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A pós-verdade é uma notícia falsa

Silvio Genesini
Arte sobre foto de Marcos Santos
resumo abstract

Não há nenhuma novidade na tentativa There is nothing new about trying to falsify
de falsificação política através da distorção politics by distorting facts and information.
de fatos e informações. O novo é que What is new is the fact we are in an era
estamos em uma nova era turbinada powered by the Internet and social media
pela internet e pelas redes sociais, em websites, in which growth is viral and its
que o crescimento é viral e o efeito, effect is exponentially explosive. What is
exponencialmente explosivo. O novo é new is Facebook, Google and Twitter, not
o Facebook, o Google e o Twitter, não a the attempt to tell lies or falsify information,
tentativa de contar mentiras ou falsificar as that has always existed in the history of
informações, o que sempre existiu na humankind.
história do mundo.
Keywords: media; social media websites;
Palavras-chave: mídia; redes sociais; pós- post-truth; politics.
verdade; política.
Marcos Santos/USP imagens
P
ós-verdade e fake news norte-americana. Enunciou também qual era
são dois termos que o seu significado: “um adjetivo relacionado
ganharam notoriedade ou evidenciado por circunstâncias em que
no final de 2016. Eles fatos objetivos têm menos poder de influên-
foram criados, entre cia na formação da opinião pública do que
outras razões, para dar apelos por emoções ou crenças pessoais”.
sentido a dois fenôme- A partir daí e em todo o ano de 2017
nos que surpreenderam as notícias falsas ficaram em evidência.
a opinião pública no Sintetizando e simplificando a percepção
decorrer do ano. O pri- geral: a epidemia de notícias falsas fez
meiro deles foi a deci- com que os eleitores e a opinião pública
são do Reino Unido de tomassem decisões equivocadas, baseadas
sair da União Europeia. na emoção e em crenças pessoais, ao invés
A resolução ganhou um apelido que pegou de em fatos objetivos.
e pelo qual ficou mundialmente conhecida: Há um claro conflito de interesses na afir-
Brexit (de Britain e Exit). O referendo que mação acima. A mídia e boa parte da elite
aprovou a saída, para surpresa de boa parte do mundo ocidental não apoiavam e foram
do mundo ocidental civilizado, foi realizado surpreendidas, tanto pelo Brexit, como pela
em 23 de junho de 2016. vitória de Trump. Consideram que ambas as
O segundo foi a eleição de Donald Trump
para presidente dos Estados Unidos, em 8 de
novembro do mesmo ano. Logo em seguida, Partes deste artigo foram publicadas no portal e no apli-
cativo da revista Exame.
o Dicionário Oxford definiu “pós-verdade”
como a palavra do ano. Na justificativa para
a escolha, explicou que o uso do vocábulo
havia crescido enormemente durante o ano, SILVIO GENESINI é conselleiro e mentor
de empresas inovadoras. Foi presidente
associado, principalmente, aos dois aconteci- do Grupo Estado, da Oracle do Brasil
mentos descritos acima: o Brexit e a eleição e sócio-diretor da Accenture.

