Político do Marxismo
Gabriel Teles
Felipe Andrade
As ideias não são autônomas, não surgem do nada; abstrair este pressuposto
fundamental, é não perceber a realidade concreta dos seres humanos que as
produzem. Como bem disse Marx (1986), não é a consciência dos seres
humanos que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência. Nesse sentido, percebendo que as ideias, ou
melhor, a consciência está condicionada ao modo de produção e reprodução
da vida material dos indivíduos, como podemos apreender o significado
histórico e político do Marxismo? A que(m) serve esta teoria? Partindo destas
reflexões iniciais, podemos avançar no seu desenvolvimento histórico, tanto
em nível geral (o marxismo) quanto em nível particular (Karl Marx e Rosa
Luxemburgo), buscando uma breve síntese do legado marxista para a análise
do fenômeno social e da busca pela transformação social e emancipação
humana. Este é o percurso do presente escrito.
À guisa de introdução
O marxismo aparece como uma grande teoria de nosso tempo. Sem dúvidas,
sua influência é perceptível em quase todas as ciências que tratam e se
debruçam sobre os fenômenos sociais e, ao mesmo tempo, sua presença se
estende também sobre os círculos militantes políticos que anseiam pela
transformação social. A sua origem remonta à metade do século XIX, onde
sua essência foi esboçada, sobretudo por Karl Marx, e desenvolvida e
aprofundada por outros autores ao longo do século XX e XXI. Contudo, por
mais que muitos grupos e indivíduos tenham se autoproclamado marxistas,
poucos foram os que desenvolveram e atualizaram essa teoria. Isso se deve ao
caráter de classe, perspectiva, mentalidade e, sobretudo, ao processo histórico
de luta de classes e do movimento operário. Assim, a deformação, má-
interpretação e a retirada do caráter revolucionário dos escritos marxistas é o
que se apresenta, inclusive para muitos militantes honestos, como o
“verdadeiro marxismo”.
O que é o marxismo?
O marxismo é reivindicado por um conjunto de correntes políticas,
filosóficas, científicas que se advogam como sendo marxistas. Por este
ângulo, dada as diferenças de perspectiva, a definição do marxismo é feita de
formas distintas5, inclusive em antagonismo entre elas. Não é nosso intento
aqui ser seduzido pela ideologia do relativismo e aceitar todas as definições
como válidas, já que partimos da perspectiva que a teoria deve expressar a
realidade, e esta é única, não há mais de uma. Portanto, como podemos ter
uma correta definição do marxismo? É necessário, pois, buscar uma definição
ontológica do marxismo (VIANA, 2012), percebendo a sua essência a partir
do materialismo histórico-dialético:
Podemos dizer que o materialismo histórico-dialético é uma ontologia histórica que não se ilude
com o discurso ou o dado empírico e busca ver o que está oculto tanto em um quanto em outro.
Por conseguinte, a relevância de uma definição ontológica do marxismo é evidente: somente
assim se pode compreender o verdadeiro caráter do marxismo. O resto pode ser colocado no
depósito das ideologias (VIANA, 2012, p 24).
Por este ângulo histórico, como podemos observar, se as ideias são produtos
históricos e sociais e se transformam com o desenvolvimento das lutas
sociais, então a dinâmica do pensamento “marxista” muda com a ascensão e
declínio da luta operária. Se é verdade que o marxismo ganha corpo e avança
em períodos de ascensão da luta operária, então sua definição deverá cair
sobre este postulado, como bem disse Korsch: o marxismo é a expressão
teórica do movimento revolucionário do proletariado. Esta definição do
marxismo coloca em evidência simultaneamente sua forma (teoria) e seu
conteúdo (expressão do movimento operário), posicionando-se como uma
teoria revolucionária que busca analisar a sociedade em sua totalidade a partir
da realidade concreta na perspectiva do proletariado (já que nenhuma ideia é
neutra). Buscando não tão-somente interpretar o mundo social, mas
transformá-lo, tendo em vista a superação das contradições capitalistas e
abolição das classes sociais; a aurora da humanidade, ou seja, sua
emancipação.
Karl Marx
Karl Marx (1818-1883) é provavelmente um dos pensadores mais deturpados
na história da humanidade. Logo depois de sua morte, o seu legado se tornou
alvo de disputas das mais diversas organizações que diziam representar o
movimento operário, como ideólogos da socialdemocracia alemã (Karl
Kautsky, Bernstein), do bolchevismo (Lênin, Trostsky, Stálin), entre outros
diversos pensadores que estiveram vinculados à burocracia e à
intelectualidade, ambas classes sociais antagônicas à perspectiva do
proletariado. Além disso, ele viveu uma vida miserável por alguns anos da
sua vida, escrevendo sobre o capital, sem possuir o suficiente para manter a
sua família, contando sempre com Engels que o ajudava na medida do
possível. Porém, apesar de tantas contradições em sua vida, Marx ainda
permanece um dos pensadores mais influentes na história da humanidade,
podendo ser estudado em áreas da economia, história, literatura, teatro,
sociologia, entre outras, o que demonstra a sua importância e o caráter não
disciplinar (ou especializado) do seu pensamento8.
