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REVISÕES DE LITERATURA

A (DE)PRESSÃO E A CONTEMPORANEIDADE:
NOTAS SOBRE O SINTOMA SOCIAL
THE DEPRESSION AND CONTEMPORANEITY:
NOTES ABOUT THE SOCIAL SYMPTOM

Marilene Moreira da Silva Magalhães*, Fábio Giorgio Santos Azevedo**


Autora para correspondência: Marilene Moreira da Silva Magalhães - marilene_mm@hotmail.com
*Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia (UFRB). Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica
pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP)
**Psicólogo graduado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Antropologia Visual
(UFBA) e Mestre em Educação (UFBA). Professor nas universidades Católica do Salvador (UCSAL), Salgado
de Oliveira, e na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP)

RESUMO
Na contemporaneidade, o predomínio de determinadas sintomatologias e formas de subjetivação podem estar
intrinsecamente relacionadas com as características da cultura atual. O presente trabalho tem como objetivo
discutir sobre a depressão como sintoma social na contemporaneidade. Realizou-se um estudo teórico a partir
da revisão de literatura com base em artigos e livros que tratam do tema em questão. Percebeu-se que a
contemporaneidade se caracteriza por uma sociedade espetacular e narcísica, produtora de (de) pressões e
solicitações por uma busca de gozo sem limites e satisfação a todo custo, o que tem se tornado árduo demais
para os sujeitos. Nesse contexto, a depressão surge como um mal-estar que expressa o desacordo e o vazio de
não corresponder aos ideais da cultura atual. A literatura consultada aponta ainda que o termo depressão tem
sido usado como um significante para nomear diversos sentimentos, a exemplo da tristeza que tem sido aventada
como sinônimo de depressão. Ao lado disso, foi possível reconhecer que a maioria dos casos diagnosticados como
“depressão” nos dispositivos de saúde mental são tratados pela via da medicalização que, por vezes, considera
prioritariamente o sintoma em detrimento do sujeito. Assim, concluiu-se que a escuta clínica, especificamente a
psicanalítica, surge como uma alternativa à medicalização, a singularidade do sujeito no lugar do enfoque na
patologia.

Palavras-chave: Depressão, sintoma social, psicanálise, contemporaneidade.

Submetido em 15/08/2016, aceito para publicação em 14/10/2016 e publicado em 19/12/2016


DOI: 10.17267/2317-3394rpds.v5i2.1046
ABSTRACT
In contemporary times, the predominance of some clinical symptoms and ways of subjectivities can be intrinsically
related to the characteristics of the current culture. The present studies has a goal to discuss the depression as a
social symptom in contemporary times. It was perform an academic study as from the literature review based on
articles and books which deal with the present topic. It was noticed that the contemporary times is made of an
amazing and narcissist society which is a producer of depression feelings and wishes for an enjoyment without
limits and satisfaction at all costs, what has become too hard to the people. In this sense, the depression comes
as a malaise that shows the disagreement and the emptiness to not correspond to the ideals of current culture.
The consulted literature shows that the term depression has been used as a meaning to name several feelings,
for example the sadness which has been suggested as a synonym for depression. Besides that, it was possible to
recognize that the majority cases diagnosed as “depression” in the mental health devices are treated through the
medication that sometimes considers as a priority the symptom rather than the individual. Thereby, it concludes
that the clinic listening, specifically the psychoanalytic, comes up as an alternative of medication, the individual
uniqueness instead of the focus on pathology.

Keywords: Depression, social symptom, psychoanalysis, contemporaneity.


