J. Rentes de Carvalho
Diário
QUETZAL série língua comum I J. Rentes de Carvalho
PAGINAÇÃO: Cabeçalho nº de páginas 293
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BADANA DA CAPA
J. Rentes de Carvalho nasceu em 1930, em Vila Nova de Gaia. Obrigado a
abandonar o país por motivos políticos, viveu no Rio de Janeiro, em São
Paulo, Nova Iorque e Paris, trabalhando para vários jornais. Em 1956
passou a viver em Amesterdão, onde se licenciou e foi docente de
Literatura Portuguesa entre 1964 e 1988. Dedica-se, desde então,
exclusivamente à escrita e a uma vasta colaboração em jornais
portugueses, brasileiros, belgas e holandeses, além de várias revistas
literárias. A sua extensa obra ficcional e cronística tem sido publicada
na Holanda, e recebida com grande reconhecimento, quer por parte da
crítica, quer por parte dos leitores em geral, chegando alguns títulos a
alcançar o estatuto de best-seller. Os seus livros Ernestina, Com os
Holandeses e A Amante Holandesa estão atualmente disponíveis na Quetzal,
que continuará a publicar o conjunto das suas obras.
CONTRACAPA
Um fascinante diário escrito nos anos de 1994 e 1995. Acolhido com grande
entusiasmo na Holanda entre leitores e críticos, Tempo Contado matiza o
relato factual com a mestria estilística da melhor ficção do autor de
Ernestina ou de A Amante Holandesa. Um livro incontornável que apaixonará
também os leitores portugueses.
«Um diário meu não terá a minúcia nem a intimidade das confissões do de
Pepys, ou o veneno destilado nos trinta e dois volumes do de Jouhandeau.
Julgo que será, em factos e pensamentos, um relato do essencial do dia-a-
dia.
Diários daqueles em que se anotam minuciosamente os sentimentos, até
agora só tive um. Na adolescência. Quando meu pai o descobriu e julgou
encontrar nele a provável razão de, com os meus amores, eu ter descurado
o estudo, obrigou-me a ouvir a leitura irónica e declamada que dele fez.
Eu tinha dezasseis anos, a humilhação deixou marcas. Hoje, as ameaças
desse dia e os insultos, as bofetadas que me deu depois, já não contam.
Mas mais que a dor e a humilhação física, o ele ter violado os meus
pensamentos e anseios íntimos foi das coisas que nunca consegui esquecer
ou perdoar»
QUETZAL ave trepadora da América Central, que morre quando privada de
liberdade; raiz e origem de Quetzalcoatl (serpente emplumada com penas de
quetzal), divindade dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria
subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã.
Sexta-feira, 15 de Julho — Houve um tempo em que idealizei a aldeia, que
me parecia uma fonte de virtudes, uma fonte de harmonia e paz. Depois
veio o tempo em que a odiei, porque se assemelhava a um cárcere e o meu
desejo era um só: fugir.
Com a ausência recomecei a idealizá-la e mais tarde esforcei-me por
redescobri-la. Para me embeber do sonho antigo percorri de novo todos os
lugares, procurei ouvir de novo o bater do seu coração. Mas finalmente
tive de me resignar ao irremediável: ela mudou, eu envelheci, somos ambos
personagens secundárias num romance histórico que ninguém vai escrever.
TEMPO CONTADO
DIÁRIO 1994-1995
QUETZAL série língua comum I J. Rentes de Carvalho
Título: Tempo Contado
Autor: J. Rentes de Carvalho
Revisão: Pedro Ernesto Ferreira
Projeto gráfico original: RPVP Designers
Design da capa: Rui Rodrigues . Quetzal Editores
Fotografia da capa: © Paul C. Pet/Corbis
Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda.
Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda.
Unidade Industrial da Maia
© 2010 J. Rentes de Carvalho e Quetzal Editores
[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua
portuguesa, excepto Brasil, reservados por Quetzal Editores]
ISBN: 978-972-564-918-3
Depósito legal: 317 780/10
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1994
Domingo, 15 de Maio — Talvez porque desde a adolescência me desabituei de
festejá-los, os meus aniversários são datas melancólicas. O de hoje não
escapa à regra, tanto mais que o ano que agora começa será para mim, pelo
menos segundo os ditames da lei que rege a vida, o último da meia-idade.
Quando ele findar darei entrada na vasta legião dos reformados, dos
anciãos, dos excedentes, daqueles que quase todos os dias têm consciência
de que até por volta dos quarenta o viver é um direito, daí aos sessenta
se torna uma dádiva, mas em seguida se assemelha muito a um favor do
destino. Bem vistas as coisas, pessoalmente não tenho razões de queixa: o
cérebro funciona como dantes, os músculos pouco perderam do seu tónus, as
charneiras do esqueleto raro me incomodam. Mas quem gosta de viver de
favores?
No torvelinho dos pensamentos causados pela proximidade da data fatal,
ocorreu-me a ideia de a partir de hoje manter durante um ano um diário.
Em parte pelo desejo de assinalar a transição entre as duas fases da vida
que citei. Por outro lado, também, para pelo menos desta vez me obrigar a
uma disciplina a que raramente me tenho dobrado, a de todos os dias
escrever algumas linhas.
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Sem visão clara do que vou fazer — a ideia pode dizer-se recém-nascida —
sei, contudo, que um diário meu não terá a minúcia nem a intimidade das
confissões do de Pepys, ou o veneno destilado nos trinta e dois volumes
do de Jouhandeau. Julgo que será em factos e pensamentos um relato do
essencial do dia-a-dia.
Diários daqueles em que se anotam minuciosamente os sentimentos, até
agora só tive um. Na adolescência. Quando meu pai o descobriu e julgou
encontrar nele a provável razão de, com os meus amores, eu ter descurado
o estudo, obrigou-me a ouvir a leitura irónica e declamada que dele fez.
Eu tinha dezasseis anos, a humilhação deixou marcas. Hoje, as ameaças
desse dia e os insultos, as bofetadas que me deu depois, já não contam.
Mas mais que a dor e a humilhação física, o ele ter violado os meus
pensamentos e anseios íntimos foi das coisas que nunca consegui esquecer
ou perdoar.
Segunda-feira, 16 de Maio — Talvez seja ainda a falta de hábito. Sento-me
com a intenção de anotar os casos do dia e para minha consumição não
encontro senão a rotina do acordar, lavar, comer, sonhar. Pensamento
útil, nenhum. Atividade útil, nenhuma. Mesmo que me pese pouco a tica
etos calvinista da obrigação do trabalho, um dia assim deixa-me com
remorsos.
No NRC^Handelsblad1 de hoje mais uma colaboração minha, a décima carta da
série «Despedida da Holanda», publicada quinzenalmente até ao fim do ano.
Agora que a vejo impressa leio-a com o desprendimento de quem lê um texto
alheio, curioso sentimento que me ficou desde que pela primeira vez vi
uma história minha publicada. Aquilo evidentemente me pertencia, mas fora
criado por um eu escritor que, com o eu leitor, partilhava apenas a
realidade de habitarem ambos
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o mesmo corpo. Continuo a sentir assim e isso torna-me um azedo crítico
de mim mesmo.
Terça-feira, 17 de Maio — Bem pode ser que quando dormimos nos tornamos
sensíveis às ondas ainda desconhecidas que cruzam o universo e
acidentalmente nos transformamos em recetores de mensagens que nem sempre
nos são destinadas. A hipótese, que não me parece totalmente destituída
de probabilidade, ajudaria a explicar o sonho que tive a noite passada,
um dos mais nítidos e mais detalhados de que guardo memória.
Em estado incorpóreo, o que deduzo do facto de alguns transeuntes me
«atravessarem», encontrava-me numa vasta praça numa cidade chinesa. A
época era talvez a de um passado longínquo, porque em redor não se
distinguia qualquer sinal de modernidade: nenhum veículo a motor ou linha
elétrica, e a muita gente presente vestia cabaias de cores sombrias, só
de longe a longe se vendo uma vermelha ou amarela. Passavam carruagens e
carroças puxadas por cavalos de pequeno porte, havia cães farejando em
redor, ouviam-se os ruídos comuns das praças e embora começasse a descer
o lusco-fusco em parte nenhuma havia luz. O pavimento era de lajes
grandes, arredondadas nas bordas, polidas pelo uso, e na praça
encontrava-se um único banco, do qual me aproximei levado por
irresistível curiosidade. Pela magnificência das suas formas, a
preciosidade da madeira e cuidadosamente envernizado como estava, parecia
antes um monumento que um objeto para repouso dos passantes. Em letras
gravadas profundamente no espaldar, estava escrito em inglês: «It is
easier to fight a fish in the water, than the Jesuits in their vineyards»
(«É mais fácil lutar contra um peixe na água, do que contra os Jesuítas
nas suas vinhas»). Sei que li a inscrição sem surpresa e a reli depois
para ter a certeza de que a memorizava. Feito isso acordei abruptamente,
com um desagradável sentimento de me sentir desprendido de mim mesmo.
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Quarta-feira, 18 de Maio — Uma citação do Livro do Desassossego, de
Fernando Pessoa: «A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera
de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde um medidor da forma não
tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O
esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as
condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis e, portanto,
maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a
observância cuidadosa de regras – poucos podiam tentar ser artistas, e
grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida
como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada
qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.»
Olhando para a realidade que nos cerca é impossível contradizer Pessoa.
Sem obedecer a regras e ignorante de que a estética existe, nas últimas
décadas o populus deitou-se a escrever, ciente de que as balbucias do ego
são uma expressão de arte; que dos espasmos da bebedeira, da anorexia
nervosa, do incesto, do amor aos cães, da ecologia — de tudo, afinal,
mesmo os espíritos mais simples podem tirar um livro ou uma obra de arte.
E os editores editam, os museus compram, o populus admira-se e regozija-
se consigo próprio.
Daí que talvez Joyce e Proust, tendo aberto com o seu génio um inesperado
caminho aos sem talento, sejam dos grandes da literatura e
simultaneamente se possam contar entre os seus verdadeiros «malfeitores.»
Freud faz-lhes companhia e Marx, que ajudou a criar as ilusões que se
sabe, completa o quarteto.
Quinta-feira, 19 de Maio — Sessão de autógrafos ao começo da noite na
livraria Dekker van de Vegt em Nijmegen. Estabelecimento espaçoso.
Pessoal amigável. Harrie Lemmens,
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o meu tradutor, espera-me bem-disposto como de costume, com um ar
ligeiramente possessivo e protetor que lhe desconhecia, mas que é
compreensível: além de que ele pode justamente considerar Nijmegen como
território seu, depois de tanto me ter traduzido também eu de certo modo
me tornei propriedade sua.
A mesinha com os livros para autografar está à direita da entrada. Como é
natural avulta nela uma boa pilha de La Coca, que se encontra à venda há
pouco mais de uma semana, e outra da última edição do meu guia de
Portugal.
Sento-me e agora é esperar. Solidário com a minha inconfortável posição
de manequim de vitrina, Harrie senta-se também, a fazer-me companhia. As
pessoas vão chegando, olham e compram, ou só olham. Há os tímidos, que de
longe observam a cena e depois de alguns rodeios se aproximam como que
por acaso, afetando desinteresse.
Chega mais gente. Alguns arriscam um cumprimento, palavras de apreço, e
finalmente surge o inevitável tarado. Com o ar decidido de quem sabe ao
que veio, anuncia-me que quer comprar um exemplar, mas sob uma condição:
que eu escreva numa das páginas em branco um comentário pessoal e de
preferência irónico ou malicioso sobre um escritor vivo.
— Sobre Komrij — sugere ele. — Ou Gerard Reve. Mulisch também serve.
Respondo-lhe mal-humorado com um redondo não. A tentar convencer-me, o
homem diz que estranha a minha atitude, pois até à data escritor nenhum
recusou satisfazer o seu pedido. Atente eu que a minha negativa significa
que não estarei presente na sua interessante, e um dia valiosa, coleção
de volumes comentados.
A vontade que tenho é mandá-lo àquela parte, mas o lugar e a presença
doutros obrigam a que me contenha. Repito-lhe que não e de súbito é como
se estivéssemos numa feira, ele
a gritar:
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- Palavra que não quer escrever? Só umas linhas? Olhe que se arrepende.
Vou-me embora e não compro livro nenhum.
Encolho os ombros e viro-me para um compatriota que espera pacientemente
a sua vez. O homem afasta-se, mas de longe faz ainda um gesto de cabeça a
perguntar se não mudo de opinião.
Com os desvios e o mau tempo a volta a casa leva-me quase duas horas.
Melhor que durante o dia, ao rodar de noite dá-se a gente conta de que a
Holanda é como que uma enorme cidade: sem escuridão, luzes por todo o
lado, por todo o lado sinais de gente. Um conforto e ao mesmo tempo um
sentimento de claustrofobia, a certeza de que me cercam tantas presenças,
milhões delas, num espaço que só consente solidão nas suas piores formas:
a espiritual e a afetiva.
Sexta-feira, 20 de Maio — Amanhã parto para Lisboa e mais tarde irei
passar duas semanas na nossa aldeia, a cumprir a visita semianual que
faço à minha mãe. Em Maio sozinho, de avião. No Outono com a Loekie1, de
carro. Peregrinações que não sei exatamente para que servem, pois mal
quebram a solidão em que ela vive e a mim muitas vezes amarguram.
Filho único, até aos dez ou onze anos ela foi o meu Deus.
Inexplicavelmente tornou-se depois o meu carrasco e para lhe escapar, mal
feitos os dezasseis fugi pela primeira vez de casa. A segunda fuga, aos
dezanove, foi definitiva. Sem todavia alcançar com isso a liberdade por
que ansiava, pois as cadeias continuaram a prender-me. Hoje, falecido o
meu pai onze anos atrás, a nossa relação é menos de mãe e filho que a de
dois velhos que se encontram duas vezes ao ano e partilham algumas
recordações.
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No fundo talvez se mantenha uma réstia do carinho da infância, mas os
nossos caracteres são tão diametralmente opostos, as nossas maneiras de
encarar a vida tão diferentes, que um nada nos põe em pé de guerra. Assim
cada véspera de partida é um momento sombrio, porque sei de antemão que
os conflitos irão fatalmente ocorrer, que grandes e pequenas as
discórdias serão diárias.
Sábado, 21 de Maio — Bem feitas as contas esta deve ser a centésima
vigésima vez que viajo da Holanda para Portugal e o percurso pelo ar,
pela estrada, à ida ou no regresso, tornou-se para mim de uma intensa
monotonia.
O avião saiu de Schiphol por volta das cinco da tarde. Cheio. Assim à
primeira vista mais turistas que outra coisa. Distingue-os o vestuário, a
alegria crispada do começo das férias; juntamente com a expectativa lê-
se-lhes no rosto a vaga desconfiança das coisas más que podem acontecer
quando
a gente se vê longe de casa.
«Neste momento sobrevoamos a cidade de Nantes», anuncia a voz estudada do
piloto. E antes que ele continue, resmungo para mim próprio o que sei que
se vai seguir: «Voamos a uma altitude de trinta mil pés, a temperatura do
ar é de cinquenta graus negativos, dentro de uma hora e vinte e cinco
minutos aterraremos no aeroporto de Lisboa.»
Nos lugares à frente e atrás de mim viaja um grupo de médicos holandeses,
pelo que oiço a caminho dum congresso. Os braços e as pernas do que me
calhou por vizinho, um gigante, transbordam do assento. Pousou uma pasta
sobre os joelhos, sobre a pasta um computador portátil, e à medida que
bate no teclado murmura de modo incompreensível. De vez em quando dirige-
se a um colega para um esclarecimento ou com um comentário.
Regra gerai cuido de verter águas antes do embarque e desta vez também o
fiz, mas aquele muro de carne a barrar a passagem para a coxia e a
retrete estimula-me estranhamente
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a bexiga. Aguento firme. Ele, aliás, parece não se dar conta de haver
alguém sentado ao seu lado. Bate nas teclas. Resmunga. Volta a bater.
Volta a resmungar.
Enquanto voamos sobre o golfo da Biscaia servem-nos uma refeição e o
gigante fecha o computador, pousa a pasta, baixa a prateleira. Come
concentrado, com gestos precisos. De vez
em quando acotovela-me, insensível ao contacto, ou não se querendo dar ao
trabalho de dizer uma palavra de desculpa. Ao terminar limpa a travessa
com um naco de pão. Metodicamente. Come a sobremesa. Bebe o café.
A hospedeira leva os tabuleiros. Levantamos as prateleiras e ele
inesperadamente volta-se para mim e pergunta:
— O senhor negoceia em diamantes?
— Não. Negoceio em literatura.
A resposta deve tê-lo confundido, porque cora e vira a cara.
Volta a pôr a pasta sobre os joelhos, abre o computador. Quando o avião
aterra arruma cuidadosamente os seus pertences e sem um gesto ou uma
palavra desaparece na coxia atrás dos colegas.
Há duas semanas que chove em Portugal. Em Lisboa a chuva cai em bátegas
tão fortes que pouca gente se vê na rua. Meto o carro que aluguei em
direção ao Campo Grande e logo ao alcançar a rotunda sinto-me em casa.
Nada a ver com a cidade, sim com o comportamento dos colegas
automobilistas. Eu, que no trânsito costumo ser disciplinado, vejo-me a
fazer cabriolas, a buzinar, a correr voluntariamente riscos a que nunca
me atreveria fora daqui. Não levanto o punho nem insulto, não vocifero,
mas sinto que participo numa gincana. E os meus compatriotas são
competidores fanáticos. Suicidas. Com uma média semanal de quarenta e
dois mortos, campeões mundiais da matança motorizada. Li que a Venezuela
ocupa o segundo lugar e o Koweit, com duas autoestradas (duas!) tem as
honras do terceiro.
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Contorno a Praça Marquês de Pombal. Em vez de tomar pela estrada do
Estoril, desço a Avenida da Liberdade em direção ao Rossio, meto pela Rua
do Ouro, paro nos semáforos do Terreiro do Paço com o Tejo à minha
frente. Questão de retomar o contacto com a cidade, embora a última
visita date de há quatro ou cinco meses.
Olho as arcadas e os edifícios dos ministérios, parcialmente pintados de
novo. Que me lembre já os conheci amarelados e esverdeados, cor-de-rosa,
cor de tijolo. O meu receio é de que um dia alguma autoridade lhes faça o
que fizeram ao Palácio da Pena em Sintra e os pintem de roxo e amarelo-
torrado.
Lembra-se alguém de que sob a praça se encontra um gigantesco mictório,
com as paredes e os urinóis em mármore? Dezenas de anos atrás a segurança
dos utentes levou a polícia a fechá-los, mas as entradas e as escadinhas
ainda lá estão. Superpatriota que era, o cônsul de Portugal em Amsterdão
nos anos cinquenta costumava afirmar: «Quando os Holandeses me começam a
chatear e a dizer que não temos estradas, que não temos indústria, que
não temos isto nem aquilo... eu respondo-lhes logo: temos a melhor xícara
de café do mundo e os nossos urinóis são de mármore! Podem ir ver ao
Terreiro do Paço.»
Viro à direita para o Cais do Sodré e a Marginal, a estrada que nos vinte
e poucos quilómetros que separam a cidade de Cascais é estatisticamente a
mais mortífera do país. A chuva continua a cair numa cortina cinzenta.
Alguns carros têm os faróis acesos, às vezes desagradavelmente nos
máximos, outros mostram umas lampadazinhas fracas como velas. A maioria
roda sem luz e assim de repente surge do vazio uma carrinha, um
autocarro. Bom para a adrenalina. Das valetas e dos buracos no piso
saltam repuxos lamacentos que durante segundos tomam o para-brisas
totalmente opaco. Por duas vezes escapo a um acidente por pura sorte. Uma
terceira travo a fundo para evitar um camião de gado que sai duma
transversal e só por um fio não esbarro com ele.
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São nove e meia quando chego ao Estoril. O Sol deve ir ainda alto, mas
com as nuvens cerradas faz um escuro de quase noite. Entro na rua que
leva ao hotel, paro o carro, desligo o motor e fico um momento sentado a
tomar consciência de mim mesmo, admirado de ver que as minhas mãos
tremem.
No quadro de Lisboa, Capital Europeia da Cultura a nossa Embaixada em
Haia ofereceu-me a viagem e uma estada de três dias. A razão de me
hospedarem no Estoril - pelo menos a razão que me foi dada — é de ter
sido impossível conseguir alojamento na cidade.
No quarto andar do Hotel Palácio, quando o empregado que carrega as
minhas malas abre a porta do que suponho seja um quarto, fico um momento
interdito e custa-me a entrar atrás do homem. Para esconder o meu
embaraço interrompo bruscamente a explicação que ele começa a fazer dos
interruptores e do minibar, dou-lhe a gorjeta, quase o enxoto.
Aturdido, crente de que houve erro, faço uma inspeção rápida da suíte.
São dois quartos grandes, um salão enorme, uma saleta, dois banheiros, um
hall onde se pode dar um baile, três varandas com vista para o mar. Como
superfície, mais do dobro do nosso apartamento em Amsterdão. Como luxo,
só no cinema. Cadeiras fofas com entalhados dourados, daquelas em que os
presidentes se sentam para as fotografias protocolares. Espelhos a cobrir
as paredes de cima a baixo, duma ponta à outra, de modo que me vejo
multiplicado como no barbeiro e a cada passo movimenta-se comigo uma
infinidade de sósias. Inquietante. Ramos de flores aqui, ali, nos cantos,
nas mesinhas. Quatro televisores. Conto os aparelhos de telefone duas
vezes, porque julgo que me enganei. São de facto dez. Num aparador um
cesto de fruta, uma garrafa de água, uma garrafa de porto vintage. Não há
erro nenhum: o gerente mandou caligrafar elegantemente o meu nome num
cartão em que me dá as boas-vindas e onde se diz ele próprio, com o
pessoal e o hotel à minha inteira disposição para aquilo de que precisar.
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Só que eu não preciso de nada. O preçário, discretamente escondido dentro
de um armário num dos quartos de banho, renova o meu incómodo.
Telefono à Loekie a dizer que cheguei bem, a queixar-me de que chove.
Descrevo-lhe o luxo do aposento, mas ela não acredita, diz que com
certeza exagero. Prometo tirar fotografias e mandar-lhe um postal do
hotel onde poderá ver as «minhas» três varandas.
Dispo-me no quarto de banho. Os espelhos refletem um rosto mortiço, com
as olheiras fundas de quem andou uma noite na pândega — e a noite mal
começou. Entreabro as cortinas. Continua a chover a cântaros. Sobre o mar
agitado sopra um vento de tempestade, mas longe, no poente, distingue-se
uma claridade de bom agouro.
Bebo um golo de água. Tiro do minibar uma barra de chocolate e como-a
sentado na beira da cama, hesitando em ligar a televisão. Não ligo.
Percorro os quartos a apagar as luzes, mas enquanto uns interruptores as
apagam os outros voltam a acendê-las. Demoro a descobrir o sistema e o
que noutra altura talvez parecesse cómico só serve para me aborrecer.
Deito-me, mas em vez do colchão duro que esperava tenho a surpresa de
cair numa espécie de cova, séria ameaça para a coluna vertebral. Recolho
as travesseiras das outras camas e com eles nivelo mais ou menos o buraco
da minha. Leio meia dúzia de páginas de A Wày in the World, o último
livro de Naipaul, irritante mistura de talento e pedantaria. Apago a luz
da mesinha-de-cabeceira. Levanto-me a espreitar se a claridade do poente
aumentou, mas só enxergo uma escuridão de breu. Vou aos apalpões para o
quarto de banho, acendo a luz, divido a meio uma pílula de Valium,
engulo-a com um copo de água e desejo-me boa noite.
Domingo, 22 de Maio — Uma das razões desta viagem é escrever um ensaio
sobre Eça de Queirós para o número da revista Oog in ’t zeil que será
dedicado a Lisboa, e o meu intento é ilustrar o texto com fotografias
dalguns locais lisboetas
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relevantes na vida e na obra do escritor que exerceu uma influência
determinante na minha formação.
Tomo o pequeno-almoço numa sala soturna onde o número de empregados
excede o dos hóspedes, uns e outros visivelmente enfastiados. De volta à
suíte meto num saco as duas máquinas que trouxe comigo, meia dúzia de
rolos e a lista dos locais a fotografar. Entre cemitérios, hotéis,
igrejas, cafés, restaurantes, ruas e vielas, são cinquenta e um ao todo.
Noutra lista tenho os nomes atuais da toponímia antiga, e numa planta do
centro de Lisboa marco os lugares que vou fotografar hoje.
A chuva cai ainda sem cessar, mas é provável que de vez em quando surja
uma aberta. Rumo para a cidade pela autoestrada, por entre um trânsito
pacato, e estaciono o carro no parque subterrâneo dos Restauradores. No
centro comercial da estação do Rossio tento comprar um guarda-chuva. A
maioria das lojas está fechada e um polícia diz-me que ainda há bocadinho
um rapaz indiano andava a vender guarda-chuvas no bali. Não o encontro.
Arrisco alguns passos na rua, mas sem abrigo fico logo encharcado e o
remédio é procurar um café. O Nicola está cheio,
a Suíça está cheia. Subo o Chiado encostado às paredes, procurando
escapar às cataratas que caem dos beirais. Felizmente que o saco onde
guardo o equipamento é impermeável, mas quando entro n’A Brasileira vou
molhado até aos ossos.
Tomo um café, leio o jornal, olho em redor. Tomo outro café. Com um tempo
assim não é questão de fotografar seja o que for. Encharcado e fustigado
pelo vento, o toldo do estabelecimento rasga-se em dois pedaços que ficam
a estalar no ar como velas soltas. À minha volta há um cheiro agradável
de Gitanes, de pastéis, de tostas quentes.
Por momentos ocorre-me que o melhor é almoçar e depois, prosaicamente, ir
ao cinema. Mas a leitura dos programas logo me desanima: os filmes de
science fiction, de cobóis, as comédias do género Uamata di papà, não são
exatamente o antídoto mais indicado para a morrinheira do meu domingo.
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Telefonar a algum amigo e impor-lhe a minha presença, também não me
parece solução.
Mal-humorado volto aos Restauradores, compro mais jornais, algumas
revistas, irrito-me com o caixa do estacionamento que faz de desentendido
quando lhe peço um recibo.
Numa decisão súbita retomo parte do itinerário de ontem e vou ao longo do
rio até aos Jerónimos. Passo o mosteiro, entro na Rua de Pedrouços. No
número 51-B fica Os Quinhentos, o mais modesto, genuíno e por certo mais
simpático restaurante goês de Lisboa. Quatro mesinhas redondas,
diminutas, onde com boa vontade se podem amesendar oito pessoas. O resto
come em pé ou leva a comida para casa. A cozinha fica num prédio
fronteiro e a maior parte dos pratos é guardada em congeladores, aquecida
ali à vista dos comensais e, garantido, sem perda de qualidade.
O proprietário discorre acertadamente sobre coisas de cultura e de
história, ao mesmo tempo que vigia os micro-ondas e atende os clientes. A
comida é uma delícia, os preços de uma modéstia que me deixa acanhado, e
na lista dos manjares há ritmos de poesia goesa: ambotic, baji, chacuti,
bebinca, balchão, caril, sarapatel, vindalho, paparins, chamuças, cheque-
cheque.
Almoço com rara satisfação, rodeado de gente bem-disposta, a ponto que só
quando me levanto para sair me dou conta que esqueci a chuva. Mas as
bátegas continuam, numa fúria de
ajuste de contas.
Sem melhor destino volto ao hotel e de novo me surpreende o tamanho da
suíte. Acendo as luzes todas para afugentar o cinzento da tarde, lavo os
dentes, olho para o mar, ligo a televisão. Mas logo a desligo, incapaz de
suportar a hilaridade parola do apresentador da Roda da Sorte. Em cima da
cómoda o meu computador portátil é uma presença amiga, mas não me sinto
com vontade nem forças de trabalhar. Escrevo algumas anotações para este
diário e deito-me vestido sobre a cama, com saudades de casa, fazendo
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o possível por afastar os pensamentos negros. Finalmente acabo por
adormecer.
São cinco da tarde quando acordo. Milagre! A chuva parou. No cinzento do
céu enxergam-se nesgas de luz e longe, para o lado do mar, vê-se mesmo
uma faixa de azul-pálido.
Uma das vantagens de viajar sozinho é a rapidez. Em poucos minutos estou
no carro, certifico-me que o saco com o equipamento ainda está na mala e
rodo apressado pelas subidas que levam à autoestrada. Meia hora depois
entro de novo no estacionamento dos Restauradores. O caixa, o mesmo da
manhã, olha carrancudo ao ver-me passar.
O primeiro local na minha lista é o Jardim de São Pedro de Alcântara.
Para lá chegar basta-me atravessar a Avenida e subir a calçada no
Elevador da Glória. A vista da cidade é esplêndida, a luz difusa elimina
as sombras, os dois anciãos debruçados na grade formam um bom primeiro
plano. Como de costume, por precaução, tiro três fotografias, e caminho
contente para o Largo de Camões, quando de súbito recomeçam os
aguaceiros. Corro a abrigar-me n’A Brasileira onde o toldo, agora em
frangalhos, continua a estralejar.
Por hoje, dado o cariz do tempo, acabaram-se as fotografias. Compro um
guarda-chuva a um vendedor ambulante e volto ao carro, volto ao Estoril.
Pode ser que seja do mau tempo, mas o pessoal do hotel tem um ar
singularmente apático, desinteressado: ao pedir a chave ao porteiro tenho
a impressão de que o acordo duma hipnose.
À noite, enfastiado, sento-me numa arcada entre a burguesia do Estoril. O
empregado que me traz a cerveja queixa-se:
- Se o tempo continua assim mais uma semana, para nós vai ser um
desastre, porque o patrão não aguenta.
- Felizmente não faz frio — replico eu, desatinado. Ele encolhe os
ombros. O homem de meia-idade que se sentou na mesa próxima pede uma
bica, um bagaço e o telefone.
23
O empregado volta com o pedido. O freguês acende um cigarro, sopra o
fumo, adoça fortemente o café, saboreia um golo, bebe metade do bagaço,
despeja o resto na xícara, pega no aparelho, puxa-lhe a antena, marca um
número. Ali ao meu lado, mesmo que falasse baixo eu seria obrigado a
ouvi-lo:
- Está? És tu? Eles já chegaram? Vim tomar café. Daqui a um bocado estou
aí.
Desliga, coloca o aparelho na mesa e sorri-me, numa tentativa de
conversa:
- Com a técnica, hoje só falta descobrir remédio para a morte.
Respondo-lhe que é verdade e levanto-me, dou-lhe as boas-noites, aceno ao
criado de que deixo o dinheiro sobre a mesa e volto para o hotel
segurando o guarda-chuva a mãos ambas.
Sinto-me cansado de mais para seguir as introspeções de Naipaul e deito-
me a folhear Unique, uma revista que escolhi entre as que cobrem a mesa
do salão. É de dar tonturas: «Exclusive: at home with Alain Delon.» O
homem possui esculturas de Rodin, desenhos de Rembrandt, Millet, Van
Gogh, quadros de Picasso, Géricault, Delacroix, mobiles de Calder... Três
grandes telas de Karel Appel adornam as paredes do seu salão de jogos.
Livros vêem-se poucos, mas o jornalista informa que nas estantes estão as
obras completas de Montaigne e Flaubert, a leitura favorita do ator.
Folheio por entre artigos que tratam do Atalante de 1938, «the most
beautiful creation of Jeati Bugatti»; do Jaguar XI220: 320 km/h de
velocidade máxima, 600 000 dólares; do superiate Azimut 118; do
Gulfstream IV-SP, o avião a jacto para o big boss que se preza. Sir James
Goldsmith, multimilionário, fulmina contra políticos e economistas. Laure
de Beauvon-Craon, directora de Sotheby’s France, aparece fotografada por
Karl Lagerfeld a dizer-me como é excitante vender um Guardi por 17 e um
Cézanne por 28,5 milhões de dólares.
Da arte passo aos relógios: um F. P. Journe de 1987 compra-se por 160 000
francos suíços; e dos relógios às casas, a 13
24
milhões aqui e 22 milhões além. Casa em Neuilly-sur-Seine, vista
panorâmica sobre o Bosque de Bolonha e a Torre Eiffel, quatro andares,
subsolo, seis quartos de dormir, seis quartos de banho, terraços,
jardins, pátio interior, ascensor, garagem. A agência imobiliária informa
que além de francês e inglês, o seu pessoal fala holandês, sueco e
alemão. O iate La Esmeralda, com alojamento luxuoso para oito pessoas,
aluga-se em Cannes por 145 000 dólares semanais.
A sonhar acordado acabo mesmo por adormecer, mas a meio da madrugada
desperto em sobressalto: a porta da varanda do outro quarto com certeza
estava mal fechada e o vento abriu-a de rompão com os estrondos
correspondentes.
Segunda-feira, 23 de Maio — Nos jornais da manhã a chuva é notícia de
primeira página.
Em Lisboa, em parte para escapar ao aborrecimento, retomo o hábito das
duas refeições diárias. Entre caixeiros e funcionários como um almoço
desenxabido num restaurante da Rua do Salitre e subo depois a encomendar
livros na Buchholz.
Mal protegido pelo guarda-chuva caminho até à Baixa, passo o resto da
tarde a vadiar pela cidade. De vez em quando tomado por um sentimento de
solidão entro num café, mas ao mesmo tempo incomoda-me a eventualidade de
encontrar algum conhecido, pois de momento o meu humor acomoda-se mal com
cortesias, menos ainda com conversas. Tenho de convir que a impaciência
permanece um traço desagradável do meu carácter.
Sento-me, bebo um café mal me apercebendo se é bom ou mau, olho em volta
e já me apresso a partir, como se em qualquer parte me aguardasse
urgência ou obrigação. Poderia ir
a um museu, mas repugna-me a ideia de me ver a apreciar quadros rodeado
de gente em admiração beata. Poderia ir a um teatro, mas tenho duas
razões contra: a primeira é que as soirées começam por volta das nove ou
dez, o que significaria ter de me ocupar ainda umas cinco horas; a
segunda, mais forte, é que sou o pior dos espectadores: quando assisto a
uma
25
peça não me consigo abstrair dos detalhes e concentrar-me no essencial.
Em vez de atender ao texto, à mímica dos atores, à sua arte de
representar, o meu interesse escorrega para coisas
insignificantes: uma tábua que range no tablado, um tremer do pano de
fundo, um adereço que não condiz, um excesso de maquilhagem. Também não
sou capaz de me emocionar ou de
rir em sintonia com o público, e em geral quando deixo a sala sinto-me
desadaptado e tolo.
Estes e outros pensamentos começam a pesar-me. Teimoso de nascença,
aborrece-me que o ensaio sobre Eça de Queirós tenha de tomar outra forma.
Desagrada-me perder tempo e esbanjo uma boa porção do meu. Dou-me conta
que nos últimos três dias não devo ter trocado mais que meia dúzia de
frases com os meus semelhantes e num impulso entro numa
cabine telefónica. Ligo para casa, em Amsterdão. Digo à Loekie que em
Portugal continua a chover e ela responde-me que sabe, viu na televisão.
Para mim é pena, mas não há remédio. Eu que tenha paciência e faça por me
distrair.
- Estás bem? Está tudo bem, aí?
- Tudo em ordem.
Terminamos com as palavras habituais e pouso o aparelho. De regresso ao
hotel, furioso contra mim mesmo, nego-me o jantar. São oito da noite.
Acendo novamente todas as luzes, espalho os jornais sobre a cama, olho
distraidamente o noticiário da televisão. Como se desde os tempos
imemoriais do fascismo nada tivesse mudado, ela ou nos oferece as imagens
dos dignitários no poder em longas inaugurações de fontenários e escolas,
ou então mostra-no-los a detalhar pontos de vista duma banalidade
excruciante. Corto o som até que anunciem a previsão do tempo.
Tiro do minibar um sumo de laranja e um saquito de amendoins e sento-me a
comê-los numa das poltronas presidenciais do salão. Ao levantar-me
embarro contra uma mesinha baixa e o canto de metal abre-me um lanho na
perna. Não uma arranhadela, mas um lanho fundo que sangra como
26
se fosse de facada. No quarto de banho ponho-lhe um esparadrapo, mas o
sangue não para, obrigando-me a embrulhar o ferimento numa toalha. Deito-
me na cama de pernas para o ar para que a circulação diminua e é nessa
incómoda posição que vejo que, pelo menos nos próximos dois dias, o
conhecido anticiclone dos Açores continuará a empurrar chuva para o
continente.
Terça-feira, 24 de Maio— Ó que manhã gris, ventosa e tristonha! Ó que
medíocre almoço no João do Grão! Onde me fui amesendar na esperança vã de
reviver tempos mais alegres.
Às três horas tenho um encontro na Rádio Televisão Portuguesa com uma
redatora do Canal 2. Não a conheço, mas o José Luís informou-a de que
acaba de ser editado em Amsterdão um livro meu que trata da droga e ela
gostaria de me entrevistar sobre o assunto. Dirijo-me à RTP à hora
combinada, para lhe dizer que o livro é de facto um memorial
autobiográfico; que nele os relatos sobre a droga e as recordações dos
meus amigos da juventude que hoje traficam em cocaína não são mais que um
pano de fundo. Além disso fazer uma entrevista sobre um livro que, embora
escrito em português por um escritor português, não se acha publicado em
Portugal, parece-me inútil.
À boa maneira portuguesa a rececionista diz-me que não sabe bem, mas
parece-lhe que a Maria Júlia não está. Também não tem a certeza se ela
hoje trabalha.
- Nós combinámos encontrarmo-nos aqui às três horas. Pode telefonar a um
colega dela e perguntar?
Ela telefona de mau modo e diz que ninguém atende. Poderia ir eu próprio
à redação? Os seguranças só deixam passar quem tem cartãozinho. Poderiam
dar-me um cartão de visitante?
- Não — responde o funcionário, com a paciência de quem fala a um débil
mental. - O senhor quer ir à procura
27
duma pessoa que nós sabemos que não está presente. Não é motivo válido
para poder entrar.
Fim do diálogo. Sento-me longamente à espera. Enfadado, pergunto à
rececionista se não poderia telefonar para casa da redatora e ela encara-
me como se ouvisse uma proposta indecente. Os números privados dos
colaboradores são secretos. Não compreendo o raciocínio e digo-lhe que
vou passear, que voltarei dentro duma hora.
Numa rua próxima entro no centro comercial Apoio 70, que foi lugar de
conspiração dos revolucionários de Abril de 74. Àquela hora movimenta-se
por ali quase em silêncio uma gente mole, poucas mulheres, grupos de
homens a olhar desinteressados para as vitrinas, parando de vez em quando
para um café ou um sumo. Ao observá-los ocorre-me que Eça de Queirós, num
momento de humor feroz, chamou aos lisboetas «cariátides do tédio» e os
descreveu como uma «População anémica. Que figuras! O andar desengonçado,
o olhar mórbido e acarneirado, cores de pele de galinha, um derreamento
de rins, o aspecto de humores linfáticos, a passeata triste de uma raça
caquética em corredores de hospital: e depois um ar de vadiagem, de “Ora
aqui vou, sim, senhor”, de madracice, olhando em redor com fadiga, o
crânio exausto, e a unha comprida, para quebrar a cinza do cigarro, à
catita.»
A imagem é cruel, mas cem anos passados poucos retoques se lhe podem dar.
Volto ao edifício da RTP. A Maria Júlia finalmente chegou e acha uma pena
que eu não queira a entrevista. Mas compreende. Demoramos uns minutos a
trocar impressões, falando de coisas que de facto só pela rama nos
interessam, e despedimo-nos com a promessa oca de em breve nos voltarmos
a encontrar.
Vou buscar o carro ao parking subterrâneo onde o deixei, seis pisos
abaixo do nível da entrada e com um ar tão abafado que tenho a impressão
que ficando ali muito tempo se corre o risco de asfixia.
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Abro a janela e ao sair para a rua encho os pulmões de ar fresco. Chove.
Quarta-feira, 25 de Maio — Ontem, incapaz de adormecer, aproveitei para
aprontar as malas. Às seis e meia estou em pé, uma hora mais tarde deixo
sem saudades a minha suíte presidencial. O porteiro agaloado oferece-me a
proteção dum guarda-chuva e, chegados ao carro, tira do bolso um velho
trapo e desnecessariamente esfrega com ele o para-brisas. Dois matulões
fardados aparecem com a bagagem. Gorjeta. Gorjeta. Gorjeta. Boa viagem.
Boa viagem. O porteiro bate uma continência militar.
Às oito da manhã o trânsito na autoestrada em direção a Lisboa é de pôr
os cabelos em pé. São Cristóvão, lá do alto, deve precisar de assistência
para proteger os medrosos e os forretas (que para poupar gasolina vão a
quarenta à hora), dos tarados que a cento e cinquenta os ultrapassam à
esquerda e à direita. Mas de nada adianta a pressa duns e a lentidão dos
outros: antes da cidade a fila é de quilómetros e demoro uma hora a
atingir o desvio que leva à autoestrada do Porto.
Desde que no princípio dos anos oitenta comecei deliberadamente a
recolher dados para o meu guia de Portugal, quase todas as minhas viagens
no país são feitas sob o seu signo. Por isso poucas vezes sigo o caminho
mais curto, esforçando-me por visitar ou revisitar o maior número
possível de locais. Assim também hoje, por alturas de Fátima, em vez de
rumar a norte meto para oriente em direção a Tomar, e aos ziguezagues
passo por Sertã, Figueiró dos Vinhos, Lousã, Arganil, Covilhã.
Para minha surpresa o céu aparece limpo e pela primeira vez desde que saí
de Amsterdão volto a ver o sol. Sol de Maio, quente como um afago.
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Atravesso as Penhas da Saúde, desço para Manteigas e são quase duas horas
quando chego a Seia. O almoço no Restaurante Camelo, «um dos mais
premiados de Portugal», é uma deceção.
Depois, a estender as pernas, dou uma volta peia vila e numa rua depara-
se-me uma cena triste: na varanda dum quarto andar, apoiado em duas
bengalas, um senhor de idade arrasta-se de cá para lá em passinhos miúdos
e lentos, enquanto a mulher o observa debruçada na janela. Para minha
surpresa, no andar inferior e numa varanda idêntica, outro ancião com
duas bengalas dá passinhos de criança, igualmente observado pela mulher,
também ela debruçada na janela.
Paro hesitante no cruzamento da estrada de Celorico da Beira. A menos de
dez quilómetros para a esquerda do cruzamento vive Gerrit Komrij e
durante instantes pondero sobre a nossa camaradagem de dez anos atrás,
quando o ajudei a mudar para Portugal.
Em Março passado encontrámo-nos casualmente em Amsterdão à porta da
Arbeiderspers, editora de ambos. Como fazem as pessoas educadas trocámos
cortesias e for old time's sake fomos ao café em frente beber uma
cerveja. Falámos do mau tempo e de computadores, de óculos, do seu
aparelho auditivo, do barulho que nos envolvia.
Haverá conversa mais banal? Do que na verdade importava, das razões que
levaram a intimidade a transformar-se em cortesia, por exemplo, nem uma
palavra, embora para mim os
acontecimentos e as pessoas estivessem ali como que dolorosamente
presentes, aguardando explicação.
Despedimo-nos, cada um para seu lado. Ainda o vi atravessar a ponte e
senti-me tomado de melancolia.
Um condutor buzina irritado com a minha paragem no cruzamento. Acordo das
recordações e viro à direita.
Tão familiar me é o trajeto de Celorico para Trancoso e daí até Vila Nova
de Foz Côa, que como se costuma dizer eu
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o poderia fazer de olhos fechados. Pela estrada que ainda o ano passado
era um inferno de más curvas, mas agora alargada e macia como um tapete,
desço para o vale do Douro. O local é diferente, mas a sensação é
idêntica à que me toma em Amsterdão quando passo pela estação Amstel e
meto pela Gooiseweg: daqui a nada estou em casa.
Em Moncorvo faço um pequeno desvio e entro na vila pela rua da Sé, vou
até à praça a certificar-me de que nada mudou.
Não recordo porque me nasceu o hábito, só sei que data de há dezenas de
anos. Quando venho de viagem longa e ao deixar a estrada nacional viro
para a da aldeia, aí a cerca de uns cem metros tenho absolutamente de
parar para urinar. Sempre contra o mesmo sobreiro. Um rito. Talvez um
instinto igual ao dos cães que delimitam o seu território, ou apenas o
retardamento simbólico do momento da chegada.
Da travessa que vai da rua principal até à nossa casa serão cinquenta
metros. Feitos os cumprimentos, e porque o carro não pode chegar à porta,
os vizinhos que sempre há por ali oferecem-se para me ajudar com as
malas. Agradeço e recuso porque, sei-o eu e sabem-no eles também, a
oferta é pró-forma, um resíduo de cortesia que lhes ficou do tempo em que
dependiam de meu pai. De mim não precisam e desde que ele faleceu a
regra, estabelecida por pequenos gestos, subtis mudanças de atitude, é
que se mostrem afáveis e eu lhes agradeça os préstimos sem os aceitar.
Que as malas não pesam nada. Que são só dois passos. Sorrimos, falamos do
dilúvio dos dias anteriores, eles dizem que fui eu que trouxe o bom
tempo.
Quase totalmente surda nos últimos anos, minha mãe não me ouviu entrar e
encontro-a na cozinha a descascar batatas. Toco-lho ligeiramente o ombro
e ela volta-se contente, mas sem surpresa, sabendo que eu deveria chegar
dum momento para o outro.
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Seja família ou amigo, de poucas expansões como sou não é do meu feitio
demorar os abraços. Mas ela não me larga e tomado de piedade deixo-me
abraçar, abraço-a outra vez, ciente do trágico destino dos anciãos
solitários que anseiam por uma mão que os toque, o abraço que os
conforte.
Pequena sempre foi e a idade mirrou-a alguma coisa, mas aos oitenta e
dois anos goza duma saúde de ferro, caminha ereta como na juventude e
agacha-se, ajoelha-se, verga-se com uma facilidade que eu nem sempre
tenho. Digo-lhe que lhe acho bom aspeto e ela sorri, mas logo se queixa
de dores nos braços, nas costas, do gosto amargo que todas as manhãs
sente na boca, da pontada.
— Aqui. Deste lado. Parece que me atravessa o fígado e vai direita ao
peito.
Eu olho para onde ela aponta, pergunto-lhe se quer ir ao médico.
Responde-me que por enquanto não vale a pena, talvez noutra altura se as
dores aumentarem. Aceno que sim, mas de facto a atenção com que olho e
oiço é fingida, porque este diálogo é o mesmo de cada vez que chego e irá
repetir-se quase todos os dias enquanto eu aqui estiver.
Penduro a roupa, disponho as minhas coisas na pequena secretária que foi
dos meus tempos de menino, controlo se o telefone funciona — há alturas
em que misteriosamente deixa de funcionar — e telefono à Loekie a dizer
que cheguei e a certificar-me que em casa não há novidade de maior.
Felizmente não há. Faço ainda outro telefonema obrigatório: para casa do
mais velho dos meus amigos, o doutor Armando Pimentel, a anunciar que
cheguei e amanhã o irei visitar. Depois, enquanto continuo os arrumos,
satisfaço a curiosidade de minha mãe a respeito de Myrthe, a bisneta que
não conhece, e das netas que não vê há dez anos.
— Elas estão bem?
— Estão.
— São felizes?
— São.
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— Trabalham?
— Trabalham.
— Têm saúde?
— Têm.
Que mais posso acrescentar, se vivendo perto das minhas filhas eu próprio
pouco mais sei?
Não janto, porque a cozinha «premiada» do Restaurante Camelo me pôs o
estômago às voltas, mas sentamo-nos ambos à mesa e ela, enquanto come,
entretém-me com as novidades da aldeia. Eu comento, respondo, mas devido
à sua grande surdez todas as palavras têm de ser gritadas e mesmo esses
gritos têm por vezes de ser repetidos. Meia hora depois sinto-me exausto,
não consigo parar os bocejos, cerram-se-me os olhos de fadiga. Mas como
ter coração para não ouvir quem passa meses e meses só, praticamente sem
falar?
O relógio não tem valor. Está pendurado na parede como esteve na da casa
em que nasci e nas outras onde depois morámos. Porque para isso é preciso
alguma força, minha mãe deixou de lhe poder dar corda. Dou-lhe corda eu e
depois, no silêncio da casa, o som com que bate as horas transporta-me
para um passado de inocência e sonho.
Acordo a meio da noite e o sentimento que me enche é de paz, a memória de
confusas alegrias da meninice, um tão sereno contentamento que com receio
de perdê-lo mantenho os
olhos fechados. Para minha surpresa, quando os abro a escuridão continua
intensa devido à noite enevoada, sem lua, e porque a iluminação pública
se apaga à uma da manhã. Movo as mãos mas não consigo enxergá-las e
brinco aos cegos como se continuasse criança. A verdade é que o escuro
sempre me fascinou, e o autêntico, aquele que por razões misteriosas me
faz sentir bem, só o conheço aqui em noites como esta.
Vou aos apalpões até à janela aberta e aspiro o ar seco, cheio do olor
forte das estevas, do rosmaninho, dos pinheirais.
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Oiço no vale o borbulhar da ribeira. Os galos cantam a anunciar a aurora
que virá, mas que ainda em parte nenhuma se adivinha.
Quinta-feira, 26 de Maio — É curioso e sempre assim: com ou sem dono, os
cães enchem a rua a ladrar e rosnar quando passa alguém estranho. Hoje,
que já se pegaram a mim os cheiros da aldeia, deixam-me em paz.
No passado, a cada estada minha o primeiro encontro com o doutor Pimentel
era no escritório que tem no rés-do-chão da casa. Aí conversávamos de
tudo o que nos ocupava: de literatura e de política, dos amigos, dos
costumes medievais da nossa juventude, da lavoura, da festa do padroeiro,
da vida na Holanda, das novidades da aldeia, das mortes, dos casamentos.
Do jornal A Torre, que ele ajudara a fundar em Moncorvo no começo dos
anos cinquenta, e onde por sua mão publiquei os meus primeiros contos.
Devido à inteligência e à agudez dos seus comentários, para mim sempre
foi um gosto ouvi-lo, e aprendi muito com a vastidão da sua cultura e as
elegantes picadelas da sua ironia. Quem o conhece sempre achou um
esbanjamento de talento que nos anos trinta as circunstâncias e uma mãe
tirânica o tivessem obrigado a trocar a carreira de advogado pela vida de
latifundiário.
Horas depois subíamos para a vasta cozinha, desde tempos imemoriais o
coração da casa e também, de certo modo, centro de informações da aldeia.
Aí continuávamos a conversa à lareira, tomando café, debicando doces.
Atualmente espera-me já na cozinha, sentado perto do lume que só deixa
apagar no pino do Estio, rodeado de jornais e de livros, aparentemente
insensível ao remoinho do mulherio na lida da casa e aos que sem
cerimónia entram a dar um recado ou a pedir uma informação.
Enxuto de carnes, direito, pelo aspeto físico facilmente se lhe descontam
dez anos aos oitenta e um que fez há dias. De
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maneiras continua impecável, a nossa amizade não diminuiu, mas
intelectualmente os anos começaram a exigir o seu tributo. De vez em
quando para no meio duma frase e parece ter dificuldade em continuar o
raciocínio. Ou vão-se-lhe os olhos para a televisão sempre acesa e por
momentos esquece tudo à sua volta, retomando depois inconscientemente a
leitura do jornal.
Por isso, se bem que continuem diárias, as minhas visitas são agora
curtas e a nossa conversa só a espaços toca os temas de antigamente.
Continua lavrador arguto e ainda lhe interessam apaixonadamente os
automóveis (não contando os tratores, entre camiões, carrinhas, jipes,
Minis e Mercedes, a sua fortuna permite-lhe ter nas garagens uns onze ou
doze veículos), mas a chama como que se vai lentamente extinguindo. Ele
próprio o sente e por vezes alude ao mau destino da mãe, que demente aos
oitenta anos viveu até aos noventa e quatro. Na sua presença, contudo,
falar de doenças ou de mortes tornou-se tabu e os aniversários também não
quer que lhos festejem.
À tarde vou com minha mãe às compras a Moncorvo. Para ela, que desde
Outubro passado não saiu da aldeia, é uma viagem. Para mim, que em
Amsterdão pouco me ocupo com coisas domésticas, uma preocupação. Começo
pela cooperativa agrícola, onde o vinho é excelente e quase pelo preço da
chuva (seiscentos escudos por garrafão de cinco litros). Mas primeiro
tenho de ficar na bicha no escritório e quando me chega a vez preencho um
talão com o nome, o endereço, o nome do produto, a sua quantidade, volume
ou peso, o local de destino, a informação se o mesmo é para uso caseiro,
venda a retalho, venda por grosso ou exportação. Preenche-se também o
número fiscal. Escreve-se a data. Assina-se. No balcão o funcionário
confere, carimba, recebe o dinheiro, dá o troco, senta-se depois à
secretária a passar uma guia.
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Com essa guia vai-se ao edifício próximo onde se encontram as gigantescas
cubas de cimento que, pela sua forma mamai, são conhecidas por
Lollobrigidas. A funcionária de serviço abre a torneira e o vinho ao
jorrar para a vasilha de lata cheira que é uma delícia. Antes de encher
os garrafões, pergunta-me ela se quero um copinho para provar. Provo.
Acho-o excelente.
Depois vou ao talho, ao supermercado, à hortaliceira, mas a lista que
preparei em casa pouco me ajuda, porque a situação aqui é um pouco como
ouvi dizer que era antigamente na Rússia: não se compra o que se deseja
ou se precisa, mas aquilo que a loja por acaso tem.
Sexta-feira, 27 de Maio — Não é tanto o ser obrigado a falar aos gritos,
mas para mim, habituado à agradável solidão do meu quarto de trabalho, o
ter aqui a mãe constantemente à minha volta é um suplício. Eu compreendo-
a, ela tem razão, e se vim para lhe fazer companhia nada mais lógico do
que cumprir. Mas uma presença de todos os momentos e que constantemente
fala, é uma transição demasiado brusca.
A primeira discórdia tivemo-la logo ontem, quando ao querer arrumar as
compras descobri o frigorífico cheio de sacos de pão. Pão que aqui tem um
tamanho que é preciso pegar-lhe com ambos os braços e dá à vontade para
meia dúzia de esfomeados. Para quê seis sacos de pão, santo Deus, se um
basta e sobra? Por causa do padeiro que é incerto. Fraca desculpa, já que
o padeiro vem dia sim dia não.
Eu sei que deveria encolher os ombros, esquecer, mas coisas assim dão-se
três, quatro, dez vezes ao dia, e nem sempre tenho a possibilidade de
correr pelos montes a acalmar.
Ao fundo da aldeia, uma parte do que foi em tempos a casa do meu bisavô
paterno serve-nos de garagem. Tem comprimento bastante, mas devido à
estreiteza da porta só se entra lá à custa de muita manobra. Para os
vizinhos sentados à sombra
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nos degraus da capela é uma atração bem-vinda o ver-me a calcular, a
apontar o carro, a pô-lo em marcha à frente, marcha atrás, falhar a
entrada, recomeçar.
Desta vez encontro a porta bloqueada por um monte de areia tão alto que
chega ao beiral do telhado. Os vizinhos, entre homens e mulheres, uns
sete ou oito anciãos, vêem-me sair do carro, dão cortesmente as boas-
tardes. Mas ninguém comenta. O problema é meu.
— Quem pôs isto a tapar-me a porta?
Entreolham-se, olham para o monte de areia com um ar de surpresa mal
fingida, por fim respondem que foi o pessoal da Câmara que um dia destes
virá para arranjar o caminho da fonte.
- Se soubéssemos que vinhas — acrescenta um deles — tinha-se-lhes dito
que o não botassem aí. Mas não se sabia. A tua mãe nunca diz nada a
ninguém...
Uma observação simples que esconde mais malícia do que aparenta e me
deixa sem possibilidade de retorquir.
Ontem ao jantar, cozinhado por minha mãe, comemos o tradicional bacalhau
assado no forno com batatas. Ela, com razão, queixa-se de que habituada
como está a cozinhar para si só já não tem forças nem cabeça para pratos
que necessitem de complicações. Proponho que a partir de agora seja eu o
cozinheiro.
- Mas tu sabes de cozinha? — a sua voz trai surpresa e alguma
preocupação.
- Coisas simples.
- E então, que vamos comer amanhã? — pergunta ela irónica.
- Ainda tenho de pensar.
Sábado, 28 de Maio — Numa aldeia que se levanta à segunda cantada do galo
as sete horas são já meia manhã. Para mim é cedo, mas quero ir dar uma
longa volta pelas terras espanholas que ficam do outro lado do Douro.
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Tirei o carro da garagem e pu-lo à entrada da nossa canelha, vou a casa
buscar o dinheiro que esqueci e quando volto está um grupo de homens e
rapazes em volta dele. Algum pneu vazio, suponho. Mas não é. Chamou-lhes
a atenção que, vivendo no estrangeiro e sabendo-me eles sem necessidades,
eu tenha alugado um carro tão fraquito.
- Isto anda bem? — pergunta um com mal disfarçada ironia.
Asseguro-lhe que sim e ele ri, os outros riem.
- É o quê? Um Renault? Um Clio?
Não respondo à pergunta ociosa. O interesse deles pelos carros é tão
grande que mesmo os analfabetos conhecem de cor as marcas e os tipos.
- Só tem um ponto dois de cilindrada — diz o filho do General. — Numa
corrida com o meu Toyota um ponto oito não se aguentava.
O Toyota a que ele acrescentou em maiúsculas coloridas e fluorescentes o
qualificativo de turbo. Digo-lhes adeus e parto a realizar um sonho de
menino.
Antigamente, nos cento e pico quilómetros que vão de Miranda à Barca de
Alva, o Douro corria num desfiladeiro de vertentes quase verticais duns
setecentos metros, formando uma fronteira intransponível. Do outro lado
avistavam-se por vezes na lonjura vultos diminutos de gente e, mais longe
ainda, distinguia-se o casario de duas ou três aldeias atarracadas numa
paisagem rude e inóspita. Inacessível também, por isso mesmo misteriosa.
No final dos anos quarenta as barragens hidroelétricas uniram as margens
do rio e domaram a sua correnteza, obrigando-o a espraiar-se em grandes
lagos. A passagem, infelizmente, continuou impossível. Claro que fazendo
um grande desvio eu há muito poderia ter ido ver como era Castela naquela
ponta da Meseta. O que me fascinava, porém, não era tanto a visita como a
travessia do desfiladeiro que na infância
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me dera a ideia de separar Trás-os-Montes do resto do mundo.
Agora que a União Europeia terminou com as fronteiras vou finalmente
satisfazer a minha curiosidade. Atravesso Freixo de Espada à Cinta, vila
de bom tamanho que a esta hora, talvez por ser sábado, dá a impressão de
que ainda dorme. A estrada desce para o rio e uns seis quilómetros
adiante meto resolutamente para a barragem. Vou quase a passo devido à
ladeira íngreme, mas também pelo receio de que me apareça algum guarda a
barrar o caminho, porque quem nasceu e viveu sob um ditador, só
dificilmente se livra do trauma policial.
Como um garoto a temer que o apanhem em flagrante, em vez de gozar a
rudeza grandiosa dos montes apresso-me a atravessar a barragem. Uma
grossa corrente de ferro, que do lado espanhol impedia simbolicamente a
passagem, enferruja agora no chão e o único sinal de vida dão-no os
abutres que voam em círculos lentos num céu limpo. A estrada, estreita,
esburacada, sobe por entre rochedos. Em parte alguma se avista campo
lavrado ou árvore plantada. O pouco que por ali há semeou-o o vento,
cresce retorcido, feio, sem cor nem alegria, como se lhe tivessem rogado
praga.
Paro em Saucelle, a primeira aldeia, mas uma vista de olhos ao largo que
serve de plaza mayor basta-me como impressão e nem sequer deixo o carro.
O mesmo vai acontecer em Barruecopardo, Milano, La Zarza de Pumareda,
Masueco, Perena e Villarino. As casas mostram-se cuidadas e caiadas, mas
as aldeias parecem moribundas. Aqui e ali vê-se uma loja,
movimento nulo, nas ruas só há anciãos sentados às portas ou caminhando
lentamente apoiados a bengalas.
Entre as povoações estendem-se quilómetros de rochedos, aqui e além
espaçados sinais de lavoura num ambiente agreste, duma pobreza hostil. À
medida que avanço sinto como que uma asfixia, aumentada pelo facto de em
todo o percurso não cruzar um carro e fora das povoações não encontrar
vivalma.
39
Em Fermoselle não entro. Aldeia grande pendurada num cume, conheço-a
desde que há anos atrás se abriu a fronteira sobre a Barragem de
Bemposta. Nela a gente é soturna como o dédalo de becos que leva a uma
plaza mayor pequerrucha e a um largo onde a igreja não convida à devoção.
Adeus magia, adeus sonho de menino. Desanimado começo a descida para o
rio. Nas extremidades da barragem ambos os postos de guarda estão
desertos e dou-me conta que tão depressa fiz a volta que chego a
Mogadouro à hora do almoço. Sem vontade de regressar a casa, vou comer ao
restaurante de «Monsiéur Eliseu».
Copio do meu Portugal — Um Guia para Amigos (7.a ed. pág. 80): «As voltas
que a vida dá: Eliseu Santos Amaro, Monsieur Eliseu, foi durante mais de
dez anos chefe do famoso restaurante Grand Veneur em Barbizon, uns
cinquenta quilómetros a sul de Paris. Um dia a saudade levou-o a voltar à
terra natal e em Mogadouro abriu o seu próprio restaurante: A Lareira. Eu
preferiria não desvendar o segredo, mas já outros o fizeram antes de mim:
The Guardian, The New York Times, Le Monde. Se gosta da boa cozinha
deixe-se surpreender por
Monsiéur Eliseu, na Avenida de Nossa Senhora do Caminho.»
O estabelecimento está cheio. Monsiéur Eliseu faz-me grande festa,
agradece o exemplar do guia que dias antes recebeu de Amsterdão pelo
correio. Sento-me a comer uma irrepreensível entrada de morcela assada
com cominhos, um Bacalhau à Brás primoroso, a sua famosa Bavaroise aux
fraises. O vinho da casa é excelente, o café uma perfeição. Depois
zangamo-nos. Monsiéur Eliseu não me quer dar a conta, todo honrado que se
sente com a menção no guia. Eu insisto em pagar. Primeiro, por uma
questão de princípio; segundo, porque não aceito favores; terceiro, para
não me sentir preso a cumplicidades. E assim por diante.
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Monsiéur Eliseu sorri, abana a cabeça que não, e ao ver que eu me vou
mesmo zangar a sério, põe a situação em referendo aos clientes das mesas
mais próximas. Que não é questão de suborno, nem favor ou retribuição,
mas simples vontade de fazer um gesto de agradecimento por eu o ter
mencionado no guia. Um almoço! Que vale um almoço? Aliás, diz ele abrindo
os braços num gesto teatral, comi tão pouco que até parece que não
gostei. Os clientes riem, aplaudem o ator. O consenso é que desta vez me
conforme a não pagar. E já agora que aceite mais um café. Monsiéur Eliseu
manda servir uma rodada de conhaque e brindamos à saúde de todos.
A meio caminho no regresso a casa uma raposa salta do pinhal para a
estrada. Grande, vigorosa, de brilhante pelagem acastanhada, o rabo
branco levantado no ar. Travo. Surpreendida, ela pára, olha-me,
desaparece dum salto. Tudo em pouco mais de um segundo e contudo, quando
o nosso olhar se cruzou, senti passar entre nós uma inegável corrente de
simpatia.
As tardes de Maio são sem fim. Pesado do almoço, deitei-me a dormir a
sesta. Acordei. Passa pouco das seis e o Sol dá a impressão de continuar
a pino. Sento-me num degrau da escada da varanda a ler o jornal. Sentada
perto de mim minha mãe diz de vez em quando umas palavras confusas a que
não presto atenção, até ao momento em que a vejo levantar-se e ir para o
muro que separa a casa do campo vizinho.
- Está furado — diz ela, apontando o cano da água que corre ao longo da
varanda e penetra na casa junto do muro. Donde estou não enxergo nada e
distraído com o que leio digo-lhe que sim, alguma pinguita sem
importância.
Ela volta a sentar-se à minha beira, tossica, toca-me no braço, pede-me
que repare. Não distingo nada, mas pelos jeitos vê melhor sem óculos do
que eu com eles, e para lhe fazer a vontade vou examinar o cano. Da
juntura que repousa sobre o muro a água espirra numa pequena névoa. Digo-
lhe que não
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é nada, daqui a um bocado tapo o furo com betume ou fita isoladora. E
volto à leitura do jornal. Mas ela, com o feitio inquieto que Deus lhe
deu, vai de novo examinar. Deita uma mão ao cano. Digo-lhe que não lhe
mexa porque a construção é frágil, mas nesse momento já ela lhe deu um
abanão e o cano rebenta, deitando um jorro de água que nos encharca e faz
um grande repuxo até que consigo fechar a torneira principal.
Num lugar civilizado, mesmo sendo sábado, para uma urgência destas
chamava-se o canalizador; mas aqui tem cada um de se desunhar como pode e
sabe. Infelizmente os meus conhecimentos de pichelaria são nulos, a
ferramenta que tenho não serve e, exausto, o suor a correr, passada mais
de uma hora a aparafusar e a desaparafusar dou-me por vencido.
Minha mãe sugere ir a Lagoaça chamar o Aníbal, que sabe um bocado de
serralheiro. O Aníbal vem, inspeciona, acha que o caso é bicudo e diz que
em vez de reparar o velho mais vale comprar cano novo, juntas novas, e um
reforço a meio do comprimento.
Não compreendo, mas concordo, e metemo-nos no carro para ir buscar o
material a Carviçais onde a irmã do Zezé Teixeira (materiais de
construção, botijas de gás, seguros) por viver no andar de cima, tem o
armazém praticamente sempre aberto.
Cano, anilhas, porcas macho e fêmea, reforço, estopa, betume. Abastecemo-
nos do preciso, mas quando voltamos à aldeia é tarde de mais para começar
seja o que for. Além disso tenho de cozinhar. Fica para amanhã.
Tão grande é o meu cansaço que quando à noite me deito não consigo ler,
porque se me fecham os olhos. Durmo dez horas duma assentada.
Domingo, 29 de Maio — Se estou na aldeia sem a Loekie o meu hábito é de
nos domingos de manhã, assim que o sino
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toca para a missa, ir a Moncorvo comprar os jornais e os semanários.
Depois, num ritual que data da juventude, vou tomar um café ao Central, a
que no íntimo continuo a chamar, como antigamente, Café Moreira.
Quando regresso a casa o Aníbal está à minha espera. Entre dentes,
enquanto abre a caixa da ferramenta, lembra-me que me vem ajudar «Por ser
para quem é, porque senão não vinha» e, como se eu o não soubesse,
acrescenta que é domingo. A advertência implica uma gorjeta de pelo menos
cinquenta por cento.
