela está privada de esperança e
amor. (CIC, nº1814-1815).
b) A esperança: A esperança é a virtude teologal pela qual o ser humano deseja como sua
felicidade o Reino dos Céus e a Vida Eterna. E tal Reino não é visto apenas como algo além da
morte, mas como uma realidade intra-histórica, projectada para o futuro, mas dentro desta
mesma história. Procura orientar os acontecimentos em vista a um fim glorioso e desejado por
Deus, pois a vida eterna inicia já nesta vida. Esta virtude responde à aspiração de felicidade
colocada por Deus no coração de todo o ser humano, assume as esperanças que inspiram as
actividades dos homens e purifica-as, para ordena-las ao Reino dos Céus, protege contra o
desânimo, dá alento em todo esmorecimento, dilata o coração na expectativa da bem-
aventurança eterna, e o seu impulso preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade
(CIC, nº1818).
c) A caridade: É a virtude teologal por meio da qual o ser humano ama a Deus sobre todas as
coisas, por si mesmo, e ao seu próximo como a si mesmo, por amor de Deus. Esta é a virtude
primeira. E Jesus fez dela o seu e o novo mandamento: amar como Ele amou. O exercício de
todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o “vínculo da perfeição”; é a forma
das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de suas práticas de fé. A
caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição
sobrenatural do amor divino. A prática da vida moral, animada pela caridade, dá ao ser humano
a liberdade espiritual dos filhos de Deus. Já não está diante de Deus como escravo em temor
servil, nem como mercenário à espera do pagamento, mas como um filho que responde ao amor
daquele que o amou primeiro. (CIC nºs 1822-1828)

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B- As virtudes cardeais

Santo Ambrósio chamou a essas quatro virtudes de virtudes cardeais, porque tais são consideradas
“dobradiças” (do latim, cardo, cardinis), pois em torno delas gira toda a vida moral. Então o
esquema das virtudes cardeais pode ser suplementado ainda por outras virtudes morais, que ficam
agrupadas em torno destas quatro. Nomeadamente são: a prudência, a justiça, a fortaleza e a
temperança. E estas virtudes são louvadas na tradição e na filosofia grega antiga, e em muitas
passagens da Escritura sob outros nomes.

a) A prudência: É a virtude que dispõe a razão prática a discernir, em qualquer circunstância, o


nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados para realizá-lo. Diz S. Tomás que a
prudência é a “regra certa da acção”. Ela não se confunde com a timidez ou o medo, nem com
a duplicidade ou a dissimulação. Ela é também chamada auriga virtutem; isto é, a “portadora
das virtudes”, porque conduz as outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida. É ela que
guia imediatamente o juízo da consciência. O homem prudente decide e ordena a sua conduta
seguindo este juízo. Graças a esta virtude, aplicamos sem erro os princípios morais aos casos
particulares e superamos as dúvidas sobre o bem a praticar e o mal a evitar (CIC, nº1806).
b) A justiça: Consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido.
A justiça para com Deus chama-se “virtude de religião”. Para com os homens, ela nos dispõe
a respeitar os direitos de cada um e a estabelecer nas relações humanas a harmonia que promove
a equidade em prol das pessoas e do bem comum. O homem justo distingue-se pela correcção
habitual dos seus pensamentos e pela rectidão da sua conduta (CIC, nº1807).
c) A fortaleza: A fortaleza é a virtude moral que dá segurança nas dificuldades, firmeza e
constância na procura do bem. Ela firma a resolução de resistir às tentações e superar os
obstáculos na vida moral. A virtude da fortaleza nos torna capazes de vencer o medo, inclusive
da morte, de suportar a provação, as vicissitudes da vida e as perseguições. Dispõe a pessoa a
aceitar até a renúncia e o sacrifício da sua vida para defender uma causa justa (CIC, nº1808).
d) A temperança: A temperança é a virtude moral que modera a atracção pelos prazeres e procura
o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e
mantém os desejos dentro dos limites da honestidade. A pessoa temperante orienta para o bem
seus apetites sensíveis, guarda uma santa discrição e não se deixa levar a seguir as paixões do
coração (CIC, nº1809).

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UNIDADE V – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA

CONTEÚDOS DA QUINTA UNIDADE


5.1- Conceito de direito, de direitos humanos e de direitos fundamentais.
5.2- As gerações dos direitos fundamentais: da primeira à quinta geração.
5.3- A dignidade da pessoa humana
5.4- A vida como base de todos os direitos.
5.5- Os direitos fundamentais na Constituição Moçambicana.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA QUINTA UNIDADE


Levar os estudantes a discutirem em torno dos conceitos de direito, de dever, dos direitos humanos
e de direitos e deveres fundamentais, a conhecerem e a discutirem as gerações (ou dimensões) dos
direitos humanos, a reconhecerem que a vida é a base de todos os direitos, e a discutirem a
problemática dos direitos humanos partindo da Declaração de 1948, trazendo essa problemática
para o contexto moçambicano, e a discutirem a experiência moçambicana de vivência e de respeito
dos direitos humanos tal como são consagrados na Constituição (direitos fundamentais).

5.1- Conceito de direito, de direitos humanos e de direitos fundamentais


5.1.1- Conceito de direito e de dever
De acordo com Ulpiano, o conceito de direito está ligado ao conceito de justiça. Se justiça é dar a
cada um o que lhe é devido (suum quique tribuere), então direito será a faculdade que cada um tem
de receber tudo aquilo que lhe é devido. Ao conceito de direito, está ligado também o conceito de
dever. O dever seria tudo o que deve ser feito em função daquele que tem direito.

Normalmente, quer no âmbito ético, quer no âmbito jurídico, fala-se de direitos e de deveres. Por
exemplo, se olharmos para a Carta Africana dos Direitos Humanos, em toda a sua primeira parte,
veremos que o primeiro capítulo é composto por direitos, enquanto o segundo capítulo é composto
por deveres.

Ser cidadão significa conhecer os seus direitos e os seus deveres e viver de acordo com tais direitos
e deveres. Cícero foi mais longe ao fazer dos direitos e dos deveres a matéria da definição da
pessoa: a pessoa é sujeito de direitos e de deveres. Tal questão foi, mais tarde, muito aprofundada
por pensadores como Hobbes, Maquiavel, Rousseau, etc. Rousseau, por exemplo, no seu O
contrato social, mostra que tal contrato se faz por meio da atribuição dos direitos e dos deveres de
quem vive na sociedade. Por isso, devido a esse contrato, o ser humano já não é aquele homem da
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natureza, mas um cidadão. Mas foi sobretudo Kant que, numa abordagem de ética formal, encontra
no dever a razão do agir moral, e no direito à dignidade o que faz com que a pessoa seja fim em si
mesma.

5.1.2- O conceito de direitos humanos e a declaração universal dos direitos humanos

Diz Varela (2011) no seu Manual de introdução ao direito que os direitos humanos são direitos
aceites como válidos por toda a humanidade (para todos os povos e todas as épocas), com base no
carácter inviolável, intemporal e universal da natureza da pessoa humana. Esses direitos derivam,
portanto, da natureza da pessoa humana, fazem parte da essência da Humanidade (entendida aqui
como uma comunidade de gerações presentes e futuras).

Por fazerem parte da essência da humanidade, e sendo conaturais ao próprio ser humano, os direitos
humanos têm o objectivo de proteger a personalidade humana na sua dimensão social, e impõem
limites à autoridade e soberania dos Estados modernos. Esses direitos são pré e supra-estatais: são
inatos no homem e irrenunciáveis; derivam duma fonte de direito supra-positiva de direito natural
ou divino, ou também se pode dizer que derivam do simples facto de sermos seres humanos.

O facto de o ser humano ter nascido diz logo que ele é portador dos direitos humanos. O direito
natural é o direito que se funda na natureza humana; não está escrito nalgum código, mas está já
impresso na consciência; ou melhor, "está escrito" na própria natureza humana.

Os Direitos humanos são, portanto, direitos básicos de todos os seres humanos. São direitos civis
e políticos pois entram na esfera da vida civil e política do ser humano. Exemplo: direito à vida, à
propriedade privada, à liberdade de expressão, da imprensa, igualdade formal, ou seja, de todos
perante a lei, direito à nacionalidade, de participar do governo do seu Estado, etc.

A condenação generalizada da pena de morte, da tortura e da prisão por motivos políticos ou


religiosos, do racismo e da xenofobia, do genocídio e da violação do princípio da autodeterminação
dos povos, diz Varela (2011), constitui expressão do combate universal em prol da promoção dos
direitos humanos.

A validade dos direitos humanos não depende do reconhecimento ou do desconhecimento do


Estado, mas o valor de um Estado mede-se a partir do modo como assume e protege esses direitos.
A Comunidade Internacional possui organizações (como a Amnistia Internacional) e normas,

71
tratados ou convenções que visam a protecção ou a salvaguarda desses direitos. A aceitação dos
direitos humanos no ordenamento constitucional positivo do Estado não tem, por isso, efeito
constitutivo, mas somente tem um carácter declarativo. No âmbito nacional próprio, os Estados
normalmente criam ou devem criar providências para torná-los efectivos com suas constituições e
com suas leis de valor equivalente.

A carta dos direitos humanos (os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos) é
uma carta de intenções. Por isso, quando alguém os transgride não pode ser condenado por leis
positivas e ser preso, mas apenas essa transgressão apela à sua obrigação moral. Estas intenções
que a carta dos direitos humanos tem adquirem obrigação jurídica, num determinado Estado,
quando são assumidas na Constituição e se tornam direitos fundamentais desse Estado. O que
queremos dizer é que os direitos humanos têm uma obrigação ética que os Estados podem torná-la
jurídica quando os assume em direito positivo. Os direitos humanos naturais quando são assumidos
pela Constituição tornam-se legais (escritos na e como lei). Depois de serem legais, esses direitos
precisam de serem reais; isto é, o povo tem o direito de reivindicá-los para que eles sejam
cumpridos.

5.1.3- Os direitos e os deveres fundamentais

A – Os direitos fundamentais e suas gerações

A enciclopédia universal define os direitos fundamentais como sendo aqueles direitos do ser
humano que são reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de um
determinado Estado (carácter nacional). Diferem dos direitos humanos – com os quais são
frequentemente confundidos – na medida em que os direitos humanos aspiram à validade universal,
ou seja, são inerentes a todo ser humano como tal e a todos os povos em todos os tempos, sendo
reconhecidos pelo direito internacional por meio de tratados e tendo portanto validade
independentemente da sua positivação em uma determinada ordem constitucional (carácter
supranacional).

De acordo com Varela (2011), os direitos fundamentais do ser humano são a consagração dos
direitos humanos que o Estado garante aos seus cidadãos por meio da Constituição ou Lei
Fundamental. Portanto, podemos referir que os direitos fundamentais são os próprios direitos
humanos em vigor num ordenamento jurídico concreto num dado momento histórico, ou por outra,
72
são os direitos humanos enquanto tornados direito positivo. Saem da esfera de puras intenções e
passam a ter implicações jurídicas e se tornam vinculantes. Por isso, pode-se ainda afirmar que os
direitos fundamentais são os direitos humanos enquanto reconhecidos pelo Estado e tornados
direito positivo do Estado.

Mas o direito positivo só tem efectividade numa sociedade se se fundamenta em valores aceites
pela generalidade dos cidadãos e em princípios universais concretizadores da justiça. Estes valores
decorrem ou da natureza humana ou de um poder divino, cuja autoridade é eterna e universal,
situando-se acima do direito positivo vigente – é o chamado direito natural. Assim, os direitos
fundamentais integram o chamado direito objectivo, enquanto conjunto de normas gerais e
abstractas que se destinam a ordenar a vida em sociedade, e, como derivação do direito objectivo,
os direitos fundamentais também integram-se na acepção do direito subjectivo, que pode
apresentar-se em duas vertentes: (a) direito subjectivo propriamente dito (faculdade de exigir algo
de outrem) e (b) direito potestativo (que consiste em, voluntariamente ou por decisão judicial,
produzir efeitos que se impõem a outra pessoa, mesmo que não o queira).

Os direitos fundamentais estão divididos, em função da época histórica em que surgiram, em várias
gerações. A maior parte dos doutrinadores prefere apenas falar de três gerações, a saber: (a) direitos
políticos e das liberdades, (b) direitos sociais, económicos e culturais, (c) direitos dos povos, de
solidariedade e das minorias. Mas há vários autores, muitos deles de grande renome, que preferem
outras classificações, pois sustentam que as conquistas que o mundo tem feito, sobretudo a partir
dos anos 60 para cá, obrigam-nos a alargar a nossa compreensão em relação aos direitos
fundamentais. Tais conquistas são de tal forma que o Estado simplesmente deixa de estar no
controle dos seus membros. Pensemos, por exemplo, na problemática das tecnologias e do mundo
virtual/digital, pensemos também nas conquistas do mundo da bioética e sobretudo da
biotecnologia e das nanotecnologias, pensemos também na problemática do ambiente, enfim,
pensemos também na problemática da paz e do desenvolvimento. Tudo isto exige uma ordem
supra-estatal que possa imprimir limites nestes empreendimentos. Por isso, olhando para as
contribuições destes vários autores, neste manual, preferimos apresentar cinco gerações dos
direitos fundamentais. Portanto, para além das três acima referidas, acrescentamos as seguintes: (d)
direitos do ambiente, da bioética e das tecnologias, e (e) direitos do mundo virtual/digital e da paz.

73
B – Os deveres fundamentais e sua tipologia

De acordo com Miranda (s. a.), os deveres fundamentais são aquelas situações jurídicas de
necessidade ou de adstrição constitucionalmente estabelecidas, impostas às pessoas frente ao poder
político ou, por inferência de direitos ou interesses difusos, a certas pessoas perante outras. Assim
como os direitos, os deveres fundamentais também pressupõem a separação entre o Estado e a
sociedade, e uma relação directa e imediata de cada pessoa com o poder político

É preciso saber que os deveres não se contrapõem nem servem para restringir ou limitar o alcance
dos direitos fundamentais, pois são os próprios direitos (neste caso em forma de normas) que
exigem e estabelecem cláusulas limitadoras em sua estrutura. Portanto, o que estamos a dizer é que
à existência de um direito nem sempre corresponde a existência de um dever, salvo se a intenção
for a de dizer que ao direito de um implica o dever de reconhecimento e respeito do outro. Mas isto
não significa um dever, mas o direito de ter reconhecido e respeitado um direito próprio. Assim o
dizemos porque a correlação entre direito e dever não é de reciprocidade, isto é, a um direito de
alguém não é necessariamente correspondente um dever de outrem. O que se pode verificar é que
tanto o direito quanto o dever pertencem ou dizem respeito à mesma pessoa. Portanto, enquanto os
direitos fundamentais exprimem o aspecto activo dos indivíduos perante o Estado e a sociedade,
os deveres expressam o aspecto passivo da mesma relação, daí a coexistência entre direitos e
deveres. Ou por outra, considerando-se a mesma relação jurídica, os direitos representam o que o
Estado deve proporcionar aos indivíduos, e os deveres, o que os indivíduos devem proporcionar ao
Estado (Siqueira, 2010).

No que diz respeito à tipologia dos deveres fundamentais, preferimos seguir a classificação de
Siqueira (2010). Para este, em geral, os deveres fundamentais são dois: respeitar o ordenamento
jurídico constitucional e respeitar a situação jurídica da outra pessoa. Neste sentido, os deveres
podem assumir um sentido amplo ou estrito. Os deveres no sentido amplo englobam os deveres de
prestação do Estado (serviços e políticas públicas para a concretização dos direitos fundamentais)
e os deveres fundamentais dos cidadãos (deveres em sentido estrito).

A primeira tipologia classifica os deveres fundamentais em dois tipos: deveres autónomos (ou
genéricos: dever do alistamento eleitoral e militar e de voto, por exemplo) e deveres correlatos (ou
conexos) aos direitos (ou deveres específicos). A diferença é que uns (os primeiros) não estão

74
relacionados com a concretização dos direitos fundamentais, enquanto outros (os segundos) estão.
Por exemplo, o dever de solidariedade está ligado ao dever de pagar impostos na concretização de
vários direitos (direito à saúde e à educação, por exemplo); o dever de preservar o ambiente está
ligado ao direito a um ambiente saudável. É preciso também ter em conta que existem certos
deveres que têm certa divergência na classificação: por um lado são autónomos, por outro são
correlatos. Portanto, são deveres que trazem consigo certa ambivalência.

