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YASMINN BARBOSA

DIREITO CIVIL - FAMÍLIAS


O Direito delineia a família, mas reconhece e trata aquela situação que
ele próprio considera família. Na medida em que o Direito fixa o entendimento
do que é família, paralelamente já determina o que não é. Diante do
desenvolvimento social, alcançam-se múltiplas formas familiares e, portanto, é
possível que o direito não acompanhe tal movimento ao definir o que família seja.
EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA FAMILIAR
DA FAMÍLIA ROMANA A CODICISTA
Na cidade antiga, a religiosidade é a condicionante e, assim, circunscreve
também a família. A família romana é descrita como a comunidade de culto dos
mortos. Em cada grupo, antepassados a serem reverenciados representavam a
chamada religião doméstica. Em face disso, torna-se inteligível a necessidade
de pessoas para o culto, formulando-se, então, o casamento como assento
dessa família.
O casamento era, antes de mais nada, solenidade religiosa mediante a
qual a mulher era afastada, definitivamente, da sua inicial religião doméstica –
representada pelo pai – para ingressar em outra, a do marido. O casamento tinha
caráter indissolúvel.
O parentesco tinha exclusiva natureza masculina. Aos homens
transmitiam-se a família e o culto, isso porque as mulheres não permaneciam na
entidade familiar originária. A autoridade familiar também se fundava no homem,
pois nele se encontrava a religião.
Em síntese, é possível dizer que, para os romanos, a família era uma
comunidade instituída pelo casamento: solenidade religiosa pela qual, unidos
homem e mulher, obtinha-se a descendência tão necessária à preservação do
culto. Em consequência, a situação feminina resumia-se à função reprodutiva e
os filhos restringiam-se a recurso para continuidade da religião. Ao revés, a figura
masculina concentrava a autoridade do grupo, pois o homem garantia o culto.
Com o iluminismo, o code foi formulado. O importante papel ocupado, no
Direito Romano, pela chamada religião doméstica foi preenchido, a partir de
então, pelo patrimonialismo. Antes a família justificava-se para manter o culto e,
em vista disso, valia-se da propriedade privada. Já nesse novo momento
histórico, a família formava-se para a aquisição de patrimônio. Alterou-se o
escopo, tornando fim o que era simples meio.
Isso não significa dizer que a influência religiosa cessou. O que se
extinguiu foi a ideia de veneração dos antepassados como sacramento a
fundamentar as formações familiares. O cristianismo colocava-se como
legitimador da constituição familiar. Tanto era assim que a família codicista
permaneceu sendo considerada aquela oriunda do casamento.
O Código Civil de 1916, da mesma forma, definiu como família o
casamento. A partir disso, foi pautada toda a estrutura jurídica direcionada à sua
proteção. O casamento fundava a família legítima. A reprodução também se
manteve como objeto propulsor da família. Casava-se para obter filhos, como
ocorria em Roma. Os filhos tornavam-se importante força de trabalho para isso
destinada, servindo, ainda, através da sucessão, à manutenção desse
patrimônio na família. A família era, assim, caracteristicamente hierarquizada,
patriarcal.
A mulher era considerada relativamente incapaz, após o casamento, e
carecia de autorização marital para o exercício de certos atos da vida civil. Nem
mesmo sobre os filhos a mulher possuía autoridade. O pátrio poder tinha sua
titularidade encontrada no pai.
Essas considerações se aplicavam aos filhos nascidos durante a união
conjugal. Afinal, o modelo codicista de família era exclusivamente matrimonial.
Eventuais nascidos de relações extraconjugais adulterinas não obtinham
reconhecimento jurídico. Considerados ilegítimos, não auferiam proteção do
ordenamento. Pior, era-lhes negada a constituição de paternidade.
O Código Civil impunha a preservação da família matrimonial mediante
um jogo de presunções e proibições legais, mesmo em face de evidências. A
família deve ser preservada a todo custo. O casamento, como regra, não poderia
ser extinto.
A tutela jurídica destinava-se ao patrimônio, de forma extremada, em
detrimento dos sujeitos. Pouco importava a satisfação pessoal dos sujeitos
componentes da entidade. A harmonia familiar era entendida como a situação
em que cada um dos seus membros cumpria a função que lhe era destinada,
colaborando para o alcance dos fins patrimoniais. Em suma, matrimonial,
hierarquizada e patrimonial: assim se entendia a família sob os ditames da
codicística.