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decisões foram errôneas. Eu também acho, Unidos como um todo. Nós estamos indo
mas concluir que um processo artificial e bem, então todo mundo está bem, o que
intencional – as fake news – foi o causador não é verdade”. Acrescentou: “Votamos em
de ambos os “desastres” é um salto ilógico Trump porque consideramos que a liderança
e ideológico no escuro, por várias razões. deste país fracassou”.
A primeira é por minimizar que exis- A mídia contrária a Trump estava lá e não
tiam razões reais e concretas para que parte quis acreditar. Também não quis apurar se a
expressiva das populações britânica e ame- afirmação tinha sustentação no cotidiano da
ricana votasse como votou. A segunda é vida real dos eleitores dos rincões do país.
por desconhecer que as escolhas no mundo Algo similar aconteceu com o Brexit. Se
pós-moderno – para usar mais um prefixo verificarmos os detalhes de quem votou para
pós na moda – dão-se muito mais baseadas que o Reino Unido abandonasse a Europa
em razões sensíveis e na emoção do que em vamos encontrar um contingente de homens
raciocínios lógicos e informações exatas. É brancos, com renda mais baixa, do interior
uma constatação que embute uma pretensa e com menor educação. Expressavam a sen-
incoerência ao sustentar que, no mundo do sação de que a imigração e a abertura dos
Big Data, os caminhos seriam escolhidos mercados estavam piorando as suas vidas e
mais por intuição do que por informação. que antes o mundo deles era melhor.
Não há como provar este teorema, mas esta Não há nenhum estudo objetivo, que eu
é a minha premissa e se olharmos, com os conheça, que prove que a globalização pio-
olhos bem abertos, veremos que é o que rou o mundo. Há muitos que demonstram
realmente acontece, na maioria das vezes. que hoje o planeta é melhor do que já foi
Tomemos Obama. Ele venceu a eleição em qualquer outro tempo. Tal conclusão
americana com um simples “Yes, we can” pode ser uma verdade objetiva para muitos,
como slogan. Trump foi pelo mesmo cami- mas há uma distância muito grande entre
nho – em sentido oposto, claro – e sustentou esse entendimento e a capacidade dos líderes
um “Make America great again”, comple- atuais de convencerem a população que as
mentado por acusações à globalização e ao vantagens do crescimento foram distribu-
desaparecimento de empregos que afetaram ídas de maneira equitativa e equilibrada
negativamente muitos americanos que vivem para a maioria.
no interior do país. São apelos claramente Em suma, quem sustenta que as notí-
dirigidos ao sentimento e à sensibilidade cias falsas são responsáveis por estarmos
de quem já achava que não estava sendo vivendo em um mundo pós-verdadeiro acha
beneficiado pelo progresso do mundo. que antes havia um mundo em que a ver-
Peter Thiel, que foi o único empreendedor dade existia e era objetiva. O real é que
do Vale do Silício que apoiou Trump, disse tal mundo nunca existiu. A impossível e
no meio da campanha, em uma apresentação improvável expectativa de que algum dia
no National Press Club, em Washington: “A as notícias falsas desaparecerão não trará
história que as pessoas contam no Vale é de volta o nirvana de uma verdade perdida
que o sucesso dos profissionais e empresas que nunca houve. A verdade, quase sempre,
do Vale equivale ao sucesso dos Estados é subjetiva e não conhecível.

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Como fica então a questão da verdade não lhe agradava. Ele próprio um prolífico
factual? Desde o famoso ensaio “Verdade usuário do Twitter, onde apresenta a sua
e Política”, publicado pela filósofa política visão dos “fatos alternativos”. Para completar
Hannah Arendt, na revista New Yorker, em a apropriação do conceito, no começo de
fevereiro de 1967, estabeleceu-se o reconhe- 2018 divulgou os vencedores do Fake News
cimento de que há uma parcela significativa Award, que incluiu uma lista de veículos e
da verdade que é baseada em fatos e pode ser pessoas que o tinham criticado durante todo
comprovada e certificada experimentalmente. o ano. Estavam lá todos os suspeitos usuais,
Arendt acusou os políticos – já naquela como New York Times, Washington Post e
época – de estarem transformando fatos em CNN. O feitiço virava contra os feiticeiros.
opiniões e que essa distinção era essencial O pico da indignação com a onda de
para a democracia. Defendeu, também, que notícias falsas aconteceu em novembro. O
a mídia tivesse um papel crucial e indepen- ponto alto foi a audiência no Congresso ame-
dente em apurar, verificar e constatar a ver- ricano dos advogados do Facebook, Google
dade factual para não deixar que os políticos e Twitter, sobre a interferência dos russos
fizessem uso dela como bem entendessem. na eleição presidencial.
Pois é! Esta é exatamente a batalha que O questionamento concentrou-se nos
está sendo perdida com as fake news. Os anúncios pagos pelos russos, via uma tal
políticos – em especial uma gama que cha- de Internet Research Agency (IRA), com
mamos de populistas – estão distorcendo, o objetivo de desestabilizar a campanha de
ao seu bel-prazer, as tais verdades factuais Hillary Clinton. Os valores totais divulga-
para defenderem causas que são, em geral, dos pelo Facebook não eram significativos.
demagógicas e retrógradas. O total de desembolsos ficou por volta de
Não há nenhuma novidade na tentativa de US$ 100 mil. Um troco perto dos cerca
falsificação política através da distorção de de US$ 80 milhões que as campanhas de
fatos e informações. O novo é que estamos Hillary e Trump gastaram com publicidade
em uma nova era, turbinada pela internet e e uma ninharia perto do que se gasta por
pelas redes sociais, em que o crescimento é dia no Facebook.
viral e o efeito, exponencialmente explosivo. O que realmente impressionou foi a
O novo é o Facebook, o Google e o Twitter, divulgação de que, somando os posts gra-
não a tentativa de contar mentiras ou falsi- tuitos, foram impactados pela campanha
ficar informações, o que sempre existiu na 146 milhões de pessoas. Quase metade da
história do mundo. população americana. O que já era um forte
Podemos então concluir que os culpados movimento para disciplinar as empresas de
foram finalmente encontrados. O trio fake tecnologia transformou-se em uma necessi-
news/redes sociais/sistemas de buscas foi per- dade premente de enquadrá-las.
seguido, durante todo o ano de 2017, como Para demonstrar que o recado foi rece-
o vilão da deterioração do tecido político bido, Mark Zuckerberg disse que iria con-
democrático do mundo ocidental. O esperto tratar mais 10 mil profissionais (totalizando
Trump apossou-se da tese e passou a tachar 20 mil) dedicados unicamente a retirar as
de fake news qualquer notícia ou opinião que notícias falsas e as mensagens de ódio da