A segunda tipologia classifica os deveres conforme os seus direitos correlatos em três espécies:
deveres em relação à liberdade (ligados aos direitos da primeira geração: dever de não-abuso de
direito ou não prejudicar a situação jurídica do outro), deveres em relação à igualdade (ligados aos
direitos da segunda geração: facilitam ou proporcionam situação de igualdade entre os indivíduos
na sociedade) e deveres em relação à fraternidade e solidariedade universal (ligados aos direitos
da terceira, quarta e quinta gerações: dever ou compromisso de manutenção de um ambiente
equilibrado e saudável para o desenvolvimento dos direitos). Como se pode ver, essa classificação
consiste na coexistência relacional de direitos e deveres (deveres no sentido estrito, como referimos
acima).

A terceira tipologia classifica os deveres em deveres expressos (aqueles que são facilmente
identificados nos enunciados normativos constitucionais) e deveres implícitos (aqueles que não são
facilmente identificados). Com esta tipologia, entra também a quarta, que classifica os deveres em
legais ou constitucionais (os que estão previstos no ordenamento jurídico) e os deveres judiciais
ou doutrinários (criados pela doutrina ou pela jurisprudência).

Existem várias outras tipologias de deveres fundamentais que não precisamos de detalhar neste
manual. Mas podem ser encontrados nas diversas literaturas.

5.2- As gerações dos direitos fundamentais: da primeira à quinta geração

As gerações são tomadas de consciência dos direitos humanos por parte das sociedades e do modo
como tais direitos foram consagrados na Constituição de cada Estado. Por isso dizemos que são
gerações dos direitos fundamentais. A maioria destes direitos pertence ao mundo laico, e às vezes
vão “contra” o Estado, pois impõem limites e condições ao Estado.

Há ainda uma discussão muito grande em torno da classificação dessas gerações (ou dimensões).
A doutrina comum e mais geral classifica os direitos fundamentais em três gerações: (a) os direitos
75
políticos e das liberdades, (b) os direitos sociais, económicos e culturais, e (c) os direitos dos povos,
de solidariedade e do ambiente, ou simplesmente direitos difusos. Mas há uns que defendem a
existência de quatro gerações, outros de cinco gerações e até outros de sete gerações, fazendo
derivar outras gerações a partir, sobretudo, dos direitos da terceira geração. Esta disparidade e falta
de consenso mostra a complexidade dessa matéria e o nível de compreensão-definição e de
experiência dos mesmos direitos por parte dos Estados.

Neste manual, como forma de incluir esta discussão, preferimos seguir a teoria das cinco gerações
dos direitos fundamentais. Acreditamos que, com esta abordagem, estaremos a par da doutrina
oficial, que advoga a existência de apenas três gerações (incluindo direitos do ambiente na terceira
geração), e as outras discussões. É preciso recordar que o objectivo não é de ensinar a doutrina
oficial, mas de levantar a discussão de base ética sobre o assunto.

5.2.1- A primeira geração dos direitos fundamentais

A primeira geração dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos políticos e das liberdades.
Tal geração nasceu como "reivindicação" da vida-liberdade-justiça do indivíduo frente ao poder
absoluto do rei e do Estado (detentor do Ius utendi et abutendi: direito de usar e abusar). Esta
contém pouco mais de dois séculos de história. Reconhece a todos os cidadãos, indistintamente, os
direitos de liberdade: a cada homem é reconhecido um âmbito de nível de desenvolvimento em
que a autoridade pública não pode intrometer-se. Estamos a falar da liberdade de pensamento, de
imprensa, de religião e de propriedade privada. Todos têm o direito de informação e de expressão,
direito de constituir associações e reunir-se com outras pessoas, direito de circular no seu país
(direito de ir e vir) e escolher o lugar da sua residência. Em casos de perseguição, o homem tem o
direito de asilo político noutro território de acordo com as leis dos dois Estados.

O sujeito destes direitos ou a pessoa cujos direitos são reconhecidos é o cidadão, o indivíduo, o
homem, cada homem, sem nenhuma distinção de raça, religião, povo. E aqui temos que recordar o
conceito de cidadão criado pelo Iluminismo, um conceito que está directamente ligado à pertença
a uma nação. Por isso, este direito é consagrado na Constituição.

Os direitos da primeira geração são direitos “contra” o Estado. Por serem direitos de liberdade
relevam a uma acção negativa: a não-intervenção do Estado numa esfera determinada, reconhecida
como de competência exclusiva de liberdade individual. Em inglês diz-se freedom from, porque
76
são direitos que limitam a acção do Estado, são direitos do capitalismo liberal (liberdade: EUA,
Europa). Estes direitos são “reivindicação contra” o Estado e toda a autoridade. Por isso também
são conhecidos por direitos políticos, pois fazem com que o cidadão participe activamente na vida
política do seu país: eleger e ser eleito, votar, participar, fiscalizar, etc.

O tipo de governo em que se é fácil observar estes direitos é o governo democrático. E é esta a via
política mais aceitável para hoje e a mais adoptada pela maioria dos Estados actuais, embora
saibamos que nenhum Estado em toda a história da humanidade, já conseguiu implantar cabalmente
um governo democrático. Na democracia, o povo participa. E esta participação pode ser:

a) Directa: quando o Estado é composto por poucos cidadãos e todos participam. Um exemplo
típico é a antiga cidade de Atenas.
b) Indirecta ou representativa: entra aqui a questão do voto. Os cidadãos elegem alguns seus
representantes para fazerem face as decisões do Estado. Moçambique é um dos vários
exemplos.

Para que haja uma verdadeira democracia é preciso que a sociedade toda adquira uma cidadania
activa: um Estado transparente e um povo que participa e fiscaliza.

Os direitos de liberdade foram reconhecidos solenemente pela Revolução Americana com a


Declaração dos Direitos de Virgínia de 12 de Junho de 1776, e pela Revolução Francesa com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789.

5.2.2- A segunda geração dos direitos fundamentais

A segunda geração dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos sociais, económicos e
culturais. Cedo, em alguns quadrantes do planeta, percebeu-se de que os direitos de liberdade, de
facto, eram direitos das classes privilegiadas; ou seja, da burguesia. Quem não sabe ler nem
escrever não sabe o que fazer da liberdade de imprensa. Para quem não tem o que comer, o direito
à vida soa a irrisão. Por isso, dizemos que estes direitos pretendem tornar efectivos e acessíveis
todos os direitos de liberdade. Estes direitos dão as condições para viver e tornar a vida possível
em sociedade.

Pelas constatações elementares, amargamente confirmadas pelas condições infraumanas de


trabalho vigentes em muitas fábricas da Inglaterra e Alemanha no início do século XX, nasce a
77
segunda geração dos direitos fundamentais: os direitos sociais, económicos e culturais. Assim,
aglutinando as contribuições de Sarmento (s.a.) e Varela (2011), temos:

a) Direitos sociais: Particularmente são dois: direito à saúde e à educação. Mas também
destes saem vários outros que incluem direitos à educação e formação profissional, à
protecção da saúde, à protecção da família, ao trabalho, à habitação, ao lazer, à segurança,
à segurança e previdência social, à assistência aos desamparados, à protecção da
paternidade e da maternidade, à protecção da infância, etc.
b) Direitos económicos: Estes direitos incluem direito à valorização do trabalho, à livre
iniciativa económica privada, à propriedade privada, à função social da propriedade, à livre
concorrência, à defesa do consumidor, à redução das desigualdades regionais e sociais, etc.
c) Direitos culturais: Estes direitos incluem o direito de acesso às fontes da cultura nacional,
direito ao desporto e à cultura física, à fruição e criação culturais, à valorização e difusão
das manifestações culturais, à protecção das culturas populares, à protecção do património
cultural de cada um dos grupos culturais moçambicanos, que são os bens de natureza
material e imaterial portadores de referência à identidade, à acção, à memória desses
diferentes grupos formadores da sociedade moçambicana, etc.

O sujeito dos direitos sociais é ainda mais uma vez o indivíduo, o cidadão, cada ser humano que
pertence a uma nação.

Estes direitos sociais, porém, exigem, não mais a abstenção do Estado, como no caso dos direitos
civis, ou de liberdade (direitos da primeira geração), mas exigem a participação obrigatória do
Estado, são direitos “com” (e não “contra”) o Estado, relevam a uma acção positiva; isto é, o Estado
se encarrega a assegurar para todos o acesso à educação primária, à saúde, ao trabalho, etc. Daí que
estes direitos só podem existir com a acção e intervenção do Estado. Em inglês diz-se freedom to,
pois são direitos que querem o Estado, pois somente o Estado tem a força para dar saúde,
alimentação, trabalho, casa, etc. para todos. Por isso também se diz que os direitos da segunda
geração são o mérito próprio do mundo socialista.

Também no caso dos direitos sociais, bem cedo se toma consciência de que algumas categorias de
pessoas ficam marginalizadas por vários motivos: as mulheres, devido à longa tradição patriarcal;
os presos; as crianças; os imigrados/refugiados; etc. Formula-se assim uma legislação específica
78
para amparar socialmente essas categorias mais fragilizadas e desamparadas. Estes são direitos de
categorias particulares, mas ainda assim, tem como sujeito o indivíduo, mais exactamente, aquelas
pessoas que precisam de um reconhecimento e uma tutela específicas. O problema é que estas
categorias são frágeis por si mesmas porque os seus direitos dependem muito dos estatutos ou
legislações específicas. É neste sentido que vemos a intervenção da ONU, ACNUR, UNICEF, etc.
É em virtude disto que, a partir de 1948, começam a se criar legislações e estatutos próprios e
específicos para a defesa dos direitos de cada categoria. Como exemplo, em 1949, surge o Estatuto
do direito da Criança.

5.2.3- A terceira geração dos direitos fundamentais

A classificação dos vários teorizadores das gerações dos direitos fundamentais começa a divergir
a partir dos direitos da terceira geração. De acordo com a classificação aqui feita, a terceira geração
dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos dos povos, de solidariedade (ou de
fraternidade) e das minorias, ou simplesmente direitos difusos ou das colectividades.

Sarmento (s. a.) sublinha que esses direitos possuem dois pontos em comum: a
transindividualidade e a indivisibilidade. São transindividuais porque só podem ser exigidos em
acções colectivas e não individuais, pois o seu exercício está condicionado à existência de um
grupo determinado (por isso colectivos) ou indeterminado (por isso difusos) de pessoas; são
indivisíveis porque não podem ser fraccionados entre os titulares. A satisfação de seus
mandamentos beneficia indistintamente a todos. A violação é igualmente prejudicial à totalidade
do agrupamento humano.

No entender de Varela (2011) e Sarmento (s. a.), no plano internacional, esses direitos incluem
direitos dos povos à autodeterminação e à soberania, à paz e ao desenvolvimento económico, aos
seus recursos naturais, a uma nova ordem política, económica e internacional mais justa e
equitativa, à paz e à segurança internacionais, a um meio ambiente equilibrado, à comunicação,
direito à defesa de ameaça de purificação racial e genocídio, direito à protecção contra as
manifestações de discriminação racial, etc.

Para Nicolao (s. a.), constata-se o fenómeno da “poluição das liberdades”, isto é, o processo de
degradação dos direitos e liberdades fundamentais, principalmente por causa das novas
tecnologias. Neste sentido, o destinatário desses direitos é o género humano, afirmando de forma
79
concreta a sua existência como valor supremo, desprendendo-se assim da ideia de homem-
indivíduo e focando na protecção destes como grupos humanos. É por causa do seu destinatário
que se pode afirmar que os direitos da terceira geração são direitos colectivos ou difusos.

De entre os direitos da terceira geração, pode-se destacar como mais relevantes os seguintes: direito
ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à qualidade de vida, à propriedade sobre o
património comum da humanidade, comunicação, etc.

Ainda no contexto dos direitos colectivos, entra a necessidade de reconhecer os direitos dos grupos
específicos Estamos a falar dos direitos das minorias: judeus, índios, muçulmanos, aborígenes,
ciganos, minorias étnicas, religiosas, culturais, etc. Neste caso, o sujeito desses direitos é a
comunidade étnica, religiosa, linguística, cultural, etc.

Se não se reconhecesse a especificidade do grupo, da etnia, etc., ela ficaria obrigada a escolher
entre a marginalidade e a renúncia da sua identidade própria: judeus e o Sábado, muçulmanos na
Europa, índios das Américas, aborígenes da Austrália, cristãos no Irão, Iraque, Afeganistão, etc.
Num ambiente democrático, eles não teriam nem vez nem voz devido ao processo da degradação
dos direitos e liberdades fundamentais. Neste caso, os direitos das minorias seriam, por exemplo,
"O estatuto dos índios", que, por sua vez, seria uma legislação específica.

Os direitos da terceira geração constituem uma tentativa de fazer com que estas minorias
mantenham a sua especificidade (quer linguística, quer religiosa, etc.). Por isso, é uma questão
muito complicada que precisa, e muito mais, da intervenção do Estado.

5.2.4- A quarta geração dos direitos fundamentais

A partir deste momento, começam as divergências doutrinárias mais significativas. Alguns autores
acham desnecessária a formulação dos direitos da quarta e quinta gerações. Mas os defensores
desta possibilidade, apesar de divergirem num e noutro ponto, falam da questão da bioética, das
tecnologias, da ecologia e da qualidade de vida. Esta quarta geração, diz Varela (2011), constitui
um desprendimento da terceira, mas agora com maior ênfase colocada na problemática do ambiente
e da sustentabilidade do desenvolvimento.

80
Para Norberto Bobbio (citado por Nicolao, s. a.), a evolução do processo científico e tecnológico
apresenta novas exigências que devem ser interpretadas como direitos de quarta geração, tendo em
vista que estas pesquisas biológicas permitirão manipular o património do indivíduo, necessitando
da devida protecção. Isto chama-nos a atenção ao estudo da bioética, da biotecnologia e das
nanotecnologias.

Para Paulo Bonavides (citado por Nicolao, s. a.), a quarta geração é composta pela democracia
directa, materialmente possível graças aos avanços da tecnologia e da comunicação e a legitimidade
sustentável, devido às aberturas pluralistas do sistema.

Para além desses dois aspectos, hoje ganha importância particular a questão da ecologia: mudança
de clima, escassez de água, buraco do ozono, desertificação, poluição do ar, do som, dos oceanos,
etc; a ameaça atómica, biológica e química às gerações futuras, reservas, conservação dos
ecossistemas, desenvolvimento sustentável, etc. São direitos que dizem respeito ao mundo inteiro:
são direitos da terra (cf. Carta da Terra, e sobretudo a Laudato Si’).

Os direitos de liberdade, os direitos sociais, os direitos dos povos estão ameaçados porque está
posta em risco a saúde de todos. Passa-se assim dos direitos dum indivíduo para os direitos do
género humano, dos povos e das minorias. Destes para os direitos de cada país. Dos direitos de
cada país para os direitos globais: o ar respirável, o mar limpo, a terra despolida, etc. devem ser
assegurados a todos e a cada indivíduo.

E é também uma necessidade determinada pela interdependência: não é possível que um país
desfrute sozinho desses direitos sem que participem todos os países porque a poluição do ar, do
solo, dos mares ignora os limites entre países ricos e pobres, entre bons e maus. Existe, portanto,
uma multíplice e complexa interdependência entre os povos. É por isso que o Estado precisa duma
organização supra-estatal, mundial. Os problemas desses direitos são problemas que afectam o
mundo, por isso precisam duma autoridade mundial, uma legislação a nível internacional e
mundial. Por isso, refere Varela (2011), tendo como uma das referências a Carta da Terra ou a
Declaração do Rio (1992), a quarta geração enfatiza os direitos dos homens e dos povos a uma vida
saudável, em harmonia com a natureza, o direito a um ambiente saudável e ao desenvolvimento
sustentável.