FATOS QUE DESMENTIRAM OS CÓDIGOS
Toda essa sistemática codicista suprademonstrada, ainda que guardasse
coerência teórica, não estampava a conjuntura social havida. Na verdade, pode-
se mesmo dizer que o ocorrido era exatamente o oposto: em vez de a realidade
social se refletir na jurídica, foi a realidade jurídica que se impôs à social.
Um modelo era imposto: a família fundada no matrimônio; porém, vários
outros modelos eram reais: famílias desprovidas dessa origem. A família
matrimonializada e patriarcal existiu na conjuntura social brasileira, mas,
concomitante a ela, haviam outras estruturações parentais.
A família matrimonial sofre maior abalo quando afastada sua
indissolubilidade, em 1977, com a Emenda Constitucional nº 9 e a Lei do
Divórcio. Tal lei representou uma inicial desobstrução da rigidez normativa em
termos familiares. Não se pode negar que demonstrou o reconhecimento do
desacerto em resumir o entendimento da família segundo a concepção religiosa,
o que foi reforçado com o arranjo dos fatos havidos após sua entrada em vigor.
Família não é mais apenas casamento, não é hierarquia, patriarcalismo,
tampouco patrimonialismo. Com isso, a família não se enquadra mais na moldura
oferecida pelo Código Civil de 1916. Resta saber, então, o que é a família.
FAMÍLIA: ATUAL SEMÂNTICA E RECONHECIMENTO CONSTITUCIONAL.
Com o passar de tantos fatos sociais, a família parece ter sido despida do
invólucro que a tornava uma entidade autônoma e que impedia que recebessem
atenção os que a compunham. A família passa por uma mudança de concepção:
da natureza transpessoal à repersonalização, o que significa dizer que as
pessoas que se encontravam inferiorizadas, reduzidas à consecução dos
objetivos próprios da instituição familiar, sobrepõe-se, tornam-se destaque,
chamando para sai a proteção jurídica.
A ascendência feminina, o reconhecimento de interesses dos filhos, a
admissão do divórcio... a prioridade é alterada e com ela toda a conjuntura
familiar. O que mais interessa é promover o pleno crescimento das pessoas, e a
família aparece como primeiro e principal ambiente para a consecução de tal fim.
Por isso, costuma-se afirmar que a família atual se encontra funcionalizada, ou
seja, serve enquanto exerce a função de mediar e sustentar a completa formação
pessoal de seus componentes.
Resultado imediato desse novo entendimento é a dissociação entre
família e casamento. Postos como sinônimos pela concepção codicista, a
automática equivalência dos termos é superada. Significa dizer que família não
envolve necessariamente casamento, embora a recíproca possa ser verdadeira.
O casamento continua sendo uma forma de constituição familiar, porém já não
é mais a única.
Portanto, decai a exclusividade da família matrimonial. Constata-se que é
possível formar uma família mediante outra estrutura que não o casamento.
Aliás, é possível formar uma família mediante outras tantas e variadas estruturas,
contanto que se verifiquem os requisitos básicos da nova acepção que o verbete
comporta.
Com o Código Civil de 2002 o direito de família sofreu avanços e
retrocessos. Dentre as inovações verificadas, algumas aniquilam a postura
antiquada do Código de 1916, como o artigo 1565 e o artigo 1631. O CC/02 foi
cuidadoso em reafirmar a igualdade constitucional. Havidos ou não da relação
de casamento, naturais ou não, todos os filhos possuem os mesmos direitos,
não se admitindo quaisquer discriminações nesse aspecto.
Contudo, o CC/02 também mantém algumas falhas do código anterior,
como a ideia permanente de família legítima advinda do matrimônio. Não se
pode esquecer que o casamento e a união estável são formas familiares
diferentes, cada uma com sua particularidade.
Quanto à família Monoparental, aquela formada por qualquer dos pais e
seus descendentes, a situação parece pior. Ela não mereceu sequer menção no
texto codificado. Quando muito, valendo-se de esforço hermenêutico na tentativa
de lhe destinar a tutela jurídica descrita é possível entende-la incluída na
expressão entidade familiar.