INTRODUÇÃO ao surgimento de formas de mal-estares como a
depressão, quais sejam: a liquidez nas ações, a
desconfiança nos discursos, a fragmentação e o
O interesse pelo tema surge a partir do desejo desamparo, ente outros.
de discutir sobre a depressão enquanto mal-estar
que ocupa lugar de destaque na mídia, nas redes As características da cultura contemporânea
sociais, nos espaços acadêmicos e, principalmente, sociedade atual ganham contornos na esfera do
no contexto da saúde pública. No presente artigo, consumo de imagens-objetos produzidos pela
discutimos a depressão como sintoma social a partir indústria e, por sua vez, o espetáculo surge como
de algumas características da contemporaneidade a principal produção da sociedade atual2. Por
que podem ser disparadoras ou potencializadoras esse caminho e valendo-se de forma metafórica,
de mal-estar. dos termos (Modernidade Sólida e Modernidade
Líquida) pode-se depreender as mudanças
Para o escopo da discussão, inicialmente ocorridas na modernidade como uma produção
apresentamos algumas características da cultura histórica, social e cultural que têm impactado na
atual a partir da ideia da sociedade de consumo sociedade atual e que podem ser produtoras e
e espetacular. Em seguida, discorremos sobre potencializadoras de fenômenos modificadores das
a depressão enquanto significante usado pelos formas de constituição das subjetividades3.
sujeitos para nomear alguns sentimentos, a exemplo
da tristeza, e sobre como a depressão é concebida Assim, a depressão e suas variadas formas de
pela via da psiquiatria e da psicanálise. Por último, classificação destacam-se enquanto fenômeno na
discutimos acerca da escuta clínica, especificamente atualidade, tendo em vista que esta se tornou um
a psicanalítica, como uma das alternativas de dos mitos em saúde mental na contemporaneidade4.
tratamento para a depressão no contexto da Neste mesmo sentido, este mal-estar contemporâneo
saúde pública, face à excessiva patologização e poderia estar relacionado a uma pluralidade
medicalização do sofrimento do qual se queixam de fatores característicos da cultura atual que
os depressivos e finalizamos com reflexões que determinam e perpetuam a depressão como
pretendem suscitar novas indagações acerca do uma das grandes modalidades de mal-estar na
tema abordado. Desse modo, à guisa de introdução, contemporaneidade.
vale destacar que a questão do mal-estar do sujeito
já inquietava Freud1. Na perspectiva desse autor, na Segundo dados da OMS (Organização Mundial de
sua obra O Mal-estar na Civilização, o mal-estar dos saúde) publicados no relatório mundial da Saúde
sujeitos apontava para os descaminhos entre o que - Saúde mental: nova concepção, nova esperança5
o mesmo desejava e o que a sociedade lhe exigia - a depressão, nos próximos vinte anos, poderia vir
sendo o mal-estar próprio do sujeito na cultura, na a ser a segunda das principais causas de doenças
medida em que a civilização seria construída sobre em todo o mundo, como também, uma das principais
a renúncia das pulsões, buscando a sublimação no causas para o afastamento dos sujeitos de toda
contexto civilizatório. natureza de atividades laborais, contribuindo para
impossibilitá-los de vivenciarem sua existência nas
Em vista disso, pode-se compreender que o sujeito, dimensões sociais e coletivas4.
na contemporaneidade, apresenta diversos modos
de se posicionar no mundo diante das exigências Nesse contexto, o estudo da depressão parte de
da cultura da sua época, produzindo, por vezes, uma inquietação sobre a sua presença em nosso
sintomas - a exemplo da depressão. meio e chama a atenção o fato de existir uma
preocupação crescente como estudo dessa temática,
A cultura configura-se, então, como condição sine mobilizando o desenvolvimento de pesquisas a
qua non na constituição do psiquismo humano, sendo partir da compreensão desta como um sintoma do
inegável a relação desta com as sintomatologias mal-estar na sociedade contemporânea4,7,8.
que surgem em cada período. Em decorrência
disso, algumas características fundamentais da Vale destacar que o conceito de sintoma social
contemporaneidade podem estar relacionadas utilizado aqui não se define em função da grande

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incidência ou relevância estatística da depressão acerca do sofrimento psíquico, considera-se que não
como patologia, haja vista que não se almeje aqui se pode dissociar o mal-estar psíquico do seu contexto
priorizar esse aspecto. A ideia de sintoma social aqui social, haja vista que há uma incompatibilidade
utilizada seria a inscrição específica da articulação entre as necessidades individuais do homem frente
discursiva própria a tal sintoma (depressão) no às exigências sociais e culturais de sua época1.
discurso social, considerando que o significante em
questão é usado na atualidade como rótulo para Nessa perspectiva, as três fontes de sofrimento
identificar e etiquetar as mais variadas formas de psíquico corresponderiam às questões inerentes à
mal-estar6. vida na civilização, “a prepotência da natureza,
a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das
Por fim, as reflexões nesse trabalho podem contribuir normas que regulam os vínculos humanos na família,
para que os profissionais de saúde no contexto da no Estado e na sociedade”1.
saúde pública estejam mais sensíveis à escuta clínica
nos dispositivos de saúde mental. Essa alternativa Partiremos deste último ponto para refletirmos sobre
pode abrir espaço para a prática da escuta a depressão na contemporaneidade, considerando-a
psicanalítica dos sujeitos que apresentam estados como expressão de um sintoma social, destacando
depressivos, possibilitando que o seu tratamento algumas características específicas da cultural atual
não se paute exclusivamente na medicalização da que podem ser disparadoras deste sintoma.
dor e da vida. Ao lado disso, pode favorecer que os
sujeitos lidem melhor com os desafios que a existência A evolução histórica de uma sociedade não ocorre
humana se depara na contemporaneidade. sem deixar marcas que a caracterizam e que
estão relacionadas aos modos de constituição das
Para realização do trabalho empreendemos subjetividades individuais e coletivas que emergem
uma revisão de literatura, por meio de pesquisa nesse processo, já que “cada espécie de sociedade
bibliográfica de artigos e livros que tratassem do produz sua própria espécie de estranhos e a produz
tema em questão. A pesquisa dos artigos foi feita de sua própria maneira, inimitável”9. No caso das
prioritariamente nas principais bases de dados: sociedades moderno-ocidentais, a análise do
ScientificEletronic Library Online (SCIELO); Periódicos mundo moderno pode ser compreendida a partir
Eletrônicos em Psicologia (PEPsic); Portal CAPES e de dois períodos distintos: A Modernidade Sólida
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando os e a Modernidade Líquida9. A Modernidade Sólida
descritores: “depressão na contemporaneidade”, seria marcada pela era do Hardware, das grandes
“depressão como sintoma social”, “mal-estar na máquinas, da lentidão da passagem do tempo e
contemporaneidade”, “escuta psicanalítica na saúde a Modernidade Líquida, estamparia a fluidez, a
mental”, “psicanálise e saúde mental”. Quanto leveza e a instantaneidade, tão evidentes na relação
aos critérios de inclusão e exclusão considerou-se tempo e espaço, como marca indubitável da ordem
prioritariamente os artigos publicados em Português, econômica capitalista que impera nesse período. A
de 2006 a 2016. Posteriormente foi feita leitura principal característica da era do software, seria
sistemática do material selecionado e o registro das “a viagem à velocidade da luz; o espaço pode
informações essenciais, levando em consideração os ser atravessado, literalmente, em ‘tempo nenhum’;
objetivos que a pesquisa propõe. cancela-se a diferença entre ‘longe’ e ‘aqui’”9.