Compõe relhas de arados, lâminas de enxadas, é capaz de dar um jeito a um
ferrolho ou soldar uma corrente. De canalizações, infelizmente, percebe
pouco. Além disso, habituado a obra grossa, em vez de medir com o metro
prefere avaliar a olho, e assim o cano ora sai comprido de mais, ou então
curto, ou a rosca não pega, o joelho entorta. Três vezes ligamos a água e
três vezes ela esguicha por todas os lados. Deitamos mais estopa,
cobrimo-la com tinta a óleo, damos-lhe tempo a que seque, e com um
suspiro de alívio constatamos que as juntas aguentam a pressão.
Minha mãe, que sofre verdadeiros terrores quando qualquer coisa se
desarranja, dá em voz alta graças a Deus e enceta um rosário. O Aníbal e
eu sentamo-nos na escada a beber cerveja e ele conta do filho mais velho,
que trabalha em Lisboa e está bem na vida, a ponto de ter já comprado um
andar. O segundo também está em Lisboa, mas só para negócios, porque vive
na Suíça. A patroa que tinha faleceu há pouco e gostava tanto dele que
lhe deixou herança e um bonito BMW que tem guardado num palheiro e que
gostaria de me mostrar.
Agora o rapaz mais novo e as duas raparigas é que não tomam emenda. Uma
nem ele sabe onde vive, nem por onde anda, há mais de um ano que não dá
notícias. A outra aparece de vez em quando, fica uns tempos, mas de
repente vai-se embora e nunca dá explicações do que faz, do que não faz,
nem responde ao que se lhe pergunta.
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- Uma consumição — conclui ele com um suspiro.
Aceno a concordar, mas o pobre Aníbal ainda não acabou a sua história.
Com o descaminho das raparigas e do mais novo a mulher nos últimos tempos
começou a tresloucar. Diz que é castigo do Céu. Que Nossa Senhora lhe
aparece a chorar e a dizer que têm de rezar muito, senão vão acontecer
desgraças maiores.
- Que lhe hei-de fazer? Faça favor de me dizer o que lhe hei-de fazer.
Encolho os ombros. Digo-lhe que tenha paciência, não se mortifique, as
coisas acabam sempre por se arranjar. O essencial é não perder a
esperança. E para disfarçar o embaraço que me causa a banalidade das
minhas próprias palavras, pergunto-lhe quanto devo.
Pago-lhe, junto a gorjeta e prometo que um dia destes irei a Lagoaça ver
o BMW. Antes de se despedir, porém, vai direito ao cano e durante um
instante temo o pior quando o vejo dar-lhe uma sacudidela para provar a
solidez da obra. O cano abana, mas felizmente aguenta.
Segunda-feira3 30 de Maio — Passo uma manhã atribulada a tentar enviar
para Harrie Lemmens uma história que escrevi para o próximo número da
revista Jonas e que ele tem de traduzir com urgência. Qualquer coisa não
funciona na sincronização dos programas, no modem, ou na linha
telefónica. Gasto um dinheirão em ligações e telefonemas para Nijmegen e
a resposta do Harrie é que o computador assobia, mostra no ecrã uns
sinais cabalísticos e acaba por informar que não é possível efetuar a
transmissão. Corro para Moncorvo, na esperança de que talvez consiga
mandar o texto através do computador da Caixa. Os funcionários recebem-me
com a simpatia que lhes conheço e para me ajudar delegam um colega que
tem fama de fanático no que toca a computadores.
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Passa a hora do almoço sem conseguirmos transmitir o texto, nem sequer o
que nos parecia uma solução mais fácil: imprimi-lo e mandá-lo por faxe.
Mas ainda não é razão para desesperar, diz o prestimoso funcionário (de
quem eu com os nervos esqueci o nome). Na escola secundária há um
professor que esse, sim, é um verdadeiro águia da informática.
Vamos ambos à escola, entramos numa sala onde uma trintena de rapazes e
raparigas estão sentados diante doutros tantos computadores. O jovem
professor acha graça à minha aflição, pede que lhe dê a disquete,
pergunta-me se uso Word ou WordPerfect, bate duas ou três teclas a ativar
o Windows do seu computador, clica duas ou três vezes o «rato» e da
impressora começa a sair o texto da minha história.
Agradeço sinceramente a ajuda e apresso-me para os CTT, aliviado por ter
conseguido resolver a coisa a tempo. Entro na bicha. Espero. Estou quase
a ser atendido. De repente ocorre-me que uns meses antes, precisando
também de mandar um faxe, a funcionária me tinha dito que faxes só em Foz
Côa, trinta quilómetros ida e volta. Mas se tiver de ser, paciência.
Chega a minha vez.
- Eu queria mandar um faxe para a Holanda. Já têm faxe?
A funcionária retorce a boca numa careta irónica, franze o sobrolho,
encara-me um instante e explode:
- Claro que temos faxe! Então onde é que o senhor julga que está? Na
África?
Terça-feira, 31 de Maio — O senhor Armando Machado chegou ontem. Era
ainda rapaz quando herdou do pai uma loja de tecidos no Porto que acaba
de trespassar e, por ser afilhado do doutor Pimentel, desde a infância
sempre passou as férias na nossa aldeia. Temo-nos amizade desde o
princípio do mundo, mas cinco anos mais velho que eu mantém-se entre nós
a hierarquia estabelecida na meninice e trato-o por senhor.
Em segunda núpcias casou com a Dona Maria José, familiarmente chamada
Dona Zé, mulher que além de combinar
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um saudável otimismo a um agudo sentido do humor, recebeu no berço o dom
da narrativa. Na roda de amigos, familiares e conhecidos, é ela uma das
poucas pessoas que consegue prender a minha atenção durante uma história
inteira, e uma das raras capazes de me fazer rir às gargalhadas.
Estamos na cozinha do doutor Pimentel, sentados como de costume em volta
da lareira, enquanto entra e sai gente ocupada em recados ou no cuidar
das coisas da lavoura.
O nosso amigo lembra-se de que tem de ir ao Carvalhal buscar um armário
que lá comprou, e como não gosta de conduzir sozinho, diz ele, convida-me
a mim e ao afilhado para o acompanharmos. Dona Zé dá uma piscadela de
olho cujo significado me escapa. Na garagem começo a compreender, quando
antes de entrar para a camioneta o condutor pede que nos postemos um de
cada lado da porta, não vá ele esbarrar. Esbarrar? Como? Dum lado e do
outro sobra mais de um metro!
Na estrada a minha suspeita confirma-se: octogenário, o doutor Pimentel
odeia tudo o que seja sinal de velhice. Anda sem bengala, continua a
pintar de ruivo o cabelo e, embora veja mal, nem para ler ou conduzir se
resigna aos óculos.
Para nós, seus acompanhantes, os vinte e poucos quilómetros até ao
Carvalhal tornam-se um martírio. Por duas vezes quase roçamos camiões que
vêm em sentido contrário; nas curvas vemos a camioneta entrar na berma e
aproximar-se perigosamente da valeta; nas retas assusta-nos o entusiasmo
com que ele pisa o acelerador. Arregalam-se-nos os olhos, mas nem o
afilhado nem eu temos coragem para pedir prudência. À chegada ao armazém
suspiramos aliviados.
Carregamos o armário, voltamos à cabine, o nosso amigo mete a chave, mas
antes de pôr o motor a funcionar volta-se para nos dizer num tom paternal
e preocupado:
— Vocês na estrada têm de ter um bocado mais de cautela. Se vierem
camiões é melhor avisar-me, porque um desastre acontece quando menos se
espera.
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O marchante veio buscar a vitela e encosta o camião ao muro do adro que
lhe vai servir de rampa. Junta-se um grupo a ver. Depois é a pontapé e às
pauladas de uns e outros que empurram para dentro o animal louco de medo.
Um estrangeiro que passasse poderia criticar, mas riam-se-lhe na cara e
com certeza o tratavam de maricas. Um estranho que se atrevesse a fazê-lo
levaria uma má resposta. Eu, sendo da terra, nada posso dizer. Quando me
dou conta da minha impotência não aguento mais a cena e vou dali a
esconder-me atrás duma parede, para que ninguém veja a ânsia que tenho de
vomitar.
A Paula está no último ano de Direito no Porto e, por costume que ficou
do tempo em que andava na escola, uma vez por outra aparece de visita.
Falamos do futuro, que para a maioria dos jovens em Portugal é sombrio.
Falamos da tarde de hoje: também viu carregar a vitela e deitou a fugir.
Falamos do avô dela, o senhor João Pacheco, por alcunha o Marceneiro, que
a seguir à Grande Guerra deixou Felgueiras e o Minho onde tinha nascido,
para vir parar à nossa terra. Aqui casou, gerou onze filhos, e durante
décadas foi o único carpinteiro e marceneiro de uma vasta redondeza.
Fazia traves de telhado e carros de bois, pipas, mesinhas-da-cabeceira,
janelas, caixilhos, soalhos, molduras, escanos. Obra grossa ou obra fina,
desde que fosse madeira era com ele. Vergado pelo trabalho, a idade e um
incomum amor ao vinho — nesse ponto pedia meças a meu pai e ganhava — é
agora ura ancião ensimesmado que passa o tempo a cuidar o pequeno jardim
em torno da casa que tem defronte do cemitério.
Conto do tempo da minha infância. O fascínio que me tomava quando na
oficina o via fazer girar o torno com um pedal de máquina de costura,
dando ao pau tosco um redondo perfeito.
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A Paula olha-me com uma expressão em que julgo ver descrença. Digo-lho e
ela responde-me que em casa nunca ninguém lhe falou assim do avô, que
aliás também não é homem de muitas palavras.
- Estas cadeiras fê-las ele.
Ela tem dificuldade em acreditar, mas minha mãe confirma. E não só as
cadeiras, mas os armários da despensa, os encostos dos cântaros onde
antigamente se guardava a água, o telhado, o forro do teto.
Entramos no meu quarto para que veja a cama e a mesinha-de-cabeceira,
ambas feitas por ele em madeira de castanho.
- Os torneados, os entalhes, aquelas bolas nas pontas, os enfeites da
cabeceira. Tudo à mão. Obra de artista.
Rimos quando lhe mostro as portas, também feitas pelo avô, como aliás
quase todas as que na aldeia datam dos últimos sessenta anos e,
infelizmente, quase todas com o mesmo defeito: por ser ele canhoto têm o
fecho do lado esquerdo.
Preparo um bacalhau desfiado com batatas e molho bechamel. Vai ao forno a
alourar. Sirvo-o com brócolos salteados. Minha mãe, que esteve o tempo
todo na cozinha a seguir o meu trabalho, come e bebe agora com bom
apetite, coram-se-lhe as faces. Descasca uma laranja. Debica um pastel de
nata. Pergunto-lhe se quer um cálice de porto. Quer. Encho dois cálices e
beberricamos em silêncio.
Inesperadamente diz ela que se não visse com os próprios olhos, não
acreditava. Que possa cozinhar quem nunca antes mexeu numa panela,
parece-lhe milagre.
Quarta-feira, 1 de Junho - Fará quinze anos que não vou a uma praia e o
tempo passou sem que o meu corpo desse sinal de precisar de sol. Mas dois
ou três dias depois de ter chegado à aldeia deu-me como que uma sede
epidérmica de luz solar. Desde então, assim que tenho oportunidade vou
para
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o monte. Longe do caminho, numa clareira rodeada de eucaliptos, fiz uma
cama de folhas e aí me estendo em pelo, meia hora de costas, meia hora de
barriga, gozando uma profunda satisfação animal.
As pessoas vêem-me ir e vir e acham estranho, porque antes ou depois me
veem também subir à serra com minha mãe a dar o nosso passeio diário.
Parece-lhes muito monte, muito caminhar, de vez em quando não se contêm,
param para me dizer que é mesmo coisa de tolo o ter carro e andar a pé.
Perto do cemitério novo encontro um grupo a gesticular. O jipe da Guarda
dá a volta e desaparece.
- O que foi?
- Droga - diz o Saragoça com um encolher de ombros.
- Droga?! Cá?!
- E - confirma ele, deixando-me de boca aberta. – Vem por aí um rapaz de
Freixo que a vende e com certeza foi denúncia que fizeram, porque os
guardas apareceram logo atrás dele, quase não lhe deram tempo de fugir.
Mais tarde uns garotos que andavam a brincar encontram atrás dum muro um
saco de plástico com placas de haxixe. Com a novidade acode o povo à rua.
O saco passa de mão em mão, uns a pegar-lhe com receio, como se fosse
veneno, outros quase com reverência.
Perguntam-me quanto valerá e eu respondo que não sei.
- Mil contos - diz o filho do General. - No mínimo mil contos.
Um rapaz garante que na discoteca de Foz Côa valeria o dobro:
- Dois mil contos na certa.
Pedem-me que o guarde comigo e o entregue à Guarda em Moncorvo, mas acho
mais prudente recusar. O viver em Amsterdão já é má fama que baste.
Não sei há quanto tempo não entro na casa de minha avó Elisa. O que foi o
céu da minha infância, onde cada canto
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guarda recordações, está uma ruína, com o telhado esburacado, o soalho
podre, teias de aranha como só se veem nos filmes de horror e ratos idem.
Às vezes ocorre-me que para manter vivo o passado e antes que derrua de
vez, eu deveria mandar fazer nela as obras de que precisa. Infelizmente,
com a emigração para o estrangeiro e o êxodo para as cidades, quase não
há quem seja capaz de compor uma parede, erguer um telhado ou desempenar
uma janela, e em todas as aldeias se veem prédios meio acabados, porque
os pedreiros subitamente se foram para Lisboa, o Algarve, ou a Suíça.
Dão-se tragicomédias. A nossa prima Natércia consegue rir ao contar-me o
caso, porque ao fim de cinco anos a memória do aspeto humorístico leva a
melhor sobre a fúria e as deceções.
Quis fazer casa nova e apalavrou com um homem que se dizia competente
para a empreitada. Apareceram os trabalhadores. Começaram a erguer a
primeira parede com um mínimo de alicerce e sem qualquer apoio. Ela, com
senso comum, chamou a atenção do empreiteiro para a fragilidade da obra,
ao que este respondeu que por ser professora saberia muito do abecedário,
mas de construção não entendia patavina.
A parede ia meio feita quando desabou. Recomeçaram com o mesmo método e
ruiu de novo. Da terceira vez foi um vendaval que a deitou abaixo e a
Natércia diz que noutra altura me contará as aventuras que teve com o
soalho, as janelas e o aquecimento. Pense eu bem se vale a pena meter-me
em obras, porque ao fim e ao cabo é na memória e não entre paredes que as
recordações melhor se guardam.
Ao fim da ceia não consigo parar os bocejos e de vez em quando cabeceio,
fecham-se-me os olhos. Imperturbável, minha mãe continua a lengalenga das
suas queixas: toda a gente é má, toda a gente a rouba. Roubam-na nos
pesos e nos trocos, nas medidas, nas encomendas. Pensam mais na ladroeira
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do que no trabalhar. O António nunca devolveu cinquenta escudos que lhe
pagou em demasia por um serviço. O correio ficou-lhe com dez escudos da
pensão. O cobrador da água diz que nunca tem troco bastante. Sabia eu que
o Zé da mercearia tira um fósforo de cada caixa e enche assim caixas que
depois vende e dão só lucro, porque não lhe custam vintém?
Esfrego os olhos, cansado de mais para retorquir. Roubam-na o homem da
hortaliça e o farmacêutico, o açougueiro, os funcionários da Caixa, o
pessoal do posto de saúde.
Não vou perder a paciência, não me vou zangar, mas levanto-me da mesa
antes que ela comece com a história do pão que tem de ter dois quilos e a
que sempre faltam cem gramas quando o pesa na balança da cozinha.
Estamos quase a acabar de lavar a loiça e ela não se cala: é nos selos,
nas panelas, nuns sapatos que não lhe trocaram em Mogadouro. O homem que
vem de Masouco vender laranjas esconde as podres no fundo. Há tempos
comprou um quilo de feijão e estava cheio de bicho.
- Por lei cada pão deve pesar dois quilos...
Apresso-me a pôr os talheres na gaveta, faço um gesto de despedida, corro
para a cama. Quando acordar a meio da noite irei então ao quarto de
banho, mas com os nervos o meu corpo em vez de adormecer não para de
tremelicar.
Quinta-feira, 2 de Junho - Ontem foi a Guarda atrás do rapaz que vende
droga, hoje é a Polícia em busca do filho do Aníbal. Pelos jeitos a morte
da patroa na Itália não foi inteiramente natural e a herança de que ele
falou também levanta suspeitas. O BMW é tirado do palheiro, examinado
minuciosamente e depois levado para a esquadra. Se o dono aparecer é
melhor que se apresente às autoridades.
- O meu rapaz está em Lisboa. Anda lá em negócio.
- Não anda, não, senhor - diz o chefe, severo. - Desapareceu para parte
incerta.
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O Aníbal quer acrescentar qualquer coisa, mas de emoção engasgam-se-lhe
as palavras e os que estamos ali presentes, embaraçados, não sabemos que
fazer nem para onde olhar.
O nosso telefone ainda é dos de campainha e quando retine parece um sino
de igreja. Fala o Joaquim Matos. Mesmo que fosse questão de urgência ou
de anunciar fatalidade, o bom e delicado Joaquim não passaria ao assunto
sem primeiro sinceramente se informar da saúde e do bem-estar de nós
todos. Estamos de saúde? Corre tudo bem? Ótimo. Então, se ainda é certo
que eu daqui a oito dias vou ao Porto, marcamos já encontro para almoçar.
Cada vez que passo pelo cemitério penso em meu pai. As mais das vezes com
tristeza, recordando as ocasiões perdidas, as palavras nunca trocadas, a
incrível dissemelhança dos nossos caracteres.
A campa em que repousa está como no dia do enterro e o seu arranjo tomou-
se entre mim e minha mãe questão tão penosa que deixámos de falar no
assunto. Ela queria-a com flores de tijolo e enfeites, um poema piedoso e
Requiescat in pace por cima de um retrato oval esmaltado. Eu queria-a sem
retrato, coberta por uma placa simples de granito polido com o nome, a
data do nascimento, a data em que faleceu.
Onze anos passados continua apenas de terra, enquanto em volta tudo são
mármores e floreados.
Sexta-feira, 3 de Junho — Na vila entro no talho a comprar carne. Sou o
único cliente e porque o açougueiro não está atende-me a mulher. Enquanto
ela em silêncio apronta a encomenda, não me posso impedir de a olhar e de
mais uma vez deixar correr a minha fantasia. Passasse por aqui um talento
scout da indústria cinematográfica, a mulher do açougueiro certamente
despertaria a sua atenção.
De estatura mediana, esbelta, ossatura delicada, o cabelo solto emoldura-
lhe um rosto oval simétrico onde avultam
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olhos negros cercados por longas pestanas. O nariz é retilíneo, as
sobrancelhas finas, bem acentuadas e a pele, de tom mate, não acusa uma
única ruga. A boca e os lábios são de desenho perfeito. Surpreende nela
ainda a maquilhagem, que denota um conhecimento profissional, e o facto
do seu rosto nunca trair emoção.
E distante, fria na aparência, mas com a beleza que possui
instintivamente se lhe deseja um destino melhor que o de passar a vida a
cortar carne num cepo.
Pego no saco, pago, ela faz o troco. Relutante em lhe voltar as costas
com um simples boa tarde, peço-lhe que dê os meus cumprimentos ao marido
que já há tempos não vejo. Ela encara-me um instante em silêncio e
depois, impassível, diz simplesmente:
- Mataram-no.
- Mataram-no!? - Julgo não compreender bem, tanto mais que não a vejo de
luto.
- Há três meses. Esperaram-no quando vinha da horta e deram-lhe um tiro.
- Mas como? Quem? - a estupefação obriga-me a gaguejar.
- Não se sabe. A Polícia não conseguiu descobrir quem foi.
- Algum inimigo?
- Ele não tinha inimigos.
- Ou para o roubar?
— Não lhe roubaram nada. Tinha a carteira é os anéis, o relógio.
Segue-se um silêncio incómodo. Não sei que mais dizer e ela, parada junto
do cepo, olha-me dum modo tão indiferente e frio que me pergunto se a
ouvi mesmo dizer que lhe assassinaram o homem. Atabalhoo umas palavras de
condolência e saio.
Na rua o sol brilha, a temperatura é amena. Isso e a algazarra alegre dos
adolescentes que correm da escola para o café ajuda a dispersar a sombra
dos meus pensamentos.
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- É. Não se sabe quem foi o assassino. Nem nunca se vai saber - diz o
doutor Pimentel, sentado na mesa da cozinha a comer as suas sopas de
leite.
A Palmirinha pergunta-me se quero café. Já hoje tomei quatro ou cinco e
hesito, não tenho muita vontade, mas finalmente aceito. Ela sorri,
contente de ver que não quebro o ritual. Porque não se trata de um café
qualquer, mas de café que o irmão lhe manda de Luanda e ele, por vias
travessas, obtém dos lotes destinados ao palácio presidencial. Assim
durante as minhas visitas se criou o hábito de bebermos um «café do
presidente», o qual, para dizer a verdade, tem um sabor amargo e fraco
aroma.
- Mas têm matado mais - continua o meu amigo. - Então nos últimos meses
parece praga. Mataram um homem em Carviçais à paulada, e também não se
descobriu. Outro no Felgar. Desse dizem que foi a mulher que pagou aos
ciganos para que o acabassem, mas martirizava de tal modo a pobre e era
tão malvado para a vizinhança, que toda a gente se sentiu aliviada quando
o descobriram com um tiro na cabeça.
Oiço calado e de vez em quando concordo com um gesto, mas perco-me a
divagar. Por um lado é real a serenidade idílica da nossa aldeia e dos
montes que a rodeiam, mas ninguém negará a tremenda violência recalcada
que um nada faz aflorar. Questões de águas, birras mesquinhas sobre um
direito de passagem, um muro, uma árvore que faz sombra a um campo, e
logo dos murros se passa às cacetadas, sacam-se navalhas, gritam-se
ameaças de morte.
Também não compreendo porque me perturbou tanto o assassinato do
açougueiro. Afinal quase todos os dias converso em boa paz com os dois
irmãos que resolveram mandar matar o irmão mais novo, só porque ele não
concordava com a partilha da herança. Salvou-o o eles acharem caro os
duzentos contos que os ciganos pediam pelo serviço.
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Sábado, 4 de Junho — Voltar a Moncorvo para fazer compras não é
exatamente uma necessidade, mas uma escapatória. A torrente verbal de
minha mãe ou, ainda pior, a sua silenciosa presença colada a mim, causa-
me uma real falta de ar. Se anuncio que vou para o monte, ela espera ir
comigo. Às vezes escapo para o quarto de banho. Quando a asfixia se torna
mesmo crítica, vou às compras. Dentro do carro sinto-me agradavelmente só
e alivia-se-me o espírito com os cuidados da condução.
Na vila a praça tem um ar festivo. Há pequenos grupos de gente à porta
dos estabelecimentos, outros flanam, outros esperam pela carreira junto
da bomba da gasolina, os taxistas estão como sempre à conversa defronte
do tribunal. De longe a longe aparece um carro e então as conversas
param, os olhos seguem-no enquanto rodeia a placa, a ver se é algum
conhecido. O carro desaparece, as conversas continuam.
Os cães vadios, mais de uma dúzia e habituados a andar em matilha, estão
deitados junto das escadas que levam ao correio. O cauteleiro não
apregoa: para diante dos grupos e acena com o maço de cautelas que traz
preso a um alfinete.
Vestido de preto, o chapéu no cocuruto da cabeça como sempre desde que o
conheço, apoiado a uma bengala desde que lhe deu o ataque, o senhor
Carlos Mateus que antigamente tinha a loja de panos sentou-se num banco à
sombra.
Da mesa junto das portas envidraçadas do café vejo a praça quase toda e
esqueço o passar do tempo. Saio apressado porque o supermercado está
quase a fechar.
No regresso um inesperado engarrafamento junto do miradouro. Construído
quarenta e pico anos atrás a meia encosta da serra do Roboredo, que me
lembre nunca lá vi parar ninguém. Mas nos últimos tempos, com o
espetacular desenvolvimento do número de automóveis, aos fins-de-semana e
feriados as famílias saem da vila e fazem de carro os dois quilómetros
que levam à esplanada. Aí passam horas a admirar a mesma paisagem de
montes e rochedos que veem de casa,
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a beberricar, a comer merendas, a repreender os miúdos, a olhar-se, a
sacudir morosamente o pó dos seus Toyotas.
Para a ceia preparei polvo cozido com batatas e ovos, acompanhado pelo
molho cru de azeite, vinagre, alho, pimenta e salsa picada a que em
francês se dá o elegante nome de vinaigrette.
Minha mãe fala das duas mortes mais recentes, ambas trágicas, ambas de
parentes: a Maria dos Santos, prima direita; a Leonor, prima em segundo
grau.
Pessoalmente a da Maria dos Santos toca-me mais, porque andou comigo ao
colo, quis-me ensinar a ordenha das ovelhas (o que eu assustado recusei),
dava-me castanhas assadas na cinza do lume e quando cozia pão no forno
nunca se esquecia de me fazer uma bola com forma de ave, asas, bico,
patas e tudo. Depois cresci, ela envelheceu, e mau grado o seu carácter
brusco a nossa amizade continuou.
Quando esquece o azedume e dispensa o seu veneno só às gotas, minha mãe
sabe contar. O eu ter conhecido a personagem não me impede de apreciar o
vívido retrato que ela pinta da prima nos últimos anos: uma Maria
empobrecida, sofrendo com o homem, um fraquezas que não conseguira
emigrar e ainda por cima passara vinte anos entrevado antes de entregar a
alma ao Criador. Das três filhas, duas tinham ido para São Paulo, uma
solteira, outra casada. A mais velha, também casada, mudara-se para
Carviçais e morrera dum cancro antes de chegar aos trinta.
Amargurada, sozinha na casa ao pé da igreja, nos últimos anos passava o
tempo sentada no muro do adro a ver quem passava e fazendo um inútil
croché. Em 92 escreveu às filhas que queria ir para junto delas e o
genro, homem bondoso, veio ele próprio buscá-la para lhe evitar as ânsias
de se ver pela primeira vez dentro dum avião.
Em São Paulo as coisas correram mal. Não conseguia habituar-se ao
ambiente da cidade, nem compreendia a vida agitada que as filhas e o
genro levavam de manhã à noite na loja de
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verduras que tinham. Depois foi atropelada por um carro, partindo ambas
as pernas, e finalmente deram-lhe tais saudades da aldeia que suplicou
para que a mandassem de volta.
Acompanhou-a a filha mais nova, com a promessa de ficar uns tempos, mas
logo de começo se notou que acabaria em tragédia. Primeiro tentou
enforcar-se num castanheiro perto da estrada e salvou-a in extremis a
gente dum carro que ia a passar. Da segunda vez enrolou a corda numa
trave do teto da cozinha, junto da lareira, mas a corda não aguentou o
peso. A filha, com um mau pressentimento, tinha corrido do adro para casa
e descobriu-a caída sobre o lume, desmaiada, a roupa em chamas. Levaram-
na de urgência para o hospital de Mirandela, mas por qualquer motivo as
queimaduras gangrenaram e morreu uma semana depois num grande sofrimento.
Minha mãe fica um instante silenciosa, talvez perdida nalguma recordação,
mas como que num virar de página logo franze os lábios num sorriso de
desprezo:
- Agora a Leonor, essa, só com o que o seguro lhe pagou de viagens e
tratamentos sustentava-se uma família a vida inteira.
Não comento para a não encorajar na tirada e começo a descascar uma
laranja.
- Só de comboios! De cá para Lisboa, de Lisboa para cá. Hospital assim,
hospital assado. Especialistas. Operações. Pomadas. Comprimidos. Uma
fortuna! E sempre desagradecida, sempre a fazer carinha de enjoada. Umas
vezes que era o cancro. Depois já não era o cancro, era o coração, ou dos
rins, ou da coluna. Não sei como os médicos tinham paciência para a
aturar.
Mas chegou o dia em que no hospital a deram por perdida e veio recado à
família para que a mandassem buscar, pois enquanto vivesse a ambulância
transportava-a de graça, mas depois de morta custava cem contos.
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Minha mãe descreve a sequência com algum sentido do drama e a sua
costumeira mordacidade. A chegada da ambulância, o choro dos vizinhos, a
gritaria das filhas, e como depois, porque ela se queixava do frio,
puseram a moribunda na cozinha perto da lareira.
- Mas porque são mesmo umas desatinadas – minha mãe chora de riso, seca
as lágrimas com o lenço - em vez de lhe porem os pés para o lume,
puseram-lhe a cabeça. Que era melhor! E a Leonor a gritar que a tirassem
dali. Que a matavam com tanto calor!
Foi um calvário. Quinze dias depois ainda não tinha morrido e foram de
novo com ela para o hospital, onde lhes disseram que não ia durar muito.
Pensassem na despesa da ambulância. O mais sensato era levá-la para casa.
E como a doente tinha deixado de comer e de beber, mandaram-lhes comprar
na farmácia um frasco de xarope alimentício. Um conto e quinhentos!
Minha mãe sufoca de riso ao contar a aflição dos familiares. Porque a
Leonor não morria, mas também não melhorava. E porque não queria comida,
só queria o xarope, se demorasse muitos dias teriam de comprar outro e ia
ser dinheiro deitado à rua. Quando lhe davam o líquido, de manhã e ao fim
da tarde uma colher de sopa, juntavam-se os parentes e os vizinhos em
volta da cama, fascinados a olhar para o frasco que inexoravelmente se ia
esvaziando.
Mas a Leonor não o chegou a acabar. Morreu sozinha, um domingo de manhã,
quando todos estavam na igreja a ouvir uma missa encomendada para que
Nosso Senhor se compadecesse dela.
Passa da uma da noite quando acordo sobressaltado com um som de tiros.
Logo a seguir mais duas detonações. Visto-me à pressa e corro para a rua.
Estranho não ver ninguém e que não haja alarme. Na canelha fronteira à
nossa oiço um barulho de vozes, gritos abafados, e logo a seguir outro
tiro.
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Corro para lá. Duas mulheres empurram um homem para dentro duma porta;
uma outra, de espingarda na mão, está parada a olhar.
A Sofia ri-se de me ver ali e pergunta se me assustei.
- Ouvi tiros. Julguei que fosse alguma desgraça.
- Não é nada. Quando o Samuel bebe de mais dá-lhe para vir para a rua com
a espingarda e põe-se aos tiros para o ar. Depois a mulher e nós lá o
levamos às boas para casa e ele aos poucos vai acalmando.
Digo-lhe que esperava ver gente, mas ela explica que as pessoas se
habituaram e como já sabem o que é não se afligem, nem aparecem a acudir.
- Por causa do tiroteio e da gritaria — continua — é que puseram à nossa
canelha o nome de Guiné. E ele antigamente era o Magro, mas agora só lhe
chamam o Terror da Guiné.
Domingo, 5 de Junho — A meio da manhã para Moncorvo para o ritual da
compra dos jornais e a visita ao café. Ainda é cedo e o Expresso esgotou-
se. Acho estranho e falo com o dono do quiosque que, numa vila com uns
mil habitantes e outros tantos ou mais nas aldeias em redor, só encomenda
dez exemplares no Verão e cinco no Inverno.
— Se encomendasse mais — diz ele — quem mos comprava? E olhe que mesmo
tão poucos, às vezes ainda sobram.
De volta a casa, ao passar em Carviçais vejo o carro do engenheiro Camisa
defronte do Café Lisboa, e como faz tempo
que não nos encontramos resolvo ir cumprimentá-lo. Mas antes de entrar
paro a apreciar o automóvel, um Dodge cinzento do início dos anos 60, com
ailerões cromados e uma frente que lembra um focinho de tubarão.
Mastodôntico. Peça de museu. Painel espetacular. Rádio de válvulas.
Alavanca de velocidades sob um grande volante branco onde avulta o aro
cromado do cláxon. O espaldar dos assentos de couro decorado com um
vistoso monograma dourado.
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De dentro do estabelecimento o engenheiro sorri e quando entro graceja a
lembrar-me que desde há anos lhe cobiço o carro, mas que não mo vende.
- Nem mo deixa guiar.
- Também não. Nem a ti, nem a ninguém. Basta o que sofro quando tenho de
o levar à garagem e vejo o mecânico sentar-se nele.
Conversamos. Alto, magro, vestido e penteado a rigor, ninguém lhe dará os
oitenta e tal anos que tem. Solteiro, abastado, solitário porque lhe
morreu a família inteira, fora as telenovelas poucos interesses lhe
restam.
Todos os dias depois de almoçar mete-se no carro e vai até ao café,
viagem de um quilómetro. Toma um descafeinado, lê o jornal, e quando lhe
parece que a mulher que lhe faz a comida e a limpeza já deve ter ido
embora, volta então à casa onde nasceu, junto da igreja. Muito de longe a
longe visita um ou outro dos poucos amigos ainda vivos e uma vez por mês
desce a Moncorvo para a feira e o corte do cabelo.
Essa é a vida do engenheiro Camisa até 31 de Outubro. Desde que se
reformou em 1973, todos os anos na manhã desse dia a empregada carrega-
lhe as malas no Dodge e ele parte para o Porto a fazer o que chama a sua
«hibernação.» O automóvel vai para uma garagem onde cuidadosamente o
cobrem com uma lona, ele instala-se na mesma pensão de sempre. A 1 de
Novembro inicia outra rotina: das nove da manhã até à uma percorre a
cidade de elétrico. Depois almoça, dá um pequeno passeio digestivo, e às
três reembarca, só deixando o elétrico à hora do jantar. Todos os dias
assim, chova ou faça frio, até que pontualmente a 31 de Março faz a
viagem de regresso a Carviçais.
Pergunta como me vai a vida. Se continuo na Holanda. Se já alguma vez me
contou um caso que se passou com ele nos anos cinquenta, quando foi a
Haia em missão de serviço.
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Nessa altura era já alto funcionário e tinham-no mandado ir estudar as
construções escolares na Holanda. Foi recebido com excecional cortesia e
lembra ainda a impressão que lhe fez como tudo era bem organizado. No
ministério em Haia pedia-se o documento mais obscuro, por exemplo, a
planta duma escola nos confins da província, e logo dentro de minutos
aparecia um contínuo com ele. Fosse assim em Portugal!
Mas o caso que então o divertiu e ele gosta de repetir cada vez que nos
encontramos, deu-se depois da última reunião de trabalho. Os
participantes, entre eles vários estrangeiros, tinham passado a uma sala
próxima onde, no aguardo do jantar, lhes foram servidos acepipes a
acompanhar generosas rodadas de cerveja e de genebra. Nessa altura fez-
lhe espécie o curioso comportamento dum colega holandês com quem pouco
tinha contactado, mas que visivelmente se esforçava por lhe falar a sós.
Por fim lá o seguiu até um vão de janela e aí, erguendo o copo, o homem
brindou à sua saúde e confidenciou-lhe num sussurro:
- O senhor veste bem, mas eu também só uso fatos por medida.
Depois do que, fazendo novo brinde, desapareceu na sala e não lhe voltou
a dirigir palavra.
Segunda-feira, 6 de Junho — O senhor Machado ri às gargalhadas ao contar
de um amigo que tem no Porto, a quem o enriquecimento inesperado deu
volta à cabeça. Nos arredores da cidade mandou o homem construir uma casa
que não só se distingue pelos exageros da arquitetura, mas ainda pela
adaptação da tecnologia mais avançada. Portas e janelas, cortinados, ar
condicionado, a estufa, a piscina, a alimentação das galinhas na
capoeira, o sistema de segurança, tudo é automatizado e eletronicamente
controlado.
Quem passa nota sobretudo a antena parabólica, que com os seus três
metros de diâmetro e a torre de tubos em que assenta tem um ar definitivo
de objeto de Science fiction.
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A gente vai visitá-lo — o senhor Machado dobra-se de riso - e mal nos
sentamos ele pega na caixinha do controlo. «Então, digam lá, o que é que
querem ver?» Mas aquilo é perguntar por perguntar, porque ele começa a
mexer nos botões. Primeiro dá um comando para abrir as cortinas e vermos
melhor a parabólica. Depois marca uns números e a antena começa a rodar.
«Vamos à China», diz ele. Espera-se um bocado e não há imagem ou a que
aparece é fraca. «Vamos à Espanha. Vamos à Rússia. À Alemanha, ao Chile,
ao Luxemburgo... Vamos à América. Olhem, aí está a América!» Mas ele não
dá tempo a ver, o gosto que tem é de saltar dum canal para outro e pôr a
parabólica a girar em todos os sentidos. Ao fim duns minutos correu-se o
mundo inteiro, não se viu nada, fica-nos a cabeça em água.
Imagino a cena e rio com os presentes do fascínio do homem pelas benesses
da tecnologia. Mas desde que descobriu as maravilhas do vídeo, o próprio
senhor Machado também me tem proporcionado alguns momentos de hilaridade.
Não somente pelo fanatismo com que filma, como pela forma como comenta.
Filma a cozinha onde estamos e logo passa o vídeo na televisão,
acompanhado dum pleonástico: «Isto é a cozinha.» Se filma na rua lá vêm
os infalíveis comentários: «Isto é um homem sentado à porta duma casa
velha. Isto é um muro. Este é o cão do Guilherme. Antigamente era aqui o
forno. Esta é a casa do capitão. Por aqui abaixo vai-se para a ribeira.»
Os primeiros minutos aguentam-se mal, mas aguentam-se. Passada uma hora
sente-se uma ligeira tontura, mas quando ele mete a segunda cassete as
imagens e o comentário induzem uma forma de histeria. Pela décima vez a
câmara varre a paisagem, desce pelo monte abaixo, o zoom aproxima os
penedos das margens, mostra a água a borbulhar na correnteza e o senhor
Machado comenta na sua voz sonora: «Estamos na ribeira.»
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Não tenho nada que saber, nem me atreveria a perguntar porque razão as
mantêm ali, mas as duas sanitas que a Amélia trouxe de Angola em 1974
ficaram desde então arrumadas na varanda e são para mim há vinte anos uma
presença insólita. Ao mesmo tempo tornaram-se-me tão familiares que me
custaria se agora as retirassem. Olho-as instintivamente cada vez que
saio de casa, talvez a confortar-me com a ideia de que afinal nem tudo
muda.
Desde que na minha infância ouvi contar que o coronel Lopo, que no começo
do século viveu na nossa aldeia e tinha a paixão de escavar vestígios dos
nossos mais remotos antepassados — o que ele descobriu está no Museu
Abade de Baçal, em Bragança ¦— sempre me fascinou a ideia dessa gente que
pisou os mesmos carreiros que piso e se maravilhou com a mesma paisagem.
No Cabeço de São João, onde viveram os homens do Paleolítico, e nas Casas
de Baixo, onde ainda há muros que datam dos Romanos, muitas vezes
procurei sem nada encontrar, talvez porque o coronel foi eficiente nas
suas buscas.
Contudo, por hábito, quando ando pelos montes os meus olhos vão tanto
para a paisagem como para o caminho, na esperança de subitamente
descobrir um vestígio do passado. A sorte sorriu-me no dia em que achei
uma moeda do século XV. Esta tarde na borda do caminho e num lugar onde
só se via xisto, uma pequena pedra de granito chamou-me a atenção pelo
facto de não pertencer ali. Peguei-lhe, mal crendo no que via: dum lado
plana, do outro terminando numa superfície aguda; visivelmente
trabalhada, adaptou-se à minha mão como o verdadeiro instrumento cortante
que com certeza foi.
Hei-de pedir a opinião de quem sabe, mas vou estranhar se me disserem que
uma pedra com esta forma saiu assim da natureza.
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Terça-feira, 7 de Junho — Os luxos da Holanda habituaram-me à quase
infalibilidade do funcionamento do telefone. Aqui, resmungando, há muito
que me acomodei a que a linha de vez em quando inexplicavelmente morra e
minutos ou horas depois ressuscite. Hoje a demora é tão longa que saio à
rua a perguntar, mas pelos jeitos ainda ninguém tinha dado conta de que
os aparelhos não funcionavam. Uma voz opina que deve ter sido trovoada,
porque havendo faíscas o telefone cai.
Com o maço de cartas apertado debaixo do braço, o carteiro parou a ouvir
os comentários e sorri de tanta ingenuidade:
- Trovoada coisa nenhuma. A noite passada os ladrões roubaram as linhas.
Mais de cinco quilómetros de fio de cobre que lhes vai dar bom dinheiro
na sucata.
Ficamos desolados, como se nos tivessem cortado do mundo. Porque mais
demora, menos demora, uma avaria sempre se compõe, mas quanto tempo
levará a repor tantos quilómetros de linha?
O Zé Joaquim cruza comigo na rua, leva ligeiramente a mão à aba do boné,
dá-me as boas-tardes com um jeito acanhado e contra o seu hábito não para
a conversar. Acho estranho e à noite, ao jantar, pergunto à minha mãe que
razão terá ele para andar assim acabrunhado.
Ela pergunta-me se me lembro alguma coisa da sua vida. A pobreza, os
muitos filhos que nasciam mortos ou viviam pouco tempo, como logo depois
da guerra tinha ido de colono para Moçambique. Aí, trabalhando como
mouro, conseguira fugir à miséria sem contudo alcançar a mediania e,
quando finalmente julgava vislumbrar um bocadinho de esperança, a Guerra
Colonial recambiara-o para a aldeia, envelhecido, cansado, tão pobre como
tinha partido.
De novo voltou a ir à jeira e felizmente o trabalho era agora mais bem
pago, mas dos dois filhos que lhe restavam, ambos rapazes já nos vinte,
nenhum se achava em condições de
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ganhar o pão. Em Moçambique tinham-se habituado à droga e na aldeia, se
não conseguiam comprá-la, punham-se aos gritos, faziam desmandos,
assustavam as pessoas quando caíam na rua com os ataques.
Condoído, meu pai tinha conseguido colocar o mais velho numa escola
profissional onde aprendera para carpinteiro, desaparecendo depois em
Lisboa. O outro, sem salvação, fora internado num manicómio.
- Mas porque é que o Zé Joaquim anda com aquele ar acabrunhado? - insisto
eu, a ver se paro o espraiamento da narrativa.
- Ah! Já me esquecia. Isso é outra coisa. Ele anda assim porque aqui há
tempos me veio falar. Mais isto, mais aquilo, que tinha sido muito amigo
do teu pai, que só tinha razões para lhe agradecer, mas se eu fazia o
favor de mandar rezar umas dez ou vinte missas pelo repouso da sua alma.
Eu então perguntei-lhe a razão e já que tinham sido tão amigos porque é
que as não encomendava ele próprio ao padre. Respondeu-me que anda cheio
de medo. Diz que quando se vai deitar o teu pai lhe aparece ao pé da cama
e fica a olhá-lo com uma cara severa. E que mesmo com os olhos fechados
continua a vê-lo.
Quarta-feira, 8 de Junho — Conhecemo-nos o ano passado, num jantar em
Scheveningen. Alto, olhos de azeviche, o cabelo longo e brilhantina do
que se espera nos aficionados do tango, postura aristocrática, maneiras
irrepreensíveis, o conde de Calheiros é aos quarenta e poucos anos um
homem importante em Portugal. Entre as suas inúmeras atividades ressalta
a de impulsionador do turismo e a ele se deve a fundação duma organização
que reúne uma centena e pico de casas aristocráticas transformadas em
estabelecimentos hoteleiros.
Como era inevitável falámos de turismo. Dos holandeses que se hospedam no
seu paço e, com o meu guia na mão, lhe traduzem as referências que lhe
faço — nem todas isentas de
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ironia. E que ele gostaria de que um dia conversássemos sobre algumas
ideias que tem.
Francamente devo dizer que, terminado o jantar e feitas as despedidas, eu
tinha esquecido o conde. Mas quando em Maio estava prestes a partir para
Portugal, chegou-me recado de que
ele esperava que eu me hospedasse por alguns dias em sua casa.
Combinámos a data pelo telefone e amanhã parto para lá. Mas talvez por
não saber o que me espera, tenho o sentimento de que aproveitaria melhor
o meu tempo se regressasse a Amsterdão.
Como sempre no último dia, minha mãe e eu fazemos o possível, e
conseguimos, para que o jantar comece e termine em harmonia.
Quinta-feira, 9 de Junho — Saio por volta das sete e meia da manhã.
Passada Vila Flor e levado por uma pressa imaginária a atalhar caminho,
meto em direção a Abreiro e Caldas de Carlão, quilómetros de estrada
esburacada e muito perigosa. Atravesso Vila Real, de que guardo boas e
desagradáveis recordações do tempo que lá passei na juventude. Paro na
Pousada do Marão a tomar o pequeno-almoço e perto do meio-dia estou nos
arredores do Porto.
Duma bomba de gasolina telefono ao Joaquim Matos a combinar encontrarmo-
nos daí a meia hora na garagem da Rua Passos Manuel. Quando lá chego
vejo-o à porta, irrepreensível como sempre na pontualidade, na amizade e
no fato.
Dali para o restaurante vamos no carro dele e é de arrepiar os cabelos. O
sabê-lo cego dum olho e com fraca visão no outro também não contribui
para o meu descanso. Homem carinhoso, atento, personificação da bondade,
ao pegar no volante o Joaquim encarna num tigre-de-bengala e ruge,
buzina, acelera como nas corridas, trava no último centímetro, ultrapassa
por onde pode ou usa o passeio, enfia destemido pelos sentidos proibidos.
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Felizmente chegamos sem empeno ao restaurante onde a Teresa nos espera.
Ela ri do meu sobressalto e conta que a conduzir na cidade o Joaquim é um
exemplo de pachorra comparado com as fúrias que o tomam na estrada. Aí
faz as curvas a noventa à hora e sobe aos cento e sessenta nas retas, com
pena de que o carro não dê mais. Tivesse o Alfa Romeo dos seus sonhos e
imitaria o Concorde, chegando ao destino mais cedo que a hora da partida.
Rimos. Conversamos sobre a situação do Letras & Letras e a
impossibilidade em que ele se encontra de financeiramente aguentar por
muito mais tempo a publicação do jornal. Conversamos e comemos com a
pachorra de amigos que saboreiam a conversa, o almoço e a companhia.
Talvez seja isso que nos torna indulgentes para com a numerosa e
barulhenta família ao nosso lado, umas vinte pessoas abancadas a uma
longa mesa, que em tudo encontram razão para gritarias e palmas. Que têm
dinheiro, facilmente se adivinha. Que são novos-ricos lê-se-lhes no
comportamento, no espalhafato do vestuário, no ouro, nos diamantes.
De súbito faz-se um relativo silêncio que nos leva a olhar e a ver que um
dos homens presentes marca um número num telemóvel. Ouvimo-lo dizer que
está no restaurante, que está tudo ótimo, que corre tudo bem. Os outros
rebentam numa enorme gargalhada e só então nos damos conta que ele não
ligou para qualquer lugar afastado, mas simplesmente para o outro lado da
mesa onde um parente, também de telemóvel no ouvido, lhe responde que
realmente estão no restaurante, que está tudo ótimo, que tudo está a
correr bem.
A meio da tarde retomo o caminho. Meto pela autoestrada de Braga numa
marcha ronceira que alonga a viagem mas facilita a digestão, mais
interessado na segurança do que no pitoresco.
O pitoresco e os sustos começam na EN 201 de Braga a Ponte de Lima. No
mapa são trinta e poucos quilómetros de estrada, na realidade é uma longa
rua aldeã onde os animais
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domésticos, os carros de bois, as motorizadas, os tratores, as mulheres
com carregos à cabeça e os anciãos inválidos surgem repentinamente nas
curvas, como que apostados em fazer com
que eu me afogue em adrenalina.
A entrada do paço do conde na aldeia de Calheiros faz-se por uma comprida
e muito larga alameda ladeada de árvores seculares. Do lado esquerdo
ficam as antigas estrebarias, transformadas em apartamentos; do lado
direito corre um muro donde avisto um esplêndido panorama do vale do Lima
banhado de sol.
Hesito entre duas escadarias e duas portas, mas aquela porque decido
mostra ser a boa, porque não tardo a encontrar a filha do conde que me
faz as honras da casa. O quarto que me reservaram é um aposento
confortável onde sobressai uma cama napoleónica, e é nela que me deito a
ganhar forças para abrir a mala e arrumar a roupa.
A filha do conde bate à porta. O papá está ao telefone e quer-me falar.
Vou por um corredor até ao nicho onde se encontra o único aparelho à
disposição dos hóspedes e correspondo às cortesias do meu anfitrião, que
se desculpa de não me ter podido receber por se encontrar em Viana do
Castelo. Agradeço-lhe a hospitalidade e as boas-vindas que me dá. Depois
pergunta se a Loekie veio comigo. Não veio. Então se estou sozinho e não
me importo, ele agradecia que eu mudasse para outro quarto, porque tinha
havido um pequeno engano e outros hóspedes exigiam hospedar-se no chamado
«quarto Império.»
Claro que não me importo e logo aparecem as criadas a mudar a minha
tralha. O segundo quarto não tem a vista espetacular do primeiro, mas é
igualmente confortável e acho-o mesmo mais do meu agrado.
Entretanto chega o Zé Luís, que insistira em me convidar para jantar.
Amesendamos num restaurante em Ponte de Lima, ali a dois passos, e por
curioso acaso logo atrás de nós entra o conde com um ruidoso grupo de
galegos. Abraços, apresentações, apertos de mão. Agradecemos o convite
para jantar
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com eles, mas recusamos, e para estarmos à vontade vamo-nos sentar no
fundo da sala.
Irónico e inteligente, muito bem informado, Zé Luís faz-me um panorama
dos interesses locais, dos boatos, retrata vivamente as personagens, as
suas andanças. Revela também alguns segredos que de facto não me
interessam, mas ajudam a colorir o que doutro modo pareceria um cinzento
e monótono viver provinciano.
Do tráfico local da droga, seu tema favorito, não quero que fale, pois
com a sua ajuda tanto tempo e esforço gastei a investigá-lo que me
encontro ainda em ponto de saturação. E ele, rindo, muda de assunto,
conta-me então dum amigo que tem em Viana do Castelo.
Esse amigo tem uma filha, a filha vive na Holanda com um holandês, o
holandês apareceu-lhe o ano passado em casa e sacando dum exemplar do meu
livro O Milhão anunciou uma estranha expedição. Que era seu intento
viajar para Vila Nova de Gaia e, acompanhado dum compatriota, fazer
exatamente o mesmo percurso que eu descrevo no conto «De comboio para o
paraíso». Mas dias depois estavam ambos de regresso, um tanto tristonhos,
porque ao chegarem à estação do Pocinho se deram conta de que a linha do
Sabor já não existe.
Conhecendo a pertinácia deste povo, tenho a certeza que se a linha ainda
existisse eles não hesitariam em fazer de burra o longo caminho que vai
da estação de Carviçais à porta da nossa casa. Infelizmente, também aí os
esperaria outra deceção: ao abandono desde que se fez a estrada, esse
pitoresco e rude carreiro usado desde o princípio do mundo acha-se hoje
quase inteiramente coberto de mato.
Sexta-feira, 10 de Junho — A Loekie faz anos, mas como quase todos os
dias nos telefonamos, não temos novidades para dar. Falamos do tempo, que
aqui vai esplêndido de sol e na
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Holanda carrancudo de chuva e frio. Pouso o telefone, volto-me e descubro
o conde, todo sorrisos, boas maneiras, gentileza, a informar-se se dormi
bem, se o pequeno-almoço foi a gosto.
Tem uma coisa para me pedir, mas eu devo ser sincero e se não for do meu
agrado simplesmente recusar. De acordo? De acordo. Acontece que chega
hoje um casal que se vai hospedar no quarto fronteiro ao meu e que
precisaria do meu quarto para nele dormirem dois filhos pequenitos que
têm de ficar perto dos pais. Importo-me de mudar mais uma vez? Claro
que não. Ele garante-me absolutamente, definitivamente, que é a última
mudança, que o aborrece maçar-me com estas coisas, que me fica grato pela
boa vontade.
Daí a pouco chegará o C.T., que vem especialmente do Porto para tratar do
assunto que nos interessa. O assunto que nos interessa? Mas quando lho
quero perguntar já ele desapareceu na cozinha a dar ordem às criadas que
me mudem para o quarto do rés-do-chão do torreão.
Do novo quarto avista-se a bela paisagem que se via do «quarto Império»,
tem o mesmo conforto e, à entrada, um pequeno terraço com uma mesa, um
banco de jardim, duas cadeiras. Aí me instalo para trabalhar, mas quase
logo em seguida um pequeno automóvel coberto de pó para numa travagem
brusca e dele sai um homem de estatura avantajada, cabelo alourado, olhos
claros, bigode melancólico.
O conde aparece na escadaria, abraça o recém-chegado, toma-lhe
amigavelmente o braço e acompanha-o até ao meu terraço, faz as
apresentações. C.T. é sociólogo e funcionário superior num organismo que
coordena os planos turísticos e de ordenamento do território. Sentamo-nos
e ele, sem perder tempo em divagações pega numa folha de papel, num
lápis, explica-me com um diagrama e o mínimo de palavras o que se espera
que venha a ser o desenvolvimento do turismo na região. Num segundo
diagrama traça o percurso que seguem os subsídios da União Europeia,
desde que são concedidos em Bruxelas até chegarem às autoridades e aos
organismos regionais.
70
Uma federação desses organismos, de que o conde é presidente, teria
interesse em utilizar o meu guia de Portugal como veículo de propaganda
no estrangeiro, editá-lo em várias línguas, fazer em torno dele uma vasta
propaganda. O conde assente com um aceno e um sorriso.
- É negociável? - pergunta C.T.
- Certamente - respondo eu.
Ele mostra-se ao corrente das percentagens usuais para os direitos de
autor e noutra folha de papel começa a fazer cálculos. Uma edição de
tantos milhares em inglês, uma edição de tantos milhares em francês, e em
espanhol, em alemão, em sueco. Uma edição de prestígio em português,
excelente para as relações públicas, encadernada, colorida, em papel
caro. Outra edição em italiano, talvez também uma em árabe.
- Que lhe parece?
Parece-me excelente. Olho de soslaio para a folha onde ele vai escrevendo
números e o meu cérebro, que nunca se mostrou bom em contas, faz com
razoável rapidez uma adição aproximada do total. A soma exata fá-la ele
na máquina de calcular que tirou do bolso e mostra-a ao conde, mostra-ma
também, quer saber se concordo, escreve-a depois na folha.
Concordo e sinto-me eufórico: uma importância daquelas não seria apenas
bem-vinda como fruto do meu trabalho, mas representaria um agradável
pecúlio para quem não teve possibilidade de fazer um pé-de-meia.
- Então está combinado. Em princípio estamos todos de acordo. Os detalhes
estudam-se depois. Ótimo. Vamos almoçar.
Porque o conde tem um compromisso metemo-nos ambos no carro dele, um Fiat
Panda Sisley Túningf como se lê em grandes letras nas portas, e saímos
num pé-de-vento para Ponte de Lima.
No restaurante do mercado fazemos uma refeição de pratos regionais («Para
você se desforrar da comida lá da Holanda»), suculenta e pesada, mas oh!
tão saborosa! Bebemos adequadamente. Terminamos com café e ele acha que a
refeição
71
e a ocasião exigem um cálice de aguardente a acompanhar. Eu também acho.
Das várias e interessantes coisas de que fala prende-me em especial a
história do padre Himalaia. Peço-lhe detalhes. Repetimos o café e a
aguardente, e ele conta.
No fim do Verão de 1879 dava entrada no seminário de Braga um rapazinho
de nome Gaspar da Rocha Fernandes, natural da aldeia de Cendufe. Pouco
importa aqui saber se o movia a vocação religiosa ou o desejo de
aprender, certo é que a sua chegada ao estabelecimento não passou
despercebida. Além de uma inteligência excecional, o garoto tinha aos dez
anos a estatura que normalmente se esperaria dos quinze ou dezasseis, e
ao deparar com tal gigante os colegas dispararam-lhe uma alcunha: O
Himalaia. Tão certeira que mais tarde a juntaria ao seu nome de batismo e
por ela passaria a ser conhecido.
Ordenado sacerdote, o padre Himalaia nunca chegou a ter paróquia, porque
logo se encaminhou para o que realmente o apaixonava: a ciência. Em
particular a Física e a Química,
mas também as técnicas da agricultura, a exploração da energia solar, da
energia das marés, a invenção de explosivos e mais. Portugal deve-lhe ter
parecido acanhado para a sua ânsia de estudar, pois não demorou a partir
para Paris, onde durante anos trabalhou com o famoso químico Berthelot
(1827-1907).
Germanófilo, grande admirador da disciplina e do espírito teutónico,
passaria depois para a Alemanha e mais tarde, sempre a estudar e a
inventar, permaneceria no Brasil e de novo em França, nos Estados Unidos,
na Argentina, só regressando a Portugal já quase no fim da sua vida.
Figura invulgar.
Levantamo-nos da mesa. Vamos a Cendufe para visitar no cemitério o túmulo
do padre Himalaia e entramos na sacristia da igreja para vermos o seu
retrato pintado a óleo. O retrato
72
é medíocre, mas a figura do retratado tem presença e apresenta-se-nos
imponente, de grande bigode, barba elegante, o cabelo penteado de lado
para disfarçar a calvície. Detalhe saliente é o dos olhos pretos, que
parecem lançar chispas. No revés da batina vê-se a roseta de uma
condecoração.
Quase ao fim da tarde voltamos ao paço do conde, que nos convidou para
jantar com mais uma dúzia dos seus convidados. O anfitrião, nós dois e um
inglês idoso, em mangas de camisa. Outros de blazer e gravata. Alguns
cerimoniosamente vestidos de escuro. Entre as damas a mesma confusão
vestimentar: há-as de jeans e blusa, mas também dolorosamente
overdressed.
O conde mandou servir porto e aproxima-se para inquirir do nosso passeio.
Depois pega-me pelo braço, leva-me para um vão de janela, diz que eu não
vou acreditar.
- Acredito. Diga.
Apareceu-lhe mais uma complicação. Um casal tinha reservado expressamente
para a filha o quarto do torreão em que ele me alojou, e quando ao chegar
o encontraram ocupado fizeram uma cena. Que exigiam o quarto. Novos-ricos
e malcriados, tinham mesmo chegado a gritar. E ele tinha-lhes
prometido...
- Com certeza. Mudo.
- Não se importa?
- De maneira nenhuma.
E realmente não me importo, antes lastimo que coisas assim lhe aconteçam.
O jantar decorre animado, as cinco ou seis nacionalidades presentes vão
usando o melhor que podem o inglês que aprenderam na escola, na vida ou
na TV. Estou sentado entre um cirurgião de Barcelona, catedrático, já de
idade, e uma inglesa ossuda, burgomestre duma aldeia do País de Gales
cujo nome não consigo fixar.
73
Entre mim e o cirurgião surge um quiproquó, quando ele ao ouvir que vivo
em Amsterdão me diz entusiasmado que conhece lá a Wilhelmina, e que
quando lá vai lhe faz sempre uma visita. Sentada defronte de mim, jovem
ainda, a mulher do cirurgião confirma com um sorriso e eu pergunto-me se
vou ouvir confidências de um ménage à trois, mas pressentindo a minha
confusão o médico esclarece que a Wilhelmina a que se refere não é
mulher, mas o hospital.
Ao ser servido o arroz-doce da sobremesa o conde conta muito sério que a
cozinheira da casa só aceita fazer aquele manjar quando os ovos e o leite
são perfeitos. Os convidados provam mais uma colherada, estralejam a
língua com apreço e, sisudos, dizem que no tempo desleixado em que
vivemos é um privilégio ter uma cozinheira assim exigente em questões de
qualidade. C.T. e eu mal podemos conter o riso.
Depois do jantar tomo posse do novo quarto, que é de facto um pequeno
apartamento de dois pisos, com sala, cozinha, banheiro e quarto de
dormir. Com o tempo extremamente quente de agora tem um único defeito,
mas esse só o descubro depois de me deitar: uma porta dá para a alameda,
a outra dá para a rua que leva à piscina; dormir com elas fechadas é a
asfixia, mas deixá-las abertas é correr um risco insensato. Opto pela
sufocação.
Sábado, 11 de Junho — Dormi mal. Levantei-me umas quantas vezes a abrir
as portas na esperança de fazer corrente de ar, mas o ar está parado,
fora ou dentro a temperatura parece a mesma.
Finalmente às cinco da madrugada vou-me a passear pela alameda. Para
minha surpresa todos os outros apartamentos têm as portas escancaradas,
numa grande indiferença pela arte dos que roubam e o arrebatamento dos
que matam. Aqui e ali alguém ressona, do vale sobe o ruído dum carro na
estrada, ouve-se espaçado o cantar dos galos, de vez em quando um cão
ladra.
74
Ao romper do dia sento-me num banco de pedra e vejo como a luz vai
clareando as encostas, tornando nítidos os detalhes dos bosques, dos
campos, do casario das aldeias. Uns atrás dos outros os sinos das igrejas
tocam lentamente o Angelus, repicam depois a chamar os fiéis para a
primeira missa. A roda do Sol aparece por detrás do monte da Madalena,
banha tudo com a sua luz e espalha o calor da manhã, macio como um afago.
Um casal idoso passa a caminho da piscina. A criada vem com o meu
pequeno-almoço e peço-lhe que mo ponha no banco onde estou. De botas
altas, calção de montar, camisa preta, o conde desce a escadaria e com
aparente contento vai mergulhar a cabeça na água do fontenário. Entra
depois no estábulo, donde tira um esplêndido cavalo. Trá-lo a passo, dá-
me os bons-dias, fala da pena que tem de que não lhe sobre muito tempo
para a equitação, e com um ligeiro toque de joelhos faz o animal disparar
a galope.
Bebo uma segunda xícara de café, perdido em recordações da minha
longínqua meninice, quando ia pela serra sentado na grosseira albarda da
mula maior da minha avó, transformando-a pela fantasia num belo potro com
selim de cabedal e estribos de prata. O cajado era a lança e embora me
fizesse doer o braço levava-o sempre em riste, não fossem os mouros
aparecer nas voltas do caminho.
Passo o tempo a ler. Divirto-me com as hesitações de dois casais de meia-
idade, visivelmente gente da cidade, que ao começo da tarde querem ir
visitar Pitões das Júnias. Elas de cabelo enfunado, deux-pièces, tacão
alto; eles de blazer e lenço de seda em volta do pescoço.
Perguntam-me se conheço a estrada, se se passa bem, e eu desaconselho-
lhes o passeio devido ao calor infernal que vão encontrar nos altos do
Gerês. Como insistem, digo-lhes que pelo menos não se esqueçam de levar
água suficiente para beber. Encaram-me com a surpresa de quem ouve uma
tolice
75
e viram-me as costas, sentam-se na borda do fontenário a discutir se é
melhor irem no Rover ou no Alfa Romeo. Decidem pelo Alfa Romeo, mas nesse
momento uma das mulheres anuncia que vai mudar de roupa e desaparece no
prédio. Passa um quarto de hora. Entre o marido e o outro casal a tensão
monta. Deixaram de conversar, de vez em quando olham ostensivamente para
a escadaria. Passa mais de meia hora quando a mulher reaparece e a única
diferença que lhe noto é que trocou o deux-pièces branco que vestia por
outro do mesmo modelo, mas cor-de-rosa.
As portas batem com estrondo e o carro arranca em velocidade, deixando na
alameda uma nuvem de poeira. Boa viagem.
Domingo, 12 de Junho - Sem confiança no despertador e tendo de apanhar a
meio da tarde em Santander o ferry-boat que os levará para Plymouth, ao
ouvir que me levantaria cedo, o casal inglês hospedado no apartamento
junto do meu tinha pedido que os acordasse também.
São quatro horas, faz um escuro de breu e, quando julgava bater-lhes à
porta, tropeço na soleira e entro de supetão pelo quarto dentro. Mas
ambos continuam a dormir a sono solto (que boa ocasião, fosse eu larápio)
e como nenhum barulho os acorda, acabo por sacudir uma mão que pende da
cama.
- Good moming!
Batem as cinco quando passo o portão e no vale, distraído ou sonolento,
logo me engano: sem dar conta atravesso o rio Lima e em vez de ir em
direção a Viana do Castelo pela estrada da margem direita, como queria,
por ser mais confortável, sigo pela da margem esquerda, que é apertada e
onde as aldeias se sucedem.
Conduzo com a janela aberta, tão amena é a temperatura. Passo ranchos que
vão pela berma a caminho dos arraiais de Santo António que se fazem hoje
à noite. Alguns cantam a quatro vozes as canções tradicionais da
província, mesmo as
7 6
mulheres que levam à cabeça as pesadas cestas da merenda. Eles acenam, eu
aceno, e ao romper do dia chego ao aeroporto.
Compro uma sande de queijo, um café, mas tão repugnante é o sabor de
ambos que depois de prová-los os deito fora e sento-me a beber água
enquanto espero o avião para Lisboa.
Para os trezentos quilómetros entre as duas cidades esperava eu, como de
costume, uma aeronave de dimensões correntes, mas entro num desmedido DC-
10 que vem de Caracas a abarrotar de emigrantes. Eles de fato
domingueiro, elas de vestidos aparatosos, todos com muito ouro ao peito e
anéis de brilhantes. Talvez por estar próximo o fim da sua longa viagem
fazem uma algazarra de ensurdecer, misturando farrapos da língua materna
ao espanhol cantarolado da Venezuela. Crianças bisonhas arrastam-se pela
coxia agarradas a bonecas e ursos que as excedem em tamanho.
O avião descola, dá meia volta rumo ao Sul, voa baixo ao longo da costa,
e durante segundos o panorama do Porto aparece inteiro. Para mim um
encanto de menino.
Sem vontade de ler, bombardeado pelo pingue-pongue dos anúncios das
partidas e chegadas, a caminhar no hall dum lado para o outro na
tentativa infrutífera de assim estender as pernas, quatro horas de espera
no aeroporto de Lisboa põem a minha paciência à prova. A única distração
oferece-ma um casal de anciãos dinamarqueses de calções curtos e mochila
às costas que se vão sentar num canto. Em silêncio, metodicamente, cada
um tira da sua mochila uma sande, uma maçã, uma pequena garrafa de água
mineral. Comem concentrados, mastigam devagar, bebem pequenos golos. Por
fim enchem a boca de água e depois de bochechar vigorosamente guardam as
garrafas nas mochilas. De lá tira cada um então um frasquinho de gotas
nasais, enchem as pipetas, viram a cabeça para
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o ar, fazem cair as gotas no nariz, aspiram umas quantas vezes, fecham os
frascos, repõem-nos nas mochilas, olham para a pista. Silenciosos e
síncronos como dois robôs.
Finalmente chega o momento do embarque, mas quando me vou sentar espera-
me uma surpresa: o assento, coberto por um pano, não tem almofada e caio
num vazio. O meu vizinho
ri, a hospedeira acorre a desculpar-se, que houve engano, só que
infelizmente não há outro lugar livre e se não me importo ela traz umas
travesseiras para encher o buraco. Que remédio
tenho senão fingir que não me importo?