DIREITOS DAS FAMÍLIAS
A família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio
social, cuja estruturação se dá através do direito. Trata-se de uma construção
social organizada através de regras culturalmente elaboradas que conformam
modelos de comportamento. O intervencionismo estatal levou à instituição do
casamento: convenção social para organizar os vínculos interpessoais.
Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem
aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo
que se convencionou chamar de matrimônio. O núcleo familiar dispunha de perfil
hierarquizado e patriarcal.
A família é o primeiro agente socializador do ser humano, sendo a base
da sociedade e, por essa razão, recebe especial atenção do Estado. Sempre se
considerou que a maior missão do Estado é preservar o organismo familiar sobre
o qual repousam suas bases.
O formato hierárquico da família cedeu lugar à sua democratização, e as
relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo. É preciso demarcar
o limite de intervenção do direito na organização familiar para que as normas
estabelecidas não interfiram em prejuízo da liberdade do “ser” sujeito. Ainda que
tenha o Estado interesse na preservação da família, cabe indagar se dispõe de
legitimidade para invadir a auréola de privacidade e de intimidade das pessoas.
O Código Civil anterior, que datava de 1916, regulava a família do início
do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em Sua versão
original, trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao
grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinção entre
seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem
casamento e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para
excluir direitos.
A evolução da família forçou sucessivas alterações na legislação. A mais
expressiva foi o Estatuto da Mulher Casada, que devolveu a plena capacidade à
mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a
propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto de seu trabalho.
A instituição do divórcio acabou com a indissolubilidade do casamento,
eliminando a ideia de família como intuição sacralizada. A CF/888 instaurou a
igualdade entre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando
a proteger de forma igualitária todos os seus membros. Estendeu igual proteção
à família constituída pelo casamento, bem como a União Estável entre homens
e mulheres e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes,
que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos
filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmo
direitos e qualificações. Após a Constituição, o Código Civil perdeu o papel de
lei fundamental do direito de família. O atual CC procurou atualizar os aspectos
essenciais do direito de família, mas não deu o passo mais ousado: operar a
subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde
sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional.
Procedeu o legislador constituinte ao alargamento do conceito de família,
calcado na nova realidade que se impôs, emprestando juridicidade ao
relacionamento existente fora do casamento. Afastou da ideia de família o
pressuposto do casamento, identificando como família também a união estável
entre um homem e uma mulher. A família à margem do casamento passou a
merecer tutela constitucional porque apresenta condições de sentimento,
estabilidade e responsabilidade necessários ao desempenho das funções
reconhecidamente familiares. Nesse redimensionamento, passaram a integrar o
conceito de entidade familiar as relações monoparentais: um pai com seus
filhos.
O constituinte de 88 consagrou, como dogma fundamental, antecedendo
a todos os princípios, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim a
superposição de qualquer instituição à tutela e seus integrantes. Foram
eliminadas injustificáveis diferenciações e discriminações que não mais
combinam com uma sociedade democrática e livre.
A mudança da sociedade e evolução dos costumes levaram a uma
verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. O
pluralismo das relações familiares ocasionou mudanças na própria estrutura da
sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do
casamento, mudando profundamente o conceito de família. A CF viu a
necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das
instituídas pelo casamento. Não se pode deixar de ver como família a
universalidade dos filhos que não contam com a presença dos pais. Dentro
desse aspecto mais amplo, não cabe excluir os relacionamentos de pessoas do
mesmo sexo, que mantêm entre si relação pontificada pelo afeto, a ponto de
merecerem a denominação de uniões homossexuais.
O elemento que diferencia a família, que a coloca sob o manto da
juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com
identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento
mútuo. O novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização,
da afetividade, de pluralidade e do eudemonismo (busca de uma vida feliz, seja
em âmbito individual seja coletivo, o princípio e fundamento dos valores morais,
julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à
felicidade).
A Constituição, ao esgaçar o conceito de família, elencou como entidade
familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF
226, §4). O enlaçamento dos vínculos familiares constituídos por um dos
genitores com seus filhos, no âmbito da especial proteção do Estado, atende a
uma realidade que precisa ser arrostada. Tais entidades familiares receberam
em sede doutrinária o nome de família monoparental, como forma de ressaltar
a presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar.
PRINCÍPIOS DO DIREITO DAS FAMÍLIAS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA FAMÍLIA
A Constituição Federal consagrou como fundamentais os valores sociais
dominantes. Os princípios que regem o direito de família não podem distanciar-
se da atual concepção de família.