Durante a Modernidade Sólida, teria sido possível


a construção de referenciais socioculturais que
serviriam de fio condutor para a tessitura de laços
DEPRESSÃO E CONTEMPORANEIDADE: A sociais duradouros9. Nesse sentido, os laços socais
RECUSA DO SUJEITO FRENTE AO PALCO familiares na passagem da era pré-moderna para
ESPETACULAR
a modernidade possuíam características marcantes
como o convívio no mesmo espaço de diferentes
A depressão se configura como uma das gerações e a autoridade do pai era quase absoluta
modalidades de sofrimento predominantes na e incontestável10. As transformações apresentadas
contemporaneidade. Partindo da ideia freudiana pela estrutura familiar desde então reflete novas

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configurações de laço socais que se formariam a existência a ponto de ganhar prestígio social, buscam
partir da constituição de espaços de privacidade, a exaltação de si mediante “a melhor performance
novos arranjos familiares, entre outros aspectos possível, o modelo desejado socialmente de imagem,
que caracterizariam às mudanças ocorridas na era os bens (tecnologias - objetos móveis e imóveis) que
moderna10. estão expostos nesse cenário espetacular”13. Ocorre
então que do consumo direcionado às necessidades
Assim, consideremos a contemporaneidade como passou-se ao consumo direcionado à tentativa da
herdeira dos referenciais postos na Modernidade satisfação de desejos, instalando-se para o sujeito
Líquida que se traduz na ideia de liquidez e de uma falsa sensação de que pode ser e ter tudo, pois
fluidez, sendo percebida no modo como as relações na cultura do espetáculo o fracasso não tem vez e o
familiares, interpessoais, de trabalho, entre outras, que se busca é o gozo pleno.
são constituídas na atualidade, colocando à prova
as certezas e os referenciais outrora construídos Desse modo, os destinos do desejo no atual cenário
sob um modo de atadura social na Modernidade contemporâneo, assumem, pois, uma direção
Sólida3. Na contemporaneidade, os ideais, as notadamente exibicionista e autocentrada, haja
tradições, a autoridade paterna e as religiões vista que o horizonte intersubjetivo se encontra
perderam sua importância, favorecendo que os esvaziado e desinvestido das trocas entre os sujeitos.
sujeitos criem maneiras diversas de se posicionar Nessa direção, pode-se pensar que “a era da
diante das solicitações e mudanças dos contextos individualidade substituiu a da subjetividade, dando
social, econômico e cultural. “Se o sujeito não atinge a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de
os ideais proclamados pela sociedade, nada mais uma independência sem desejo e historicidade sem
lhe resta senão sua condição de exclusão, de história13.
doente”11.
Depreende-se, com base no exposto, que, na cultura
Nesse sentido, à cultura capitalista promoveria no atual, o sujeito adere à promessa de prazer imediato
sujeito a ideia de que pode ser autossuficiente e, de ofertada pelo consumo, da plena liberdade de
forma individual, enfrentar os reveses postos pela escolha diante das variadas possibilidades que
vida em sociedade. se apresentam aos indivíduos, mas que, de certa
forma, já são vazias de referenciais sólidos. Nesse
Vivemos sob o domínio do discurso capitalista, em que os contexto, os sujeitos podem se sentir inseguros por
homens não se cercam mais de outros homens e sim de não saberem lidar com a ilusão de liberdade posta
objetos produzidos pela tecnologia; suas relações sociais
não estão centradas nos laços com outros homens, mas na pelos contextos socioeconômico e cultural. Diante
manipulação de mercadorias e mensagens. Essa deterioração disso, o cenário capitalista, transitório e fluido,
dos laços sociais e o empuxo ao prazer solitário, realizando apresentado ao sujeito, remete a uma condição de
a economia do desejo do Outro, estimulam a ilusão da desamparo, visto que os valores nesse cenário são
completude não mais com um par, porém com um parceiro rapidamente consumidos e substituídos por outros
conectável e desconectável ao alcance das mãos12.
tão fluidos quanto os primeiros, gerando angústia9.
Os aspectos da cultura contemporânea, avulta
Isso leva a crer que na sociedade atual, a
a ideia da homogeneização desta ao jogo de
emergência de sintomatologias, a exemplo da
imagens, sons e encurtamento do tempo-espaço,
depressão, poderia estar relacionada às primeiras
como aspectos intrínsecos ao que se conhece hoje
experiências vivenciadas na infância, que, via de
como ‘sociedade do espetáculo’2. Tem-se um cenário
regra, se estruturam a partir de “um objeto externo
em que os sujeitos podem utilizar os objetos de
qualquer que é buscado com a finalidade de
consumo disponíveis no mercado capitalista e, desse
preencher o vazio insuportável”14.
modo, sustentarem a fantasia de que podem atuar
satisfatoriamente no palco forjado socialmente,
É nesse sentido que Freud15 menciona as tentativas
onde os holofotes estão voltados para si. “O que
dos sujeitos na vida adulta de se mostrar incapaz
aparece é bom, o que é bom aparece. ”3
de abrir mão de uma sensação prazerosa que
outrora desfrutou na infância buscando evitar
Com isso, aqueles que não conseguem estetizar sua
desesperadamente as sensações de mal-estar,