81
Esses direitos também remontam para as gerações futuras e, se não são postos em consideração,
fica em risco a vida de todos. Por isso, cada cidadão deve conservar os direitos da quarta geração.
Os problemas destes direitos não têm fronteiras nem entre ricos e pobres, nem entre bons e maus,
nem entre fortes e fracos, etc. dizem respeito a todos. A crise civilizatória de que padecemos hoje
mostra a urgência de darmos resposta positiva aos direitos da quarta geração.

5.2.5- A quinta geração dos direitos fundamentais

Apesar de ainda não haver consenso quanto à consagração dos direitos da quarta geração na esfera
do direito internacional, já há defensores, como Paulo Bonavides, que sustentam a existência de
uma quinta geração dos direitos fundamentais. De acordo com a classificação feita neste manual,
servindo-se das sensibilidades dos seus defensores, a quinta geração dos direitos fundamentais é
constituída pelos direitos ao mundo virtual/digital e à paz. É verdade que a questão do avanço
tecnológico já é tratada nos direitos da quarta geração devido à sua capacidade de afectar
directamente a vida das pessoas (por exemplo: a manipulação genética), mas agora esta questão é
tratada como realidade a parte: o mundo virtual/digital em si e a problemática da info-exclusão.

Autores como Augusto Zimmermann, José Alcebíades Oliveira Junior, e outros (citados por
Nicolao, s. a.) entendem que hoje devemos falar dos direitos da era digital, pois, como defende
Varela (2011), abre-se uma geração de direitos emergentes da sociedade de informação, colocando-
se a ênfase no combate à chamada info-exclusão. Esses autores entendem que os avanços
tecnológicos possibilitam a existência de novas relações que possivelmente estejam fora do
controle do Estado e da própria sociedade. E isto traria a necessidade de rapidamente se
regulamentarem os direitos da quinta geração que abordariam: a cibernética, a rede de
computadores, o comércio electrónico, a inteligência artificial, a realidade virtual, dentre outras
ramificações. Diz Sarmento (s. a.) que o grande desafio dessa geração (ele coloca estes direitos na
quarta geração) é a solução de litígios que envolvam o comércio virtual, a pirataria, a invasão de
privacidade, direitos autorais, propriedade industrial, etc.

Uma segunda interpretação dos direitos da quinta geração, muito cara a Paulo Bonavides, remete-
nos à paz, pois só através da positivação desta é que poderemos alcançar a dignidade. Bonavides
vê a paz como forma de compreensão da democracia, pois entende que Karel Vasak (que foi o
primeiro doutrinador a dividir os direitos fundamentais em gerações), ao colocar a paz nos direitos
82
de fraternidade ou solidariedade (terceira geração), o fez de modo incompleto. Assim como a
liberdade é a marca dos direitos da primeira geração, a paz o é para os direitos da quinta geração,
estando ela num patamar superior. Como se pode ver, aqui não existe uma nova gama de direitos,
mas uma tentativa de valoração do direito à paz, dando-a uma importância que antes não tinha.

5.3- A vida: base de todos os direitos

O direito que está na base de todos os outros é o direito à vida. Este é o parâmetro central que
perpassa todas as gerações. Suprimida a vida, caem todos os outros direitos. Somente o vivo é que
tem direitos. Pois bem, o direito à vida da humanidade inteira; ou melhor, a própria existência da
vida na terra é posta em dúvida por uma eventual guerra atómica. Em suas fronteiras, os direitos
humanos se entrecortam com os temas ecológicos e encontram o grande tema da paz. É que
necessariamente o tema dos direitos humanos se intersecta com o tema da ecologia, da paz e da
justiça. Por isso necessariamente tem que se confrontar com as políticas. E é um tema incómodo
para a política e os políticos, porque é o tema dos direitos humanos e é mais urgente para a
humanidade. A luta pelos direitos humanos é a mais importante porque abrange todas as questões
e todos os sectores da vida humana. Hoje, o bem comum, que é objecto duma boa política, chama-
se direitos humanos.

5.4- A dignidade da pessoa humana

5.4.1- Que se entende por dignidade humana?

Dignidade humana é algo que toda a pessoa tem pelo simples facto de ser um ser humano, é
conatural à natureza humana. Não é algo que podemos "dar" ou não a alguém. No máximo,
podemos reconhecer ou não a dignidade humana do outro, mas ela existe sempre e não depende do
nosso parecer a seu respeito. Não depende nem da vontade da pessoa envolvida nem da consciência
de que tenha da sua própria dignidade, porque ninguém pode deixar de ser humano, mesmo que o
queira.

Quando dizemos que alguém é desumano, isso significa que a pessoa comete actos que não honram
a sua própria dignidade e a dos outros, mas, mesmo assim, a pessoa continua sendo um ser humano
de valor inviolável. Essa consideração é fundamental porque, de desculpa em desculpa, vamos nos

83
anestesiando para o sagrado valor de certas vidas humanas e acabamos por considerar algo natural
o que deveria nos indignar (exemplos: bandidos, presos, drogados, etc.).

5.4.2- Visão teológica da dignidade da pessoa humana

Inspirando-nos no manual actualizado de Fundamentos de teologia católica, podemos extrair três


pontos fundamentais a partir dos quais se funda a dignidade da pessoa humana a partir da visão
teológica:

a) Desde a criação: O manual diz que a dignidade da pessoa humana radica na noção de criação
à imagem e semelhança de Deus. Portanto, perante Deus, cada indivíduo representa a dignidade
do género humano.
b) Desde a encarnação: O facto de Deus ter assumido o corpo humano (realidade humana) revela
o quanto este corpo tem valor diante de Deus. Em outras palavras: pela encarnação, Deus
partilha connosco a nossa natureza humana.
c) Desde a ressurreição: A ressurreição de Jesus revela a divinização da natureza humana, pois,
pela ressurreição, o corpo humano é glorificado, é divinizado. De facto, se, pela encarnação,
Deus partilha connosco a nossa natureza humana, já pela ressurreição e pela efusão do Espírito
Santo, Ele permite que nós partilhemos com Ele a sua natureza divina, tornando-nos seus
concidadãos (Ef 2,19).

A criação, a encarnação e a ressurreição (glorificação ou divinização) são três eventos teológicos


fundamentais que mostram o quanto a natureza humana é querida e valorizada por Deus. Nós não
valemos pelo que fazemos para Deus, mas pelo que somos diante dEle.

Diz o manual em citação que a motivação mais profunda da dignidade da pessoa humana está na
revelação oferecida pelo Verbo encarnado. Jesus veio revelar que o Pai ama todos os seres humanos
independentemente das suas condições sociais (cf. Mt 16,26; Lc 12,23). Por isso, a Igreja ensina
que o ser humano, imagem vivente de Deus, vale por si mesmo, não por aquilo que sabe, produz
ou que possui. É a sua dignidade de pessoa que confere valor aos bens que ele usa para se exprimir
e realizar-se. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões,
tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios
convenientes (GS n. 17).

84
5.4.3- Visão filosófica da dignidade da pessoa humana

A filosofia é capaz de fundamentar a dignidade da pessoa humana sem a necessidade de recorrer a


elementos de antropologia bíblica ou de teologia cristã. Mounier, por exemplo, faz da eminente
dignidade uma das sete características que compõem o universo pessoal. A filosofia (recordemos
Kant) já tem afirmado que a dignidade é um atributo intrínseco da pessoa humana, como valor de
todo ser racional, independentemente da maneira como este ser humano se comporta, de modo que
nem mesmo um comportamento indigno priva a pessoa dos direitos fundamentais e da dignidade
que lhes são inerentes.

A dignidade humana acompanha o ser humano até a morte, por ser da essência e da natureza
humana. É por este motivo que a dignidade não admite discriminação alguma. Bastam, para
fundamentar isso, algumas afirmações da filosofia kantiana: “Age de tal sorte que consideres a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente
como um fim e nunca simplesmente como um meio”, isso porque o homem não é uma coisa, não é,
por consequência, um objecto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve, em todas
as suas acções, ser sempre considerado como um fim em si.

Isso quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é pessoa, ou seja, um ser espiritual fonte e
imputação de todos os valores. A dignidade, portanto, é atributo intrínseco da pessoa humana, pois,
a dignidade confunde-se com a própria natureza do ser humano. A dignidade, conforme a filosofia
de Kant, é um conceito a priori, um dado preexistente a toda a experiência especulativa. Aqui,
como já falamos também antes, cabe um esclarecimento para não cair em equívoco: quando
falamos que a dignidade humana é algo intrínseco (a priori), não nos referimos a algo ligado ao
comportamento, e que se perde com o comportamento indecoroso, indigno. Pois, se assim fosse,
seria algo extrínseco à pessoa humana. Mas não é assim! A dignidade é atributo intrínseco da
pessoa humana como valor de todo ser racional, independentemente da forma como este ser
humano se comporta.

85
Figura 4: Representação esquemática da visão filosófica da dignidade humana
Fonte: adaptado dos autores, 2016.

É este o significado de dignidade humana assumido pelas várias Constituições, de modo que nem
mesmo um comportamento indigno priva a pessoa dos direitos fundamentais que lhe são inerentes.
A isso não tinha chegado S. Tomás. A afirmação kantiana é contra a concepção de S. Tomás de
Aquino o qual, na Summa Theologica, II.II., q. 64, art. III. ad.3, onde justifica a pena de morte,
afirma que o homem, ao delinquir-se, decai (decidit) da dignidade humana e cai (cadit) na condição
de besta. Portanto, Tomás não percebe a dignidade como algo inerente à natureza humana, mas sim
como algo ligado ao comportamento. Por isso, se a pessoa tem um comportamento desumano, tal
comportamento faz-lhe perder a sua dignidade. Mas não é assim! A dignidade acompanha o homem
até a sua morte, por ser da essência da natureza humana, e é por isso que ela (a dignidade) não
admite discriminação alguma.

5.4.4- Visão secular da dignidade da pessoa humana

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, artigo 1º, "todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e
devem agir em relação uns com os outros com espírito de fraternidade". Após a 2ª Guerra Mundial,
após Auschwitz (Shoá), sentiu-se a necessidade de se colocar por escrito para todas as pessoas e
governos o mínimo a ser garantido para a dignidade de cada ser humano e para a salvaguarda da
paz no mundo.

Essa Declaração Universal que vem da ONU é uma importante conclusão do mundo secular, que
indica a evolução da consciência da humanidade sem, porém, referência específica à religião (de
recordar que René Cassin, o redactor, era ateu). Ela é fruto duma indignação ética do mundo
perante os horrores contra a pessoa humana nas duas grandes guerras mundiais e diante de outras
situações execráveis.

86
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a dignidade é inata e não outorgada
(natural legal real). E isto deveria ser tão evidente para todos a saber que as pessoas já
nascem livres e iguais com dignidade e direitos, simplesmente por serem humanas, não entra aí
nenhum tipo de mérito ou merecimento, não depende da situação social, de integridade física, raça,
cor de pele, sexo, religião, esforço moral, etc. Por isso, qualquer tipo de negação ou exclusão viola
o princípio da dignidade básica, porque estabelece outras condições - além daquela de se tratar de
um ser humano - para que a pessoa "mereça" um tratamento digno.

Todo o agressor à dignidade humana que não respeita o outro, seja quem for, se corrompe
moralmente. E a sociedade que, diante do desrespeito aos Direitos Humanos, permite, incentiva ou
assiste indiferente, compactua (…), e assim a segurança de todos passa a correr risco, porque foi
ultrapassado um limite que deveria ser intransponível para que todos nós pudéssemos viver
tranquilos, porque "a injustiça praticada em qualquer lugar é ameaça à justiça em todo lugar"
(Martin L. King)6.

5.4.5- Em síntese

Algo tem dignidade quando não tem preço, ou, em outras palavras, quando não pode ser trocado
por algo equivalente. A pessoa é fim em si mesma, porque não tem preço. Ela tem valor, e não
pode ser usada como meio para alcançar outro fim para além dela.

a) O significado da vida humana não é estar bem, mas ser bom;


b) A dignidade humana para Kant fundamenta-se no facto de a pessoa ser essencialmente moral;
c) Dignidade não é apenas uma categoria antropológica, mas expressa também um conteúdo ético;
isto é, a categoria da dignidade humana levanta exigências éticas;

6
Ainda M.L. King diz: "O que me entristece não é a maldade dos maus, mas o silêncio dos bons". E aos omissos, aos
calados, aos que não reagem, B. Brecht dizia: vieram e prenderam:
 Os judeus (mas eu não fiz nada porque não era judeu);
 Os comunistas (mas eu não fiz nada porque não era comunista);
 Os sindicalistas (mas eu não fiz nada porque não era sindicalista);
 Os padres (mas eu não fiz nada porque não era padre);
 (…);
 A mim (…) e não havia mais ninguém para me defender.
87
d) A dignidade não se refere a uma natureza abstracta, mas a seres concretos. Dignidade diz
respeito a seres históricos e concretos. Cada ser humano é pessoa por ser um indivíduo único
e insubstituível. Neste sentido, tem valor em si, isto é, goza de dignidade;
e) A dignidade não admite privilégios (mérito) em sua significação primária. Não é um atributo
outorgado, mas uma qualidade inerente, enquanto ser humano; é um “a priori” ético comum a
todos os humanos.
f) A dignidade é uma qualidade axiológica que não admite um “mais ou menos”. Não se pode ter
mais ou menos dignidade. Ela serve para incluir todo ser humano e não excluir alguns que não
interessam; não pode ser usado como critério de exclusão, pois, seu significado é justamente
de inclusão.

Em sua significação práxica, a categoria ética de dignidade tem uma orientação preferencial para
aqueles cuja dignidade humana está desfigurada ou diminuída na sua expressão. Neste sentido,
ajuda, por um lado, a corrigir possíveis reducionismos aos quais o ser humano pode ser submetido;
por outro, a orientar a acção para a meta da humanização.

5.5- Os direitos fundamentais na Constituição Moçambicana

A Constituição da República de Moçambique consagra um título próprio (título III), em cinco


capítulos, dedicado aos direitos, deveres e liberdades fundamentais (arts. 35-95), o que mostra que
Moçambique, fazendo parte das Nações Unidas, fez sua e traduziu em lei positiva a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, e,
portanto, quer ser defensora dos direitos humanos. É só notar que, dos 306 artigos, 60 são dedicados
à questão dos direitos, deveres e liberdades fundamentais. Os direitos fundamentais consagrados
da Constituição podem ser agrupados em quatro partes: (i) direitos, deveres e liberdades em geral,
(ii) direitos, liberdades e garantias individuais, (iii) direitos, liberdades e garantias de participação
política, e (iv) direitos e deveres económicos, sociais e culturais.

A seguir, num quadro, vamos ilustrar como é que a Constituição moçambicana classifica os direitos
fundamentais.

Classificação dos direitos e deveres fundamentais Enumeração dos mais importantes direitos e deveres
Direitos, deveres e Cap. I: Princípios gerais Direitos:
liberdades em geral (arts. 35-74) Igualdade de todos perante a lei
Direito à vida e à integridade física e moral
Direito à honra, ao bom nome, à reputação, etc.
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Direitos da criança
Deveres:
Dever de respeitar a ordem constitucional
Dever de respeitar e considerar os seus semelhantes
Deveres para com a comunidade e para com o Estado
Cap. II: Direitos, deveres e Direito à liberdade de expressão e informação
liberdades (arts. 48-55) Direitos de antena, de resposta e de réplica política
Direito à liberdade de reunião e manifestação
Direito à liberdade de associação
Direito à liberdade de constituir, participar e aderir a
partidos políticos
Direito à liberdade de consciência, de religião e de culto
Direito à liberdade de residência e de circulação
Direitos, liberdades e Cap. III: arts. 56-72 Direito à indemnização e responsabilidade do Estado
garantias individuais Direito à liberdade e à segurança
Direito de acesso aos tribunais
Direito à defesa e a julgamento em processo criminal
Direito a Habeas corpus
Direito à inviolabilidade do domicílio e da
correspondência
Direito à impugnação
Direito de recorrer aos tribunais
Direitos, liberdades e Cap. IV: arts. 73-81 Direitos:
garantias de participação Direito ao sufrágio universal
política Direito de petição, queixa e reclamação
Direito de resistência
Direito de acção popular
Deveres:
Dever dos partidos políticos e das organizações sociais
Direitos e deveres Cap. V: arts. 82-95 Direitos:
económicos, sociais e Direito de propriedade, à herança e ao trabalho
culturais Direito à retribuição e segurança no emprego
Direito à liberdade de associação profissional e sindical
Direito à greve e proibição do lock-out
Direito à educação, à saúde e ao ambiente equilibrado
Direito à habitação condigna e boa urbanização
Direito ao consumo
Direito à cultura física e ao desporto
Direito à liberdade de criação cultural
Direito à assistência na incapacidade e na velhice
Deveres:
Dever do trabalho
Dever de educação
Dever de promover e defender a saúde pública
Dever de defender o ambiente
Tabela 3: Representação esquemática de alguns direitos e deveres fundamentais na Constituição moçambicana.
Fonte: adaptado dos autores, 2016.