MONOGAMIA
Não se trata de um princípio do direito estatal de família, mas sim de uma
regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas
sob a chancela do Estado. Não há como considerar a monogamia como princípio
constitucional, pois a Constituição não a contempla. A monogamia é considerada
função ordenadora da família.
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo
afirmado já no primeiro artigo da Constituição. Trata-se de um princípio
extremamente universal. É um macro princípio do qual se irradiam os demais:
liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade.
A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para
florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente
de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve
as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a
união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum – permitindo o
pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideias
pluralistas, democráticas e humanistas.
Ora, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é
direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a
existência digna. É direito constitucional do ser humano ser feliz e dar fim àquilo
que o aflige sem inventar motivos. Desse modo, também o direito de buscar a
separação e o divórcio estão amparados no princípio da dignidade humana, nada
justificando a resistência do Estado ao impor prazos ou exigir a identificação de
causas para pôr fim ao casamento.
PRINCÍPIO DA LIBERDADE
A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou grande
preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade
e à liberdade especial atenção. Os princípios da liberdade e igualdade, no âmbito
familiar, são consagrados em sede constitucional. Todos têm a liberdade de
escolher o seu par, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser
para constituir sua família. A isonomia de tratamento jurídico permite que se
considerem iguais marido e mulher em relação ao papel que desempenham na
chefia da sociedade conjugal. Também, na União Estável, é a isonomia que
protege o matrimônio entre personagens que disponham do mesmo status
familiar.
A liberdade floresceu na relação familiar e redimensionou o conteúdo da
autoridade parental ao consagrar os laços de solidariedade entre pais e filhos,
bem como a igualdade entre os cônjuges no exercício conjunto do poder familiar
voltada ao melhor interesse do filho. Em face do primado de liberdade, é
assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável
hétero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento
e a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio.
A possibilidade de alteração do regime de bens na vigência do casamento sinala
que a liberdade, cada vez mais, vem marcando relações familiares.
PRINCÍPIO DA IGUALDADE E RESPEITO À DIFERENÇA
A supremacia do princípio da igualdade alcançou os vínculos de filiação,
ao ser proibida qualquer designação discriminatória com relação aos filhos
havidos ou não da relação de casamento ou por adoção. Também a respeito do
princípio da igualdade é livre a decisão do casal sobre o planejamento familiar,
sendo vetada qualquer tipo de coerção por parte do Estado, que deve propiciar
os recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito.
A relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não pela
pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus
membros, caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor. A organização e a
própria direção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e
deveres dos cônjuges, tanto que compete a ambos a direção da sociedade
conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e
atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher. Também em nome
da igualdade é permitido a qualquer dos nubentes acrescer ao seu sobrenome
do outro. É acentuada a paridade de direitos e deveres do pai e da mãe no
respeitante à pessoa e bens dos filhos, nenhum dos genitores tem preferência.
A recomendação é pela guarda compartilhada, atribuindo-se de modo igualitário
a ambos, que têm similitude de deveres e direitos.
Da mesma forma a desigualdade de gêneros foi banida, e, depois de
séculos de tratamento discriminatório, as distâncias vem diminuindo.
PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio dispõe de
conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da
expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A
pessoa só existe quando coexiste. O princípio da solidariedade tem assento
constitucional.
Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-
se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados
constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que se tratando de crianças e
adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao
Estado o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos
cidadãos em formação.
Os integrantes da família são, em regra, reciprocamente credores e
devedores de alimento. A imposição de obrigação alimentar entre parentes
representa a concretização do princípio da solidariedade familiar. Assim,
deixando um dos parentes de atender a obrigação parental, não poderá exigi-la
daquele a quem se negou a prestar auxílio.
PRINCÍPIO DO PLURALISMO DAS ENTIDADES FAMILIARES
As estruturas familiares adquiriram novos contornos com a CF/88. Nas
codificações anteriores, somente o casamento merecia reconhecimento e
proteção. Os demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade. O
princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o
reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos
familiares.
Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõe a
partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e
envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento
injustificado, é ser conivente com a injustiça.