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tal qual fazia nesse período, quando ainda não desse modo os imperativos de perfeição, beleza,
possuía uma representação que tornasse suportável juventude e de felicidade plena7.
a dor e a frustração da espera, ou da negociação
do objeto: A depressão portaria, desse modo, um sofrimento
psíquico vivenciado pelos sujeitos, marcado pela
Ele não está mais disposto a renunciar a perfeição narcisista dificuldade de colocar a termo sua própria
da sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado condição transitória, de incompletude e finitude,
pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu
próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter referenciada em um narcisismo ideal que não
aquela perfeição, procura-se recuperá-la sob a forma de um consegue responder aos impasses da onipotência
ego ideal15. perdida frente a exigência de performance social
da cultura do espetáculo que se apresenta aos
A percepção sobre mais essa função narcísica dos sujeitos contemporâneos17. Nesse contexto, pode-
sujeitos faz referência à formação de um ideal e a se pensar que os sujeitos modernos sofreriam
sublimação das pulsões. Entretanto, um homem que em função da busca por outros ideais, que se
tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal pautariam entre o que se é e como deveria ser,
de ego elevado nem sempre foi bem-sucedido em entre o que sem tem e o que se deveria ter. Dito
sublimar seus instintos libidinais, haja vista que na de outro modo, os ideais dos sujeitos na atualidade
infância haveria todo um investimento materno na se diferenciaram dos ideais dos sujeitos da época
criança, atendendo aos seus pedidos de satisfação de Freud, considerando que os ideais dos sujeitos
e, por conseguinte, para viver na cultura os sujeitos na atualidade estariam modificando-se em função
teriam que se haver com imposições sociais frente da busca pela melhor performance na vida em
ao seu desejo15. Desse modo, é que podemos pensar cultura. Até aqui, seria possível depreender que
que os sujeitos na atualidade buscariam sustentar os mal-estares supostamente interpretados como
a ilusão de puder preencher o que lhes ‘falta’, não depressão poderiam ser uma reação subjetiva
reconhecendo essa como constitutiva a existência do sujeito contemporâneo frente às demandas da
humana. Assim, a cada conquista formula-se nova cultura do espetáculo e do narcisismo.
demanda, novo desejo, ocasionando por vezes,
insatisfações em função dos sujeitos não alcançarem Nessa perspectiva, o sintoma, ao emergir, teria
a completude dos desejos e experienciando, por como função revelar um sujeito que se encontra à
vezes, desse modo, sentimentos de desemparo, mercê de si mesmo e do seu desejo, referenciado
tristeza. nas vicissitudes da crença narcísica e no sofrimento
diante de sua própria condição transitória. Ao
É por esse caminho circunscrito entre a dinâmica das lado disso e, considerando ainda que o sintoma
pulsões e do sintoma, que se tem o encontro entre “ é estruturado como linguagem”18, este seria em
duas poderosas forças, uma que busca se livrar do última instância, simbolicamente, um resultante que
sintoma e outra que se satisfaz com o sintoma. O expressaria um conflito psíquico ao modo de uma
sujeito que faz sintoma de um modo, pode até mesmo solução de compromisso entre o desejo e a defesa.
tentar tamponar o escape de certo comportamento Assim, é na defesa contra o sofrimento que habitaria
de sofrimento, mas esse sofrimento retornará nas o próprio “mal-estar”1.
diferentes formas, até que o sujeito venha a se
haver com o que lhe faz sofrer16. Desse modo, percebe-se que na contemporaneidade
o significante “depressão”, não raro, é usado
A organização do campo social na atualidade, corriqueiramente como rótulo para nomear
seria nesse sentido, tributária dos ideais sociais, sentimentos que dizem de mal-estares. Esses
que, em última instância, são formações imaginárias sentimentos, por vezes, fariam referência à
organizadoras do campo social, variando de cultura impotência do sujeito em lidar com as dores e as
para cultura. É desse modo, que se pode pensar incertezas do existir, evidenciando uma modalidade
no vazio ao qual se referem os deprimidos, tendo específica de sofrimento psíquico muito frequente e
em vista que a sociedade atual privilegiaria a cada vez mais presente.
vida privada, a competitividade, a satisfação dos
desejos a todo custo pela via do consumo, ratificando