89
UNIDADE VI – A PESSOA HUMANA COMO UM SER SOCIAL E POLÍTICO

CONTEÚDOS DA SEXTA UNIDADE


6.1- Conceito de sociedade (ou comunidade) humana.
6.2- A pessoa humana e a construção da comunidade.
6.3- Pessoa e comunidade como sujeitos de valores morais.
6.4- Os princípios e os valores organizadores da vida social.
6.5- A autoridade como poder e como serviço.
6.6- A educação para a cidadania.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SEXTA UNIDADE


Levar os estudantes a discutirem em torno dos conceitos de sociedade e/ou comunidade humanas,
a compreenderem que crescer como pessoa está ligado ao crescer como comunidade num espírito
de solidariedade, responsabilidade e espírito de pertença, a compreenderem o sentido do ser
político, a conhecerem os princípios organizadores da vida social e a enveredarem por um caminho
de educação para a cidadania no nosso tempo.

6.1- Conceito de sociedade (ou comunidade) humana

Observemos a seguinte imagem e tentemos levantar um debate em torno dela no contexto da


sociedade e/ou comunidade humana.

Figura 5: Representação simbólica duma sociedade.


Fonte: adaptado de https://www.google.co.mz/url?sa=
i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&
uact=8&ved=0ahUKEwjetm1poDSAhVDxxQKH
WWaDcwQjRwIBw&url=http%3A%2F%2Fpt-
br.mundopublico.wikia.com%2Fwiki%2F
Controle_de_Condutas_pela_Autoridade_Antitruste
&psig=AFQjCNFVDsXh0KeNUy9u_XH34NaljKwI
_A&ust=1486636420939887, 7 de Fevereiro de 2017.

Que ideia de sociedade conseguimos captar da


imagem? O que significam as cores dos
indivíduos? O que significam os círculos que compõem cada grupo de indivíduos? Qual é o lugar
de cada indivíduo? O que significam as linhas que ligam cada círculo? O que achamos da relação

90
entre o todo e cada uma das partes nesta imagem? É possível dizer alguma coisa em relação ao tipo
de ligação entre os que estão no centro e os que estão na periferia?

Do debate que podemos fazer desta imagem, podemos partir do princípio de que “ninguém é uma
ilha”: vive-se e convive-se com os outros. Ninguém é um ser acabado: há necessidade eterna de
interdependência. Cada um necessita dum aperfeiçoamento contínuo, e esse aperfeiçoamento
realiza-se perante e com o apoio dos outros.

A sociedade (do latim societas, societatis, que significa associação amistosa com outros) é um
conjunto de seres que convivem de forma organizada, é a reunião, maior ou menor de pessoas,
famílias, povos ou nações. Também pode ser definida como agrupamento natural ou pactuado de
pessoas que constituem unidade distinta de cada um de seus indivíduos, com o fim de cumprir,
mediante a mútua cooperação, todos ou alguns dos fins da vida. Este último sentido nos leva ao
sentido original de comunidade: uma comum unidade. Dá-nos o sentido duma unidade orgânica,
pois é composta por várias pequenas unidades, que são os indivíduos. O conceito de sociedade
pressupõe uma convivência e actividade conjunta dos seres humanos, ordenada ou organizada
conscientemente (Wikipédia, a enciclopédia livre, sociedade).

Nalgum sentido, o conceito de sociedade contrapõe-se ao de comunidade ao considerar as relações


sociais como vínculos de interesses conscientes e estabelecidos, enquanto as relações comunitárias
se consideram como articulações orgânicas de formação natural, pois, como refere Albuquerque
(1999), nelas, as formas de relacionamento são caracterizadas por intimidade, profundeza
emocional, engajamento moral e continuidade no tempo. A sociedade, enfim, é o encontro, união,
comunhão de pessoas diversificadas, para a realização ou concretização de objectivos, deveres,
ideais, fins ou valores comuns e pessoais importantes, eficazes e edificadores ou construtivos.

O ser humano não é o único ser que vive em sociedade. Os outros animais também vivem em
sociedade. Mas a diferença com os outros animais é de que ele, o homem, através do uso da razão,
do raciocínio, e através de todas aquelas faculdades que o distinguem dum animal (a
intencionalidade, a transcendência, a auto-orientação, a construção dos meios de trabalho, etc.) é o
único capaz de fazer uma análise crítica, ou seja, de distinguir entre o bem e o mal, bem como de
fazer pacto ou de pôr em jogo as regras ou normas do grupo em que está integrado e dar uma
orientação à sua vida e aos destinos da sua comunidade. Ele é, igualmente, o único capaz de

91
modificar, pela via da violência ou da não-violência, isto é, pela via pacífica, a ordem estabelecida.
Por isso exigem-se leis e normas sociais adequadas, de modo que a sociedade viva de forma
tranquila, organizada e pacífica. Os outros animais não são capazes de estabelecer as regras de jogo
e, sobretudo, o mais difícil, não são capazes de pô-las em prática, revê-las, modificá-las, se for
necessário, para maior aperfeiçoamento ou melhoramento.

6.2- A pessoa humana e a construção da comunidade

As ideias de “compromisso”, de “conversão”, de “liberdade”, de “transcendência”, de “dignidade”,


de “direito”, etc. inerentes à pessoa humana têm o seu pleno sentido numa perspectiva comunitária,
e a realização pessoal exige o compromisso político (comunitário, social). Por isso, o
desenvolvimento da pessoa humana não pode ter o sucesso desejado se não for socorrido pelo
desenvolvimento da própria comunidade, do próprio contexto social em que tal pessoa está
inserida: a pessoa deve ser concebida dentro das perspectivas da comunidade. Dizia Ortega y
Gasset: eu sou eu mesmo e as minhas circunstâncias. E Aristóteles sustenta que o ser humano é um
ser essencialmente social. E não se trata duma comunidade qualquer, mas sim daquela comunidade
que dá espaço para a realização pessoal, aquela comunidade que, na linguagem de Mounier, pode
ser definida como uma comunidade de pessoas, uma Pessoa de pessoas, uma Superpessoa.

Por isso, o ser humano, pela educação, deve estar iniciado à vida em comunidade, ou por outra, a
humanitas constrói-se e tem sentido na civitas. Se o primeiro acto de iniciação à Pessoa é a tomada
de consciência da minha vida anónima, refere Mounier, do mesmo modo o primeiro passo de
iniciação à comunidade é a tomada de consciência da minha vida indiferente. Estamos a dizer o
seguinte: o primeiro passo da iniciação à vida em comunidade é sair da indiferença e assumir o
sentido de compromisso social. Aqui encontramos a inevitável ligação da pessoa à comunidade. O
reconhecimento do outro como um tu exige-me sair desta indiferença. E a relação eu-tu (uma
pessoa para outra pessoa) é uma relação primordial da verdadeira comunidade. E esta é uma ralação
de amor, pela qual a minha pessoa se descentra e vive no outro. É este o sentido de ser pessoa:
dispor de si, para depois se dispor aos outros. O amor, diria Mounier, é unidade da comunidade
assim como a vocação é unidade da pessoa. Não é possível ter uma verdadeira comunidade
deixando de lado a pessoa, nem tentar assentar a comunidade sobre algo diferente de pessoas
solidamente constituídas. O nós nasce do eu, mas um eu que é pessoa.

92
Apreender uma pessoa é um trabalho duro, que não se faz automaticamente. Eis porque a
experiência da comunidade é primeiramente uma experiência próxima e não imediata. Não
dizemos: tu amarás o homem como a ti mesmo, mas: tu amarás o teu próximo como a ti mesmo;
isto é, dando-te, pelo engajamento, a ele sem medida. Isto provém do facto de que a verdadeira
comunidade não é colectividade de indivíduos fechados, mas sim, uma comunidade de pessoas em
que cada um se abre ao outro e se deixa apossar pelo outro. Por isso, a aprendizagem da comunidade
é uma aprendizagem do próximo como pessoa dentro da sua relação com a minha pessoa. Aqui
também nos deparamos com o outro diferente do tu, o outro que é um terceiro, um ele. Na verdade,
a terceira pessoa não existe. Existe uma primeira pessoa, uma segunda pessoa e o impessoal. O
outro (terceiro) começa a ser um elemento da comunidade quando se torna para mim uma segunda
pessoa, um tu; isto é, na medida em que ele é querido por mim como primeira pessoa em relação a
mim. É esta a intuição de Buber quando afirma que “a pessoa aparece no momento em que entra
em relação com outras pessoas” (Buber, citado por Rangel, 2004, p. 54). Eu descubro um homem
quando subitamente ele se dispõe como um tu.

A ligação da pessoa à comunidade é tão orgânica ao ponto de podermos afirmar que as verdadeiras
comunidades são realmente pessoas colectivas, pessoas de pessoas. Tudo o que dissemos da pessoa
e sua dignidade (cf. Caps. III e IV), transposto, pode ser aplicado à comunidade. Ela não é mais a
soma dos indivíduos que ela compõe, assim como a pessoa não é a soma das personagens interiores
que a desviam. Toda a comunidade busca erigir-se em pessoa, que é sua figura limite. Só esta
comunidade é que pode aproximar o homem a si mesmo, exaltá-lo e transfigura-lo.

Toda a comunidade deve realizar-se de tal modo que os valores da pessoa sejam reconhecidos e
promovidos. A pessoa não pode ser uma simples célula dum organismo social e nem se pode
pretender subordinar em tudo o homem ao Estado, pois o Estado está para o homem e não o homem
para o Estado. É preciso instaurar uma organização social que garanta os requisitos da vida
económica, uma organização baseada no reconhecimento da natureza e dos direitos da pessoa
humana. O Capitalismo e o Totalitarismo apresentam-se desumanos. O Socialismo foi reprovado
pela própria história. E o Anarquismo não soluciona nada. É preciso repensar em outras estruturas
sociais e políticas para que se possa implantar uma sociedade que tenha como figura-limite a
pessoa, e tenha como espaço de realização a comunidade (Copleston, 1996, pp.303-304).

93
6.3- Pessoa e comunidade como sujeitos de valores morais

O valor moral da comunidade manifesta-se num determinado espírito (que se manifesta através das
obras de arte, de poesia, de filosofia, etc.) e, sobretudo, encarna-se nas pessoas que se impregnam
deste espírito da comunidade. Tanto o ser humano simples, assim como toda a personalidade forte
são absorvidas e como que arrastadas em seu valor moral pela comunidade. Aliás não poderá faltar
à comunidade o concurso de todos, como diz Walther (1923, citado por Haring, 1960, p.118), que
“uma comunidade que não conta entre seus membros personalidades fortes e em plena consonância
com seu ritmo de existência jamais poderá desenvolver cabalmente a sua natureza. Como também,
em sentido inverso, nenhuma personalidade jamais poderá expandir-se plenamente, a menos que
encontre ou constitua uma comunidade, cujo espírito corresponde às exigências fundamentais de
sua natureza”. Isto vale em se tratando de uma personalidade evoluída e muito mais ainda no caso
de personalidades em evolução, como a da criança ou a de um adulto moralmente retardado.
Numerosos actos morais da criança e mesmo de muitos adultos não procedem do conhecimento
realmente pessoal e independente dos valores morais, mas são frutos das reservas morais da
comunidade.

Quando reina na comunidade uma vida autenticamente sadia, o mimetismo social, isto é, o facto
de alguém se deixar levar a agir sem intenção virtuosa, mas pela influência da comunidade, não é
destituído de valor. Não se pode pô-lo em termo de comparação com o mimetismo inverso, isto é,
o que inspira condutas condenáveis ditadas pelo ambiente. Não se pode, sobretudo, confundi-lo
com o contágio produzido pelos instintos inferiores da massa. Não há aqui uma simples diversidade
entre uma fonte pura e outra envenenada. As condutas de origem puramente social num indivíduo
que não alimenta estima alguma pessoal pelos valores sociais, podem leva-lo a participar tão
frequentemente, seja embora de maneira elementar, do sentido virtuoso preexistente na
comunidade, que ele acabará tomando gosto por eles e inspirando sua conduta numa adesão pessoal
ao bem.

Em todo caso pensamos que a realização meramente conformista de acções boas representa, ao
menos, o melhor incentivo e a ocasião mais favorável para que o indivíduo possa entrar em contacto
pessoal com os valores. Pela conduta virtuosa de toda uma comunidade acende-se como que por si
a chama do conhecimento do bem, ao passo que a imitação conformista de condutas sociais

94
condenáveis leva imediatamente a hábitos maus e não suscita (promove) genuíno conhecimento
dos valores.

Pode-se, pois, dizer acertadamente com Bergson, que a moralidade se origina também numa fonte
social, sem que por isso se deva ver em toda a sua linha, uma moral fechada, em oposição à moral
aberta (Bergson, citado por Haring, 1960, p.119). O conformismo social das condutas boas,
diferenciando-se rigorosamente do contágio psíquico, orienta o espírito para as atitudes virtuosas,
e de certo modo já lhe proporciona o sentimento nascente destas atitudes. E embora isto não valha
realmente para um indivíduo inclinado a um conformismo puramente gregário, tal é, no entanto, a
intenção da comunidade e do senso de valores que a anima. Pois ela visa atingir o centro moral
pessoal de cada indivíduo, isto é, de cada “tu”, e não criar uma simples atmosfera contagiosa
provinda só do exterior, como se vê na psicose das massas.

Para se verificar até que ponto o nosso valor moral é suscitado pela comunidade, basta comparar
um membro moralmente zeloso duma comunidade fervorosa com outro, duma comunidade
decadente: nem ao preço de grandes esforços e de uma iniciativa pessoal corajosa poderá o membro
duma sociedade profundamente decaída obter um contracto tão pleno, tão profundo e tão intenso
com o mundo dos valores como o membro duma comunidade ideal. Note-se que não pretendemos
aqui reportar-nos à questão de saber como Deus recompensará o esforço de quem se coloca a seu
serviço. Devemos, porém, dizer que o membro duma comunidade boa, em igualdade de esforço,
possuirá melhores prerrogativas morais do que o outro, colocado num ambiente medíocre. Sem
dúvida o fervor do primeiro na estima dos valores morais pertence-lhe como coisa própria (isto é,
os actos que traduzem este fervor); mas, procede mais da comunidade do que dele mesmo.

6.4. Os princípios e os valores organizadores da vida social

6.4.1. Alguns princípios que formam uma sociedade livre e virtuosa

A- A dignidade da pessoa humana

A pessoa humana é o autor, o centro e o fim de toda a vida económica e social. Ela nunca é tratada
como objecto, mas sempre como sujeito, pois ela tem valor por si. A sua dignidade, seus direitos,
a começar pelo direito à vida, da concepção à morte natural, e suas liberdades, com particular
destaque para a liberdade religiosa devem ser postas em consideração em qualquer tipo de
intervenção política, social ou económica. Essa dignidade, igual para todas pessoas humanas, exige
95
o esforço para reduzir as desigualdades sociais e económicas excessivas e levar ao desaparecimento
das desigualdades e relações iníquas.

Para mais informações sobre a dignidade da pessoa humana, pode-se consultar o cap. V deste
manual.