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plataforma. Mesmo considerando os números

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superlativos do serviço – mais de 2 bilhões
de usuários ativos mensais –, a necessidade
de um exército de profissionais para policiar
o conteúdo explica muito sobre a comple-
xidade do problema.
No centro da discussão está a constatação
de que identificar fake news ou mensagens
de ódio não é fácil. Se fosse fácil e pro-
gramável, um robô resolveria o problema,
ou pelo menos boa parte dele. Nem mesmo
com todo o avanço da inteligência artificial
Mark parece confiante que o serviço possa
ser feito sem ajuda humana.
Olhando a natureza de alguns dos posts
pagos pelos russos seríamos compelidos a
acreditar no contrário. Um deles, com o
título de “Exército de Jesus”, mostra Hillary
Clinton, fantasiada de diabo, em uma queda
de braço com Jesus e a sugestão: “Curta
se você quer que Jesus vença”. Bastaria
cruzar com quem pagou pela mensagem
para concluir a má intenção.
Acontece, porém, que muitas publica-
ções – talvez a maioria – ficam dentro do
limite do que seria uma opinião radical,
uma ironia agressiva ou mesmo uma difa-
mação grosseira. Expressões de opinião pro-
tegidas pela Constituição americana e de
muitos países do mundo. No Brasil, quase
ao mesmo tempo, a presidente do STF, Cár-
men Lúcia, proibiu o Enem de dar nota
zero às redações que desrespeitassem os
direitos humanos.
Para reforçar a dificuldade, a sofisticação
da campanha impressionou muita gente. “Não
são mentiras transparentes. Têm a intenção
de despertar nossos instintos. Não é uma
questão de mera ficção que podemos des-
cartar checando fatos. São dirigidas a criar
um ambiente de nós contra eles”, disse Jay