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DEPRESSÃO: A DOR QUE TEM NOME? não é originário desta, mas da psiquiatria, cujo
significado está baseado em uma doença orgânica17.
Tristeza, desesperança, desamparo e desânimo A psiquiatria, concebida como o saber médico
são alguns dos sentimentos que estão presentes nos considera o sofrimento psíquico, como um desvio,
discursos dos sujeitos contemporâneos como expressão como algo fora do padrão de normalidade, como
de mal-estar. A tristeza pode ser compreendida, por doença e, de modo geral, concebe o sujeito como
vezes, como sinônimo de depressão. O significante racional e consciente acerca do seu sofrimento.
“depressão” tem sido comumente usado de forma Utiliza referenciais biológicos para diagnosticar
genérica na contemporaneidade para nomear os e nomear os fenômenos observáveis, que nessa
sentimentos que expressam o desacordo dos sujeitos perspectiva são classificados em categorias de
com o ideal de felicidade e de satisfação tão CIDs (classificação internacional de doenças)
valorizados socialmente7. Interessante observar que e DSMs (manual diagnóstico e estatístico de
“o significante “depressão” parece ter engendrado transtornos mentais), desconsiderando, por vezes, a
o batalhão de sujeitos que assim qualifica seu estado subjetividade e singularidade do sujeito20.
d’alma quando se encontram tristes, desanimados,
frustrados, impotentes ou angustiados. ”12 A depressão para a psiquiatria se caracterizaria
por uma multiplicidade de sintomas afetivos,
Nesse sentido, a partir do momento em que o sujeito neurovegetativos, ideativos, cognitivos, entre
se vê atrelado ao significante “depressão”, este tem outros, que serviriam para explicar seus principais
a ilusória sensação de que encontrou o diagnóstico elementos21. As manifestações depressivas são
para o seu mal-estar por meio de um significante classificadas em quadros que variam dos leves
que portaria o seu sofrimento expressando a sua aos mais severos sendo também nomeadas como
dor19. transtornos de humor e anedonia, por exemplo.
Vale ressaltar que o tratamento da depressão
Ao tratar dessa questão e buscando-se compreender pela psiquiatria buscaria a eliminação do sintoma
a natureza das depressões seria importante visando a normalização do sujeito21.
considerar a sua singularidade, haja vista que
estados como tristeza, desânimo, inapetência Há de se considerar que o trabalho do médico
para a vida, caracterizariam, por vezes, reações na psiquiatra, por vezes, está pautado no modus
aos avatares da vida cotidiana, não pressupondo operandis de uma sociedade governada pela
necessariamente estados depressivos, embora todos ordem da fluidez, instantaneidade da produção
estes participem também do sofrimento dos sujeitos e da produtividade. Desta forma, o uso de um
que vivenciam a depressão20. psicofármaco cai como uma luva para uma sociedade
que demanda atendimentos cada vez mais rápidos
A depressão, do mesmo modo como a angústia, e que a lógica dos discursos predominantes sobre
a ansiedade, o medo, o pânico, as fobias e as a depressão reflete sempre um ideal de saúde que
paixões, enquanto phatos de uma forma geral, obedece, por sua vez, a uma lógica consumista e
revelariam um sentimento de “mal-estar”, por vezes mercadológica, típica da modernidade4.
indizível, indicando em última instância que algo no
sujeito clama por uma possibilidade de elaboração Diferentemente da psiquiatria, para a psicanálise,
subjetiva e compreensão interna7. O significado da o mal-estar psíquico do sujeito não seria visto como
palavra depressão teria, na sua carga semântica, algo que precisa ser tratado exclusivamente pela
a capacidade de magnificar a dor e o sofrimento. via farmacológica, pois considera que o sujeito é
Desse modo, esse significante supostamente seria atravessado pelo desejo, o sujeito do inconsciente,
capaz de dar sentido ao nonsence e nomear o posição diversa do sujeito da certeza e da razão,
inominável19. por isso não busca a eliminação do sintoma, pois
o manejo pela via da psicanálise tem como foco o
É importante frisar que, tal como outros termos que trabalho com o sujeito e como este pode lidar com
definem diversas manifestações psicopatológicas o seu sintoma.
trabalhadas pela psicanálise, o termo depressão

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Vale destacar que Freud não teorizou a depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e
especificamente sobre a depressão como uma silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta
e ordena a vida social desta primeira década do século
estrutura clínica, contudo, entendendo a concepção XXI. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na
de sujeito pela via do inconsciente, considerou a contramão de seu tempo, veem sua solidão agravar-se em
existência de estados depressivos como observados função do desprestígio social de sua tristeza7.
e descritos ao longo de algumas de suas obras. Em
seu tempo, descreveu manifestações depressivas O sintoma, portanto, expressaria algo da ordem
como as descritas na obra Luto e Melancolia por do insuportável, uma dor que não consegue ser
considerar um estado passível de revelar-se em simbolizada, mas que precisa de um nome para
diversos sofrimentos psíquicos intrínsecos à existência dar concretude ao sofrimento, assim como saídas
humana, sinalizando que o luto e a melancolia possíveis para o barrar. Para melhor compreensão
possuiriam características semelhantes diante da do conceito de sintoma social, pode-se depreender
perda de um objeto. que o sintoma seria mensagem cifrada de gozo e,
por isso mesmo, seria a modalidade singular pela
Os traços mentais distintivos são um desânimo profundamente qual o sujeito goza. O social seria o que daria
penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a
universalidade aos sujeitos a partir da vida em
perda da capacidade de amar, a inibição de toda e
qualquer atividade, e uma inibição dos sentimentos de cultura e dos limites impostos pela mesma sendo, por
autoestima (...) A perturbação da autoestima está ausente no vezes, produtora de mal-estar por impossibilitar ao
luto, afora a isso, as características são as mesmas23. sujeito à não satisfação plena dos seus desejos.