B- A família

Juntamente com a pessoa humana, está a família. A íntima comunidade da vida e do amor conjugal,
fundada pelo Criador e dotada de leis provisórias, é instituída por meio da aliança matrimonial, ou
seja, pelo irrevogável consentimento pessoal. Deste modo, por meio do acto humano com o qual
os cônjuges mutuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição também à face da
sociedade, confirmada pela lei divina. Em vista do bem tanto dos esposos e da prole como da
sociedade, este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana. O próprio Deus é o autor
do matrimónio, o qual possui diversos bens e fins, todos eles da máxima importância, quer para a
propagação do género humano, quer para o proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros
da família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de toda a
família humana. Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão
ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que a sua coroa. O homem
e a mulher, que, pela aliança conjugal “já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6), prestam-se
recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e actividades, tomam consciência da
própria unidade e cada vez mais a realizam. Esta união íntima, já que é dom recíproco de duas
pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a
indissolubilidade da sua união (GS, 48, citado por Sapato, Cunlela & Lucas Maria, 2016).

C- O bem comum

O bem comum é o conjunto de condições sociais básicas, criadas numa sociedade, tais como as
diversas forças de segurança pública e social, bem como algumas infra-estruturas sociais,
nomeadamente, escolas, hospitais, estradas, fontanários, espaços recreativos ou de lazer, entre
outros, para que todas as pessoas que nela vivem, tenham direito de aceder ou usufruir, delas se
possam beneficiar e se desenvolvam de maneira digna e integral, para alcançarem a própria
perfeição e felicidade. O bem comum é aquela soma de condições que faz com que todos atinjam
um nível de vida física, moral, cultural e espiritual digna de seres racionais (Rodrigues, Ética e
96
civismo, 33). Portanto, o bem comum não é algo concreto, mas é o conjunto de todas essas
condições que tornam possível o ser humano alcançar a sua perfeição, não só o ser humano, mas a
própria sociedade alcançar a sua perfeição como um todo.

O Estado é o primeiro protagonista do bem comum. Neste contexto, os funcionários do Estado


devem ser bastante flexíveis e atentos às necessidades de toda a sociedade, de todas as pessoas, em
geral, e de cada pessoa, em particular. Para tal, esses funcionários do Estado devem descortinar
todo o tipo de burocracia no processo de instauração e funcionamento do bem comum. Porém,
todos os cidadãos são co-protagonistas na promoção desse mesmo bem, ou seja, ninguém é isento
ou alheio nem a promovê-lo e nem a usufrui-lo. Como se pode entender, o bem comum não é o
mesmo que o bem público. Quando se fala de bem público, apenas queremos contrapô-lo ao bem
particular. O bem público é o conjunto de bens a disposição de todos, contrário dos bens
pertencentes a alguém em particular. O bem comum foge dessas considerações. Engloba o bem
público e o bem privado, mas transcende a todos eles, pois refere-se a condições.

Os diversos poderes públicos constituídos na sociedade, e não só, devem criar condições de modo
que todos os constituintes dessa sociedade, sem distinção de ninguém, usufruam condigna e
ordinariamente dos tais bens. Ademais, eles devem estar comprometidos e empenhados em
reconhecer, respeitar e promover os direitos humanos para a realização e concretização do bem
comum, em benefício de todas as pessoas daquela sociedade.

O bem comum é o bem das pessoas, enquanto estas estão abertas entre si, na realização dum
projecto unificador que beneficia a todos. A noção do bem comum assume a realidade do bem
pessoal e a realidade do projecto social na medida em que as duas realidades formam uma unidade
de convergência: a comunidade. O bem comum é o bem da comunidade. (Vidal & Santidrian, 1981,
p. 24).

D- A solidariedade

A “gramática” da solidariedade valoriza fundamentalmente os pronomes pessoais, tu, ele, nós, vós
e eles, em detrimento do pronome da primeira pessoa do singular: eu. Por outras palavras estamos
a afirmar que, a “gramática” da solidariedade se interessa por ti e por ele, por nós, por vós e por
eles, do que propriamente por mim. Trata-se duma afirmação incondicional e desinteressada do
outro e dos outros. Aliás, na medida em que eu afirmo o outro também me auto-afirmo a mim
97
mesmo. Na medida em que nós afirmamos os outros também nos auto-afirmámos a nós mesmos.
A afirmação de mim mesmo passa necessariamente pela afirmação do outro. Só posso existir e
viver dignamente na medida em que o outro existe e vive dignamente. A afirmação do meu bem-
estar social passa necessariamente pelo bem-estar do outro ou dos outros. A solidariedade passa a
ser, nesse sentido, uma responsabilidade recíproca.

Por isso, a solidariedade consiste sobretudo na dedicação, entrega, empenho, contribuição e,


fundamentalmente, colaboração ou cooperação e união de todos com todos, de cada membro da
sociedade em benefício de todos, para seu bem-estar, sossego e tranquilidade. Trata-se duma
cooperação inquestionável, sem preço, que ultrapassa quaisquer barreiras; uma cooperação que se
preocupa sobretudo com a vitória sobre o sofrimento e a pobreza; preocupa-se também com a
sustentabilidade, o desenvolvimento integral de todos e de cada um.

Na solidariedade, cada qual se sente responsável e cúmplice pela vida do(s) outro(s) que sofre(m)
e dos destinos da sociedade em que se encontra, por fazer parte dela ou por ser membro dela; por
ser seu constituinte. Por isso luta, sem esperar nada em troca, para que a vida de todos seja digna.
Essa co-responsabilidade é extensiva a todas as pessoas não só da sociedade em que alguém se
encontra a viver mas também a outras sociedades em sua volta e pelo mundo fora. Aqui reina a
influência e interdependência de todos, dentro do grupo, e influência e interdependência com outros
grupos sociais e, consequentemente, com toda a sociedade.

O princípio de solidariedade não só diz respeito às pessoas singulares, mas toca e mexe com todas
as organizações, instituições e diversos grupos sociais existentes na sociedade. Trata-se da chamada
responsabilidade ou co-responsabilidade social, que se encarrega pelo progresso, bem e bem-estar
da sociedade.

Todos colaboram com todos, deixando de lado as diferenças e os conflitos, mesmo de interesses.
A finalidade e o propósito são os mesmos: o bem-estar e felicidade de todos. Ninguém se deve
sentir excluído nesse processo. Todos são envolvidos; todos são chamados a colaborar e a
participar.

O mundo em que vivemos será mais humano e habitável se reinar entre as pessoas, grupos sociais,
organizações, instituições e nações, a verdadeira e genuína solidariedade, que brota do fundo do
coração de cada um.
98
Pilares da solidariedade

A solidariedade se assenta sobre os seguintes pilares:

1º Sair de si mesmo e caminhar para o outro: O solidário deixa de ser solitário para ser solidário;
deixar de viver e conviver sozinho; deixa de viver só para si e por si para viver com. A “gramática”
da solidariedade não conjuga o pronome pessoal apenas na primeira pessoa do singular, eu, mas
sobretudo na primeira pessoa do plural: nós. A solidariedade reveste-se de empatia. Empatia
significa colocar-se na pele e no osso do outro; isto quer dizer, sentir e acolher a dor e o sofrimento
do outro como se fosse a minha própria dor e o meu próprio sofrimento.

2º Viver o presente antevendo o futuro: Viver o presente antevendo o futuro significa que o
solidário, ou ao menos o que busca a solidariedade, vive a situação presente do seu contexto e no
seu contexto, não como um dado adquirido, mas como um processo em contínua transformação e
melhoramento. Ele é um inconformado com a realidade desumana existente e colabora, luta para
transformá-la numa realidade em que a vida se torna mais digna, mais justa e mais humana. O
solidário esforça-se de modo que as situações desumanas do presente, não venham mais a
acontecer, no futuro. Portanto, o solidário busca transformar o mau em bom e o bom em melhor
que está na sociedade ou na realidade quotidiana.

E- A subsidiariedade

A subsidiariedade provém de subsidium, que significa apoio. O princípio de subsidiariedade


compreende várias facetas ou aspectos fundamentais. Eis alguns:

a) Em primeiro lugar, o princípio de subsidiariedade significa que as bases (o povo) podem decidir
por si sós certos aspectos relevantes ou pertinentes, sem precisarem de recorrer à hierarquia ou
às instâncias superiores;
b) Em segundo lugar, as sociedades maiores ou mais amplas têm o dever e a obrigação de
intervirem e apoiarem, por meio de diversas acções concretas, às sociedades menores ou menos
amplas, de modo que essas subsistam e vivam de modo mais digno e humano, na terra;
c) Em terceiro lugar está o Estado, como nação organizada politicamente, que tem a missão de
animar, motivar, incentivar, apoiar e sustentar as pessoas, as famílias, os diferentes grupos
sociais, organizações e outras instituições oficialmente erguidas na dita sociedade, para que

99
tenham sucessos, boas finalidades no exercício ou desempenho das suas funções e que vivam
de forma desafogada e feliz.

Essas instituições, porém, devem ter a possibilidade de agirem duma maneira livre e autónoma,
isto é, sem coacção, intromissão nem constrangimento da parte de ninguém, incluindo o próprio
Estado, pois colaboram com ele.

Portanto, o Estado deve garantir-lhes autonomia e não pode absorvê-las e esmagá-las. Ele não pode
ser uma grande estrutura que elimina a função de grupos e pessoas, entrando em toda a vida, quer
pessoal quer social: isto provocaria medo, angústia e desinteresse pelo bem da sociedade.

F- A responsabilidade

A responsabilidade enquanto princípio ético, apesar de ser evocada pelos filósofos clássicos,
assume novas perspectivas a partir do pensamento de Hans Jonas e Emanuel Levinas. Ambos a
colocam como centro da ética.

Com Jonas, a responsabilidade não é mais centrada no passado e no presente. A sua preocupação
é com o futuro da humanidade, com as gerações futuras e com a sobrevivência das mesmas.
Diferente de Platão, Jonas não está preocupado com a eternidade, mas com o tempo vindouro,
compatível com a era da ciência e da tecnologia, cuja responsabilidade passa a ser o alicerce, o
princípio orientador para as decisões que possam interferir nas diferentes formas de vida. É
importante recordar o papel das tecnologias no contexto dos direitos fundamentais. Elas são
consideradas na terceira, quarta e sobretudo quinta gerações, de acordo com a classificação feita
neste presente manual (cf. cap. V).

Levinas, por sua vez, também se afasta da tradição filosófica na medida em que não aceita mais a
tese de que a responsabilidade é decorrente da liberdade. A responsabilidade não nasce de uma boa
vontade, de um sujeito autónomo que quer livremente se comprometer com o outro ser. Ela, sim,
nasce como resposta a um chamado. Por isso é responsabilidade (do latim respondere). A
responsabilidade é o fundamento primeiro e essencial da estrutura ética, a qual não aparece como
suplemento de uma base existencial prévia.

Aquém do ser, encontra-se uma subjectividade capaz de escutar a voz, sem palavras de um dizer
original, e aponta para uma outra dimensão do eu. Prévio ao acto da consciência, anterior ao sujeito

100
intencional, o eu já responde a um chamado. A responsabilidade pelo outro ser precede a
representação conceitual ou a mediação de um mandamento ético. Ela é obediência a uma vocação,
a uma eleição pelo bem além do ser. A responsabilidade determina a liberdade do eu, pois esta não
consegue mais se justificar por ela mesma. (Kuiava, 2006).

G- A participação

O princípio democrático ou participativo é o princípio segundo o qual, como o próprio nome diz,
todos são chamados a participar e intervir de maneira activa para o progresso e desenvolvimento
socioeconómico, político e cultural da sua sociedade.

Essa participação, que permite uma convivência humana justa e fraterna, é através de ideias,
iniciativas e acções concretas que possam beneficiar a todos. Ninguém devia ser um “hóspede”,
um ausente, um mero espectador no processo do desenvolvimento integral da sua sociedade.
Qualquer um, e em qualquer sector onde estiver, tem o dever e a obrigação de oferecer a sua
participação activa.

6.4.2. Valores sociais básicos

A- A verdade

Na tradição judaico-cristã, todos os seres humanos estão obrigados, desde Moisés, a buscar a
Verdade e a tender continuamente para ela, a respeita-la e a dar testemunho dela de modo
responsável. Essa Verdade é de extrema importância para o discípulo de Cristo, porque não é
apenas um valor básico da vida social, mas também é alguém: Jesus (Eu sou o caminho, a verdade,
e a vida: Jo 14,6). Quem aceita fazer parte do discipulado de iguais (discípulos de Cristo) olha para
Cristo como a verdade em pessoa (cf. Jo 18,37-38). Portanto, viver na verdade tem um significado
muito especial quer nas relações sociais (dimensão horizontal), quer nas relações com Deus
(dimensão vertical), porque ordena e alimenta a convivência entre as pessoas e povos, de forma
condizente com a dignidade pessoal, e liga esta dignidade pessoal com a fonte de onde ela provém.

Os dias actuais, claramente, exigem de cada um de nós um enorme esforço educativo – podemos
dizer, mesmo, um gigantesco empenho –, no sentido de promover a busca da “verdade” em todos
os âmbitos, e de sobrepô-la às inúmeras tentativas de relativizar suas exigências e de tentar

101
desmoraliza-la com base em argumentos falsos, vestidos com fantasia da “modernidade” ou com
meros palavreados que revelam um “falso moralismo”.

É dever de todas as pessoas de bem, religiosas ou não, inclusive para que possamos preservar nossa
própria dignidade, lutar pela busca da verdade, seja no plano da verdade revelada, seja na cultura,
na ciência, na economia, na política ou em qualquer outro ramo das actividades humanas, pois a
verdade liberta.

No campo da economia, as trocas que caracterizam os mercados devem pressupor esse valor da
verdade para que possam fluir em toda a sua intensidade. Para entender isso, basta que imaginemos,
por exemplo, os estorvos que um empreendedor teria que enfrentar caso um fornecedor lhe desse
sua “palavra de honra” de que iria entregar sua mercadoria em determinada data e não cumprisse
com sua palavra. (Os valores de uma sociedade livre e virtuosa)

B- A liberdade

A liberdade sempre é um prato feito para todos, inclusive para os que desconfiam dela nos campos
da economia e da política, no sentido de que todos, sem excepção, sempre se dizem favoráveis a
ela. Mas devemos sempre analisar que conceito de liberdade cada um desses que se declararam
seus defensores tem em mente.

Já escrevia São Paulo aos Coríntios (2Cor 3,17): “ubi autem Spiritus Domini ibi libertas” (onde
está o Espírito do Senhor aí há liberdade). A liberdade da pessoa humana é um sinal claro da
imagem do Criador e, por conseguinte, sinal de sua dignidade. O valor da liberdade, como
expressão da singularidade de cada ser humano, é respeitado na medida em que se consente a cada
membro de uma sociedade realizar sua própria vocação individual, mediante suas próprias escolhas
ao longo da vida.

Nunca devemos nos esquecer de que a liberdade e a virtude são indissociáveis, o que significa,
simplificando um pouco as coisas, que só faz sentido falarmos em liberdade se a essa liberdade
estiver associada alguma obrigação, que é a de respeitar os direitos de terceiros. Um exemplo claro,
cristalino, irrefutável é a polémica em torno da legalização do aborto, defendida tradicionalmente
tanto pela chamada “esquerda” como por alguns libertários radicais: é verdade que a mulher deve
ter a liberdade para dispor do próprio corpo como lhe aprouver, isto é, de acordo com seus
princípios morais ou com sua simples vontade, mas é também verdade que se ela matar o feto que
102
se desenvolve em seu ventre estará agredindo um direito básico, que é o direito à vida desse futuro
bebé, que não lhe pertence e que já é uma pessoa humana, embora em formação, dotada de vida e
de dignidade; além disso, estará maculando também um direito de propriedade, ao dispor sobre a
propriedade de outrem, já que o feto, por definição (e por mais que queiram nega-lo certos grupos
defensores do aborto) é proprietário do seu próprio corpo, mesmo estando este ainda em formação.

Notemos neste exemplo que os defensores do aborto estão, segundo eles, defendendo a liberdade,
embora seu conceito de liberdade seja unívoco. Se por liberdade entendermos simplesmente fazer
o que nos dá na veneta, então poderíamos justificar qualquer tipo de crime, dizendo, por exemplo,
“fulano matou, estuprou, ou roubou” porque “teve vontade de faze-lo”.