A cronologia das obras de Marx segue a sua trajetória de vida e sua relação
com o movimento operário. A sua carreira de jornalista, seguida pela
desistência da carreira universitária, logo após se formar em Direito pela
Universidade de Bonn, foi sempre conturbada, valendo sempre breves exílios
em diversos lugares. Assim, Marx começou seus primeiros escritos
jornalísticos na Gazeta Renana, versando sobre a liberdade de imprensa e a
religião na política, em 1842. Em seguida, junto com sua esposa Jenny,
decidiu emigrar para Paris em 1843. Lá começou a colaborar com o jornal de
Arnold Ruge, escrevendo dois artigos chamados de Sobre a Questão Judaica
e Crítica da Filosofia de Hegel – Introdução9, que lhe valeram uma ruptura
com Ruge. Desse momento, Marx esboçou os primeiros rascunhos de sua
posterior concepção materialista da história, já colocando a emancipação
humana e o proletariado como agente da história. Ainda nesse mesmo ano em
Paris, estudando Economia Política, escreveu os Manuscritos de Paris,
também conhecido como Manuscritos Econômico-Filosóficos, influenciado
também por Engels, que viera a conhecer por meio de um artigo deste sobre
economia política, e pessoalmente no final do ano.
Nos três anos seguintes (1844-1848), Marx ficou na Bélgica e passou alguns
meses em Londres por intermédio de Engels. Este apresentou a Marx à
chamada Liga dos Justos, com sede originalmente em Paris. No ano de 1845,
na tentativa de ajustar a sua consciência filosófica com as influências de
Feuerbach e Hegel, escreveu a obra A Ideologia Alemã. À primeira vista, ela
não tinha a intenção de ser publicada, servindo apenas como rascunhos;
porém, publicada mais tarde em 1942 (na União Soviética), essa obra
representa uma maior sistematização da concepção materialista da história,
servindo como fundamental para a compreensão do pensamento marxista.
Ainda em Bruxelas, Karl Marx desenvolveu suas atividades políticas,
conhecendo alguns importantes pensadores do movimento operário, tais
como Weitling, Proudhon (com quem traçou polêmica disputa, descrita na
obra Miséria da Filosofia, em 1847), Bakunin, entre outros. Na Liga dos
Justos, Marx e Engels ao se aproximarem, redigiram um dos principais
panfletos sobre a revolução que estava a acontecer no horizonte de toda a
Europa no ano de 1848. Este panfleto foi chamado de Manifesto Comunista,
que representa o chamado da Liga Comunista (antiga Liga dos Justos) para a
luta do proletariado. Um panfleto histórico e que resume bem a síntese
teórica a que Marx tinha chegado até aquele momento de sua vida.
Logo após o ano de 1848, Marx teve então o seu grande exílio: seguiu-se para
Londres, onde ficaria até 1856. Nesse período de imensas dificuldades
financeiras, Marx diminuiu um pouco as suas atividades políticas, para tentar
se dedicar ao estudo do capitalismo, em um livro sobre Economia Política.
Dedicava-se horas e horas na biblioteca de Londres, lendo livros dos
economistas da época, como Adam Smith e David Ricardo. Nesse tempo a
sua saúde começou a ficar debilitada, chegando a condições realmente
difíceis de vida, o que acarretou a perda de dois filhos e dificuldades também
para escrever. No entanto, ainda recebendo ajuda de Engels e contribuindo
com vários jornais, como por exemplo, o New York Daily Tribune, Marx
conseguiu terminar no final da década de 50, a sua primeira parte da futura
obra O Capital, chamada de Contribuição à Crítica da Economia Política.
Além disso, nesse tempo, ele deixou vários rascunhos dos seus estudos que
foram publicados como Grundrisse. No começo da década de 1860, Marx
conseguiu melhorar a sua condição financeira por meio de uma herança que
recebera da família, e em 1867, publicou o primeiro volume dos seis que
planejava lançar, da análise do modo de produção capitalista. Esse primeiro
volume da obra O Capital foi o legado teórico que Marx deixou no final de
sua vida, pois não conseguiu mais completá-lo pela debilidade na sua saúde
devido a uma vida tão agitada.
Diante de toda essa trajetória e relação com o movimento operário que Karl
Marx deve ser compreendido, lido e utilizado como homem do seu tempo,
com suas falhas, limitações, mas também com inúmeros méritos. Na
expressão do pensador Karl Korsch, aplicando o marxismo em seu
desenvolvimento histórico, Marx representou a primeira expressão do
movimento revolucionário do proletariado, e assim ele deve ser
compreendido para todos os que dizem segui-lo. O marxismo não deve servir
como uma ideologia, ou seja, uma falsa consciência, não expressão do
movimento operário, utilizada por partidos políticos (expressão da burocracia
partidária) ou militantes dogmáticos; ele deve representar apenas um
caminho, instrumento teórico que deve expressar a atividade revolucionária,
guia imprescindível para a transformação social. A emancipação humana é o
que permeia a atividade prática, e o marxismo é a teoria insuperável dos
nossos tempos que apenas nos aponta um horizonte, em que mais do que
nunca devemos transformar o mundo.