O meu desconforto, porém, não fica por ali. O lugar que me coube é numa
das saídas de emergência e, influenciado pelas histórias que se ouvem de
portas de repente abertas e passageiros atirados para a atmosfera pela
diferença de pressão, sinto-me tomado por uma ponta de receio. Tanto mais
que por alturas do golfo da Biscaia, o que primeiro fora simples
condensação cai agora em pingos de água que correm num fio para o chão.
Calo-me, para que não me julguem assustadiço, mas à cautela mantenho o
cinto apertado e durante a hora de voo que ainda resta não tiro os olhos
da saída de emergência nem da água que aos meus pés forma um pequeno
charco.
Quando vou a sair do avião informo a hospedeira discretamente e ela
empalidece:
— Pingas de água? Ai-jesus! O senhor devia ter avisado!
Segunda-feira, 13 de Junho — A Loekie ri-se do meu queixume: a Embaixada
dá hoje no Amstel Hotel uma receção seguida de jantar e eu tinha
esquecido o convite. Ela como de costume não quer ir, mas quem se
comprometeu não tem outra saída.
Enfatiotado, engravatado, oprimido pelo calor da tarde e ainda mal
habituado à mudança de ambiente, por volta das cinco chego ao terraço do
hotel, onde a maioria dos convidados já se juntou. Esperava uma vintena,
dizem-me que são quase trezentos. Bebe-se, depenica-se, palra-se, sua-se
em bica.
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Do rio, em vez de frescor, sopra uma aragem quente e pesada que aumenta a
oura que me causa o barulho e a bebida.
Escapo com dificuldade a um homem que me quer explicar como se escreve um
bom livro sobre o vinho do Porto. Escapo a outro que diz que me conhece
de Basileia, onde nunca estive.
Não escapo a uma mulher que me segura pelo braço e conta que tenho de
absolutamente incluir no guia de Portugal um trajeto que ela e o marido
fizeram o ano passado. Que lhe dê o meu endereço e ela manda-me as vinte
páginas que encheu com recomendações e detalhes. Sorrio, digo que sim,
solto o braço, que me desculpe um momentinho só, e agarro um vago
conhecido que me encara surpreso com tanta efusão e o modo decidido como
o vou empurrando para longe dali.
Quando julgávamos ir comer convidam-nos a ir ao primeiro andar onde se
encontra uma exposição de produtos portugueses. A bicha de gente sobe a
passo pela escadaria, passa as faianças, os trabalhos de vidro, os
bordados, os vinhos, os artigos regionais, as fotografias turísticas, e
desce finalmente para a sala de jantar.
À mesa tenho à minha esquerda uma mulher que manda numa qualquer
repartição de turismo e parece surda-muda, e à direita Ruppert van
Woerkom, redator-chefe do semanário Man. Os nossos vizinhos estranham
porque nos rimos tanto, mas acontece que também ele foi convidado a
hospedar-se na mesma suíte do Hotel Palácio do Estoril onde estive em
Maio e não nos cansamos de trocar impressões.
Passa da meia-noite quando começam a servir o café e grande parte dos
convidados já se foi discretamente embora. Vou também levantar-me quando
alguém sugere aos gritos que se homenageiem os cozinheiros que vieram
expressamente de Portugal. Homenageiam-se os cozinheiros.
Saio para a rua, onde mau grado a hora faz um calor excessivo, e de
súbito entristeço, ao dar-me conta de que esqueci o aniversário de meu
pai.
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Terça-feira, 14 de Junho — Que mudança depois de tantas semanas de
bulício! Como de costume a Loekie foi visitar a mãe e passo o dia numa
estranha apatia, sentado à minha secretária horas a fio, incapaz de
escrever, de ler ou de pensar, vendo desenhar-se os contornos do fantasma
da depressão, meu alter ego.
Quarta-feira, 15 de Junho — Quase todos os dias nos esforçamos por
caminhar uma hora no parque aqui defronte de casa. Em parte para retardar
a ancilose dos ossos, em parte para arejar a cabeça e os pulmões, e um
pouco também porque ambos nos damos conta de que a Natureza nos interessa
mais do que antigamente. O que para mim por vezes toma proporções de
revelação: num passado recente nunca me suporia capaz de um dia parar a
admirar uma folha de planta, a cor de um tronco, os cogumelos num muro.
Emocionar-me ao ver uma papoila que refulge isolada num relvado? Eu teria
considerado tal coisa uma mariquice, ou pior: uma das pieguices que vêm
com a idade.
Mas na melancolia da noite a dúvida cresce em mim. Talvez que na verdade
se trate apenas de pieguices. No Outono da vida, menos capaz de paixão, a
alma protege-se do vazio envolvendo-se na rotina e no apreço do que é
humilde.
Quinta-feira, 16 de Junho — Da Arbeiderspers, a minha editora, recebo um
envelope com críticas ao meu romance La Coca. Leio-as com curiosidade,
mas ao fim encolho os ombros descontente, insatisfeito. Porque bom
crítico literário não o é um qualquer. Esse, avis rara, além das
qualidade e dos defeitos, descobre na obra que analisa as tramas, os
temas, as relacionamentos que mesmo ao autor passaram despercebidos.
Aquele que se limita a fazer a sinopse do que leu, deita depois uma
pitada de elogios, acrescenta outra de censura, e conclui
dizendo que não compreende o livro, passa a si próprio um diploma de
incompetência.
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Sexta-feira, 17 de Junho — Como pensar? Como escrever? A única coisa que
me ocupa é encontrar refrigério neste calor de fogueira. Os
meteorologistas dizem que há mais de cinquenta anos não se registavam
temperaturas assim, o que só interessa aos amadores de estatística.
Ando nu por casa, abano-me com o jornal, paro diante do ventilador,
sinto-me ligeiramente ridículo.
Sábado, 18 de Junho — Diários. Com o de Jules Renard alimentei muitas
fúrias da minha juventude. Ao ler o de Pepys tive a impressão de ser
transportado de corpo e alma para o seu tempo. Maravilhou-me a Life of
Johnson de Boswell, em minha opinião tanto diário como biografia.
«Diary. A daily record of that part of one’s life which he can relate to
himself without blushing» («Diário. O relato diário daquela parte da vida
de uma pessoa que, sem corar, ela pode fazer a si própria»), escreveu
Ambrose Bierce (1842-1914).
Não sofrendo de exibicionismo, infalivelmente escondo uma parte de mim ou
uso de subterfúgios. Por sentido estético, por cautela, mas também pelo
que é inerente ao escritor, o qual, mesmo quando quer revelar algo de si
próprio, nunca escapa ao uso das entrelinhas e, desejando ser sincero,
escorrega para a ficção. Porque para ele a arte vem à frente, a vida a
seguir, a moral fecha o cortejo.
Aliás, própria ou alheia, do ponto de vista artístico a franqueza não tem
o que se chama um interesse por aí além.
Domingo, 19 de Junho — Pesa-me hoje como nos tempos piores da
adolescência a monotonia do domingo e, a fingir que me ocupo, folheio ao
acaso livros que me não lembro de ter lido, outros que não sabia possuir.
Relanceio uma linha, um parágrafo, paro numa gravura. Olho para a rua sem
ver o que lá se passa. Olho em redor do meu quarto e sinto-me numa cela.
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Abro gavetas sem saber o que procuro. Sento-me. Levanto-me. Pego nisto.
Arrumo aquilo. Olho. Sento-me de novo. Volto a levantar-me. Tiro outro
livro. Dentre as páginas cai um pedaço de papel com uma anotação copiada
há anos dos grafites na retrete dum café:
«To do is to be» (Platão).
«To be is to do» (Nietzsche).
«Doobeedoo» (Sinatra).
Segunda-feira, 20 de Junho — Discordei do que ele afirmava e o
compatriota acendeu um cigarro, fez uma pausa para soprar o fumo e
concluiu: «Você discorda porque depois de tantos anos a viver na Holanda
já não é português. Não pode ser português. Vê as coisas doutro modo.
Falta-lhe...» e como não conseguia definir o que na sua opinião me
faltava, ergueu o braço num gesto largo.
Em ocasiões assim sinto-me ameaçado e vulnerável. Como se o ter deixado o
ninho fosse um delito com sentença que não prescreve.
Terça-feira, 21 de Junho — Instantâneo a preto e branco:
E um romântico. No jardim que tem atrás de casa, uns escassos metros
quadrados, avulta uma tília secular, e assim que o tempo o permite leva
para junto da árvore uma mesita, uma cadeira da cozinha e, horas a fio,
escreve o seu livro. Com uma pena de aparo de aço, um tinteiro e cadernos
escolares, porque lhe repugna usar meios a que falte uma longa tradição.
Escrever à máquina parecer-lhe-ia uma falta de respeito, dum computador
nem quer ouvir falar. Escreve, por isso, morosamente, mas diz que só
desse modo consegue provocar a passagem do misterioso fluido com que o
cérebro canaliza as ideias para a mão. Será.
O livro não é uma qualquer obra de narrativa fictícia, mas a síntese das
observações e pesquisas filosóficas, intelectuais,
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morais e psíquicas a que ele se dedica desde a adolescência e que agora,
na meia-idade, lhe parece terem atingido o ponto de maturação. Anos atrás
tinha enchido o equivalente a novecentas páginas dactilografadas e, quase
certo de ter produzido uma magnum opus, levou o manuscrito ao editor.
Este foi cruelmente sincero no seu juízo: «Ilegível, incompreensível, um
desarrazoado.»
Com razões idênticas o editor rejeitou uma segunda versão do texto, mas a
vontade que o anima de oferecer ao mundo o livro último, aquele onde se
encontrem todas as perguntas e quase todas as respostas, não é das que
esmorecem com um revés. Nem com dois. E à sombra da tília, diligente,
imperturbável, ele continua a escrever, certo e seguro de que sabe o que
ninguém mais sabe, e que tem para dizer aquilo que ainda nunca ninguém
disse.
Quarta-feira, 22 de Junho — O estranho modo com que certa gente entra e
sai da nossa vida. Não falo dos amigos que se perderam de vista, dos que
se nos tornaram indiferentes ou inimigos, mas daquelas pessoas que como
que nos assaltam com a sua amizade e são tudo emparias, concordâncias,
atenções, carinhos. Até ao dia em que sem razão aparente parecem
levar sumiço.
Encontramo-nos depois por vezes numa rua, num café, ao acaso duma
cerimónia. «Há que tempos que não nos vemos!» Embrulham-se em desculpas
frouxas sobre as andanças da vida, os afazeres, complicações. Mas a
pergunta fica: ao que é que não correspondemos? O que é que nos quiseram
dar ou queriam receber que nos escapou? O que é que não somos e eles
julgaram que éramos? O que é que em nós lhes meteu medo?
Quinta-feira, 23 de Junho — Esta noite é a grande festa do São João no
Porto e ocorre-me um momento de quando teria
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seis ou sete anos. Em todo o caso de antes da guerra, pois nessa altura o
largo onde morávamos em Vila Nova de Gaia ainda não tinha iluminação
pública e nas casas só havia candeeiros de petróleo.
Os vizinhos tinham trazido para fora cadeiras e bancos, e estávamos
sentados como na plateia dum teatro, enfrentando o palco que era panorama
iluminado da cidade na outra margem do rio. À meia-noite haveria o fogo-
de-artifício, sempre espetacular. Entretanto estouravam de vez em quando
foguetes de lágrimas, a aragem espalhava fragmentos das marchas que as
bandas de música tocavam pelas ruas, subiam para o céu dezenas de grandes
balões de papel, com mechas que os enchiam de ar quente e ao mesmo tempo
lhes avivavam o colorido.
Enquanto esperávamos, as mulheres traziam cafeteiras e enchiam malgas de
café com muito açúcar. Outras, com cestinhas, passavam de mão em mão
fatias de pão branco barrado com manteiga salgada. E na minha lembrança o
júbilo, a vibração da expectativa e a harmonia desse instante, ficaram
para sempre unidas à descoberta do que para mim era um gosto novo,
pecaminosamente adulto: o café sem leite.
Sexta-feira, 24 de Junho — A Lilian faz hoje trinta e cinco anos. Nasceu
em casa e, como se diz, num «folinho». Foi o primeiro parto a que
assisti, para mim uma experiência traumatizante. O homem será o genitor,
mas chegada a hora do nascimento pouco mais é que um tropeço derreado por
medos atávicos e responsabilidades que o ultrapassam.
Sei que não senti alívio quando me disseram que tudo corria bem,
hipnotizado pela membrana que envolvia a criança como um saco de
plástico. Não iria sufocar? Não. Era um sinal venturoso.
De madrugada, pelos jeitos tinha de ser assim, eu e um vizinho fomos com
uma pá fazer uma cova num terreno vago e enterrámos nela a placenta.
Vomitei. Depois, não fosse
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o compassivo Jan segurar-me, eu teria caído ali sem sentidos. Derreado
por medos atávicos e responsabilidades que me ultrapassavam.
Sábado, 25 de Junho — Pelo simples gosto de apreciar mais uma vez o seu
talento, releio O Rei da Terra, de Dalton Trevisan (1925). Grande
contista. Curioso destino o deste homem que fez de Curitiba um universo,
tem passado a vida a ser diretor de fábrica, e nas horas vagas se tornou
o maior contista brasileiro. No Brasil é famoso, mas pouco lido. Em
Portugal poucos o conhecerão. Nos Estados Unidos terá uma mão-cheia de
leitores, na Holanda outra mão-cheia. Dá pena que seja assim, mas essa é
a realidade. Do talento, como do crime, também se pode dizer que não
compensa.
Domingo, 26 de Junho — A Paula casou na aldeia e o senhor Machado mandou-
nos o vídeo que fez do casamento. Filmou tudo: a rua, as casas, o
ambiente, os preparativos, os cozinhados, o cortejo a caminho da igreja,
a cerimónia, o banquete, o baile, a despedida dos noivos ao cair da
noite. Quatro horas de imagens. Umas pueris, outras involuntariamente
mordazes, caricatas, cómicas, enternecedoras, desconcertantes. Devido aos
ângulos «artísticos» do cameraman e à sua preferência pelo close-up, as
pessoas e os locais sofrem deformações surrealistas.
Minha mãe aparece um instante sentada num desvão da igreja e com o seu
luto, o lenço a tapar-lhe a cabeça, os olhos escuros a tapar-lhe os
olhos, os lábios descaídos numa expressão de imenso desdém por tudo e
todos, é uma figura temerosa.
À vozearia dos participantes sobrepõe-se o comentário sonoro e redundante
do senhor Machado:
— O ramo da noiva. A noiva. A cozinha. A saída do cortejo. A igreja. O
altar. Os anéis. O beijo.
No fim do banquete muitos dos convivas estão visivelmente tocados e no
baile que se segue alguns só se aguentam em
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pé porque dançam pendurados no par. Rio com gosto, emudeço de surpresa,
de vez em quando a emoção aperta-me a garganta. O neorrealismo de Vitorio
de Sica e Rossellini não fez
melhor.
Segunda-feira, 27 de Junho — Uma história daquelas que um dia se ouviram
e pelo drama que encerram nunca mais esquecem.
Tinha vinte anos, escolheu a Itália para as suas primeiras férias sozinha
e sem que o tivesse premeditado deixou o comboio em Milão. O taxista
levou-a ao hotel, fez-lhe a corte, desvirginou-a, deu-lhe quinze dias de
carinho, de sexo e atenções. Jurou-lhe amor eterno, mas infelizmente,
casado, cheio de filhos, não a poderia acompanhar a Amsterdão.
Se voltasse no ano seguinte haveria de ver que a sua paixão não tinha
diminuído. E ela voltou. Doze Verões a fio. Para quinze dias de carinho e
de sexo. Até ao dia em que ele lhe confessou que não podiam continuar.
Tinha sido bom, mas tudo tem fim. E cruamente disse-lhe que eram tantas
as estrangeiras que o cobiçavam, cada vez mais jovens, via-se mal para
atender a todas.
Contou-me, e eu acredito, que nesse momento teve a sensação de que tudo
se desmoronava: a sua vida, o mundo, as ilusões, o passado e o futuro.
Não chorou nem se queixou. Deu-lhe um último beijo e acenou da janela
quando o viu entrar no táxi.
Voltou a Amsterdão e ao escritório. Fez do trabalho o único fito da sua
vida e dedicou-se à pintura para encher as horas vagas. Nunca conheceu
outro homem. Faleceu anteontem dum ataque de coração. Tinha quarenta e
quatro anos.
Terça-feira, 28 de Junho — Da epistolografia pode dizer-se que é um
género moribundo e poucas vezes uma carta que hoje se recebe surpreenderá
pelo conteúdo literário ou pelo estilo
particular do seu autor. Cartas de Martin Ros, o meu editor
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— embora dele poucas tenha recebido —, são para mim um acontecimento.
Pelo barroquismo da linguagem e pela marca pessoal que lhe imprime. Dele
chegou-me hoje uma que começa como creio que mais ninguém se arriscaria a
começar: «Caro, estimado, respeitado amigo José.» E exposto no mesmo tom
o assunto, termina com este inimitável e pouco holandês floreado:
«Desejo-te êxito e ânimo, apresenta os meus cumprimentos à tua mulher e
de todo o coração te saúdo, eu, teu humilde servidor na editora.»
Quarta-feira, 29 de Junho — Nunca fui capaz de escrever depressa, porque
para mim tudo são obstáculos: o vocabulário, o ritmo, o enredo, o
diálogo, o significado, o comprimento das frases, a repetição de
palavras. Leio uma página terminada e logo me incomodam dezenas de
defeitos. Reescrevo. Releio-a e surpreende-me o abuso dos possessivos, a
desarmonia dos sons, as preposições irrelevantes. Reescrevo. Um
pensamento racional parece-me horas depois totalmente absurdo. Reescrevo.
Dez, quinze, vinte e mais vezes — parecerá exagero, mas não é — a mesma
página é acrescida aqui, cortada além, mudo um verbo, desfaço uma rima.
Releio, reescrevo, a ponto tal que de puro cansaço o texto por vezes me
parece alheio.
Além disso perturba-me ainda o modo bilingue, trilingue, sei lá! do meu
raciocínio. Palavras ou frases que me ocorrem numa língua, logo
obsessivamente as traduzo noutras, a comparar, a procurar a mais justa,
sempre com o receio de que me escape alguma coisa essencial. Cai o Carmo
e a Trindade se a memória me nega um sinónimo ou não encontra um
significado, e faça dia ou seja noite escura corro ao dicionário.
Por isso é grande a minha inveja quando oiço que alguém escreveu uma
novela em três semanas, um romance em três meses. Que deuses me
abandonaram que a esses acarinham?
Quinta-feira, 30 de Junho — O mundo em que vivemos: do João Nuno Alçada
recebi hoje um faxe de Cabo Verde, um
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postal que me escreveu de Lisboa e a carta que dias antes tinha mandado
de Londres.
Espero vez no banco para que me cambiem os escudos que sobraram da
viagem. À minha frente estão dois jovens nigerianos, ainda nos vinte e
que, tímidos ou nervosos, falam em sussurros, lançam em volta olhares
preocupados. Os jeans de um estão no fio, os Nikes de ambos parecem não
ter solas e nos caixotes do lixo encontram-se camisas melhores.
Não sei o que fazem ali, mas perco-me a pensar nas misérias e nos medos
que sofrem os emigrantes, os ilegais, os refugiados em busca de asilo.
Estes com certeza dormem na rua e passam fome, se olham assim é porque
temem que entre os presentes haja polícias.
Que me adiantam os quarenta ou cinquenta florins que vou receber pelos
escudos? Falo-lhes e se forem tão necessitados como penso dou-lhes
discretamente o dinheiro.
Chegou a vez deles. Um fica um pouco de lado, o outro aproxima-se do
guiché e a empregada atende-o com um sorriso, fala-lhe em inglês e
aparentemente conhece-o, pois trata-o pelo nome.
Mister X parece ter perdido a timidez e não tem problemas de privacidade.
Numa voz sonora pergunta à rapariga quanto é que lhe vai custar se
retirar trinta mil dólares da sua conta a prazo e transferi-los para uma
conta-corrente em florins.
Julgo não ouvir bem, mas a funcionária repete a confirmar: «Trinta mil
dólares?», e o rapaz concorda com um gesto de cabeça. Ela faz rapidamente
o cálculo, entrega-lhe um bocado de papel que ele examina, agradece, e
pegando o companheiro pelo braço vão ambos sentar-se num banco a
conferenciar.
Sexta-feira, 1 de Julho — Conhecemo-nos da juventude, nunca fomos
íntimos, mas encontramo-nos de longe a longe e, duma maneira ou doutra,
com o passar do tempo criou-se entre nós um sentimento de amizade.
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Escrevemo-nos espaçadamente. Porém, como se padecesse de uma estranha
falha da memória, há mais de dez anos as cartas dele são sempre idênticas
à que recebi hoje e resumem-se mais ou menos a um texto assim: «A minha
vida vai indo calma na forma do costume. Pinto nas horas vagas. Também
tenho escrito umas coisas que deixo na gaveta, porque não me atrevo a
relê-las, e que um dia gostaria de te mostrar. Sinto falta do teu senso
crítico. Manda dizer quando nos voltaremos a encontrar.»
Mas quando nos encontramos ele fala de tudo, menos do que escreveu ou
pintou, esquece o meu senso crítico, e as conversas que temos rondam
sobretudo em torno do comezinho. De modo que a nossa amizade ganhou um
toque surrealista: parece viva quando estamos longe, mas assim que nos
vemos só à custa de muito boca a boca conseguimos evitar que ela faleça.
Sábado, 2 de Julho — Acordo a meio da noite sufocado pelo calor. A porta
está aberta e saio, vou debruçar-me na varanda. Na maioria das casas há
luz, um homem e uma mulher fumam sentados na pequena ponte sobre o canal,
na ponta dum muro um gato olha pensativo para a água. De vez em quando
ouve-se ao longe o ruído dos comboios de mercadorias que passam na linha
Amsterdão-Utreque.
Éramos jovens, fáceis de entusiasmar, os filmes de Ingmar Bergman
pareciam-nos o sumo do que se realizava na arte cinematográfica. Ao fim
de cada sessão corríamos ao café a discutir, a analisar, a incensar o
trabalho do realizador. Mesmo no corriqueiro ou no acidental dos seus
filmes adivinhávamos intenções geniais. Quanto mais estáticas as cenas,
mais elas nos pareciam prenhes de significado e o nosso apreço não tinha
limites quando uma personagem, de costas para os espectadores, ficava
minutos imóvel a olhar para um horizonte vazio.
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Gradualmente, porém, fui-me perguntando se uma tão incondicional
admiração não era igual à dos súbditos que aplaudiam a passagem do rei
nu. A vinda ao de cima do meu senso crítico resultou num apreço mais
moderado pelo cineasta sueco e num frequente franzir de sobrolho quando
os meus amigos insistiam em me explicar o simbolismo hermético de certas
cenas.
Assim, não sei em que filme, no momento em que uma personagem moribunda
olhava fixamente o céu, ouvia-se ao longe o ruído dum comboio e, muito
ténue, o silvo de uma locomotiva a vapor. Eles afirmavam que se tratava
de uma subtileza sonora, usada por Bergman para assinalar o momento em
que a alma se despegava do corpo. Eu retorquia que na filmagem da cena em
exteriores a gravação do ruído tinha sido acidental. Eles que não, eu que
sim, até que de tão excitados tínhamos passado dos gritos aos insultos.
O gato saltou do muro, o homem e a mulher continuam a fumar sentados na
ponte. A aragem virou e o matraquear dos comboios na linha Amsterdão-
Utreque tomou-se quase indistinto na distância. É pena que as locomotivas
tenham deixado de apitar.
Domingo, 3 de Julho — As pequenas tragédias da cidade, íamos pelo parque
e vimos o que primeiro nos pareceu um monte de trapos a boiar no canal,
mas o choro e a expressão angustiada das crianças que estavam na margem
logo nos fez compreender que era desastre. Com outras pessoas alarmadas a
Loekie correu para as crianças, eu corri para a estação do metro a pedir
socorro.
Entretanto os circunstantes tinham estendido na relva uma pequerrucha de
quatro ou cinco anos, exangue, que um homem tentava reanimar. A polícia e
a ambulância chegaram logo a seguir, aplicaram-lhe uma máscara de
oxigénio, enrolaram-na num tecido de alumínio e pouco depois, para alívio
de nós todos, começava a respirar.
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Um junk surinamês, quarentão mirrado que tinha ajudado a tirar a criança
da água, ensaiou uns passos de dança ao mesmo tempo que se punha a
cantarolar: «She’s come! She’s come!»
Ao ouvir aquilo a baby-sitter, uma rapariga húngara duns dezasseis anos,
seminua num minúsculo biquíni, sapatos de tacão alto e aparentemente em
estado de choque, começou num choro lancinante, porque como ao junk
faltavam os dentes e a sua dicção era indistinta, ela tinha compreendido
que ele dizia: «Sh’*s gone! She’$ gòne!»
A pequerrucha foi levada para a ambulância e os polícias, gentilmente,
disseram à rapariga que os teria de acompanhar ao hospital. Assustada
pela suposição de que a iam castigar, a pobre desatou aos soluços e a
tremer. Vinda há pouco da Hungria, a única coisa que sabia era o próprio
nome. Nem onde morava, nem o nome das pessoas em casa de quem vivia. De
manhã, antes de irem para o trabalho, levavam-na para o parque com um
grupo de crianças, e ficavam ali até que as viessem buscar ao anoitecer.
Segunda-feira, 4 de Julho — Não sei se Freud explicou o fenómeno, mas é
irritante a atração que, sem distinção de sexo ou idade, um crânio calvo
exerce sobre certas pessoas. Não tenho dúvida que muitos só se refreiam
de tocá-lo por receio das consequências, pois o retraimento imposto pelas
boas maneiras não chega para que se contenham.
Em geral são também esses que, não sabendo dar doutro modo expressão ao
seu fascínio, não se cansam de bombardear o careca com histórias de
carecas, anedotas de carecas. Mesmo os barbeiros. A alguns lê-se-lhes na
cara que não demorarão com a estafada pergunta: «Vai ser permanente ou de
risca para a direita?» e o modo descontrolado como então gargalham revela
que na sua hilaridade há menos humor do que esperança secreta de
satisfazer sabe Deus que desejos recalcados.
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Para quem não é pronto na réplica, situações assim são desagradáveis em
extremo. Justificariam a bofetada ou o soco. Nas terras do sol e com um
cliente de maus fígados, poderiam ser caso para puxar de faca.
Infelizmente, sentado na cadeira, preso na toalha que o embrulha, um
sujeito como eu sente-se indefeso.
Por isso que desde há anos a Loekie é o meu barbeiro, o que além da
despesa me poupa o mais penoso dos insultos: aquele de que a gente não
sabe como se defender.
Terça-feira, 5 de Julho — Antigamente, sem hesitar um momento, eu
entregaria a defesa dos meus interesses a um advogado, o cuidado da minha
saúde a um médico, a segurança da minha pessoa a um polícia. Se as
circunstâncias o mandarem também hoje terei de o fazer. Mas sem ilusões.
Antes como a rês que ao ser tirada do estábulo nunca sabe se a vão levar
para o pasto ou para o matadouro.
Quarta-feira, 6 de Julho — O meu sonho? Fazer explodir em formas e
volumes, em cores, em imagens, o torvelinho dos pensamentos e das
sensações. Mas o destino mandou que me fossem dadas apenas as palavras,
matéria efémera cuja forma é sempre uma ilusão; com um significado tão
delicado que um olhar alheio já basta para que mude; matéria fluida,
instável, em constante rebeldia.
O escrever será a busca de mim mesmo que o espírito me impõe, uma
tentativa de explicação, a única possibilidade de tornar suportável o
caos do meu íntimo. Mas conhecendo a fragilidade das palavras, as mais
das vezes a escrita surge-me como uma atividade fútil, uma insensatez
igual à de querer subir a uma duna de areia movediça.
Quinta-feira, 7 de Julho — Parece que em ocasiões de grande perigo certas
pessoas reveem por inteiro num relâmpago os episódios da sua vida. Por
mim espero que tal não me
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venha a acontecer. Para martírio bastam as recordações que me vêm na
noite, como se o meu espírito tivesse uma singular preferência pelo que é
triste ou desastroso. E se em busca de alívio me esforço por fazer vir ao
de cima momentos de perfeita felicidade, de alegria sem sombra, só os
encontro na meninice, quando passava sozinho as férias do Verão em casa
de minha avó.
Sexta-feira, 8 de Julho — Tarde de sol. O espírito em paz, o cérebro
alerta, os músculos a funcionar, os ossos sem dor, entro no elétrico em
excelente disposição. Fico em pé apoiado a uma barra e só quando a
rapariga me toca no braço é que dou conta que me oferece o seu lugar. Uma
cortesia assim não se recusa. Agradeço-lhe, sento-me, e adeus bom humor.
Porque em certos dias a velhice não está em nós, são os outros que com as
melhores intenções nos obrigam a aceitá-la. Parafraseando Sartre: «La
vieillesse, cest les autres.»
Sábado, 9 de Julho — «O dinheiro não me interessa.» «O dinheiro não traz
a felicidade.» «O dinheiro é só dinheiro.» Pode ser que seja verdade, mas
poucas afirmações me põem tão fora de mim como essas ou outras iguais
saídas da boca dos abastados. Não só pela arrogância, mas talvez mais
pelo que mostram de desprezo por aqueles que não têm, os que a sorte
deserdou.
Na minha vida não faltaram os anos de pobreza e, mesmo longínqua, não
consigo apagar a memória das humilhações e dos medos de então. As
cicatrizes que deixaram são tão fundas que quando recordo esse tempo
involuntariamente revivo as agonias que sofri. Por isso, ao escrever
primeiro as linhas acima doeu-me e cortei-as. Depois repensei, escrevi-as
de novo, hesitei ainda, deixei-as ficar. Um começo de exorcismo.
Domingo, 10 de Julho — Nascido em comunhão com a terra, os meus
conhecimentos da natureza são práticos. Diferencio um carvalho dum
castanheiro, um macho dum cavalo;
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sei que a rama da batata não cresce alta como a do tomate; que o voo da
pomba é silencioso e o da perdiz barulhento. Mas de vez em quando tenho
inveja dos que sabem o nome e os detalhes das plantas, das flores, das
árvores; dos que distinguem pelo pio ou pela pena a espécie dos pássaros.
O meu receio, porém, é de que, pelo menos nesse particular, a um aumento
do saber corresponda uma diminuição do sentimento. Não sei se se continua
a olhar com alegria ingénua para a giesta em flor quando se lhe chama
Genista lydia, se lhe conhece a genealogia e se estudou a composição
química do solo em que ela melhor se desenvolve.
Segunda-feira, 11 de Julho — Calor extremo. Indolência muçulmana.
Exaustão física e mental.
Já não quero, como aos dez anos, ser piloto de avião nem comandante de
submarino. Escritor nunca precisei de o querer ser, porque foi dom que
nasceu comigo, natural como caminhar ou respirar. Mas é condição que por
vezes me pesa e faz ansiar por um destino menos complexo. Hoje gostaria
de ser um bom carpinteiro, um bom marceneiro. De ao fim do dia, contente
com o trabalho feito, poder pousar a ferramenta e de não ter de ouvir em
permanência os ecos da minha insatisfação; de escapar à tirania das
frases que exigem harmonias e sentidos que tanto esforço custam e nem
sempre lhes sei dar.
Terça-feira, 12 de Julho — Ele veio visitar-me com o pretexto de que não
nos víamos há tempos. Conversámos sobre o calor, sobre a rapidez com que
os anos passam. Em vez de um segundo copo de vinho branco que lhe
ofereci, disse que se eu não me importava preferia cerveja. E como se a
minha breve ausência na cozinha o tivesse encorajado, quando me voltei
a sentar perguntou-me à queima-roupa se eu já tinha sofrido de
impotência.
— Felizmente não. Ainda não.
Os sintomas começara ele a senti-los há muito, mas diminutos e
irregulares de mais para lhe causarem preocupações.
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Dizia-se que talvez fosse cansaço, alguma indisposição, a consequência
dos saltos de humor a que ninguém escapa ou, sabe-se lá, o primeiro sinal
do peso da idade. E num compreensível
reflexo de autodefesa, mal o sintoma passava esquecia a ameaça. Até ao
dia em que teve de enfrentar a realidade.
Com o choque da constatação veio o pânico, o sentimento de desvario de
que o mal que o atacava não se limitava ao sexo, mas abrangia uma parte
maior do seu corpo, lhe tocava aqui e ali o espírito. Fisicamente tinha a
impressão alarmante de ter sido amputado, mas pior ainda era a ausência
total de sensações.
O médico auscultou-o, provocou reflexos, fez perguntas pertinentes,
apertou-lhe a barriga, percutiu nas costas, arrepanhou-lhe as pálpebras,
examinou-lhe a boca.
Assim à primeira vista não descobria causa física ou orgânica e por isso,
disse, ia remetê-lo ao urologista. Sabia ele que muitas vezes a
impotência tinha uma origem psíquica? Sabia sim, mas o sabê-lo não era
conforto, antes aumentava a sua preocupação.
No hospital o urologista anotou distraidamente os dados pessoais,
perguntou-lhe se sofria de qualquer doença, se tomava drogas, se fumava,
se bebia em excesso. A tudo que não.
— E como está a hidráulica?
— A hidráulica? — O homem teria endoidecido?
— Sim, a hidráulica, a tubagem do aparelho. A ereção matinal funciona?
— Às vezes.
— Ótimo. Então não se preocupe, isso vai passar — e sem mais tinha-o
despedido.
Bebemos em silêncio, mas se bem compreendo a expressão do seu rosto ele
espera a minha pergunta:
— E então, passou?
— Não sei.
— Não sabes?
— Não. Não me atrevo a tirar a prova.
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Quarta-feira, 13 de Julho — Casado com uma holandesa tenho
automaticamente direito à sua nacionalidade. Mas como entre o direito e
os sentimentos se cavam por vezes estranhos fossos, sempre temi que o
tornar-me holandês, mesmo só no papel, talvez contribuísse para diminuir
a minha portugalidade e fazer definhar as raízes que me prendem à terra
em que nasci. Além disso a mudança também me não traria qualquer vantagem
material ou social, a não ser a de um direito que nunca me interessou
exercer: o do voto. Os impostos não seriam maiores nem menores, as
regalias e obrigações permaneceriam as mesmas. Para quê, pois, passar a
viver com dois passaportes em vez de um só?
Lentamente, porém, um micróbio romântico foi roendo as minhas convicções.
Porque mau grado o ter passado aqui a maior parte da minha vida, não são
só os laços do tempo ou os da convivência que me unem à Holanda e à sua
sociedade. Mais fortes do que esses são os sentimentos indizíveis, as
misteriosas empatias que, nos casos felizes como o meu, levam
gradualmente o estrangeiro a dar-se conta de que é possível ter duas
pátrias, duas línguas, talvez até duas almas.
Não se me lia na cara, mas entrei na Câmara com uma certa solenidade e
vim de lá com os papéis necessários para fazer o meu pedido de
naturalização. Eu, que poucos anos atrás teria rido ou me teria rebelado
se alguém me sugerisse fazê-lo, sentei-me a copiar o modelo da carta a
Sua Majestade a Rainha. E terminei-a como o funcionário disse que tinha
de ser, «porque senão eles não respondem»: «Na esperança de que Vossa
Majestade tome em graciosa consideração o meu pedido (subscrevo-me) com a
mais elevada consideração.»
Quinta-feira, 14 de Julho — Estamos em minha casa, onde ele vem de visita
pela primeira vez, e falamos do amigo comum que nos apresentou, um poeta.
Depois, como para sublinhar que a observação não é impulsiva, faz uma
pequena pausa e diz:
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— Você nunca escreveu poesia, pois não?
— Não. A poesia não é o meu modo de expressão.
— E romances só escreveu quatro.
— De facto. Da dúzia de livros que publiquei só quatro são romances.
Nova pausa. Corre os olhos pelas estantes do meu quarto de trabalho e o
seu sorriso não consegue disfarçar uma ponta de escárnio:
— Para dizer a verdade, em casa de um escritor eu esperava ver mais
livros. São quê? Três, quatro mil?
— Não faço ideia. Talvez.
— Eu tenho para cima de trezentos metros de estantes. A uma média de
cinquenta livros por metro faz à volta dos quinze mil. Fora o que está em
caixas e o que levei para a casa na Dordonha.
Não sei que responder, nem faço ideia onde ele quer chegar com a
comparação. Oiço-o distraído falar dos poemas que publicou na juventude,
numa revista literária defunta. No quotidiano é farmacêutico.
Sexta-feira, 15 de Julho — Houve um tempo em que idealizei a aldeia, que
me parecia uma fonte de virtudes, uma fonte de harmonia e paz. Depois
veio o tempo em que a odiei, porque se assemelhava a um cárcere e o meu
desejo era um só: fugir.
Com a ausência recomecei a idealizá-la e mais tarde esforcei-me por
redescobri-la. Para me embeber do sonho antigo percorri de novo todos os
lugares, procurei ouvir de novo o bater do seu coração. Mas finalmente
tive de me resignar ao irremediável: ela mudou, eu envelheci, somos ambos
personagens secundárias num romance histórico que ninguém vai escrever.
Sábado, 16 de Julho — Há coisa de um ano a Câmara pavimentou um terreno à
entrada do parque e pouco tempo depois instalavam-se lá duas rulotes de
ciganos. Gente que não
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se interessa por quem passa, os homens negoceiam em carros em segunda
mão, as mulheres atarefam-se nas lidas domésticas com o cigarro pendurado
nos lábios, e três raparigas na adolescência parecem não fazer mais nada
que correr atrás dos rapazes da vizinhança, num flerte que talvez seja
apenas inocente. Há ainda um garoto de onze ou doze anos, pouco crescido
para a idade, olhos vivos, cara sorridente, cabelo de azeviche, e um
irmão mais pequenito que lhe faz uma companhia de cão fiel. Cães, aliás,
também os têm: dois presos a cordas curtas e outro à solta, um
sorumbático bastardo de chow-chow e bouvier.
A avaliar pelos Mercedes, os telemóveis, as parabólicas, o conforto das
rulotes, são gente de dinheiro. Mas se nos fôssemos a fiar pelo modo como
o garoto dos olhos vivos e cara sorridente se veste, antes pensaríamos em
dar-lhe esmola: casacos e pulôveres feitos para corpos com o triplo do
tamanho, calças de adulto enroladas para que não tropece nelas, camisas
de homem, sapatos de homem. De homem é também a pose com que fuma.
No princípio, ao ver-nos passar, sorria. Depois começou a acenar. Hoje,
sentado na borda do caminho, dava a impressão de estar à nossa espera.
Parámos um instante e perguntamos-lhe como se chamava. Konco. E o irmão?
Gino. Respostas desembaraçadas num holandês de autóctone. Ia à escola?
Claro. Que língua falava com a família? Sinti. Inesperadamente disparou
para as rulotes e de longe voltou-se para um último aceno e um sorriso,
como que a dizer: «Tenha paciência, mas chega de confidências.»
Domingo, 17 de Julho — Como e porque será — o calor não é razão
suficiente — que às vezes escrevo uma crónica para o jornal em dois dias
e a de hoje me leva já três semanas?
Segunda-feira, 18 de Julho — Ainda nunca usei drogas e com o que consumo
de álcool ninguém será capaz de se embebedar. Não que eu seja assim por
virtude, mas ao primeiro
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aviso de que me se me tolda a cabeça, o medo de deixar de ser eu próprio
pode mais que a curiosidade pelos efeitos da trip ou da bebedeira.
Não é isso que me encartará como moralista e longe de mim condenar quem,
levado pelas inúmeras razões que a vida oferece ou a que a vida obriga,
se droga e se embebeda. É certo que me falta paciência para ouvir os
longos monólogos da bebedeira. Também passo de largo pelos que têm o
«vinho mau». Mas esses, pelo menos, não me dão pena como os que têm o
«vinho cobarde». Deus me livre de um dia procurar na bebida ou na droga a
coragem de me assumir.
Terça-feira, 19 de Julho —- Dão-se no cérebro curiosas filtragens: ao
escrever em português (a língua em que penso e em que escrevo) sou com
frequência obrigado a deter-me porque, desde que possuam um sentido mais
exato, me ocorrem em primeiro lugar as palavras em holandês (a língua que
mais falo) ou inglês (a língua que mais leio). Assim, em certas ocasiões,
o escrever toma-se para mim uma exaustiva corrida de obstáculos de
dicionário para dicionário.
Quarta-feira, 20 de Julho — Parou-me na rua para fazer um comentário
sobre um livro meu que tinha lido. Trintão, cabelo rapado, exceto na
fronte onde dois caracóis tesos de brilhantina imitavam os corninhos do
diabo. Uma corda com nó de forca servia-lhe de gravata. Mas no resto
burguesmente vestido com fato, calça, camisa, sapatos bem lustrados. O
que se chama «não ter de dar contas a Deus nem ao mundo».
A etiqueta do nosso tempo manda fazer de conta que uma aparição assim não
nos perturba e que o bizarro representa a norma.
Quinta-feira, 21 de Julho — Porque suporto mal os ajuntamentos pouco vou
a museus, exposições, galerias ou concertos. Fanático que fui do ecrã,
faz vinte ou mais anos que não
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entro num cinema. Mas não é que lhes sinta a falta e a minha dieta de
jornais, livros e televisão alimenta-me o suficiente. Do que por vezes
tenho saudade é daquelas longas conversas de café na juventude, que davam
a ilusão de que se espreitava para lá dos portões do grande mundo da
cultura e do conhecimento.
Sexta-feira, 22 de Julho — Deus deu-lhe inteligência e sensibilidade.
Pinta com talento, escreve com talento, tem uma posição social invejável
e como redator dum jornal importante os seus artigos e entrevistas são
lidos com atenção. A sua vida é confortável, luxuosa. Mas sente-se
infeliz, pensa em isolar-se uns meses numa ilha da Grécia para tentar
descobrir as causas da sua inquietação existencial, ou ir passar algum
tempo no Japão para aprofundar os seus conhecimentos do zen-budismo.
Quando o oiço queixar-se tenho o sentimento de assistir a uma
representação moderna de Le Malade imagirtaire. Não rio, nem escarneço,
porque mesmo imaginado o sofrimento dói. Mas em vez da compaixão que ele
gostaria de receber, eu mal consigo dar-lhe uma distraída simpatia.
Sábado, 23 de Julho -— O Amsterdamse Poort, no bairro de Bijlmermeer em
Amsterdão. Talvez o maior e de certeza o mais interessante dos centros
comerciais daqui. Das cento e tal nacionalidades de que falam as
estatísticas da cidade, poucas faltarão na turba que passa nas ruas,
entra nas lojas, enche as arcadas, flanela pelas pracetas.
O ritmo do movimento, das atitudes, das conversas, pouco tem que ver com
a Holanda. A agitação e o barulho menos ainda. Está-se simultaneamente no
Suriname e nas Antilhas, na África, no Afeganistão e na Capadócia.
Cruzam-se siques barbudos de turbante, nigerianos de bubus, marroquinos
nos seus albornozes, egípcios e quéchuas, chineses, mexicanos de bigode
pendente, russos fantasiados de soldado.
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Ir às compras ao Poort (assim o crismou a voz do povo) conjuga as
surpresas duma viagem ao estrangeiro com a ilusão de ser-se figurante num
filme exótico.
Domingo, 24 de Julho — Surpresa. Num programa sobre antiguidades vejo que
os desajeitados brinquedos de folha-de-flandres da minha infância atingem
valores absurdos. Canetas de tinta permanente iguais àquelas com que
comecei a escrever vendem-se agora por mil, dois mil florins.
Primeiro foi a surpresa de que valessem tanto. Depois a melancólica
constatação de indiretamente me tornarem velho. Como assim, antiguidades,
o que me está presente como
se fosse de ontem?
Segunda-feira, 25 de Julho — Nascido e criado em Lisboa, liberal, casado
com uma católica ortodoxa, a descendência dele abrange oito filhos e
dezoito netos. Quando me soube avô deu-me os parabéns e acrescentou,
dizendo falar por experiência, que os netos nos dão duas grandes
alegrias: quando chegam e quando se vão embora.
Instantâneo a preto e branco:
Ela pinta com talento. Os seus quadros são povoados de figuras trágicas
que se retorcem nas angústias do viver, figuras deformadas pelo terror de
pressentir o sem destino dos caminhos por onde todos vamos.
As cores que usa possuem fulgores que misteriosamente revelam o íntimo
das nossas inquietações; e há qualquer coisa no modo como trata as formas
que é ao mesmo tempo harmonioso e ameaçador, uma espécie de memento dos
ritmos a que obedece a turbulência da vida.
Pinta com talento, com alma e a paixão que marca o verdadeiro artista,
aquele para quem só a sua arte conta e todo o resto é secundário. Também,
como verdadeiro artista, ela pinta em solidão, quase em clausura.
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Mas como tantas vezes acontece, o mesmo destino que assim a beneficiou,
encheu-a de um orgulho desmedido, maléfico como o veneno. Os quadros vão-
se amontoando no seu ateliê e de vez em quando expõe-os numa galeria,
numa escola, numa dessas fábricas ou igrejas vazias que o utilitarismo
transforma em centros culturais. Mas expõe-os a contragosto e infeliz,
porque a fábrica abandonada, a escola, a galeria, não lhe satisfazem o
sonho. Sonho louco que exige que o mundo não reconheça outro talento além
do seu e, incondicionalmente, só a ela admire.
Terça-feira, 26 de Julho — É um medo que de vez em quando ressinto.
Espalhados pelo meu quarto de trabalho há montes de papelada,
apontamentos, esquissos, resumos de novelas, planos de romances, páginas
escritas depois de momentos de enternecimento ou de raiva, cartas,
desabafos. Coisas íntimas, construções a aguardar que eu lhes dê forma,
os retalhos de vida que provisoriamente se põem de lado até ao dia em que
se tenha tempo para lhes dar destino.
Mas os dias passam, os papéis amontoam-se, cresce o temor de que a morte
me leve sem os destruir ou arrumar. E então digo à mulher, relembro às
filhas, deixo aqui para os descendentes como em testamento: de mim só
quero que fique o publicado; o resto deitem-no à fogueira. Porque pouco
haverá de mais humilhante para um escritor do que, contra seu desejo,
tornar público o que ele deixou inacabado.
Quarta-feira, 27 de Julho — Dias atrás recebi da Dinamarca um cheque de
trinta e sete florins para pagamento dum livro. Mandei-o para o banco
para que mo creditassem e pelo serviço (serviço?) cobraram-me vinte
florins de custos. Que custos?
Quinta-feira, 28 de Julho — Com uma carta elegante Marjoleine de Vos
acerta-me uma cacetada que simultaneamente
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fere a vaidade e a carteira. Se me importo de terminar no princípio de
Outubro a publicação das cartas que no NRC-Handelsblad deveriam continuar
até ao fim de Dezembro. Pergunta retórica, quando quem a faz tem, como se
diz em bom português, a faca e o queijo na mão.
Sexta-feira, 29 de Julho — O receio que eu em pequeno tinha das
trovoadas, tomou-se terror no dia em que vi um corpo carbonizado pelo
relâmpago.
Na margem do Douro, uma tarde magnífica de sol, aproximei-me dum
ajuntamento e deparei com o cadáver azulado dum ancião, inchado até ao
extremo, coberto de bicharia, os olhos arregalados, a língua pendente.
Uma corda que lhe tinham passado ao pescoço prendia-o ao bote onde dois
polícias esperavam sentados, de cara voltada por causa do fedor. Senti-me
desfalecer de náusea e fugi dali num terror pânico da água.
Mas ambos esses medos, que ainda de vez em quando me atormentam, são mais
estéticos do que físicos. Sabemos o corpo mortal, corruptível, e todavia
tudo em nós se opõe à certeza da sua corrupção.
Sábado, 30 de Julho — Fazê-lo sozinho e pagar quase por inteiro do
próprio bolso os custos dum jornal literário durante seis anos, não é
amor pela literatura, é paixão doentia. Joaquim Matos telefona-me a
anunciar o fim próximo do Letras & Letras e eu, sinceramente, em vez de
lastimar o facto dou-lhe os parabéns. Porque não estaria ele bom da
cabeça se continuasse o sacrifício.
Domingo, 31 de Julho — Com a filha, o genro e uma neta rabugenta, passo a
tarde a navegar pelos canais de Amsterdão. Largos, estreitos, tortuosos,
retilíneos, todos exalam magia. Mas o que mais me encanta neles não são
as marcas da grandeza passada, mas o vislumbrar das vidas nas casas que
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têm as traseiras voltadas para a água. Uma rapariga com um gato no
regaço. Outra que em fato de banho lê o jornal. Um homem que criou todo
um jardim num estrado em que ele próprio mal se pode mover. Um rapaz
estendido ao sol, segurando em cada mão uma lata de cerveja. Uma mulher
em roupão, o cabelo desalinhado, a fumar à janela com o olhar surpreso de
quem acabou de sair da cama.
Segunda-feira, 1 de Agosto — Uma carta. Ele é inteligente, sensível,
culto, bondoso, fiel na amizade. Vive numa casa de sonho à beira-mar.
Proprietário por herança de desmesuradas extensões de terra e rico em
proporção. Dum bom humor proverbial, mau grado a tragédia que há mais de
vinte anos lhe ensombra a vida: logo depois do parto do único filho a
mulher enlouqueceu e vive desde então isolada em casa. A criada que a
cuida aprendeu a conhecer os sintomas e quando se torna necessário dá-lhe
os remédios, veste-lhe a camisa-de-forças e fecha-a num quarto para
evitar que nos ataques de fúria ela se mate ou mate alguém.
Até há pouco, escreve ele, a única verdadeira alegria da sua vida era o
filho, que brilhava em Lisboa no estudo da Arquitetura. Mas meses atrás
atacou-o a mesma doença da mãe e teve de ser internado. Sem esperança de
Cura, no dizer dos médicos.
«Que mal fiz eu para Deus me castigar assim?», pergunta ele a terminar
carta.
Deus, infelizmente, responde do modo como sempre escreve: por linhas
tortas.
Terça-feira, 2 de Agosto — Mesmo na mocidade nunca fui viajante
aventuroso, e se de vez em quando invejo os que são capazes de correr o
mundo de saco às costas, dormindo ao relento, a ideia de viajar sem
conforto logo me cura da inveja.
Também nunca tive um interesse por aí além em me misturar com os povos
que visitei, ou de conhecer em cada país as
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opiniões do «homem da rua». E as paisagens... Ah! As paisagens podem ser
grandiosas, inesperadas, espetaculares, mas quando se é apenas viajante,
aquele que passa preso ao fio ténue da curiosidade, mal a surpresa
esmorece logo elas fatigam.
Assim, curiosamente, as viagens que até agora mais me enriqueceram o
espírito nunca foram as que eu próprio fiz, mas aquelas alheias em que
pela leitura participei como que por procuração. E pouco se me dá que a
minha visão do mundo, dos exotismos do mundo, seja desse modo quase toda
emprestada. A viagem ideal? Atravessar a índia com um bom livro
sem sair da cama.
Quarta-feira, 3 de Agosto — «Serias capaz de matar alguém?» «Não sei.
Talvez. Num momento de inconsciência.»
E a conversa continua teorética sobre as razões várias que podem levar ao
assassinato, as armas mais adequadas ao carácter de cada um, ao momento,
à situação. Mais tarde, sozinho, concluo que sim, que em certas
circunstâncias eu não hesitaria em matar. Felizmente, até à data os meus
«assassinatos» foram apenas cerebrais. E poucos. Uns três ou quatro.
Quinta-feira, 4 de Agosto — Gerrit Komrij escreve hoje no NRC-
Handelsblad: «Tomemos a amizade, que não é o que se possa chamar um
aspeto sem importância no trato social. Vista de fora, a amizade em
Portugal parece ser a mesma (que conhecemos) mas vista de dentro é
qualquer coisa de totalmente diferente... Tenta a gente em Portugal
tornar-se íntimo de alguém, à maneira holandesa, e constata que é mais ou
menos a mesma coisa do que querer barrar pão com manteiga gelada.
Contudo, não tenho a intenção de atirar para o lixo a minha enraizada e
muito holandesa noção da amizade.»
Durante um instante tomou-me o desejo de polemizar. Depois encolhi os
ombros, porque se um escritor arreganha de vez em quando os dentes a
fingir que morde, é só artifício, são
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só palavras. E sobre a amizade cada um tem as suas ideias e experiências.
Finalmente, passado o momento de irritação, não pude deixar de sorrir dum
tão curioso acesso de nacionalismo: «íntimo de alguém, à maneira
holandesa... a minha enraizada e muito
holandesa noção da amizade».
Sexta-feira, 5 de Agosto — Somos um pequeno grupo a jantar em casa de
Fieneke, que em Setembro parte por uns meses para Moçambique, o atual
baby das Nações Unidas. Recordo pouco do que falámos: a miséria dos
Moçambicanos, a corrupção, o luxo em que vivem os cooperantes que por lá
espalham as sementes da democracia e as migalhas da ajuda para o
desenvolvimento.
Devido talvez ao seu absurdo, tenho mais presente a história que em Maio
ouvi em Lisboa a um jornalista: entre os milionários de Maputo avultam os
indianos e entre esses um negociante que trafica em tudo, desde as
hortaliças aos aviões, das alpercatas aos petroleiros. Vaidoso, mandou
vir de Itália um Ferrari de meio milhão. Infelizmente, à exceção de uma
as ruas da cidade são só buracos e é em pouco mais de duzentos metros de
asfalto liso que o indiano todas as tardes, para trás e para diante, faz
roncar o seu bólide.
Sábados 6 de Agosto — Uns oito anos atrás conheci pela primeira vez as
alegrias e as frustrações que acompanham o uso do computador. Com a ajuda
de gente dedicada — obrigado Adri Boon, obrigado Kees Hengeveld — fui
decifrando aos poucos os mistérios de MS-DOS e saltando as barreiras de
WordPerfect. A seguir vieram os jogos, as databases, os programas de
comunicação, e finalmente progredi o suficiente para a partir de hoje ter
endereço de e-mail na autoestrada eletrónica.
Domingo, 7 de Agosto — É um sentimento perturbante, quando o que sempre
se repudiou surge por vezes com um
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inesperado atrativo. Fazer parte dum exército, dum convento, duma seita,
duma quadrilha. Seguir um regulamento. Aceitar um chefe. Eliminar as
incertezas e as dúvidas do que caminha
sozinho.
Cadeias? Laços? No diário faço por esquecê-los, mas nem por isso me pesam
menos os grilhões que me acorrentam à liberdade.
Segunda-feira, 8 de Agosto — A antipatia pelo Verão, pelos dias de grande
calor, quando o ar pesado e pegajoso não limpa os pulmões, tenho-a desde
a infância. Mas a essa antipatia antiga pela estação calmosa vieram nos
últimos anos juntar-se outras: em Julho e Agosto faz-se como que um
grande vazio à minha volta: o correio diminui, o telefone não toca, as
pessoas que conheço vão de férias, nas ruas da cidade, em vez dos rostos
familiares só encontro turistas embasbacados. E melancólico, como se de
propósito me tivessem deixado sozinho, fecho-me em casa amaldiçoando o
bom tempo, a febre generalizada das férias, o sentimento de me sentir num
ninho vazio.
Myrthe, a minha neta, faz hoje um ano.
Terça-feira, 9 de Agosto — Tive sonhos, claro. Tantos que dariam para
três vidas. Mas cedo vi confirmada a certeza de que na própria terra
ninguém é profeta. Depois, eterno farsante, achando que para castigo dos
meus sonhos uma terra só seria pouco, o destino deu-me duas.
Quarta-feira, 10 de Agosto — Minha mãe escreve a má notícia de que a
serra fronteira à aldeia ardeu toda num incêndio que durou três dias.
Aviões, helicópteros, bombeiros vindos de perto e de longe, nada puderam
contra o fogo que levou milhares de pinheiros. O calor era tão intenso
que se sentia na rua e por momentos temeu-se que as casas também
ardessem, pois as chamas chegaram a lamber os quintais.
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A secura do relato sem detalhes — o seu estilo epistolar sempre foi
económico, quase telegráfico — deixa-me angustiado, preso a uma forte
inquietação. Já uma vez em criança vi a serra arder, mas nesse tempo eram
poucos os pinheiros, enormes as searas, e as labaredas da palha não se
levantavam altas como quando as alimenta a resina.
Se pudesse corria lá a certificar-me do que ardeu e do que se salvou.
Porque imagino a terra enegrecida, os troncos calcinados, a devastação da
natureza, a perda das paisagens do meu passado, e não sei qual me dói
mais.
Quinta-feira, 11 de Agosto — Ele chama-lhe problema e de mim, mais velho,
com certeza experiente, quer saber se lho posso explicar. Não posso.
Aliás não me parece problema, quando muito um fenómeno a pedir pesquisa.
Da juventude até ao divórcio em que acabou o primeiro casamento, os seus
coitos foram silenciosos. Com as amantes que depois teve começou um
período em que involuntariamente gemia no momento da ejaculação. Os
roncos surdos marcaram os orgasmos do segundo casamento e agora, com a
terceira mulher, diz que não se pode conter, que mal sente a proximidade
do moment suprême desata em urros que são mais de animal que de gente.
Sexta-feira, 12 de Agosto — Como todos os automobilistas eu regularmente
excedo os limites de velocidade e de longe a longe acontece-me ter de
pagar uma multa. A vida é assim e nem eu me queixo das contravenções, nem
a segurança alheia se pode queixar da minha imprudência, pois durante as
dezenas de anos em que conduzo apenas tive um acidente e esse causado por
outrem.
A idade também contribui para uma certa calma e nos últimos tempos noto
que a minha condução se tornou ainda mais prudente, que rodo com
frequência na faixa da direita. Cauteloso, pois, comedido. Convicto da
necessidade de obedecer ao
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regulamento. O que não evita a multa nem a ir a. A polícia multou-me hoje
na estrada de Haia, por exceder em oito o limite de cem à hora, enquanto
pela faixa da esquerda malucos apressados me ultrapassavam com
velocidades de avião.
Sábado, 13 de Agosto — Certas peças do vestuário feminino sempre me foram
antipáticas. Nunca consegui compreender, por exemplo, o atrativo das
jarretes e, por muito belo que seja, um corpo de mulher enfeitado com
sexy lingerie, em vez de me excitar faz-me rir. Do mesmo modo que um fio
a separar duas nádegas para mim nada tem de erótico, é só obsceno.
Mas a minha aversão vai menos para esses extremos do que para peças de
roupa mais correntes. Bem sei que é exagero e toca o irracional, mas uma
mulher vestida de saia-calça desperta em mim poderes de escárnio que
noutros momentos me fariam bom arranjo. Com ou sem desenhos as meias de
rede provocam-me sufocações de horror estético e guardo a penosa memória
de um dia ter visto numa cadeira de rodas uma anciã de saia arregaçada,
as pernas paralíticas vestidas com meias de rede enfeitadas de pássaros
bordados.
Ainda essas meias não caíram totalmente em desuso e já a minha
sensibilidade é afrontada pelo porte generalizado dos kggings, vestuário
que, em vez de camuflá-la, revela cruelmente a fealdade anatómica,
acentuando as regueifas de gordura, os poços da celulite, a deformidade
das tíbias, os danos do reumatismo.
Mas de verdade não sei o que me incomoda mais nas mulheres que assim se
dão em espetáculo: se o seu desdém pela estética, a ausência de senso
crítico ou a recusa da feminilidade.
Domingo, 14 de Agosto — Nem todos os dias têm de ser tristes, maus ou
monótonos. Por isso espero, espero, espero
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pelo dia bom, o momento excecional de alegria, de satisfação. Enquanto
esse momento ou esse dia não chega conformo-me com as pequenas coisas da
vida e continuo a esperar, a esperar, a esperar. Esperar, aliás, sempre
foi para mim um modo de existir e, ao fim e ao cabo, talvez eu não seja
mais que um otimista que se desconhece, um tolo, ou alguém que escondido
à espera julga poder escapar aos seus demónios íntimos.
Que incómodos pensamentos pode trazer uma tarde de domingo!
Segunda-feira, 15 de Agosto — Paul Verhuyk telefona a perguntar se
conheço a etimologia da palavra «Macau», que não parece ser de origem
chinesa, pois em chinês se chama (ou chamava?) à cidade Ho-Keang («baía
do espelho em forma de concha») ou Ou-Mun («porta da baía do espelho de
água»). Não conheço. Procuro em enciclopédias, dicionários, livros de
história, geografias, e em parte nenhuma a encontro.
Como sempre, cada vez que não consigo encontrar logo o que me interessa,
a continuação da busca torna-se para mim verdadeira obsessão.
Terça-feira, 16 de Agosto — Gosto de trabalhar a madeira e conheço
momentos de intenso contentamento quando consigo reparar qualquer pequeno
desarranjo elétrico.
Desmonto um ferro-de-passar que não funciona, dou pela avaria e
entretenho-me a repará-la. Mas desta vez interessa-me menos a minha
modesta vitória, do que estudar o esforço desenvolvido pelo fabricante
para tornar complicada, quase impossível, a reparação de um aparelho tão
simples.
Quarta-feira, 17 de Agosto — Deo. Deo gratias. Deo volente. Cum Deo. Na
missa e fora dela a palavra sempre me pôs como que em sentido. Deo. Deus.
O apelativo em que se encerram todos os mistérios, os das nossas
indiferentes vidas e os da eternidade.
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Mas tudo muda. A rapariga aparece no ecrã da televisão, sorri, ergue os
braços. Dum frasco sai um vapor em forma de penugem e uma voz sussurra:
«Deo X, vinte e quatro horas de proteção para os seus sovacos.»
Se fosse por escárnio doeria. Mas não é. Nem sequer ignorância. E apenas
oportunismo comercial e a aceitação de que tudo, mesmo o sagrado, se pode
prostituir.
Quinta-feira, 18 de Agosto — Eça de Queirós não é só um dos meus
escritores favoritos, mas aquele a quem eu como escritor sinto que mais
devo. Ainda hoje me maravilho com a elegância da sua prosa e foi nos seus
livros que descobri a maleabilidade da língua portuguesa, o poder da
ironia, a arte magistral de numa frase retratar um carácter. A sua
crítica impiedosa de Portugal, das instituições e da sociedade, ajudou-
me, se não a aceitar, pelo menos a compreender as forças profundas que
continuam a determinar o modo de ser do país em que nasci.
Por isso e mais, o respeito e a admiração que tenho por Eça de Queirós
continuam intactos, não sofreram com os anos. Bem ao contrário. Mantenho
até para com ele a pontinha de idolatria que me ficou da adolescência. E
por vezes falo ao seu retrato. Li-lhe hoje as boas críticas com que tem
sido recebida a tradução holandesa d’O Primo Basílio e tive a impressão
de que ele apreciou.
Sexta-feira, 19 de Agosto — Desde que me conheço a imaginação com que fui
dotado sempre me pareceu uma qualidade permanente. A qualquer momento
nunca tive dificuldade em inventar uma história, um enredo, de alinhavar
as peripécias dum conto. Mas neste momento esse dom escondeu-se tão fundo
que mesmo esforçando-me o não consigo recuperar. É uma frustração que
certamente se aparenta à de quem conheceu as alegrias de andar, saltar,
correr, e de súbito se vê paralisado. E eu, de verdade, preciso tanto da
minha imaginação como do movimento, como do ar que respiro. Ou talvez
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mais. É um martírio sentir esse vazio, dar-me conta que dentro de mim
qualquer coisa parece ter deixado de funcionar, o sentimento pânico de
que a imaginação me abandonou. Um estado de choque causado pela insidiosa
suspeita que vagarosamente mina a confiança que eu tinha no talento que
me foi dado e na arte que ao longo dos anos julgava ter acumulado.
Sábado, 20 de Agosto — A partir dos meados da década de 60 viciei-me na
leitura de necrologias, anúncios matrimoniais e anúncios à procura de
contactos, que se tornaram desde
então uma das janelas onde me debruço a apreciar deliciado a paisagem da
alma alheia.
Neles há estupidez, ilusão, lamechice, ingenuidade, sonho, angústia,
pressa de viver, mentira, medo, avidez, orgulho, mas tudo agradavelmente
compacto, e em meia dúzia de linhas tem-se ali uma novela em resumo. Como
este no NRC-Handelsblad de hoje: «Utreque. Cinquenta Verãos soalheiros
vividos em gozo e plenitude. E contudo esta mulher, do tipo Rubens,
aparenta muito jovem e é atraente em extremo. Embora continue a ser feliz
na sua vida de casada, pensa com frequência nas aventuras e nas surpresas
que a vida deve ter. Por isso procura ela um verdadeiro adónis, bem
fornecido sob todos os aspetos, estável, jovem de corpo e espírito. Ela
gosta de música de câmara, teatro, dança, da natureza, da sensualidade,
de sair à noite. Cartas com fotografia para o n.°... deste jornal.»
Domingo, 21 de Agosto — Há momentos em que a minha cortesia só por um fio
consegue evitar que a raiva desembeste. Como, por exemplo, quando alguém,
julgando-se amável e sinceramente interessado, me pergunta:
— Qual é o seu melhor livro?
Segunda-feira, 22 de Agosto — Vou visitá-lo ao hospital. O seu estado
neste momento é estacionário e os médicos não
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conseguem prever que desenvolvimento a doença irá tomar. Atrapalho-me nas
palavras para dizer que lhe acho bom aspeto, mas de facto o seu rosto tem
já a pele exangue e as faces mirradas que prenunciam o fim.
Ele sorri da minha confusão e acrescenta:
— A falar verdade a morte não me mete medo. Mas também não tenho pressa.
Sinto-me um bocado como o ciclista que quase ao terminar a etapa deixa a
bicicleta e continua a pé, desinteressado da chegada à meta.
Terça-feira, 23 de Agosto — Passo na Jodenbreestraat que foi de
Rembrandt, dos Pinto, de António Vieira e de tantos portugueses.
Conhecia-a em 1956 e gostei dela estreita como era, escura, meridional.
Depois derrubaram-lhe as casas, alargaram-na, fizeram-na moderna e a
ocupar-lhe um lado inteiro colocaram o enorme edifício denominado
sarcasticamente Maupoleum onde trabalhei anos. Mas tudo desaparece e
agora, melancólica surpresa, andam a demolir também esse marco do meu
passado.
Giovanni Pontiero é catedrático na Universidade de Manchester e o
tradutor inglês de Saramago. De mim traduziu o ano passado um conto e
combinámos encontrar-nos em Amsterdão, no hotel onde se hospedou. Mau
grado o nome italiano, a sua postura é dos pés à cabeça a do british
scholar. Fato idem. E uma pronúncia tão cuidada, um fraseado tão
elegante, que por comparação o inglês em que me exprimo se assemelha a um
balbuciar desajeitado. Ele próprio, por certo ferido na sua
sensibilidade, sugere que continuemos em português.