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Van Bavel, psicólogo da Universidade de mente e socialmente correta do jornalismo”?
Nova York entrevistado pela revista Wired. Se pedíssemos aos vários grupos antagônicos
Quando alguns tentaram argumentar que que povoam a internet para construí-la, o
era uma questão relacionada à liberdade de resultado seria um show de horrores.
opinar, o senador republicano James Lank- No Brasil, o TSE anunciou a criação de
ford sentenciou: “Esta é uma batalha para uma força-tarefa, que contará com a ajuda
proteger a liberdade de expressão. Se dois do Ministério da Defesa e da Agência Bra-
americanos têm um desentendimento, tudo sileira de Inteligência (Abin), para combater
bem. Se um estrangeiro entra no meio, então a propagação de notícias falsas na eleição de
temos um problema”. Só podemos concluir 2018. Arrepia-me a militarização do tema.
que se a odiosa campanha fosse feita por Paula Cesarino Costa, ombudsman da
cidadãos americanos estaria devidamente Folha, na sua coluna de 5 de novembro de
protegida pela lei. 2017, citou uma pesquisa produzida pelo
O que os legisladores, os formadores de Reuters Institute for the Study of Journalism
opinião e a própria mídia estão pedindo com a Universidade de Oxford. Os números
é que as plataformas virem censores da mostram que os entrevistados associam fake
internet, decidindo o que pode e o que não news com textos satíricos, publicidade dis-
pode ser publicado. Mesmo que a intenção farçada e reportagens superficiais ou sensa-
seja das melhores, entregar a responsabili- cionalistas. Apenas 40% acham que a mídia
dade para empresas privadas, praticamente tradicional faz um bom trabalho na separação
monopolistas, é um risco enorme para a entre fato e ficção.
liberdade de expressão. Se não acreditamos que jornalistas tarim-
Zuckerberg, que sempre afirmou que bados podem fazer bem essa tarefa, o que
o Facebook não é mídia, pois não produz dizer de profissionais inexperientes contra-
conteúdo, está aceitando a responsabilidade tados aos milhares? Para completar nossa
pelo que é publicado em seus domínios. É perplexidade com a questão, Paula cita uma
o mal menor para evitar que os legisladores frase de Margaret Sullivan, ex-ombudsman
imponham restrições muito maiores ou até do The New York Times: “Temos de cha-
resolvam impor limites sérios à sua atuação. mar uma mentira de mentira. Chamar um
O extremo radical seria fazer o que a engano de engano. Se há uma conspiração,
China faz. Os censores da internet chinesa que assim seja definida. Designar tudo isso
publicaram em novembro novos regulamentos como notícia falsa é por demais impreciso”.
com o objetivo de coibir a disseminação de O estudo do instituto entrevistou 18 mil
“informação ilegal” na rede. Funcionários e pessoas em nove países (Estados Unidos,
jornalistas de sites de notícia serão obriga- Alemanha, Reino Unido, Irlanda, Espanha,
dos a fazer um treinamento sobre “a visão Dinamarca, Austrália, França e Grécia). O
marxista do jornalismo”. resultado é preocupante para a reputação da
Pode parecer uma caricatura e um exagero mídia, como autoridade na distinção entre
comparar, mas o risco de uma censura des- verdadeiro e falso. Dois terços (67%) disse-
controlada é real. O que seria uma cartilha ram que a mídia tem algum tipo de “bias”.
que explicasse a “visão capitalista politica- Nos Estados Unidos 34% consideram que

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os veículos são politicamente partidários. sustenta que a própria verificação encontra


A acusação é ainda mais grave se consi- dificuldades em ser efetivamente indepen-
derarmos que a polarização que vemos na dente e não ter lado. A questão crucial,
internet também se estendeu aos órgãos de no entanto, é mais intrincada. A parte
imprensa. Como ser árbitro de diferenças da “verdade” que pode ser efetivamente
se o veículo tem preferências? verificada, preto no branco, é pequena. A
Vejam algumas respostas obtidas nos verdade efetivamente factual é, feliz ou
relatórios de entrevistados alinhados poli- infelizmente, limitada e incapaz de refletir
ticamente com a direita: “A mídia liberal aspectos relevantes da realidade.
está abarrotada de besteiras e mentiras”; “A Vejamos um exemplo. Uma das “checa-
Fox News [conhecida por seu alinhamento doras” brasileiras – Aos Fatos – publicou no
com a direita] é justa. A CNN conta-nos final do ano um relatório chamado “Tudo o
mentiras esquerdistas”. que você precisa saber para sobreviver às dis-
Também as plataformas de mídias sociais cussões familiares no fim do ano”. Era uma
não apresentaram um bom resultado no seleção de suas mais polêmicas checagens de
estudo. Embora a maioria reconheça que 2017. Estão lá: “Quem matou mais, Hitler ou
usa as redes como fonte de notícias, ape- Stalin?”; “A sentença de Moro contra Lula
nas 24% afirmaram que os serviços fazem tem provas?” (impossível resolver esta sem
um bom trabalho na separação entre fato e ser acusado de parcialidade); “Legalizar a
ficção. A crença em que a audiência tende maconha gerou aumento de criminalidade
a acreditar na maior parte do que é publi- em outros países?”; “A terceirização preca-
cado nas redes sociais também não se sus- riza o trabalho?”; e assim vai. A maior parte
tenta. É possível, pelos dados, concluir que das conclusões sobre as questões usa termos
as preferências e posições pessoais são mais como: impreciso, insustentável e exagerado.
influentes na propagação das crenças do que Só para algumas afirmações o serviço crava
o poder multiplicador das plataformas em si. que podem ser consideradas efetivamente
A histeria aumentou com o decorrer do falsas ou verdadeiras.
ano e, com isso, ganhou força como solução Outro exemplo. O jornal O Globo, em sua
para o problema o fact-checking – a verifi- edição de 30/12/17, apresentou um resumo
cação de notícias e fatos feita por terceiros das verificações que sua equipe de checagem
independentes. Várias organizações sérias e fez durante todo o ano. Escolheu uma para
competentes já se dedicam à tarefa no Brasil cada mês do ano. Escolheu fatos e afirma-
e no mundo. A receita é “menos pior”, na ções como: “União investiu R$ 450 milhões
medida em que não atribui, nem deixa, sob para monitorar fronteiras”; “Roubo de car-
a responsabilidade única das plataformas, gas caiu 70% nas rodovias do Rio”; “Temer
decidir o que está certo ou errado. O Face- celebrou queda de 20% no desmatamento”;
book concordou com a solução e aumentou “Lava Jato recuperou R$ 4 bi desde 2014 e
o uso de verificadores externos. Crivella zerou filas para cirurgias nos hos-
Mas também esta solução encontra seus pitais do Rio”.
inimigos. Muita gente, principalmente aque- Como se vê, são asserções passíveis de
les engajados com algum espectro político, serem consideradas verdades factuais. Veja-