Rosa Luxemburgo
Uma militante coerente com os princípios entre meios e fins, os meios
revolucionários e a realização da sociedade comunista. Este seria o lema
fundamental que poderia, resumidamente, descrever a vida dessa autora.
Rosa Luxemburgo (1871-1919) nasceu na Polônia e iniciou sua militância
política em 1882, no Partido do Proletariado. Por causa da repressão política
em Varsóvia, teve que se mudar para a Suíça, estudando Direito e Economia
Política, para logo depois terminar o seu doutorado com a tese sobre “O
Desenvolvimento Industrial na Polônia”, em 1898. Podemos dizer que a sua
intensa atividade política que vai até o final da sua vida começa de certa
forma com a sua inserção no Partido Social Democrata Alemão (SPD), em
1899. A partir disso, a jovem Rosa Luxemburgo, mulher de origem judia e
polonesa, começa as suas acaloradas discussões no maior partido “operário”
da Europa.
A vida de Rosa Luxemburgo foi marcada por inúmeras rupturas que serviram
como aprofundamento, na direção de uma aproximação cada vez maior com
o movimento real do proletariado. Assim, em 1900, é publicado seu primeiro
grande panfleto Reforma Social ou Revolução?, direcionado a um dos
destacados dirigentes do SPD, Eduard Bernstein. Este que defendia a tese do
socialismo evolucionista preconizava que através de sucessivas reformas,
chegaríamos a uma sociedade comunista. Dessa forma, Rosa compreendia do
revisionismo bernsteiniano um antídoto contra a luta operária, restringindo-a
apenas à luta parlamentar, ou seja, nada marxista. Portanto, o revisionismo
representava o abandono do movimento operário, e consequentemente, o
abandono da revolução.
A sua breve vida não permitiu que ela alcançasse uma maior radicalidade
possível, proporcionando uma crítica mais acabada sobre os partidos políticos
e o bolchevismo que desempenhou papel contrarrevolucionário na Revolução
Russa. No entanto, Rosa Luxemburgo ainda continua uma pensadora
fundamental para o marxismo, retomando aquilo que é fundamental em
Marx, o comunismo como movimento real da classe trabalhadora e, portanto,
obra dela mesma. Para chegar nesse objetivo, apenas os meios
revolucionários podem ser coerentes com fins revolucionários.
Referências bibliográficas
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1 Apesar de nunca aceitar essa adjetivação, posto que em seu tempo era uma forma
pejorativa de taxar as pessoas “próximas” e “adeptas” das ideias de Marx em sua época.
2 Lukács, neste texto, polemiza com Oswald Splenger que tenta criticar e superar Marx
em seu livro Prussianismo e Socialismo.
3 Podemos definir o regime de acumulação como “um determinado estágio do
desenvolvimento capitalista, marcado por determinada forma de organização de
trabalho, determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional”
(VIANA, 2009: p. 24)
4 Compreendemos ideologia nos mesmos termos de Marx: falsa consciência
sistematizada (MARX, 1991)
5 Isto ocorre inclusive entre os não-marxistas, já que não há, em grande parte, uma
compreensão da concepção marxista e de seus autores.
6 “Marx continuou e completou as três principais correntes de ideias do século XIX,
que pertencem aos três países mais avançados da humanidade: a filosofia clássica
alemã, a economia política clássica inglesa e o socialismo francês, ligado às doutrinas
revolucionárias francesas em geral (Lênin, 1985, p. 15).”
7 Marxismo e Filosofia, obra em que Korsch fundamenta a constituição das fases do
Marxismo, foi escrita no ano de 1923, ou seja, no início do século passado. Isto explica
esta curta periodização.
8 No artigo do teórico Karl Korsch denominado de “A concepção Materialista da
História”, faz-se uma distinção entre a Teoria de Marx e a Ciência burguesa. Assim, a
dificuldade de compreensão daquela está na “dificuldade insuperável para a
epistemologia burguesa (...) em que o marxismo não pode ser considerado como uma
‘ciência’, mesmo que se dê a esta palavra o sentido burguês mais amplo, que
compreende inclusive a filosofia mais especulativa” (KORSCH, p. 123: 2008). Cf.
Marxismo e Filosofia, Karl Korsch.
9 Nesse artigo ele já colocava a necessidade da existência de uma classe radical na
sociedade civil que poderia levar a uma emancipação humana, ou seja, o proletariado.
Logo, podemos observar que nos primeiros escritos de Marx o proletariado já aparece
como a classe revolucionária de nossa época.