Mas o português falado com um forte sotaque britânico também não é o que
se chama um mimo para o ouvido. Insensivelmente voltamos ao inglês e
segue-se um estranho diálogo: ele fala, fala, e eu respondo a tudo: «
Yes, yes».
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Quarta-feira, 24 de Agosto — Decidimos partir para Portugal de hoje a um
mês.
Por estranho que pareça e ao contrário da maioria das pessoas, quase
nunca tivemos verdadeiras férias. Em trinta anos passámos uma semana na
Tunísia e se bem me lembro duas
em Rodes. Uma vez a caminho de Portugal demos uma volta pela Itália e
quando chegámos à aldeia e o contámos ao meu pai, ele replicou-nos no tom
de quem se sente roubado:
— A Itália é aqui!
Quinta-feira, 25 de Agosto — Com um pouco mais de treze metros quadrados
— medi-o há instantes — o meu quarto de trabalho é pequeno, mas poderia
ser confortável se o não atravancasse tanta coisa.
Assim, com as mesas, as estantes, um armário, um divã, caixas de todos os
tamanhos e feitios, os montes de revistas e jornais à espera de serem
lidos, é um espaço onde vivo sentado ou apenas consigo movimentar-me de
lado. Como uma cela. E contudo, se estou longe, esta prisão a que
voluntariamente me condeno é o que mais depressa me falta.
Sexta-feira, 26 de Agosto — Oiço-o em silêncio, atordoado pela torrente
das palavras. Para um instante para um golo de cerveja e prossegue o seu
monólogo sobre a história da Europa, a identidade da Europa, os problemas
da Europa, a grandeza da Europa, o futuro da Europa, a economia da
Europa. Durante quase duas horas. Quando se despede aperta-me a mão
calorosamente e diz que a sintonia dos nossos pontos de vista é para ele
um motivo de grande satisfação.
Sábado, 27 de Agosto — Uitmarkt, manifestação literária nas ruas de
Amsterdão. Disponível para distribuir autógrafos estou no
Kloveniersburgwal sentado entre uma parede e uma mesa com alguns livros
meus. A multidão passa ininterrupta. De vez em quando alguém pára,
folheia, olha, sorri, uma espécie de diálogo surdo.
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Uma mulher agarra um livro, abana com ele a chamar a minha atenção e
pergunta:
— O senhor fala holandês?
No mesmo momento em que lhe respondo ela pousa o livro e sem me encarar
nem reagir volta-me as costas.
Passa o casal que na esquina do Singel e da Raadhuisstraat tem uma tenda
onde comi o meu primeiro arenque e de que há quase quarenta anos sou
cliente fiel. Não lhes sei o nome. Acenam de longe, sorrindo com
simpatia. Aceno e sorrio também.
Param, voltam atrás, o homem grita por cima das cabeças:
— Hoje de manhã comprámos um livro seu.
— Obrigado.
— E vamos lê-lo.
Que lhe hei-de responder?
Domingo, 28 de Agosto — Uitmarkt. No mesmo lugar, à mesma mesa. Dois
sujeitos aí duns trinta anos param, folheiam distraidamente os livros —
que procurarão ao deixar correr assim as páginas? —, pousam-nos, pegam
noutros. Um deles abre um livro meu, olha a capa, revira-o e apontando-me
como se eu fosse uma figura de cera e não um ser vivo ali a metro e meio
deles:
— Já leste qualquer coisa deste gajo?
Segunda-feira, 29 de Agosto— «Diga-me uma coisa: aquelas peripécias do
seu conto aconteceram mesmo?»
Que inocência o esperar que um escritor escreva a verdade, quando para
ele o que mais conta é a arte. E na arte a verdade não passa de um
acessório menor.
Terça-feira, 30 de Agosto — Começou logo de pequeno em casa e na escola,
onde me achavam manso, bom menino. Continuou na juventude: na opinião
alheia eu era bom rapaz. De vez em quando tenho lido ou ouvido dizer que
sou um sujeito amável.
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Pareço-o, mas o que os outros vêem é a carapaça com que desde criança
comecei a revestir a violência do meu íntimo. Das vezes que, desatento, a
deixei irromper, descobri sob ela um eu que para minha paz e segurança
alheia melhor é manter aferrolhado.
Não sou amável por natureza, mas por saber que carrego comigo uma bomba
de relógio com o mecanismo desarranjado.
Quarta-feira, 31 de Agosto — Não nos chega a sida. Descobrem-se vírus
novos e terríveis nas floresta do Congo; do Brasil vem o vírus Sabiá que
a olhos vistos faz apodrecer o corpo humano. Mas ainda esses não foram
bem estudados e já se escrevem sobre outros, mais misteriosos, livros de
aterrorizar. Atrás deles não tardarão os romances, os filmes, as
telenovelas, tudo o que precisamos para esquecer o medo real e alimentar
a nossa fome de medo esterilizado, hipotético, a cores e longínquo.
Quinta-feira, 1 de Setembro — Não me canso de mandar e-mails, que é
simultaneamente um fascínio de adulto e um encanto infantil. Além disso,
o comunicar por carta tornou-se um ato romântico e obsoleto que nada tem
que ver com a comunicação direta e quase instantânea através da Internet.
O telefone e o faxe também são diretos, quase instantâneos, só não dão
aquela satisfação de que se põe em movimento uma engrenagem mundial. Mas
para o meu entusiasmo tenho uma razão mais séria: o receio de me tomar
analfabeto na idade eletrónica.
Sim, eu conheço as boas razões a favor dos transplantes de órgãos e as
boas razões contra. Compreendo que se podem mitigar sofrimentos com um
pulmão retirado dum cadáver e prolongar uma vida com um coração alheio.
Mas também me pergunto que sentido faz às vezes prolongar a vida e talvez
116
me ache traumatizado por um acontecimento passado na minha proximidade:
um filho doou um rim ao pai e morreram ambos durante a operação.
Pessoalmente sinto um certo conforto pelo facto de que na idade a que
cheguei nenhum dos meus órgãos sirva para reciclagem, e não me dói a
certeza de que infalivelmente chegará o momento em que eles pararão de
funcionar. O meu único desejo é que se o não puder fazer eu próprio, me
ajudem a morrer em paz.
E como tantas vezes acontece, vem a surpresa das coincidências. Os
jornais trazem hoje a notícia do transplante, nos Estados Unidos, do
coração de uma jovem morta num acidente, para o pai, doente cardíaco.
Quereria eu prolongar a minha vida com o coração de uma das minhas
filhas? Não. Pelas razões que já disse e outras, misteriosas, que não sei
como formular.
Sexta-feira, 2 de Setembro — Folheio os diários que escrevi na
adolescência e ainda me envergonha o ver-me neles nu e tão ingénuo. Os
que mantive ao redor dos trinta anos envergonham-me pelo romantismo, a
fantasia, a ilusão em que eu vivia de que com entusiasmo e solidariedade
se salvaria o mundo.
Pergunto-me como olharei para este se o destino me deixar chegar aos
oitenta. Porque ingénuo já não sou. Romântico também não, e das ilusões
guardo somente as precisas para com elas diluir um pouco as sombras do
viver.
E a verdade?
Ah! A verdade! Num diário, num romance, numa conversa, no seu dia-a-dia,
a única verdade que ao escritor interessa é aquela que ele próprio cria.
Sábado, 3 de Setembro — Vou a caminho duma vilória do Brabante para numa
galeria local dizer umas palavras amáveis sobre Francisco Laranjo, pintor
do Porto. Não o conheço a ele
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nem ao seu trabalho, mas a gente de vez em quando tem de fazer destes
fretes porque os amigos se metem a intermediários solícitos.
O escritor Willem van Toorn, que é cinematograficamente fotogénico (já
alguém lho terá dito?), apresentará um outro artista.
Chego, aperto umas quantas mãos, a mão do pintor, dão-me um copo de
qualquer coisa, deambulo pelas salas entretido a olhar os quadros e um
público onde há um pouco de tudo: artistas e artistóides, pseudoboémios,
notáveis provincianos, burgueses imitando o que julgam ser os modos da
cidade.
Um ancião de postura militar, em mangas de camisa, protege-se da frescura
com um pulôver e traz nele pendurada uma impressionante quantidade de
condecorações. Passa uma mulher curvada, charuto na boca, vestida
parcialmente de seda preta, com as costas nuas e a saia fendida quase até
à cintura a mostrar a coxa octogenária.
Outra, de meia-idade, magra, a boca torcida num ricto que tanto pode ser
de raiva permanente como resultado de um ataque, pega-me pelo braço, diz
que já me leu e acrescenta:
— A Holanda está cheia.
— Cheia de quê, minha senhora?
— De estrangeiros.
— Palavra? Quer isso dizer que eu, estrangeiro, me devo pôr já a correr?
O ricto transforma-se numa aparência de sorriso:
— O senhor não, claro. Mas o senhor bem me compreende.
Compreendo-a melhor do que quereria, liberto o braço, volto-lhe as
costas.
Mal-humorado, despacho a minha apresentação com meia dúzia de palavras e
duas verdades: que nada sei do pintor nem da sua pintura, pois acabo de
conhecê-los; que o apreço que se pode ter por um quadro é todo subjetivo,
pessoal, e por isso que cada um se despache a examiná-los.
118
Willem van Toorn, esse faz como deve ser a apresentação do seu
«afilhado»: elogia, encontra comparações felizes, lê um poema. Seguem-se
os aplausos, o champanhe, as conversas vazias do costume. O homem das
condecorações no pulôver apodera-se de mim para me sussurrar que também
escreve e que nunca leu nada meu. Uma polaca aprendeu o holandês em dois
ou três anos e fala-o tão perfeito que me dá a impressão de que mente. Um
homem simpático diz-me que passa as férias em Caminha, onde tem casa. Uma
criança em correrias tropeça, esbarra contra uma mulher, caem ambas.
Para um grupo seleto de convidados há depois comes e bebes. Debico num
prato, bebo um copo de vinho, mas como no meio daquela gente que não
conheço me sinto a mais, só quase pessoa-objeto, caminho discretamente
para a porta e vou-me embora.
Domingo, 4 de Setembro — Surpreendido porque me custa a pegar-lhe, peso o
presente que Francisco Lar anjo me deu ontem, uma luxuosa antologia de
poesia portuguesa, editada em apenas cem exemplares. São três quilos e
seiscentos gramas de livro!
Segunda-feira, 5 de Setembro — Primeira emissão na TV do programa
Nachtsalon, de Michaèl Zeeman. Ele leu, releu, pensou, repensou,
preparou-se. Mas que pesada seriedade! Além disso nem todos os escritores
gostam, querem, são capazes, de falar com senso sobre o conteúdo dos seus
livros.
Dos participantes, Irene Dische, Benno Barnard e uma turca-alemã de nome
Sevgi Õzdamar, incomodou-me esta última, assertivamente antipática. Da
língua alemã está-se nas tintas, explicando que os erros que nela dá por
indiferença, sentimento artístico ou ignorância, contribuirão para
enriquecer a língua de Goethe nas gerações futuras. E quem não apreciar
que se lixe. Arrogante como só os ignorantes sabem ser.
O cenário do programa é um desastre, com as três «vítimas» e o
apresentador em corpo inteiro defronte da câmara,
119
os pés e as pernas em grande plano. Foi-se-me mais vezes a atenção para
os joelhos e o calçado dos presentes, do que para aquilo que eles diziam.
Terça-feira, 6 de Setembro — Telefonema da VPRO-Radio para tomar parte
num programa.
Telefonema da Brigitte de Leeuwarden que, solidária com as criancinhas
das favelas de São Paulo, vai ao Brasil, volta do Brasil, vai retornar ao
Brasil.
Telefonema da Isabel.
Telefonema da Mariana, que regressou da Hungria e volta à Hungria.
Telefonema da Mónica.
Telefonema da Lilian, que na sexta-feira parte de férias para Creta.
Telefonema dum maluco que quer falar a uma Yvonne e exige que eu a chame,
senão...
Telefonema da garagem a perguntar se a revisão do carro foi feita a meu
gosto. Como é que vou saber?
Telefonema da secção de vendas dum jornal, a querer convencer-me de que
preciso duma assinatura. Não preciso.
Telefonema do Harrie a dizer que tem pronta a tradução do artigo sobre
Eça de Queirós.
Telefonema da Embaixada.
Telefonema duma portuguesa, nascida e criada aqui, que quer saber se
recebi a carta em que me conta os problemas que tem com definir a sua
identidade, e me pergunta se também tenho problemas assim. Recebi. Não
tenho.
Doze chamadas. Incrível. Quando há dias em que o telefone permanece tanto
tempo silencioso que eu, com receios portugueses, o levanto do descanso
para me certificar de que a linha funciona.
Quarta-feira, 7 de Setembro — Dois excertos de uma entrevista do escritor
albanês Ismail Kadaré ao jornal brasileiro O Globo:
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«Sou muito disciplinado. Trabalho sempre de manha, duas horas por dia.
Não se pode fazer grande literatura mais do que duas horas por dia.»
O jornalista: «O senhor é um eterno candidato ao Prémio Nobel. Tem
esperança de recebê-lo um dia?»
Kadaré: «Um jornalista italiano perguntou-me uma vez: “O Prémio Nobel é
muito importante para o senhor?” E respondi-lhe: “Eu também sou
importante para o Prémio Nobel. O interesse é recíproco.”»
Porque é que Deus dá a uns uma tão grande segurança e apreço de si
próprios, e enche a alma doutros apenas com dúvidas e incertezas?
Quinta-feira, 8 de Setembro — Acontece raras vezes, mas se acontece quase
sempre chega às páginas dos jornais: alguém em perigo de vida e um grupo
de basbaques que olha sem se mexer. Aconteceu dias atrás no Mont-Saint-
Michel, quando uma garota caiu ao mar e a mãe que não sabia nadar correu
a acudir-lhe.
A rapariga salvou-se, mas durante mais de um quarto de hora a mãe gritou
em vão para que lhe valessem. Os turistas, que eram às centenas,
continuaram a olhar, imóveis. Dezenas deles apontaram-lhe as câmaras de
vídeo. Alguns explicavam satisfeitos depois da mulher ter desaparecido
nas ondas: «Filmei tudo.» Outros, farejando lucro, correram com as
cassetes à televisão, a ver se a compra interessava.
Sexta-feira, 9 de Setembro — Éramos três a almoçar em Lisboa, faz muitos
anos. Eles escritores de nomeada, eu o pexote que ambos tinham convidado
por simpatia e que, respeitosamente mudo, embasbacava com aquela esgrima
de ideias sobre a política, a história, a religião, a literatura, ás
mulheres, a arte... Opunham-se em quase tudo, e eu tive a impressão de
que só para me dar um exemplo de cortesia é que de vez em quando cediam
num ponto ou aceitavam uma hipótese.
121
Era evidente que se tinham respeito, mas o facto de um morar em Paris e
ser um verdadeiro homme du monde, e o outro viver ensimesmado numa cidade
provinciana, agudizava a diferença das suas maneiras de ver. A certo
ponto, a propósito de uma observação sobre Salazar, o homem do mundo
ridicularizou com verve a onda de patriotismo em que Portugal parecia ter
mergulhado.
Abespinhado, empunhando o talher, o provinciano quase se ergueu da
cadeira:
— Saiba você que nunca eu aceitaria viver separado da pátria! Que nunca
trocaria o nosso Portugal pelo estrangeiro! Digo-lhe mais: é tal o medo
que tenho de me desnacionalizar, que nunca atravessei a fronteira! Nem a
atravessarei!
O homem de Paris segurou o queixo num gesto cansado e depois, enquanto o
outro arfava de emoção, lançou-lhe friamente:
— Você não tem medo nenhum de se desnacionalizar. O que você tem é medo
de que, indo ao estrangeiro, lhe confirmem que além de mau poeta nem
sequer sabe comer com faca e garfo.
Vem-me esta recordação ao saber hoje que ao poeta provinciano vão
levantar uma estátua no aniversário do seu falecimento. O outro morreu
esquecido em Paris.
Sábado, 10 de Setembro — Embora já me tenha ocorrido dirigir-me a ambos,
nunca me confessei a um padre nem consultei um psicanalista. Não por
descrença nos seus poderes, mas por deformação profissional minha: tenho
quase a certeza de que chegado o momento de confessar os meus pecados ou
abrir os esconsos da minha alma, eu involuntariamente assumiria o papel
duma personagem de romance, mais interessado no espetacular da ficção, do
que na banalidade do real.
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Domingo, 11 de Setembro — Felizmente que, pelo menos para mim, deixaram
de existir aqueles domingos em que era preciso vestir de domingo, manter
uma compostura domingueira e, por ser dia festivo, almoçar frango assado
com batatas.
Segunda-feira, 12 de Setembro — Há pessoas que ao contar uma peripécia da
sua vida, um momento que as emocionou, acrescentam sempre: «Isto servia
para um romance.» Depois ficam à espera da reação e eu acabo por
resmungar qualquer coisa que não é resposta, mas salva a face de nós
ambos.
Porque regra geral o que contam é comezinho, insípido, não serve para
coisa nenhuma. E mesmo que servisse, a minha imaginação não precisa de
dádivas nem aceita favores.
Terça-feira, 13 de Setembro — Noite de insónia. Leio Trespassers on the
Roof of the World, de Peter Hopkirk. Os Tibetanos dormirão como ele diz
que há poucos anos ainda dormiam? De joelhos, debruçados sobre os
cotovelos, a cabeça entre os braços, para assim evitar que as partes mais
sensíveis do corpo toquem o chão gelado, onde a temperatura por vezes
chega aos quarenta graus negativos.
Quarta-feira, 14 de Setembro — Casal de meia-idade. Voltaram de um mês de
férias na Grécia e contam dos dias que passaram na praia estendidos ao
sol. Comeram bem e beberam à farta por dez réis de mel coado, numa
taberna «daquelas onde os turistas nunca vão» e onde todas as noites
dançavam.
Involuntariamente é essa a imagem que retenho: grandões, pesados de mais
para os movimentos gráceis, tocados do vinho, cambaleando numa roda de
sirtaki.
123
Quinta-feira, 15 de Setembro -— O júri do Prémio AKO será este ano
assessorado por um grupo de trinta leitores que farão a escolha do livro
a premiar. Mais uma desnecessária prova do curioso, por vezes
desesperante, inabalável e ubíquo anseio holandês do consenso.
Sexta-feira, 16 de Setembro — Não gosto de teatro. Não aprecio os atores
no palco. Ao contrário do cinema, onde o falso é eficientemente
camuflado, o teatro não conhece o disfarce e espera do público a mesma
crença ingénua que as crianças têm nos espetáculos de robertos. Em
consequência os atores rebolam os olhos, agitam os braços, falam
arrevesado, dão passos e fazem gestos que não são a representação
artística dos da vida, mas o seu ridículo exagero.
O cinema é a apoteose da ilusão, o teatro é só falsidade.
Sábado, 17 de Setembro — Eu talvez devesse anotar as horas a que me
levanto, as horas a que me deito, o que como, as pequenas coisas com que
ocupo o dia. Tal relato ofereceria uma autêntica mas pouco lisonjeira
imagem de minha pessoa, além de que acho que a ninguém adianta saber, e
me custa a confessar, que esta tarde me sentei na varanda a olhar para um
ninho que os pardais fizeram no beiral, reguei as flores, li o jornal, e
passei o resto do tempo diante do ecrã vazio do computador.
Domingo, 18 de Setembro — É um grande e belo espelho Império. Ao passar
dou-lhe por inadvertência um encontrão, vejo-o balancear, paraliso um
instante à ideia de que vai cair, mas felizmente seguro-o a tempo.
Se fosse um objeto comprado e quebrasse, comprava-se outro. Mas foi um
presente, tem história, é insubstituível.
O presente deu-no-lo Madame Cadoux, nossa vizinha de então, quando em 83
mudámos para esta casa. A história tinha-ma contado o marido, Monsiéur
Cadoux, falecido quase centenário nos anos 70.
114
O pai dele, francês, engenheiro militar, fora encarregado na segunda
metade do século passado de supervisar a construção da cintura de fortes
que deveriam proteger Paris contra a invasão prussiana. E talvez para
sublinhar o carácter patriótico do seu trabalho, Cadoux Sénior decidira
que à construção de cada forte corresponderia a geração de um filho e a
compra dum espelho Império.
Foram doze os fortes, doze os filhos, outros tantos os espelhos, mas os
onze restantes, se ainda existem, só Deus sabe em que paredes se acham
pendurados.
Segunda-feira, 19 de Setembro — Vão os Americanos invadir hoje o Haiti?
Desistem de invadir o Haiti? Invadem-no amanhã? Depois de amanhã? As
televisões e os jornais fazem um grande burburinho do assunto, mas eu
francamente não vejo porque razão me há-de interessar a política dos
Estados Unidos na América Central, porque me há-de interessar que o Haiti
seja pobre, ou que o governe um padre ou uma clique corrupta de mestiços
e levantinos.
Não abona em meu favor, bem sei, pode mesmo parecer provocação numa
sociedade onde a qualquer momento o homem da rua, questionado, tem logo
pronta a sua opinião sobre o Haiti, a África do Sul e os problemas da
Mongólia — mas neste momento interessa-me mais a mudança do sistema da
recolha do lixo no meu bairro.
Instantâneo a preto e branco:
É interessante vê-lo quando, pontualmente, todas as tardes às seis chega
ao café: a porta abre-se e durante dois ou três segundo não acontece
nada, uma pausa teatral antes do galã aparecer no palco. Ele surge então,
grande, pesado, a cabeça leonina erguida, os olhos flamejantes; entra,
roda sobre si mesmo a fechar a porta e a passos medidos encaminha-se para
o bar.
125
Escreve, pinta, canta, representa, esculpe, compõe, toca piano, realiza
performances, vê-se com frequência na televisão, ouve-se com frequência
na rádio. Raro passa semana sem que num ou noutro jornal não apareça
escrito seu, ou não se fale de uma das suas muitas atividades.
Dinâmico, empreendedor, verdadeiro furacão que causa ciúmes, e mesmo eu
já me tenho perdido a sonhar sobre que extraordinário poder possuirá quem
consegue realizar tanto no mesmo tempo em que eu faço tão pouco. A minha
inveja, porém, vai menos para aquilo que ele faz do que para o modo como
ele se mostra, e eu francamente pagaria para ser capaz de entrar assim no
café, vestido de preto, o grande cachecol vermelho enrolado no pescoço,
cabeça ao alto, olhar flamejante, e aquela esplêndida segurança de si
mesmo.
Terça-feira, 20 de Setembro — Que destino levarão os objetos e
maquinismos que passam de moda ou caem em desuso? Para onde irão os
rádios e as televisões que não se vendem? As roupas? Os computadores? Os
relógios, os fogões, os inúmeros aparelhos úteis e inúteis do nosso
viver? Para onde irão?
Se me desse ao trabalho de pesquisar com certeza o descobriria, mas
prefiro não saber e adormeço embrulhado confortavelmente na minha
ignorância. Tudo é preferível ao mundo entontecido, que por vezes imagino
que o nosso é, onde longas cadeias de fábricas que produzem se prolongam
em longas cadeias de fábricas que destroem.
Quarta-feira, 21 de Setembro — Sem dar tempo a que lhe feche a boca,
acontece por vezes que um ou outro bem-intencionado se me põe a cantar as
loas dum escritor, dos seus livros, das emoções que esses livros lhe
causaram. E a beleza do estilo do homem, a profundidade do seu pensar, a
retidão da sua moral, a firmeza dos seus ideais políticos.
126
Em ocasiões assim o que irrita não é propriamente a inveja causada ou a
falta de finesse do interlocutor, mas a comparação implícita.
Quinta-feira, 22 de Setembro — Sem razão aparente dá-me na espinha uma
dor excruciante, daquelas de paralisar e, logo acordada do sono em que me
esforço por mantê-la, a hipocondria assalta-me com o temor de para o
resto dos meus dias me ver preso a uma cama ou a uma cadeira de rodas.
O médico vem, receita um analgésico do género remédio para cavalo, e eu
fico a aguardar que se manifestem os eventuais efeitos nocivos anunciados
no folheto informativo: hemorragias no estômago, perturbações dos
sentidos e do equilíbrio, náusea, vómitos, diarreia, visão dupla, ataques
de asma... Que desagradáveis perspetivas a dois dias da partida para
Portugal.
Sexta-feira, 23 de Setembro — Programa das duas às quatro na VPRO-Radio.
Ronald van den Boogaard, que me entrevista, conta que foi para o Parque
Nacional da Peneda-Gerês com o meu guia de Portugal na mão à procura dos
«ninhos de águias e cataratas» nele anunciadas, mas se cansou de andar às
voltas sem encontrar águias nem cataratas. Encontrou sim um casal
holandês que, também de guia na mão e também às voltas e cansado, em vão
procurava o mesmo.
Um pequeno mapa e umas horas de caminho — o parque abrange cerca de
oitenta mil hectares — tê-los-iam ajudado a encontrar as cataratas; as
águias, infelizmente, é que ainda não têm pouso certo.
Sábado, 24 de Setembro — Levantámo-nos às cinco, saímos às sete para dois
dias e meio de estrada.
A Paris, que foi a cidade dos meus sonhos e tanto amei, que tão bem
conheci, não retornei desde 1972. Desde então
127
vejo-a do Boulevard Périphérique e nunca ainda senti curiosidade de
arrepiar caminho e ir-me a visitar os bons e maus lugares da minha
mocidade.
Perdi a ansiedade que antigamente me tomava nas fronteiras ao ter de
mostrar o passaporte, mas ganhei uma nova nas portagens, quando os
funcionários do alto da sua gaiola olham enfastiados para que me despache
a fazer o pagamento.
Domingo, 25 de Setembro — Angoulême, Bordéus, São Sebastião, Bilbau,
Burgos, Valhadolid, Tordesilhas... Nas enormes planuras de Castela, onde
ainda há pouco as searas do trigo se estendiam por quilómetros, agora
quase só se veem campos de girassóis, nesta altura do ano tristemente
secos e prontos para que deles se faça o óleo não saturado que está na
moda para os fanáticos da saúde. Adeus trigo, adeus histórico azeite,
nascido das oliveiras que vão morrendo ao abandono.
Ao contrário do passado, quando se era obrigado a atravessar as cidades e
as aldeias, e assim a pelo menos vislumbrar as suas ruas, os monumentos,
o ritmo da vida de cada uma — hoje até um buraco como Tordesilhas tem
estrada de circunvalação.
Segunda-feira, 26 de Setembro — Depois de Mogadouro ultrapassámos um
casal que a suar e a bufar fazia de bicicleta a subida da serra.
Acenaram. Acenámos. Provavelmente holandeses, dissemos um ao outro.
Eram mesmo. Encontrámo-los à noite a cear n’O Lagar, em Moncorvo, e deles
ouvimos que em pouco mais de quatro semanas tinham pedalado desde a
Holanda uns dois mil e trezentos quilómetros.
Quase me envergonho de me sentir cansado por ter percorrido de automóvel
a mesma distância.
128
Defronte da aldeia a serra ardeu toda e os compradores de madeira
apareceram logo a fazer negócio. Foram eles que a incendiaram? Foram os
pastores de Carviçais? Alguém por mandado da fábrica do papel? As pessoas
encolhem os ombros. O fogo, aliás, é a maneira económica e expedita de
limpar o solo, e os tratores andam já a cavar o terreno para as
plantações de eucaliptos.
Passado o susto — as chamas quase lamberam as paredes das casas — o que
mais impressionou os aldeãos foi ver pousar os helicópteros.
Acendo a luz na cozinha e vejo alto na parede o sardão familiar,
gorducho, esverdeado com pintas pretas, aí uns vinte e cinco centímetros
da cabeça à ponta do rabo. Desce sem receio, para curioso, olha-me de
lado, desce mais um pouco, depois sobe como um foguete e desaparece numa
frincha do teto.
Antes de me deitar dou corda ao relógio da parede e ele, como se
agradecesse o pô-lo em movimento, badala alegremente a meia-noite.
Terça-feira, 27 de Setembro — O Mário tem setenta anos. No passado
Inverno descuidou-se ao desarrolhar uma garrafa de álcool ao pé da
lareira e quase ia morrendo queimado. Salvou-se, mas amputaram-lhe a
perna esquerda e agora, meio envergonhado da sua estupidez, passa os dias
sentado num banquinho atrás da porta, espreitando quem passa na rua. Paro
a perguntar como vai. Vai mal. A perna que lhe cortaram era a da trombose
e os médicos avisaram-no de que com certeza também vão ter de lhe cortar
a outra.
Digo-lhe que me dá pena de o ver ali inválido, um homem que conheci
robusto e fogoso. E é ele que me conforta, dizendo que na idade a que
chegou já não precisa das pernas para andar como dantes pelos montes
atrás dos lobos e dos javalis.
129
O que mais lhe custa, acrescenta depois, é a solidão. Não casou, não teve
filhos. A irmã vive no Porto e também está meio entrevada dos pés, só o
visita de longe a longe. Se lhe cortam a outra perna, o que é que vai ser
dele?
E eu, que não sei como responder, coro de me ouvir dizer-lhe que tudo se
há-de arranjar.
À hora da ceia minha mãe conta que o Terror da Guiné foi enterrado vai
fazer um mês. Tinha ido com a mulher regar a horta, mas tão bêbedo que
escorregou ao chegar à borda do poço, caiu à água e morreu afogado.
A família pranteou-o, a maioria do povo acompanhou como de costume o
caixão ao cemitério, mas violento e imprevisível como era a sua morte foi
um alívio para todos. Quando aparecia na rua aos bordos, os olhos
toldados, a caçadeira pendurada no braço, as pessoas entravam
discretamente para casa, porque nunca se sabia se ele iria atirar para o
ar ou a loucura o levaria a estourar a cabeça de alguém.
Quarta-feira, 28 de Setembro — Vou fazer a minha visita diária ao doutor
Pimentel e na cozinha encontro uma chusma de visitantes, umas catorze ou
quinze pessoas. Alguns ainda jovens, outros na meia-idade, são
brasileiros descendentes de gente nossa e vieram em busca das suas
raízes.
Pelo que lhes oiço, as raízes dececionáramos bastante, e nem a aldeia, as
pessoas ou os montes, são como os avôs tinham dito. Acham tudo muito
pobre, muito antigo, muito atrasado, custa-lhes a conceber que se possa
viver num lugar assim.
Irrita-me a sua arrogância de citadinos «civilizados» e o modo
cantarolado da sua fala. Até os uniformes coloridos de turistas que
vestem, com letras, distintivos e bonecos, acabam por me incomodar. Mas
se os contradigo vamos ter discussão e eu não quero discutir com
semelhante gente.
130
Saio sem me despedir e na rua respiro fundo, dando-me conta de que de
raiva me tinha faltado o ar. Reação exagerada, bem sei. Mas pobre e
abandonada como é, atrasada, um muro esburacado aqui, uma casa arruinada
além, com os seus montes, os penedos, os ribeiros, o mato a devorar o que
foram campos de fartura — para mim a aldeia tornou-se parte intrínseca da
minha existência, dói-me na alma e no corpo quando desdenham dela.
A Carolina tem fama de bruxa. Mas com certeza bruxa de boas artes, porque
quando os caçadores saem para a caça e adregam encontrá-la voltam sempre
de mãos vazias.
A mim ajudou-me esta tarde, quando por descuido o carro ficou com o eixo
traseiro enterrado numa cova e não ia para diante nem para trás. Ela
vinha do fontenário e parou, sorriu da minha preocupação, disse que
experimentasse outra vez, porque desempacava. E desempacou.
Quinta-feira, 29 de Setembro — Passamos a tarde inteira na adega a encher
sacos do lixo com as coisas sem conta que os meus pais acumularam durante
mais de meio século. A maioria inútil, guardada «para se um dia fizer
falta». Bocados de plástico, restos de fio, trapos, sucata, revistas dos
anos cinquenta (quatro arcas cheias) reduzidas a pó pelos ratos, panelas
furadas, bengalas partidas, talheres ferrugentos, potes, frascos,
garrafas, alguidares, instrumentos de lavoura, lampiões... Nas teias
enormes as aranhas, velhas de muitos anos, são as maiores que já vi.
Minha mãe olha preocupada com a nossa azáfama e de vez em quando reponta,
salva um prato partido que «ainda pode servir para qualquer coisa»,
enrola um atilho e esconde-o no bolso do avental.
Sexta-feira, 30 de Setembro — Como muitos médicos se deixam subornar e o
controlo é deficiente, receber o subsídio
131
de invalidez para o trabalho tornou-se tão corrente nas aldeias que de
facto é considerado quase um direito. Os «inválidos» estão de baixa e
entretanto correm para a Espanha, a França e a Suíça a fazer as colheitas
e as vindimas, ou desunham-se a ganhar dinheiro onde podem.
O doutor Pimentel conta que tinha um jornaleiro de Gondim que trabalhava
como um danado, embora oficialmente na sua terra estivesse de baixa como
incapacitado de andar. Um dia a mulher telefonou-lhe porque no dia
seguinte tinha de ser submetido a um exame de controlo em Vila Real. E
dizia-lhe ele: «O mais prático é que eu vá daqui direito ao hospital,
e que tu vás lá ter comigo. Mas não te esqueças de levar as minhas
muletas.»
Sábado, 1 de Outubro — Com a buzina acoplada ao alto-falante e o condutor
a bater nela o ritmo —- tátátá tá tá, tátátá tá tá — a primeira camioneta
de mercearia entra na aldeia às sete da manhã. As mulheres correm e
cacarejam. Os cães correm e ladram. O merceeiro pega no microfone, grita
um jovial «Bom dia, minhas senhoras!» e a seguir liga a música. Quem é
capaz de retomar o sono?
Desço para a ribeira com o Alcides, o resineiro. Vamos conversando. Ele
anda a fazer a sangria dos pinheiros e mostra-me a curiosa faca curva
para as incisões, a raspadeira da casca, o martelo pontiagudo para pregar
os sacos de plástico aos troncos. Antigamente dava muito trabalho pôr as
tigelas de barro a aparar a resina, perdia-se tempo, quebravam; com o
plástico consegue sangrar para cima de mil árvores ao dia.
Conta da questão que tem com os vizinhos, que não querem pagar para que a
Câmara lhes meta a água nas casas. Como não a quer meter sozinho, porque
seria um dinheirão, vai ter de abrir um poço.
— É pena, não é? E um poço também não fica barato.
132
Concordo sentenciosamente que as pessoas são assim, egoístas, incapazes
de solidariedade, sempre desconfiadas de que o interesse comum as
prejudique.
Ele para, diz que já se tinha lembrado de me pedir para lhes falar,
porque eles a mim ouvem-me e com certeza os convenço.
— Era bem para todos, não acha? Além da segurança. Se um dia uma casa
pega fogo e a gente só tem a água do fontenário para lhe acudir...
Continuamos a andar, mas no íntimo sinto-me imobilizado entre a espada
que ele me apontou e a parede das minhas falaciosas afirmações.
A tia Adosinda recusa comer e levaram-na esta tarde de ambulância para o
hospital. Dou a notícia a minha mãe, sabendo que são ambas da mesma
idade, que andaram ao mesmo tempo na escola, brincaram juntas. Reação:
nenhuma. Numa comunidade diminuta como esta, ao todo nem duzentas
pessoas, é incrível o desinteresse real ou fingido que os velhos as mais
das vezes aparentam uns pelos outros.
Domingo, 2 de Outubro — Às nove da manhã a aldeia esvazia-se para a
missa. Houvesse aqui ladrões era a hora ideal. À saída da igreja vão
quase todos silenciosos, como se os tivessem impressionado as fulminações
do padre. Mas é só aparência e hábito de depois da missa se mostrarem
arrependidos.
Entram um momento em casa e é como se lá tivessem ido pendurar a
contrição: quando voltam à rua sentam-se ao sol e retomam as invejas, os
sorrisos falsos, o maldizer.
Findaram em Lisboa os trabalhos do Parlamento Internacional dos
Escritores. Um circo. Três dias de gritaria inútil, desavenças, primazias
feridas e vaidades insatisfeitas. Apartaram-se zangados, sem alcançar o
fim para que se tinham
133
reunido, que era deliberar sobre os temas candentes do racismo, do
fascismo, da discriminação em geral, da posição das mulheres no mundo e
na literatura, da ecologia e outros assim.
Mas, francamente, quem se interessaria ou iria acatar as resoluções que
eles tivessem tomado?
Segunda-feira, 3 de Outubro — O tempo continua excelente, mas é uma dor
de alma caminhar por entre os troncos dos pinheiros enegrecidos pelo
fogo.
O Joaquim Cantoneiro passa abraçado a um ramo de orégãos.
— Se é para a comida são orégãos demais.
Ele ri e concorda, mas não é para a comida, é para fazer chá medicinal.
— Para que doenças? — quero saber.
— Quase todas, porque limpa muito bem o sangue.
Sorrio, cético, no íntimo melancolicamente invejoso de que ele tenha o
que eu perdi: as certezas que a singeleza dá.
Terça-feira, 4 de Outubro — Em Mogadouro entro no quartel da GNR para
tratar duma formalidade. Pedem-me que espere e apontam-me cortesmente uma
cadeira no átrio. Sento-me. A penumbra conforta do calor que faz na rua.
Três agentes de pistola à cinta conversam no vão da porta. Dou-me conta
dum vago odor que paira no ar, onde se misturam os cheiros de
desinfetante e óleo, de graxa e de suor, de munição, de latrina, e de
súbito toma-me um sentimento de pânico. Num salto de quase meio século a
minha memória olfativa transporta-me para a esquadra de polícia onde um
dia me vi preso, a tremer do que me iria acontecer por ter andado a colar
cartazes contra o governo.
Transpiro, fecho os olhos para escapar à oura que me dá. Oiço algures o
barulho duma máquina de escrever, a voz de alguém que telefona, passos,
uma porta que bate. A alucinação torna-se tão intensa que tenho de sair
dali.
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Os guardas olham distraídos e afastam-se para me dar passagem. Digo-lhes
que me esqueci dum recado, que voltarei ao fim da tarde, contorno o
edifício para que me não vejam e, a arfar, sento-me num banco do jardim,
inquieto com a garra que pode ter um medo que eu julgava esquecido.
Na vila há duas relojoarias-ourivesarias. Entro na primeira à procura de
um despertador simples, daqueles a que se dá corda e funcionam anos sem
empeno.
— Disso já não temos, é antigo. Só dos de pilhas — diz o empregado com o
ar sobranceiro de quem vive na modernidade.
Vou-me à outra e vejo numa prateleira o despertador que procuro, mas
embora sejam as quatro da tarde a porta do estabelecimento está fechada.
Pergunto na loja ao lado.
— Se o senhor Ramos não está — diz-me uma rapariga, sentada a bordar
atrás do balcão — é porque ele às vezes vai buscar a filha à escola. Ou
então foi fazer alguma compra, ou tomar café.
Espero um bocado, vou-me embora, volto mais tarde e a porta continua
fechada. Curiosa maneira de fazer negócio.
Quarta-feira, S de Outubro — Feriado nacional, mas como todos os outros
dia, menos o domingo, o dia na aldeia é de trabalho. Os feriados não
contam para quem vive da terra e mal sabe o que é o descanso.
As pessoas vão à Palmirinha para que ela lhes meça a tensão arterial. O
aparelho impressiona no seu estojo, com a coluna de mercúrio, a cinta
para apertar no braço, a pera, o mostrador.
A Palmirinha comporta-se com a seriedade que a ocasião pede e quando ela
diz que a tensão está boa, saem de lá contentes. Os que a têm alta voltam
preocupados para casa e no dia seguinte pedem-lhe que a meça mais uma
vez. Ela então,
135
psicóloga, mede de novo e diz-lhes que podem ir descansados, porque já
baixou um bom bocado.
Dava um romance, mas não ia ser fácil fantasiar aqui e além uma página
que alegrasse a história.
Começou a vida numa aldeia vizinha, menina mimada, a mais nova de cinco
irmãos, numa casa em que a lavoura dava abundância. Cresceu. Foi para a
escola secundária da vila. Descarrilou. Fugiu para viver a excitação das
noites da cidade, andou na droga e em quadrilhas de ladrões, esteve na
prisão, passou fome, recebeu maus tratos, prostituiu-se. Quando tudo
parecia irremediavelmente perdido, o amor salvou-a. Arranjou emprego,
alugou casa, ficou grávida do homem que amava, mas ainda não tinha
passado meio ano quando ele a abandonou para casar com outra de quem
gostava mais.
Envergonhada retornou à aldeia, foi viver com os pais, deu à luz um filho
e logo em seguida, diz-se que de desgosto, o pai morreu dum ataque do
coração.
A herança seria razoável se fosse só para ela, mas partilhada com tantos
irmãos para pouco dava. Contudo, à força de sacrifícios conseguiu ir
vivendo, criando a filho, cuidando da mãe que de vergonha se enclausurou
na cozinha e desde então, faz quase vinte anos, nem para a missa nem para
os enterros, nunca mais voltou à rua.
Os primeiros tempos, contou-me ela, foram os piores. Pouca gente lhe
falava e os que o faziam era com a piedade fria do artifício, obrigando-a
insensivelmente a sentir-se enterrada em vida.
Só que no corpo e na alma há resiliências insuspeitas. Começou com uma
coisa de nada, ela não se lembra bem, talvez um sorriso ou um aceno, uma
palavra dita ao passar. Com os seus trinta e dois anos sentia-se quase
mãe da rapariga mal saída da adolescência, mas o que parecera simpatia
fortuita tornou-se amizade, a amizade fez-se paixão.
Julgaram poder amar-se em segredo, mas numa aldeia não há segredos.
Quando passavam juntas as pessoas escarneciam
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da mulher frágil e da rapariga que crescera machona, com corpo e forças
de homem; sussurrava-se que iam para a serra e se punham lá nuas a fazer
as «porcarias.» Falatório. Ela própria diz que a televisão ajudou um
bocado. Graças a Deus. Dez ou quinze anos atrás tinham-nas crucificado a
ambas, mas agora veem as telenovelas e se não compreendem, pelo menos
habituam-se, são menos ferozes.
Separaram-se quando a rapariga emigrou e o amor não resistiu ao
afastamento. Ainda julgou que pudesse durar, que não acontecesse tão
depressa, mas no estrangeiro a vida é outra, tudo é mais excitante. A
rapariga deixou-se tentar e teve outras amantes, vive agora com uma
senhora rica que a tirou do emprego e a enche de presentes e de dinheiro.
— E eu para aqui vou ficando. Se não fosse o meu filho dava-me vontade de
fazer como a minha mãe e fechar-me em casa à espera da morte.
Quinta-feira, 6 de Outubro — Com um pau para assustar os ratos e para
afastar as espessas teias de aranha que cobrem a escada, arrisco-me a
entrar na casa de minha avó, uma ruína a ameaçar mais ruína.
As tábuas do soalho, roídas pelo caruncho, vergam sob o meu peso com um
ranger de mau agouro. Num buraco junto da lareira encontro uma candeia
secular, tão comida da ferrugem que quase se desfaz quando lhe pego.
Triste símbolo das coisas que por razões várias não têm conserto nem se
podem salvar.
Incentivos intelectuais, desde que aqui cheguei praticamente não sinto
nenhuns. Os jornais folheio-os sem que me interesse lê-los e os programas
da televisão são dum nível que só vendo se acredita. Também perdi, espero
que temporariamente, o hábito de ler na cama, coisa estranha para quem o
tem desde que aprendeu a ler.
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Dona Aida foi rapariga bonita, advogada brilhante, crente e temente a
Deus que nem uma freira. Casou rica para fazer a vontade aos pais. Depois
foi infeliz no casamento, enviuvou cedo e vive triste e sozinha na
cidade. De longe a longe volta à aldeia para uma estada que é sempre de
pouca dura, porque os seus oitenta anos se acomodam mal com o pensamento
de não ter um médico sempre à mão.
Mas sem filhos nem família é na aldeia que ela encontra o que mais se
assemelha a uma forma de parentesco. Ontem telefonou à afilhada a dizer
que dentro de dias vai para o hospital para ser operada a um cancro. Por
isso que todos rezem muito e com força, para que Deus oiça e se compadeça
dela.
As pessoas encolheram os ombros. Algumas comentaram friamente que neste
mundo tudo se paga; que o cancro que a aflige agora nasceu das pragas que
lhe rogaram antigamente, quando ela e os pais pelas jeiras de sol a sol
lhes pagavam o que nem sequer dava para uma sopa.
Sexta-feira, 7 de Outubro — Passámos parte do dia a despejar malas e
caixas cheias de sacos de plástico que minha mãe guardou desde que o
plástico foi inventado. Centenas, e talvez não exagere se disser
milhares. Ela concordou que se devem deitar fora, mas quando à noite nos
viu na cozinha a preparar a ceia, foi para a loja e retirou do lixo mais
de metade dos sacos que para lá tínhamos deitado. De enlouquecer.
No aspecto humano a aldeia não tem beleza. Falta-lhe também a juventude e
à vista de tanta velhice, tanta deformação, anseia-se às vezes por um
corpo ágil, um rosto bonito.
Há a Princesa, que tem dezoito anos, usa tacões-agulha e umas saias
incrivelmente curtas. Dizem que no pino do Verão passeia na rua de sutiã
e hot pants.
Infelizmente a Princesa tem as pernas curtas, um corpo rechonchudo, uma
cara sem graça.
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Voltamos das compras em Moncorvo e apanhamos um susto ao ver na rua os
carros dos bombeiros.
Dois garotos tinham querido reviver as excitações do grande incêndio da
serra e puseram fogo a uma silvas. Mas com o vento a soprar forte o fogo
alastrou e eles, assustados, correram a chamar gente. Fosse outra hora e
andasse a maioria a trabalhar nos campos teria sido uma tragédia, porque
as chamas chegaram a lamber as paredes de algumas casas.
O perigo obrigou as pessoas a uma solidariedade esquecida e com cântaros
e jarros acudiram todos. Quando os bombeiros chegaram já o pior tinha
passado.
Como não há esgotos temos nós próprios de fazer serviços com que na
cidade nem sequer se sonha. Despejar a fossa, por exemplo. A meio da
noite, para poupar o fedor ao nariz dos vizinhos. O nosso é que não
escapa à pestilência. E embora não seja uma África, as moscas em casa são
uma consumição, o mata-moscas uma desagradável companhia.
Sábado, 8 de Outubro — No vale do Casalete o José Avelino tem centenas de
colmeias donde tira um mel que devido à enorme quantidade de estevas nos
montes ao redor ganha um curioso sabor arresinado. Compro-lhe meia dúzia
de boiões e enquanto os acomoda numa caixa ficamos a conversar.
— A abelha — diz ele com um sorriso — é o melhor dos obreiros: não pede
que se lhe dê de comer ou de beber, trabalha sem parar, e ainda por cima
vai buscar ao terreno dos outros aquilo que precisa para o mel.
Quando lho pago e me surpreendo de que o preço tenha baixado desde o ano
passado, o seu rosto anuvia-se. Embora não seja pouco o trabalho de
cuidar delas, as abelhas sempre lhe deram lucro e nos anos melhores
consegue tirar para cima de cinco mil quilos de mel.
— Mas com certeza este é o último. Hoje importam-no e vendem-no a um
preço que, para lhe dizer a verdade, a mim
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já nem sequer compensa o esvaziar as colmeias. E sabe donde vem?
— Não faço ideia.
— Da Austrália, imagine! Da outra ponta do mundo!
Pobre Benjamim. A casa é fronteira à nossa, numa quelha de dois passos de
largo, e ele com o catarro tosse e escarra numas agonias de quem está às
portas da morte. E talvez esteja com uma tensão arterial de vinte e cinco
e, diz a Aida, um sangue tão grosso que lhe deu a trombose e ficou meio
prendido do braço esquerdo e da perna.
O pobre, magro como uma cana, aflige-se por tudo e por nada. No outro
dia, contou ela, quase lhe deu um ataque porque estava a ver a telenovela
e de repente a televisão foi-se abaixo.
Domingo, 9 de Outubro - Abre hoje a caça. Ainda noite escura os tolinhos
vindos de perto e de longe, das cidades e dos lugarejos, começaram a
espalhar-se pelos montes com os seus uniformes de camuflagem e as
espingardas, as cartucheiras, as mochilas, os cães e os jipes, criando um
ambiente belicoso.
Desastrados em maioria, tornam tudo inseguro e durante os dois próximos
meses andar pelos montes às quintas-feiras e aos domingos é correr perigo
de vida. Aliás, sem searas que lhes deem aqui o preciso para comer, os
coelhos e as perdizes há muito que fugiram em busca de terras melhores.
Mas isso aos tolinhos pouco importa e caçar tordos já os contenta: põem-
se em linha, apontam, disparam e depois enfeitam com eles os cintos.
O Guilherme passa, dá as boas-horas, fica para um dedo de conversa. Junto
dele a cadela não para de ganir.
— Pariu ontem e há bocado afoguei-lhe os cachorros na ribeira. É por
isso.
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Aperta-se-me o coração, mas que posso eu dizer sobre um ato que ele
considera natural, mesmo necessário? Explicar-lhe a minha sensibilidade?
Pedir-lhe que deixe o que é prática secular corrente? E se ele me
replicar que os humanos fazem coisas bem piores uns aos outros?
Oh! A televisão do domingo à noite! O nacionalismo demagógico do
apresentador do programa de variedades e da sua comparsa Olga (setenta
anos, pestanas artificiais, facelift, minissaia).
— Este belo país que é o nosso... A alegria de cantar em português...
Aliás nós temos aqui grandes compositores, grandes cantores, grandes
músicos.
— E grandes poetas! — acrescenta ele.
— E grandes poetas! — repete ela. — Grandes poetas!
Uma garotinha de treze anos aparece no palco a cantar O Meu Amor por Ti e
desengonça-se nuns meneios que querem ser eróticos e são só desajeitados
e tristes.
Desligo a televisão, apago a luz, e para limpar a alma vou-me sentar na
escada da varanda e fico até tarde a embeber-me da serenidade da noite de
lua cheia.
Segunda-feira, 10 de Outubro — Será que a Myrthe já anda? Eu gostaria de
saber e um simples telefonema satisfaria a minha curiosidade. Não o faço
porque me aborrece a imagem do avô baboso, preocupado com a evolução da
descendência.
Há as felicidades grandes. Há as pequenas, que duram instantes e logo se
esquecem. Subir a uma figueira à procura dos últimos figos, por exemplo.
Os que o dono deixou, porque era trabalho de mais ir buscá-los lá ao
alto. Azulados, grandes, e tão maduros que começam a rachar. Os que os
pássaros debicaram são os melhores, mais doces que o mel.
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Dia soalheiro e a meio da tarde, como uma bênção de Deus depois de
semanas de seca, uma linda chuva, daquela que cai devagarinho horas a fio
e faz sair o cheiro intenso da terra.
A Luz segura a burra pela rédea. O Alípio olha preocupado. Pergunto o que
se passa e eles explicam à .vez, um juntando os detalhes que o outro
esquece.
A burra estava com muitas dores, a zurrar queixumes, a espojar-se no
chão. O veterinário veio, deu-lhe um remédio, e agora é preciso esperar
pelas melhoras. Mas pelos jeitos vai pelo bom caminho, porque ainda há um
bocadinho começou a suspirar pelo macho, que é o seu companheiro. Aliás,
com mais de vinte anos, já não tem forças para o trabalho, só a mantêm
porque ela e o macho foram criados juntos de pequenos e só se sentem bem
perto um do outro.
O senhor Adriano Faustino, noventa anos, demente, conversa todos os dias
à porta de casa com o Henrique, sessenta e dois anos, o tolinho da
aldeia. Compreendem-se. Só que às vezes o Henrique cansa-se das respostas
confusas do ancião e vai duas portas adiante fazer um pouco de companhia
ao Mário, que perdeu a perna mas tem o juízo são, e partilha com ele a
garrafa da aguardente.
Mas chega sempre uma altura em que o Henrique também se cansa dos
queixumes do Mário. No momento em que sai da porta eu vou por acaso a
passar, acerta o passo pelo meu e por cortesia oferece-me a garrafa.
Agradeço, mas não quero. Ele deita-a aos queixos e caminhando ao meu lado
bebe um golo fundo. Depois para, segura-me pelo braço e, como acontece
quase sempre cada vez que nos encontramos, pergunta-me quantos anos
tenho. Digo-lho e continuo a andar, ele ao meu lado.
Solitário e pobre, transtornado como vive, quer conversa. E eu devo-lha.
Ele é o Henrique que brincou comigo aos polícias e ladrões, que me
ensinou a atirar pedras à maneira dos
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pastores, que uma vez me mostrou como se faz uma bengala, rodando
devagarinho horas a fio um galho de choupo sobre um lume brando.
Mas infelizmente tenho pressa, porque vou carregado com um embrulho que
excede as minhas forças e temo dar-me em espetáculo deixando-o cair.
— Quer uma ajuda? — pergunta ele, numa última tentativa de conversa.
Ofegante, incapaz de falar, abano a cabeça e acelero o passo,
envergonhado da minha falta de compaixão.
Terça-feira, 11 de Outubro — Por hábito dormimos com a janela aberta.
Acordamos por volta das seis horas, quando o Guilherme e a Hilda saem de
casa com o macho a puxar a carroça e um razoável alarido dos cães.
Um pouco mais tarde ouvem-se os passos do António, o irmão da Hilda, que
quando sente simpatia por alguém, como por mim, faz questão de, embora
lentamente, falar com frases completas. Segue-o uma dúzia de ovelhas, um
imponente carneiro e uns quantos borregos que alegram o nosso despertar
com o tinir discreto dos chocalhos.
A amizade que nos temos data do dia em que, depois de inúmeros rodeios,
ele se atreveu a pedir-me que lhe desse uma bota de vinho que tinha visto
pendurada no muro da adega. Que eu lá no estrangeiro com certeza não
precisava de botas para o vinho. Ele próprio tinha uma, mas velha, usava-
a para levar para o monte quando ia pastorear o rebanho. Se lhe desse a
minha garantia-me que só a usaria para as festas. Como ter coragem de lha
recusar?
Continuo sem leituras. Nem jornais, nem livros. Tenho aqui os livros da
minha meninice e da adolescência, mas nunca ouso abri-los, pelo medo de
que entretanto tenham perdido a magia que para mim tiveram. Curiosamente,
sinto falta dos que tenho em Amsterdão. Não para relê-los nem sequer
folheá-los, mas simplesmente pela sua presença física.
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Tínhamos acabado de fazer compras em Moncorvo quando uma pontada me
atravessou a barriga, tão urgente e aguda que não me ia dar tempo a
alcançar o café, cem metros adiante, e pela primeira vez na minha vida
entrei na retrete pública, ali em frente.
— O senhor tem de pagar — disse-me o guarda, sentado num banquinho no
passeio, impecável na sua farda azul.
Paguei. Ele então, apoiando-se nos joelhos ergueu-se vagarosamente, foi a
um armário, tirou a chave, abriu outro armário, pegou num rolo de papel
higiénico, contou vagarosamente quatro folhas, rasgou-as vagarosamente,
dobrou-as vagarosamente e por fim entregou-mas.
A retrete era um inacreditável monturo de fezes dentro e fora do pote,
umas frescas, outras antigas, algumas untadas pelas paredes em repelentes
hieróglifos. De nojo só a custo evitei vomitar, mas como por milagre
abrandaram-se-me as contrações, saí às arrecuas e corri para o café com a
pressa de quem foge dum desastre.
Quarta-feira, 12 de Outubro — À exceção da chuva na tarde de anteontem,
todos os dias têm sido dum sol esplêndido.
As pessoas sentam-se na soleira das portas a ver quem passa — mas passam
sempre as mesmas caras. À espera do que vai acontecer — mas o que
acontece é tão pouco. Um tendeiro
de longe a longe, a ambulância que vem buscar alguém para tratamento no
hospital, os tratores dos madeireiros, um carro que chega, um carro que
parte.
A acreditar nas notícias da televisão o país inteiro treme de
expectativa. Amanhã é muito possível que o Nobel da Literatura seja para
António Lobo Antunes ou Jorge Amado, porque pelos jeitos é a vez da
literatura portuguesa. Mas será possível? Jorge Amado? Lobo Antunes?
Miguel Torga? Ou Saramago, como outros dizem?
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Os comentadores tomam um ar conspiratório para recordar que Lobo Antunes
partiu há poucos dias para a Suécia, acompanhado do seu editor. Indício
certo, asseguram eles, de que vai haver grande novidade.
Ele está sentado à lareira, de costas para a porta e mal se dá conta da
minha chegada. Conversamos, mas noto com estranheza que lhe custa
concentrar a sua atenção e as respostas
que me dá nem todas são pertinentes. É inesperado e chocante o vê-lo de
repente absorto apoiar os dedos no nariz, meter o polegar na boca e ficar
a chupá-lo como uma criança.
Além de chocante, terrível e doloroso, este prenúncio do que lhe poderá —
nos poderá — acontecer.
Quinta-feira, 13 de Outubro — Nem Jorge Amado, nem Lobo Antunes, Saramago
ou Torga. No noticiário da TV
o apresentador disse que era uma deceção, «Uma grande deceção para o país
inteiro.» O Nobel foi para um japonês de que nunca ouvi falar: Kenzaburo
Oè.
Um professor universitário que tinha sido chamado ao estúdio para
comentar, afirmou perentoriamente que se um dia um português ganhar o
Nobel da Literatura, a sua obrigação é recusá-lo.
Eu fiquei suspenso para saber porquê e ele ia dizê-lo, mas o funcionário-
apresentador cortou-lhe a palavra, pelo que nunca se conhecerão os
valiosos e patrióticos argumentos com que se terá um dia de recusar a
homenagem e o milhão de dólares dos Suecos.
Fora o prestígio que aqui ainda se lhe atribui, o ser-se licenciado
também concede na aldeia poderes inesperados.
Assim a Aida, ao ouvir-me sair de casa aparece à varanda e pede consulta
médica. Na semana passada no hospital receitaram ao Benjamim uns
comprimidos que não lhe fazem nada,
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até se sente pior e tosse mais, por isso como homem de estudos eu que lhe
diga o que ele, com aquela tensão desmesurada, pode comer ou não.
A prudência mandaria que me esquivasse com desculpas, mas numa situação
assim a prudência não tem cabimento. E receito: o Benjamim que evite o
sal, o açúcar, a carne de porco, o vinho, o café. Que evite as aflições e
os nervos. Que não se canse a trabalhar.
Trabalhar, já trabalha pouco, responde-me ela. E beber, só um copinho de
vez em quando, coisa de nada. Infelizmente nenhuma força o vai obrigar a
comer comida sem sal, a dispensar os doces, a carne de porco, o café e o
leite bem adoçados.
Encolho os ombros, ela encolhe os ombros, sorrimos, dizemos que então
será o que Deus quiser.
Fez o serviço na Marinha já lá vão doze anos, mas o funcionário do banco
na vila diz que se lembra de tudo como se fosse hoje e que nunca mais vai
esquecer. Que às vezes até sonha como se ainda lá estivesse.
O navio de guerra em que servia tinha ido em visita de amizade a
Amsterdão, mas chegou com avaria e em vez de três dias ficou duas semanas
no porto.
— Ó que cidade! Ó que mulheres! — no seu entusiasmo beija as pontas dos
dedos e atira os braços ao ar como se quisesse abraçá-las todas.
Os colegas sorriem, sorrio também, e ele pergunta num modo patético que
só em parte é fingido:
— Quando é que volta para lá?
— Amanhã.
— Leve-me consigo!
Sexta-feira, 14 de Outubro — Preparamo-nos para partir a meio da manhã.
Levamos connosco um grande ramo de estevas, cuja resina irá cheirar
durante meses na nossa cozinha. Levamos também um ramo de malaguetas,
vinho de Moncorvo, vinho de Toro que comprámos à vinda e não chegámos
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a beber, marmelada feita anteontem pela Palmirinha, uma abóbora que nos
deu o Alípio.
Chega o momento melancólico e deprimente da despedida. Os vizinhos
juntaram-se para nos desejar boa viagem, minha mãe abraça-nos estoica,
escondendo as lágrimas que chorará depois.
Temperatura amena, céu ligeiramente enevoado, tempo agradável para
viajar. Fazemos em sentido inverso o trajeto da vinda e, respeitando o
hábito, paramos três horas mais tarde em Tordesilhas.
Chegamos ao parador à hora espanhola do almoço e deixamo-nos tentar, mas
o que nos servem, em vez de ser pago em dinheiro, merecia dar a pena de
cadeia reservada ao roubo com agravantes.
A entrada, um desaforo: as Patatas a la importância com almejas eram
quatro rodelas de batatas cobertas de ovo e acompanhadas por quatro
amêijoas.
O prato principal, uma vigarice: o que o nosso peixeiro em Amsterdão
deita fora — a guelra do salmão — enchia o prato de espinhas a acompanhar
umas trinta gramas de peixe e era sumptuosamente descrito na lista como
sendo Espalda de salmón con ajos fritos.
Salvámos o apetite com duas tortas de pihones, dois cafés e dois cálices
de Carlos I. Depois fomos passear, rever os monumentos lindamente
restaurados da cidade onde uma tarde os reis de Portugal e de Castela
orgulhosamente dividiram o mundo entre si. Demorámos na diminuta plaza
mayor a ver uma feira de artesanato, e fomo-nos deitar à hora a que as
galinhas costumam subir ao poleiro.
Sábado, 15 de Outubro — A nossa ideia era alcançar Blois, mas o cansaço e
a temperatura ao fim da tarde — vinte e seis graus, incrível para meados
de Outubro — puderam
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mais e acabámos por parar em Poitiers, no Novotel Futuroscope, a
aglomeração onde os edifícios se distinguem por uma arquitetura
pretensiosamente futurista.
Primeiro desaire: livre só havia a suite spaciale, disse a funcionária da
receção, a oitocentos e sessenta francos por noite. Como eu recusasse
disse ela que ma alugava pelo preço dos quartos vulgares. Aceitei.
A suíte era grande, confortável, mobilada com um gosto a que sem ofensa
chamarei belga. Surpreendeu-nos que na vasta janela do quarto de banho
não houvesse cortina a proteger a nossa privacidade. Mas, pensei eu, as
vidraças eram certamente daquele tipo que só permite ver de dentro para
fora, pois espelhavam quando se olhava de fora para dentro.
E assim me pus a passear em pelo dum lado para o outro, subindo nu ao
peitoril para me certificar se não haveria uma cortina escondida nalgum
recesso. Não havia. Pelo sim pelo não saí à rua a verificar e, para minha
surpresa, constatei que a vidraça era vulgarmente transparente.
Pedi explicação à funcionária e respondeu-me ela que o arquiteto tinha
querido assim e que até à data — o hotel foi aberto o ano passado — ainda
ninguém se tinha queixado. Finalmente, por não haver outro jeito,
encostámos duas malas à janela e deitámos-lhe por cima a coberta da cama.
Sugestão para exibicionistas: o Novotel Futuroscope de Poitiers oferece
na suite spaciale 207 a oportunidade de tomar banho em público e, caso se
deseje, de expor as partes pudendas a quem passa na rua ou roda na
autoestrada.
Na cama, com uma inesperada fome de leitura, surpreendo-me a ler as
Páginas Amarelas de Poitiers.
Domingo, 16 de Outubro — De Poitiers a Amsterdão sem incidente. Em casa
nenhuma novidade. Arrumos até tarde, uma tarefa que me custa a fazer com
entusiasmo. O ramo de estevas enche a cozinha com o cheiro da aldeia.
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Eu, que até agora poucas coisas tenho desgarrado na vida, irrito-me como
um garoto mimado ao descobrir que durante a viagem perdi ambas as minhas
esferográficas favoritas.
Segunda-feira, 17 de Outubro — Por uma bela tarde de sol vamos a caminho
do crematório de Velsen para o funeral de Anne. Cerimonial doloroso,
porque em ocasiões assim dificilmente se encontram as palavras justas. O
pensamento resvala, esquiva-se à dor, procura escapes que nos façam
esquecer a fatalidade do nosso destino.
O sacerdote oficia com sobriedade e surpreende-me pelo talento com que lê
os seus textos, a arte que põe no modo de se nos dirigir, nas pausas que
faz, na emoção com que carrega as palavras, e até na forma como as
pronuncia. Esplêndido dom.
A caminho de casa sentimo-nos desnorteados, confessamos um ao outro que
nos angustia a ideia — e mais dia menos dia, mais ano menos ano, o
momento chegará — de carpir os que nos são queridos.
Retomo o hábito de ler na cama. Por enquanto só as revistas acumuladas
durante as semanas passadas, que de facto folheio mais do que leio. Os
acontecimentos, os nomes, as ironias, as desavenças, as famas, tudo me
parece dum mundo estranho.
Terça-feira, 18 de Outubro — Recomeça o ritmo semanal da solidão das
terças-feiras. Solidão parcial, mas mesmo assim solidão. E infalivelmente
recomeça também o incessante carrossel dos pensamentos sobre o que não
aconteceu e poderia ter acontecido, sobre o que nunca acontecerá, sobre o
que se perdeu, o que se não teve, as satisfações, as insatisfações,
sonhos, ocasiões perdidas, ocasiões desleixadas, a estupidez, o medo, a
dificuldade de existir.
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A ponto que por vezes anseio pelo que sempre me pareceu detestável: um
trabalho fora de casa que me ocupasse das nove às cinco e depois,
exausto, me impedisse de pensar e de sonhar.
Quarta-feira, 19 de Outubro — No correio uma surpresa: uma novela com o
título de A Comissão Europeia Procura de imediato Um Europeu escrita por
alguém que usa o pseudónimo de Pelegrinus. Num bilhete, sem desvendar a
sua identidade, escreve o autor: «Permito-me oferecer-lhe este livro em
razão das referências que ele contém a ambas as suas pátrias, Portugal e
a Holanda.» Quem será? O que será? Folheio por curiosidade e guardo para
ler à noite.
Dirigimo-nos a Deus com o sentimento de que não somos mais que um moinho
de orações tibetano, e que entre a nossa fé e as exigências d’Ele se
levantam muros contra os quais a prece incessantemente ricocheteia.
Quinta-feira, 20 de Outubro — Na aldeia são quase nulos os incentivos
intelectuais. Os que lá encontro têm só que ver com as realidades simples
do dia-a-dia, o tempo, as doenças, a morte.
Aqui na cidade certamente os espero, mas os que me chegam ou os desdenho
ou não me satisfazem. Além disso fecho-me, pouca ou nenhuma gente
encontro, sigo um pouco as pisadas de meus pais que a partir de certo
momento se isolaram quase totalmente. E o que julgo que seja a minha
vontade, talvez não passe de uma determinação da hereditariedade.
Sexta-feira, 21 de Outubro — Telefono a Paul Verhuyk, porque demorou mas
finalmente descobri a etimologia de Macau. Em vez das formas correctas ou
oficiais Ho-Keang ou
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Ou-Mun (ver 15 de Agosto) os mercadores e marinheiros chamavam-lhe A-Ma-
Kao, ou seja: «Porto da deusa A-Ma», rainha dos céus e padroeira dos
mareantes, a quem tinham erigido um templo à entrada da barra.