É evidente que o conceito de liberdade relevante é o que chamamos de “liberdade situada”, que
leva em conta que todos nós temos que nos deparar com leis, coisas, pessoas e tudo o mais que nos
rodeia e ao qual não podemos escapar. Assim, a nossa liberdade é condicionada por tudo o que
existia antes de nós, ou seja, é uma “liberdade situada”. Estamos limitados por nossa natureza, por
muitos condicionantes, como nossas próprias habilidades ou talentos, inteligência, inclinações e
debilidades, por nosso ambiente de trabalho e pelas pessoas com quem convivemos ou com quem
trocamos algo, mesmo que a troca seja virtual, como o caso de uma compra pela internet. (Os
valores de uma sociedade livre e virtuosa)

C- A justiça

É conhecida a definição de justiça dada por Ulpiano: suum quique tribuere, dar a cada um o seu. E
é sugestivo o pensamento de Salvador Allende, quando diz “Não basta que todos sejam iguais
perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos.”

A justiça deve ser compreendida como a “virtude que inspira o respeito pelo direito de outrem”
(Perfeito et al., 1994, p. 1069), pois ela significa dar a cada um o que é seu ou o que lhe pertence.
Também se pode afirmar que a justiça consiste em dar a cada um aquilo que lhe corresponde, por
direito, nomeadamente, a assistência social, educação, emprego, saúde, assistência económica e
assistência jurídica.

Se tivermos qualquer dúvida sobre esse princípio de dar a cada um segundo o seu direito ou o que
lhe pertence, ou se nos perguntarmos como é que podemos reconhecer o que é de direito de alguém
ou que seja sua pertença, os diversos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais como a
103
Constituição da República, a Lei do Trabalho, e outras leis, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, entre outras convenções, têm bem claros e fixados esses princípios. Para complementar
a esses instrumentos jurídicos e essas convenções, está a consciência humana bem patente em cada
um de nós. Basta accioná-la e pô-la em prática.

O discurso sobre a justiça é vasto, e tem vários critérios de classificação. No nosso caso, vamos
nos deter sobre a justiça social, justiça distributiva, justiça pública ou jurídica e a justiça
comutativa.

a) A justiça social: Toda e qualquer pessoa que vive na sociedade é dotada de direitos, como o
direito à vida, à educação, à saúde, ao emprego, à habitação, etc. A justiça social é aquela que
respeita e promove os direitos de todos, em geral, e de cada um, em particular, como membro
duma sociedade. Ela promove direitos e oportunidades iguais de todos para todos, de tudo, em
tudo, para todos e para cada um, ou seja, tratamento igual para todos, sem qualquer
possibilidade de discriminação. Para se instaurar uma verdadeira justiça social é fundamental
que as instituições sociais se distanciem da corrupção, do nepotismo, do suborno, da extorsão,
do clientelismo, etc. e se deixem guiar pela transparência. A justiça social consiste
fundamentalmente no respeito ou reconhecimento dos direitos humanos, quer naturais bem
como positivos, na igualdade fundamental de todo o homem e na equidade, sem descriminação,
quanto à aplicação da lei e quanto a distribuição de bens e serviços, como por exemplo a política
da habitação, da educação, do emprego, dos serviços hospitalares.

b) Justiça distributiva: A justiça distributiva é a aquela que se encarrega pela recta e digna
distribuição ou repartição dos bens e serviços, entre os indivíduos na sociedade, sem
discriminação, sem olhar para a cara da pessoa, como por exemplo os salários, de acordo com
as reais capacidades e necessidades de cada um. Trata-se da justiça equitativa. A justiça
distributiva encarrega-se pela distribuição ou repartição proporcional da riqueza, da economia,
dos bens, dos serviços, dos salários, entre os indivíduos, na sociedade. A distribuição deve ser
digna, correcta ou equilibrada e equitativa. A distribuição deve ser equitativa no sentido de que,
deve ser proporcional, segundo os méritos pessoais, ou seja, de acordo com a condição de cada
um, sem discriminação, sem olhar para as caras e as condições ou o status das pessoas. Para a
sua promoção e operacionalização, é fundamental que haja “leis que determinam as condutas

104
individuais e grupais da comunidade e definem, assim, o que é justo e o que é injusto” (Chalita,
2003, p. 109).

c) Justiça pública ou jurídica: A justiça pública ou jurídica encarrega-se pela mediação das
relações sociais, através de leis soberanas. Baseada, fundamentalmente, nas leis, funciona como
força estabilizadora que luta contra as infracções e as violações, com o propósito de instaurar
uma sociedade mais organizada, mais fraterna, mais justa, mais pacífica e mais habitável.
Confere a qualquer cidadão, em caso de se sentir prejudicado ou injustiçado, o direito de mover
uma acção judicial, ou seja, o direito de acusar, notificar e de mover algum processo judicial
contra o seu ofensor, ou o que considera de infractor. A justiça jurídica tem uma função
correctiva, ou seja, ela tem a função de reparar, repor ou devolver a verdade; repor a situação
ou o facto deslocado da normalidade.

d) Justiça comutativa: A justiça comutativa vigora fundamentalmente nas relações interpessoais


e “inter-grupais”. Ela encarrega-se pela observância dos contractos e pelas trocas de vária
ordem, sejam elas comerciais, profissionais, laborais, entre outras. Enfim, a justiça comutativa
deve garantir ou assegurar a satisfação mútua.

D- respeito mútuo no âmbito da dignidade, da igualdade e do diálogo

O respeito é uma virtude incontornável, ou mesmo obrigatória entre humanos. Respeito mútuo ao
género oposto, respeito à pessoa de cor e raça diferente, respeito à outra religião, enfim, respeito à
pessoa de status ou condição social diferente favorecem a boa convivência entre as pessoas e,
consequentemente, favorece uma vida harmónica e pacífica. Aliás, ninguém deve ser tratado
segundo a sua cor, raça, género, estrato social, proveniência, religião que professa, em diante. Cada
um precisa de ser respeitado simplesmente por causa da sua dignidade, uma dignidade que é
inerente ao facto de ser pessoa. Basta que seja pessoa para ser respeitada. As diferenças aqui
mencionadas são bem-vindas. Elas são uma fortuna, uma riqueza porque nos enriquecem e nos
complementam. Feliz diferença! É preciso valorizar aquilo que nos une em detrimento daquilo que
nos separa. O que torna possível esta conciliação das diferenças é a atitude constante do diálogo.

A palavra diálogo (do grego diá mais logos) tem o seguinte significado etimológico: o que passa
através (diá: passagem, movimento) da palavra (logos). Trata-se duma conversação entre duas
pessoas ou mais, é uma troca de intervenientes. Embora se desenvolva a partir de pontos de vista
105
diferentes, o verdadeiro diálogo supõe um clima de boa vontade e compreensão recíproca. Portanto,
o diálogo supõe, chama e exige o respeito mútuo.

Por respeito pretendemos dizer a consideração, valorização e o apreço que nutrimos por nós
próprios e pelos outros, e vice-versa, visto que todos somos diferentes mas iguais em dignidade.
Todos nascemos e morremos. Por falarmos de dignidade, é essa que realmente caracteriza a pessoa
humana. A reciprocidade desse respeito é o que nos leva a usar o adjectivo “mútuo”: respeito
mútuo.

Respeito significa que, apesar da diferenciação, é fundamental a valorização e aceitação da pessoa


tal como é, na sua condição e sempre tratá-la como pessoa e não como objecto. No convívio e
relacionamento social, a pessoa, porque dotada de dignidade, como já o dissemos, deve estar no
centro das atenções. Cada qual é o que é, com suas qualidades e defeitos. Ainda que tenha defeitos,
nem por isso ela deve ser desrespeitada e desprezada. Aliás, ninguém é sem defeitos. Ela deve ser
valorizada e aceite tal como ela é. Ao aceitar o outro mesmo que tenha seus pontos fracos, significa
que é uma exigência séria para que ele também me aceite como eu sou. Aí entra a questão da
igualdade: todos somos iguais em dignidade.

Nos diálogos, debates, palestras, por exemplo, eticamente respeita-se a pessoa: respeitam-se as suas
ideias e pensamentos, escutando-os atentamente, ainda que não concordemos com eles. Melhor
ainda, nos debates discutem-se as ideias e os pensamentos e não as pessoas; discutem-se as ideias
e pensamentos das pessoas e não as pessoas das ideias e dos pensamentos. Discutem-se as ideias e
pensamentos do dono e não o dono das ideias e dos pensamentos. Portanto, o relacionamento com
os outros, baseado no respeito mútuo, é livre de preconceitos e etiquetas.

6.5- A autoridade como poder e como serviço

6.5.1- Conceito de autoridade

Em todas as sociedades bem organizadas, sempre existe alguma autoridade instituída, conhecida
pelo Estado. A autoridade, por um lado, pode ser exercida como poder; por outro, ela pode ser
exercida como serviço, tanto na sociedade civil, como na família, assim como na igreja.

Para entendermos melhor a questão da autoridade como poder e como serviço, comecemos por
perceber o conceito de autoridade.

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Quando, numa determinada sociedade, existir um poder, seja ele legítimo ou ilegítimo,
reconhecido, aceite e institucionalizado, isto é, regulado por leis, a quem se deve obedecer, é
conhecido por autoridade.

Por autoridade legítima queremos entender aquela autoridade que foi justamente legitimada por
aqueles que devem reconhece-la: sobretudo o povo. Tal legitimação pode ser por via da eleição,
nomeação, etc. A verdade é que tal legitimação deve ser legal, aprovada, comprovada e
reconhecida, seguidas e cumpridas todas as formalidades em vigor no país. O contrário, ou seja,
uma autoridade não aprovada, não comprovada tampouco aceite e reconhecida, por ter chegado ao
poder por meios ilícitos, ilegais, como é, por exemplo, o caso das fraudes eleitorais, ou de golpe de
Estado, ou nomeações por motivos obscuros, conhece-se por autoridade ilegítima.

6.5.2- A autoridade fundada no poder

Uma autoridade estatal fundada no poder manifesta-se por autoritarismos, atitudes arrogantes dos
chefes em relação aos seus súbditos, intolerância, exclusão social, insuficiente delegação dos
poderes e excessivo recurso às imposições. Este tipo de autoridade faz surgir problemas relacionais,
ou seja, é difícil ou mesmo impossível se relacionar sã e satisfatoriamente com as pessoas, visto
que ela recorre ao poder para satisfazer as próprias necessidades à custa dos outros.

A autoridade como poder controla, domina, prevarica e constringe as pessoas a agirem contra a
própria vontade e os súbditos se submetem com fortes riscos de se tornarem introvertidos, passivos,
privados de iniciativas, dependentes, medíocres, com os quais é difícil conviver porque levam
dentro de si zanga e hostilidade.

A autoridade como poder cria obstáculo ao desenvolvimento das relações interpessoais satisfatórias
e eficazes porque ela se centra na estrutura organizativa piramidal, com um sistema organizativo
fundado numa hierarquia de comando e de controlo, onde as ordens sempre provêm do alto para
baixo, às bases, com prémios para os ilustres e distintos e punições para os “falidos”.

As consequências da liderança hierárquica ou da autoridade fundada no poder multiplicam os


aspectos negativos como agitações e manifestações das massas ou das populações, bem como dos
trabalhadores. Ela leva também a greves, reclamações pelas altas taxas, sindicalismos, rendimentos
medíocres e aversão em relação aos dirigentes. Portanto, essa é uma autoridade de chefia.

107
6.5.3- A autoridade fundada no serviço

No lado oposto temos a autoridade como serviço. Podemos conceber a autoridade como serviço,
quando ela estiver seriamente preocupada e comprometida com o bem comum, o bem-estar social,
com os destinos do povo da dita sociedade ou instituição social, sendo legisladora, árbitro e juiz na
observância e manutenção das leis e normas comportamentais que regem tal sociedade.

A autoridade é também serviço na medida em que ela não se aproveita da sociedade para servir
seus interesses, para enriquecer à sua custa. Não se esconde por detrás dela, nem usa sua capa para
se servir ou para alcançar seus objectivos e fins muitas vezes pessoais, obscuros e ilícitos. Antes,
pelo contrário, ela serve a sociedade. Trata-se duma autoridade de liderança.

A autoridade ainda se torna serviço, portanto, quando ela investe todas as suas forças e energias,
de diferentes formas, através de diversas iniciativas, para o bem comum, o bem-estar e progresso
de todos: salvar e servir o bem-comum é o cerne da função interna da autoridade que prima pelo
serviço.

6.5.4- Diferentes formas de governação

As diferentes formas de governação mais conhecidas ao longo dos tempos, herança que nos foi
deixada por Aristóteles, são a monarquia, a aristocracia e a democracia.

A- A monarquia

O poder está concentrado numa só pessoa. Trata-se fundamentalmente do poder real. Quem manda
ou governa num sistema monárquico é o Rei ou monarca, com auxílio de certos conselheiros, se
necessário.

Normalmente, o poder monárquico é hereditário, ou seja, pela velhice ou longa idade do rei, ou
mesmo em caso de morte, o(a) filho(a), que até então era príncipe (princesa), sucede ao pai (rei) e
ele(a) passa a ser rei (rainha). Se o rei não tiver descendentes, pode substituí-lo um dos seus irmãos
ou irmãs. Esse processo continua de geração em geração. Por isso, não existem eleições
presidenciais, porque o que é considerado presidente é o próprio rei ou rainha.

108
Porém, muitas das monarquias actuais adoptam sistemas modernizados, muitas vezes fazendo-se
acompanhar por um parlamento, com poder legislativo e um governo. O rei passa a ser apenas uma
figura emblemática ou simbólica, que representa o país, em momentos e eventos oficialíssimos.

Quando o rei detém o poder, age com braço de ferro, faz o uso abusivo do seu poder, torna-se um
tirano, isto é, o contrário da monarquia é tirania.

B- A Aristocracia

Na aristocracia, a autoridade é exercida por um grupo restrito ou menor, os considerados melhores,


os “ilustres”. Todo o tipo de poder se concentra nesse grupo. Ele normalmente impõe a própria
autoridade e as ordens sobre os seus súbditos, os “pequenos”, os mandados.

A aristocracia pode ser tirânica, ditatorial e totalitária. Ela assume todos os poderes, controla toda
a vida da sociedade e, se por acaso houver qualquer oposição, elimina-a. O governo aristocrático
muitas vezes se faz assegurar por uma polícia secreta forte e pelo uso da coerção e violência
(Diocese de Quelimane, 1993, p. 192). Assim, quando a aristocracia se torna tirânica, ditatorial e
totalitária, passa a ser uma oligarquia, isto é, o contrário da aristocracia seria a oligarquia.

C- A democracia

A palavra democracia tem origem grega, e significa poder do povo. Em Democracia, o povo se
governa por si mesmo, isto é, a governação consiste no consentimento do povo. O poder é popular.
Nele, o comando ou a governação não está concentrado numa única pessoa. O povo todo participa
na governação e tem a possibilidade de controlar toda a acção governativa. É o povo que,
periodicamente, escolhe os seus governantes, através do voto livre e secreto. O mesmo povo,
através dos seus representantes parlamentares e, outras vezes por referendo, vota pelas leis que o
possam reger.

Seguindo um ciclo regulado, a soberania passa de um grupo a outro grupo, de um indivíduo a outro
indivíduo, de tal modo que mandar e obedecer, em vez de se oporem como dois absolutos, se
tornam os dois termos inseparáveis de uma mesma relação reversível. (Enciclopédia Luso-
brasileira de cultura, 1988, p. 971). Num País democrático, qualquer um, reunidas todas as
condições requeridas e estabelecidas pela lei, pode-se apresentar como candidato governamental.

109
Num sistema democrático, o poder pode ser parlamentar, quando exercido pelo parlamento, ou
seja, quando o parlamento é que tem autoridade sobre o governo, e presidencial, quando o poder
de formular as leis está no parlamento, mas o Presidente da República é o chefe do Estado e do
governo. Como chefe do Estado, representa o país. Como chefe do governo, executa e manda
executar as leis aprovadas pelo parlamento.