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL
A CF, ao garantir especial proteção à família, estabeleceu as diretrizes
dos direitos das famílias em grandes eixos, a saber: (a) a igualdade entre
homens e mulheres na convivência familiar, (b) o pluralismo das entidades
familiares merecedoras de proteção e (c) o tratamento igualitário entre todos os
filhos. Essas normas, por serem direito subjetivo com garantia constitucional,
servem de obstáculo a que se operem retrocessos sociais, o que configuraria
verdadeiro desrespeito às regras constitucionais.
A consagração constitucional da igualdade, tanto entre homens e
mulheres, como entre filhos, e entre as próprias entidades familiares, constitui
simultaneamente garantia constitucional e direito subjetivo. Assim, não podem
sofrer limitações ou restrições da legislação ordinária. É o que se chama de
princípio constitucional da proibição do retrocesso social. É evidente que
nenhum texto proveniente do constituinte originário pode sofrer retrocesso que
lhe dê alcance jurídico social inferior ao que tinha originalmente.
A partir do momento em que o estado, em sede constitucional, garante
direitos sociais, a realização desses direitos não se constitui somente em uma
obrigação positiva para sua satisfação – passa a haver também uma obrigação
negativa de não se abster de atuar de modo a assegurar a sua realização. O
legislador precisa ser fiel ao tratamento isonômico assegurado pela Constituição,
não podendo estabelecer diferenciações ou revelar preferências. Todo e
qualquer tratamento discriminatório levado a efeito pelo legislador ou pelo
judiciário mostra-se flagrantemente inconstitucional.
Por exemplo, todas as omissões da lei, deixando de nominar a união
estável quando assegura algum privilégio ao casamento, devem ser tidas por
inexistentes. Quando a lei não fala na união estável, é necessário que o
intérprete supra essa lacuna. E quando a lei trata de forma diferente casamento
e união estável, é de se ter simplesmente tal referência como não escrita.
Também afronta a proibição de retrocesso social a omissão do Código Civil em
regular as famílias monoparentais, as quais a CF também assegurou especial
proteção.
PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
O Estado impõe a si obrigações para com os seus cidadãos. Por isso
elenca CF um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir
a dignidade de todos. Isso nada mais é do que o compromisso de assegurar
afeto: o primeiro obrigado a assegurar afeto por seus cidadãos é o próprio
Estado. Mesmo que a CF tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a
palavra afeto não está no texto constitucional. Ao serem reconhecidas como
entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se
constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça
duas pessoas, adquiriu um modelo de família eudemonista e igualitário, com
maior espaço para o afeto e a realização individual.
Com a consagração do afeto como direito fundamental, resta
enfraquecida a resistência dos juristas que não admitem a igualdade entre a
filiação biológica e a socioafetiva. O princípio jurídico da afetividade faz
despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito aos seus
direitos fundamentais. O sentimento de solidariedade recíproca não pode ser
perturbado pela preponderância de interesses patrimoniais. É o salto à frente da
pessoa humana nas relações familiares. São quatro os fundamentos essenciais
do princípio da afetividade:
- A igualdade de todos os filhos independentemente da origem (CF 227,§6)
- A adoção, como escolha afetiva com igualdade de direitos (CF 227 §5 e 6)
- A comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes,
incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família (CF 226 §4)
- O direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do
adolescente (CF 227).
O Código Civil utiliza a palavra afeto somente para identificar o genitor a
quem deve ser deferida a guarda unilateral. Invoca somente a relação de
afetividade como elemento indicativo para definição de guara a favor de terceira
pessoa. Ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação
do afeto a valor jurídico, mister é reconhecer que tímido mostrou-se o legislador.
Os laços de afeto derivam da convivência familiar, e não do sangue.
Assim, a posse de estado do filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico
do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser
alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes da família.
Tem viés externo, pondo humanidade em cada família, compondo a família
humana universa.
A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de
sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família.
Despontam novos modelos de família mais igualitárias nas relações de sexo e
idade, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos
sujeitas à regra e mais ao desejo. A família e o casamento adquiriram um novo
perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existenciais de seus
integrantes. Essa é a concepção eudemonista de família, que progride à
medida que regride o seu aspecto instrumental. A comunhão de afeto é
incompatível com o modelo único, matrimonializado, da família. Por isso, a
afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações
familiares contemporâneas.
O novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos conjugais,
sustentando-se no amor e no afeto. Na esteira dessa evolução, o direito das
famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico
para o afeto.
Talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o princípio
norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade.

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