Sábado, 22 de Outubro — Foi atribuído o Prémio AKO. Como disse Nicolas
Matsier, uma espécie de feira de gado televisiva, com trinta leitores
jurados a darem ali aos examinandos notas de 1 a 10.
Houve empate: Matsier 212 pontos, Durlacher 212 pontos. Beijos e abraços
aos vencedores. «Mas ninguém ganhou! Ainda ninguém ganhou», gritava a
apresentadora por entre o burburinho. Tinha de se apurar primeiro quem
obtivera o número mais elevado de notas altas. Durlacher venceu, o
programa terminou, seguiu-se-lhe uma publicidade de gelados. Uma
quermesse, realmente.
Sendo o resultado ex aequo, teria sido consolador se o «vencedor» tivesse
tido a elegância de publicamente partilhar o prémio com o «vencido».
Domingo, 23 de Outubro — Desde a adolescência que a insónia me tem sido
companheira mais ou menos fiel, e os livros que até hoje li nas horas
mortas da noite certamente encheriam mais que uma parede.
Por si mesma a falta de sono não apoquenta. Mas como são terríveis os
medos que ela por vezes gera! Medos que nenhum esforço, nenhuma prece,
consegue exorcizar. Os fantasmas ampliam os terrores passados e descobrem
no nosso espírito as brechas por onde introduzem medos irracionais e
intemporais, os piores de todos.
Segunda-feira, 24 de Outubro — O modo como alguns escritores — por vezes
tão penosamente vaidosos — se cansam a explicar os princípios
filosóficos, morais, sexuais, das suas
151
obras. O modo como tudo é ampliado, engrandecido, preparado para a venda,
o êxito, a vitória — quando ao fim e ao cabo o conto, a novela, o
romance, são somente histórias.
O autor fornece a moldura, os contornos, o movimento, e o leitor com a
sua sensibilidade completa a obra. Só isso. O resto, explicações,
andaimes, as estruturas e os sistemas, as escolas, as correntes, as
modas, será útil para a fama e o comércio, mas é passageiro,
insignificante.
Contudo, bombardeamentos desses tornam difícil manter-se a gente
insensível, e de vez em quando pergunto-me porque destino o meu escrever
é apenas escrever, apenas trabalho. Porque é que não oiço vozes nem tenho
revelações? Porque não chega até mim a inspiração do alto? Porque é que
na minha vida nunca se dão daqueles encontros ou situações donde
subitamente faísca a luz?
Deus sabe que não sofro de excessiva modéstia, mas como me sinto um zé-
ninguém quando comparo a minha humilde labuta com as complexas
construções intelectuais, artísticas e filosóficas que a maior parte dos
escritores jura estar na base dos seus livros! Sejam holandeses ou
suecos, americanos, búlgaros ou marroquinos, todos eles parecem viver em
planos tão esotéricos e elevados do pensamento que só de ouvi-los já me
dão tonturas.
Terça-feira, 25 de Outubro — Eram fanfarrões e a gente sabia-o, mas mesmo
assim sentíamo-nos acanhados, ficava a pairar a dúvida de que talvez
possuíssem algo que dramaticamente faltava à nossa juventude. Porque para
nós a ereção era um momento frágil, sempre à mercê de qualquer faux pas
ou palavra dita a despropósito, que infalivelmente a reduzia a zero. Para
eles, não: as suas ereções eram brutamente férreas, as cópulas duravam a
noite inteira, os dedos das mãos não chegavam para contar as amantes que
tinham, as putas que visitavam, as mulheres casadas que andavam a
«preparar».
I52
Estamos num café e ela fala da sua recente visita à Côte d’Azur, da
alegria que o Midi sempre lhe causa, da bonomia daquela vida que parece
ter o dinheiro e o dolce far niente como principais ingredientes, da
sorte que teve ao descobrir lá um pintor genial que dentro em breve irá
expor na sua galeria.
Sorrio, bebo lentamente a minha cerveja. Solteira, bem na vida, deve
andar perto dos quarenta anos e é atraente porque sabe compensar com
charme o que lhe falta de beleza.
A nossa conversa chega a um ponto morto e começo a pensar em despedir-me
quando ela dispara à queima-roupa:
— Este mês já fui para a cama com nove amantes. Brancos, pretos, um
malaio, um indiano do Quénia.
Não vejo motivo para comentar e ela acrescenta:
— E duas mulheres.
Depois conta em detalhe das suas aventuras, das sensações, das técnicas
que tem aprendido, de como os Asiáticos são mestres no erotismo e capazes
de prolongar o prazer horas a fio.
— Horas?
Mais tarde, repensando enquanto espero o elétrico, vem-me de súbito a
recordação longínqua e digo comigo que o mundo mudou, as mulheres
mudaram, a fanfarronice tornou-se bissexual.
Quarta-feira, 26 de Outubro — Porque é que as histórias que se arquitetam
nas noites de insónia, excecionais a ponto que se corre a tomar nota
delas, quando se apreciam de manhã são apenas banalidades? Que mecanismo
misterioso será o que faz com que de noite o nosso sentido crítico se
deforme a tal ponto?
Quinta-feira, 27 de Outubro — Do Sargento Getúlio, de João Ubaldo
Ribeiro, saiu finalmente uma tradução holandesa, o que não é sem tempo
pois o livro data de 1971.
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Não fosse descabido fazê-lo na minha idade, dava-me vontade de pintar um
cartaz e sair com ele à rua a anunciar: «Leiam este magnífico romance!»
Sexta-feira, 28 de Outubro — Ele lutou em Angola durante a Guerra
Colonial. Depois, desiludido com o andamento dos acontecimentos e a
«perda do nosso Império», continuou em África, mas então como mercenário,
apostado em fazer frente ao avanço do comunismo.
Cansado de lutar foi como piloto para o Brasil e andou anos a sobrevoar a
Amazónia até que encontrou melhor emprego em São Paulo. Mudou-se para lá.
Entretanto tinha casado, tinham-lhe nascido filhos, divorciou-se.
Finalmente, a temer que as más influências lhe desgraçassem a prole,
mudou-se para Lisboa: «Porque em Portugal pelo menos há decência, ainda
se respeita a família, ainda se sabe o que são os valores antigos, os
valores morais e cristãos, tem-se o sentido da pátria.»
Mas as más influências desdenham da geografia e os filhos vivem hoje as
noites douradas dos ricos do Estoril, nas discotecas e nos bares de
Lisboa. Carros, álcool, sexo, praia, cocaína. Um primo de dezoito anos
morreu há pouco com a sida. Uma prima de vinte e quatro, mãe de dois
filhos, morreu de uma overdose de heroína. Estudar, não quiseram.
Trabalhar, é para o proletariado.
Diz-me o pai, assustado, escaveirado:
— Eles (um rapaz, duas raparigas) desinteressam-se totalmente de tudo!
Não sabem nem querem saber como é a vida! Têm carros, dinheiro, tempo de
sobra! Vão a Paris ou Nova Iorque com a facilidade com que eu antigamente
ia ao café. Quando acordam, a criada leva-lhes o pequeno-almoço à cama. A
mesa está sempre posta, a roupa está sempre limpa... Que vai ser deles
quando chegarem aos trinta ou quarenta anos?
Não sei como responder, nem encontro coragem para o encarar.
154
Sábado, 29 de Outubro — É jovem e terá quê, vinte anos? As suas ideias,
os seus planos, até os gestos, tudo nele me parece transparente.
Mais tarde é uma vergonha que me assalta a posteriori. Quantas vezes os
mais velhos terão olhado do mesmo modo para mim e visto que as minhas
certezas eram somente pose.
Domingo, 30 de Outubro — Defronte de casa há um pequeno parque de
estacionamento com um retângulo de verdura no centro e árvores em redor.
É lusco-fusco e julgo ver um coelho que calmamente rói a relva junto ao
muro. Mas é corpulento de mais para coelho, as suas orelhas espetam-se
atentas, e tenho de aceitar que é lebre. Descubro uma segunda e logo a
seguir uma terceira, entretidas a comer, indiferentes aos carros que
passam.
É uma cena simples, mas creio que significa mais do que à primeira vista
parece. Lebres que não fogem quando alguém passa, mesmo ao longe? Só em
terra de paz.
Segunda-feira, 31 de Outubro — A tortura de quando, como hoje, o cérebro
teimosamente se limita ao seu funcionamento básico.
Para não ter de enfrentar o ecrã vazio do computador ponho nele um texto
qualquer e fico-me a olhá-lo sem ler. Destituídas de interesse e de
sentido as palavras formam apenas um desenho irregular e depois de horas
assim balanço entre a apatia e a raiva mal contida que causa o querer e
não poder.
Terça-feira, 1 de Novembro — Divagando, rememorando o que por elas senti,
o que elas me deram ou fizeram, o que para mim foram ou ainda são,
classifico por vezes as cidades em que vivi numa lista de simpatias. Mas
como sempre as considerei femininas — e não apenas porque em português a
palavra o é —, o sentimento acaba por levar a melhor sobre
155
o raciocínio e, dum ou doutro modo, a lista quase nunca me contenta. A de
hoje, contudo, parece-me razoavelmente próxima da verdade:
O Porto foi mãe severa.
Lisboa, uma tia rabugenta.
Paris, uma liaison.
O Rio de Janeiro, uma amante desavergonhada.
São Paulo, uma vigarista.
Nova Iorque, um amor breve.
Amsterdão. Ah! Amsterdão! A minha paixão.
Quarta-feira, 2 de Novembro — Pela segunda vez em poucos dias o meu
computador portátil volta a avariar: agora é o ecrã que não se aguenta em
pé e mal o abro cai literalmente de costas.
Provavelmente uma ninharia e com certeza basta descobrir o parafuso que
se deve apertar, mas não o consigo, e um aparelho que não funciona é
coisa que me aborrece sobremaneira.
Quinta-feira, 3 de Novembro — Leio o texto de uma conferência sobre
literatura e informática. Texto brilhante, bem raciocinado, bem escrito.
Na página está uma fotografia do autor que não conheço. Jovem ainda.
Cheio de entusiasmo começo a escrever-lhe uma carta. Entretanto volto a
ler o texto e o meu interesse redobra. Retomo a carta. Hesito. Paro. De
que adianta o apreço dum velho a um jovem inteligente?
A boa intenção não resiste à melancolia dos meus pensamentos. Rasgo a
folha e atiro-a para o cesto dos papéis.
Sexta-feira, 4 de Novembro — Más novas: a avaria do computador não é
questão de parafuso que se não consegue apertar, mas dum conserto caro e
demorado.
Boas novas: a loja empresta-me outro, um aparelho sofisticado, muito mais
rápido e com a novidade de ter jogos instalados.
156
Melhores novas: aprendo como se persegue e elimina o inimigo à força de
rajadas de metralhadora e explosões de granadas de mão, mas pelos vistos
jogos e guerras não são o meu forte, pois me aborreço antes de ver cair o
primeiro morto.
Uma Rosita Steenbeek, filha de boa gente, licenciada em Neerlandês, aos
vinte e poucos anos emigrou para Roma. Aí diz que se meteu nas camas de
Morávia e de Fellini e contamos agora essas vivências em A Última Mulher,
um romance autobiográfico.
Como é compreensível a cobertura publicitária não poderia ser maior e não
se vê programa, não se abre jornal ou revista onde a escritora, ora com
recato no género menina do colégio, ora em pose erótica, não apareça a
repetir a história. Mas pelos jeitos, passados quatro anos sobre as
aventuras romanas, a sua preferência já não vai para os amores
gerônticos, porque
— afirma ela com o sério de quem descobriu uma verdade profunda — «Os
velhos morrem».
Sábado, 5 de Novembro — Dezanove graus. Sol. Vento nenhum. Grande
serenidade no ar. Estou tão habituado ao clima ameno do Outono na aldeia
que estranho ao ler que no mês de Novembro uma temperatura assim ocorreu
pela última vez na Holanda há mais de setenta anos.
Estoura uma lâmpada no quarto de banho. Logo em seguida novo curto-
circuito, novo estrondo, e os estilhaços do globo de vidro que a protegia
caem-nos em cima.
Procurar a causa, reparar o estrago, pôr novo suporte, nova lâmpada,
seria insignificante para um eletricista. A mim dá-me a satisfação de
quem obtém um diploma.
Lembra-me sem razão aparente, aconteceu, mas mais que um facto real
parece anedota e tantos anos passados ainda me faz rir.
157
Eu tinha entrado num táxi no centro de São Paulo, com extrema pressa de
ir buscar alguém ao aeroporto.
— Pressa, chefe? Deixa comigo.
Arrancando dum salto como nos filmes, buzinando sem parar, o taxista
meteu logo por um sentido proibido, depois por outro, e em poucos minutos
estávamos na grande avenida que leva a Congonhas. Aí começou ele uma
versão particular da roleta russa, «queimando» consequentemente todos os
sinais vermelhos numa velocidade de arrepiar. Assustei-me. Disse-lhe que
realmente tinha pressa de chegar ao aeroporto, mas nenhuma de acabar no
hospital, por isso que me fizesse o favor de respeitar os sinais.
— Tá bem, chefe. Eu paro.
E no próximo sinal vermelho parou. E esperou, batendo com a mão no
volante, olhando impaciente dum lado para o outro. Mas porque lhe
parecesse que o sinal demorava a mudar, acelerou para o cruzamento.
O camião não nos apanhou por um triz, uma fração de segundo, e ele,
severo, voltando para mim de dedo em riste:
— Tá vendo? Com tanta espera a gente até podia ter morrido!
Domingo, 6 de Novembro — Deus me livre de me tornar no género de ancião
gagá babado pela beleza feminina. Para tudo, como para a fruta, há um
tempo próprio para o botão, a flor, a maturidade e depois, infelizmente,
o apodrecimento — a velhice.
Mas por vezes a maravilha que o sonho é permite um retorno breve à
juventude e então eu, que não me julgo de pieguices, fico de olhar
perdido no ecrã da televisão. Ciente de que aquela beleza é de artifício,
criada à força de retoques, de maquilhagem, da sábia disposição das
luzes, da forma das lentes, da distância das câmaras, e contudo durante
um momento o sonho pode mais que a razão.
158
Segunda-feira, 7 de Novembro — Logo de pequeno me tomou uma insaciável
vontade de aprender e ainda hoje raro é o dia em que não faço por
aprender alguma coisa: o significado duma palavra, o manuseio duma
ferramenta, dum aparelho, pouco importa o quê, e o meu espírito mantém-se
alerta.
A diferença reside em que antigamente eu aprendia julgando que um dia os
meus conhecimentos serviriam um objetivo, senão importante pelo menos
útil. Útil para os outros, porque a mim bastava a alegria de aprender.
Agora resigno-me com a certeza de que ninguém precisa do que sei, de que
não está no meu poder enriquecer ninguém com aquilo que aprendi. E daí
resulta uma forma inesperada da solidão.
Terça-feira, 8 de Novembro — Entrevista com Daan Cartens para a televisão
belga. Modesto e competente, ele talvez não se tenha apercebido de que me
deu o presente que um escritor mais estima: a prova de ter lido e
interpretado os meus livros como eu, ao escrevê-los, esperei que eles
fossem lidos e interpretados.
Quarta-feira, 9 de Novembro — Dia vazio. Atormenta-me a ideia de que em
entrevistas — a de ontem é um exemplo disso — nunca digo o que pensava
dizer; de que meto os pés pelas mãos e acabo por me embrulhar em
raciocínios que mais tarde, dissecados a frio, se assemelham às
afirmações dum fraco de espírito.
Quinta-feira, 10 de Novembro — Dois escritores apresentam os seus novos
romances. Um, intimidado com as perguntas, debita lugares-comuns; o
outro, exprime-se com à vontade e a desenvoltura do routinier.
Duas pessoas, dois modos diferentes. O que constrange é o esforço de
ambos para em cada frase que dizem, em cada resposta que dão, encaixarem
os títulos dos seus livros. E assim,
159
o que poderia ser uma conversa agradável e informativa, baixa ao nível do
pregão de feira.
Sexta-feira, 11 de Novembro — Deve ter sido há cinco ou seis anos. O
médico olhou para o dedo do pé de que eu me queixava, examinou o inchaço,
apalpou, torceu, e concluiu que era acumulação de ureia.
— Um dos muitos mistérios da nossa anatomia — disse ele — é que a ureia
tende a concentrar-se no dedo grande do pé direito.
Nada de grave. Eu com certeza comia demasiada carne. Diminuísse. E a meia
garrafa de vinho ao jantar, o meu quase único consumo regular de álcool,
pareceu-lhe excessivamente acima da norma. Diminuísse.
O dedo grande do pé dói-me demasiado. Volto ao médico que o examina,
apalpa, torce, conclui que se trata dum joanete, e acrescenta que o
crescimento- felizmente é benigno, porque liso, sem arestas.
Com a cobardia que me toma cada vez que vou ao médico, agradeço e saio
apressado, sem querer saber onde se meteu agora a minha ureia.
Sábado, 12 de Novembro — Comecei a ler Os Mortos Orgulhosos, livro de
contos de Kenzaburo Oé. Simples curiosidade de saber que espécie de
escritor é o que recebeu o Nobel
deste ano. Os três contos que li dos cinco que formam o volume são
interessantes pela temática, mas a tradução é um texto pobre.
No posfácio os tradutores fazem a apresentação do autor e mencionam que
este em 1961 «visitou Paris e falou com Sartre». Falou com Sartre! Que
raio é que isto diz sobre a pessoa ou o talento de alguém?
Domingo, 13 de Novembro — Creio que viveria desgostoso numa casa sem
flores. Às vezes, como hoje, a meio da noite
160
entro na sala e acendo a luz sobre a mesa, só para ver o brilho dum ramo
de cravos.
Segunda-feira, 14 de Novembro — Donde virá o nevoeiro que por vezes me
cerca e impede de ver o touro — que touro? — que eu gostaria de pegar
pelos cornos em vez de me perder em divagações?
O projeto de romance parou na primeira página. O guia de Amsterdão não
sai dos apontamentos. As memórias da minha infância encalharam num sem-
número de sensibilidades que me travam o escrever.
O bom Deus, que me poderia ter dado um consolo como o da bebida ou da
droga, deixa-me sem amparo, entregue ao constante ruminar de pensamentos
inúteis e recordações banais.
Terça-feira 15 de Novembro — Encontrámo-nos acidentalmente numa reunião
para que ambos tínhamos sido convidados, e por não nos conhecermos
conversávamos em inglês um com o outro, até que alguém estranhou ver dois
portugueses servir-se entre si duma língua estranha.
Mais tarde, sabendo-me escritor, disse-me que na sua família havia uma
história terrível, uma história que dava um livro. E acrescentou:
— O nome com certeza não lhe diz nada, mas eu sou bisneto do Urbino de
Freitas.
— Claro que diz. O doutor Urbino de Freitas, o médico envenenador.
Surpreendeu-o que eu conhecesse o caso, mas na minha infância o crime era
muitas vezes falado nos jornais e os ceguinhos cantavam pelas ruas o
drama de Urbino de Freitas, médico famoso no seu tempo, acusado de em
1890 ter envenenado dois sobrinhos ainda crianças.
Durante o julgamento protestara a sua inocência, afirmando que não tinha
estado em Lisboa no dia em que alguém enviara daí aos sobrinhos os
bombons envenenados, mas várias
161
pessoas depuseram em contrário. Tentou então justificar-se, dizendo que
mentira para não causar escândalo se se soubesse da ligação que mantinha
com uma senhora casada. Essa fraca
desculpa de pouco lhe valeu, pois tanto o nome como a morada da pretensa
amante se revelaram falsos.
Agravante foi também o facto dele, toxicólogo de nomeada, ter sido visto
por uma criada a misturar uns pós no chá das crianças. Além disso, um
professor colega seu na Faculdade de Medicina, que ele odiava, e um
cunhado, o pai das crianças já então órfãs de mãe, ambos tinham falecido
subitamente no ano anterior em circunstâncias misteriosas.
Por sobre todo o drama pairava a sombra do que, na opinião geral, teria
sido o motivo do crime e o tornava a ele o réu mais presumível: com a
morte do cunhado e dos sobrinhos, Urbino de Freitas seria o único
herdeiro de uma das maiores fortunas da época.
Condenaram-no a uma pena de degredo perpétuo em Moçambique, onde viria a
morrer, supondo-se que tenha descoberto um remédio para a lepra, o
segredo de cuja fórmula levou para a campa para, como ele próprio
escreveu, se vingar da sociedade que o condenara sendo inocente.
Com a condenação do médico o caso parecia arrumado, mas descobriu-se
então que o juiz que o condenara talvez não tivesse sido totalmente
imparcial, pois mantinha com a sogra do acusado uma relação apaixonada.
E, afastado o suposto criminoso, a fortuna inteira reverteria para a
senhora.
Aberto novo processo não se determinaram culpas, mas o tribunal deliberou
que a fortuna das crianças mortas fosse liquidada e o capital depositado
num banco de Londres, onde há cem anos continua a vencer juros e à espera
que o caso se deslinde ou apareça alguém que possa provar que ele lhe
pertence de direito.
Quarta-feira, 16 de Novembro — Instantâneo a preto e branco:
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Foi abençoado com uma inteligência fora do comum e uma memória fenomenal.
Sabe como usar as palavras.
Possui senso crítico. A educação que teve trouxe-lhe um conhecimento
vasto das coisas literárias.
Mas como que para fazer contrapeso a esses benesses, Deus negou-lhe o
humor, recusou dar-lhe o mínimo grão de fantasia, tornou-o egocêntrico e
ao mesmo tempo reverentemente servil perante tudo o que seja hierarquia.
Submete-se de boa mente a uma obediência teutónica e a maior satisfação
que conhece ê a de descobrir erros alheios e expô-los na praça pública.
Talvez tivesse sido grande se pudesse criar, mas só consegue corrigir; e
assim, em vez do escritor de fama que sonhou ser, nunca passará do que
Deus mandou que ele ficasse: um burocrata das letras.
Quinta-feira, 17 de Novembro — Nomes há-os curiosos, cómicos,
inesperados, e em regra custa pouco traçar-lhes a origem. Mas como terá
nascido este que vi hoje na carrinha duma firma de canalizadores: Hoek &
Sonépouse?
Sexta-feira, 18 de Novembro — Receção ou convívio, o nome não importa. No
Odeon. Sala grande, muita gente, caras conhecidas e desconhecidas, gente
bela, gente feia, gente assim-assim, gente caricata. Conversas, ruído,
música, agitação.
Perguntamo-nos a razão da nossa presença, do que nos faz participar de
livre vontade em semelhante pandemónio. É talvez somente para provar que
ainda estamos vivos.
Saiba-se: Marjan Berk tem há catorze anos uma mulher a dias portuguesa;
Els Broeksma, personificação do charme, mudou para De Gids; Ellen e Emile
vão daqui a dias de férias para Nova Iorque e as Antilhas; uma antiga
estudante, de quem esqueci o nome, diz-me que agora é tradutora; Rik Zaal
esteve em Portugal e engordou; Jacinto, o cunhado espanhol
163
de Mensje van Keulen, perdeu a carta de condução; uma escritora
desconhecida anuncia que vai debutar em Abril...
De retorno a casa, a cabeça numa oura, o ventre pesado da cerveja, a
garganta queimada pelo fumo do tabaco, os pés em fogo, jura a gente que
nunca mais. Contudo já depois de amanhã irei passar a tarde a discutir
sobre identidade cultural. Deus se compadeça.
Sábado, 19 de Novembro — Uma entrevista com Jung Chang, a escritora de
Cisnes Selvagens: Três Filhas da China, que li o ano passado e achei
interessante pela crónica que faz da vida durante a Revolução Cultural e
do ambiente em que viveram três gerações de mulheres.
Curiosamente, Jung Chang tem um aspeto físico pouco chinês. O acerto das
suas afirmações e da sua visão histórica revelou um pensamento mais
profundo do que eu supunha na autora do livro que, mau grado o interesse,
contêm uma boa dose de populismo.
A mãe, que a acompanhava, e que continua a viver na China, contou que um
dia lhe bateu à porta um holandês que se tinha dado ao trabalho de fazer
de comboio o mesmo percurso que ela tinha feito a pé durante a sua
extradição. E eu não pude deixar de recordar o caso que me contou o Zé
Luís (ver 9 de Junho) sobre os holandeses que tinham seguido o percurso
do meu conto «De comboio para o paraíso».
Curioso povo, estranha pertinácia.
Domingo, 20 de Novembro — O encontro esta tarde na Associação Portuguesa
de Amsterdão acabou por ter para mim um desenlace inesperado.
Discutiu-se primeiro e longamente sobre a nossa identidade cultural, da
qual todos temos uma noção vaga que inclui a língua, o hábito de falarmos
alto, o fado, o bacalhau, as romarias e coisas semelhantes. Depois, bem à
portuguesa, houve fartos
164
comes e bebes. Finalmente a surpresa, quando José Novo, eurodeputado e
ex-vereador da cultura na Câmara de Vila Nova de Gaia, me perguntou à
queima-roupa se eu não me sentia orgulhoso com o diploma e a carta do
presidente da mesma. Que carta? Que diploma?
Ele achou estranho. Pelos jeitos dois anos atrás a Câmara atribuiu-me a
Medalha de Ouro com que a cidade «distingue os seus cidadãos mais
ilustres», mas até à data o presidente esqueceu-se de me comunicar a
homenagem e de me mandar a condecoração.
Segunda-feira, 21 de Novembro — Fomos colegas tornámo-nos amigos. Os seus
múltiplos talentos estonteavam: ele pintava, desenhava, escrevia contos e
poesia, estudava ópera para realizar o sonho de se tornar tenor
profissional e um dia cantar no Scala.
Fora da tropa tinha um emprego e nesse tempo, embora com casa própria,
todos os dias exceto ao domingo ia almoçar com a mãe. A senhora ficara
viúva muito jovem, vivia isolada no centro de Lisboa, o filho mais novo
era o único laço seguro que a prendia à realidade e à vida, porque os
outros, com menos carinho ou vidas complicadas, intercalavam meses entre
as suas visitas.
A vida do Pedro (é o pseudónimo que por respeito lhe dou), contudo,
também não era destituída de obstáculos. Apaixonara-se por uma mulher
casada e mais velha, que durante anos sofrera as peripécias de um
tumultuoso divórcio antes de poder viver de vez com o amante. Finalmente
casaram e nos trinta e tal anos que se seguiram Pedro continuou sem falha
a todos os dias almoçar com a mãe. Sozinho, porque ela reprovava o amor
do filho por uma mulher que o arrastara para o concubinato e, além disso,
pela diferença de idade, quase o poderia ter parido. Se porventura ia de
férias ou o trabalho o obrigava a deslocar-se, a visita diária era
substituída por uma longa carta.
165
A mulher, entretanto, foi atacada por um cancro generalizado e a vida do
Pedro tornou-se um inferno de hospitais, tratamentos, especialistas,
visitas esperançosas a médicos estrangeiros, a santuários, a bruxas que
possuíam o dom de curar, a benzedeiras que afastavam o mal dos corpos e
das almas.
Escreveu-me por várias vezes a relatar vividamente o que tinha sido a
agonia de ambos. Nos últimos meses sabendo-a perdida guardara-a em casa e
sem ajuda alheia servira-lhe de enfermeiro, de companhia, de criada, até
de palhaço quando ela sofria mais com o terror da morte iminente.
À beira da exaustão, porque nem o trabalho nem os cuidados à mulher
podiam esperar, mesmo assim nem uma única vez faltou ao ritual do almoço
diário com a mãe.
No dia em que após o seu longo sofrimento a mulher faleceu, Pedro tomou a
si a tarefa de lavá-la, de compô-la e maquilhá-la, para que as visitas e
os amigos não a achassem demasiado desfigurada pelos estragos da doença.
Dir-se-á que merecia um tempo de repouso, mas à sua volta as mortes
foram-se sucedendo: colegas, amigos, tias centenárias, irmãos devastados
pelo álcool e os reveses, sobrinhos ceifados pela droga, raro era o mês
sem enterro. Finalmente a própria mãe morreu. Tal como já tinha feito com
a mulher, de novo se encarregou ele próprio de lavá-la, de compô-la e,
sabendo-a vaidosa em vida, de se esmerar numa maquilhagem que escondesse
os danos da doença e da idade.
Nos últimos tempos pouco nos escrevemos. Quando em Maio passado estive em
Lisboa ainda pensei visitá-lo, mas não cheguei a fazê-lo, nem sequer a
telefonar-lhe, e talvez devido a essa negligência a carta que recebi hoje
deixou-me acanhado.
Nela conta que depois de cinco anos de viuvez e solidão julga ter
encontrado a companheira ideal. Jovem ainda, ela tem atrás de si uma vida
infeliz e nos últimos tempos não goza duma saúde brilhante, mas «a força
do nosso amor tudo vencerá».
A expressão patética fez-me sorrir e logo depois não sei porquê, tomou-me
um sentimento de tristeza, a impressão de
166
que a vida do Pedro é uma sequência de ilusões e discretos calvários. Ele
nunca será estrela da ópera, nem escritor, nem pintor. Em vez das obras-
primas com que um dia sonhou, o destino não lhe deixa mais que ser boa
pessoa e maquilhar os cadáveres das mulheres que ama.
Terça-feira, 22 de Novembro — Nevoeiro espesso. Luzes acesas o dia
inteiro. Carta de um leitor a queixar-se que a catarata de trezentos e
vinte e sete metros que existia no rio Unhais junto de Pampilhosa da
Serra, e ainda é mencionada no meu guia de Portugal, desapareceu engolida
pela Barragem de Santa Luzia.
Espera-me a aborrecida tarefa de lhe escrever a explicar que mesmo numa
«edição totalmente revista» há sempre erros e lacunas. Por outro lado,
que diabo, um país é um organismo vivo e nele as cataratas desaparecem,
as igrejas desabam, as estradas mudam de sítio... Mas mesmo assim, lapsos
desses estragam-me o dia.
Quarta-feira, 23 de Novembro — Instantâneo a preto e branco:
Destoa por ser de pequeno porte num país de grandões.
Numa terra onde a elegância é mais exceção que regra, o desleixo do seu
fato passaria despercebido, mas infelizmente é cómico, com as pernas das
calças em saca-rolhas, as mangas
do casaco tão compridas que quase lhe cobrem os dedos, gravatas que
copiam o arco- íris.
Destoa ainda pelo carácter venenoso, só capaz de posições radicais. Nas
reuniões de professores, nas comissões de que faz parte, nas simples
visitas de aniversário ou numa roda no café, onde quer que esteja levanta
questão e um nada o torna cáustico.
Nos primeiros anos de casado a mulher passava o tempo a avisá-lo — «Não
faças isso. Não digas isso.» — mas só um
167
anjo-da-guarda celestial teria paciência e forças para o proteger a tempo
inteiro. Ela, exausta, fugiu; ele, abandonado a si próprio, refugiou-se
mais ainda no seu veneno.
Obrigaram-no a reformar-se e no princípio, de raiva contida, doente.
Depois, recuperando pouco a pouco, escreveu nos jornais, mas também aí o
desgraçado modo que tem não demorou a tomá-lo antipático. Hoje vive
isolado, odeia tudo e todos, nota-se que lentamente vai enlouquecendo.
Quinta-feira, 24 de Novembro — Ela sentou-se, entregou-me o envelope, e
como se o gesto lhe tivesse esgotado as forças apoia a cabeça nas mãos.
— São os primeiros e vai ver que não são bons, mas agradecia que os
lesse.
Escreveu dois contos e espera ansiosa pela minha opinião. Prometo-lhe que
os vou ler, e minto que serei rudemente franco. Levanto-me para sair, mas
ela tem ainda uma pergunta que brilha nos seus olhos com uma inocência
juvenil:
— É muito difícil aprender a escrever?
Abano com a cabeça que não, sem coragem para lhe dizer que o escrever não
se aprende.
Sexta-feira, 25 de Novembro — Dia soalheiro lá fora. Dia pesado no corpo,
sombrio na alma. Infelizmente, para sombras como estas o curá-las por
certo doeria mais do que dói sofrê-las.
Um longo programa de televisão com o escritor Maarten ’t Hart sobre o seu
fascínio pelo travesti. Desgraçados close-ups das suas nodosas pernas, do
seu rosto mal maquilhado, das poses e dos vestidos. Fora disso duma
incrível banalidade, maçudo, repetitivo, feito por um cineasta
visivelmente sem talento. E o pobre Maarten a puxar o bode, a repuxar o
bode, a brincar com o bode, a correr com o bode; a regar a hortaliça uma,
duas, dez vezes; a tocar piano, a tocar órgão, a tocar cravo...
168
Sábado, 26 de Novembro — Em casa amiga, festa de aniversário. Vinte e tal
pessoas, as bastantes para não nos sentirmos perdidos e ao mesmo tempo
facilitar a conversa. Entre os
presentes uma antiga estudante minha que vai no terceiro filho, um
jornalista que vive em Praga, um ex-colega que por senilidade, estragos
do álcool ou alguma raiva íntima, consequentemente me ignorou; um vizinho
simpático que se viu reformado aos cinquenta anos e tem um iate, um MG, e
sonha com uma Harley-Davidson cromada.
De que se falou? Da universidade, da idiotice das reformas antecipadas,
da Espanha; e de teatro, de pintura, de golfe, de culinária, do tempo, de
Nova Iorque, da Argentina; e outra vez do tempo, e outra vez da Espanha,
do teatro, do golfe, de culinária. Falou-se, claro, de muito mais, mas em
ocasiões assim chega sempre um momento em que as conversas à minha volta
de súbito se me tornam incompreensíveis. E contudo aceno em concordância
com o que me dizem e me é alheio, sorrio, dou provavelmente a impressão
de participar, mas no íntimo voo já para longe com o piloto automático
engatado.
Domingo, 27 de Novembro — Numa entrevista contava John Updike há tempos a
profunda irritação que lhe causava que o seu pai, ao envelhecer, se
vestisse descuidadamente e usasse um ridículo boné de marinheiro quase em
farrapos. O pai morreu, os anos passaram e Updike confessava que
ultimamente também descuida o vestuário e, para sua grande surpresa,
passou a usar um boné idêntico ao que o pai usava, o qual com o tempo se
tornou igualmente esfarrapado.
Updike é um pouco mais novo do que eu, dois anos, mas a minha experiência
é semelhante. Doía-me ver que na velhice meu pai não se importasse de
andar quase andrajoso, mas hoje sou eu que, por exemplo, mesmo quando vou
de viagem, em vez de me vestir apuradinho como dantes, pego nas calças
mais velhas e em sapatos que noutra altura teria atirado para o lixo.
169
Também é certo que para mim o conforto passou a contar mais que as
aparências e as conveniências.
Segunda-feira, 28 de Novembro — Peguei no telefone, colei o auscultador
ao ouvido, e logo ao discar o primeiro número ouvi distintamente música
sacra e o murmúrio de uma multidão em prece.
Como não há motivo para que a polícia me escute, sorri à ideia que me
ocorreu de que Deus talvez já tenha mandado deitar linhas cá para baixo
e, sem aviso, nos tenha ligado à sua Internet.
Terça-feira, 29 de Novembro — É um desgraçado traço do meu carácter:
poucas vezes sei dizer não e ao mesmo tempo o falar em público quase que
se me tornou fobia.
O convite para fazer hoje em Doetinchem uma conferência sobre Lisboa data
do ano passado e aceitei-o então com a esperança de que o facto não se
viesse a concretizar: dão-se guerras, desastres, inundações, as pessoas
adoecem, os teatros incendeiam-se...
Entretanto não houve desastres nem incêndios, ninguém adoeceu, a data
chegou, lá fui a caminho de Doetinchem e do Teatro Amphyon.
Comi sozinho num restaurante chinês que pelos jeitos não deve ter muita
clientela, pois tudo o que escolhi na lista não havia ou iria demorar a
cozinhar.
Passeei a fazer horas e finalmente entrei no teatro com um sorriso no
rosto e no íntimo o sentimento dum boi a caminho do matadouro.
Porque tinha sido feita alguma publicidade estavam talvez duas centenas
de pessoas, gente simpática como sempre nestas ocasiões, grande
percentagem de idosos, um jovem que depois
me disse ser pintor e, como um piscar de olho, trazia bem visível debaixo
do braço um exemplar d’O Primo Basílio, de Eça de Queirós.
170
A organizadora, contente com a saia quase cheia. Um senhor de idade
aproximou-se para contar que semanas antes um conhecido poeta tinha
realizado ali uma conferência à qual, incluindo dois familiares, estavam
presentes sete pessoas, e quis saber de mim se era ou não era de dar
calafrios o desprezo que há pela bela arte da poesia.
Falei-lhes de Lisboa e Portugal. Os bons mots a aligeirar o tema
deixaram-nos indiferentes, mornos, só aqui e além causaram um sorriso.
Fiz-lhes ouvir uns fados.
No intervalo o inevitável café, as frases inócuas, observações corteses
sobre um ou outro livro. Alguns autógrafos.
Na segunda parte li-lhes um trecho sobre impressões pessoais, o outro
mais geral sobre Lisboa e a vida literária. Toquei ligeiramente no aspeto
social, na pobreza que se vê na cidade. Uma voz anónima e idosa, vinda
dos lugares mais altos, repontou que a minha visão era desnecessariamente
sombria.
Depois houve o aplauso, o ramo de flores, um beijo e uma garrafa de vinho
oferecida pela Paula, jovem compatriota que vive em Doetinchem há anos.
Apertos de mão, despedidas. No parque de estacionamento sentei-me no
carro e fiquei um instante a repousar, aguardando que espírito e corpo
voltassem à normalidade.
A noite estava fria, serena, de cada lado da estrada esvoaçavam grandes
farrapos de nevoeiro por entre as copas das árvores ou rente à erva dos
prados.
Pus uma cassete e fiz a viagem de volta com um sentimento de euforia,
deixando que Horowitz acompanhasse ao piano as minhas interpretações de
Scarlatti.
Quarta-feira, 30 de Novembro — Em criança, debruçado sobre o atlas, eu
riscava sobre os países e os oceanos as viagens que um dia haveria de
fazer.
Agora, quando num mapa reconheço esses trajetos que nunca percorri, nem
jamais conhecerei, sinto-me arrependido
171
e envergonhado de ter trocado tantos dos meus sonhos por um prato de
lentilhas.
Quinta-feira, 1 de Dezembro — A prova de vinhos começa às dez da manhã
num luxuoso restaurante de Voorburg. Para um alcoólico um paraíso, mas
ninguém está ali para se emborrachar. Prova-se, cospe-se, prepara-se o
paladar mascando nacos de pão seco, lava-se a boca à força de golos de
água.
Segue-se o almoço e, como de costume, a prosa bilingue do menu é tão
floreada que depois de ler o meto no bolso para agora copiar:
«Robalo assado com tomilho escaldado, salada quente de nabo e ostras
maceradas em óleo de salsa.»
«Javali estufado com onze especiarias e lentilhas e lentilhas em
marinada.»
«Tarte Tatin de ananás, gelado de uvas passas com rum e laranjas
caramelizadas.»
Pretensiosa maneira de cozinhar. Porções minúsculas em pratos
desproporcionados, reavivando a lembrança do pior da nouvelle cuisine.
Peixe insosso e insípido. O javali indiferente, mau grado as onze (!)
especiarias. A tarte boa.
Pessoal trombudo, pouco cortês, desconhecedor das regras elementares da
profissão: depois de servir o vinho tinto retornaram literalmente a
correr para tirar da mesa os copos de vinho branco, estivessem os mesmos
vazios, meados ou cheios. O pão e a manteiga só os não levaram porque eu
e outros lhes pusemos a mão em cima.
Por tudo isso saí de lá atarantado e ainda com apetite de comer, que
satisfiz à noite em casa com um decente estufado de porco vulgar marinado
em soro de leite.
Sexta-feira, 2 de Dezembro — Deve ser por acaso, mas dá a impressão de
que é para de propósito nos estragar os fins-de-semana que os envelopes
azuis do fisco vêm no correio das
sextas ou do sábado.
172
A gente olha para os números e tem dificuldade em acreditar que se deva
uma importância daquelas, tanto mais que não é do ano passado, nem do
anterior, mas de 1991. O fisco tinha-se esquecido de cobrá-la, a minha
memória tinha alegremente esquecido o encargo, e agora é como se me
acertassem uma cacetada.
Sábado, 3 de Dezembro — As associações de portugueses na Holanda reúnem-
se para protestar. Estou presente.
As autoridades querem retirar os subsídios, porque nós, portugueses, nos
assimilámos aqui tão bem que não levantamos problemas e entre a nossa
juventude o desemprego e a criminalidade são quase inexistentes.
Desabafa um compatriota:
— Fôssemos zaragateiros e agressivos como os Turcos ou os Marroquinos, e
as autoridades holandesas corriam atrás de nós a perguntar quanto
dinheiro queríamos receber.
A sala cheia, com centenas de pessoas. Na cantina mesas grandes a
abarrotar de pastéis de bacalhau, rissóis de camarão, coxas de frango,
panelas de sopa, tortas várias, doçura, vinho, café. De tudo com fartura.
Na parte da tarde comparecem alguns deputados holandeses e gente da
Câmara. Simpáticos. Assim à primeira vista cheios de compreensão e boas
intenções. Da mesa fazem também parte um grego e um italiano, ambos de
meia-idade, ambos presidentes de qualquer coisa, farfalhudos, exprimindo-
se num holandês abominável.
Exigem a palavra, dá-se-lhes a palavra, põem-se ao microfone e excitados
pela própria voz, desnorteados por se verem em proeminência, nada os faz
calar. Revezam-se em imprecações, acusações, frases bombásticas, relatos
de amarguras passadas que só a eles e a mais ninguém interessam. Aguento
quase uma hora. Quando me levanto para sair o vizinho pergunta se já me
vou embora. Respondo-lhe que não, vou só telefonar, e fujo dali com falta
de ar e a cabeça a zunir.
173
Domingo, 4 de Dezembro — Preguiça: das sete da noite de ontem até depois
das três da madrugada de hoje nada mais fiz que comer, beber e ver
televisão. Três filmes, retalhos doutros, zapping para trás, zapping para
diante.
Acontece-me raramente, mas é uma forma de embriaguez visual. De manhã
acordei tarde e más horas, com ressaca, os olhos raiados de sangue, o
esqueleto desconjuntado e uma dor de cabeça daquelas que para mais ou
menos se conseguir suportar exige escuridão e uma quase absoluta ausência
de ruído.
Segunda-feira, 5 de Dezembro — Nunca me preocupei em seguir dietas e
tirante as ocasiões em que algum achaque me diminui o apetite, creio que
me posso considerar um bom garfo. Não um comilão, mas alguém que com
prazer olha, cheira, aprecia e saboreia o que lhe põem no prato.
Nas últimas semanas, porém, engordei tanto, que somado esse peso ao que
segundo o médico carrego em demasia, o remédio é durante algum tempo
sujeitar-me a ser moderado. Mas como, se eu em tão poucas coisas sou
capaz de moderação?
Dia de São Nicolau. Raras vezes o festejei e para mim de facto não conta.
Também não sei porquê, sempre me pareceu uma coisa forçada, mais moda que
tradição, um substituto aguado para a pompa e o mistério do Natal.
Não se inventa: estamos no café, ele abre o embrulho para me mostrar e
tira de lá o Tractatus logico-philosophicus, de Wittgenstein. Em primeira
edição. Engulo em seco. Sei que ganhou dinheiro no comércio, mas nunca o
ouvi falar dum livro, não o considero culto e nunca lhe suspeitaria
inclinação para as coisas do intelecto, menos ainda para a filosofia.
— Que surpresa. Wittgenstein.
174
— É para a minha mulher. Ela coleciona livros de autores com nomes em que
entra Wit, que é o seu nome de família.
Terça-feira, 6 de Dezembro — A meio das tarefas domésticas que me cabem,
o nosso velho aspirador recusa funcionar. Desaparafuso, testo fios e
condensadores, a ventoinha, desmonto o motor, mas finalmente tenho de me
render à evidência de que nem eu nem ninguém o poderá reanimar. Morreu,
como seria melhor que nós humanos morrêssemos: com uma última aspiração,
em vez de um último suspiro.
Instantâneo a preto e branco:
Não é um La Fontaine. Nem creio que jamais tenha tido a intenção de o
ser. A sua pena não nasceu para moralizar os humanos com exemplos do
reino animal, mas para escrever sobre o riso dos cães, a manha dos par
dais, a sensibilidade das vacas, o modo como os gatos se entreolham, a
diligência dos castores, o sentido familiar das cobras... É isso que ele
afanosamente produz, com a diligência de quem cumpre o preceito bíblico
de que o pão será ganho à custa de suor.
Até aí nada a obstar, pois nem a todos nós, nem a todos os pássaros, é
dado subir alto como a águia. O que perturba é que os críticos e o seu
vasto público vejam nele um La Fontaine e tomem por literatura aqueles
relatos escritos na prosa banal de quem aprendeu pouco e usa as metáforas
e raciocínios com que as mestras dos jardins-de-infância explicam às
crianças os segredos da natureza.
Quarta-feira, 7 de Dezembro — O meu primeiro exemplar de La Nausée, de
Sartre, emprestei-o e ficaram-me com ele. O segundo, na edição do Livre
de Poche, comprei-o em Amsterdão no dia 5 de Julho de 1958 (nessa altura
eu mantinha ainda o hábito, que depois abandonei, de rubricar os livros e
pôr-lhes a data e o local da compra) por uma soma que ainda se lê numa
anotação a lápis e hoje parece ridícula: 2,05 florins.
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Na contracapa está impressa uma opinião reverenciosa: «La Nausée, Vutie
des oeuvres essentielles de la littérature contemporaine.» Com certeza
foi, mas reli-a agora e cheguei a uma conclusão igual à de que noutras
ocasiões tenho tirado da leitura feita à distância dalgumas obras que
gozavam de renome na minha juventude: o tempo raramente se condói com a
fama.
Quinta-feira, 8 de Dezembro — A nossa vida gira em torno de quê? Ponho-me
a pergunta e envergonho-me de para a minha não saber onde achar a
resposta verdadeira. As gerações anteriores podiam responder com a
família, a pátria, o trabalho, a religião, as ideologias, mas entretanto
todos esses alicerces da existência se foram esboroando.
A minha vida gira em torno de quê? De mim próprio?
Acho que não, pois para isso me faltam egocentrismo e vaidade
suficientes. Em torno dos meus livros? Menos ainda, porque jamais
qualquer deles se me afigurou definitivo como a chegada a uma meta, antes
me parecem etapas curtas num moroso e difícil percurso que não sei onde
irá terminar.
Mas então? Não faço ideia. Aparentemente a minha vida não gira em torno
de coisa nenhuma, talvez seja apenas uma sequência de hábitos que ficaram
no lugar dos objetivos de que por vezes desdenhei e outras vezes me
esqueci de ter.
Sexta-feira, 9 de Dezembro — Para o meu isolamento criei um termómetro:
quando a simples ida aos armazéns Hema ou ao supermercado Albert Heijn no
centro comercial Amsterdamse Poort me dá um sentimento de excursão, está
na hora de ir pela cidade e procurar alguém para dois dedos de conversa
inteligente. Mas quem?
Neste nosso tempo de inflação, as classificações antigas como «Primeira
Classe», «Primeira Qualidade», «Extra», «Superior», «Soberana», «Medalha
de Ouro», já não chegam —
176
a modernidade necessita do estúpido e do absurdo. Numa embalagem de
queijo ralado leio o qualificativo: «Premier Grand Cru Classé.»
Sábado, 10 de Dezembro — A quem mandar cartões de Boas-Festas? A quem
não? E porquê? Há anos em que por instantes me rebelo contra o
automatismo, mas acabo sempre por cobardemente ceder e passo horas a
garatujar frases. Frases de que logo me envergonho, certo de que os
destinatários não terão dificuldade em descolar delas a película que
cobre a minha hipocrisia.
E uma anotação feita há muito tempo, mas passou-me da memória se li a
frase em qualquer parte, se a ouvi a alguém ou eu próprio a formulei
assim. De qualquer forma, a plasticidade da comparação atinge o alvo em
cheio: «Ser velho é como ter jantado e ver que os outros se vão sentar à
mesa para comer.»
Domingo, 11 de Dezembro — Foi um momento que me transformou, foi um livro
que mudou radicalmente o meu pensar — ouvidas ou lidas na juventude,
afirmações assim são grandes portadoras de esperança. Um dia, talvez... e
a gente fica à espera do momento ou do livro. Esta tarde alguém dizia:
«Cem Anos de Solidão, de Garcia Márquez, mudou por inteiro a minha vida»,
e involuntariamente não pude evitar um sentimento de desagrado. Primeiro,
porque mal vai ao intelecto e ao carácter que se deixa dobrar por uma
leitura, seja ela de romance, Alcorão ou Bíblia. Depois, porque por maior
que seja a nossa ânsia de milagres, mesmo as mudanças que nos parecem
súbitas são de facto graduais.
Fora tudo disso, se o repetitivo Cem Anos de Solidão lhe deu fama
mundial, em minha opinião o grande romance de Márquez é O Amor nos Tempos
de Cólera». Mas daí a que qualquer livro possa mudar uma vida, e ainda
por cima por inteiro!
177
Segunda-feira, 12 de Dezembro — As muitas guerras ocorridas ao longo dos
últimos sessenta e quatro anos, a minha vida, sempre me afetaram, e
jamais consegui permanecer indiferente aos horrores, às misérias ou aos
sofrimentos por elas causados.
Um sentimento de euforia vitoriosa conheci-o uma única vez, ao terminar a
Segunda Guerra Mundial, mas a paz que eu julgava iria ficar para a
eternidade, pouco mais durou que dias. E o rosário dos sofrimentos e das
mortes inúteis continuou com a Coreia, o Vietname, as muitas guerras
coloniais, as guerras civis, as lutas religiosas, os ajustes de contas em
que os governantes de países ditos civilizados mostram como é ténue o
verniz da civilização.
A guerra na antiga Jugoslávia causou o que eu pouco teria considerado
impossível: passado o primeiro choque deixou-me incompreensivelmente —
talvez fosse mais acertado se dissesse
perigosamente — apático e indiferente. É certo que o sofrimento das
pessoas continua a tocar-me, mas pela primeira vez sinto-me
desinteressado de saber quem luta contra quem e porquê, fatigam-me as
subtilezas dos mediadores, enojam-me os intelectuais que viajam para
Sarajevo a polir a sua imagem pública.
Contudo, talvez os acontecimentos me tenham afetado mais fundo do que
julgo, e bem pode ser que a minha indiferença seja apenas a capa com que
escondo o temor a que não quero sucumbir: o de viver num mundo que
sentenciosamente condena os horrores passados do Holocausto, mas de
braços cruzados permite hoje os horrores da purificação étnica.
Sim, talvez eu seja menos indiferente do que a mim próprio quero
confessar. Mas sentir-me-ia mais feliz se em vez de medo eu tivesse, como
antigamente, convicção bastante para gritar a minha revolta.
Terça-feira, 13 de Dezembro — Slauerhoff, um escritor de má prosa;
Terborgh, um pedante com fraco talento. Quando
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na literatura holandesa se fala de Portugal vêm logo ambos à baila. O
primeiro, desatinado, passou por lá sem verdadeiramente ver; o segundo
viveu lá isolado, cheio de desprezo pelos
Portugueses. Que lhe preste.
E certo que dez anos dão para conhecer um país e as idiossincrasias do
seu povo, mas até agora, daquilo que os holandeses com amor ou desamor
escreveram sobre Portugal, só
o de Komrij vale a pena ser lido.
É daqueles pequenos mistérios que não sei como explicar, pois nem O Reino
Proibido e outros escritos «portugueses», de Slauerhoff, nem os rabiscos
e o desdém do senhor Terborgh pela minha gente justificam a animosidade
que me causam.
As lamechices de Slauerhoff sobre o fado, a saudade, Camões, e a
arrogância de com um conhecimento menos que sumário da língua portuguesa
se meter a traduzir Eça de Queirós, ainda compreendo que me irritem. Mas
o senhor Terborgh...
Quarta-feira, 14 de Dezembro — Foi legenda. Na recordação dos que a
conheceram nesse tempo, quando rapariga tinha um corpo formoso, pernas de
entontecer, e como não sofria de
modéstia começou cedo a tirar proveito da beleza.
Casou rica, divorciou-se, casou ainda mais rica, voltou a divorciar-se.
No dizer dum antigo amante conseguia transformar os seus gestos e
movimentos em momentos de arte, chegando — as palavras e a estupefação
são dele — «A essa coisa extraordinária de com as suas pernas se exprimir
numa verdadeira linguagem».
— Falava com as pernas.
—- Realmente era como se falasse — responde ele, indiferente à minha
ironia.
Vi-a hoje pela primeira vez num beberete em que se festejava o próximo
fim do ano. Passa dos sessenta e infelizmente envelheceu sem amadurar. No
corpo e no rosto há ainda vestígios da beldade que foi, mas a sua voz
mantém um artificioso
179
timbre infantil e aquele pestanejar e as boquinhas que com certeza a
tornavam atraente na juventude, mas agora incomodam como um esgar
nervoso.
Quando a vi sentar-se os meus olhos seguiram curiosos as pernas que
tinham «falado», mas surpresos com a curteza da saia e os estragos da
idade, mandei-lhes discretamente que se afastassem.
Para nós, os velhos, o drama começa quando sem pensar dizemos a quem nos
ouve: «Sinto-me como se tivesse vinte anos.»
Quinta-feira, 15 de Dezembro — Foi no Verão. Ele tinha-a convidado a
fazerem juntos uma excursão pelo Alentejo. Luxo, tratamento VIP, teria à
sua disposição os vastos meios de que ele dispõe.
Telefonou-me a perguntar o que eu pensava da proposta, se me parecia que
o convite implicava ir com ele para a cama.
— Provavelmente. Ele péla-se por loiras.
— Mas é casado, não é?
— E daí? A mulher não vai com vocês, pois não?
Voltou a telefonar hoje, contando que a excursão pelo Alentejo tinha
excedido todas as suas expectativas. Não me disse quais, e eu também não
lhe quis perguntar se os economistas ainda têm razão quando afirmam que
«na vida real o almoçar de graça não existe».
Sexta-feira, 16 de Dezembro — Nunca me habituarei àquilo que parece
franqueza e traduz apenas a bruteza parola a que noutra sociedade se
responderia com um par de bofetadas.
É escritor de nomeada, dizem-no bissexual, nos últimos anos sente-se
feliz com a companheira com quem vive. Na televisão o entrevistador
circula em torno dele descrevendo um voo largo e lento do milhafre.
Palavras gentis, comentários
180
inócuos. Sobre o seu último livro, sobre a vida em geral, a sua posição
de escritor, a sua posição de figura pública. A sua preguiça. Os bons
hábitos que também tem.
Ingenuamente a presa sorri, sente-se à vontade, descansa melhor na
cadeira. E nesse momento a ave de rapina cai sobre ele em voo picado e
prende-o nas garras:
— Ouve lá, há muito tempo que deixaste de ir para a cama com homens?
O escritor titubeia, durante um momento perde o aplomb, mas felizmente
logo se recompõe e fala abertamente da sua vida passada e da sua vida
presente. Chapeau!
Sábado, 17 de Dezembro — Comemos na cozinha e a neta, sentada ao meu
lado, balanceia para trás e para diante na sua cadeirinha, espadana com a
colher, atira mais comida para os lados do que para a boca.
Frente à janela do outro lado do canal, banhada de luz, a Torre
Montelbaan. Olho e divago. Não passam carros. No espaço dum relâmpago
sinto-me transportado ao passado longínquo em que havia ali um porto e
apercebo distintamente as popas e os mastros dos galeões. Um vulto
antigo, um homem de capa e chapéu empenachado, para a meio da ponte e
debruça-se sobre o rebordo.
Alguém pergunta se quero mais vinho e, pronta como veio, a visão desfaz-
se.
Domingo, 18 de Dezembro — Caminhávamos pelo parque, a hora de exercício
que nos damos quando a disposição, o tempo e as circunstâncias o
permitem. Ambos silenciosos, perdidos nos nossos pensamentos, até que a
Loekie recordou de como no passado nos surpreendia ver um casal idoso
passar horas sem trocar palavra. Que é o que por vezes nos acontece, o
preço que pagam duas vidas que, por no diário terem crescido unidas, veem
os seus diálogos precedidos de uma muito real telepatia.
181
Segunda-feira, 19 de Dezembro — Mau grado a idade que tem e a dificuldade
com que escreve, minha mãe é fiel na correspondência e assim, por volta
do fim de cada mês, nas festas
e aniversários, chega-nos carta dela. Carta que funciona apenas como
simples sinal de vida, pois raro contém mais que as informações sobre a
sua saúde e o tempo, e votos de felicidade. Novidades, diz ela que nunca
há, e se alguém morre também o não escreve, «para não vos afligir».
Curiosamente, talvez para encher a folha que doutro modo teria só meia
dúzia de linhas, há anos que cada carta termina com um post scriptum: no
mês passado gastei tanto de telefone e tanto de eletricidade. Mas como
ela não usa o telefone e da electricidade nem sequer gasta o forfait a
que tem direito, o teor do post scriptum só muda quando aumentam as
tarifas: uma vez por ano.
Terça-feira, 20 de Dezembro — A carta da desconhecida conta uma história
estranha: tem vinte e oito anos, nasceu em Angola, foi depois para
Portugal e há pouco mais de um ano vive em Amsterdão.
Meses atrás, por uma questão de consciência — na carta a frase vem
sublinhada —, denunciou à polícia um transporte de heroína. Desde essa
data a sua vida tem sido um terrível inferno — novo sublinhado — porque
além de ter perdido tudo o que tinha se tornou involuntariamente viciada,
devido a terem-lhe misturado drogas na comida, causando-lhe alucinações e
estados depressivos que a põem à beira do suicídio.
Entretanto tentou por várias vezes que a polícia ouvisse a sua história,
recorreu ao RIAGG (o organismo de assistência psiquiátrica), procurou
advogados, mas em nenhuma parte a atendem ou lhe dão ouvidos. Finalmente
bateu à porta de uma instituição religiosa em Amsterdão e as freiras
aceitaram ampará-la. Isso, porém, não lhe basta. Quer que a oiçam, que
acreditem no que conta. Para que não a pensem mentirosa —
182
sublinhado — exige que a hipnotizem, mas ninguém o faz porque, como lhe
disse uma freira, «todos têm medo».
Que quer ela de mim? Que a ajude. «Por favor, ajude-me a falar, pois
todos me tentam calar e Amsterdão não é mais que uma cidade onde governa
a máfia. O meu crime foi a verdade! Estou cansada, preciso de justiça!»
Não faço ideia de que ajuda lhe posso dar, mas por uma questão de
caridade telefono para o convento onde se refugiou e peço para lhe falar.
Ela repete a história da carta, mas acrescenta outros detalhes sobre como
lhe fizeram bruxarias e tentaram enlouquecê-la com visões induzidas por
drogas que foi forçada a tomar, que mesmo no convento os seus inimigos
continuam a persegui-la. Felizmente tem rezado muito, encontrou Deus, e
Ele aconselhou-a que me procurasse.
Oiço-a com paciência e pena, digo-lhe que não perca a fé. Depois de um
silêncio ela deseja-me um Feliz Natal.
Quarta-feira, 21 de Dezembro — Ao acaso da procura de qualquer coisa que
esta noite me interesse na televisão, encontro na BRT-1 de Bruxelas uma
entrevista com John Irving e sigo fascinado o que ele diz sobre si
próprio, sobre a posição dos escritores na América, as relações dos
escritores com a política, com o público, o seu fanatismo pelo desporto,
os romances do século XIX, e mais. Ouvi-lo é partilhar um fascinante
exercício de inteligência com um espírito culto, e algumas das suas
afirmações obrigam-me a um sorriso divertido: «Na Europa muitos
escritores dizem que escrevem só para eles próprios. Que não lhes
interessa o leitor. Ora bolas! O escritor é, em primeiro lugar um
entertainer, um artista que diverte. Se você como escritor não tem
capacidade para divertir, então, por favor, saia do palco.» Meia hora de
excelente troca de ideias entre um escritor inteligente e um
entrevistador inteligente.
Numa transição brusca segue-se novo programa. Contra o fundo de um bosque
outonal e numa curiosa posição —lado
183
a lado, estáticos como se repentinamente os tivessem mandado parar, ambos
em pé e encarando a câmara — um conhecido crítico entrevista um escritor
de nome:
— Depois de vinte e tal romances, este teu novo livro, com a descoberta
da sexualidade, a primeira masturbação, a perda da inocência, bem poderia
chamar-se um livro de estreia. Ou
estou enganado?
— De modo nenhum. A complexidade dos sentimentos que acompanham a
primeira masturbação...
Numa reação fulgurante, para me poupar o que com certeza vai seguir de
banalidade, o meu dedo carrega no comando à distância e apaga a imagem.
Quinta-feira, 22 de Dezembro — Christmas Party da nossa Embaixada no
Hotel des Indes em Haia. Umas duzentas pessoas e aquele barulho que em
qualquer salão, mesmo com boa acústica, tornaria impossíveis as
conversas. Por isso faz a gente de conta que fala e que sorri,
cumprimenta, abraça, beija, bebe, petisca, circula ao acaso das
cortesias, das simpatias, dos vagos conhecimentos com pessoas encontradas
noutras ocasiões assim.
Por quatro ou cinco vezes uma pergunta que há anos me fazem com
frequência:
— Aquela Hester Carvalho que escreve no NRC-Handelsblad é sua filha?
— Não é.
Hora e meia depois descemos para a sala de jantar. A simpática senhora à
minha esquerda sussurra-me ao ouvido que lê sempre as minhas crónicas no
jornal, e que eu lhe pareço cada vez mais crítico em relação à Holanda e
aos Holandeses. Por cortesia não lhe lembro que o jornal há três meses
não publica textos meus e, pelas minhas contas, a última crítica que
escrevi sobre este país e a sua gente data de há quase um quarto de
século. Mas de que adiantaria contradizê-la? Sorrio, aceno que
184
A simpática senhora sentada do outro lado entre mim e o embaixador, quer
que lhe diga com que me ocupo atualmente.
— A escrever.
— E o que é que está a escrever?
— Um romance.
— E de que trata o romance?
— Duma história.
— Que género de história?
— Uma história de gente.
Um braço materializa-se entre nós e serve o Tártaro fino de truta
salmonada com salada verde de alho francês e hortelã-pimenta, livrando-me
de ter de ser inconveniente.
Entre a truta e o Consomê de pato com aipo e trufas, o simpático senhor
sentado à minha frente, homem de peso no mundo das agências de viagens,
quer saber qual é o meu ramo de negócio. Respondo-lhe com seriedade que
me ocupo do marketing da realização de projetos artísticos e literários.
Ele faz com a cabeça um gesto de apreço e não quer saber mais.
Ainda debiquei a Perna de javali com torta de salsífis-negros, maçã,
nozes e molho de salva. O menu prometia também um tabuleiro de queijos
holandeses servido com um Porto Ferreira Vintage 1980, uma sobremesa de
chocolate, o café acompanhado de aguardente Adega Velha e licor amêndoa
amarga. Mas nessa altura passava já da meia-noite, as pessoas levantavam-
se para dançar ao som do conjunto que tocava na sala ao lado, o serviço
era madraço.
Sussurrei à simpática senhora à minha esquerda que ia desaparecer,
levantei-me, fiz discretamente um sinal de despedida à embaixatriz que
correspondeu com uma piscadela de
olho compreensiva, e voltei para casa a passo de boi devido ao gelo e ao
primeiro grande nevoeiro deste ano.
Sexta-feira, 23 de Dezembro — Sempre me atraiu utilizar mais que um
género literário. Comecei pelo conto, passei ao
185
romance, à história, à crónica, à observação social, escrevi um guia,
voltei ao conto e de novo ao romance. Mesmo este diário nasceu em parte
da necessidade de experimentar e me medir
com as dificuldades de um género para mim novo.
É facto que nem todos me atraem. Se penso por vezes vagamente em um dia
escrever um guião de filme, uma biografia, um estudo de como a Holanda se
modificou desde que aqui cheguei, é nula a possibilidade de que jamais me
dedique à poesia ou ao teatro. Mas se tivesse de escolher para
definitivamente me fixar, depois de dada a volta aos géneros da minha
simpatia eu certamente optaria pelo conto.
Vende-se mal, dizem os editores e talvez assim seja, mas como género
literário é aquele que menos perdoa a falta de arte e mais exige das
qualidades do escritor. Compacto, cristalino, da primeira à última linha
o movimento e a tensão têm de ser constantes, a narrativa impecável; não
sofre uma palavra mal colocada ou a mais; nas descrições e nos diálogos a
concisão é essencial, mas bem doseada para que não se transforme em
secura; todas as frases (todas!), além de ritmo cuidado e próprio, devem
assentar no texto com souplesse e uma elegância sem falha, ultima
obrigação, o desenlace terá de ser percutante e inesperado.
Paradoxalmente, neste nosso tempo de pressas, o conto não é popular e
todavia, as dez ou vinte páginas que se leem numa hora, encerram por
vezes mais talento e trabalho que os aparatosos romances de quatrocentas.
Sábado, 24 de Dezembro — A ceia das noites de Natal da minha meninice
pode hoje parecer simples, mas era a consagrada pela tradição: como
augúrio de abundância para o ano que estava quase a chegar comia-se
bacalhau cozido com batatas e ovos. Depois rabanadas, o leite-creme, o
arroz-doce — o meu prato aparecia adornado com um grande J desenhado a
canela — bolo-rei, marmelada, fruta. Havia ainda pequenos presentes, mas
para mim era quase sempre uma refeição triste.
186
Seguindo também o costume, nas casas abonadas as mulheres a meio da tarde
começavam a cozinhar para os «seus» pobres e antes da ceia, à nossa porta
e às outras, vinham os mendigos
e os necessitados com as panelas receber a esmola. Alguns rezavam, outros
diziam «Seja pelas almas de quem lá tem». Eu escondia-me envergonhado,
porque a maioria eram vizinhos, pais dos meus companheiros de jogos ou da
escola. Quando finalmente nos sentávamos à mesa minha mãe não podia
conter o choro, sempre com medo que também um dia a miséria nos batesse à
porta; meu pai comia calado e sombrio; eu, sem apetite, fingia espetar o
garfo na comida e para me entreter besuntava os dedos da mão esquerda com
a pele do peixe, que quando esfriava endurecia e os mantinha presos como
se tivessem sido colados com goma-arábica.
Paul Luyten, livreiro em Gent, homem de simpatia e conhecedor da
profissão que tem, alegra-me o dia com o seu presente anual que, como
sempre, foge ao comum. Desta vez a edição em fac-símile de dez cartas
inéditas do poeta Richard Minne (1891-1965) com o título «Agradável e
melancólico, tal como tudo é na vida».
Domingo, 25 de Dezembro — A Isabel telefona para dizer que na sexta-feira
passada o veterinário piedosamente pôs fim aos sofrimentos com que a
doença e a idade tornavam insuportável o viver do Moby.