O parlamento, num sistema democrático, é constituído por diferentes partidos e representa o povo
na elaboração das leis que o devem dirigir. Portanto, na democracia reina o multipartidarismo, e
tem espaço a separação dos poderes, onde o poder legislativo pertence ao parlamento, o executivo
ao governo do dia e o judicial à magistratura. Assim sendo:

a) O poder executivo: O poder executivo é o poder que executa. No regime democrático da maior
parte dos países, o poder executivo é exercido pelo presidente e o seu colectivo de ministros.
b) Poder legislativo: O poder legislativo é aquele que legisla, ou seja, que produz e aprova as leis
da nação, como é o caso do parlamento.
c) Poder judicial: O poder judicial é o poder que implementa as leis, exige o seu cumprimento e
julga os que não cumprem tais leis, como é o caso dos tribunais.

Quando o povo apossa-se do poder e usa-o mal para o seu próprio auto-governo, então torna-se
oclocrático, isto é, o contrário da democracia seria a oclocracia. Oclocracia é o governo do povo
desorganizado.

6.6. Educação para a cidadania

A cidadania pode ser definida como pertença a um Estado ou a uma cidade, a uma comunidade ou
a um grupo social ou profissional, por exemplo, com direitos e deveres consignados para os que
pertencem a esse grupo, e não aos que não fazem parte dele. Essa pertença vincula a pessoa quer
política, social e juridicamente a essa nação; ou seja, a cidadania faz da pessoa um cidadão; por
isso, ela não pode estar alheia ao que se passa no seu Estado.

Como podemos observar, a consciência de cidadania significa consciência de se ser cidadão,


consciência de identidade, de pertencer a uma colectividade sociopolítica e cultural, a uma nação,
a uma província, a uma cidade ou a um município, uma pertença que abrange direitos mas também
deveres para o bom funcionamento e o melhoramento dessa sociedade.

110
Há uma cidadania responsável onde houver um verdadeiro e genuíno sentido de pertença, um
verdadeiro amor à pátria, um autêntico amor à cidade, amor manifestado no envolvimento e
participação activa de todos no progresso sociopolítico, económico e cultural da cidade onde se
vive ou da nação, em geral. Esse amor à própria cidade, à própria nação passa igualmente pela
preocupação de vê-la com bom visual e boa apresentação que começa por pequenos gestos,
nomeadamente, por não deixar a casca de banana ao chão, por não depositar o lixo em lugares
impróprios, por evitar o fecalismo e a micção ao céu aberto, até aos grandes gestos, como a
participação em associações, movimentos sociais, culturais, entre outros, até à participação nas
eleições autárquicas e nacionais, bem como o controlo, até na conservação do meio ambiente e na
criação de melhores condições para as gerações futuras.

A falta de espírito de cidadania leva à irresponsabilização e falta de escrutínio sobre dirigentes e


dirigidos porque o controlo social está ausente. O sentido de pertença e de cidadania fazem com
que o indivíduo seja mais consciente em relação ao seu empenhamento na protecção da sua
liberdade e bem-estar (liberdade e bem-estar individual), bem como pela liberdade e bem-estar dos
outros (liberdade e bem-estar colectivo). Nesse sentido, ele e os outros lutam pela limitação e
mesmo bloqueio do poder absoluto em favor do poder limitado, porque o poder absoluto, manipula,
domina, escraviza o povo em todos os aspectos, nomeadamente, social, político, económico, entre
outros.

111
UNIDADE VII – A ÉTICA, A PESSOA HUMANA E O AMBIENTE

CONTEÚDOS DA SÉTIMA UNIDADE


7.1- O conceito de ambiente e de ética ambiental.
7.2- A pessoa humana e o cuidado com o ambiente, “nossa casa comum”.
7.3- Os problemas ambientais do nosso tempo.
7.4- A ecologia e as novas reflexões teológicas.
7.5- Algumas premissas para uma educação e espiritualidade ecoteológicas.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SÉTIMA UNIDADE


Levar os estudantes a caírem na conta do cuidado com o ambiente como uma exigência ética e
como uma realização da plenitude da pessoa humana. Este objectivo será alcançado por meio da
discussão em torno do conceito de ambiente e de ética ambiental, da discussão em torno da tomada
de consciência de que o ambiente é a nossa casa comum, do conhecimento e da análise crítica dos
problemas ambientais do nosso tempo, do aprofundamento da ecologia como ciência e das novas
reflexões teológicas, e por meio da análise de algumas premissas para uma educação ambiental. E
tudo isto será tratado à luz do espírito da Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, sobre o cuidado
da nossa casa comum.

7.1- O conceito de ambiente e de ética ambiental

7.1.1- Conceito de ambiente

Inicialmente, ambiente é tudo o que nos rodeia, o espaço onde todos nós estamos, e inclui o espaço
físico, psicológico, cultural, enfim o espaço natural e o espaço criado pelos seres humanos. Numa
visão sistémica, o ambiente é um sistema dinâmico, composto por um conjunto interactuante de
elementos naturais, sociais e culturais num momento e num lugar determinados, assim como pelos
resultados das interacções entre todos estes elementos.

7.1.2- Conceito de ética ambiental

Ética ambiental é uma reflexão sobre os princípios que devem orientar a nossa acção nas relações
que estabelecemos com o mundo natural (ambiente em geral). Usando palavras do Papa Francisco
(LS, n.139), é a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. É uma tentativa de aplicação
da ética social a questões de comportamento em relação ao ambiente. É uma filosofia de vida, do
respeito e do amor à vida, à natureza e aos semelhantes. Temos que construí-la de maneira
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participativa, e sustentada por um conjunto de novos valores. Tem que partir do ser humano e
chegar à sociedade, à cultura, às acções humanas em todos os contextos.

7.2- A pessoa humana e o cuidado com o ambiente, nossa casa comum

7.2.1- O problema do estatuto moral

Quais os seres que possuem estatuto moral? Qual é a propriedade que faz com que um ser possua
estatuto moral? Quando é que dizemos que tal ser possui estatuto moral? O que significa ter estatuto
moral?

Um ser possui estatuto moral quando possui valor intrínseco, tem o direito de ser tratado com
consideração e respeito, é eticamente errado ou inadmissível tratá-lo de certas maneiras, e temos a
obrigação de ter em conta os seus interesses e os seus direitos sempre que tomamos uma decisão
que o possa afectar.

Um ser está destituído de estatuto moral quando possui apenas valor instrumental, não conta do
ponto de vista moral, não temos qualquer obrigação de ter em consideração o modo como as nossas
acções o podem afectar, e podemos tratá-lo da maneira que quisermos sem que isso levante
qualquer problema ético.

Nas escolhas que nós, como humanos, fazemos, precisamos de analisar se o que nós buscamos é a
simples satisfação dos nossos interesses imediatos (sobretudo económicos), considerando-nos a
nós mesmos como os únicos eticamente relevantes, únicos com estatuto moral (ética
antropocêntrica), ou se consideramos o respeito pela preservação dos interesses do ambiente
natural, da vida em si, e, sobretudo, das gerações futuras (ética ambiental). Desta consideração,
temos a considerar quatro éticas diferentes: a ética antropocêntrica, a ética biocêntrica, a ética
ecocêntrica e a ética ecoteocêntrica.

7.2.2- A ética antropocêntrica

A ética antropocêntrica, conforme o próprio nome indica, é aquela que considera apenas o ser
humano como o ser que tem estatuto moral. Todos os outros seres têm valor instrumental. Ela

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manifesta-se quando aquilo que buscamos é apenas para a simples satisfação dos nossos interesses
imediatos (sobretudo económicos).

A ética antropocêntrica é uma ética:

a) Restritiva: A esfera de consideração ética encontra-se totalmente limitada aos humanos, uma
vez que estes são as únicas entidades dotadas de estatuto moral, sendo toda a natureza reduzida
a um valor meramente instrumental.
b) Do semelhante: Os problemas éticos reduzem-se à relação do homem com o homem. O estatuto
moral só cabe aos humanos.
c) Do presente: O bem e o mal decorrentes da acção pertencem apenas ao aqui e ao agora.
d) Da permanência: O «homem» e a «natureza» são concebidos como entidades imperturbáveis
na sua essência, não passíveis de serem remodelados pela técnica.
e) Da insustentabilidade: O tipo de vida fundado neste paradigma produziu a crise ambiental.

Numa análise crítica deste modelo de ética, pode-se sustentar o seguinte:

a) O que faz com que um indivíduo possua estatuto moral não é a sua pertença à espécie X, Y ou
Z mas as características ou propriedades intrínsecas desse ser.
b) As diferenças específicas não justificam uma discriminação a nível da consideração ética.
c) Não ter em consideração os interesses e os direitos de um ser apenas porque não pertence à
nossa espécie é moralmente injustificável e constitui um acto de especismo7.

7.2.3- A ética biocêntrica

A ética biocêntrica parte do princípio de que não podemos colocar em perigo a vida bem como
provocar sofrimento prolongado, devido à fome e falta de abrigo, a muitos seres sencientes não
humanos (mamíferos, primatas, aves).

Diz Albert Schweitzer: “Sou vida que quer viver e existo no meio de vida que quer viver. (…) A
ética consiste no facto de eu sentir a necessidade de praticar o mesmo respeito pela vida, por toda

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Especismo quer dizer que uma espécie é superior em relação às outras espécies e, por isso, dá-se o direito de eliminar
ou subjugar as outras.
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a vontade de viver, como em relação a mim. É um bem manter e acalentar a vida; é um mal destruir
e reprimir a vida”.

Portanto, na ética biocêntrica, temos o princípio do valor intrínseco da vida em que:

a) Toda a vida tem valor intrínseco;


b) Para além dos animais também as plantas possuem um «bem próprio» resultante da satisfação
das suas funções vitais;
c) Cada ser vivo é um centro teleológico8 que tem um bem próprio a ser realizado;
d) Toda a entidade que possui um «bem próprio» merece ser tida em consideração por todos os
agentes morais e a realização dos seus interesses constitui para estes um dever.

Na ética biocêntrica, como sustenta Aldo Leopold, o critério da moralidade é o seguinte: «Uma
coisa é um bem quando tem tendência para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da
comunidade biótica. É um mal quando tem a tendência contrária.». Por isso, há uma espécie de
igualdade entre os seres da comunidade biótica.

7.2.4- A ética ecocêntrica

A ética ecocêntrica constitui um novo paradigma no pensamento ético. Tal paradigma preconiza:

a) A defesa da consideração ética por entidades holísticas e não apenas por organismos
individuais;
b) O alargamento da comunidade ética aos elementos abióticos como a água e a terra e a seres
colectivos como as espécies e os ecossistemas.

O mesmo paradigma defende que:

c) Os organismos biológicos individuais são apenas produtos efémeros das realidades


holísticas a que pertencem, não sendo necessários para a sobrevivência do ecossistema no
seu conjunto.
d) O bem-estar e o desenvolvimento da vida na Terra, humana e não humana, têm valor em
si.

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Teleológico é o que tem em si a sua finalidade, é fim em si mesmo. A palavra vem do grego telos que significa fim.
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e) A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e
são também valores em si.
f) Os seres humanos não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade excepto para
satisfazer necessidades vitais.

Por isso, contrariamente à ética antropocêntrica, podemos sustentar que a ética ecocêntrica é uma
ética:

a) Extensiva: Recusa do antropocentrismo e alargamento da esfera de consideração ética para


além do universo humano, reconhecendo noutras entidades valor intrínseco.
b) Da alteridade: Os problemas éticos colocam-se essencialmente na relação homem-
natureza.
c) Do futuro: O bem e o mal decorrentes da acção são equacionados tendo em conta as
consequências futuras.
d) Ecológica: Reconhece a natureza como um processo dinâmico do qual o homem é parte
integrante, simultaneamente como espectador e actor responsável.
e) Da sustentabilidade: Preconiza um modo de vida que rejeita os ideais de uma sociedade
materialista e promove a realização das potencialidades de cada um e a conquista da
felicidade em harmonia com o planeta.

7.2.5- Ética ecoteocêntrica

A ética ecoteocêntrica é a ética que emerge da teologia ecológica (ou ecoteologia). Ela caminha na
linha da ética ecocêntrica e constitui também um novo paradigma no pensamento ético-cristão. O
que a diferencia da ética ecocêntrica é o facto de esta ética estar impregnada de valores que emanam
das novas reflexões teológicas que se inspiram no livro de Gênesis (Deus entregou o jardim ao
homem para que o cuidasse e o cultivasse, Gn 2,15), passam pela teoriza da cosmogénese
(Chardin), pelas reflexões do panenteísmo (presença de Deus no mundo e o mundo em Deus apesar
de Deus ser muito mais e além do mundo), pelas reflexões do Cristo Cósmico que possibilitam
reconhecer a presença do Espírito Santo que recria a criação (de Mathew Fox) e percorrem todo o
ensinamento social da Igreja até ter a sua expressão máxima na Laudato Si’ do Papa Francisco.

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As linhas características desta ética devem ser procuradas tanto no segundo capítulo da Laudato
Si’ (o Evangelho da criação), como, e sobretudo, no quarto capítulo (uma Ecologia integral). É de
salientar que o quarto capítulo é considerado o centro da Laudato Si’, pois é aí onde o Papa propõe
uma resposta à crise ecológica. Portanto, o desenho destes dois capítulos da Laudato Si’, lido
paralelamente com as informações da ética ecocêntrica, ajuda a perceber os contornos
fundamentais duma ética ecoteocêntrica, que emana da ecoteologia, e permite levantar uma
discussão fundamentada em torno dela, pois trata-se duma reflexão em construção.

7.3- Os problemas ambientais do nosso tempo

O Papa Francisco, no primeiro capítulo, ao se perguntar o que está a acontecer à nossa casa, elenca
os problemas ambientais no seguinte modo: a poluição e as mudanças climáticas, a questão da
água, a perda da biodiversidade, a deterioração da qualidade de vida humana e degradação social,
a desigualdade planetária, a fraqueza das reacções, e a diversidade de opiniões.

Neste capítulo, o Papa enfrenta o tema da poluição: os poluentes atmosféricos que provocam muitas
mortes prematuras, e também a poluição causada pelos fumos da indústria, pelas descargas, pelos
pesticidas, pelos resíduos. Há um consenso científico, indicando que estamos perante um
preocupante aquecimento do sistema climático causado sobretudo pela grande concentração de
gases com efeito de estufa. A humanidade precisa de tomar consciência da necessidade de
mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento.

O Papa enfrenta também o problema do esgotamento dos recursos naturais e da impossibilidade de


sustentar o nível actual de consumo dos países mais desenvolvidos. Fala da pobreza da água
pública, que se verifica especialmente na África. Perante a tendência para se privatizar este recurso
escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado, o Papa recorda que o acesso à
água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal.

O Papa também enfrenta o problema ligado à perda da biodiversidade, e refere que lugares como
Amazónia e bacia fluvial do Congo requerem um cuidado particular pela sua enorme importância
para o ecossistema mundial.

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Olhando para a deterioração da qualidade da vida humana e da degradação social, que são outros
problemas ambientais, o Papa convida-nos a reflectir sobre a desigualdade planetária. Ele recorda
que o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se simultaneamente, atingindo os mais
fracos. Por isso, ele recorda que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma
abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto
o clamor da terra como o clamor dos pobres. Nesta linha, o Papa denuncia também a fraqueza das
reacções muitas vezes causada pelo poder ligado com a finança. Mas o Papa reconhece que há
diversidade de opiniões sobre a situação e sobre as possíveis soluções. Ele cita dois extremos: quem
sustenta que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas,
sem considerações éticas nem mudanças de fundo, e aqueles para quem o ser humano, com
qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo
que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Nem uma
nem outra. E a Igreja, não querendo propor uma palavra definitiva, apenas recomenda que se olhe
a realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum.

7.4- A ecologia e as novas reflexões teológicas

7.4.1- A raiz humana da crise ecológica

Todos os problemas ambientais apontados no ponto anterior têm a sua justificação no capítulo
terceiro da Laudato Si’, pois aqui o Papa mostra-nos que a crise ecológica que sofremos hoje (que
também é denominada de crise civilizatória) tem a sua origem no próprio ser humano. E tudo gira
em torno do paradigma tecnocrático dominante. O Papa fala deste assunto em três pontos: apresenta
a tecnologia, o seu poder e a sua alta criatividade; fala da globalização do paradigma tecnocrático;
e apresenta a crise do antropocentrismo actual e todas as suas consequências.