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mos um resumo das respostas da equipe para balho feito pelo economista Marc Morgan, da
as 12 declarações: quatro foram consideradas equipe de Piketty, juntando dados da PNAD
“falsas”; três, “não é bem assim”; duas, “não com o imposto de renda.
se sustenta”; duas, “em andamento” e uma, A conclusão foi de que a desigualdade
“verdadeiro, mas...”. ficou praticamente inalterada no período.
Fica clara a dificuldade em carimbar mui- Os 10% mais pobres passaram de 11,3%,
tas afirmações taxativamente de verdadeiras e em 2004, para 12,2, em 2015. E os 10%
falsas. Muitos enunciados têm contexto, têm mais ricos, de 54,9 para 55,3%, em 2015.
timing, têm subtextos, usam números e esta- Uma ducha de água fria para aqueles que
tísticas como argumento para sustentar um esperavam, ou torciam, para que o Brasil
ponto de vista. Em alguns casos é possível estivesse se tornando um país mais justo.
ser exato. Em muitos outros, o trabalho de Para os defensores da “verdade absoluta”,
checagem é muito mais de análise e agre- qual dos dois resultados é mais verdadeiro?
gação de informações que um veredito final. Não creio que seja possível concluir cabal-
Quando entramos em discussões essen- mente. Há elogios e críticas para cada um
ciais para o rumo de um país, a dificuldade dos métodos. É razoável pensar que a PNAD
é ainda maior. Vejamos, por exemplo, a ques- não pega uma parte da renda dos ricos, que
tão da redução da desigualdade na distribui- não se sentem à vontade de informá-la em
ção da riqueza no Brasil dos últimos anos. entrevistas. Também faz sentido dizer que
É, certamente, uma das conclusões mais muita gente, principalmente na classe média,
importantes para avaliar a eficiência dos não declara imposto de renda como devia.
programas de transferência de renda, como Cada um dos estudos é uma representa-
o Bolsa Família, que começaram no governo ção imperfeita da realidade. Qual é a menos
Fernando Henrique e foram a principal ban- imprecisa é assunto para especialistas. Segu-
deira dos mandatos subsequentes do PT. ramente não é uma verdade factual exata
Até 2014, os estudos sobre o assunto eram passível de ser verificada. O candidato do
baseados na Pesquisa Nacional de Amostras PT na próxima eleição pode perfeitamente
por Domicílios (PNAD) do IBGE. Por esta defender que a desigualdade diminuiu nos
pesquisa a renda dos 50% mais pobres teria governos do partido. Os adversários também
passado de 14,3%, em 2004, para 17,7% do poderão argumentar que isso não é verdade.
total, em 2015. E a dos 10% mais ricos teria O eleitor decidirá pelo que sente, pelo que
se reduzido de 45,9% para 41,2%. Ainda vê à sua volta e pelo que lhe parece mais
uma diferença obscena, mas pelo menos verdade na sua vida cotidiana.
movimentando-se na direção certa. Voltando para os Estados Unidos, onde a
Mais recentemente, foram feitos novos indignação com a epidemia das notícias fal-
estudos usando o método desenvolvido pelo sas atingiu seu ápice, o site BuzzFeed com-
francês Thomas Piketty, que se baseia nas pilou e publicou, no dia 28/12/17, uma lista
declarações do imposto de renda como fonte das maiores fake news de 2017. Para definir
adicional para o cálculo da riqueza, prin- a classificação usou um conceito chamado
cipalmente dos mais ricos. Em outubro de “engajamento”: total de compartilhamentos,
2017, foram publicados os resultados do tra- reações (como likes) e comentários que uma