Mais tarde ocorreu-me que ela tinha usado o eufemismo «deixar adormecer»,
que discretamente suaviza a crueldade do facto, e foi então que vinda dos
arcanos da memória de novo me doeu a morte do meu cão.
O dono tinha-o enjeitado e eu, com pouco mais de quinze anos, tomei-o à
minha conta, lavei-o, acarinhei-o e sem fantasia batizei-o Piloto, nome
de mais de metade dos cães portugueses.
187
Afeiçoámo-nos, mas a nossa camaradagem foi de pouca dura, porque meses
depois começou a sofrer de tinha. Veterinário que o tratasse não havia, e
por conselho de minha mãe tentei curá-lo com o tratamento que ela usara
para um eczema renitente da minha infância, cobrindo-lhe a pele com uma
pasta de enxofre e vinagre. De nada valeu. O sofrimento do animal era
terrível e os seus ganidos de cortar a alma.
Finalmente, uma tarde, o meu pai decidiu que bastava, levou-o para o
quintal atrás de casa, matou-o lá com um tiro. E talvez porque eu o tinha
deixado ir sem coragem de o olhar ou de lhe fazer uma carícia de
despedida, quando ouvi a detonação tomou-me um remorso que ainda dura.
Segunda-feira, 26 de Dezembro — Sozinho em casa. Pontada no coração.
Repetida de tantos em tantos segundos, como uma agulha que em ziguezague
me furasse o lado esquerdo do peito. Dor no braço, acompanhada de perda
de sensibilidade. Toco com os dedos no teclado do computador e quase não
sinto nada. Agarro uma tesoura, um livro, e as sensações não retornam.
Respiro fundo, mas de forma irregular, e durante talvez meia hora tenho a
impressão de que minha vida se acha em suspenso.
Gradualmente os dedos e o braço reganham a sensibilidade. Para me
certificar mexo nisto e naquilo, toco a ponta dum canivete, contraio os
músculos. A pontada desapareceu, deixando uma impressão de cansaço.
Levanto-me e vou até à janela, olho indiferente para as árvores do
parque, os carros que passam, tomado pela intensa quietude que o medo
gera.
Terça-feira, 27 de Dezembro — Têm de ser preenchidos os impressos da
reforma e os da pensão da velhice. Só de ler as perguntas já se me
desanda a cabeça e dalgumas palavras não
faço ideia que significado possam ter. O que serão, por exemplo, «as
bases de contribuição da indemnização de disponibilidade»? Como saber se
«É ou foi transferida a sua importância
188
livre de impostos? Ver pág. 5, número 10.» Transferida? Como? Porquê?
Para quem? Com que consequências? Deus me valha!
Não fosse a Loekie tomar a si o encargo, creio que dava em maluco. Ou,
com piores consequências, faria como fiz com as declarações dos impostos
nos primeiros anos em que aqui vivi: como as não compreendia, atirava-as
simplesmente para o cesto dos papéis. Que me lembre, nesse tempo paguei
de multas o equivalente a um rendimento.
Depois do medo de ontem, eu nos próximos tempos dispensaria as más
notícias, mas o postal que ele me manda com as Boas-Festas começa com uma
linha de mau agouro: «Dentro em breve vão ter de me meter a faca.»
Telefono preocupado. São dois tumores, um na próstata, outro nos
intestinos, e ele ainda não sabe se benignos ou malignos. A mulher foi
buscar o resultado das análises e não deve tardar.
Prometo telefonar mais tarde e entretanto dançam-me na cabeça os maus
cenários a que estamos sujeitos na nossa idade. Uma hora depois, alívio.
Os tumores são benignos. A operação ficará para o princípio do ano.
— Mas é só o adiamento da pena capital, não é? — comenta ele com um riso
ácido.
Em Lisboa o Prémio Pessoa no valor de sete mil contos foi atribuído ao
poeta Herberto Helder que, embora pobre, «para não perder a sua
independência» se negou a recebê-lo. Li, pensei no caso, e não chego a
conclusão que me satisfaça, pois curiosa noção será preciso ter da
fragilidade da própria independência, para acreditar que um prémio
literário público a possa pôr em perigo.
Quarta-feira, 28 de Dezembro — Por vezes julgo-me imune, mas é a memória
a passar-me rasteiras, porque na verdade
189
a depressão está sempre à espreita. Basta um pensamento, uma palavra, uma
olhadela quando, como hoje, mesmo ao meio-dia tudo é cinzento escuro e a
chuva se eterniza. Então não há remédio nem ajuda que tire da alma às
trevas em que ela se embrulha.
Quinta-feira, 29 de Dezembro — Era o mais simples dos calendários. Sempre
idêntico, num quadrado de papel branco de 25 x 25 cm. Uma capa e nas doze
folhas apenas os números das datas e das semanas, o nome do mês, na
margem esquerda as abreviaturas dos dias. Em cima, do lado esquerdo, um
logotipo e o endereço; do lado direito: Steendrukkerij de Jong & Co. Um
monumento de elegância e simplicidade tipográfica. Uma vez, uma pequena
mudança do arranjo gráfico quase causou uma revolução entre os que por
gentileza da litografia o recebiam. Dezenas de cartas a protestar e o
calendário voltou à sua forma tradicional. Durante vinte e sete anos
enfeitou a minha parede e era para mim uma alegria quando o correio mo
trazia em princípios de Dezembro.
Este ano não aparecia e comecei a inquietar-me. Esperei até hoje de manhã
e finalmente atrevi-me a telefonar. Uma voz
metálica de um qualquer computador informou-me que o número não
funcionava. Indaguei e o que eu temia ficou confirmado: a Steendrukkerij
de Jong & Co em Hilversum, reputada pela qualidade dos trabalhos que
produzia e querida pelo seu inimitável calendário, faliu e fechou as
portas.
Telefonema do senhor Kraan que vai escrever sobre parte da minha obra um
ensaio destinado a Uitgelezen, uma publicação do NBLC (Centro de
Literatura das Bibliotecas Neerlandesas) que dedicada ao tema «Literatura
de Migrantes» será posta à venda no Outono. Literatura de migrantes? Sim,
porque o migrante (o emigrante) será o próximo tema anual das Nações
Unidas.
190
Fico um bocado confuso. Pertencerão Joyce, Joseph Conrad, Isaac Bashevis
Singer, Naipaul e dezenas de outros a qualquer coisa que se possa
denominar «literatura migrante»? Talvez sim, mas pessoalmente acho que
não. Cada um deles existiu ou existe por si próprio, com o seu talento,
sendo de pouca conta os lugares por onde andaram.
O meu receio é que a apelação de literatura migrante seja uma hipócrita
capa, um termo em moda que, como o antigo gastarbeider e os mais recentes
«alóctone», «refugiado», e «emigrante ilegal», tenha só por fim colocar
um rótulo em produções de qualidade díspar e dar jeito a que mesmo o mais
pateta dos escribas «importados» se sinta acarinhado pela democracia.
O desagradável, para mim, é que não vejo forma de me opor a
classificações, nem tenho meios que me permitam impedir que outros me
etiquetem a seu bel-prazer. Ainda por cima o senhor Kraan é homem cortês,
simpático e, a ajuizar pelo que lhe ouvi, competente.
Sexta-feira, 30 de Dezembro — Desde o começo da minha vida de escritor
correspondência de admiradores foi coisa que nunca me faltou e, tivesse-a
eu guardado toda, de certeza precisaria uma mala. Mesmo assim, as cartas
e bilhetes que por uma ou outra razão se distinguem do comum enchem
algumas caixas de arquivo.
São cumprimentos, louvores, saudações originais, gritos do coração,
gritos de revolta, postais carinhosos, ataques de fúria dirigidos a
terceiros e dos quais, por qualquer mistério, me fazem recetor. São
também, por vezes, curiosos pedidos de consulta sobre como iniciar uma
carreira literária, parvoíces de débeis mentais, apelos de mães com
filhas apaixonadas por portugueses, a pedir-me que intervenha para evitar
a «desgraça». Que desgraça? E como se eu o pudesse ou quisesse! Pedidos
de prefácios, de recomendações. Pedidos tolos. Comentários inteligentes.
Surpresas também, como a de hoje:
191
«Prezado senhor Rentes de Carvalho,
Não lhe deve ter acontecido muitas vezes esperar o senhor cinquenta anos
para receber uma carta de um casal que em grande parte a si deve o ter-se
casado.
Nunca antes tinha eu associado o nome de Carvalho com o do homem que,
durante a Segunda Guerra Mundial, tornou possível que eu e o meu futuro
marido trocássemos correspondência, mantendo assim viva a chama do nosso
amor!
Mas de súbito deve ter acontecido qualquer coisa que pôs o meu cérebro a
funcionar acelerado quando, mais ou menos por acaso, tirei da estante o
seu livro Com os Holandeses e o seu nome me trouxe à lembrança o bom
senhor português que da Inglaterra me enviava as cartas do meu namorado e
fazia com que elas chegassem à aldeia de Geleen, aqui na Holanda,
onde eu então morava. E recebendo as minhas, as entregava na Inglaterra
ao meu namorado.
Sentada aqui agora em minha casa com o seu livro na mão, sinto-me corar
de vergonha por nunca antes lhe ter agradecido a bondade que teve de
contribuir para que se unissem num só
os nossos amorosos corações!!!
Em meu nome e no do meu marido agradeço-lhe o carinho com que nos ajudou
e peço-lhe desculpa de o não ter feito antes. No caso de eu me enganar, e
que se trate de outra pessoa,
faça o senhor o favor de em nosso nome expressar a nossa gratidão a todos
os Carvalhos que encontrar.
Mais uma vez muito obrigada, com os melhores votos para o senhor e todos
os que lhe são queridos.»
No mundo devem existir dezenas de milhares de Carvalhos e eu tinha nove
anos quando a guerra começou, mas uma carta assim merece resposta
imediata.
Sábado, 31 de Dezembro — Passo a noite como milhões de outros defronte da
televisão. Separado anos-luz dos fins de ano em que os meus pais ou os
meus avós me punham no rebordo da janela à espera da meia-noite.
Maravilhosa televisão
192
era para mim nesse tempo a paisagem da cidade, com o seu casario
irregular, as luzes, a ponte, as torres, o rio onde se refletiam
infinitamente as lâmpadas que enfeitavam o cordame
dos navios.
À primeira pancada das doze o céu parecia rebentar de foguetes e de
alegria, de ruídos, de sereias e de vivas, apitos de locomotivas, de
fábricas, sinos a repicar. Mais do que ver ou ouvir, eu sentia que pela
cidade inteira corriam multidões dando gritos de regozijo e, quase
palpável, tudo ao meu redor se cobria de um halo de felicidade. Os
vizinhos abraçavam-se, erguiam copos em brinde, chamavam para que
saíssemos todos à praceta.
Eu teria quê, quatro ou cinco anos, pois antes de chegar aos seis já o
avô tinha morrido. Ele ou o meu pai faziam então como os outros com os
seus filhos é netos: agachados ao meu lado escolhiam um foguete,
mandavam-me que apertasse a cana, punham a sua mão sobre a minha e com o
isqueiro pegavam fogo à mecha. Durante dois ou três segundos o jacto da
pólvora silvava, o foguete estremecia nas nossas mãos, e quando o
largávamos parecia coisa viva, a subir, a subir, estourava, desfazia-se
em cores. A esse foguete seguia-se outro, e outro, e outro...
Diz-se que tudo tem fim, mas não é verdade: quando me levavam para a cama
eu sentia ainda a mão adulta agarrada à minha e, sem temor, continuava a
deitar foguetes que silvavam, estremeciam, estouravam, e ficariam para
todo o sempre a iluminar o céu com o prodígio das suas lágrimas
coloridas.
1995
Domingo, 1 de Janeiro — Dia desagradável, frio. O Sol brilha e logo
desaparece por detrás de nevões que tapam completamente o céu. Quase
noite escura às quatro da tarde. Uma neve húmida que deixa a rua
enlameada.
Nada que se compare à primeira neve que vi fora do cinema, nos Pirenéus,
de dentro do comboio que me levava para Paris no começo do que, na
excitação dos meus vinte anos, eu pressentia ia ser a grande aventura.
Colossais como não imaginava que pudessem existir, cobertas de uma
brancura imaculada a rebrilhar ao sol da tarde, aquelas montanhas
mantinham-me grudado de espanto à janela da carruagem. Grandeza assim,
beleza assim, tanta majestade — por certo era aquele o cenário do
primeiro ato da ópera da vida e no palco não demorariam a retumbar os
acordes da abertura triunfal.
Segunda-feira, 2 de Janeiro — Pelo gosto de sonhar ou pelo fascínio que
causa, em mim o mistério pode mais que a razão. Por isso não será de
estranhar que tempos atrás tenha lido de
ponta a ponta os dezassete volumes da Library of Curious and JJnusual
Facts («Biblioteca de Casos Curiosos e Extraordinários») — Time-Life
Books, Nova Iorque, 1990 — e agora me
194
tenham deixado entre surpreendido e preocupado certas passagens da
autobiografia de Alec Guinness intitulada Blessings in Disguise — Hamish
Hamilton Limited, Londres, 1985.
Um exemplo. No Outono de 1955 tinha ele ido para fazer o seu primeiro
filme em Hollywood: O Cisne, com Grace Kelly. Na noite da chegada uma
amiga convidou-o para jantar e, depois de terem tentado alguns
estabelecimentos caros onde lhes tinham recusado a entrada devido à dama
vestir calças, esta decidiu que fossem a um restaurante italiano onde
tinha a certeza de que seriam bem acolhidos. Depois de dezasseis horas de
voo de Copenhaga para Los Angeles Alec Guinness estava próximo da
exaustão, mas concordou. Quando lá chegaram não havia mesa livre e iam já
de volta para o parque de estacionamento quando um rapaz correu atrás
deles:
» You want a tablç», he asked. «Join me. My name is James Dean.» We
followed him gratefully, but on the way back to the restaurant he turned
into a car-park, saying»: Fd like to
show you something.» Among the other cars there was what looked a large,
shiny, silver parcel wrapped in cellophane and tied with ribbon. «Ifs
just been delivered», he said, with bursting pride. «I haven3t even
driven it yet.» The sports-car looked sinister to me, although it had a
large bunch of red camations resting on the bonnet. «How fast is it?», I
asked. «She’ll do
a hundred and fifty», he replied. Exhausted, hungry, feeling a little
ill-tempered in spite of Dean3s kindness, I heard myself saying in a
voice I could hardly recognise as my own:
195
«Flease, never get in it.» I looked at my watch. «It is now ten o’clock,
Friday the 23rd of September, 1955. Ifyou get in that car you will be
found dead in it by this time next week.» He
laughed. «Oh, shucksl Don’t be so meanl» I apologised for whatl had said,
explaining it was lack ofsleep and food... We parted an hour later, full
of smiles. No further reference was made to the wrapped-up car. Thelma
was relieved by the outcome of the evening and rather impressed. In my
heart I was uneasy — with myself. At four o3clock in the afternoon of the
following Friday, James Dean was dead, killed while driving the car.»
A acontecimentos assim os espíritos fortes e racionalistas chamam «
coincidências ».
Estranhei, informei-me, e fiquei a saber que em São Francisco os sapatos
brancos eram então o distintivo das prostitutas.
Terça-feira, 3 de Janeiro — Mesmo o leitor de obras de ficção anseia por
encontrar nelas uma certa dose de verdade. A dificuldade reside em que,
na sua essência, a verdade se revela quase sempre banal, rotineira.
Por isso o escrever, ao contrário do que por vezes se pensa, não é uma
forma de mentir, mas a melhor maneira de através do enfeite tornar a
verdade aceitável e atrativa, transformá-la de seco conceito moral em
obra de arte.
Quarta-feira, 4 de Janeiro — Fosse eu sensato, deixaria de ler críticas
literárias. Raramente me divertem, pouco ou nada aprendo nelas, e o mais
que fazem é acordar por vezes em mim um malicioso regozijo. Mas como vou
abandonar um vício de cinquenta anos?
Ainda que evite revelações ou detalhes íntimos, o diário permanece um
instrumento perigoso. Não para quem o lê, mas para o seu autor. Uma
espécie de testemunha muda que
196
conhece os pensamentos que originaram as palavras, conhece até ao detalhe
as razões que levaram a filtrá-los, e a cada momento ameaça que se quiser
pode apresentar queixa no tribunal. O tribunal da consciência, entenda-
se; aquele que em geral desdenha do direito de defesa e passa sentenças
sem apelo.
Quinta-feira, 5 de Janeiro — Em seguida à revolução de 74 houve durante
anos no governo português um ministro da Cultura. Como aos olhos dos
políticos a Cultura é um bonito estandarte, mas infelizmente não dá votos
nem lucro, o ministério foi reduzido depois a uma secretaria de Estado.
Chega-me a notícia de que no governo a Cultura é agora empurrada para um
degrau mais baixo e vai ser gerida (gerida!) por uma subsecretária.
Para mim não será surpresa se um dia os senhores políticos decidirem que
é mais barato e eficiente entregar a Cultura nas mãos da Santa Casa da
Misericórdia.
Sexta-feira, 6 de Janeiro — Ele é inteligente, jovem ainda, tem grande
sensibilidade artística, vive livre e desafogadamente, é respeitado pela
qualidade do seu trabalho. E como quase todos nós anseia por se conhecer
a si próprio e reduzir o caos dos sentimentos e do pensar.
Infelizmente dispõe de meios e em vez de como a maioria se lançar sozinho
a essa difícil tarefa, há mais de dez anos que diariamente consulta um
psicanalista.
Ouço e custa-me a acreditar. Não pelo que me parece que se tornou para
ele uma dependência inútil, mas pelo desperdício de dinheiro, tempo e
energia. Dez anos? Tempo de sobra para se ter doutorado em Psiquiatria.
Sábado, 7 de Janeiro — É um pensamento que me ocorre, misturado com não
sei que ponta de melancolia: na aldeia, em Portugal, o mais remoto dos
buracos, quase todos os dias me acontecem coisas, ou vejo coisas
acontecer. Aqui, numa cidade
197
bela, rica, tendo à mão os benefícios e confortos do progresso, passo a
maior parte dos dias fechado em casa, ensimesmado. Não me acontece nada e
o que vejo acontecer não é real, chega-me filtrado pela televisão.
Domingo, 8 de Janeiro — O melodrama é de sempre, mas na minha opinião só
depois de muito tempo passar sobre ele se lhe reconhece o verdadeiro
sabor.
Diz que tem vinte e quatro anos, vem duma pequena cidade portuguesa e
chegou aqui subsidiado para estudar música sacra. Pergunto-lhe se é
bolseiro da Fundação X e ele surpreende-se que eu saiba da existência
duma instituição tão discreta. Conhece ele a história das origens da
fundação? Pode ser que sim mas, delicado, responde pela negativa.
Em meados do século passado, na cidade em questão, um boticário de poucos
meios casou por interesse com uma solteirona riquíssima e passados anos,
depois de uma curta doença, a esposa entregou a alma ao Criador.
Tendo a mulher morrido sem testamento o boticário deu-se conta de que, da
fortuna que gostaria de herdar por inteiro, metade iria ser dividida
pelos sobrinhos dela. E isso levou-o a tomar uma decisão ousada e
fulminante. Chamou a cozinheira, dois criados, explicou-lhes o seu plano
e jurou que não se haveriam de arrepender da ajuda que precisava deles.
O cadáver da esposa foi escondido, a cozinheira ocupou na cama o lugar da
morta, o notário veio e, dadas as circunstâncias, apressou-se a escrever
as últimas vontades da «moribunda» que, em voz tremida, afirmou legar ao
marido a totalidade dos seus bens. Ainda assinou antes de desfalecer e o
documento foi validado pelo testemunho dos presentes.
Fez-se o enterro, passaram anos, mas incapaz de suportar os rebates da
sua consciência, um dos criados acabou por enlouquecer, correndo pelas
ruas a gritar: «Confissão! Confissão!» O pároco, condoído, levou-o para a
igreja, ouviu o relato, deu-lhe uma penitência leve e mandou-o em paz.
198
Depois começou discretamente a preparar o assalto ao boticário. Ligado
como estava pelo segredo da confissão, não podia denunciá-lo às
autoridades. Mas deixá-lo impunemente livre também não podia ser.
Finalmente conseguiu que o homem, tomado de remorso, se confessasse.
Deve-lhe ter lembrado a sua idade avançada, o risco de ficar eternamente
a assar
nas labaredas do Inferno. O boticário cedeu e fez testamento seguindo as
indicações do padre: os sobrinhos da mulher, tidos por «vermelhos» e
infiéis, seriam deserdados e a fortuna, administrada pela igreja, passava
inteira para uma fundação que asseguraria o estudo de rapazes pobres e
distribuiria dotes a raparigas necessitadas. Condições sine qua non eram,
além da assistência diária à missa, que eles fossem talentosos e elas
virgens.
O rapaz sorri e diz que tudo isso mudou, os bolseiros já não são
obrigados a ir à missa. Vai quem quer. E para receber o dote as raparigas
também não precisam de ser virgens.
Segunda-feira, 9 de Janeiro— Fotografado ou escrito, o autorretrato nunca
me calhou. Sai quase irreconhecível, de linhas tortas, a meio caminho da
caricatura, como se no meu íntimo uma força se oponha a que me revele por
inteiro. E talvez seja melhor assim, pois pelo menos mantenho a ilusão de
que albergo um mistério.
Terça-feira, 10 de Janeiro — Amizades literárias? Deus me livre. Já é
provação bastante ouvir de vez em quando um imbecil que, fazendo
boquinhas, fala do avanço da sua obra.
Se algum dia me aconteceu ser cruel devo tê-lo sido sem saber, pois a
crueldade não me está na natureza. Mas também é certo que a veneração
pelo bondoso São Francisco de Assis não me impede de matar moscas e
centopeias, aranhas, mosquitos, baratas, ou de armar de vez em quando uma
ratoeira na esperança de nela decapitar um rato.
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Ultimamente, porém, tenho-me surpreendido a guiar para o ar livre uma
joaninha ou uma vespa que esbarra contra a cortina; a levar para um lugar
fresco um caracol que seca ao sol na varanda; mesmo para as varejeiras
que me atordoam com o seu zumbido deixei de ser o assassino fanático de
antigamente.
Primeiro pensei que fosse brandura minha, mas receio que seja apenas dos
anos: a irremediável proximidade da própria morte é que acorda em nós o
respeito por tudo o que vive.
Quarta-feira, 11 de Janeiro — Para o cidadão que crê ter direitos, o
contacto com a burocracia obriga-o às vezes a acordar em sobressalto da
sua ingenuidade.
A Loekie telefona ao Sociale Verzekeringsbank («Banco do Seguro Social»)
para um esclarecimento sobre se, entrando eu a receber a reforma da
velhice, poderei escolher entre manter o antigo seguro de doença e a
chamada «apólice padrão». Resposta do funcionário, com certeza jovem, e
ignorante de que fora da sua repartição exista outro mundo:
— O seu marido não tem nada que escolher.
Encontro Theo Sontrop, o meu editor, na Kalverstraat. Bem-falante como
sempre, e como sempre pronto a contar do que leu ou do que viu, os bons
mots na ponta da língua. Vamos a caminho do Arti para a apresentação de
Fotocolumn, um álbum de fotografias de Ed Suister onde figuram os
retratos de nós ambos.
Discursos simpáticos, gente conhecida, abraços e risos, as gentilezas do
costume. Finalmente a distribuição de exemplares do livro aos retratados,
em seguida os copos e o convívio.
A pessoa que nos apresenta sussurra com respeito que a senhora é
doutorada. Cavaqueamos. Ela faz o elogio de um conhecido comum
recentemente falecido e acrescenta:
— Um sujeito esperto [kien], espertíssimo. Sabe o que a palavra
significa? É o mesmo que keen em inglês.
200
Uma garota a dar-me lições! Aceno que sim, que sei.
— Digo isto porque o senhor é português e com um estrangeiro nunca se
sabe, não é?
Sorrio benevolamente a disfarçar o meu desejo de lhe dizer que vá para
aquela parte.
Quinta-feira, 12 de Janeiro — Ó que desgraçada noite de dores pelo corpo
inteiro, tosse e mais tosse, insónia total. Às três da manhã não aguentei
mais, levantei-me e fui ver televisão para esquecer. Mas a televisão da
madrugada consegue o que eu julgava improvável, e excede a da noite em
infantilismo.
Na Hogeschool voor de Kunsten («Escola Superior da Artes»), em Arnhem.
Michaèl Zeeman entrevista-me e, erudito, formulando com elegância, traz-
me delicadamente de volta ao carreiro cada vez que saio dele.
Eu que queria falar do conteúdo, perco-me a falar da forma. Queria
aprofundar o valor do ritmo, da melodia, a misteriosa relação entre a
palavra e a música, e deslizo para o anedótico. Felizmente o público é
simpático e não mo leva a mal.
No regresso, por alturas de Breukelen, paro na berma para não perder uma
maravilha da natureza: um céu negro e tempestuoso de poente, rasgado por
formidáveis clarões amarelos
que gradualmente mudam para um esplendoroso alaranjado.
Sexta-feira, 13 de Janeiro — Livro escrito é para mim livro arrumado. Vai
para a estante e das poucas vezes que lhe volto a pegar é em busca de uma
ou outra passagem, nunca para o reler por inteiro.
Não faço isso porque me envergonhe do que escrevi, ou me incomodem em
demasia os meus erros e as imperfeições, mas porque ele para mim
testemunha do que eu em determinada altura fui e me recorda o que eu não
soube ser.
201
Sábado, 14 de Janeiro — Marx, Lenine e Estaline foram imprudentes:
viveram, vimo-los, estão enterrados em qualquer parte. Deus, ao
contrário, nunca se mostrou, continua sabiamente oculto atrás da sua
nuvem.
Assim, o perder a fé no divino parece-me mais fácil de suportar do que
ter-se sido comunista convicto e ficar sem ideologia. A religião, pelo
menos, deixa entreaberta a porta por onde a dúvida, e com ela a
esperança, podem eventualmente passar; enquanto que o comunismo primeiro
trancou as portas e depois, desatinadamente humano, deitou a casa abaixo.
Domingo, 15 de Janeiro — Dia cinzento como o de ontem, mas morrinha em
vez de nevoeiro, de forma que não sabe a gente qual é o melhor.
Temperatura de quase dez graus. Estranho Inverno. Dia improdutivo, fora o
ter conseguido responder a algumas das cartas que inexoravelmente se
amontoam a um canto da mesa. Tempo mal empregue, aliás, porque como a
cara ou o tom do correspondente nem sempre tocam em mim a tecla da
simpatia, tanto trabalho me dá o disfarçar o mau humor que cada carta me
leva mais de uma hora a escrever.
Segunda-feira, 16 de Janeiro — Primeiro foi uma circular do município em
estilo floreado e otimista a contar-me as vantagens do passe para
seniores; depois uma carta da Nederlandse Federatie van Senioren a nomear
os inúmeros benefícios que oferece aos seus filiados.
Raro passa um dia sem que instituições oficiais ou interesses
particulares me não venham recordar a minha próxima entrada na velhice,
quando eu - todos nós - ganharíamos mais se não nos catalogassem em
grupos etários. Geronte foi título de nobreza, mas a burocracia
transformou-o em reformado ou pessoa da terceira idade, títulos de
rejeição.
202
Terça-feira, 17 de Janeiro — Digo-lhe que me irrita, sobretudo porque é
incómodo, ler um texto impresso em letras pretas sobre um fundo azul-
escuro; ou um texto cujas linhas ondeiam pela página, ou têm fotografias
ou desenhos como fundo.
Ela acha que não e retorque que tudo isso, que me parece
desnecessariamente modernista e pretensioso, é o imprescindível
desenvolvimento que prepara o nosso futuro.
— As aplicações da semiologia — afirma entusiasmada — tomarão primazia
sobre a literatura. O futuro cabe aos sinais e não às palavras. Os ícones
dos programas de computador são apenas um prenúncio das maravilhas que
estão para vir.
Maravilhas? Devemo-nos felicitar de um dia passar a comunicar como os
surdos-mudos ou os polícias sinaleiros?
Quarta-feira, 18 de Janeiro — Quem o havia de pensar:
a vizinhança da minha aldeia notícia mundial. No vale do rio
Côa, onde andam a construir uma barragem hidroelétrica, foram descobertas
centenas de gravuras do Paleolítico.
Telefono a Nell Westerlaken no Volkskrant a perguntar se o assunto lhe
interessa e em poucas horas está a decisão tomada, depois de amanhã parto
para Portugal.
Quinta-feira, 19 de Janeiro — No centro comercial o rapaz aproxima a
cadeira de rodas da borda do passeio, para, hesita. Pergunto se quer que
o ajude e ele agradece, diz que tem a impressão que está num mau sítio.
Atravessamos a rua, continuo a empurrá-lo até à entrada do metro e,
conversando, fico a saber que tem dezoito anos e também é cego, mas todos
os dias se obriga a sair à rua para ganhar prática. Paralítico, cego e
corajoso.
Sexta-feira, 20 de Janeiro — Viagem de avião sem incidentes nem
ocorrências que valha a pena anotar. Seguem-se duzentos e tal quilómetros
por uma estrada onde as curvas parecem multiplicar-se em função do
cansaço. Chego à aldeia noite
203
escura e encontro minha mãe como ela própria diz, «na forma do costume».
Não tenho vontade de comer e sento-me para ouvir os casos misteriosos que
ela, a modo de boas-vindas, anunciou que tinha para me contar.
Primeiro foi uma das talhas grandes do azeite, das que estão na adega e
levam mais de duzentos litros, que uma noite rebentou com um grande
estrondo e se desfez em mil bocados.
Felizmente estava vazia.
Não a interrompo, mas pergunto-me desconfiado como é que ela, surda que
nem uma porta, terá ouvido o estrondo.
No dia seguinte outro episódio. Estava a costurar na sala quando a
moldura dum retrato deu um estouro e o vidro rachou, voando em
estilhaços.
O terceiro era o mais preocupante: inexplicavelmente o despertador que
tinha em cima da cómoda pusera-se uma noite a tilintar muito alto (pelos
vistos o mistério favorece a audição), depois deu um salto e desapareceu.
Do despertador só tinha encontrado a pilha e uma tampinha. O resto levara
sumiço definitivo. Procurara pela casa inteira e em parte nenhuma
conseguira encontrar os restos mortais do relógio.
Como ela tem talento para a narrativa e eu, além de supersticioso, estava
tão cansado da viagem que já tudo me parecia possível, senti calafrios ao
perguntar-me se à minha volta não estariam os poltergeister à espera de
me verem deitar para logo em seguida começarem com as suas danças, a
quebrar molduras e talhas e a fazerem desaparecer os relógios.
À cautela fui eu próprio procurar debaixo dos móveis sem resultado.
Procurei de novo e começava já a recear o pior, quando, por fim, com
alívio, usando um cabo de vassoura encontrei o que faltava do despertador
caído atrás dum armário.
Mas ela tinha mais histórias. A do correio, por exemplo. Eu que lhe
explique se os tempos andam tão funestos como receia. O carteiro tinha-
lhe trazido uma encomenda e dito que
204
devia pagar uma sobretaxa de duzentos e oitenta escudos. Quando quis
saber porquê ele respondeu-lhe:
— Porque agora com os correios é assim, paga quem manda e também paga
quem recebe.
Bocejo, esfrego os olhos, volto a bocejar, e ela pergunta-me se quero
café.
A única coisa que quero é ir-me deitar, mas não tenho coragem de lho
dizer.
— Uma viagem assim deve ser pesada. Estás cansado?
Mas a pergunta é um pró-forma. Ela tem mais histórias a contar e
encomendas a fazer. Um dia terá de ir ao especialista dos olhos, mas da
próxima vez que eu for à farmácia que não me esqueça de lhe comprar mais
dois ou três frasquinhos de Clarvisan, pois isso é que a tem salvo das
cataratas.
O incrível poder da sugestão: poupada ao ponto de avareza, paga dois mil
e quinhentos escudos por quinze mililitros de colírio fabricado no Japão
que não faz mais que, durante uns
instantes, refrescar-lhe os olhos e dilatar-lhe as pupilas.
Morro de sono mas ela não se quer esquecer do caso do Daniel, que semanas
atrás caiu duma cerejeira abaixo. Aos setenta e oito anos um perigo, mas
por felicidade não partiu nada, só se lhe desconjuntaram os ossos.
Em vez do médico a família levou-o ao curandeiro e este, depois de lhe
dar uma ajeitadela ao esqueleto e de verificar algum endurecimento do
mesmo devido ao reumatismo, mandou-lhe por terapia que todos os dias
esfregasse o corpo com aguardente. Não com álcool da farmácia, que não
faz bem nenhum porque é industrial, mas com aguardente caseira, que «além
de ser o álcool mais puro que há, tem uns cheiros que matam os bichos do
reumatismo».
Minha mãe conta com seriedade, eu vou troçar, mas logo me calo quando me
diz que depois de ter ouvido a receita ela própria esfregou os braços que
lhe doíam, «umas dores muito fortes nos ossos», e ria eu se quiser, mas
as dores passaram-lhe.
205
Mesmo assim um dia destes quer ir ao médico, porque agora com o seguro é
de graça. Por causa da vista e para ver se ele lhe receita.
— Mas receita para quê?
— Para as minhas dores.
— Que dores?
— As dos ossos.
— Mas então elas não passaram com as fricções de aguardente?
Sábado, 21 de Janeiro — Oito da manhã. Frio de rachar. A uma hora destas
o doutor Pimentel não espera visitas e está no cabanal a furar com um
berbequim a tampa duma lata. Um velho boné de para-quedista na cabeça,
embrulhado em lãs, a cara tapada à árabe por um cachecol que só lhe deixa
os olhos à mostra. Irreconhecível. Surpreendido de me ver ali quando me
supunha em Amsterdão.
Uma hora depois estou em Moncorvo. Faço algumas compras a correr, atiro-
as para o carro e rumo para Vila Nova de Foz Côa, vinte quilómetros
adiante.
Um polícia com quem falo à porta da Câmara dá opinião sobre a descoberta
dos desenhos rupestres, que no dizer dos especialistas datam de há vinte
mil anos e de que já se diz que são talvez o mais importante conjunto
existente na Europa.
Ele esteve lá, viu-os, tem a certeza que não podem ser tão antigos como
dizem.
— Não são antigos coisa nenhuma — e dispara uma inesperada conclusão: —
Olha-se e vê-se logo, aquilo foi feito pelo moleiro aí há uma dúzia de
anos se tanto.
Como raio foi o moleiro procurar rochas longe de qualquer caminho e a uns
cento e cinquenta metros acima do nível do rio, é detalhe que não aponto
para o não perturbar.
O estaleiro da barragem fica a uns cinco quilómetros da vila. Atravesso
para a margem sul e não faço caso do painel onde se lê que «É
rigorosamente proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço». Passo
por um posto de vigilância
206
abandonado e dirijo-me a um ajuntamento de dumpers, os enormes de doze
rodas que estão à espera de carregar as rochas que as escavadeiras
arrancam à montanha.
Um chofer diz-me que «os bonecos» são na outra margem e sem capacete não
me vão deixar passar, não só devido ao perigo das derrocadas, como dos
tiros. No momento em que ele me acaba de dizer que o horário do fogo é
das oito às nove, e das onze ao meio-dia, a terra treme e uma formidável
explosão na margem fronteira atroa o vale, fazendo voar grandes calhaus
como se fossem um simples repuxo de água.
Não tenho capacete nem licença, mas ninguém me manda parar. O carro sobe
com dificuldade pelos carreiros enlameados, esgueira-se por entre os
dumpers, passo o lugar da explosão onde as escavadeiras e os caterpílares
empurram os rochedos. O carro desliza mais do que roda e paro junto de
alguns automóveis estacionados contra um muro.
Um grupo de pessoas conversa e pelo que oiço são arqueólogos. Dou-lhes os
bons-dias e vou começar a descida, sem explicações, quando uma senhora me
diz que se não tenho licença do IPPAR (Instituto Português do Património
Arquitetónico) o guarda não me deixa passar. Com um máximo de nonchalance
afirmo-lhe que tenho todas as licenças.
O guarda, atrás duma vedação que de tão recente ainda tem aqui e ali
restos do papel de embalagem, diz-me que não posso passar, mesmo com
licença. Conversamos. Conto-lhe ao que venho e que o ter de ir embora sem
dar pelo menos uma vista de olhos às gravuras me vai causar grande
transtorno. Ele responde-me que no domingo anterior apareceram ali mais
de mil pessoas, e que eu com certeza tinha encontrado uns arqueólogos que
ele, por não terem licença, também não tinha deixado entrar.
Insisto que é para mim uma necessidade absoluta, e por fim, quando já
começo a pensar na hipótese de tentar o suborno, ele amolece, que me
apresse para a entrada lá ao fundo e de lá me guiará.
207
Escorrego e tropeço pela encosta mais do que caminho. Aqui e ali cavaram
um bocado de carreiro que pouco ajuda a passagem e finalmente estou
frente a frente com uma das gravuras. Distingo vagamente uma forma
animal, em parte truncada devido à superfície da pedra se encontrar
rachada. Aproximo-me para ver melhor e dou-me conta de que a gravação foi
feita por um instrumento redondo, pois as linhas do desenho são formadas
por uma infinidade de pequeninos pontos que alguém fez meticulosamente na
pedra. Mais abaixo estão três gravuras semelhantes e, segundo o guarda,
havia outras que se encontram submersas e já se descobriram mais para o
lado da cabeceira da barragem. De amanhã a oito dias o presidente Mário
Soares virá aqui acompanhar uma delegação de arqueólogos internacionais
que tentam pressionar o governo para que as obras da barragem parem.
Ninguém sabe o que já se perdeu, nem ninguém sabe o que se deverá ou
poderá fazer para salvar este património cultural. Mas a verdade é que
quem, sem mais conhecimento de causa,
vir só as linhas simples gravadas na rocha, se há-de perguntar se «tão
pouca coisa» vale tanto barulho. E a opinião geral resumiu-a uma mulher a
quem perguntei o que o povo da vila pensava da hipótese de pararem com a
construção da barragem para salvar as gravuras:
— Nós queremos a barragem porque precisamos da água para beber, para
regar e para a eletricidade. Agora se os senhores de Lisboa querem as
pedras dos «bonecos», que as levem com eles, porque a gente não vai ficar
triste por isso.
Sigo para Masouco à procura do «carneiro», como lhe chama o povo, outra
gravura paleolítica descoberta em 1982 e que ainda nunca vi.
Os homens que estão a enfeitar o adro da igreja e a quem pergunto o
caminho, destacam o Xavier para me servir de guia, porque sozinho com
certeza o não encontro. O Xavier, dezassete anos e ainda na escola, é de
poucas falas, responde
208
com monossílabos ao que lhe pergunto, ou para nos cruzamentos dizer se
devo meter à direita ou à esquerda. São quatro quilómetros de caminho
mau, estreito, lamacento e perigoso. Um descuido e rebolamos por ali
abaixo, engolidos pelos duzentos metros de fundo da albufeira da Barragem
de Saucelle.
O caminho termina bruscamente junto dum socalco. Continuamos a pé. Só que
devido ao mato muito crescido o Xavier não consegue encontrar a «figura».
Procuramos mais de meia hora e eu, bem menos ágil do que ele, escorrego
perigosamente até perto da água — um passo em falso bem pode ser o meu
fim, porque não sei nadar — salvo-me duas ou três vezes in extremis
porque me consigo agarrar às giestas. Começo a subir sozinho o caminho de
volta e estou já perto do carro quando o rapaz me grita que encontrou o
«carneiro». Volto a descer, suando, bufando, agarrado às giestas às mãos
ambas para não descambar no precipício.
Mas a canseira vale a pena: o «carneiro» é uma bela e bem preservada
gravura deixada por sabe Deus que remotos antepassados.
Tiro algumas fotografias, agradeço ao Xavier e levo-o de volta para
Masouco.
Chego a casa ao anoitecer, cozinho a ceia, comemos e a minha mãe
caridosamente oferece lavar a loiça. Caio na cama com o sentimento de
estar mais perto da morte por exaustão do que dum benéfico repouso.
Domingo, 22 de Janeiro — Minha mãe volta da missa com duas razões de
desagrado e que na sua opinião anunciam maus tempos para o mundo: até há
poucos meses os rapazes seguiam o costume multissecular de se confessarem
e todos os domingos irem à missa e comungar. Atualmente ainda vão até ao
adro, mas deixaram de entrar na igreja.
A segunda má notícia é que desde que no ano passado o Germano Seguro
morreu, todos os domingos havia uma pessoa diferente a ajudar à missa,
mas por falta de hábito ou de
209
conhecimentos, nem sempre com agracio do padre e dos fiéis, pois os
ajudantes de circunstância muitas vezes se enganavam no ritual.
Desde a semana passada são dois os acólitos: um rapaz e uma rapariga.
Minha mãe não somente se sente escandalizada pela promoção do próprio
sexo a uma função tão importante como misteriosa, mas ouviu dizer que os
dois não fazem o serviço por devoção, nem por vontade própria, mas
atraídos pelo pagamento de cem escudos por cabeça e por cada missa.
— Cem escudos! — repete ela, para que eu me escandalize também.
E eu não tenho coragem de repontar que mais me escandaliza que o padre só
pague cem escudos às crianças por mais de uma hora de trabalho.
Tempo frio, ventoso, Janeiro no pior. A sala razoavelmente aquecida,
graças a um aquecedor Buta gás e a um radiador elétrico. Mesmo assim
trabalho encapotado a escrever o artigo para o Volkskrant. Comecei às dez
da manhã e parei à meia-noite, com uma pausa para cozinhar e comer.
Segunda-feira, 23 de Janeiro — Recomeço com o artigo às nove e à uma da
tarde tenho-o pronto. Chove. Corro a Moncorvo para o mandar por faxe para
o Harrie e enfureço-me com a roubalheira dos CTT: que seja para uma vila
próxima ou para o Japão, a tarifa é única e esfolam-me em oito mil
escudos pelo envio de sete páginas de texto.
Volto à aldeia. Em dias assim de tempestade nem os cães se veem na rua.
Passa de vez em quando um vulto encapuchado e apressado. A mulher do
António corre para casa enxotando a cabrada com uma vara.
— Quantas tens agora?
— Quarenta e sete.
E corro também a fugir à ventania e ao frio. A aldeia dá a impressão de
ter sido abandonada depois de uma catástrofe.
210
Mesmo aqui o acontecimento é visto como importante. As pessoas largam o
trabalho e sentam-se defronte dos televisores, O primeiro-ministro Cavaco
Silva vai fazer uma comunicação ao país para dizer se sim ou não continua
à frente dos destinos do PSD, se sim ou não se volta a candidatar ao
posto de chefe de governo.
A resposta é negativa em ambos os casos e as pessoas perguntam-me o que
penso. Invento respostas para lhes agradar, mas de facto o caso não me
interessa. Com democracia ou sem ela, os Portugueses continuam a olhar
para os seus governantes como reis, e mantêm em relação a eles um
espírito monárquico de dependência.
A sociedade continua baseada no mandonismo e os quase dez anos de governo
PSD tornaram-se notáveis, sobretudo, pelos escândalos de corrupção e pelo
vergonhoso enriquecimento dos funcionários, dos políticos e da burguesia,
à custa dos dinheiros que vindos da União Europeia deveriam ser aplicados
no bem público. E nesse particular os socialistas, que certamente vão
ganhar as próximas eleições legislativas, irão fazer igual figura.
Terça-feira, 24 de Janeiro — Com todas as mudanças e modernismos, e a
falta de quem queira fazer o trabalho rude da apanha de azeitona, o lagar
do azeite tem o tempo contado. Este ano ainda funciona, e eu, que já
assisti ao fim dos lagares antigos onde, como no tempo dos Romanos, a
força motriz era a dos braços ou a dos animais, entro lá esta manhã com
um sentimento quase religioso.
A barulheira é enorme, o chão escorregadio de gordura, de cascas e
caroços. Nas traseiras ficam as tulhas da azeitona e delas sobe o vapor
que anuncia o começo da fermentação. Toda a gente tem pressa, porque
quanto mais a azeitona fermenta pior é a qualidade do azeite, mas a
maquinaria data do fim da guerra e não tem capacidade que chegue.
211
O motor ronca, a enorme caldeira alimentada com o bagaço da azeitona
fumega, a água a ferver pinga sobre as seiras. O moinho, com duas mós de
cantaria de três metros de diâmetro, roda constantemente e as mulheres
tiram de lá o bagaço, enchem as seiras, põem-nas nas prensas hidráulicas
que lentamente vão espremendo a massa. O azeite escorre, é bombeado
para a centrifugadora e depois, num fio dum amarelo-dourado, enche as
talhas. Cercado pelos vizinhos o dono dos «apertos» olha em silêncio, com
a solenidade de quem vê materializar-se ali as esperanças que nutriu, o
fruto do seu trabalho e das suas madrugadas.
O doutor Pimentel, proprietário do lagar, com o mesmo boné e as lãs em
que o vi embrulhado dias atrás, está empoleirado numa cadeira alta num
cubículo envidraçado, onde ao mesmo tempo que faz os assentos pode
controlar se os obreiros, três mulheres e três homens, se atarefam com
diligência.
— E preciso que fique aí o dia inteiro? — pergunto-lhe com curiosidade.
E ele, conhecedor das manhas do povo e dentro do espírito de que «o medo
é que guarda a vinha», sorri:
— Preciso, preciso, realmente não é. Mas é conveniente.
E com um olho no jornal, o outro na azáfama do lagar, está ali das oito
da manhã às onze da noite todos os dias da semana menos o domingo, e
custam-lhe as breves pausas que o pessoal faz para comer.
Procuro os melhores enquadramentos para tirar fotografias. Infelizmente a
máquina que uso é a mesma com que faço simples apontamentos e não tenho
esperança que saiam obras-primas dela ou de mim. Além disso o que poderia
ser dramático a preto e branco, fotografo-o a cores. Mas quero documentar
e isso me basta. Quase no fim do segundo rolo a pilha da máquina entrega
a alma a Deus e, mau grado as precauções que sempre tomo, desta vez não
tenho outra à mão. É pena, mas irremediável.
212
Enterro uns quantos pregos soltos das tábuas do soalho, faço umas
arrumações e de súbito o tempo melhora, o sol rompe, a temperatura sobe.
Vou com minha mãe a passear no monte por entre os eucaliptos que crescem
como os dias sem pão: a maior parte já tem mais de oito metros, e isso em
menos de seis anos, chupando o que a terra tem de seiva e água. Quando os
vierem cortar para a fábrica de celulose, ficamos num deserto, porque
dizem os peritos que os eucaliptos tornam o solo totalmente árido e ali
nunca mais crescerá coisa alguma.
Na parede fronteira à nossa porta, quase rente ao chão há um buraco por
onde se escoam as águas da chuva. O sapo vive lá confortavelmente
escondido e quando como hoje o sol aquece as pedras ele aparece na
abertura, dando a impressão de que se debruça a ver quem passa. Não sei
que idade terá, só me lembro que anos atrás era mais pequeno que a minha
mão, e agora o seu corpanzil quase enche os vinte e tal centímetros que o
buraco tem de diâmetro.
No boqueiro da rua encontro o Alípio e a Luz. Falamos do azeite deste
ano, muito e de boa qualidade. Falamos de como tive razão em anos atrás
vender as terras que tínhamos, quando todos me chamaram de maluco (e já o
fiz tarde de mais, tivesse-as meu pai vendido na década de sessenta,
quando a procura era muitas vezes superior à oferta. Mas a magia da posse
da terra que foi dos nossos maiores...). Falamos dos dois filhos deles
que deixaram a lavoura e se foram a trabalhar na construção em Mogadouro,
onde ganham melhor, se cansam menos e não precisam de sofrer com os
calores e as chuvas.
Quarta-feira, 25 de Janeiro — Primeiro foi a tampa da retrete que
quebrou. Depois foi o autoclismo que deixou de funcionar. Vou pela
segunda vez a Carviçais e compro um novo no Zezé.
213
Digo-lhe eu:
— Falta um tubo.
Responde ele:
— Não, senhor, está tudo dentro.
Estava realmente tudo, menos um folheto com as instruções de montagem.
Desmontei o velho, olhei, montei o novo. Vertia por todos os lados, por
três vezes se me encheu de água o chão do quarto de banho. Mas finalmente
lá funcionou, embora sobrassem duas peças: uma de plástico, de forma
estranha, a outra com um aspeto de borracha, e para nenhuma delas
descubro a serventia.
Da função de picheleiro passo sem pausa à de cozinheiro. Carne assada no
forno com batatas, cenouras a acompanhar. Uma hora depois da assadeira
estar no forno, um estalo, muito fumo, a certeza de que a assadeira tinha
quebrado. E tinha. Felizmente em duas partes desiguais, o que, juntamente
com o facto do forno devido à velhice se achar desnivelado, me permitiu
pouco perder dos sucos essenciais.
Coisa que não se inventa, de tão inverosímil: nesse mesmo momento o
telefone toca. Corro a atender. Número errado, desculpe. Volto a correr
para a cozinha. Às dez da noite, minha mãe e eu sentamo-nos finalmente à
mesa.
Quinta-feira, 26 de Janeiro — Acordo como quase sempre com o barulho da
carroça do Guilherme, logo seguida pelos chocalhos das ovelhas do
António. Assomo à janela para ver, mas já passaram. Os cães param a
ladrar, descontentes com a minha presença e de súbito dois deles iniciam
uma cópula furiosa, enquanto os três restantes correm às voltas,
hesitando se devem esperar a vez ou ir atrás do dono.
Embora tenha sempre vivido na aldeia vi-a pela última vez fará uns quinze
anos, quando ela ainda andava na escola primária, uma tarde em que juntei
os garotos e a professora para lhes tirar o retrato.
214
Depois só o ouvir dizer. Que era estudante aplicada e para não
sobrecarregar os pais se empregara para pagar os próprios estudos. Que no
mesmo dia em que o pai falecera tinha sido
nomeada professora na escola secundária da vila. «Feiota como é, não há-
de ter muitos pretendentes», tinham-me dito com escárnio. Vai e volta
todos os dias do trabalho num carrinho preto, o único esbanjamento que se
lhe conhece.
Hoje ia eu a passar quando o carrinho parou e ela com tal rapidez
atravessou a rua que nem sequer me deu tempo de lhe falar.
— E sempre assim — disse o Daniel.— Fora a missa ao domingo, fecha-se em
casa com a mãe e ninguém mais a vê.
Estranha vida para uma rapariga de vinte e cinco anos.
Passeamos no monte e minha mãe ao ver ao longe a serra de Lagoaça fala da
sua avó Maria Eufrásia, mãe de catorze filhos que vingaram. De todos,
conta ela, o mais valente e menino querido era o ti João, que mais tarde
casaria em Zava, também ele pai de muitos.
Na sua juventude primara pelas artes de pastor e causava admiração vê-lo
voltar sozinho ao povoado, deixando o rebanho de centenas de ovelhas a
pastar na encosta da serra, entregue ao cuidado dos cães.
Quando lhe parecia que eram horas ia para trás da igreja, levava os dedos
à boca e dava dois assobios muito agudos. Nesse mesmo instante, e seria
de mais de cinco quilómetros a distância a que se encontravam, cães e
rebanho punham-se em movimento, o pastor fazia o mesmo, e encontravam-se
então a meio caminho.
Sexta-feira, 27 de Janeiro — Brandura do ar, um anúncio da longínqua
Primavera. A humidade e o frio da noite, presos nos vales, criaram neles
um nevoeiro espesso donde os cumes dos montes emergem como outras tantas
ilhas num mar branco. Ao ver aquela beleza sobe em mim uma alegria
infantil
215
e primeiro quase me envergonho, mas acabo por dar graças de que um
espetáculo assim simples me comova.
Como de costume o Mário está sentado atrás da porta. Junto da cadeira as
muletas são o memento da perna amputada e da tristeza de que em breve lhe
vão amputar a outra. Passa gente, ele olha. Uns falam-lhe, outros não.
Entro para um minuto de conversa. Quando me despeço, e com sincera
amizade e pena lhe aperto ambas as mãos nas minhas, enchem-se-lhe os
olhos de lágrimas, agradece-me o ter entrado e ficado aquele momento. É
então a minha vez de sentir um nó na garganta e uma espécie de vergonha.
Vou despedir-me do doutor Pimentel depois da ceia. Dias atrás tínhamos
falado do caso de Urbino de Freitas e ele presenteia-me com um livro de
1893, onde se acham apontadas verbatim as actas das audiências do
julgamento do médico envenenador.
Num recorte de jornal que encontro entre as páginas é mencionada uma
baronesa Vandestad-Walkalt. Seria interessante averiguar a identidade
desta senhora (holandesa? belga?) que a troco de uma avultada importância
oferecida a um asilo tinha conseguido que o juiz lhe reservasse lugar na
primeira fila da sala do tribunal. Pois era esse o vício da dama: «dar
donativos para os hospitais que visitava, aquando das visitas que fazia
aos grandes criminosos da Europa».
Pelos jeitos escrevia também as suas impressões sobre os grandes casos
criminais, reservando a sua publicação para depois da sua própria morte.
Terá publicado?
Sábado, 28 de Janeiro — São sete da manhã, faz escuro e um frio rigoroso
quando me despeço da mãe. Só quando passo Vila Flor começa a romper o
dia. Depois de Abreiro engano-me num cruzamento e em vez de ir em direção
a Vila Real, para minha surpresa vou a caminho de Murça e sem
216
possibilidade de corrigir. A asneira custa-me mais de trinta quilómetros.
Paro na Amarante e entro numa confeitaria a tomar o pequeno-almoço. Da
janela vê-se o torvelinho das águas do Tâmega em forte cheia, espetáculo
que a esta hora da manhã já atrai às margens centenas de pessoas.
No que respeita ao trânsito não conheço localidade mais perigosa que o
Alto da Lixa. São quilómetros de estrada velha e estreita a servir também
de rua. De ambos os lados sucedem-se as lojas, os armazéns, as
fabriquetas, as bancas de artesanato, as das frutas, as dos comes e
bebes. Inúmeras ruelas donde disparam veículos conduzidos por gente que
não tem a intenção de esperar por uma aberta naquele infindável trânsito.
Quando rodo por ali vou com o credo na boca, os olhos bem abertos, o pé a
pendular entre o acelerador e o travão. E não me lembro de jamais lá ter
passado sem medo. Desta vez são dois desastres. No primeiro há uns quatro
ou cinco carros amolgados, que ao embater uns nos outros se espalharam
pela estrada e pelos passeios. A polícia já lá está e assim à primeira
vista não há feridos, só gente que gesticula, que berra, que aponta
culpas.
O segundo acidente acabou de acontecer: um camião apanhou de lado um
automóvel e esmagou-o contra uma parede. Os transeuntes gritam, choram,
correm sem tino, há mortos,
sangue no asfalto. Atarantados, os condutores de alguns carros à minha
frente param de súbito no meio da estrada e saem a acudir. Os que estão
atrás e não sabem do que se trata começam a buzinar. Esgueiro-me como
posso subindo ao passeio e fujo dali.
À chegada ao Porto, como a autoestrada anda em obras e a sinalização
ainda é deficiente, engano-me mais uma vez e julgando ir para o aeroporto
vejo-me em Matosinhos. Mesmo assim chego ao meio-dia em ponto. De C.T.,
que prometeu estar à minha espera, em parte nenhuma sinal de vida.
217
Chega uma hora depois, desculpando-se do atraso. Um amigo, que tinha
prometido trazer consigo e que é o especialista da vida do padre
Himalaia, teve de ir a um colóquio. Falamos do padre e da sua atração
sobre as mulheres, das riquíssimas benfeitoras que o protegeram; da
Companhia Himalaíte que ele fundou com um misterioso alemão, da hipótese
de que tenha sido o inventor de vários explosivos e de — germanófilo como
era — ter provavelmente colaborado na construção da Grande Berta, o
canhão com que a mais de cem quilómetros de distância os Alemães
bombardearam Paris durante a Grande Guerra.
Corremos a almoçar em Leça num restaurante que ele recomenda e à mesa
parece-me o momento oportuno para perguntar:
— Nunca mais ouvi nada sobre aquele plano de vocês e do conde para a
publicação do meu guia? Vai para diante?
— O guia? — a interrogação é incomodamente expressiva. — Sim, claro que
vai. Mas tem havido umas mudanças nas repartições e anda tudo muito
atrasado. Quando a coisa for decidida telefono-lhe logo.
Adeus sonho. Quando ele no seu Fiat Panda Sisley Tuning me leva de volta
para o aeroporto fazem a última chamada para os passageiros para
Amsterdão.
Domingo, 29 de Janeiro — Uma história de dias atrás que me esqueci de
apontar. Vinha com minha mãe de Moncorvo e por qualquer razão perguntei-
lhe se alguma vez tinha estado nas Quintas das Quebradas. Sim, duas vezes
em pequena, mas como era muito longe nunca mais lá tinha voltado.
— Longe?
— Seis ou sete horas de caminho.
Meto o carro na boa direção e em dez minutos chegamos às Quintas, uma
aldeia de duas ruas e pouco mais que uma centena de casas. Ela olha
desinteressada. Sempre lhe tinham dito que era um povoado grande e rico,
mas pelo que vê é mais pequeno e mais pobre que o nosso.
218
No caminho de volta pergunto-lhe se se lembra porque razão lá foi em
pequena. E ela conta.
A avó Eufrásia tinha uma porca que um dia quiseram levar ao berrão e como
o único com fama era o das Quintas, para lá se puseram a caminho a avó e
a neta, que teria então uns sete anos, levando a porca presa a uma corda.
Como era viagem de horas e o berrão levava tempo a cobrir, pernoitaram lá
e regressaram na manhã seguinte. Nesse tempo os animais focinhavam
livremente pela rua e dias depois, para grande consternação da família,
deram-se conta de que a porca tinha desaparecido.
Só podiam ter sido os ciganos ou os lobos, se bem que nos últimos tempos
se não tivessem visto uns nem outros. Felizmente, passados dias chegou um
almocreve com a novidade. A porca, com saudades do berrão, tinha-se
metido sozinha a caminho e aparecera nas Quintas em casa do amante.
Estava bem guardada, contente, e com certeza prenha, o recado era que os
donos a fossem buscar.
A avó Eufrásia e a neta lá se meteram de novo a fazer a caminhada de
muitas horas pelos montes, e minha mãe guardou até à velhice a impressão
de que as Quintas eram quase no fim
do mundo.
Segunda-feira, 30 de Janeiro — Deceção. Por fraqueza do artista e da
pilha, as fotografias do lagar saíram más e subpostas, inaproveitáveis.
Só se salvam as do «carneiro» paleolítico de Masouco.
Terça-feira, 31 de Janeiro — Encontrámo-nos pela primeira vez em 1975,
quando ele fez a capa para o meu livro Portugal, a Flor e a Foice,
simpatizamos, e hoje recebo o inesperado anúncio de que amanhã se fará o
seu enterro. No cartão alguém resumiu perfeitamente o homem e o seu fim,
escrevendo: «Alje Olthof — irmão, cunhado e tio, artista gráfico, nascido
em Groningen, cínico suave, leitor, sibarita, amsterdamês de
219
gema, solitário com muitos amigos, morreu subitamente ontem, segunda-
feira, 23 de Janeiro de 1995, quase ao completar sessenta anos.»
Quarta-feira, 1 de Fevereiro — As inundações vão alastrando. É
desastroso, causa prejuízos, por precaução evacuam-se milhares de
pessoas, mas graças à boa organização, às estruturas e à solidariedade de
muitos, não é tragédia.
Contudo os jornais põem grandes cabeçalhos, as televisões mostram as
imagens de ruas submersas, das águas torrenciais, dos animais votados à
morte certa. Quem está longe e sabe vagamente que a Holanda fica abaixo
do nível do mar, logo conclui que uma situação assim é sinónimo de grande
perigo.
Ao princípio da tarde o telefone toca e a voz amiga começa como devia
começar, sossegando-me de que não tem más notícias. Só que minha mãe, ao
ver na televisão as longas filas de evacuados e toda aquela água a
espalhar-se sobre o país, lhe pediu para telefonar a saber se corremos
perigo.
À noite telefonam ainda de Portugal mais amigos, preocupados com os
relatos da televisão e a nossa segurança. O curioso é que as palavras têm
de ser várias vezes repetidas antes que eles acreditem que o que lhes
dizemos é de facto mais verdadeiro que as imagens da televisão.
Quinta-feira, 2 de Fevereiro — A distração prega-me uma partida. Tenho um
encontro em Haia e contra o costume decido ir de comboio. O comboio
chega, vejo que vai na boa direção, entro, estranho que só haja meia
dúzia de pessoas à minha volta e digo-me que deve ser devido à hora morta
a meio da manhã.
Nas estações seguintes não entra ninguém, só sai gente. Gozo a paisagem,
o comboio mete pelo túnel de Schiphol por onde nunca passei e vai parar a
Hoofddorp. A voz do maquinista anuncia o fim da viagem e pede aos
passageiros que se apeiem. Sou o único passageiro e desço para o cais com
cara de parvo.
220
Sexta-feira, 3 de Fevereiro — Original maneira de demonstrar amizade.
Cerca das dez da manhã o telefone toca, uma voz impessoal da Telecom
pergunta se aceito o custo dum telefonema que me querem fazer de
Portugal. Claro que aceito. E no mesmo instante, num relâmpago, ocorrem-
me visões de falecimentos, desastres, de gente em perigo a precisar de
mim como boia de salvação.
O meu transtorno é tão profundo que não reconheço a voz que me fala e só
depois me dou conta da identidade e do propósito da chamada: um amigo,
homem de meios e de posição numa grande empresa, inquieto com a minha
segurança e os perigos que aqui corro com as enchentes, resolveu
telefonar a informar-se. À minha custa.
Sábado, 4 de Fevereiro — Três coisas que me fazem franzir o sobrolho:
padres a opinar sobre a sexualidade; agnósticos que, embora cientes que a
questão eternamente se porá aos vivos em termos de fifty-fifty, não se
cansam de negar a existência de Deus; mas sobretudo aquele tipo de
intelectual holandês que debate sobre a identidade nacional e o
patriotismo, «porque isso agora são assuntos de novo aceites»!
Observação que tem sobre mim efeito igual à da capa sobre o touro: vejo
vermelho. Só se arriscam a ter opiniões quando para elas recebem o
beneplácito do amorfo e pegajoso corpo social, e para mostrar que
raciocinam precisam de carris e esperam licença. Que raio de gente é
essa?
O meu fim-de-semana vai ser azedado pela promessa que fiz de preparar uma
conferência. Tese para apresentar já tenho: «O enriquecimento, a confusão
e as dificuldades de querer ser fiel a duas culturas.» E também encontrei
título: «Um caso de bigamia cultural.»
Só falta o que dá mais dores de cabeça: desenvolver esse tema em meia
dúzia de folhas de papel. Mas a culpa é só minha, burro velho sem emenda
que não aprende a dizer não.
221
Domingo, 5 de Fevereiro — Na televisão um longo programa sobre orgasmos,
técnicas do coito, aberrações, confissões, anseios e o mais que pende em
torno dos prazeres, dos medos
e das frustrações do sexo. Os presentes a discutir com a desinibição que
aqui se tornou costumeira.
No final, fazendo o meu próprio balanço, recordo como quando me encontro
na aldeia se me tornam sensíveis os profundos tabus que lá continuam a
envolver a sexualidade. É como se ela não existisse, ao mesmo tempo que
as pessoas recebem através da televisão um bombardeio de erotismo. E
pergunto-me como deve ser melancólica e frustrante a vivência sexual da
minha gente, que por um lado vê a liberdade, mas por outro continua presa
a formidáveis cadeias.
Segunda-feira, 6 de Fevereiro — Em grande parte tenho vivido de
recordações. Mas de que vou viver no futuro, se me dou conta que nos dias
que agora passam pouco acontece que valha a pena recordar?
Às vezes julgo que o que eu gostaria mesmo de escrever seria uma história
de amor. Daquelas em que os amantes vão lentamente descobrindo a sua
paixão. Uma história com fintas, obstáculos desmesurados, viagens a
terras exóticas e abraços, beijos castos, famílias que se opõem mas
acabam por se reconciliar. E finalmente o grande momento.
Penso isto, mas no fundo sei que jamais escreverei histórias de amor,
aventuras, ou enredos complicados. O meu grande e inconsciente anseio
também não é de facto o de escrever, mas de um dia recuperar a inocência
com que antigamente lia.
Terça-feira, 7 de Fevereiro — Encontrámo-nos a primeira vez haverá uns
quinze anos. Ela tinha lido os meus livros e porque sentia algum orgulho
de me ter como compatriota quisera dizer-mo de viva voz. Depois
conversámos de coisas
222
e loisas, do Porto onde tinha nascido, da licenciatura que tinha feito,
de como num estranho episódio conhecera o holandês com quem acabara por
casar.
Recordo vivamente a melodia da sua voz, o seu amor pela literatura, a
inteligência com que argumentava, e como o genuíno entusiasmo com que
falava ia gradualmente apagando a sua falta de encanto físico.
Num segundo encontro, muito tempo depois, contou-me dos seus filhos e do
seu modo de viver, da descoberta que o conforto material não é
compensação suficiente para a alma que pode e anseia por voar alto, mas
se vê coartada no seu voo. Com um sorriso irónico contou-me também que
provavelmente não nos voltaríamos a ver, porque o marido não aprovava as
minhas ideias, nem a simpatia que ela nutria pelos meus escritos.
Quando foi publicado o meu guia de Portugal escreveu-me uma carta
carinhosa. Hoje recebi a notícia de que faleceu no sábado passado, aos
quarenta e nove anos de idade. O facto de que o cartão só nomeava os
filhos é como que um sinal discreto de que não foi feliz. Deus a tenha em
paz.
Quarta-feira, 8 de Fevereiro — O envelhecimento físico é misericordioso:
vamos caducando e engelhando, mas tão gradualmente que o espelho todas as
manhãs nos devolve uma imagem que não difere da do dia anterior.
A surpresa, a má surpresa, vem quando distraídos folheamos um álbum e
encontramos nele a imagem do que fomos no passado ou nos longes da
juventude. Mas a hipocrisia defende-nos contra o choque. Eu fui assim?
Tive esta cara? Francamente, antes a de agora.
É um facto para que não tenho explicação, uma experiência que de longe a
longe se repete, simultaneamente física e transcendente, e de que pela
primeira vez tive consciência através do que chamarei o seu aspeto
negativo.
223
Muitos anos atrás encontrava-me num bairro em construção curioso de ver o
que dali a pouco seria a minha nova morada. As ruas achavam-se já
empedradas, os prédios quase acabados, em redor o silêncio do fim da
tarde quando o trabalho para. Em parte nenhuma sinal de gente. E nesse
momento tive a sensação muito nítida de que o meu corpo perdera o apoio.
A calçada existia, sólida, mas em vez de ter a certeza de que caminhava
sobre ela eu tinha a impressão de flutuar na vertical, a impressão de um
vazio perigoso, de um abismo sob os meus pés. Sentei-me no passeio e a
sensação desapareceu. Levantei-me de novo e ela retornou. Desde então
repete-se inesperadamente. Em certas ruas, mas também por vezes em
prédios, em casas que visito, como se nesses locais faltasse qualquer
coisa de essencial.