Nesse contexto, o sentimento de autoestima não A partir disso, ainda de acordo com a autora, o
é perturbado pela consciência do objeto no que sintoma social situaria um campo que se articularia
concerne aos estados depressivos. Ocorre nesses entre o universal da vida em cultura e o singular
estados que a busca por recuperar o objeto do sujeito, onde novas formas de subjetivações e
perdido e a integridade narcísica, ocupa o tempo e novas modalidades de gozo surgiriam e ganhariam
o espaço do sujeito, obliterando “o prazer de viver, sentidos pelo discurso dominante de uma época26.
a capacidade de amar e de se relacionar”2.
Do ponto de vista psicanalítico, o sintoma permitiria
Nessa perspectiva, embora a depressão não tenha desse modo, acessar a organização simbólica que
ocupado um lugar de destaque na teoria freudiana, representa o sujeito, sendo, portanto, um signo
nos dias de hoje, ela pode ser compreendida como que representaria alguma coisa12. No fluxo desse
um modo de existir, uma condição em que o homem pensamento, o sintoma não se reduziria a sinal de
se vê impossibilitado para encontrar outra maneira doença, uma vez que diria da singularidade do
de lidar com as exigências da sociedade atual24. sujeito. Esse modo de conceber o sujeito é “algo
completamente diverso do observado hoje nos
Vivemos em uma era que prega a fuga do sofrimento, diagnósticos psiquiátricos, que nada dizem do
a segurança, o sucesso, a felicidade, a busca por sujeito em sua singularidade”27.
saúde e por satisfação dos desejos, ao passo que
favorece a produção de uma sociedade que padece Assim, a abordagem psicanalítica considera que o
com o alastre e generalização da depressão sintoma não é apenas algo da ordem do individual,
e da sensação de vazio25. A depressão seria o mas, sobretudo, constitutivo do funcionamento
sinalizador do mal-estar na contemporaneidade, psíquico, mediante toda a complexidade social de
um sintoma social, tendo em vista que os depressivos nosso tempo. O sujeito contemporâneo se constitui
seriam os atuais portadores de um saber a com base em uma série de referenciais produzidos
respeito das condições contemporâneas do mal- pelas relações que operam dentro da sociedade.
estar e, provavelmente, estariam em desajuste Desse modo, o discurso dos sujeitos traz em si as
com as demandas que tal sociedade imporia7. Isso marcas dos referenciais construídos socialmente e
justificaria a atualidade das depressões e da sua das modificações ocorridas na própria subjetividade.
expressão como um “sintoma social” possivelmente Com isso, os olhares devem ser múltiplos para
favorecendo o crescente número de diagnósticos de a compreensão desse sujeito, avaliando as suas
depressões na contemporaneidade. crenças e identificações quando o mesmo fala

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do seu sofrimento, bem como as crenças que (RAPS) acolhendo os pacientes com transtornos
permeiam os diagnósticos de depressão. Apesar da mentais que apresentam intenso sofrimento psíquico,
multiplicidade de pacientes depressivos, não se pode os quais, geralmente, se veem impossibilitados de viver
perder a orientação psicanalítica de considerar a e realizar seus projetos de vida. Os CAPS visariam
singularidade do sintoma de cada um. Assim, para estimular a integração social e familiar dos sujeitos,
psicanálise o sintoma seria uma metáfora, que apoiando-os em suas iniciativas de construção da
por meio de significantes engendrados no discurso autonomia, oferecendo-lhes atendimento médico e
social dos sujeitos, poderia revelar os sentidos, os psicológico28. Nessas instituições, os profissionais de
significados e as designações do sofrimento dos saúde seriam responsáveis em construir um projeto
sujeitos, ou seja, diria de forma singular das suas terapêutico em colaboração com o usuário que está
dores. sendo atendido.