Refere o Papa que a ciência e tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana, mas
não podemos ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento do
nosso próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, dão ao ser humano um poder
tremendo. Assim, aqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder económico para o
desfrutar passam a ter também um domínio impressionante sobre o conjunto do género humano. E
o pior é que este poder reside numa pequena parte da humanidade.

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A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro. Não se aprendeu a
lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento
ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os
problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma que os problemas da fome e da miséria no
mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Mas sabemos que o
mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.
Portanto, o mercado, a finança e a exclusão social são um sintoma claro duma crise profunda. De
facto, olhando para este contexto, uma cultura ecológica consistiria num olhar diferente, num
pensamento, numa política, num programa educativo, num estilo de vida e numa espiritualidade
que oponham resistência a este avanço do paradigma tecnocrático. O que está a acontecer põe-nos
perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. Ninguém quer o regresso à Idade
da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma.

Quando, por exemplo, na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum
embrião humano, duma pessoa com deficiência, etc., dificilmente se saberá escutar os gritos da
própria natureza. Tudo está interligado. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele
uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto. É também a lógica interna
daqueles que dizem: “deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia”. Se não
há verdades objectivas e princípios estáveis, os programas políticos e as leis não bastam para evitar
os comportamentos que afectam o meio ambiente, porque quando é a cultura que se corrompe, as
leis só poderão ser entendidas como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.

O Papa Francisco fala também da necessidade de defender o trabalho humano, que não deve ser
substituído com o progresso tecnológico. O verdadeiro objectivo na ajuda aos pobres deve ser
sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. O Pontífice recorda ainda que as
autoridades têm o direito e a responsabilidade de adoptar medidas de apoio claro e firme aos
pequenos produtores e à diversificação da produção, e às vezes, para que haja uma liberdade
económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm
maiores recursos e poder financeiro.

A propósito da inovação biológica, são importantes as reflexões do Papa em torno dos organismos
geneticamente modificados, sobre os quais é difícil emitir um juízo geral. O Papa recorda que
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muitas vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E
mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenómeno moderno. Reconhece que a utilização
dos cereais transgénicos nalgumas regiões produziu um crescimento económico que contribuiu
para resolver determinados problemas, mas cita também as dificuldades importantes que não
devem ser minimizadas, como a concentração de terras produtivas nas mãos de poucos e a
tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes. Por isso é preciso
assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a
informação disponível. Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas
defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados
limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana, como
acontece com as experiências com embriões humanos vivos.

7.4.2- A crise ecológica e o Cristianismo

A relação existente entre o Cristianismo e a crise ecológica foi formulada pela primeira fez no séc.
XX, pelo norte-americano Lynn Townsend Branco Jr. (1907-1987). Ele afirma veementemente que
o mundo ocidental cristão é o principal responsável pela actual crise ecológica do planeta, pois,
segundo ele, as matrizes de todos os nossos problemas ambientais e ecológicos estão
fundamentadas na concepção antropológica judaico-cristã.

O homem que, de acordo com a afirmação da narrativa bíblica, foi criado à imagem e semelhança
de Deus (Gn 1,26) é hierarquicamente superior aos demais sereis vivos. Isto possibilita a
formatação de uma mentalidade, onde em última instância o que predomina é a noção dualista entre
o homem e a natureza.

Diz Branco Jr. que o Cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo conheceu. O
Cristianismo, em contraste absoluto com o paganismo antigo e as religiões da Ásia, não só
estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, mas também insistiu que era vontade de Deus
que o homem explorasse a natureza em benefício próprio. Este autor refere que, na Antiguidade,
cada árvore, cada nascente, cada córrego, cada montanha tinha seu próprio espírito protector. Antes
de alguém cortar uma árvore, cavar uma mina em uma montanha, ou represar um córrego era
importante apaziguar o espírito protector encarregado daquela determinada situação, e mantê-lo

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aplacado. Destruindo o animismo pagão, o Cristianismo permitiu a exploração da natureza com
total indiferença aos sentimentos em relação à mesma.

Outro factor importante, também é apontado como coadjuvante para o desencadeamento da actual
crise ambiental e ecológica, foi o fenómeno da Revolução Industrial. Depois deste, a mentalidade
ocidental passou a ser configurada a partir da premissa de que a terra é um recurso inesgotável para
o consumo humano. E Branco Jr. diz que esta mentalidade está ligada ao Cristianismo, sobretudo
à ideia cristã de transcendência do homem sobre a natureza e o seu legítimo domínio sobre ela (Gn.
1, 28: dominai a terra).

Branco Jr. ainda sustenta que a nossa ciência e tecnologia nasceram de atitudes cristãs baseadas na
relação do homem com a natureza, reconhecidas, quase que universalmente, não só pelos cristãos
e neocristãos, mas também por aqueles que afectuosamente se consideram a si mesmos pós-
cristãos. Todo o nosso estilo de vida e modo de relação com a natureza depende do que pensamos
e cremos colectivamente, e que, para mudar a maneira de nos relacionarmos com a natureza
devemos começar por mudar aquilo que pensamos e cremos a respeito dela.

7.4.3- A teologia que nasce do problema ambiental: a ecoteologia

Os argumentos de Branco Jr. tratam de mostrar que a visão de fundo e os axiomas judeo-cristãos
subjacentes no mundo ocidental são os culpados da actual crise ecológica mundial. Mas as críticas
estabelecidas por ele fizeram com que diversos pensadores e teólogos se posicionassem de maneira
contrária, estabelecendo uma fecunda reflexão, uma nova forma de fazer teologia. A essa forma,
dá-se o nome de ecoteologia.

Os principais representantes dessa nova forma de se fazer teologia são: Pierre Teilhard de Chardin
(1881-1955), Alfred North Whitehead (1861-1947), Karl Rahner (1905-1984), John B. Cobb Jr.
(1925 -), Jürgen Moltmann (1926 -), Rosemary Radford Ruether (1936 -), Catherine Keller (1953
-) e Sallie McFague (1933 -). No Brasil temos os trabalhos realizados por Leonardo Boff (1938 -)
e Haroldo Reimer (1953 -) entre outros. Actualmente, ganham seu mérito as posições
determinantes do Papa Francisco condensados na Laudato Si’.

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7.4.4- Os fundamentos da ecoteologia

Reimer refere que, para pensar a questão do meio ambiente a partir de uma perspectiva teológica,
é necessário supormos que existe uma relação profunda entre o ser humano religioso e o mundo
como um todo. No conjunto dessas reflexões, Reimer refere que um pensamento cristão voltado
para os problemas ecológicos constitui decididamente uma mudança de paradigma na própria
teologia, uma mudança em que o dualismo entre o homem redimido (a Igreja) e mundo da natureza
deixa de existir.

A relação entre o Cristianismo e o meio ambiente fora apontada por Chardin de maneira decisiva
dentro da teoria da cosmogênese. Portanto, para Chardin, o universo caminha para um ponto final
de amadurecimento e perfeita união com a realidade divina: o ponto Ômega (Cristo). O surgimento
do homem, a sua socialização, e o desenvolvimento do mundo da cultura são apenas etapas
embrionárias de um plano maior que tem um Telos (o fim, o ponto Ômega), revelando um
equilíbrio que não pode ser interrompido nem alterado, sob pena de destruir a própria vida.

O Cristianismo ensina e defende que o homem é responsável diante de Deus pelo uso racional e
correcto do mundo e da criação, visto que ele é o mordomo de Deus dos bens criados por Ele, isto
é, ele é o administrador dos bens criados por Deus e entregues a ele para cuidar. O clímax desse
uso racional e correcto do mundo e da criação possui dimensões escatológicas na Teologia da
Esperança de Moltmann, que desloca o eixo da escatologia cristã: da projecção ao além-morte para
a promessa e o futuro. Portanto, faz uma ligação entre escatologia e história, isto é, escatologia
histórica.

O diálogo entre a religiosidade e o meio ambiente é mais claro ainda em Boff. Para Boff, é
necessário estabelecer uma consciência ecológica, de carácter ético-teológico que seja
perfeitamente capaz de entender que, teologicamente falando, o ser homem está no centro da
criação, mas não está sozinho. A humanidade só será humanidade de verdade, se estiver
profundamente comprometida em unidade com o planeta terra.

Diz Boff que tanto o ser humano como a terra formam uma única entidade, com uma mesma origem
e um mesmo destino. Só o cuidado garantirá a sustentabilidade do sistema-Terra com todos os seres
da comunidade de vida entre os quais se encontra o ser humano. Sua função é a do jardineiro, como

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se relata no segundo capítulo do Génesis. O trabalho do jardineiro é cuidar do jardim do Éden,
fazê-lo fecundo e belo. A Carta da Terra despertou-nos, oportunamente, para essa nossa missão (de
jardineiros), essencial e urgente. Precisamos de vivê-la para que tenhamos futuro e possamos co-
evoluir como temos evoluído já há 4,5 bilhões de anos, pois esta é a idade de nossa Terra.

Murand diz que o principal núcleo e a espinha dorsal da ecoteologia é a compreensão unificada da
complexa experiência salvífica que envolve: a criação, a história, a encarnação, a redenção e a
consumação, sobretudo num processo de realização, incluindo a ecoesfera, a comunidade biótica,
etc. Essa compreensão unificada da experiência salvífica e a leitura dos textos canónicos dentro do
contexto da teologia ecológica possibilita que a comunidade eclesial se proponha a consciencializar
e a oferecer respostas plausíveis aos principais problemas ambientais do nosso tempo, tais como:
o aquecimento global, o desmatamento, a poluição residual e sonora, a caça predatória, a
estratificação sem controle dos recursos híbridos, a ocupação desmedida do solo, a emissão de
poluentes da camada de ozono, o efeito estufa, etc., que já foram reflectidos nos pontos anteriores.

Uma palavra mestra em torno dos fundamentos da ecoteologia encontra-se no Papa Francisco,
sobretudo no segundo e no quarto capítulos da Laudato Si’. Ao iniciar o segundo capítulo da
Encíclica, o Papa Francisco refere que se trata de um capítulo orientado sobretudo para aqueles que
têm fé, e acredita que a ciência e a religião podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para esta
discussão. Por isso, a seguir, fala daquela luz que só a fé pode oferecer: a convicção de que os
compromissos ecológicos dos cristãos não brotam de qualquer ciência ou ética, mas da própria fé,
pois é Deus que nos chama ao cuidado da nossa casa. Ao sublinhar aquela sabedoria patente nas
narrações bíblicas, ao descrever o mistério por detrás do universo, ao mostrar que cada criatura
transmite uma mensagem na harmonia de toda a criação, ao demonstrar que há uma comunhão
universal, e ao insistir no destino comum dos bens, o Papa quer dar-nos a lição de que a Boa Nova
do Evangelho leva-nos a olhar para além da ciência, para aquele nível em que o universo, a vida e
a história constituem uma unidade muito querida aos olhos de Jesus.

O quarto capítulo pode ser considerado como o centro da Encíclica. Percebe-se que a análise dos
problemas ambientais não pode ser separada da análise dos contextos humanos, familiares,
laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma. Por isso, o Papa refere-se à ecologia
ambiental, económica e social, três componentes que devem caminhar juntas. Ele refere-se também

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à ecologia cultural, mostrando a importância de se ter em consideração as culturas, os valores, a
história, a arte, os monumentos, etc. como elementos que precisam de ser preservados na sua forma
viva, dinâmica e participativa. O Papa refere-se também à ecologia da vida quotidiana, sublinhando
que cada lugar onde a vida humana pulsa (casa, caminho, lugares de lazer, etc.) deve respirar um
ar ecológico, os ambientes mais insignificantes e mais diários precisam de ser tomados em conta e
melhorados, organizados, limpos, e oferecer ao ser humano uma sensação de bem-estar e de
felicidade. Nesta linha, o Papa também refere-se à ecologia humana, pois o ser humano possui uma
natureza que não deve ser transgredida. Assim, é preciso ter apreço pelo próprio corpo na sua
feminilidade ou masculinidade, e por isso não é salutar um comportamento que pretenda cancelar
a diferença sexual, só porque já não sabe confrontar-se com ela. Refere-se também ao princípio do
bem comum, que não se identifica com o bem público (oposto do bem privado), mas que,
recorrendo à GS, n.26, o Papa define-o como sendo “o conjunto das condições da vida social que
permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria
perfeição”. Por fim, o Papa refere-se também à justiça intergeracional, em que introduz o conceito
do dom: a terra tida como dom gratuito, que recebemos e que devemos comunicá-lo entre nós
(justiça intrageracional: destaca-se de forma especial a família como célula basilar da sociedade) e
aos que vem (justiça intergeracional: um verdadeiro dever e dívida para com as gerações futuras).

7.5- Algumas premissas para uma educação ambiental e espiritualidade ecológica

No penúltimo capítulo da Laudato Si’ (algumas linhas de orientação e acção), o Papa apresenta o
diálogo como o dado que deve ser levado a cabo nas diferentes vertentes: diálogo sobre o meio
ambiente na política internacional, diálogo para novas políticas nacionais e locais, diálogo e
transparência nos processos decisórios, diálogo entre política e economia para a plenitude humana,
e diálogo entre as religiões e as ciências. Mas tal diálogo pressupõe que as partes envolvidas se
considerem primeiro como sujeitos do processo. Não pode haver diálogo se uma das partes é tida
como recurso, ou como objecto. Falar do diálogo é admitir que não existe nenhuma opção política,
religiosa, ética, etc. que seja absoluta, não existe um povo cuja cultura deva ser imposta a todos os
outros povos. Todas culturas, religiões, políticas, etc. precisam de entrar em diálogo e fazer um
exercício de mútua aceitação e mútuo cuidado. Por isso, temos que falar duma nova espiritualidade,
dum novo estilo de vida. É disso que o Papa fala no último capítulo da Encíclica (educação e
espiritualidade ecológicas), apontando os seguintes aspectos: apontar para outro estilo de vida,
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educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente, a conversão ecológica, alegria e paz, amor
civil e político, os sinais sacramentais e o descanso celebrativo, a Trindade e a relação entre as
criaturas, Maria: a rainha de toda a criação, e para além do sol.

O Papa convida-nos a um outro estilo de vida, para evitar que a pessoa acabe por ser esmagada
pelo consumismo obsessivo que é o reflexo subjectivo do paradigma tecnoeconómico, que faz crer
a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, ao passo que, na
realidade, a liberdade está apenas nas mãos da minoria que detém o poder económico e financeiro.
A obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o
manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca. Mas o Papa convida também a olhar
para o positivo que já existe e para possibilidade de os seres humanos voltarem a escolher o bem,
recordando que uma mudança nos estilos de vida pode exercer uma pressão salutar sobre quantos
detêm o poder político, económico e social, como quando os movimentos de consumidores
conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam eficazes na mudança
do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de
produção.

O Papa alerta que a consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se
em novos hábitos, o que implica um desafio educativo. E é preciso começar desde pequeno a fazer
escolhas quotidianas. O Papa recorda o papel educativo da família no cuidado pela vida e o uso
correcto das coisas. E se é verdade que compete à política e às várias associações um esforço de
formação das consciências da população, o mesmo se diz, e com mais insistência, da Igreja.

O Papa pede uma verdadeira conversão ecológica que reconheça o mundo como dom recebido do
amor do Pai. A espiritualidade cristã encoraja um estilo de vida profético e contemplativo, capaz
de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. E propõe um crescimento na
sobriedade e uma capacidade de se alegrar com o pouco. A ecologia integral requer uma atitude do
coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante duma
pessoa sem estar a pensar no que virá depois. O Papa Francisco sugere, como exemplo, agradecer
a Deus antes e depois das refeições, convidando também a contemplar o mistério numa folha, numa
vereda, no orvalho, no rosto do pobre. Por isso, ao concluir a Encíclica, o Papa propõe duas orações:
oração pela nossa terra e oração cristã com a criação.
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Este sinal (*) indica que a edição destas três obras tem o mesmo ano de publicação, e as letras a, b
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