O aspeto positivo manifesta-se na aldeia, sobretudo numa rocha
sobranceira à vertente dum monte, que pelo panorama que dela se avista e
pelo inexplicável bem-estar que lá ressinto se tornou para mim lugar de
peregrinação. Calçados ou descalços os meus pés como que se lhe grudam,
ao mesmo tempo que me toma um intenso sentimento de plenitude e harmonia,
de serenidade, algo que, fosse eu crente, talvez pudesse comparar a um
prenúncio de êxtase.
Quinta-feira, 9 de Fevereiro — À fundação que me pediu a conferência
escrevi que me informassem se a ela se achava acoplado um honorário, e
que esperava deles que suportassem o custo da tradução do texto.
A resposta veio rápida: nem honorário nem custos; e a minha reação foi
também rápida: grato pela honra, mas desisto.
São sem conta as solicitações para que escreva isto e aquilo, e curioso o
facto de que na maioria desses pedidos nunca é feita qualquer alusão a
pagamento. Como se o escrever não fosse trabalho, mas um passatempo.
224
Sexta-feira, 10 de Fevereiro — Telefonema do Sociale Verzekeringsbank.
Que só apareço no Registo Civil desde 57. Mas eu paguei impostos desde
56, o ano em que aqui cheguei!
— Com o fisco não temos nada que ver e o senhor, não o fisco, é que é
obrigado a provar que pagou imposto desde esse tempo. Caso contrário
temos de lhe encurtar a pensão de reforma.
Kafkaiano. De fazer perder a cabeça. Atormenta-me a lembrança das
misérias que sofri nas garras dum fisco que durante anos me perseguiu,
obrigando-me a que pagasse imposto sobre o que eu nunca poderia ter
ganho. Só por suspeita. E tive de pagar. Sem perdão. Com língua de palmo.
Como sempre em ocasiões assim dá-me vontade de me esconder, de fugir e de
apagar o passado. Parecerá exagero, mas não é. Dói-me como eu não supunha
que recordações dessas
ainda pudessem doer.
Sábado, 11 de Fevereiro — Instantâneo a preto e branco: Ele imita.
Desaforadamente. E com tão pouca arte que nos seus textos, nas suas
polémicas, nas suas críticas e artigos, não custa a descobrir onde foi
buscar a inspiração ou quem lhe serviu de exemplo, tão visíveis são as
«assinaturas» na manta de retalhos da sua prosa.
Em nada é original, mas num detalhe consegue ser consequente: cada página
que escreve abarrota de nomes. Nomes de vivos. Esporadicamente um morto
famoso, que ele trata então com a familiaridade sobranceira que os
eleitos usam entre si.
Porque há pouco quem não goste de ver o nome no jornal, essa sua
estratégia deu fruto e ele, em questões de literatura, à força de nomear
os outros, tornou-se, senão autoridade, pelo menos uma presença.
Medo de que alguém o ataque não deve ter, pois há muito está provado que
é possível copiar e plagiar impunemente. Fora disso, os que ele com
assiduidade nomeia e incensa, e os que esperam que ele um dia os venha a
nomear e a incensar, pronto sairiam a defendê-lo.
225
Contudo, porque não lhe falta inteligência, deve viver em tormento.
Quando se arriscou pela primeira vez a entrar no edifício da literatura,
a sua ambição era de um dia subir aos andares de cima. O que é louvável e
natural. Mas a falta de talento e de carácter empurraram-no
impiedosamente para a cave e lá se mantém. Servente da fama alheia.
Talvez com a secreta esperança de um dia chegar a mordomo.
Domingo, 12 de Fevereiro — Ao domingo quase se pode acertar o relógio
pelas Testemunhas de Jeová. Para minha surpresa alternam os portugueses e
os holandeses. Todos exemplarmente bem-falantes e bem-educados. Que
querem falar comigo do futuro em relação com a Bíblia. Calmo e bem-
educado respondo-lhes que não quero falar do futuro nem da Bíblia, e
desejo-lhes um bom dia. Eles retribuem com o mesmo desejo, mas perguntam
se não gostaria de ler a Torre da Vigia. Agradeço, digo que não. Insistem
ainda se realmente estou certo de que não quero falar do futuro. Repito
que não quero e fecho a porta, porque aí já a minha paciência e boa
educação pendem por um fio.
Segunda-feira, 13 de Fevereiro — Era um desejo que eu tinha: ver a cidade
do ar. Mas surpreender as minhas filhas, nessa altura pequenas ainda, foi
o argumento que encontrei para desculpar que o fazia mais por mim próprio
do que por elas. E uma tarde fomos para Schiphol, donde então num Dakota
ronceiro se faziam voos de quase uma hora sobre os canais, os monumentos
e o porto.
Quando lá chegámos éramos os últimos na bicha e, infelizmente, ao chegar-
nos a vez o último bilhete tinha sido vendido. A nossa deceção deve-lhe
ter parecido tão grande que a bondosa rapariga da bilheteira disse que ia
dar um jeito e dali a pouco convidavam-nos a pelo mesmo preço voarmos num
avião de quatro lugares. De facto com o piloto éramos cinco, mas como as
crianças pesavam pouco disse ele que não
226
importava e a mais pequena iria atrás, no compartimento da bagagem.
Com alguma surpresa vi-o abrir um alçapão na carlinga, enfiar por ele uma
Isabel risonha e fechar a tampa com um simples ferrolho. A curiosidade e
a excitação da descolagem distraíram-me um instante e começávamos a
aproximar-nos da cidade, quando olhando casualmente para as minhas filhas
me dei conta que as duas mais velhas iam confortavelmente sentadas, e que
a pequenita, por não ter assento, ia em pé, agarrada a um rebordo da
janela.
Eu não tinha ousado falar ao piloto da preocupação que me tomara, mas de
súbito o meu estômago revirou. A chapa da tampa que suportava a minha
filha e abria para fora era menos espessa que o cartão, e o único
ferrolho, semelhante ao de uma porta, provavelmente deslizava com os
choques e as vibrações.
Voávamos sobre Amsterdão, mas isso deixou totalmente de me interessar.
Para meu terror e delícia das crianças o piloto fazia voos picados
seguidos de curvas apertadas, uma asa virada para a terra, a outra a
apontar o céu.
Tenso como não recordava de jamais me ter sentido, os olhos cravados na
pequenita, eu tocava-lhe de vez em quando a mão, na esperança fútil de
que se a tampa rachasse ou o ferrolho abrisse, eu a pudesse agarrar.
Senti-me assassino por descuido, sofri o remorso de quem sabe que está
prestes a acontecer uma tragédia e nada faz para evitá-la. A minha filha
poderia a cada momento despenhar-se, morrer, e eu, em vez de pedir ajuda
para o perigo iminente tremia de medo e cobardia, incapaz de articular
uma palavra.
Da cidade que tanto desejara ver apercebi apenas vislumbres e quando no
aeroporto saímos do avião, mesmo depois de passado o perigo o meu tremor
continuou: a tampa era realmente tão frágil que vergava ao fechar e o
ferrolho uma espécie de prego enfiado numa anilha.
Há acontecimentos piores da minha vida que consegui empurrar para o fundo
da memória. Este não.
227
Terça-feira, 14 de Fevereiro — Escrever não é só contar, é também ajustar
contas e vencer medos, enraizar esperanças no chão da fantasia. Escrever
é sonhar. Escrever é cobrir de beleza a banalidade do dia-a-dia, é
aflição e repouso. É o jogo de um único jogador que simultaneamente
ganha, empata e perde.
Notícia triste a meio da tarde: Ischa Meijer faleceu de um ataque a
caminho do hospital. No aniversário dos seus cinquenta e dois anos. Para
quem conhecemos do dia-a-dia e da televisão, uma morte assim parece
dupla.
Quarta-feira, 15 de Fevereiro — Certezas não tenho, só suposições; ou
talvez nem sequer suposições, mas apenas a vaga esperança de que os
nossos olhos sejam incapazes de ver tudo
e a mente uma espécie de scanner pouco sofisticado. Por isso me acho tão
aberto à existência dos ultraterrestres, como a aceitar desaparecer sem
rasto na poeira cósmica; a no momento seguinte ao da morte voar pelo
túnel luminoso que leva ao Além; ou ir-me lentamente transformando na
podridão pegajosa de que se alimentam os vermes.
A certeza de morrer não me assusta, nem as questões teológicas me
perturbam o descanso, sim a impossibilidade de conciliar o sonho com o
comezinho da vida.
Quinta-feira, 16 de Fevereiro — A minha capacidade culinária não aumenta,
nem dá para vaidades. Mesmo com boa vontade para aprender, o preparar e
fritar verdadeiramente bem a carne é uma arte subtil e difícil, o peixe
requer cuidados que não sou capaz de lhe dar, e pelas verduras tenho
pouca simpatia. De modo que o meu destino culinário vai talvez ficar pela
carne picada, as bolas de carne, o esparguete e as três variedades de
arroz que consigo fazer com algum desembaraço.
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Sexta-feira, 17 de Fevereiro — Fernando Pessoa, que era genial, foi
descolando os heterónimos que se lhe tinham pegado à alma e conseguiu
«arrumá-los» ordenadamente, dando a cada um deles uma biografia e uma
forma de arte própria.
Fosse eu também genial. Quando me perguntam se depois destes anos todos
me sinto mais holandês que português, fico estranhamente confuso. Embora
verdade, pareceria de louco ou de pretensioso se respondesse com as
muitas dúvidas que tenho acerca de quem realmente sou. Quanto a sentir-me
mais de lá ou mais de cá, creio que me tornei duas pessoas distintas, e
que a cada uma delas se agarram farrapos da alma e até do corpo da outra.
Infelizmente, ao contrário de Pessoa, nunca serei capaz de as descolar do
eu em que tão incertamente existo.
Sábado, 18 de Fevereiro — A Myrthe chegou para passar connosco o fim de
semana e atarefamo-nos a pôr o que é frágil longe do alcance das suas
inquietas mãos.
No meu papel de avô empurro-a no carrinho até à «quintinha infantil» e,
modelar de paciência, aponto as vacas, os cavalos, os patos, os coelhos,
os pavões, os perus, as cabras, o porco. Ela ouve, repete, mas a sua
atenção é fugaz. Brinca com o entusiasmo do seu ano e meio, e corre, cai,
caminha, tropeça, volta a cair. Eu acudo, levanto-a, vejo-a correr de
novo e espero que caia. Não cai. Volto a sentar-me, distraio-me um
instante, e quando olho já se estatelou outra vez.
Noite de alerta, pelo receio de que ela estranhe o lugar e não durma bem;
a preocupação que dá um curto choro causado talvez por qualquer sonho; a
inquietude de ouvir que por momentos respira com dificuldade.
Domingo, 19 de Fevereiro — Pequeno-almoço a três na cama e depois horas a
montar blocos de Lego, a recortar pássaros de papel (o que para minha
surpresa ainda sou capaz de fazer), e a desenhar máscaras. À tarde
voltamos à «quintinha»
229
e de novo vou apontando as vacas, os cavalos, os patos, os coelhos, os
pavões, os perus, as cabras, o porco. E ela corre, tropeça, cai,
choraminga. Apresso-me a acudir-lhe, mas já ela ri. Volto a sentar-me,
derreado com o exercício.
Segunda-feira, 20 de Fevereiro — Nos últimos tempos vi uma ministra a
cantar com voz de falsete um dueto num palco, vi uma outra a dançar a
polonesa, um ministro vestido de cobói tentando segurar-se sobre um potro
mecânico. Lembro-me também de ter visto um ministro disfarçado de
arlequim a deslizar por uma rampa e outro atirar-se vestido para dentro
duma piscina.
É facto que a procura do favor do público nas campanhas eleitorais tem as
suas exigências, e tempo de antena só o ganha quem se excede. Mas que
garantias pode oferecer uma sociedade governada por palhaços?
Terça-feira, 21 de Fevereiro — Eles conversam, dizem coisas filosóficas,
põem a máscara da inteligência, a do espírito, e de súbito apercebemos a
caveira da realidade no riso sem queixais, naquela ponta de cáries, na
pedra que lhes borda as gengivas.
Cobrem-se com o fato apropriado, mas deixam-se trair pelo sapato que
camba, o salto gasto. Preocupam-se com a metafísica, os dramas da fome, e
usam botinas frívolas com embutidos e correias, ponta em bico, tacão
desbastado.
O calçado e o estado da dentadura — dois fascinantes reveladores da
personalidade.
Quarta-feira, 22 de Fevereiro — Estamos sentados a uma mesa do clube
artístico Arti 8c Amititiae. A segunda garrafa de vinho vai meada e ele
conta.
Pela primeira mulher apaixonou-se com o entusiasmo romântico da
juventude, imaginando tesouros onde só havia vazio, descobrindo depois
como a incompatibilidade dos caracteres e dos corpos se transmuda
lentamente em ódio.
230
A segunda traía-o. Sem malquerença, só porque tinha o adultério no
sangue. Quis aceitar, compreender, esperançado de que um dia mudasse, mas
em vão: ela era a borboleta da fábula, esvoaçando ao acaso, colhendo gota
aqui gota ali.
Desesperado, lembrava-lhe que era preciso criar alicerces, pensar no
futuro. Por vezes nessas ocasiões ela segurava-lhe as mãos, levava-as aos
lábios, e no dia em que se divorciaram surpreendeu-o ao dizer-lhe numa
repreensão tema:
— Não é culpa tua, mas nunca serás capaz de compreender.
Conheceu depois a domesticidade. A vida regular da casa arranjada, da
mesa posta, das compras ao sábado, do sexo ao domingo. Do gato e do
jardim. Das férias na praia. Das visitas, dos aniversários. Das idas a
Zwolle, onde os sogros moravam.
Cerrava os olhos com os punhos, no desejo inconsciente de fazer parar o
tempo. Para onde foram os meus sonhos? Que aconteceu à aventura? Deus de
misericórdia, é isto a vida?
Ela morreu como tinha vivido, calma e insignificante, e ele surpreendeu-
se de não sentir dor, nem saudade, nem sequer pena. Mesmo a lembrança que
se pegava aos móveis e aos objetos desvaneceu ao mudar de casa.
Quando julgava tudo perdido, tudo acabado, o sonho inesperadamente
realizou-se e a aventura veio. Com a embriaguez
dos sentidos e as loucuras de que nunca poderia ter gozado tão
intensamente se por acaso as tivesse conhecido na mocidade.
Tentou tudo para que ela ficasse: prendê-la com afeto, seduzi-la com
promessas, comprá-la com luxos. Mas também esta era borboleta e, além
disso, jovem de mais para se sujeitar a prisões. No dia em que pela
última vez a apertou nos seus braços, não se conteve e chorou lágrimas de
raiva. As lágrimas de melancolia vieram mais tarde, com a certeza de que
o curto
ano de felicidade nunca se viria a repetir.
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— É como lhe disse há bocado e você, escritor, deve compreender: a minha
vida conta-se em quatro mulheres. Três capítulos e um posfácio.
Quinta-feira, 23 de Fevereiro — Li-o faz tanto tempo que releio agora com
a surpresa da novidade o estudo biográfico que Stefan Zweig fez de
Fouché, o homem totalmente destituído de carácter, o traidor e
sobrevivente por excelência.
Uma citação: «Les artistes n3ont toujours fait qu3accuser Vexil, comme
une interruption apparente de Vessor, comme un intervale sans utilité,
comme une cruelle rupture. Mais le rythme de la nature veut ces cesure
violentes. Car celui-là seul connait toute la me qui connait
l’infortune.»
Pessoalmente e infelizmente conheci-os ambos, o exílio e o infortúnio,
mas não creio que nem um nem outro me tenham ensinado a conhecer a vida.
O mais que sei dela aprendi-o comparando-me aos meus semelhantes e
descobrindo que nasci com os mesmos aleijões que a maioria também tem.
Com uma diferença: eles parece que são capazes de ignorar os seus,
mas os meus como que doem a dobrar.
Sexta-feira, 24 de Fevereiro — Se as raízes da minha existência e da
minha sensibilidade estão na aldeia, na essência sou homem da cidade e só
nela me sinto viver plenamente.
Talvez pelo isolamento, é na aldeia que conheço instantes em que os
sentimentos e as sensações parecem vir do mais íntimo; mas o que existe
em mim de entusiasmo, força, vontade de criar, somente acorda ao contacto
da maravilhosa diversidade da urbe.
Sábado, 25 de Fevereiro — Depois de enviuvar algumas mulheres caem numa
estranha forma de idolatria. Dias depois dele morrer ela colocou no hall
da casa, sobre um sofá, bem no centro, o seu guarda-chuva, o seu chapéu e
as suas luvas. Nota-se uma certa artisticidade no arranjo dos objetos, no
232
modo como o chapéu repousa em diagonal a meio do guarda-chuva e junto das
luvas, que de tão lisas parecem ter sido passadas a ferro. Mas é tétrico
e desagradável. Entra-se a porta e tem-se a impressão de que o falecido
se nos impõe.
Minha mãe guardou os fatos de meu pai e a capa alentejana que ele gostava
de usar no Inverno, pesada de lã espessa e com gola de pele de raposa.
Um dia que a despendurei ela veio a correr com a aflição de quem assiste
a um sacrilégio. Mostrei-lhe os estragos da traça, que em dez anos tinha
roído metade do tecido.
— Era melhor deitá-la fora, porque com a humidade é um viveiro de
bicharia — sugeri, certo de que ela ia concordar.
Mas raro a vi mais decidida e imperiosa do que nesse momento. A capa
estava ali, ficava ali, e os danos não eram por aí além, com mais bolas
de naftalina a traça desaparecia.
Procurei chamá-la à razão, mas de nada adiantou. Mesmo caindo aos bocados
a capa continua pendurada, símbolo do homem que amou, do seu senhor, do
rei da terra.
Domingo, 26 de Fevereiro — Só o conheço de vista e talvez por isso quando
o encontro sempre tenho de sorrir, tão visível é o esforço que faz para
que o tomem pelo que quer aparentar. E o que ele quer aparentar é o
professor inglês de meia-idade, ligeiramente desleixado, usando fatos dum
tweed tirante a verde, pulôveres de lã grossa à moda dos anos trinta e
sapatos daquele vermelho que hesita entre o roxo e o sangue de boi. Num
fingimento de excentricidade que se lhe tornou natural, ao caminhar olha
vagamente em frente e sorri, ao
mesmo tempo que mexe os queixos como quem masca. De vez em quando tropeça
e se alguém de repente se lhe dirige dá a impressão de não ter ainda
acordado.
Já mo quiseram apresentar, mas não aceitei, porque se o conhecesse
pessoalmente com certeza compreenderia os seus tiques e acabaria por
matá-lo: não como pessoa, mas como personagem.
233
Segunda-feira, 27 de Fevereiro — O que me diverte: ver Martin Ros na
televisão de braços erguidos, os olhos a rebolar, a voz escorregando para
o falsete no entusiasmo de elogiar um livro.
O que temo: ver um dia Martin Ros na televisão de braços erguidos, os
olhos a rebolar, a voz escorregando para o falsete no entusiasmo de
elogiar um livro meu.
Terça-feira, 28 de Fevereiro — Digo que nunca ainda tive uma doença séria
e ele, em vez de se congratular, olha-me sombrio e comenta que são as
pessoas como eu que, quando menos se espera, caem redondas.
Não sei que responder. Doentio como é, com certeza exorciza assim os seus
próprios medos. Mas tenho a impressão de que o seu lado perverso gostaria
de naquele momento me ver estrebuchar nas vascas de um ataque. E
calmamente, sorrindo, falando disto e daquilo, ganho-lhe ódio.
Quarta-feira, 1 de Março — Acontece, custa a crer, mas custa ainda mais
engolir a surpresa sem a gente se engasgar.
Ele precisava de saber de mim umas informações e gentilmente telefonou-me
a pedir que nos encontrássemos no seu escritório. Acrescentou ainda que
dada a hora marcada para o encontro, a uma, iríamos de lá comer uma sande
a qualquer parte.
Saímos para a rua e ele pergunta-me:
— Quer um almoço quente ou frio?
— É-me indiferente. Escolha você.
— Ah! Mas é que eu não vou comer nada — responde ele.
— Ando a seguir uma dieta para emagrecer.
Surpreso a ponto de por momentos perder a fala, acabei por «almoçar» um
café e um copo de água.
Quinta-feira, 2 de Março — Longe de mim desdenhar do conforto. Longe de
mim também pretender que quanto mais
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primitivas as circunstâncias, maior a virtude que encerram. Existe
contudo um mundo de diferença entre o que sinto quando na arruinada casa
de minha avó estendo as mãos enregeladas para a lareira — uma fogueira
sobre uma simples placa de granito enegrecido pelo fogo e pelo tempo — e
os pensamentos que neste momento me ocorrem, sentado no chão e as costas
contra o radiador do aquecimento central.
Sexta-feira, 3 de Março — No meu dia-a-dia atual converso pouco e só com
três ou quatro pessoas. Talvez por isso, no contacto com estranhos dou-me
conta de que há alturas em que são em mim deficientes aquelas tournures
de phrase com que o falante assinala acompanhar a evolução da sociedade.
Numa época da minha juventude tendi para inconscientemente utilizar a
fraseologia política e sociológica da época, mas quando disso me apercebi
descartei-me dela como duma inconveniência. E desde então tenho feito o
possível para usar as palavras depuradas de enfeites, evitando
cuidadosamente modas e maneirismos.
Porém, se essa é uma boa regra para língua escrita e pode ser aceitável,
como tique pessoal, no círculo restrito da intimidade, a língua falada
durante os contactos sociais serve outros propósitos, tem ritmos
diferentes, baseia-se em convenções que até certo ponto é necessário
aceitar.
Infelizmente, porque nem sempre sei como seguir essas convenções e o meu
retraimento vai aumentando, as conversas que tenho com estranhos resultam
por vezes em exercícios absurdos: eles com o sentimento de que eu
descarrilo, eu com a impressão de que me falam em código.
Há ocasiões em que, porque um desconhecido me cumprimenta, fala dum livro
meu ou me escreve uma carta, tenho a ilusão de que não sou por inteiro
anónimo.
Hoje ao findar da tarde recebo um telefonema do correspondente da RTP
(Rádio Televisão Portuguesa) em Bruxelas,
235
que quer fazer já já na segunda-feira próxima um «retrato» televisado
deste português na Holanda. Mas não fosse o terem-lhe na Embaixada
sugerido o meu nome, ele, há vinte anos correspondente da RTP no Benelux,
ex-morador de Amsterdão, casado com uma holandesa, nem sequer sabia da
minha existência.
E deste modo retorna a gente à humildade que a ilusão por vezes
brevemente nos faz esquecer.
Sábado, 4 de Março — A preferência dos escritores e também a dos leitores
vai na Holanda para os temas da filosofia e da metafísica, os achaques da
psique, as elucubrações sombrias sobre o existir.
Assim, por falta de solo propício em que deite raízes, a narrativa é na
literatura holandesa uma planta murcha. E o que noutras terras seria um
cumprimento, dizer dum homem de letras que é um narrador, aqui quase
equivale a chamar-lhe enzoneiro.
Porque, regra geral, o narrador se vale de metáforas e quanto mais
profundo o tema mais ele o envolve em fantasias, deduzem daí os simples
que a expressão do seu talento não pode ser outra coisa senão um
encadeamento de habilidades.
Domingo, 5 de Março — Instantâneo a preto e branco:
Para gente como ele o espelho de nada adianta, porque o seu ego só lhe
deixa ver a ilusão que criou de si próprio.
Alto, magro, grisalho, sessentão, veste com mais cuidado que bom gosto.
Camisas de seda, gravatas de seda. Os seus sapatos rebrilham. Um barbeiro
capaz esponta-lhe semanalmente a cabeleira. Audemars Piguet com pulseira
de ouro maciço. No pulso direito um amuleto mexicano. Usa as unhas
longas, cortadas em bico e, num gesto de coqueteria antiga, bate na
do polegar o cigarro antes de o meter na boquilha de marfim.
A sexta-feira, ao fim da tarde, visita regularmente o mesmo bar. Só bebe
uísque. O seu sonho secreto é de um dia vir a ser
236
ministro e quando fala de política ou negócios de dinheiro vesse-lhe nos
olhos um curioso brilho.
Caminha pausadamente de cabeça erguida e um ligeiro gingar de nádegas que
numa anciã passaria quase por sensual.
Aliás, examinado em detalhe ou tomado em conjunto, todo o seu ser é
feminil: a finura da pele, o olhar, os gestos, a boca franzida num esboço
de sorriso, o tom de voz, o modo como ouve, uma certa falsidade, o veneno
do carácter.
— Levando em conta o meu modo de ser e as coisas que acho realmente
interessantes, se tivesse de me definir — diz ele, convencido da sua
objetividade — creio que no fundo sou mesmo o que se costuma chamar a
man’s man.
Segunda-feira, 6 de Março — Que diferença entre os nervos da minha
primeira passagem pela televisão, nos fins da década de sessenta, e o
«retrato» que a equipa da RTP veio fazer hoje.
Câmara de frente, câmara de lado, long shot, close-up, luzes, microfone,
na verdade nem sequer me dou conta do cameraman ou do homem do som.
Respondo às perguntas que me fazem, ando quando me pedem para andar,
sento-me se querem que me sente, debruço-me pensativo na ponte dum canal,
falo em frases claras e bem articuladas sem sombra de excitação.
O próprio entrevistador estranha, diz que em geral as pessoas se agitam
defronte da câmara, e quer saber donde me vem tão grande calma.
A ele, que é correto e competente, não me parece delicado dizer que de
facto me estou nas tintas para a televisão, e que não será o «retrato»
que vai diminuir ou aumentar o valor do trabalho que faço, dar-lhe
projeção ou modificar a minha pessoa. Mas como de algum modo tenho de lhe
responder, digo-lhe que a minha calma vem da idade e do hábito, o que
também não é totalmente mentira.
237
Terça-feira, 7 dê Março — Aos que amo sou capaz de falar das minhas
emoções e dos meus sentimentos. Raramente, mas sou capaz. Para com os
mais mantenho-os sob ferrolho, e a cordialidade que por vezes aparento é
um biombo trompe-l’oeil a tapar a alcova onde os escondo.
Houve tempo em que julguei que fosse essa a maneira do meu carácter, mas
hoje estou menos certo que assim seja, e creio mesmo que talvez se trate
em parte de uma deformação. Porque para mim, escritor, as minhas emoções
e sentimentos são a matéria bruta que inconscientemente vou em
permanência desbastando, afeiçoando, até que deixam de me pertencer em
exclusivo e se tornam também as emoções e sentimentos das personagens da
minha ficção. Por isso o falar deles, desses sentimentos, o analisá-los,
explicá-los, revelar-lhes as fontes ocultas, tomaria aos meus olhos a
forma de uma dupla deslealdade.
Quarta-feira 8 de Março Ontem contaram-me que ele acaba de comprar uma
casa de um milhão e que a mulher, como que a desculpar-se, explicou que é
grande de mais para um casal sem filhos, mas que ele necessita duma
moradia assim para satisfazer o seu ego.
O ano passado, numa festa, um outro falava-me entusiasmado da sua mudança
para uma casa de meio milhão.
— Mas a antiga era bonita, espaçosa — comentei.
E antes que ele pudesse reagir, a mulher ironizou:
— De facto era. Só que o ego do senhor não cabia lá.
Curiosos egos, pobres maridos que as mulheres «folheiam» como um livro
aberto.
Quinta-feira, 9 de Março — Porque não tenho irmãos nem irmãs e as minhas
filhas nasceram em Amsterdão, quando morrer termina comigo a geração que
durante séculos viveu, procriou e mourejou naquele pedaço de terra
portuguesa a que tão intensamente quero.
238
Pouco, quase nada, resta da memória desses antepassados. Na igreja, o
assento dos nascimentos, casamentos e mortes, só começou em 1700. De data
mais remota é o cemitério velho, que foi talvez árabe, com pedras soltas
a indicar as campas e em parte nenhuma um nome ou uma data, porque cada
um sabia onde tinha enterrado os seus defuntos. Os muros e os restos de
habitações pré-históricas testemunham uma época tão longínqua que preciso
da imaginação para me convencer de que um elo invisível me une aos que aí
viveram há milénios.
Seja como for a geração acabará comigo e, para que o círculo se feche,
quero que me enterrem lá os ossos.
Sexta-feira, 10 de Março — Nem sempre o consigo, mas tento seguir o
preceito de que «os jovens devem viver como se cada dia fosse o último da
sua vida, e os velhos como se tivessem diante de si a eternidade».
Por isso o que realmente me perturba não são as incógnitas do futuro, sim
os maus momentos do passado. Recuso afligir-me com as misérias que
poderão vir, mas não tenho poder para escapar à máquina que sem descanso
me obriga a assistir ao filme da vida que vivi.
Sábado, 11 de Março — O desconhecimento da Bíblia pode acarretar curiosas
consequências para o vocabulário do estrangeiro na Holanda. Parece que se
faz nela referência a uma «lei dos Medos e dos Persas» («Wet van Medert
ett Perzen») e eu, confundindo a fonética, durante anos julguei tratar-se
de uma hipotética «Lei de Medir e Prensar» («Wet van Meten en Per sen»),
a qual, no meu parecer, ilustrava perfeitamente as necessidades de uma
sociedade mercantil implantada num pequeno território.
Domingo, 12 de Março — Não, nunca serei capaz de como H.F. Amiel (1821-
1881) no seu Journal Intime (dezassete mil páginas!) mergulhar numa
introspeção dolorosa até às
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profundidades do «eu» e concluir: «]e suis fluide, négatif, indécis,
infixable, et par conséquent je ne suis rien.»
No mais fundo que consigo mergulhar no meu íntimo não encontro, como
Amiel, a água límpida dum panteísmo idealista, mas a turvação em que os
meus raciocínios, memórias e sensações se agitam com a turbulência de
larvas num lamaçal. Fosse eu nada, e teria paz; as preocupações nascem da
incerteza de não descobrir quem verdadeiramente sou.
Segunda-feira, 13 de Março — A maior parte do meu tempo de vida militar
foi passada a carimbar e catalogar livros sobre Napoleão que a Biblioteca
do Exército tinha comprado ou recebido em dádiva e se amontoavam em rimas
num corredor.
Mas logo nos primeiros dias me pareceu, e o chefe concordou, que apor o
carimbo e preencher a ficha não bastava: para escrever o catálogo seria
conveniente ler, ou pelo menos folhear, a obra em questão. Devo ter
folheado e lido centenas, senão milhares de estudos, ensaios, análises
históricas, bélicas, estratégicas e políticas, descrições detalhadas de
amores imperiais, de batalhas, os relatos de como Bonaparte acabara em
Santa Helena.
Nessa altura não prestei atenção, mas mais tarde ocorreu-me que Napoleão
se entrelaçava curiosamente na minha vida. Antes de eu nascer o meu avô
paterno recortara durante anos de O Primeiro de Janeiro, o seu jornal
favorito, folhetins sobre a vida, os amores, as guerras e o fim do
imperador. Atados e encadernados formavam vinte e dois volumes, tão
grossos e pesados que eu precisava de ajuda para os pôr sobre a mesa.
Esses li-os todos e, se bem que para mim nesse tempo em grande parte
incompreensíveis, achei-os tão absorventes como os livros de Salgari. Na
idade em que os meus companheiros falavam de Jesse James, Yala, a
Vingadora, o Capitão Rob, e Sandokan, o Tigre da Malásia, eu maravilhava-
me com as façanhas dos marechais do Império e odiava em segredo Josefina,
Fouché e Talleyrand, para mim fautores da desgraça do
240
grande homem. Sir Hudson Lowe, seu carcereiro em Santa Helena, comparava-
o eu no meu desdém de criança aos ingleses que via sair dos escritórios
das firmas de vinho do Porto: tesos e ridículos, sempre de chapéu de coco
como se fosse Carnaval e de guarda-chuva enrolado, mesmo no pino do
Verão.
Longe no passado, ambas essas fortuitas andanças do acaso tornaram-me um
razoável conhecedor de Napoleão e da sua época. Mas hoje esse
conhecimento acanha-me, porque me
recorda o tempo em que eu tinha heróis e acreditava no extraordinário dos
seus feitos; e simultaneamente torna-me melancólico, pois embora a
história continue a ter tragédias, perdeu para sempre a grandeza.
Terça-feira, 14 de Março — A associação, se bem compreendi, é cultural,
intelectual, artística, ligada a uma universidade e interessada nos temas
europeus, terceiro-mundistas, mundiais, universais, filosóficos e coisas
assim elevadas.
O presidente telefona-me e explica que a associação prepara uma semana
europeia e quer convidar para um congresso um certo número de artistas,
escritores e intelectuais europeus.
Para falar na abertura das sessões lembraram-se de mim e dada a
importância dos mais participantes ele não duvida que vou aceitar, mas há
ainda um ponto que quer esclarecer:
— Só sei que o senhor é português e escritor, mas gostava que me dissesse
o que é que escreve, porque não faço a mínima ideia.
Que resposta se pode dar a semelhante parolo senão mandá-lo sem mais
àquela parte? Mas não mandei. Disse-lhe que não estava disponível.
Quarta-feira, 15 de Março — Uns vão à índia, outros partem para a
Califórnia, o Peru, a Patagónia. Viajam para o Alasca, a Austrália e as
Aleútas. Os que no ano passado estiveram em Banguecoque vão passar o
próximo Verão em Nova Iorque e o Inverno seguinte em Miami.
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Num mundo transformado em perpetuum mobile a minha existência é quase
estática. Nunca vi as pirâmides de Gizé nem o Kremlin, nunca fui a
Atenas, nunca fui ao Japão, nem sequer a Londres ou à Escócia, não viajei
no transiberiano. De facto pouco mais conheço do planeta do que o que me
mostra a televisão e, no Outono da vida, é isso que melhor me convém: em
vez de me incomodar com as cruezas e os desconfortos da realidade posso,
quando quero, manter inteiras as ilusões da meninice.
Quinta-feira, 16 de Março — Mary Wings, escritora americana, viveu aqui
uns anos e notou que o «calvinismo intelectual» caracteriza o clima
social na Holanda e que «Amsterdão é uma cidade tolerante, mas nela não
existe o que se se chama uma mentalidade franca. Quem quer pertencer a um
grupo tem de adotar os respetivos códigos, usar os sapatos recomendados e
as blusas prescritas. Quem o não aceitar é posto de lado».
O que ela diz não é de facto novo, pois em toda a parte o grupo exige em
certa medida a uniformidade. Mas o que a surpreende é o mesmo que me
surpreendeu a mim: em Amsterdão os grupos, pelo menos os intelectuais,
dão ao recém-chegado a ilusão de que aceitam e até se congratulam com o
seu individualismo — mas isso é só enquanto o estudam como animal
exótico. Terminada essa fase, adeus tolerância: ou ele se conforma à
norma e ao ritual ou «cai fora».
Sexta-feira, 17 de Março — Ela é portuguesa e daquele tipo de gente que
parece fazer num dia o dobro ou mais do que consegue a mediania dos
humanos. Casada, com filhos, dirige uma empresa, dá aulas, escreve prosa
e poesia, desenha, canta num coro, ajuda os compatriotas desorientados
pelo torvelinho das instituições e dos regulamentos holandeses...
Conversamos em Arnhem e porque falamos na nossa língua — um circunstante
curioso quer saber se somos polacos
242
— é como se estivéssemos numa ilha. Oiço-a com um misto de inveja e
admiração, faz-me sentir remorsos da minha preguiça inata, do sem-número
de dias que deixo passar vazios.
Julgo que deve ter a idade das minhas filhas e, como por telepatia, ela
pergunta-me quantos anos tenho. Quase sessenta e cinco. Como o pai dela.
Fica um instante silenciosa e diz-me então que lhe causa uma grande
tristeza que o pai, depois de quase quarenta anos de casamento, se tenha
apaixonado por outra mulher. Se eu compreendo e acho normal. Se me parece
bem.
De súbito sinto-me transportado para um tribunal onde ela é o advogado de
acusação, eu a testemunha obrigada a depor. E cedo à fraqueza a que
obrigam as convenções, digo-lhe que
de facto não compreendo, que não me parece bem.
A caminho de casa a tempestade sopra forte, a chuva escurece tudo em
volta e torna a estrada um charco. Rodo devagar, crispado, com tempo de
sobra para repensar as razões ocultas da minha cobardia.
Sábado, 18 de Março — Triste de ver: um melro com as asas roídas e o
corpo quase sem penas, parado na borda do caminho como quem espera ajuda.
A ajuda que não sei nem lhe posso dar.
Domingo, 19 de Março — Conheci reveses, anos maus, mas fazendo o balanço
não tenho razão de queixa: a vida nunca me foi pesada durante mais tempo
do que aquele que as minhas forças podiam suportar.
Talvez por isso, ou talvez porque a alma tem os seus momentos de loucura,
há ocasiões em que anseio que me aconteça um grande desastre, uma
tragédia, para então poder tomar a verdadeira medida de mim próprio.
Mas anseio mesmo? Ou estou a fazer um daqueles exercícios mentais sem
consequências que ajudam a passar a tarde de domingo?
243
Segunda-feira, 20 de Março — A minha biografia conhece várias versões. A
mais curta, resumindo os pontos altos e baixos, cabe numa folha de papel
— lamentável, para sessenta e cinco anos de vida.
Terça-feira, 21 de Março — Um padre português, historiador, que vive em
Macau há mais de sessenta anos, revelou que na década de quarenta se
comia carne humana nos hotéis e restaurantes da colónia. «O Hotel Central
comprava crianças; depois de as engordar cozinhava-as e servia a carne
aos clientes.»
Outro historiador corrobora o acontecido, acrescentando que no
restaurante Golden Gate, então o mais frequentado, os clientes «iam lá de
propósito para saborear katn mun chok, uma canja feita com pedaços de
carne humana, designadamente de bebés».
Duas vezes escrevi esta nota e duas vezes a risquei, talvez pelo desejo
inconsciente de assim eliminar o facto. Escrevo-a de novo, sem saber se o
que mais me perturba é a repugnância ou a perversão do refinamento. Ou o
fascínio doentio que causa o que fica para além dos limites que nunca
conseguiremos ultrapassar.
Quarta-feira, 22 de Março — As horas mais amargas e melancólicas da minha
vida conheci-as durante a juventude, nos meus anos de Lisboa. Há lá ruas
por onde ainda hoje não passo sem sentir um baque no coração, como se
continuassem presentes os temores do passado. Certos jardins e miradouros
de bela paisagem só despertam em mim lembranças de desespero.
Algumas noites debrucei-me como tantos outros nos parapeitos do Terreiro
do Paço, a olhar a imensidão do rio, perguntando-me se valia realmente a
pena voltar ao meu miserável quarto de aluguer e à angústia de um viver
sem esperança,
244
ou se não seria melhor acabar ali mesmo, deixando-me escorregar para a
escuridão da água.
Não, Lisboa não é para mim um lugar alegre nem feliz. É uma cidade onde
tive medo e onde algumas vezes me senti morrer.
Quinta-feira, 23 de Março — Invejo os que se marcam um destino, escolhem
uma carreira, os que têm na vida um fito. Invejo os que são capazes de
dedicar anos a uma única tarefa, seja ela a construção de um veleiro
dentro de uma garrafa, a pesquisa dos abismos do oceano ou a contagem das
espécies de borboletas.
Invejo-os porque suponho neles uma força que não tenho, uma estabilidade
do ser que não conheço. Mesmo os livros que escrevi não me dão a ideia de
obra acabada, antes me parecem espasmos de um espírito que não sabe como
exprimir a sua inquietude.
Sexta-feira, 24 de Março — Ele é poeta, mas conta-me que a ambição que
sempre acarinhou e nunca realizará foi a de um dia ser compositor.
— Que sonho, compor uma sinfonia com o silêncio noturno das catedrais
vazias! Ser capaz de traduzir em música o amarelo vibrante de certos
poentes! Não achas que seria grandioso?
Aceno polidamente que sim, porque tenho a impressão de que estou a aturar
um louco manso e quero-me ir embora. Sinto-me exausto do esforço que faço
para não ser sarcástico.
Sábado, 25 de Março — «Mercado das Letras» no armazém Bijenkorf. Somos
mais de cinquenta, sentados atrás de mesas onde os nossos livros se
empilham. O público passa durante três horas, incessantemente, milhares
de rostos. De vez em quando alguém folheia um livro (para quê?), compara
o retrato do autor na contracapa com a cara da realidade, ou pede um
autógrafo, tira uma fotografia.
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À minha direita uma senhora especializada em obras de etiqueta. Ethel
Portnoy, à minha esquerda, diz que não aguenta tanto tempo sem fumar e
fuma às escondidas com uma satisfação de criança maliciosa.
Um colecionador não quer apenas um autógrafo, mas pede — não pede, exige!
— também um desenho. Como não quero nem sei o que desenhar, ele diz que
nesse caso também não precisa de autógrafo. Assim seja.
As balaustradas dos andares estão cheias de um povo que já se contenta
com olhar para baixo e ver tanta cabeça de escritor.
Domingo, 26 de Março — Chove, venta, faz frio. Falta a neve para que o
dia tenha tão mau cariz como aquele em que a minha vida radicalmente
mudou ao chegar a Amsterdão, faz hoje trinta e nove anos.
Segunda-feira, 27 de Março — Conhecemo-nos num jantar e achei-a
inteligente, simpática, vivaz. Contou-me a história da sua vida. De
estarrecer. Pobreza, violências, maus tratos, incesto, álcool, droga,
prostituição. Finalmente conseguira fugir para a Espanha e lá conhecera
um interregno de paz e felicidade.
Foi nesse tempo que começou a trabalhar para os jornais e escreveu o
livro que publicou há pouco. Mas logo depois nova reviravolta para a
desgraça: álcool, prostituição, droga. Um amante tinha sido assassinado à
faca e outro a tiro. O irmão suicidara-se de maneira bizarra em Utreque,
enforcado na janela dum segundo andar, as pernas a balouçar para a rua,
demorando a que alguém atentasse no acontecido. Arrasada do corpo e do
espírito tinha passado meses no hospital.
— E agora, como te sentes? — perguntei, a dar-me tempo de absorver aquele
rosário de tragédias.
— Mais ou menos. Tomo antidepressivos e vou aguentando.
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Quando nos despedimos desejei-lhe sinceramente boa sorte.
Isso foi semanas atrás. Hoje falei do caso a um jornalista que a conhece
e ele, em vez de se mostrar impressionado como eu esperava, desatou a
rir, quis saber se ela tinha bebido.
— O normal. Umas cervejas antes do jantar, depois uma garrafa ou duas de
vinho, calvados... Porquê?
— E que ela aguenta mal o álcool e quando bebe confunde tudo, inventa.
Sem malícia. Aliás a sua vida nunca teve nada de trágico e o que ela te
contou é o enredo do romance que anda a escrever.
Terça-feira, 28 de Março — Tal como somos, o mundo não pode passar sem
governos, polícias e exércitos. Não que eles garantam seja o que for, mas
porque mantêm viva a ilusão de que é difícil — não impossível — comermo-
nos uns aos outros.
O mundo também não pode passar sem religiões, pois só elas garantem a
esperança — verdadeira ou falsa pouco importa — de termos sempre à mão um
último socorro, uma última possibilidade de indulto.
Eu, porém, sem convicção que me ajude a confiar nas instituições
políticas, nem fé bastante que me embale com a existência do Além, vivo
um pouco como a clássica rolha sobre a inconstância das águas: boio
calmamente aqui, sou atirado para acolá, paro, giro, cai-me a onda em
cima, sopra-me a tempestade para longe, volto a boiar calmo.
Daí que consoante a hora e a disposição eu seja capaz de tudo justificar,
desculpar, defender: as guerras, as violências dos regimes, a atração das
seitas, as desigualdades sociais, as consequências da opressão, as
loucuras, os crimes. E de logo em seguida sentir contra tudo isso uma
sincera revolta.
Observo, mas não participo. E vou boiando. Tipo acabado do cidadão
supérfluo.
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Quarta-feira, 29 de Março — As casas têm jardim nas traseiras e entre os
jardins e o canal há um carreiro estreito por onde se chega à rua que
leva ao centro comercial. Sou o único passante e caminho por lá distraído
ao fim da manhã soalheira, quando de repente me dou conta dum movimento
numa das grandes janelas do rés-do-chão. A garotinha vê-me e sorri.
Mulata, dez ou onze anos, só de cuequinha, continua a dançar lubricamente
no peitoril, o seu palco, o cortinado a servir-lhe de pano de fundo.
Sorrio também e continuo a andar.
Quinta-feira, 30 de Março — Mesmo os gémeos nunca são idênticos, e ainda
bem, pois a menos que um meteorito esbarre com o planeta ou uma
catástrofe semelhante nos varra definitivamente dele, nunca faltarão
razões de nos maravilharmos com o género humano e a infinita variedade
dos seus sentimentos. A do orgulho, por exemplo. Há o orgulho clássico de
quem gerou um filho, plantou uma árvore e escreveu um livro. O orgulho
dos generais que venceram no campo de batalha e o orgulho dos que
venceram na vida, dos que fizeram descobertas essenciais, dos que
realizaram os seus sonhos. O orgulho dos heróis, dos capitães de
indústria. O orgulho dos campeões, dos que aprenderam a tocar trombone,
dos especuladores, dos confeiteiros...
A senhora foi deputada. Boa ou má, competente ou nulidade, não interessa.
O que me maravilha é que ela se orgulhe de ter sido a primeira pessoa a
usar a palavra «cona» num discurso no Parlamento.
Sexta-feira, 31 de Março — Amámo-nos apaixonadamente num Verão da nossa
adolescência. Esbelta, loira, rosto oval, olhos verde-esmeralda, a beleza
do liceu tinha desdenhado de todos os pretendentes e caído nos braços da
ovelha ronhosa que eu era. Amámo-nos apaixonadamente nesse Verão, mas
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a diferença social entre nós era tão grande que os pais, assustados, a
mandaram para um internato longínquo onde as freiras mantinham uma
disciplina severa.
Com muita dificuldade e usando de artifícios ainda conseguimos trocar
algumas cartas, mas logo nos demos conta de que uma paixão como a nossa
não tinha futuro. Depois o acaso fez com que um dia nos encontrássemos
numa estação à espera do mesmo comboio e durante a hora que viajámos
juntos voltámos a amar-nos apaixonadamente.
Quando nos despedimos não fizemos promessas nem chorámos lágrimas. Um
último beijo, um último aceno, ela desceu para o cais e, como eu lhe
tinha pedido, foi-se embora sem esperar pela partida do comboio que me
levava para longe.
Recebi hoje um cartão a anunciar o seu falecimento, mas curiosamente a
notícia não me chocou nem me fez entristecer. Quem morreu foi a mulher
casada, a mãe e a avó em que ela
se tinha tornado e que não conheci. A Maria Luísa, amor de um Verão,
esbelta, loira, rosto oval, olhos verde-esmeralda, continua a viver na
minha lembrança.
Sábado, 1 de Abril — Carta de minha mãe. Que estava à noite a ver as
notícias na televisão e de repente teve a surpresa de lhe aparecer o
filho no ecrã, no «retrato» que foi feito no princípio de Março.
Eu não lho tinha dito, para que no caso de não ser emitido não sofresse
com a desilusão. Mas alegrou-se ela, alegrou-se o povoado. Só que de tão
confundida com o ver-me inesperadamente não foi capaz de ouvir tudo o que
falei, contaram-lho depois os vizinhos. Todavia, como por milagre, ouviu
perfeitamente quando eu disse que queria ser enterrado na aldeia. E num
inconsciente acesso de humor negro acrescenta esta novidade: «Por acaso
andam agora a aumentar o cemitério.»
Domingo, 2 de Abril — Odeio o mar. Hoje pelo menos odeio-o. Noutras
ocasiões acho-o simplesmente desagradável.
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Opaco, gris, inquieto, barulhento com o constante marulhar da sua
rebentação, sempre ventania, aquela areia que torna incómodo o andar e
até o assento. Monstro viscoso, imprevisível, ao mesmo tempo dormente e
acordado, o mar é o contrário de tudo o que me atrai.
Segunda-feira, 3 de Abril — Instantâneo a preto e branco:
Curiosa personagem, toda em contradições. Estatura de gigante, vozinha de
criança; olhar temo, comportamento belicoso; arrogante na companhia de
homens, boi manso ao pé de saias; frugal no comer, bêbedo inveterado.
Dizem que lê e estuda muito, mas da destilação desse muito extrai apenas
uns artiguinhos anémicos de crítica e análise literária, sempre conformes
à moda vigente.
Actor, político, literato, homem de ciência, ciclista, aeróstata,
navegador à vela solitário, quem de qualquer modo alcança fama recebe
carta sua, e quando dessas iniciativas nasce uma correspondência ele
cultiva-a durante algum tempo, publicando-a depois em antologia.
Com a impaciência de crentes que esperam o milagre anunciado, os seus
admiradores aguardam o roman-fleuve em que ele trabalha há anos e de que
já numa ocasião leu excertos em público.
Celibatário, hipocondríaco, tem dois gatos e uma mulher a dias preta
surinamesa que o intimida e contra quem ele pragueja em pensamento,
tratando-a por Winnie Mandela.
Terça-feira, 4 de Abril — Talvez como compensação para um dia-a-dia em
que são escassos os acontecimentos dignos de nota, quase todas as noites
sonho. Mas os meus sonhos raramente são calmos e felizes, povoam-nos
medos, perigos, abismos vorazes.
No sonho desloco-me para paragens onde nada se acomoda aos padrões da
realidade: nem as gentes, nem os animais, as plantas, a paisagem ou as
circunstâncias. E contudo, mau
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grado os medos e a estranheza, nesse mundo deformado sinto-me mais
completamente eu, mais alerta e senhor de mim, do que quando ao acordar
me vejo de retorno no mundo real.
A minha vida costumo dividi-la em antes e depois da Holanda. Os primeiros
vinte e seis anos do antes foram indubitavelmente os mais ricos, os da
aprendizagem de mim mesmo e do mundo, os das viagens, das descobertas, do
enriquecimento do espírito — mas também anos infelizes.
Os quarenta do depois foram de sedimentação. Sentimentos, conhecimentos,
ideias, sensações, tudo se foi lentamente acamando na formação do eu
adulto.
E porque me sei mais feliz agora do que o fui na juventude, ou melhor,
porque a felicidade veio quando eu já desistira da esperança dela, tenho
por vezes a impressão de que, por um desleixo do destino, a minha
existência se desenrola às avessas. O que ardentemente desejei, quando
tudo me parecia uma ascensão, foi-me negado. O que em seguida recebi, e
não considero pouco, veio tarde de mais para que o soubesse e pudesse
gozar em pleno. Assim, embora de mãos cheias, quando olho para a vida que
até agora tive sinto-me «the wrong man in the right place at the right
time, with the wrong dreams».
Quarta-feira, S de Abril — Nunca soube mandar, nem nasci com carácter
para obedecer, mas houve um tempo em que tive heróis — ou devo dizer
ídolos? Homens que aos meus olhos, pela sua inteligência e arte, a
firmeza das convicções, se colocavam tão acima do comum que eu me sentia
privilegiado de poder admirá-los.
Talvez porque morreram num momento em que a minha admiração era
inabalável, a imagem dalguns deles permanece quase intocada. As estátuas
que me fiz dos outros, expostas à passagem do tempo e à mudança do meu
ver, foram aos poucos minguando em tamanho.
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Hoje em dia ainda me vêm acessos de admiração, ainda me maravilho, mas
sem ter quem me mostre o caminho e me conforte com a esperança de
certezas, a jornada perdeu o mistério de antigamente. Também já não
corro, ansioso por descobrir. Vou sozinho e a passo, com o sentimento de
que os dias se repetem numa infinda monotonia.
Quinta-feira, 6 de Abril — Na Holanda, segundo as estatísticas, encontra-
se a funcionar mais de meio milhão de vibradores e as vendas do artigo
aumentam anualmente vinte e cinco por cento.
Como não podia deixar de ser, organizam-se cursos para o seu uso. Dum
artigo no NRC-Handelsblad de hoje: «Cora Emens da New Ancient Sex Academy
(NASA), que organiza cursos de masturbação para mulheres, diz que os
problemas do orgasmo resultam sobretudo da ignorância. Durante os seus
cursos nos fins-de-semana, as mulheres falam acerca da sexualidade,
examinam mutuamente as vaginas, aprendem técnicas respiratórias, aprendem
a controlar os músculos das respetivas bacias. Passado dia e meio põem as
lições em prática.
Então — diz Cora Emens — nos domingos à tarde não é de acreditar o que se
vê (nos meus cursos). As mulheres ficam deitadas no chão a masturbar-se e
é um orgasmo atrás do outro.»
Devo rir? Encolher os ombros? Aceitar sem resmungos a realidade? Qual é a
reação adequada perante uma tão ingénua e banal ignorância do que, para
ter valor, deveria permanecer íntimo e misterioso?
Sexta-feira, 7 de Abril — Os homens vieram fazer obras no telhado e logo
às oito da manhã começa o barulho e a trepidação dos compressores por
cima da minha cabeça. Um inferno.
Fujo para a rua. Quando acabam o trabalho deixam encostada à nossa
varanda a escada motorizada que para eles e para o material serve também
de ascensor.
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Ao primeiro ladrão que passe pouco custará subir os degraus para nos
entrar pela casa dentro, e contra isso pouco mais podemos fazer que
manter-nos vigilantes. O empreiteiro descarta-se curiosamente da sua
responsabilidade, colocando no primeiro degrau da escada um cartaz onde
se lê que é proibido subir em conformidade com o artigo número tantos do
Código Penal.
Como se fosse próprio da gatunagem ler os artigos da lei e obedecer às
proibições.
Sábado, 8 de Abril — Embora saiba que não me dá novidade, mas numa
tentativa de me tirar do que considera uma excessiva letargia, ela diz:
— Podes discordar, mas olha à tua volta. O escritor tem de se promover a
si próprio, promover os seus livros, a sua imagem de marca. Não quero
exagerar, mas a imagem do escritor tornou-se mais importante do que a
qualidade daquilo que ele escreve. Essencial é que se mostre, que
participe, que se distinga como personagem.
De facto assim é e ela tem razão. Cafés, tertúlias, as manifestações e os
encontros, as amizades, os contactos, os jornais, as revistas literárias,
a televisão, em todos esses lugares e meios o escritor deve estar
presente a vender o seu peixe. A excentricidade do comportamento também
ajuda.
Mas que fazer quando, como a mim, faltam as qualidades precisas? E que
não faltassem, para assustar já me basta ver aqueles que ano após ano de
promoção não conseguem vender um livro nem criar um nome e, em vez dos
escritores e poetas que julgam ser, não passam de figurantes nos shows
patrocinados pelo espírito do tempo.
Domingo, 9 de Abril — Porque será que certas imagens do meu passado mais
remoto se me gravaram na memória e constantemente vêm à tona como se
tivessem um significado especial?
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Um elétrico vazio num fim de linha, em Lisboa. Dois homens numa
esplanada. Uma bicicleta verde encostada à parede da estação de Haarlem.
A balança de uma mercearia. A porta de uma garagem em Angoulême. Um
coreto. Uma ferradura gasta caída num caminho pedregoso. A lâmina de um
canivete... Será possível que recordações tão banais encerrem uma forma
de mensagem? Existirá um lixo da memória impossível de incinerar?
Segunda-feira, 10 de Abril — Se não fosse a melancolia com que nasci e se
tornou o filtro através do qual aprecio quase tudo, a minha ambição seria
de escrever livros onde avultassem as situações felizes, as personagens
bondosas e as atitudes otimistas.
Não me refiro a lamechices como as dos «romances de amor», ou aos
confortos que prodigam os folhetos das religiões e das seitas, mas a
obras em que o leitor pudesse encontrar amparo para as suas ânsias,
encorajamento na luta contra as incertezas, alguns sorrisos e um final
que, ao rebentar com o colorido e a força do buquê de um fogo-de-
artifício, lhe confirmasse quanto vale a alegria de viver.
É isso o que quero e que nunca fui capaz de conseguir. Uma vez por outra
crio uma personagem que sorri, descrevo um momento de felicidade ou de
harmonia, um encontro de
almas que se compreendem durante o instante que dura um olhar. Todavia, a
caminho do fim tudo descamba para o sombrio e a incompreensão, a falta de
esperança. Em ocasiões dessas sinto-me como a cobra mitológica a morder o
próprio rabo, pois não sei se sou eu que por tendência natural crio
personagens assim, ou se são elas que, tal incubi, vêm fertilizar a minha
melancolia.
Terça-feira, 11 de Abril — Coincidências. Recordações de datas, lugares e
hotéis. Quatro pessoas. Três histórias.
Ele diz:
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— A minha vida decidiu-se numa tarde de Janeiro de mil novecentos e
setenta, no bar do Hotel Bauer au Lac, em Zurique, durante uma conversa
entre dois amigos a que eu assisti pelo simples acaso de lá ter entrado
nesse momento e a qual, inicialmente, nada tinha a ver comigo. Estranho,
não é?
Ela conta:
— Comigo foi uma noite, anos atrás. Estava no Hotel Tivoli em Lisboa e ia
deitar-me, quando me dei conta de que me tinha esquecido de dar um recado
a um conhecido que também lá se encontrava hospedado. Ainda me lembro do
número do quarto, setecentos e três. Telefonei umas quantas vezes, mas
como o telefone estava constantemente ocupado resolvi ir bater à porta.
Ele veio abrir, ainda a falar com o aparelho na mão, e fez um gesto para
que eu entrasse. Se nesse instante me tivessem dito que passado coisa de
uma hora o meu destino estaria decidido, eu de certeza que não tinha
acreditado.
O casal sorri. A mulher hesita e finalmente é o homem quem fala:
— Talvez a predestinação realmente exista. Nós mal nos conhecíamos e da
primeira vez fomos castos, trocámos um beijo. Mas na tarde seguinte
encontrámo-nos no que então se chamava uma maison de rendez-vous — eu
suponho que tanto a expressão como o fenómeno se acham ultrapassados, mas
também é facto que isto aconteceu há séculos — e foi lá que a nossa vida
levou uma reviravolta total. Lembro-me perfeitamente da rua e do número:
Herengracht trezentos e quarenta e um, em Amsterdão. Para nossa surpresa
descobrimos anos depois que a casa tinha sido transformada em hotel. O
quarto foi fácil de reconhecer, porque fica no primeiro andar e é o único
com varanda para o canal.
Quarta-feira, 12 de Abril — Haverá quem não compreenda, mas comprar roupa
é para mim um tormento que começou nos meus tempos de criança, quando não
havia ainda fatos feitos.
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A mãe levava-me ao alfaiate e eram então o que me pareciam horas
intermináveis passadas a fazer a escolha das fazendas e dos forros, de
discussões de preços, da data das provas. Quando eu julgava que
finalmente nos íamos embora, começava o homem com giz e fita métrica a
tomar as medidas e de novo a discutir longamente com minha mãe sobre o
feitio das lapelas, o comprimento dos calções («Minha senhora, que lhe
parece? Acima do joelho? Pelo joelho? Mais abaixo?»), o número e o
tamanho dos bolsos.
Com a compra de roupa feita julgava eu que o tormento acabasse, mas
enganei-me. Na loja o alfaiate foi substituído pelo vendedor e agora é
este que de mim quer saber o feitio, a cor, o tamanho. Eu, que entrei ali
pela necessidade de andar vestido com decência, sinto-me como que numa
cadeia e só tenho um desejo: fugir. Mas já ele recomeça que devido à
minha estatura vai ser preciso encurtar as mangas do casaco, encurtar as
pernas das calças. Aliás dois centímetros mais numa do que na outra,
devido a uma assimetria de que, diz ele para me confortar, a maioria das
pessoas de idade sofre. Também se terá de encorpar o ombro esquerdo,
descaído, e alongar a frente de maneira a esconder o embonpoint. Desejo
fenda atrás, ou dos lados, como lhe parece melhor? As calças com dobra?
Sem dobra?
Que inveja dos que vestem cabaia ou albornoz.
Quinta-feira, 13 de Abril — Talvez aí pelos trinta, alto, um rosto e um
crânio que pela forma o davam como nativo da Gâmbia ou do Gana. Parou no
passeio oposto com a bicicleta pela mão e voltando-se para mim gritou
qualquer coisa que não compreendi.
Pedi-lhe que repetisse, ele repetiu, mas de novo me escapou. Talvez
quisesse perguntar o caminho e atravessei a rua:
— O que foi que disse?
— Jesus está vivo!
— Claro!
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— Você com certeza não crê. Não tem cara de crente.
— Claro que creio!
— Mas não vai à missa.
— Claro que vou!
— Então até domingo.
— Até domingo.
A Loekie não gostou de me ouvir dizer que era crente e ia à missa.
Pareceu-lhe uma pouca-vergonha. Mas que se pode fazer em ocasiões assim?
Levantar questões teológicas com um desconhecido provavelmente
transtornado? Acirrar-lhe o fundamentalismo ou a loucura?
Com uma mentira inócua foi ele em paz, fiquei eu em paz.
Sexta-feira3 14 de Abril — Nunca hei-de aprender. Leio numa crítica que O
Bandolim do Capitão Corelli é um livro impressionante e o seu final o
mais belo desde que Garcia Márquez escreveu O Amor nos Tempos de Cólera.
Corro a comprá-lo. Leio umas setenta páginas do começo, leio as últimas
cinquenta e sinto-me vigarizado: recomendam como obra excecional o que
não chega ao nível do que seria uma leitura medíocre para adolescentes.
Sábado, 15 de Abril — Se eu vivesse agora uma vida de riscos, seria
normal que eles me fizessem perder o sono. Mas tal como corre, a vida que
levo dificilmente poderia ser mais tranquila.
A insónia, porém, continua a ser minha fiel companheira, alimentada pela
recordação dos riscos que no passado corri. E é talvez porque não
compreendo o milagre que sempre fez com que eu lhes conseguisse escapar,
que eles ainda tão poderosamente me terrorizam.
Domingo, 16 de Abril — A sua voz aguda irrita-me; o ele dizer que aprende
muito com os jovens, irrita-me ainda mais. Porque me parece uma curiosa
conclusão, o afirmar que se aprende com aqueles a quem falta a
experiência.
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Segunda-feira, 17 de Abril — A ocasião é demasiado boa para que a deixe
perder: perto de Torres Novas há uma «santa» que realiza milagres e
regularmente se desloca ao Céu. Vou fazer o possível por entrevistá-la no
próximo sábado, o único dia em que «recebe».
Terça-feira, 18 de Abril — À terça-feira chegam os jornais de Portugal e
o lê-los tornou-se para mim uma forma de masoquismo.
Sinto-me, como me tenho sentido a vida inteira, intensamente ligado à
terra em que nasci, mas em lugar da tolerância que dizem que vem com a
idade, cada vez me torno mais crítico da situação em que o meu pobre país
vive. Consomem-me as sombras do seu futuro, a falta de perspetiva de que
dão mostras os seus governantes, há ocasiões em que estranhamente me
sinto como que culpado de não ter voz suficientemente forte para lhe
gritar que tome outro caminho, que aquele por onde vai leva ao
precipício.
Os subsídios da União Europeia permitem fazer alguma coisa para o
presente — a construção de estradas é a prova mais espetacular — mas isso
de pouco adianta ao bem comum. Os sociólogos apontam que a diferença
entre pobres e ricos é maior do que na década de 60; que há centenas de
milhares de velhos a tentar sobreviver nas cidades com uma pensão de
cento e dez florins mensais. Como se fosse possível.
A classe dirigente, que sempre foi detentora de facto de uma extrema
percentagem da riqueza do país, através dos séculos nunca mostrou — e
hoje também não mostra — qualquer interesse em desenvolver a res publica,
nem salvaguardar o património cultural. Com as suas festas aparatosas, a
sua ostentação e os seus palácios, a obesa jocosidade dos seus membros, o
modo como eles se exibem adornados de ouro, essa classe tem muito de
levantino, no significado pejorativo da palavra.
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É apenas um exemplo, mas sintomático das preocupações da alta burguesia
portuguesa: quatro ou cinco anos atrás, o então ministro dos Negócios
Estrangeiros, interrogado numa entrevista sobre quais eram os seus
principais interesses, respondeu francamente ao jornalista: «As belas
mulheres, os belos carros, os belos fatos.»
Sejamos-lhe gratos por não ter perdido tempo a esconder-se atrás do bem-
estar, da cultura e do progresso do país.
Quarta-feira> 19 de Abril —- Por vezes tenho invejo de meu pai. Por
circunstâncias várias a sua vida não foi feliz, mas pelo menos pôde vivê-
la de acordo com o carácter que tinha: o seu deus era a lei, a sua missão
o fazer cumprir a lei e punir os transgressores, o seu gosto maior o de
ver a lei cumprida.
Eu não tenho deus, não tenho missão, e quando cumpro a lei sinto-me quase
sempre contrariado.
Quinta-feira, 20 de Abril — Depois de cinquenta anos de vida literária,
milhões de palavras escritas, centenas de artigos e onze livros
publicados, o escrever permanece para mim a mais difícil das atividades e
a mais misteriosa.
Paradoxalmente adquiri nele alguma rotina, mas nada que possa considerar
como experiência. Daí a frustração que frequentemente sinto de passar
horas a fio, dias, a olhar a frase incompleta, a página inacabada, sem
saber que exigências me são feitas para que consiga arrematá-las com
satisfação.
Ouvisse eu vozes, como outros dizem que têm o privilégio de ouvir.
Sexta-feira, 21 de Abril — Chego a Lisboa ao princípio da tarde e no
aeroporto tenho um fatigante contratempo. Espero quase uma hora para que
me entreguem o carro de aluguer, mas devido a qualquer transtorno a firma
não o tem disponível. O que depois me trazem encontra-se tão sujo de
poeira, cascas de fruta, migalhas, manchas de leite fresco ou sabe
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Deus de quê, que exijo que o lavem primeiro. Os empregados resmungam e
mandam-no lavar. Passa outra hora. Meia hora ou mais vai-se no
preenchimento de papéis, porque nem o carro nem o preço condizem com as
condições da reserva, e assim passo eu ali mais tempo do que o que gastei
no voo.
Sigo para a cidade de mau humor. Reservaram-me o Rex Hotel. Quem puder
evite o Rex Hotel. E feio, sombrio, e praticam-se nele refinadas — mas
originais, verdade se diga — maneiras de subtrair dinheiro ao hóspede.
O quarto do nono andar para onde me levam é mais exíguo que uma cela de
cadeia; o quarto de banho tem o tamanho de um armário e quem se senta na
retrete precisa primeiro de arranjar forma de empancar as pernas sob a
pia do lavatório.
A pouca espessura das paredes permite-me seguir sem esforço a conversa de
uma família no quarto contíguo e fico a saber que têm de ir cambiar
dinheiro, que mais tarde telefonarão para uma tia que vive em Angola, e
que a da de Lisboa com certeza os não convida para jantar.