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determinada notícia recebeu. Uma medida é flagrantemente falso ou mal-intencionado


numérica e precisa, para facilitar a conta. do que é apenas tendencioso ou discutível.
A lista é risível. Listo os títulos e o Pode, principalmente, oferecer informações
número do engajamento de algumas, entre e dados variados sobre o mesmo assunto,
as dez maiores: “Babá levada para hospi- que permitam ao leitor ou internauta tirar
tal depois de introduzir um bebê na sua suas próprias conclusões.
vagina” (1,2 milhão); “FBI apreende 3 mil Um exemplo do uso de tecnologia é o
pênis durante busca em casa de empregado software que está sendo desenvolvido pela
de cemitério” (1,1 milhão); “Mulher enfu- Duke University, na iniciativa chamada Tech
recida corta pênis do companheiro por não & Check Cooperative, para executar verifica-
olhar para ela durante o sexo” (980 mil); ções em tempo real de discursos de políticos
“Mulher idosa acusada de treinar seus 65 ou autoridades. Está em beta test e vai ser
gatos para roubar os vizinhos” (690 mil). usado no State of the Union de 2018, dis-
Alguém se lembra do jornal Notícias curso que os presidentes americanos fazem
Populares? Só uma das “10 Mais” se refere no início do ano legislativo. Muito podemos
a uma questão política relevante: “Presidente esperar da junção das ciências da computação
Trump ordena a execução de 5 turcos perdo- com a inteligência artificial para aprimorar
ados por Obama”. Esta, qualquer fact che- as técnicas de verificação.
cking tiraria de letra em segundos. Se concluirmos que não é possível acabar
Não estou aqui defendendo a inutilidade com as notícias falsas e que não é viável
do trabalho da mídia e das empresas inde- projetar um mundo em que a verdade objetiva
pendentes na fiscalização, conferência e averi- se estabeleça sempre com precisão, qual é
guação do que é dito por autoridades, figuras mesmo o problema que precisamos resol-
públicas ou mesmo o que é publicado por ver e por que ele adquiriu uma gravidade
anônimos na rede e que depois viraliza e vira extrema nos últimos tempos?
efetivamente notícia.Muito pelo contrário. A As notícias falsas, como já foi dito, sem-
importância da missão aumenta muito quando pre existiram. As más intenções e truques
se constata que a verdade, quase nunca, é de indivíduos e organizações que defendem
desvendável e decifrável facilmente. Exige lados e interesses, também. O que, atual-
esforço, averiguação, investigação, análise mente, é radicalmente diferente é o poder
e, muitas vezes, intepretações conflitantes. e a influência das plataformas de tecnolo-
A missão é complexa e árdua, dada a gia na disseminação de qualquer tipo de
proliferação exponencial do que é publicado, notícia que, por razões variadas e muitas
compartilhado e viralizado em muito pouco vezes inexplicáveis, ganham engajamento
tempo. A tecnologia, claro, pode ajudar. Com e, de uma hora para outra, crescem expo-
a evolução da inteligência artificial os pro- nencialmente sua audiência. São gostadas
gramas de verificação automática ganharão ou detestadas (likes e similares), compar-
o poder de entender e traduzir o que está tilhadas e comentadas em um processo de
sendo dito, comparar com imensas bases de combustão espontânea descontrolada.
dados do que foi publicado anteriormente Em um mundo já fortemente polarizado,
e aprender, com o tempo, a separar o que o “efeito rede” potencializa a intolerância, a

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impaciência e o ódio. Escutamos só o que que-
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remos e o que reforça os nossos preconceitos.


