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“De quem é essa buceta?”: um Comentario feminista! bell hooks Tradugdo de Lennita Oliveira Ruggi Antes mesmo de ir assistir She’s Gotta Have I®, de Spike Lee, ouvi falar muito sobre ele. O Pessoal me dizia: “é negro, é engragado, vocé nado pode perder”. Com todas essas falas, vindas especialmente de pessoas ne- gras que em geral nao vao ao cinema, eu fiquei relutante, cheia de suspeitas. Se todo mundo esté gostando do filme, mesmo Pessoas brancas, alguma coisa tem que estar errada! Iniciatmente, foram esses Pensamentos que me afastaram das salas de cinema, mas ndo fiquei longe por muito tempo. Quan- do recebi cartas e telefonemas de académicas Negras e amigas me contando sobre o filme e querendo debater se ele tepresentava ou naéo uma mulher ne- gra emancipada, eu acabei indo ver She's Gotta Have It. E nao fui sozinha. Fui com trés amigas negras, Beverly, Yvette e Maria, para que pudéssemos falar sobre o filme Juntas. Parte do que foi dito aquela noite no calor de nossa discussao informa meus comentarios. Espectadora apaixonada Por filmes, especiaimente pelo trabalho de diretores/as independentes, eu apreciei diversos aspectos da técnica, do estilo e da produgdo geral de She's Gotta Have it, Foi particularmente animador ver na tela imagens de pessoas Negras que nao fossem caricaturas grotescas, mas imagens familiares, imagens que capturavam, de maneira imaginativa, a esséncia, a dignidade, o espirito daquela qualidade elusiva conhecida como “soul” E um filme pleno de soul, de sentimentos, Pensando sobre ele a partir de uma perspectiva feminista, conside- tando suas implicagées Politicas, eu 0 considera. muito mais problemitico. No artigo “Art vs. Ideology: The Debate Over Positive Images” (Black Film Review, v. 2, n. 3), Salim Muwakkil questiona se uma “comunidade afro- americana madura” pode permitir que “os julgamentos estéticos se baseiem &m Ccritérios ideoldgicos ou politicos”. Comenta esse autor: * Texto originalmente publicado em inglés com o titulo "Whose pussy is this: a feminist comment”, na obra: HOOKS, bel. Talking back: thinking feminist, thinking black, Boston, MA: South End Press, 1989. p. 134.141, ? Nota da tradutora: No Brasil, o filme foi langado com © titulo “Ela quer tuo”, Miriam Adelman; Amelia Siegel Corréa; Oliveira Ruugi: Ana Carolina Rubini Trovéo (Orgs.) Os nacionalistas culturais negros dos anos 60 e 70 demonstraram uma ver © efelto venenoso que tais requisitos ideolégicos tém Sobre a expresso criativig As diversas proscrigBes e prescribes por eles impostas aboriaram um momenie: transcende a politica ou a ideologia. Significativo nesse sentido é que a publicidade, © marketing, as criticas ° cinematogréficas e os didlogos travados sobre She’s Gotta Have it foram feitos de maneira a levantar questées Politicas ¢ ideolégicas tanto sobre o filme em si quanto sobre as respostas do piiblico a ele. Seria o filme “uma histéria femi= nina”? Pintaria ele uma imagem tadicalmente nova da sexualidade das mu Iheres negras? Pode urn homem realmente contar uma hist6ria feminina? Uma espectadora me propés a questo da seguinte maneira: “Nola Darling é uma mulher emancipada ou apenas uma PUTA’, (Essa foi a maneira como a sen: tenga foi escrita por uma professora negra que leciona sobre cinema, em uma carta para mim na qual afirmava “esperar a Tesposta feminista”.) Nao houve quaiquer resposta feminista disseminada a respeito do filme precisamente por causa da opressora celebragdo publica daquilo que € novo, diferente e exc. a pensar, refletir sobre 0 trabalho, engajando plenamente nosso interesse, Recentemente, a versio filmica de The Color Purple, de Alice Walker, suscitou muito mais discussdio sobre quest6es feministas entre pessoas ne: gras (sexismo, liberdade de expressdo sexual, violéncia masculina contra: as mulheres etc.) do que qualquer trabatho teérico e/ou polémico feito por académicas feministas. She's Gotta Have It gerou respostas similares. Com frequéncia, tais discussées expGem a grave ignorncia existente sobre 0 mo- Mulheres, Homes, Cihotnat 7 Saami que moldam e influenciam a maneira como muitas pessoas negras percebem © feminismo, Que todas as feministas detesterm homens, sejam sexvalmen- te depravadas, castradoras, sedentas por poder’ e etc. — sio os esteredtipas dominantes. A tendéncia a encarar as mutheres emancipadas como sexual- mente promiscuas informou @ maneira como muitas pessoas assistiram a re- presentagao da sexualidade feminina negra em She's Gotta Have It, De certa forma, essa percepcao esta baseada em uma nogao estreita de emancipacao, considerada aceitdvel em alguns circulos feministas em determinada época. Durante os primeiros estagios do movimento de mulheres contem- Pordneo, a emancipagao feminina foi com frequéncia igualada @ liberacao sexual, tanto por feministas ativistas quanto por nao feministas. Nequele pe- rfodo, a conceitualizagao da liberagdo sexual das mulheres era emoidurada por um brutal viés heterossexual que a encarava, antes de mais nada, como. sendo a capacidade das mulheres exercerem o direito a serem sexualmente desejantes, iniciarem relacionamentos sexuais e participarem de encontros casuais com diversos parceiras masculinos. As mulheres ousaram declarar que a sexualidade feminina nao era passiva, que eram sujeitos desejantes que ansiavam e apreciavam o sexo tanto quanto, sendo mais do que os homens, Essas declaragdes poderiam facilmente fornecer o enquadramento ideolégico para a construgéo de uma personagem como Nola Darling, a Pprotagonista em She’s Gotta Have It. Nola expressa repetidamente seu im- peto e disposicao para fazer sexo com os homens, assim como seu direito a ter numerosos parceiros. Superficialmente, Nola Darling é a encarnagdo perfeita da mulher como sujeito desejante - uma representagao que de fato desafia as nogdes sexistas da passividade sexual feminina. (E importante recordar que, desde a esctavidao, as mulheres negras foram representadas no pensamento branco racista como sexualmente confiantes, apesar dessa perspectiva contrastar de modo gritante com a énfase dada a castidade, & monogamia e ao direito masculino de iniciar o contato sexual na cultura negra, uma visdo partilhada em especial pela classe média). Irénica e infelizmente, o desejo sexual de Nola Darling n&o é representado como um gesto auténomo, como uma bus- independente pela expresso, satisfago e completude sexual. Ao invés disso, sua sexualidade declarada é com frequéncia exibida como se seu cor- po, seu ser sexual, fosse uma recompensa ou um presente por ela concedido ao homem merecedor. Quando 0 -halterofilista Greer Childs conta a Nola que ele apareceré na capa de uma revista masculina popular, ela responde removendo as préprias roupas e oferecendo seu corpo como um simbolo de sua estima. Esse e outros incidentes sugerem que Nola, apesar de ser um sujeito.desejante, atua.com base no pressuposte de que a afirmagao sexual feminina heterossexual tem legitimidade, acima de tudo, como um gesto de tc.

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