Vou a pé para o centro da cidade, a melhor maneira de acalmar a irritação
e desentorpecer as pernas. Como quase sempre subo até ao Jardim de
Alcântara e como o calor abafa procuro a frescura e a quietude do
Pavilhão Chinês.
Na sala estão a um canto duas lésbicas e no canto oposto uma rapariga
holandesa bebe Campari e fuma. Digo rapariga porque na idade a que
cheguei toda a mulher com menos de quarenta e cinco anos é rapariga; e
holandesa por ser loira e porque as suas feições, o seu rosto, o corpo, a
maneira desenvolta, mais o jornal NRC-Handelsblad que tem aberto sobre a
mesa, razoavelmente me confirmam a nacionalidade.
Sento-me perto da porta, o melhor lugar para apreciar a colecção de
bricabraque que enche as vitrinas. Peço uma cerveja. A holandesa vai-se
embora. As lésbicas trocam carícias, sem se incomodar com o olhar
zombeteiro do empregado. Uma delas, alta e magra, vestida com um fato
preto de homem, cabeleira de azeviche, maquilhagem esbranquiçada, tem
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um ar de fantasma teatral. A companheira, rechonchuda e coquete, é do
tipo sofredor.
Bebo outra cerveja. Dois escandinavos de meia-idade espreitam à porta,
arriscam-se até ao meio da sala, olham em volta com o ar de quem teme ter
entrado por engano num lugar de má nota, e desaparecem silenciosamente.
Paro no Rossio e compro os jornais da tarde. Leio-os numa cervejaria
enquanto como um jantar perfeito: camarões fritos em molho de alho, pão
branco, meia garrafa de bucelas, pudim, e duas bicas a rematar.
Regresso ao quarto do Rex, que na minha ausência parece ter ainda
encolhido. Em qualquer parte deve haver uma saída de emergência, mas não
consigo encontrá-la e agora já não é só o barulho dos vizinhos: o
ascensor passa a escassos centímetros da cabeceira da cama, fazendo-a
tremer.
Se durante a noite se der um incêndio não me salvo, nem os bombeiros de
Lisboa têm escada com que subam a estas alturas para me salvar. Além
disso a janela dá para as traseiras e para uma sucessão de pátios e
arrecadações, que impediriam qualquer forma de socorro. Certo que doutra
maneira a noite será de insónia, tomo um Valium e «morro» serenamente,
até que amanhã às sete e meia o despertador me obrigue a ressuscitar.
Sábado 22 de Abril — O funcionário responde-me que a sala dos pequenos-
almoços é ao fundo, à direita. Entro e se a não tivesse visto não
acreditaria: enorme, com uma varanda em toda a volta onde também há
mesas, as paredes brancas entremeadas de fasquias, um teto de traves
grossas mal-amanhadas a dar a impressão de que se está na Alemanha. E ali
está-se na Alemanha! Fora duas ou três famílias de origem indeterminada e
eu próprio, o resto da clientela são mais de duas centenas de teutões
que, uniformemente de cabeça baixa e uniformemente com traje de férias,
tomam em silêncio o pequeno-almoço.
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Por volta das dez da manhã passo por Torres Novas, meto pela estrada
velha em direção ao Entroncamento e uns três quilómetros adiante pergunto
o caminho para a «Santa» da Ladeira do Pinheiro e dizem-me que se virar à
esquerda logo a encontro.
A igreja é de dimensões modestas, tem uma cúpula azulada, a porta está
aberta e lá dentro, agachada no chão, uma monja vestida de preto prepara
ramos de flores.
Levanta-se para responder ao meu bom dia e um ligeiro sotaque dá-a por
estrangeira, mas o português que fala é impecável. O modo como ri, o seu
belo rosto, a faceirice, e até a vivacidade com que move o corpo bem
formado que o hábito por momentos desenha, estão longe da ideia que me
faço de quem passa a vida a servir o Senhor.
— O carro chega lá bem, porque ultimamente não tem chovido, e é aí
adiante, seguindo por esse carreiro. À esquerda, depois da curva, vê logo
a casa da Mãe Maria.
Agradeço, pergunto-lhe donde vem e ela diz-me que é canadiana do
Quebeque.
Depois da curva há realmente um portão, mas em vez da moradia porque
esperava vejo-me num grande pátio rodeado de edifícios díspares pintados
de azul e branco. Assim à primeira vista desempenham as funções de
habitação da «santa», lugar de culto, asilo para velhos, internato
infantil, convento, loja de relíquias e, para minha continuada surpresa,
um jardim zoológico em miniatura. Em jaulas e gaiolas duma exiguidade que
a Sociedade Protetora dos Animais reprovaria, há cães e gatos de várias
raças, cacatuas, papagaios, pombas, macacos, cobras, tartarugas, cobaias,
uma raposa...
Ao ver-me sair do carro, o sacerdote, de costas para mim, volta-se e olha
um instante, logo desinteressado do estranho. Alto, atlético, ar mariola,
quarentão de cabelos longos e barbudo, veste batina e está em pé sob um
alpendre, rodeado de
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raparigas que terão entre doze e catorze anos. Numa mesa um livro aberto
que uma delas vai folheando. O sacerdote repousa um braço sobre o ombro
da que lhe está à direita, enquanto
com o outro aperta a cintura da mais alta, que de cabeça descaída se
apoia contra o seu ombro. As mãos dele mexem irrequietas, nada inocentes,
e o modo como se encosta às nádegas da rapariga que folheia o livro é
abertamente luxurioso.
A minha chegada não o perturba, e à minha pergunta responde de mau modo
que sem audiência marcada a Mãe Maria não recebe ninguém, muito menos um
estranho. Agora são as
raparigas que se agarram a ele, fazendo beicinho a mostrar que a minha
presença as importuna. Mas nesse momento surge a irmã Clara e desatam a
correr fingindo de assustadas,
o padre volta-nos as costas e desaparece numa porta.
A irmã Clara nasceu com um dom tão evidente para as relações públicas que
logo me dá a impressão de que nenhuma das minhas perguntas ficará sem
resposta, nenhum milagre sem explicação.
Falar com a Mãe Maria? Ela vai ver se se arranja. Visitar os edifícios?
Certamente, menos os aposentos da Mãe e o andar onde se instala Sua
Beatitude o Papa Crisóstomo quando vem ao santuário. De resto tudo o que
eu quiser. Os animais são do senhor Humberto. O padre Stefan não me
disse? O senhor Humberto é o marido da Mãe. Marido místico, claro, porque
seria impossível ser-se marido carnal duma pessoa tão próxima de Deus.
— Vamos primeiro ver os cabelos?
Durante um êxtase a «santa» arrancou da cabeça uma pequena madeixa e
Jesus disse-lhe que a não deitasse fora, pois se daria um milagre. Os
cabelos, expostos numa caixa com tampo de vidro, vão já em quase dois
metros e continuam a crescer. No mesmo quarto está o crucifixo que sua
sangue e a cama onde a partir de 8 de Dezembro de 1965, rodeada de
testemunhas, Mãe Maria permaneceu quarenta dias e noites sem dormir, em
jejum total e sem beber água, tornando-se em tabernáculo vivo com a
sagrada hóstia na boca.
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— Porém — diz-me a infatigável irmã Clara — o prodígio não ficou por ali,
pois o arcanjo São Miguel administrava diariamente a comunhão à Mãe
Maria. Em cada dia, antes de comungar, a hóstia que ela tinha recebido no
dia oito de Dezembro desaparecia para reaparecer no tabernáculo que se
encontrava no seu quarto sobre um altar. Logo após ter engolido a hóstia
quotidiana, a hóstia de oito de Dezembro reaparecia na sua língua. Tudo
isso constatado pelas muitas pessoas constantemente presentes.
Parece-me já milagre bastante, mas a irmã Clara tem mais. O sangue da
«santa» conta só vinte e três cromossomas, prova da sua origem celestial
(!) e ao ser analisado num laboratório de Paris permaneceu mais de vinte
e quatro horas sem coagular. A Mãe Maria subiu corporeamente ao Céu pelas
doze horas e trinta de 12 de Junho de 1968, regressando às quinze horas.
Os que testemunharam esse prodígio viram-na erguer-se no ar e desaparecer
a grande altitude, seguindo-se uma chuva de rosas e registando-se
correntes de ar intensamente perfumadas. De regresso à barraca onde então
morava, a vidente entrou em posição horizontal por uma janela fechada que
se abriu misteriosamente para lhe dar passagem.
No relato que fez da sua digressão celestial, a «santa» diz ter sido
acompanhada por uma numerosa milícia de anjos e que em dada altura
seguiram uma estrada. Para a esquerda havia um ramal que levava ao
Inferno, encontrando-se aí três lagos fedorentos. Um outro ramal, também
para a esquerda, ladeado de fumos e de espinhos levava ao Purgatório. Ao
fim da estrada do Céu viu Deus! «O Pai Eterno, sentado num grande trono,
apresentava-se com barbas muito crescidas, tendo à sua direita Jesus
Cristo e à esquerda a Virgem e São José. Junto de Deus Pai há uma caneta
e uma espécie de olho que se transforma em espelho, tendo em frente uma
pomba com a cabeça pequenina, que irradia uma luz que ilumina o Céu
inteiro. Os anjos tocam trombetas, entoam cânticos e apresentam letras
nas asas, cujo significado não estou autorizada a desvendar.»
264
A irmã Clara, dando-se conta do meu cansaço perante tantas maravilhas,
reanima-me com a promessa de que a Mãe Maria me falará em particular.
— Posso fotografá-la?
— Pois com certeza.
Fotografo a «santa», sessentona sobre o gordo, enquanto ela sentada junto
duma parede recebe os queixumes e as preces das suas fiéis. A uma oiço
que recomenda que vá ao médico e lhe peça umas vitaminas fortes. A outra
garante que o seu pedido será atendido. A uma terceira promete o
restabelecimento de uma vaca doente. Finalmente chega a minha vez. Faz
sinal para que me aproxime, aperta-me a mão, sorri e pergunta-me o que
quero saber.
—- Se vai muitas vezes ao Céu.
— Vou.
— É verdade que faz chover dinheiro?
— É verdade.
— Transforma a água em azeite?
— Transformo.
— Faz andar os paralíticos e cura os doentes?
— Curo.
— Ouvi dizer que a consideram uma séria concorrente de Fátima.
— Não. A Ladeira é a continuação do mistério de Fátima e isso não agrada
a certas pessoas. A Ladeira é o tesouro de amor eucarístico, é a
renovação dos tabernáculos do mundo.
A irmã Clara sussurra-me que basta, a Mãe pode dum momento para o outro
cair em transe, e como ao cair da noite se vão realizar os demorados
festejos da Páscoa ortodoxa é bom evitar que ela se canse.
— Páscoa ortodoxa?
— Sim. Nós somos da Mãe Maria e da Igreja Ortodoxa.
Só então me dou conta que a cúpula da igreja tem a forma
característica da cebola, que os padres que por ali andam são
265
popes, que o traje negro das monjas não é o corrente nos conventos
católicos. Quero pedir detalhes, mas a minha guia insiste para me mostrar
primeiro a fabriqueta onde a «santa» se
entretém com o fabrico de queijos, a casa onde um ex-jesuíta quase
centenário pinta quadros místicos, a grande catedral em construção. E o
asilo dos idosos. E o alojamento onde são recolhidas as crianças
abandonadas. E a escola. E a exploração agrícola. Retoma a lista dos
milagres e das visões, das chagas da mística, do caso do vestido
queimado, do seu comprovado
dom de ubiquidade, das conversas com o padre Pio e Joana d’Arc.
Para as minhas forças é de mais e despeço-me aturdido.
Ao começo da noite estou na igreja para assistir à celebração da Páscoa.
Do lado esquerdo sentam-se as devotas do Exército Branco, umas trezentas
mulheres cobertas dos pés à cabeça de rendas brancas. Do lado direito
estão as monjas, todas de preto. Na retaguarda, os homens. Aguardo à
porta que os festejos comecem e nesse momento chega num pé-de-vento um
Alfa Romeo conduzido pelo padre barbudo, que se apressa a abrir uma das
portas de trás e, dobrado numa reverência, ajuda a Mãe Maria a sair. O
povo, que é muito, aplaude-a extasiado, alguns ajoelham-se a beijar a mão
que ela lhes estende com ademanes episcopais.
Subo à galeria, donde posso fotografar sem que incomode ou dê nas vistas,
mas porque nunca assisti a uma missa assim, tão distraído fico com o
espetáculo que quase esqueço a razão porque estou ali.
Também não é para menos: ricamente paramentados dois popes leem em voz
sonora, enquanto dois outros estão parados como se esperassem vez; um,
cantando, dá voltas apressadas atrás dos pregadores; outro muda ali em
público os paramentos e a mitra, com a agitação de um ator prestes a
entrar no palco. Sob os ícones dois acólitos balanceiam os turíbulos,
espalhando no ar um cheiro forte de incenso. Lá atrás, num
266
esconso de paredes douradas, há uma agitação de vultos que perpassam e de
repente saem e entoam um breve cantochão ou vociferam um salmo.
Tão caótico e hilariante se me afigura o desenrolar da liturgia, que por
vezes mal contenho o riso. Mas como não estou ali para dar escândalo, nem
quero ofender os fiéis, vou pedindo desculpa, abrindo caminho sem
empurrar, até que desço os degraus e saio para o adro.
Entretanto anoiteceu e na desolada escuridão dos campos em derredor a
igreja é uma mancha de luzes coloridas. Arrumo as minhas coisas no carro
e nesse momento o coro dos fiéis enche a noite com uma polifonia de
grande suavidade que passa em ondas melodiosas. Sento-me num muro a
escutar, surpreso com a emoção, depois envergonhado do desdém com que
tinha rido da fé daquela gente simples.
Domingo, 23 de Abril — Eu precisava aqui de uma daquelas pragas árabes
que, com as suas comparações floreadas, exprimem de forma definitiva os
superlativos do ódio. Infelizmente não me ocorre nenhuma e por isso não
posso fazer mais que amaldiçoar quem cozinhou o jantar envenenado que
comi ontem.
Quando voltei ao hotel em Torres Novas passava das onze e adormeci sereno
e satisfeito. Mas pouco depois acordei em pânico e quase sem tempo para
me ajoelhar defronte da retrete e levantar a tampa, tive a impressão de
que as entranhas se me despediam do corpo num profundo vómito.
Alívio não senti nenhum, só repulsa, e os vómitos continuaram aflitivos,
mesmo quando eu julgava que dentro de mim já não havia mais para vomitar.
Talvez preocupado com os meus urros, um hóspede de alma caridosa veio
bater à porta do quarto a perguntar se eu precisava ajuda. Respondi-lhe
que não, ao mesmo tempo que corria a despejar novas golfadas de veneno
que agora me saíam por cima e por baixo.
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O Sol ia já alto quando me senti acalmar. Trouxeram-me um chá de que
provei um golo, mas tal revulsão me causou logo no estômago que não fui
capaz de o beber.
O que deveria ser um dia de viagem e trabalho passo-o na cama em estado
de sonolência, com acessos de febre e momentos de ligeiro delírio.
Segunda-feira, 24 de Abril— Saio de Torres Novas com a intenção de
visitar outras duas «santas» que quando o desejam também voam para o Céu,
mas para atualizar o meu guia de Portugal começo com uma grande volta que
me leva por Fátima, Batalha, Leiria, Figueira da Foz e Coimbra. Paro no
Buçaco e hospedo-me no hotel, porque como desde ontem não voltei a comer,
só bebi água, sinto-me exausto e fraco de mais para continuar a jornada.
Deito-me e durmo como uma pedra até às sete horas. O estômago parece
recomposto e depois de um tão longo jejum o apetite voltou ao normal e
pede jantar. Sentam-me à única mesa vazia, situada desagradavelmente num
canto, junto do aparador. Na sala repleta de hóspedes, quase todos
estrangeiros, incomodam sobremodo os japoneses que constantemente se
levantam e sentam a fotografar-se uns aos outros.
Na mesa junto da minha dois casais jovens riem às gargalhadas. Uma das
mulheres conta que nessa tarde ao entrarem no quarto, o amigo de
brincadeira a empurrara para a cama e ela, desprevenida, tinha
escorregado e caído ao chão sobre a cabeça.
Doera-lhe bastante e primeiro ainda fingiu de morta, mas ao vê-lo assim
aflito tinha-lhe dado tanta pena que achara melhor ressuscitar.
Terça-feira, 25 de Abril — Feriado nacional. Deixo o Buçaco e retorno à
autoestrada, passo Aveiro e um pouco antes do Porto meto em direção ao
mar a caminho de Arcozelo.
268
Em Arcozelo existe o impressionante culto de Santa Maria Adelaide, que na
segunda metade do século passado foi irmã leiga e organista no Convento
de Corpus Christi. Falecida em 1885 em cheiro de santidade, o seu corpo
mostrou-se incorrupto quando o desenterraram em 1906, e desde então tem
resistido a violências tão radicais como atentados à bomba, marretadas,
tentativas de dissolução com cal viva, e mais.
Os milagres que realiza e esse extraordinário poder de resistência atraem
devotos em número suficiente para que as ofertas em dinheiro ultrapassem
por ano um milhão de florins. Fora disso recebe dádivas de ouro e joias,
relógios, louças, objetos vários que expostos em museu próprio constituem
o mais destrambelhado bricabraque. Pendentes do teto ou coladas nas
paredes da Casa dos Milagres, anexa ao mausoléu, acham-se ainda milhares
de fotografias dos favorecidos pelas intervenções da santa. Pendurados
também, ou dobrados, são às dezenas os vestidos de noiva e as fardas
militares de que só os interessados sabem porque razão se encontram ali.
E incontáveis miniaturas de máquinas, de barcos, coleções de selos,
moedas, bonecos, imagens, crucifixos, reproduções em cera de membros e
órgãos humanos, testemunham das aflições sofridas e dos favores
recebidos.
Noutra ocasião, noutro estado de espírito, eu com certeza teria rido de
tanta ingenuidade, mas o desespero dos fiéis a rezar abraçados ao túmulo
e a angústia dos que na loja anexa compram velas que irão acender para
que lhes seja resolvido um problema urgente, não se prestam ao escárnio,
antes à compaixão.
Quarta-feira, 26 de Abril — Na minha agenda tenho ainda visitas marcadas
aos santuários do Boi-Homem, da Santa Leiteira, da Campa do Preto, da
Santa do Tropeço, tudo lugares onde ocorrem milagres, mas essas ficarão
para melhor altura. Primeiro vou ao Senhor da Pedra, na praia de Miramar,
a uns três quilómetros de Arcozelo.
269
Seis da manhã e o dia começa a romper. Nevoeiro espesso. É preia-mar e as
ondas batem contra os rochedos em que a capela assenta. Bruxas de longe e
perto — as «senhoras do poder» como aqui lhes chamam — começam a chegar
acompanhadas dos seus clientes e, sinal dos tempos, de guarda-costas
encarregados de barrar a passagem aos curiosos como eu.
Mas uma nota de conto também faz milagres e posso aproximar-me para ver
como as bruxas levam os suplicantes para a Capela do Senhor dos Amarrados
(padroeiro dos que se deixaram amarrar pelos espíritos da escuridão) e aí
os benzem, defumam, apalpam e põem em transe.
Esfregam na imagem do santo roupa interior dos adúlteros e assim os curam
do adultério. Libertam com bofetadas na cara os homens «possuídos» pelas
amantes. Curam o reumatismo obrigando os doentes a ir de joelhos até à
orla do mar. Garantem com ervas e chás o resultado favorável dos exames
escolares, dos exames de condução e das análises médicas.
Vêem-se ali ataques de histeria e pseudo êxtases, ouvem-se gritos de
arrepiar, imprecações, pragas soltas pelos espíritos maus quando as
feiticeiras os intimam a deixar as suas vítimas e a desaparecer no «mar
coalhado». Mas nada daquilo é sobrenatural, antes representação
dramática. As «senhoras do poder» desempenham o papel para que lhes
pagam, e os seus clientes sofrerão de males reais, mas dão contudo a
impressão de que no papel de vítima ou possesso encontram a satisfação de
mortificações que doutro modo não saberiam como realizar.
Não me sinto de todo restabelecido, e de vez em quando tenho ouras, mas
antes de ir para a aldeia quero ainda fazer uma visita a Balasar.
Entre os videntes e iluminados a que portugueses recorrem, Alexandrina, a
santa de Balasar, ocupa lugar eminente, já que ao iniciar-lhe em 1967 o
processo de beatificação a Igreja Católica sancionou as suas visões e as
estranhas circunstâncias
270
em que viveu. Paralítica aos catorze anos, depois de ter saltado duma
janela para escapar a uma tentativa de violação, Alexandrina permaneceu
em jejum total durante os últimos treze anos e sete meses da sua vida.
Simultaneamente começara a ter êxtases e visões, revivendo semanalmente a
Paixão de Cristo na presença de testemunhas, desde Outubro de 1938 a
Março de 1942. Examinada pelos médicos de um hospital do Porto, estes
constataram tratar-se de «um caso inexplicável de inédia e anúria».
Quase só pele e osso, um dia que quiseram levantá-la da cama não foi
possível, porque ela «tinha o peso da cruz»; e se por qualquer motivo o
pároco local não podia ir-lhe dar a comunhão, «comungava de uma hóstia
que um anjo lhe trazia do Céu».
É extraordinário, e provavelmente verídico, mas gente de fraca fé como eu
sente um certo embaraço ao ler depois as respostas que a vidente dava a
Jesus durante os êxtases, anotadas
verbatim pelo padre Mariano Pinho: «Como vos amo no meio de tanta dor? E
Jesus, não foi no meio da dor que nos amaste também? Tendes muita pena de
me fazer sofrer? Mas eu ofereci-me com toda a generosidade! Eu queria
amor, Jesus! Não mo dais? Dai-mo! Eu queria morrer de amor! Jesus, eu sou
vossa! Sempre fui! Sou a vossa heroína? Sou toda para vós, Jesus! Sou uma
louquinha consumida, perdida no amor de Jesus!»
Desde a sua morte em 1955 os desesperados, os doentes, os aflitos,
acorrem aos milhares a Balasar e aos que dela recebem graças ou são
curados pela sua milagrosa intervenção, pede-se que o comuniquem na
secretaria da igreja, para assim se poder apressar o processo no
Vaticano.
Entro respeitosamente na humilde casa onde a santa viveu o seu calvário;
oiço uma zeladora que me conta que Alexandrina falava repetidamente com
Jesus; agradeço mas não compro Eis a Alexandrina, a biografia escrita
pelo padre Umberto Pasquale, e vou-me dali a cismar sobre quais serão os
motivos
271
que fazem da metade oeste de Portugal, acima do Tejo, a zona por
excelência dos bruxedos, das aparições, dos mistérios e dos milagres.
Rumo para Gondarém. A matar saudades, vou-me hospedar na casa em que
passei os anos melhores da adolescência, agora transformada em estalagem.
E como faço das outras vezes, peço que se está desocupado me deem o
quarto do torreão, que foi o meu.
Entro nele com a esperança sempre repetida de que, estando ali, verei um
dia abrir-se de par em par as portas que me impedem de ver claro no meu
passado. Esperança vã.
Quinta-feira, 27 de Abril — Por Ponte de Lima, Braga, Guimarães e
Amarante vou até à Régua, onde atravesso o Douro para a margem sul. É
para mim um caminho longo e complicado, mas para atualizar o meu guia de
Portugal e enquanto rodo vou rabiscando apontamentos. Passo por Vila Nova
de Foz Côa e no Pocinho volto a atravessar o rio para a margem norte.
Dou a volta à praça de Moncorvo, confortado de ver tudo na mesma. Sigo
adiante até que finalmente viro para a estrada da aldeia. Paro a cumprir
o ritual da mijadela contra o sobreiro. Estou em casa.
A diferença notei-a logo mal o carro parou: em vez de como de costume
acenarem de longe, me apertar molemente a mão ou fingir de distraídos, os
que estavam na rua apressaram-se a felicitar-me e abraçar. Outros vieram
em seguida, atraídos pela algazarra. Entusiasmados e orgulhosos, alguns
quase reverentes. Não sabiam como explicar o que tinham sentido ao ver-me
na televisão. Acharam importante. Acharam-me importante. Acharam que até
para eles tinha sido importante, porque ao ouvirem-me dizer o nome da
aldeia e afirmar que queria ser enterrado nela, sentiram-se sair da
anonimidade.
272
A gente das aldeias em redor tinha ficado cheia de inveja, pois nunca
ninguém de lá tinha aparecido na televisão; e em Mogadouro uma médica do
hospital tinha-lhes dito que a avisassem quando eu chegasse, porque me
queria conhecer.
A Júlia agarrou-me às mãos ambas, emocionada, para contar que ambas as
netas dela tinham desatado a chorar de alegria quando me reconheceram no
ecrã. E o filho mais novo telefonou logo de Lisboa, a perguntar se também
tinham visto e gostado.
Alguns, lastimosos, confessaram que como ninguém sabia que eu ia «passar»
estavam a ver o segundo canal, ou a telenovela da SIC. Mas o filho da
Bela, o que está em Zurique, tinha «apanhado» o programa na emissão
internacional e telefonado a dizer que tinha feito um vídeo, que ia
trazer nas férias para mostrar aos que não tivessem visto.
Também gostaram de ver os meus livros, «com umas capas muito bonitas, mas
como são em holandês infelizmente ninguém os pode ler».
Começo a tirar as malas do carro, mas desta vez não é questão que mas
deixem carregar. Resolutos, os que estão mais perto tiram-mas da mão e
vão com elas para a nossa porta. Os outros, homens, mulheres e crianças,
acenam enternecidos.
Minha mãe tinha observado a cena à distância e esperado discretamente na
varanda. Abraçamo-nos. Os homens despedem-se sem esperar o meu
agradecimento. Levo as malas para dentro e ela manda que me sente, porque
me quer contar a alegria que a televisão deu ao povo todo.
—Já me disseram.
— Até uma médica do hospital de Mogadouro...
— Eles contaram.
Sinto-me exausto do cansaço, do calor e da surpresa. Cozinho sem
entusiasmo e deito-me cedo. A pensar enquanto não adormeço, ocorre-me
como é peculiar que mais de quarenta anos a escrever nunca tenham contado
para a minha gente,
273
e vinte minutos de televisão me tenham transformado aos seus olhos numa
personagem com valor acrescentado.
Sexta-feira, 28 de Abril — Esta manhã na estrada de Mós dei boleia a um
homem taciturno. Fedia a álcool, mas com razão de sobra. Vinha das
Finanças de pagar os impostos. A quarta vez. Das três primeiras tinham-no
mandado de volta, porque os papéis não estavam em ordem; ou estavam mal
preenchidos, ou lhes faltava um selo, um carimbo, um anexo. E os
funcionários sempre com mau modo e vexames. Se não sabia ler nem
escrever. Se não era capaz de encontrar alguém que o ajudasse a preencher
os papéis. Ou se não podia pagar.
Envergonhava-se de não lhes saber responder e de não ser capaz de se
defender. Outra coisa era em França, onde tinha trabalhado. Lá as pessoas
até o acompanhavam às repartições para lhe mostrar como devia fazer e os
funcionários eram corteses e gentis.
Em rapaz andara a mineiro no Carvalhal. Ainda se lembrava de uma vez ter
ouvido na rádio o presidente da República a dizer num discurso que as
minas nunca iriam fechar, mas afinal... «Em vez de nos dar trabalho os
grandes só dão promessas. O senhor concorda?»
Sábado, 29 de Abril — A rapariga que conduz o carro que vem atrás de mim
já duas ou três vezes tentou ultrapassar-me, mas devido às curvas não se
arrisca. Finalmente atreve-se, acelera, e ao mesmo tempo trava, talvez
com medo de se despistar. Defronte dos meus olhos, em terrível slow
motion, o carro parece que nunca mais parará de girar sobre si mesmo.
Vejo a expressão horrorizada da rapariga e pressinto que no embate que a
qualquer momento se vai dar morreremos esmagados ou nos despenharemos
encosta abaixo. Tudo em frações de segundo.
Inconscientemente devo ter travado a fundo. O carro dela atravessa-se na
estrada uma última vez e vai amolgar-se de
274
frente contra o princípio da proteção metálica. Um milagre. O meu para
sem lhe tocar, a escassos centímetros. Outro milagre.
Saio e encontro-a em estado de choque, a repetir que o carro tinha sido
comprado de manhã e que não sabe como vai dizer ao pai. Sento-me na berma
a tremer de ter visto a morte diante dos olhos e surpreso de que ela
tenha desistido de me arrolar hoje.
Minha mãe há muito que se queixa dos olhos, mas com ela nunca se sabe
exatamente, porque umas vezes diz que sofre com a claridade e põe uns
óculos escuros que lhe dão o aspeto patibular de um tonton macoute;
doutras é a escuridão que a perturba; uns dias não vê ao perto, nos
outros vê mal ao longe.
A minha paciência para lhe aturar os queixumes tem limites, mas por outro
lado também não quero que um descuido meu lhe possa causar prejuízo. Por
isso marco consulta com o oftalmologista que de quinze em quinze dias, ao
sábado, vem de Bragança a Moncorvo.
A consulta marca-se no oculista e a proprietária, a D. Beatriz,
sexagenária cheia de vitalidade, faz ela própria de rececionista e
assistente do médico. São seis da tarde quando entramos no edifício e o
patamar que serve de sala de espera está tão apinhado de gente que nem
temos lugar para nos sentar.
Ainda abalado pelo perigo a que escapei vou pouco a pouco dando-me conta
do lugar em que estou e da gente que me rodeia, entre mulheres e crianças
umas trinta pessoas. Além de mim há só um homem, mas esse, sozinho, lê o
jornal à espera da sua vez, ao passo que eu sou o único filho
acompanhante. As anciãs doentes serão cerca de um terço, o resto são as
filhas que lhes vão servir de porta-voz e o cortejo de familiares e
vizinhas que vieram para acompanhar.
Naquele espaço sem ventilação o calor é de abafar e o barulho das
conversas um tormento. No consultório ouve-se
275
constantemente o médico a dar berros de mau agouro. D. Beatriz aparece à
porta com um frasco na mão.
— Colírio, para alargar as pupilas — diz-me ela ao passar.
Todas ao mesmo tempo, obedientes como crianças num exercício, as velhas
inclinam a cabeça para trás. Com uma pipeta D. Beatriz faz cair as gotas
nos olhos arregalados, manda à dona que os feche, e passa à seguinte.
Para mim não, que estou ali a sofrer, mas para outro que o pudesse
presenciar o espetáculo seria dum cómico impagável. As anciãs ficam um
momento com as cabeças deitadas para trás e os olhos fechados. Depois,
com a ideia de que assim talvez espalhem melhor o «remédio», põem-se
todas a rebolar a cabeça com a energia de dervixes em transe. Minha mãe
faz o mesmo e eu não tenho coragem para lhe dizer que se aquiete.
De súbito começa uma aos gemidos, a lamuriar que sente um ardume nos
olhos, que com certeza fica cega. As outras não lhe querem ficar atrás e
enquanto continuam a rebolar as cabeças choram e gemem também, dão ais,
recomendam-se a Santa Luzia, clamam que vivemos num mundo de pecadores,
apertam os rosários entre os dedos, deixam-se escorregar nas cadeiras num
princípio de desmaio.
Ó Fellini! Que pena ter você morrido sem vir aqui filmar isto!
Lá dentro o médico continua a berrar. D. Beatriz vem dizer que chegou a
nossa vez e, sufocando o riso, sussurra-me ao ouvido que o colírio não
dói nem arde, mas que é sempre o mesmo espetáculo, porque as pessoas de
idade têm medo de tudo.
O consultório é espaçoso e está quase às escuras para facilitar os
exames. O médico aperta-nos a mão, manda-nos sentar, sorri quando lhe
digo que minha mãe é surda e eu talvez tenha de repetir as perguntas que
ele lhe vai fazer.
— Uns de doença, os outros de medo, os meus doentes são todos surdos! Não
me ouviu gritar? Quem não souber é capaz de julgar que os maltrato.
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Sento-me num canto e maravilho-me. Homem duns quarenta anos, o doutor
Correia não será santo, mas não me lembro de jamais ter visto num médico
tanta paciência e carinho, uma dedicação tão grande, aquela intensidade
total no examinar, um cuidado assim.
Ele grita, tem de gritar, porque os seus pacientes são na maioria idosos
e surdos, ou desatinados pela idade. Mas grita com bondade e paciência.
Manda minha mãe olhar para a esquerda, ela olha para a direita. Que olhe
para cima, ela olha para o lado. Que nomeie as letras, ela fica calada...
A consulta dura mais de meia hora. O médico diz-lhe que ao contrário do
que ela pensa nem para ver ao perto ou ao longe precisa de óculos. Notou-
lhe um minúsculo começo de catarata, mais as fraquezas correntes de quem
tem oitenta e três anos. Está de parabéns.
De volta a casa mostra-se descontente com o médico. Então que não precisa
de óculos? Como é que vai poder enfiar uma agulha? E se todos os velhos
têm cataratas, porque milagre é que ela as não tem?
Eu poderia dizer-lhe que sempre a vejo enfiar as agulhas sem dificuldade,
mas estou cansado de mais para discussões e calo-me.
Ela lembra ainda outro ponto de queixa: quando perguntou ao médico se
devia continuar com as gotas de Clarvisan, que desde há anos todos os
dias deita nos olhos, ele tinha-se rido e dito que elas não faziam bem
nem mal, só refrescavam.
— Estás-me a ouvir?
— Estou.
— Mas não dizes nada.
— Porque ele tem razão. Essas gotas compram-se na farmácia sem receita.
Servem para enganar os tolos e ainda por cima são caras.
— Será, será. Mas se não as deito todos os dias aparecem-me logo nos
olhos uns fiinhos e umas rodinhas que estão sempre a mexer.
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Deus misericordioso, criador do céu e da terra, apiedai-vos de mim.
Tomai-me paciente e bom como o doutor Correia.
Encostada às traseiras da capela está uma rulote caduca, as paredes
enfeitadas com bonecos pintalgados. Uma fieira de lâmpadas vermelhas faz
um arremedo de arco festivo. Pergunto aos vizinhos do que se trata e eles
respondem-me que é um circo. Depois, com um sorriso malicioso:
— Não vá julgar que é como os de antigamente. Este é moderno. No
princípio fazem um bocado de ginástica, mas depois abrem as goelas à
música e ficam as gajas a cantar e a dançar. Meio nuas. Com um panito a
tapar-lhes as vergonhas. Venha logo à noite e vai ver que é como na
cidade.
Prefiro não ver. Quero guardar inteira a recordação de quando os
saltimbancos vinham com uma caravana de burros carregados de atributos e
no mesmo lugar contra a capela espetavam os paus em que firmavam o
trapézio. Depois saltavam, giravam, contorciam-se, tiravam dinheiro do
nariz das pessoas, cuspiam fogo, faziam a pirâmide humana...
Não quero ver mulheres meio nuas a cantar e a dançar. O que nunca mais
acontecerá e eu gostaria de voltar a ver, era aquela menininha que teria
então a minha idade e gracilmente erguia um arco no ar, por onde um cão
saltava cada vez que ela lhe gritava: «Allez, hop!»
Domingo, 30 de Abril — Passo o dia a magicar a respeito do artigo sobre
as «santas», o qual, apropriadamente, deve estar pronto para ser
publicado a 13 de Maio.
O problema maior é não cair na ironia fácil. Um outro é o da
objetividade, pois a que me posso permitir aqui pareceria no jornal um
exagero ou uma provocação. O padre a apalpar os seios das raparigas, a
passar-lhes as mãos pelas faces, a tocar-lhes os lábios com os dedos, a
esfregar-se-lhes contra as nádegas, é uma cena que testemunhei e que ele,
ao ver-me
278
aproximar, nem sequer se deu ao incómodo de fingir que se tratava de
carícias inocentes.
As próprias raparigas, embora mal saídas da infância, também não me deram
a impressão de que se deixavam apalpar contra vontade. Bem ao contrário.
E os seus olhares e meneios demonstravam uma lascívia maior e mais
refinada do que a que seria de esperar naquela idade.
Mais tarde, quando a entusiasta irmã Clara me levou a visitar os
dormitórios, a maioria quartos de duas camas, em parte nenhuma vi
sobriedade; surpreendeu-me, sim, a seda e o colorido das colchas, o
excesso de almofadas, a abundância de ursos de peluche de todos os
tamanhos. Que era para compensar a grande pobreza donde as tinham tirado,
disse ela. A mim só me pareceu que havia ali algo de depravado e
indefinivelmente ambíguo.
Como escrever tudo isso no jornal sem parecer sensacionalista, ou levar a
que me julguem mais interessado em pedofilia do que na bondade dos
pastores que ternamente guiam as almas para o bom caminho? Melhor não,
pois como manda o velho mas sempre atual princípio judiciário: in dubiis
abstine.
Os leitores por certo julgarão que carrego as cores se, fiel à verdade,
lhes contar que na tarde em que com ela conversei a Mãe Maria, com a sua
atitude e o seu hálito, me deu mais a impressão de uma simples de
espírito enevoada pela pinga, do que de uma taumaturga prestes a cair em
transe e voar para o Céu. Resultado? Escamotearei a impressão.
Infelizmente, não é com hesitações que se escrevem os artigos, além de
que o muito pensar nos seus cornos e porquês em geral se lhes torna mais
contrário que favorável. Decido que fique para amanhã. E como se até
então para me contrariar o Diabo se tivesse intrometido, nesse momento
ocorre-me a conversa que tinha tido com um taxista em Vila do Conde e
«vejo a luz»; inverto a cronologia dos acontecimentos, vergo-me às razões
do meu censor íntimo, começo a escrever.
179
Segunda-feira, 1 de Maio — O Zé Maria morreu esta madrugada de um ataque
que lhe deu ontem depois da ceia. Ninguém mo tinha dito e eu, fechado em
casa a escrever o meu artigo, também não dei por nada, mas os que o
souberam correram a cumprir a tradição, a despedir-se e a fazer-lhe
companhia até que chegasse o fim.
Escondendo as lágrimas, os vizinhos e os amigos acarinham o moribundo e
sussurram-lhe palavras de encorajamento, lembram-lhe que não está só, que
o seu sofrimento é sofrimento de todos, que Deus se compadecerá da sua
alma.
Ainda é assim, ainda é como era na minha infância. Discretamente, uma a
uma, as pessoas aproximam-se da cama e falam ao moribundo. Os amigos
recordam-lhe as alegrias que viveram juntos e aqueles que o ofenderam ou
prejudicaram confessam o seu remorso, pedem-lhe que se apiede deles e
lhes perdoe. Ouve-se indistinto o murmúrio das orações dos que
esperam fora do quarto e de vez em quando o pranto que alguém não
consegue reter. É um ritual solene que dignifica a dor e a morte.
Das vezes que nele tomei parte em criança está-me mais presente a agonia
da minha avó paterna que, já sufocada pelas golfadas de sangue que lhe
subiam à boca, ao ver-me parar amedrontado acenou que me aproximasse e
ainda encontrou forças para com ambas as mãos me cobrir a cabeça e dar a
sua bênção.
Terça-feira, 2 de Maio — Minha mãe faz hoje anos, mas para ela como para
mim os aniversários são apenas uma data, e também não lhe está nos
hábitos o festejá-los. Dou-lhe os
bons-dias, felicito-a pelos seus oitenta e três anos, e ela olha-me
equivocada, pergunta se não me engano.
— Faça a conta. Nasceu em mil novecentos e doze e estamos em noventa e
cinco...
Pega em lápis e papel, porque de cabeça diz que não consegue fazê-lo e
laboriosamente aplica-se a subtrair, conclui que
208
tenho razão. E entristece. Ainda ontem tinha a certeza de que só ia fazer
oitenta e dois, mas com um ano a mais sente-se repentinamente quase
centenária:
— Então sou tão velha como o Antero?
— Não. O senhor Antero não fez oitenta e três, fez noventa e três.
No meu tempo de criança o senhor Antero distinguia-se para mim por ser
pequeno como o meu bisavô Cuco e pelo cavalo preto que todos lhe
invejavam. Mantinha-o por luxo, para ir às feiras e às festas, e dizia-se
que não havia outro na província inteira com aquela beleza de formas e
altivez do porte.
Quando subia para o selim de couro com embutidos, os pés em estribos de
prata, as esporas a rebrilhar nas botas, os alforges de lã colorida
ajustados aos flancos do cavalo, o senhor Antero como que crescia em
estatura e na aldeia não tinha par como cavaleiro. Do médico de
Carviçais, o doutor Adelino, que montava um pigarço grande, até se dizia
que evitava encontrá-lo a caminho das feiras, com receio de que ele o
desafiasse para uma corrida.
Vamos juntos no enterro, um pouco atrás do cortejo porque ele caminha com
dificuldade, agarrado a dois varapaus que, previdente, anos antes tinha
cortado de um olmo e guardado para quando as pernas lhe começassem a
falhar.
Digo-lhe que os varapaus, com o dobro da sua altura, me parecem grandes
de mais e desajeitados, que talvez remediasse melhor com duas bengalas.
Ele sorri, mas não zomba da minha ignorância de citadino. Com o pouco
tamanho que Deus lhe deu, como é que com uma bengala ia varejar as
amêndoas? Ou as azeitonas?
Por falta de forças e por não ter filhos, os grandes campos que possuía
estão quase todos ao abandono. As trezentas ou mais colmeias vendeu-as ao
Zé Avelino, que esse ainda tem pernas para descer até à ribeira. As
figueiras não precisam de
281
cuidados. Plantam-se e depois, pela graça do Senhor, vão dando figos de
geração para geração. Do resto, diz ele, vai tratando como pode.
Ou como não pode. É dramático de ver como com o sacho a tiracolo preso
por uma corda ele se aproxima cambaleando de uma oliveira e se encosta a
ela. Encosta os paus. Leva minutos a desenvencilhar-se do sacho e a
desprendê-lo da corda. Depois, sempre encostado à árvore para não cair,
cava pacientemente em redor do tronco. Arranhões tão leves que a terra
nem sequer os sente.
Dois garotos desatam a correr à frente do padre, abrem de par em par o
portão do cemitério e solenes como sentinelas seguram-no enquanto o
enterro passa. O caixão do defunto é posto sobre a ara para uma última
despedida e para que o padre o benza.
O senhor Antero reza de cabeça baixa, encosta um pau ao ombro para com a
mão livre se poder persignar e depois puxa-me pela manga. Curvo-me e ele
sussurra-me ao ouvido, apontando com o queixo o novo muro do campo-santo:
— A aldeia minga, o cemitério cresce.
Aproximo-me da sepultura e com melancolia dobrada deito sobre o caixão o
meu punhado de terra, porque para mim não morreu somente o homem, mas
também a personagem que eu um dia modelei nele.
Vou a Carviçais para uma compra e encontro o engenheiro Camisa a passear
pela estrada. Passeio higiénico, porque desde há dias se sente indisposto
e ao almoço comeu uma carne estufada que lhe assentou mal.
— Vocês tiveram lá hoje um enterro.
— Do Zé Maria.
— Sei. Fomos do mesmo ano. Ele estava doente há muito?
— Não. Teve um ataque e só durou a noite.
282
— É o melhor. Nada de camas e de doenças. Mas eu nem com isso me
contento, quero que me dê um repentino. Sabes o que diziam os antigos?
Morre feliz quem morre calçado.
Quarta-feira, 3 de Maio — O senhor Faustino, bem de saúde para os seus
noventa anos, mas totalmente desarranjado do miolo, quando se cansa de
estar sentado à porta sobe a debruçar-se na varanda de ferro que corre a
toda a largura da casa e aí, perdido nos tormentos da demência, braceja a
fazer discursos incoerentes.
Se vê passar alguém da sua simpatia chama-o pelo nome e interroga-o de
maneira que dá a ilusão de por instantes lhe ter voltado o juízo.
Hoje chamou-me com acenos, sem me nomear, como se fôssemos ambos
estranhos:
— Psst! Psst! Chegue aqui um momentinho. Como é que se chama esta
estação?
— Então o senhor não sabe?
— E Toulouse? Este comboio vai para Toulouse?
A mulher assoma à porta e pede-me para não fazer caso:
— Umas vezes lembra-se do tempo que esteve em França, depois é só Brasil,
Brasil. Fala sem pés nem cabeça, coitadinho. Se Deus se compadecesse de
nós levava-nos a ambos ao mesmo tempo, porque desde que o nosso António
morreu no desastre não andamos cá a fazer nada.
Quinta-feira, 4 de Maio — Uma coisa é querer, outra é ser capaz. Ciente
da minha falta de paciência nunca me meti a pintar fosse o que fosse, mas
a porta do quarto de banho chegou a um estado tal que desta vez tenho de
lhe dar remédio. Se ao longo dos anos a tinta se tivesse despegado e
caído, daria menos na vista, mas rachou e enrolou, o que lhe dá um aspeto
miserável. Começo a raspá-la a meio da manhã, e a meio da tarde tenho o
lado de fora pronto.
283
Bom momento para um passeio. Minha mãe, que feita capataz passou o tempo
sentada num banquinho a ver-me trabalhar, diz que se sente frouxa das
pernas e não quer ir comigo.
Meto para a serra a passo acelerado, o que sempre faz sorrir a minha
gente, que por experiência sabe que sem pressa se vai melhor e mais
longe. Mas em marcha forçada ladeira acima, ladeira abaixo, não conheço
maneira melhor para acalmar a agitação do meu espírito.
Encontro o Zé na encruzilhada das Queimadas e ele cortesmente para as
mulas e desmonta para um dedo de conversa. Falamos do enterro e do,
tempo, dos filhos que estão em Lisboa, da neta que já anda na
universidade. Pergunta se ainda me lembro do retrato que uma vez lhe
tirei. Lembro. A mulher comprou uma moldura muito bonita e puseram-no na
cómoda. Um dia que eu tiver disposição gostava de mo mostrar.
E depois, casualmente, quer saber se vou dali pelo caminho das Quintas,
donde ele vem, ou pelo da Navalheira. Vou pelo das Quintas, que é mais
bonito e sombreado.
Ele levanta o rebordo do chapéu para coçar a testa, desvia os olhos, diz
que é melhor não, é melhor que eu meta pelo da Navalheira.
— Mas porquê?
— Porque se vai incomodar. O Lindo fez para ali uma maldade.
Poucos haverá de feições assim aristocráticas e um olhar que parece
indiferente à hostilidade do mundo. A roupa também o não denuncia, porque
da que lhe dão por esmola nas casas abastadas, ele escolhe infalivelmente
a que pela cor e o corte o tornam quase elegante. Usa chapéu de aba larga
debruado a couro, boas botas. Mau grado tudo isso o José Lindo é
inegavelmente cigano, e o mais trágico de todos, pois vagueia sozinho
desde que muitos anos atrás, por razões de que nunca fala, a sua tribo e
a família o expulsaram.
284
Na nossa aldeia para aos meses, talvez porque não precise de ir de porta
em porta a pedir esmola, pois quando chega a hora há sempre mulher que
lhe leva um prato de comida ao banco ou à soleira onde ele se senta
amodorrado.
Dorme onde melhor lhe calha, ao ar livre, debaixo dos alpendres, nos
palheiros; se o tempo fica mau abriga-se numa casa abandonada e acende lá
uma fogueira.
À velhice e as agruras devem-no ter transtornado, com certeza a razão
porque deixou de fazer os cestos com que ganhava alguma coisa. E pouco
fala. Tem alturas em que nem sequer responde a quem lhe dá as boas-horas.
O Zé puxa as mulas e vamo-nos para a sombra de um sobreiro, porque o sol
de Maio mesmo ao fim da tarde ainda queima.
— Lembra-se dos burros que ele tinha? Dois burros grandes, um cinzento e
um castanho?
— Não, não me lembro.
— Quando fazia os cestos às vezes pedia que se lhe pagasse em grão,
porque só com a erva dos caminhos os animais não se sustentavam. Mas sabe
para que deu ao tarado há coisa de
mês e tal?
— Não faço ideia.
— Pois já que não lhes podia dar o sustento, ao menos que os deixasse à
solta na serra, que os lobos e os abutres se encarregavam deles. Mas não,
senhor. Levou-os por aí abaixo pelo caminho das Quintas e antes de chegar
à ribeira prendeu-os a um pinheiro e deixou-os lá ficar. Ora com o
desespero da fome e da sede os animais devem ter dado tantas voltas à
corda que acabaram por se enforcar nela. Os lobos e os cães vadios
comeram-nos por dentro, de modo que só lhes deixaram o esqueleto e as
cabeças. Metem medo, sabe, ali ao pé do caminho, com as bocas abertas e
de olhos arregalados. Acho que até será por isso que ainda ninguém se
atreveu a tirá-los de lá e enterrá-los.
285
O ir ver satisfaria a minha curiosidade mórbida, mas não quero fazer ao
Zé a desfeita de ignorar o seu conselho, e dou o meu passeio por acabado.
Volto com ele para a aldeia, dois homens de idade caminhando a passo, a
recordar o tempo em que o mundo era bom e simples.
Minha mãe está sentada na varanda a tomar o fresco. Sento-me também e ela
com o queixo aponta a casa vizinha e sussurra-me ao ouvido:
— O irmão foi ontem a enterrar e já estão a ver a televisão!
Encolho os ombros, desinteressado, mas ocorre-me que é curioso que ela,
surda como é, seja capaz de ouvir uma televisão que eu só oiço se me
concentrar.
Vou cedo para a cama. Desde que cheguei sofro de uma tosse permanente e
dores de garganta que de vez em quando me causam como hoje inesperados e
violentos ataques de febre. Quem sabe que pragas me terão rogado as
«santas» que visitei.
Sexta-feira, 5 de Maio — O dia começou com outra morte. A Sara estava de
cama há meses e, umas vezes mal, outras vezes pior, ia-se aguentando, mas
esta manhã entregou a alma a Deus.
Casou ainda novinha com o Justino e foi como ele figura dramática, ambos
personagens dum conto meu que sou incapaz de reler sem emoção. A Loekie,
que por vezes lhe esquecia o nome, chamava-lhe «aquela senhora distinta».
De facto, alta, erecta, serena como era, o seu porte tinha uma nobreza
deixada intacta pelos muitos anos de vida dura.
Num grupo que se juntou à esquina da rua comentamos que são mortes de
mais em tão pouco tempo, mas pelo menos a nossa gente morre de doença ou
de velhice, o que é natural,
286
e que nos últimos cem anos só houve três suicídios. Pelo contrário, em
Carviçais não passa ano sem que uns quantos não encontrem na corda o
remédio final para os seus sofrimentos.
E como se à semelhança das peças de teatro a vida também tivesse um
régisseur, o Fernando para o táxi junto de nós e conta que ontem à tarde,
na casa da terceira idade de Carviçais, um dos anciãos anunciou que não
esperassem por ele para o jantar, porque ia dar um passeio até à sua
antiga horta. Como se fizesse noite sem ele voltar, tinham ido procurá-lo
e encontraram-no enforcado numa figueira.
Sábado, 6 de Maio — Raspo o resto da porta, lixo-a para a alisar, dou-lhe
a primeira demão de tinta. Preparo-me para o enterro e como são quase as
três vou com os outros esperar no adro da igreja.
O doutor Pimentel chama-me para dentro do seu escritório e diz que é
melhor ficarmos ali sentados, porque a coisa vai ser demorada. O padre
tem outro enterro em Lagoaça e não vai chegar antes das cinco. Além
disso, diz ele, as filhas da Sara resolveram que o enterro seja de
estadão, à moda da cidade, e mandaram vir um carro funerário. Chança
tola, porque da igreja ao cemitério serão trezentos metros. Mas enfim,
querem mostrar dinheiro, pois que o mostrem.
O padre vem às seis, o carro ainda não chegou, e sem carro a família não
deixa sair o caixão. O povo resmunga, o padre resmunga, passa já das
oito, hora a que todos julgavam estar há muito em casa a ver a televisão,
quando o carro finalmente aparece.
Vai o funeral para a igreja, a passo, porque o carro mal se mexe com as
filhas da falecida agarradas às portas, pranteando em altos gritos. À
vez, como se fossem atrizes a dialogar num drama. E de certa maneira são,
daí que ninguém as tome a sério ou partilhe o seu pesar. Quase todos
vamos ali por amizade pela Sara, mas é difícil manter a seriedade com
aquele teatro.
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— Ó minha mãezinha! Ó mãezinha adorada que nunca mais te voltarei a ver!
— Ó minha querida mãe! Ó minha santa mãe! ó luz da minha vida!
Algumas pessoas tapam as caras com os lenços para que se lhes não veja a
troça. O cortejo para à porta da igreja e as carpideiras calam-se um
instante, mas nesse curto silêncio um ancião (o respeito manda que fique
anónimo), sem força para segurar mais tempo os intestinos, larga uma
peidorrada monumental. As pessoas dobram-se sufocadas pelo riso, mesmo o
padre finge que assoa o nariz.
O resto da cerimónia é feita à pressa. A reza demora minutos e a caminho
do cemitério, agora que as carpideiras vão sentadas na cabine, o
andamento do carro quase que nos obriga a correr. O resto é pró-forma.
Assim que põem o caixão na ara e as filhas desatam de novo aos gemidos e
aos lamentos, a maioria das pessoas, eu idem, perde a paciência e vai-se
embora.
Domingo, 7 de Maio — Deito-me ao começo da tarde a ver se recupero da
tosse e da febre, e durmo como um justo quando uma algazarra à nossa
porta me acorda em sobressalto.
Corro a ver, mas é coisa de pouca monta: o Benjamim tinha descoberto uma
cobra a dormir ao sol no telhado da capoeira, correra a armar-se com uma
calagouça e no meio do alarido das mulheres e das crianças tinha matado a
bicha.
Vão buscar uma fita métrica para a medir. Tem dois metros e cinco de
comprimento, vinte e dois centímetros de grossura. Felicito o Benjamim,
que apoiado ao cabo da calagouça e a lâmina sobre a cabeça da cobra,
tomou uma pose de caçador em selva africana.
As pessoas olham como se esperassem qualquer coisa de mim, mas a
brusquidão com que acordei da sesta deve-me ter
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tornado obtuso, porque só compreendo os olhares quando finalmente alguém
sugere que matar um monstro daqueles merece retrato.
Vou buscar a máquina e fotografo o Benjamim junto da presa.
Volto para a cama. Readormeço. Passado pouco mais de uma hora acordo de
novo com o barulho de gritos. Como me deitei vestido, dum salto estou na
rua, onde as pessoas se juntaram a olhar para qualquer coisa no chão.
Minha mãe, excitada, chama-me para que venha ver e conta que estava
amodorrada quando sentiu outra cobra passar-lhe aos pés. Foi
buscar um sacho e antes que ela desaparecesse nalgum buraco tinha-lhe
assentado uma pancada que a matara duma vez só. Com a idade que tem, é ou
não é um feito de valentia? Dizemos-lhe em coro que sim.
Do estômago arrombado da cobra e com um fedor tão intenso que nos obriga
a tapar o nariz, escapam-se os restos mal digeridos dum sapo. Trazem
outra vez a fita métrica. Tem um metro e dez de comprido, doze
centímetros de grosso.
Orgulhosa, minha mãe apoia-se ao cabo do sacho e toma a mesma pose que
tinha visto ao Benjamim. Os vizinhos esperam curiosos e eu, escondendo
que o faço contrariado, vou buscar a máquina e fotografo-a também.
Segunda-feira, 8 de Maio — O senhor Aleixo vem instalar a máquina de
lavar roupa e, como ele não tem outro, sirvo-lhe eu de ajudante. Para
apressar o serviço e ainda porque a minha confiança na instalação
elétrica da casa não é por aí além. A canalização da água, essa é um
verdadeiro desastre, pois mal se mexe num tubo aqui, logo rebenta outro
mais adiante. Mas o senhor Aleixo, além de competente, trouxe o material
preciso e antes de findar a tarde está a instalação feita a contento.
Sentamo-nos no chão a beber uma cerveja e depois do primeiro golo oiço-o
resmungar. Pergunto-lhe se alguma coisa o preocupa.
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— É que não se me mete na cabeça, sabe? Então eu vi-o na televisão, a
falar como um doutor, e agora está aqui a beber uma cerveja comigo e
andou o dia todo a fazer de meu servente? Custa-me a acreditar.
Desde pequeno o Joãozinho tem a minha simpatia. Garoto alerta, mas sem
vontade de aprender na escola e sempre a inventar malandrices, na
adolescência descarrilou um bocado,
trabalhou na construção civil, andou pela droga, bebeu, escapou só com
arranhões de tantos desastres com a motorizada que se começou a dizer que
tinha anjo-da-guarda.
Aos vinte anos foi para os comandos e corrigiu-se. Depois emigrou para a
Alemanha e agora, diz-me a mãe, foi passar férias com o irmão que vive em
Grenoble.
— O senhor falará muitas línguas, mas o meu Joãozinho fala alemão como se
tivesse nascido na Alemanha! Quando cá esteve o ano passado ouvi-o falar
com um alemão e não entendi patavina, enquanto que o alemão entendia tudo
o que ele lhe dizia. Até parecia como nas telenovelas.
Terça-feira3 9 de Maio — Curandeiros, bruxas, videntes, o que eu quiser.
Falo com o Fernando sobre as minhas andanças de há duas semanas e ele diz
que é uma pena que não lho tenha contado logo, porque me levava aos
melhores. Com o táxi faz muitos serviços para as feiras e com doentes
para o hospital, mas no que ganha mais é a correr pelo país inteiro a
levar as pessoas à bruxa.
Se se fala hoje de uma «santinha» que apareceu no Alentejo ou no Algarve,
amanhã já todos lá querem ir. Pedem para sair de noite e dizem-lhe que
leve o táxi para um certo sítio que eles lá irão ter. Com muito segredo,
claro, porque não gostam que se saiba, pois umas vezes vão por causa de
alguma doença, para um benefício, mas muitos é para deitar mau-olhado ou
para azarar os vizinhos.
É mesmo pena que não lho tenha dito, porque me levava à tia Maria, em
Atenor, ao pé de Miranda:
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— Essa tem tanta «virtude» que até mete medo. Em África assisti a muita
coisa de adivinhos, mas como a tia Maria nunca vi nenhum. A gente chega
lá e ela, sem saber quem somos, conta-nos a nossa vida por inteiro.
Segredos e tudo.
Também espetacular de ver é o padre Miguel, de Meimão, que só faz bem e
cura muita gente, mas às vezes de repente assenta na cabeça das pessoas
um soco tão valente que as deixa a cambalear. Pelos jeitos é para lhes
espantar o diabo do corpo. Se não quero fazer a despesa do táxi, podemos
ir lá juntos no meu carro.
Digo-lhe que não é pela despesa, mas porque o artigo está pronto e tão
cedo não tenho intenção de me interessar de novo pelo sobrenatural.
— O senhor diz isso porque não viu o «doutor» António, o que vive em
Nozelos. Tirava-lhe a tosse, sabe? Esse não adivinha nem faz feitiçarias,
mas cura tudo, porque encarnou nele um doutor espanhol. E é analfabeto!
Por isso tem sempre alguém que sabe escrever e toma nota do que o
«espírito» lhe diz. O mais engraçado é que as pessoas vão depois com as
«receitas» à farmácia e o farmacêutico avia-as sem hesitar, porque pelos
jeitos são mesmo escritas à maneira dos médicos.
Agradeço-lhe as informações e o entusiasmo, mas para a minha tosse, a
aspirina e o xarope de tominho devem ser feitiço que baste.
Quarta-feira, 10 de Maio — Diz o doutor Pimentel a propósito do meu
artigo para o Volkskrant sobre as bruxas e os videntes que ele, como de
costume, pediu que lhe lesse:
— Mas isso lá na Holanda não vai dar uma imagem um bocado chocha do nosso
país e da nossa gente?
Talvez dê, mas que fazer se a gente e o país são assim? Por outro lado,
onde é que as pessoas não são supersticiosas quando se veem aflitas? E
conto-lhe o caso do curandeiro holandês que mantém em Lagos um
florescente consultório com clientela internacional.
291
Ele olha-me desconfiado e diz que invento coisas para o aquietar. Que não
é possível que num país desenvolvido como a Holanda ainda haja quem
acredite em bruxas.
Quinta-feira, 11 de Maio — A um adolescente seria de perdoar, mas a um
velho? Por um desatino a véspera da minha partida quase redundou em
desastre.
O dia estava esplêndido, as malas prontas, e ao começo da tarde vi-me de
súbito com tempo de sobra e pouca vontade de ficar em casa ou de subir à
serra. Magiquei. Resolvi repetir um passeio que tinha feito pela última
vez há vinte ou mais anos.
No meu guia de Portugal escrevi que «uma vez apreciado o panorama, os
espíritos aventureiros seguirão o caminho para a aldeia de Poiares.
Depois, a pé, farão os oito quilómetros que restam da milenária Calçada
de Alpajares, a antiga via romana que ia do vale do Douro para o Norte.
Parte desse trajeto pode também ser feito de carro. Vagarosamente. Mas
seria um insulto à natureza, ao silêncio e à majestade do sítio».
O provérbio diz: «Bem prega frei Tomás...» E eu poderia ainda argumentar
que as minhas pernas já não têm a agilidade que tinham vinte anos
passados. Mas tudo isso seriam desculpas de mau pagador.
Chegado a Poiares a decisão certa teria sido de ir a pé pelo caminho,
pois a ida e volta não levaria mais que umas quatro horas. Mas não,
senhor. Preguiçoso e seguro que ninguém me veria insultar a natureza, o
silêncio e a majestade do sítio, meti o carro para a Calçada de Alpajares
e comecei a descida.
Durante os primeiros dois quilómetros nada de particular. Carreiro
bastante largo, embora não desse para dois carros, descida suave, aqui e
além um fio de água. Panorama sensacional, encostas rochosas cortadas a
pique, o vale do Douro a vislumbrar-se às vezes por entre os montes.
Poucos sinais de lavoura e em parte nenhuma um vulto de gente. Uma curva
apertada, questão de com o pequeno Renault Clio fazer duas ou três vezes
marcha atrás e marcha
292
à frente. A meio de uma encosta, cercada por um muro de pedra musgosa e
provavelmente ao abandono, uma grande plantação de catos que pelo tamanho
devem estar ali há séculos.
E de súbito, naquela esplêndida, soalheira, serena tarde de Maio, gelou-
se-me o sangue e parei: olhando acidentalmente dei-me conta de que do
lado esquerdo o caminho tinha desaparecido sob as rodas e do lado direito
o carro estava quase encostado à ladeira. Abri devagarinho a porta. Entre
a roda e o despenhadeiro havia menos de meio metro de terra solta.
Desprendi o cinto de segurança, deixei a porta aberta para poder saltar
se fosse preciso e creio que rezei ao mesmo tempo que largava a
embraiagem. O carro avançou uns centímetros e prendeu-se num piso mais
firme.
Um pouco adiante o pesadelo voltou a repetir-se e o resto da descida fi-
lo do mesmo modo: ora a ponto de resvalar e despenhar-me, ora medindo em
palmos o espaço entre as rodas e o abismo. E se por acaso tivesse
aparecido outro maluco em sentido contrário, não poderíamos tirar os
carros dali, pois o fazer marcha atrás equivaleria ao suicídio.
Com cautela imensa, alagado de suor, pedindo a Deus que me perdoasse a
leviandade, levei quase três horas a percorrer três ou quatro
quilómetros. Dei um grito de alegria quando vi que à minha frente o
caminho parecia continuar por um relvado plano. Acelerei e logo travei a
fundo. O caminho não continuava! O caminho terminava junto dum ribeiro,
num declive inclinado e com uma altura que nunca eu conseguiria que o
carro o transpusesse.
Felizmente o chão era húmido e mole. Primeiro com um pau, depois usando
as rodas traseiras, consegui escavar o bastante para reduzir o desnível a
metade. O carro deslizou com a frente apontada ao ribeiro, as rodas
cavaram um pouco mais e, muito devagarinho, grato porque a água não
chegava ao motor e o fundo do ribeiro era de seixos, consegui atravessar
para a outra margem onde um estradão levava ao asfalto.
Mas antes de seguir adiante sentei-me na relva a descansar e a dar tempo
que se me acalmasse o tremor do corpo. Abanei
293
a cabeça, porque não me sabia tão tolo e imprudente, mas finalmente
consegui sorrir, porque na minha idade, sem cordas, nem jangada, nem Land
Rover, ao fazer a travessia do ribeiro eu tinha conseguido uma razoável
imitação do Catnel Man que se vê nos anúncios da marca de cigarros.
Sexta-feira, 12 de Maio — Faço sem novidade as duas centenas e tanto de
quilómetros entre a aldeia e o aeroporto. Horas vazias à espera. No avião
tenho por vizinha uma rapariga trombuda e silenciosa, daquele tipo que
desde o cabelo cortado rente às botas de para-quedista, e desde a roupa
informe às revistas que lê, em tudo apregoa um feminismo agressivo. Que
lhe preste e seja feliz.
A chegada a Schiphol é, como de quase todas as vezes, acompanhada por um
sentimento indefinível em que se misturam a alegria e o bem-estar, a
segurança, a satisfação do regresso ao ninho.
Sábado, 13 de Maio — Na minha vida, e isso irrita-me sobremodo, há um
rosário de contas não ajustadas.
Nos momentos mais sombrios acuso-me de que as não ajustei por cobardia, o
que não é totalmente verdade, pois também nos ajustes it takes two to
tango. E de vez em quando os oponentes esquivam-se, afastam-se da nossa
vista ou simplesmente desaparecem, deixando-nos entregues à frustração
das palavras silenciadas.
Enquanto os sei vivos ainda vou mantendo a ilusão de que um dia chegará o
momento propício; e por isso a minha raiva maior vai para os que, mortos,
me retiraram para sempre a possibilidade de lhes pagar na mesma moeda e
com juros.
Domingo, 14 de Maio — A Loekie e eu festejamos o meu regresso, jantando
num restaurante justamente reputado pela qualidade da sua cozinha.
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Na mesa próxima sentam-se duas mulheres que fumam, tagarelam, bebem água
e visivelmente têm dificuldade em escolher na lista o que vão comer.
O empregado sugere que experimentem o excelente cordeiro, o que leva uma
das damas a gritar-lhe revoltada:
— Eu não como carne de animais novos!
O empregado, modelo de cortesia, sorri e aguarda circunspecto. Eu suprimo
um comentário que feito em voz alta de certeza daria briga.
Segunda-feira, 15 de Maio — Oficialmente entrei hoje na velhice, mas nem
eu pranteei nem os céus trovejaram, e o dia passou como a maioria dos
dias passa: corriqueiro e calmo.
Se o corpo ou o intelecto funcionassem mal, se a minha alma andasse
desvairada, se um drama ou a miséria me ameaçassem, eu teria razões de
queixa. Mas como nada disso acontece, só tenho motivos de inquietação: o
de ignorar donde venho e de por vezes não saber quem sou, o dar-me conta
de como o tempo de uma vida é um instante irrisório, a incerteza do que
será o meu destino, o mistério do que fica para lá do fim.