O trabalho nos CAPS deve se dar na articulação


entre os profissionais que compõem a equipe
multidisciplinar. A autora sublinha que nas práticas
A ESCUTA PSICANALÍTICA NA SAÚDE desses profissionais de saúde estariam presentes
MENTAL: DA UNIVERSALIDADE À várias orientações clínicas, de acordo com a visão de
SINGULARIDADE DO SUJEITO mundo e de sujeito de cada um desses profissionais
(28). Desse modo, essas práticas vão desde as que
Nos dias de hoje, muitos sujeitos buscam atendimento privilegiam a reabilitação psicossocial e o resgate
na saúde pública para aliviar o seu sofrimento. As dos direitos de cidadania dos usuários, até aquelas
questões inerentes ao atendimento dos “deprimidos” que tomam como eixo a singularidade do sujeito,
atravessam o cotidiano dos profissionais de por exemplo, a clínica de orientação psicanalítica,
saúde, principalmente dos que atuam de forma sendo essa uma das alternativas para o tratamento
direta no trabalho com a saúde mental. Como já no contexto da saúde mental. Nessa direção, a
exposto a lógica capitalista e espetacular da psicanálise não seria uma teoria que se apresentasse
contemporaneidade tem sido interpretada como unicamente como proposta epistemológica para
condição para uma maior incidência dos estados o tratamento do sofrimento psíquico, podendo ser
depressivos de uma forma geral, uma vez que se uma alternativa entre outras práticas que ocorrem
observa nesse contexto transformações socioculturais na saúde pública, considerando a crescente
que têm impactado na produção de novas formas interlocução da psicanálise com esses contextos29.
de subjetivação.
Na saúde pública, a entrada da psicanálise
Os dispositivos para atendimento clínico em saúde, e consequentemente, da escuta psicanalítica,
especificamente os dispositivos de Saúde Mental, ocorreriam, geralmente, através do profissional
configurar-se-iam- como um lugar onde sujeitos psicólogo, fato ainda hoje comum, pois não existe
podem buscar ajuda profissional para alívio dos nos quadros funcionais o cargo de psicanalista30.
seus mal-estares, uma vez que há alguém que o
escute à sua dor6. A prática da psicanálise nos dispositivos de saúde
mental teria como objetivo primordial propiciar uma
A reforma psiquiátrica, iniciada na década de 1970, escuta diferenciada a quem está em sofrimento,
teria possibilitado o surgimento de dispositivos de permitindo que os sujeitos falem de seu mal-estar
tratamento substitutivos ao modelo manicomial. A com seus próprios significantes, o que na maioria
proposta da reforma reconfigurou o quadro da das vezes não ocorre nos tratamentos psiquiátricos
assistência em Saúde Mental no Brasil a partir da praticados nos dispositivos de saúde mental30.
criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
das Residências Terapêuticas, dos Ambulatórios de A singularidade do sujeito na psicanalise é posta em
Saúde Mental, entre outros dispositivos6. relevo quando se pensa no tratamento oferecido,
uma vez que se considera caso a caso e não se
Os CAPS compõem a Rede de Assistência Psicossocial propõem tratamentos uniformes. Com relação às
depressões, que o atendimento psicológico nos

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CAPS comumente é um dos últimos recursos a ser sofrimento também pode se constituir como um modo
procurado pelo paciente na tentativa de cura e alívio de gozar. É nesse sentido a escuta do sujeito deve
de seu sofrimento. Supõe-se que isso se deva a um constituir-se a partir de uma relação terapêutica de
desconhecimento das possibilidades da psicologia confiança entre o paciente e o profissional que o
como tratamento por grande parte da população. acompanha desde o primeiro momento7.
Somado a isso, está a cultura medicalizante que
traz uma ideia de alívio rápido para o sofrimento, Nessa relação, o sintoma apresentado pelo paciente,
perdendo-se aí a possibilidade de compreensão de o profissional, cuja orientação é a psicanálise,
que os estados depressivos fazem parte da existência deveria evitar o furor sanandi de exigir a suspensão
humana, não necessariamente correspondendo a do sintoma, uma vez que não se trata de barrar o
uma psicopatologia6. sujeito, mas, mediante escuta e intervenções feitas
pelo profissional, proporcionar o tempo subjetivo
A medicalização da depressão como prática da experiência, cujas elaborações no processo de
frequente no contexto da saúde mental aponta atendimento favoreçam ao sujeito se haver com o
para uma direção na qual se busca (re)mediar os seu sintoma12.
sintomas, a ponto de se desconsiderar a dimensão
subjetiva do mesmo. As bulas dos fármacos, por Com efeito, a escuta psicanalítica nos dispositivos de
exemplo, mais especificamente dos antidepressivos, saúde mental torna-se possível mediante o vislumbre
contêm uma descrição médica sobre o fenômeno de uma clínica que se amplia na interlocução com
da depressão ao passo que sugere promessas de outros saberes e práticas dentro de uma equipe
cura terapêutica embutida em pílulas “mágicas”. multiprofissional. A escuta psicanalítica nesse contexto
Ao fazer uso exclusivamente dessa possibilidade de não ganha contornos de sessões de análise, mas
tratamento, o sujeito, por vezes, coloca em suspensão busca proporcionar ao sujeito a responsabilização
o seu próprio rótulo de deprimido, mas sem livrar-se por suas escolhas como ser desejante e por novos
dele ou dar sentido ao seu sintoma, sustentando-se modos de se definir enquanto sujeito.
na farmacologia como alcance possível para alívio
do seu sofrimento. Por fim, ressalta-se que, além da saída farmacológica
encontrada pelos sujeitos depressivos para lidar
Desse modo, qual seria a contribuição da escuta como seu sofrimento, faz-se necessário enfatizar
psicanalítica aos sujeitos com queixa de depressão?) que o atendimento psicológico na área da saúde,
A escuta psicanalítica iria de encontro com a e mais especificamente no campo da Saúde Mental,
clínica do campo das especialidades médicas, configura-se como uma possibilidade dos sujeitos
“privilegiando o singular de cada caso, levando falarem de si, de seu sofrimento e do seu mal-estar.
o mesmo a ressignificar o seu existir e tendo como Isso requer que os profissionais da saúde tenham
efeito possível que o mesmo possa desalienar-se de um olhar e uma escuta sensíveis para com os sujeitos
rótulos psicopatológicos”27. que buscam atendimento.