O que fazer? Na minha opinião, não é
exigir que haja mais intervenção e regu-
lação de autoridades externas. Aceitamos
como razoável quando o controle começa,
mas nunca sabemos onde e quando acaba.
O risco de transformar-se em censura e cer-
ceamento à liberdade de expressão é real e
sempre presente.
O resultado de uma investigação publi-
cada no dia 30/12/17 no site Intercept, por
Glenn Grenwald, acusa o Facebook de estar
deletando contas de ativistas palestinos e
de outros países do mundo a mando dos
governos de Israel e dos Estados Unidos.
No Brasil, a Polícia Federal, reconhecendo
a dificuldade em enquadrar a prática de dis-
seminação de fake news, está pedindo uma
nova lei e diz que poderá ter que usar a Lei
de Segurança Nacional (LSN) da ditadura
militar, enquanto tal lei não existir.
Uma lei alemã, que entrou em vigor em
1°/1/18, pode multar em até 50 milhões de
euros as plataformas que não retirarem em
24 horas, depois de notificadas, matérias que
contenham discursos de ódio, difamação ou
notícias falsas. Como era de esperar, já há
reações negativas dizendo que o assunto é
complexo e que a lei foi aprovada na correria.
Na França, o presidente Emmanuel
Macron, aproveitando a onda, está também
propondo uma lei específica para combater
as fake news durante campanhas eleitorais.
O jornal Le Monde reagiu. Disse que a ideia
é elogiável, mas que “corre o risco de se
chocar com uma realidade complexa e que
esse tipo de ambição legislativa, dentro de
uma área tão complicada e sobre algo tão
crucial como a liberdade de imprensa, é por
natureza perigoso”. Assino embaixo.

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Resta então responsabilizar as plataformas conhece o usuário e mais retorno terá a


pelo problema. Elas são mesmo responsáveis. publicidade. E assim indefinidamente.
Mas, sinceramente, não acho que a solu- Algoritmos que são otimizados para audi-
ção seja atribuir a elas a responsabilidade ência e publicidade não o são para criar o
de interpretar a verdade. Responsabilizar é ambiente de desconfiança e questionamento
empoderar. Empoderar é atribuir papel de que seria necessário para que publicações
censor a quem não está preparado nem é suspeitas fossem naturalmente detectadas.
independente para tal. Pelo contrário, a tendência é de que vejamos
Tomemos o Facebook como exemplo. nas páginas aquilo de que já gostamos e com
A plataforma é o caso mais crítico de que concordamos. Se temos preferência, a
disseminação de fake news. Mais do que chance é alta de que mais parciais, em rela-
Google ou Twitter. Foi lá que os rus- ção ao tema tratado, ficaremos.
sos pintaram e bordaram com as notí- A matemática formada em Harvard e no
cias pagas e grátis. Mark Zuckerberg já MIT Cathy O´Neil – autora do livro Wea-
reconheceu que tem um problema para pons of Math Destruction: How Big Data
resolver e tomou para si a missão. Em um Increases Inequality and Threatens Demo-
post na própria rede, no final de 2017, cracy –, declarou em entrevista ao Esta-
disse que sua prioridade para 2018 é con- dão, em 31/12/17: “A definição de sucesso
sertar o Facebook. Admitiu que a plata- para o Facebook se resume em manter as
forma “fez demasiados erros em impedir pessoas conectadas por muito tempo, cli-
o uso inadequado de suas ferramentas” e cando em anúncios. Assim a empresa ganha
complementou: “O mundo está ansioso e dinheiro. Mas o algoritmo do Facebook não
dividido e o Facebook tem muito trabalho foi desenhado para priorizar a verdade e
a fazer – seja para proteger nossa comu- os argumentos discordantes”. Descontando
nidade do abuso e do ódio ou garantindo um certo viés ideológico da professora,
que o tempo dedicado ao Facebook seja este é exatamente o caso. Quando Zucker-
bem aproveitado. Meu objetivo pessoal berg diz que precisa consertar o Facebook,
para 2018 é resolver estas questões impor- o dilema se estabelece. Como mudar o
tantes”. Avisou também que as mudanças algoritmo sem afetar significativamente o
devem afetar os resultados da empresa. modelo de negócios?
Para consertar o Facebook, Zuckerberg O fato é que a acumulação de dados pes-
não tem outra alternativa a não ser mexer no soais e o seu uso em algoritmos ganhou uma
algoritmo, a alma e o coração do sistema. Os importância fundamental em nossas vidas.
algoritmos do Google e do Facebook foram Quando dados e algoritmos estão em pla-
criados e são constantemente aperfeiçoados taformas praticamente monopolistas, como
para maximizar a audiência e vender publi- é o caso de buscas e redes sociais, o seu
cidade. É um círculo virtuoso para a com- funcionamento deveria ser transparente para
panhia. Usa e acumula dados dos usuários a opinião pública. Este é o tema central.
para propor melhores conteúdos, aumentando Como era esperado, o Facebook anunciou,
a audiência e o tempo de permanência na no começo de 2018, uma mudança radical
plataforma. Quanto mais audiência, mais se no seu algoritmo que escolhe o que vamos