A escuta ao inconsciente significaria privilegiar as


cadeias significantes primordiais que determinam
no sujeito suas ações, suas fantasias, seus sintomas,
ou seja, as vias por onde corre seu desejo. Porém, CONSIDERAÇÕES FINAIS
é importante considerar a escolha do sujeito no que
se refere à adesão ou não ao tratamento, uma vez
O presente artigo pretendeu traçar um breve
que existem várias concepções teóricas no contexto
panorama das características da contemporaneidade
da saúde mental.
que possivelmente teriam relação com o aumento
dos diagnósticos de depressão na atualidade.
CAPS, observa-se que os sujeitos, plenamente
Considerou-se as mudanças paradigmáticas, entre
identificados com seu diagnóstico de depressão,
os referenciais que conduziam o sujeito em épocas
nem sempre estão dispostos ao trabalho pela via
passadas e o modo de vida que se estabelece na
do inconsciente como uma das possibilidades de
contemporaneidade (uma sociedade espetacular,
alívio para o seu sofrimento, tendo em vista que o

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narcisista, fluida e vazia de referenciais sólidos), os benefícios dos fármacos psicotrópicos e a
como produtoras de mal-estares. importância da psiquiatra no tratamento da
depressão. O que se ressalta aqui é que os sintomas
Desse modo, enfatizou-se que cada época criaria fazem parte, eles mesmos, da estrutura discursiva
suas formas particulares de adoecimento que dos sujeitos e que o uso indiscriminado e excessivo
expressariam, de forma exacerbada, as estruturas dos medicamentos, pode favorecer com que o
da organização social vigente, dado que é sob sujeito desapareça e seja visto tão somente como
as determinações da cultura que o mal-estar se uma patologia, como acontece por vezes no modelo
constitui31. Assim sendo, os sujeitos contemporâneos biomédico psiquiátrico.
provavelmente não reconhecem o sofrimento como
processo intrínseco à condição humana, sucumbindo, Conclui-se que a escuta é um instrumento essencial
por vezes, a (de)pressão e ao desejo perdido de do trabalho clínico e psicossocial, na medida em
seus ideais por não corresponderem às exigências que falar pressupõe um endereçamento ao outro
da cultura de sua época. e, portanto, um engendramento do laço social. A
escuta clínica oportuniza ao sujeito falar de si e
Foi possível compreender que a psicanálise, por sua do seu sofrimento, dando mobilidade ao campo
vez, interpreta os estados depressivos como sintomas do simbólico e aos profissionais da saúde, uma vez
que podem se manifestar em qualquer momento que lhes possibilita mais sensibilidade no trato com
da vida do sujeito considerando a sua inserção na o sofrimento dos sujeitos. A escuta psicanalítica,
cultura. Ao lado disso, percebeu-se que os mal- no campo da saúde mental, entra como uma das
estares contemporâneos são rapidamente tratados práticas dentre tantas outras de tratamento nesse
como uma possível doença, como o que ocorre na contexto, posicionando-se de forma distinta na
depressão. Reconhece-se dessa forma que lidar contemporaneidade diante das novas formas de
com os mal-estares na sociedade contemporânea subjetivações, dos sofrimentos, ou seja, dos sintomas
parece não ser tarefa fácil, levando os sujeitos a enquanto efeitos do social.
fazerem escolhas que aliviem o sofrimento de forma
rápida, na mesma rapidez do tempo no qual se
vive. O que se observa é que a contemporaneidade
pode ser vista como uma era que não favorece um
“tempo para sofrer”, assim como não há tempo REFERÊNCIAS
para o sujeito se envolver com o seu próprio mal-
estar, buscar suas causas, responsabilizar-se pelo 1. Sigmund F. O mal-estar na civilização (1931). In:
seu sintoma e construir novas maneiras de lidar com Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas
ele. Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago;
2006
Na tentativa de extirpar o mal-estar, busca-se soluções
rápidas que não permitem qualquer elaboração 2. Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de
subjetiva, lançando mão de medicamentos Janeiro: Contraponto; 1997
psicotrópicos como alternativa possível para os
mal-estares. Nesse contexto, surge o fenômeno 3. Bauman Z. O mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de
da medicalização do sofrimento, tão facilmente Janeiro: Jorge Zahar; 1998
observado nos dias de hoje. Uma medicalização
4. Tavares LAT, Hashimoto F. A relativa legitimidade
(des)medida na intensidade do sofrimento, haja da depressão na atualidade: contribuições para uma
vista que quanto maior a dor, aqui compreendida ética psicanalítica do sujeito. Lat. Am. Journal Of Fund.
como dor de existir, mais recursos farmacológicos Psychopath. 2010;7(1):88-100
são usados, tendo em vista que o sujeito busca estar
em acordo com alguns imperativos da sociedade 5. OMS. Organização Mundial da Saúde. Relatório
atual: Não sofra! Satisfação já! Seja feliz! Mundial da Saúde. Saúde mental: nova concepção,
nova esperança [Internet]. Disponível em: http://www.
É importante frisar que não se buscou resumir who.int/whr/2001/en/whr01_djmessage_po.pdf
os sujeitos aos seus sintomas, nem desconsiderar

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