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ver no Feed de Notícias (News Feed). As uma notícia falsa com fatos e análises é a
alterações no programa vão priorizar conte- própria mídia.
údos de amigos, famílias e grupos e reduzir Como já sustentado neste artigo, a maio-
as comunicações feitas por negócios, marcas ria das fake news não pode ser classificada
e pela mídia. simplesmente como falsa ou verdadeira.
Os argumentos do comunicado são cla- O que pode reduzir seu efeito danoso são
ros sobre a redução da ênfase em notícias: análises e pontos de vistas diversos e bem
“Algumas notícias ajudam a iniciar conversas fundamentados. Não há pessoa ou instituição
sobre assuntos importantes, mas, frequen- que faça isso com mais autoridade e mérito
temente, assistir vídeos e ler notícias são do que o bom – e mesmo o médio e o medí-
apenas experiências passivas”. ocre – jornalismo. Portanto, a solução para
Vários trechos da comunicação explici- o problema das fake news e do Facebook
tam como a mudança do algoritmo pretende não é menos, mas é mais jornalismo. Han-
limpar a rede de conteúdos inadequados: nah Arendt, se estivesse viva, certamente
“Pesquisas mostram que quando usamos as concordaria.
mídias sociais para nos relacionarmos com É claro que dados e algoritmos são segre-
pessoas com as quais nos importamos é, em dos industriais das empresas de tecnologia,
geral, bom para o nosso bem-estar. Nós nos mas quando têm, potencialmente, o poder
sentimos mais conectados e menos solitários, de influenciar vidas e países, a transparên-
o que tem influência em medidas de longo cia deveria ser uma exigência para o bem
prazo de felicidade e saúde”. comum. Uma mudança drástica como essa
Tenho dúvidas sobre a qualidade das pre- não deveria ser comunicada sucintamente e
missas e a efetividade das mudanças. Em implementada sem que parcelas significativas
primeiro lugar, é discutível que os usuários dos usuários e da sociedade fossem ouvidas.
queiram um ambiente que seja higienizado Preocupados com a repercussão, a com-
e asséptico. As populações refletem o que panhia anunciou que vai criar um ranking
somos na sociedade. A polarização e o ati- de veículos confiáveis, escolhidos por uma
vismo que vemos na rua estão devidamente parte dos seus usuários. O ranking será usado
refletidos na plataforma. para escolher quais notícias serão exibidas na
Mais importante, não acho que o Face- Linha do Tempo. Não vai, porém, aumentar
book precise de menos jornalismo. Justo o o total de notícias publicadas. Nada mais
contrário. Minha tese é de que as fake news foi dito. Em tempos de experimentação,
combatem-se não com menos, mas com mais espera-se que muitas outras mudanças
notícias das mais diversas fontes. venham, principalmente se a audiência ou
Se tomarmos a mídia que conhecemos a receita de publicidade caírem.
– jornais, revistas, TV, sites, blogs – temos Problemas do Facebook à parte, resta
uma justa representação do que somos e do saber se as fake news são mesmo o bicho-
que queremos ser e, na média – ou talvez papão que parecem e se merecem a atual
na maioria –, uma quantidade imensa de guerra insana pela sua eliminação. Uma pes-
boas e confiáveis informações. Se há algo quisa abrangente sobre o consumo de fake
ou alguém que pode ajudar a contrapor news pelos americanos durante a eleição de

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dossiê pós-verdade e jornalismo

2016 foi publicada no final de 2017. O estudo que de fontes suspeitas. Também averiguou-
foi feito por pesquisadores das universidades -se que “as fake news circularam com muito
de Princeton, Exeter e Dartmouth, baseado mais força nas extremidades do espectro
em dados de navegação real na web de 2.525 político, em que a decisão do voto já está
americanos durante o período da eleição. tomada e a notícia falsa serve apenas como
As conclusões contrariam a percepção viés de confirmação”.
de que as notícias falsas tiveram influên- Creio que faria bem para o mundo con-
cia significativa nos resultados da eleição. cluir que as notícias falsas são falsos inimi-
Concluiu-se que apenas 25% dos americanos gos e que a verdade que governa as escolhas
tiveram acesso às fake news. Mesmo entre das mulheres e dos homens desta terra nova
os 25%, o consumo foi significativamente é sensível, emocional, impalpável, intangível,
maior de notícias das mídias tradicionais do pessoal, subjetiva e temporária.

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