Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
David Lehmann
University of Cambridge – Reino Unido
Resumo: Após um longo período, durante o qual sua obra foi negligenciada ou
desprezada pela academia brasileira e admirada principalmente por não-brasileiros
com pouco conhecimento sobre o Brasil, uma reavaliação das idéias e do estilo de
Gilberto Freyre teve início durante a década de 1990, separando o caráter incisivo
de algumas de suas idéias do caráter superficial de outras, e tentando distinguir fatos
de mitos criados sobre ele, alguns dos quais foram construídos por si mesmo. Este
artigo descobre a heterogeneidade, senão a promiscuidade da leitura do jovem Freyre,
que pode explicar porque ele desconcertou seus leitores por tanto tempo, já que era
difícil colocar um simples rótulo nesse indivíduo que era claramente anti-racista,
embora também um tanto conservador. O artigo também desmascara o “mito do
mito” da democracia racial – um termo que Freyre nunca aplicou ao Brasil, exceto
com hesitação e qualificações.
Abstract: After a long period in which his work was neglected or despised by Brazilian
academia, and admired principally by non-Brazilians with little knowledge of Brazil,
a re-evaluation of Gilberto Freyre’s ideas and style got under way during the 1990s,
sorting out the incisiveness of some of his ideas from the superficial character of
others, and trying to separate out facts from the myths created about him, some of
which were of his own making. This article discovers the heterogeneity, if not the
promiscuity of the young Freyre’s reading, which may explain why he disconcerted
his readers for so long, since it was hard to place a simple label on this individual
*
Agradeço a tradução de Carlos Eugenio Marcondes de Moura assim como o auxilio de José de Souza
Martins e Peter Fry. Este artigo é uma versão revista de Gilberto Freyre: the Reassessment Conti-
nues, publicado na Latin American Research Review (Lehmann, 2008).
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
370 David Lehmann
who was clearly anti-racist yet also rather conservative. It also unmasks the’ myth of
the myth’ of racial democracy – a term which Freyre never applied to Brazil except
with hesitation and qualifications.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 371
[…] tudo aquilo que constitui uma sincera expressão da vida… na ternura, na
mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música,
no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno… Da escrava ou sinhama
que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria
amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as
primeiras histórias de bicho e de mal assombrado. Da mulata que nos tirou o
primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e
nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de
homem.
1
A escultura, destinada ao edifício modernista do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro,
teve sua encomenda cancelada por Gustavo Capanema, o poderoso Ministro da Educação e Saúde de
Vargas. O artista não concordou com a concepção ariana de Capanema em relação ao homem
brasileiro típico. A obra, que deveria ter 12 metros de altura, jamais foi concluída e o molde foi
destruído, fato encarado por alguns como um acidente suspeito. A correspondência e um instrutivo
artigo publicado no jornal Correio da Manhã (em 29 de setembro de 1938) são reproduzidos por
Lissovsky e Sá (1996, p. 224-237).
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
372 David Lehmann
2
Correndo o risco de parecer pedante, embora Andrews afirme que Freyre contrastava diretamente
a democracia racial brasileira ao nazi-racismo, o texto original se refere, de fato, à democracia
social. Ver Gilberto Freyre (1986, p. xii). Trata-se de uma reprodução da segunda edição, em
brochura, da tradução de Samuel Putnam, realizada em 1946, com (mais outro) novo prefácio de
Freyre e uma introdução de David Maybury- Lewis.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 373
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
374 David Lehmann
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 375
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
376 David Lehmann
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 377
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
378 David Lehmann
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 379
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
380 David Lehmann
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 381
Freyre evitava qualquer arena intelectual, com exceção daquela que po-
deria controlar, especificamente o Instituto Joaquim Nabuco em Recife, sub-
vencionado pelo governo e por ele dirigido, as páginas do Diário de Pernambuco,
onde podia publicar o que bem entendesse, e os infindáveis prefácios nos quais
destratava sistematicamente quem quer que o criticasse. Animal altamente
político, não era alguém que se alinhasse a uma determinada ideologia ou par-
tido – pelo menos não em público – mantendo-se em bons termos com gover-
nos de todas as tendências. Durante muito tempo mais admirado no exterior do
que em seu próprio país, tinha poucos discípulos (embora muitos seguidores),
não inspirou uma escola de pensamento e, durante décadas, foi atacado ou, na
melhor das hipóteses, ignorado pelos acadêmicos brasileiros, especialmente as
gerações pós-guerra de historiadores e cientistas sociais da Universidade de
São Paulo. Eles pouco sabiam daquele Nordeste que inspirou o macromodelo
de Freyre referente às relações sociais no Brasil e, até a década de 1980,
tendiam a adotar uma abordagem à história baseada na economia. Para muitos
deles Freyre não passava de um empolado defensor de uma ordem social injus-
ta e discriminatória. Talvez não seja por acaso que as avaliações “sulistas”
mais valorizadoras tenham partido do Rio, especificamente de Araújo e dos
compiladores da edição crítica unidos em torno de Giucci. De sua parte, Freyre,
a partir dos anos 1930, já encarava São Paulo como território inimigo. Nas
palavras do sociólogo José de Souza Martins:3
A USP sempre tentou aproximar-se de Freyre, tanto quando ainda era titular de
sociologia o professor Roger Bastide (que traduziu Casa-grande e Senzala para
o francês) quanto quando se tornou titular da cátedra Florestan Fernandes. Há
muitos anos, li no arquivo aqui da minha Faculdade de Filosofia da USP, a troca de
cartas entre Bastide e Freyre, relativas ao convite a Freyre para que participasse
da banca de exame da livre-docência de Florestan (que apresentou uma tese
densamente teórica e puramente sociológica). Freyre desculpou-se e não aceitou
o convite. Pareceu, antes, temor de enfrentar uma discussão teórica, sobre temas
que Freyre não dominava, com a mais teórica das inteligências da sociologia
brasileira. Florestan, já catedrático, voltou a convidar Freyre (de quem era amigo)
para fazer parte da banca de Fernando Henrique Cardoso, sobre o negro no Rio
Grande do Sul, cuja análise se apoiava no método dialético de Marx, e expressava
3
Comunicação verbal.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
382 David Lehmann
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 383
ado de louros, premiado pela Academia Brasileira de Letras, tendo obtido tam-
bém o Prêmio Jabuti. Se Freyre agora surge sob uma nova luz, isso se deve à
magistral biografia de Pallares sobre sua juventude. Longe de ser uma
hagiografia, é, ao contrário, extremamente judiciosa e evita a tentação da polê-
mica a que o tema convida. Só nos resta esperar que Pallares prossiga com
outras publicações sobre o período posterior da vida de Freyre.
Referências
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
384 David Lehmann
FREYRE, Gilberto. The mansions and the shanties: the making of modern
Brazil. New York: Knopf, 1963.
FREYRE, Gilberto. The masters and the slaves: a study in the development of
Brazilian civilization. Berkeley: University of California Press, 1986.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Edição crítica de autoria de
Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca. Paris:
ALLCA XX, 2002. 1261 p. Com ilustrações. (Coleção Archivos).
FRY, Peter. Feijoada e soul food: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos
e nacionais. In: REUNIÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O
PROGRESSO DA CIÊNCIA, 28., 1976, Brasília.
FRY, Peter. Feijoada e soul food: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos
e nacionais. In: FRY, Peter. Para inglês ver. identidade e política na cultura
brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 47-53.
FRY, Peter. “Feijoada e soul food’ 25 anos depois. In: FRY, Peter. A persistência
da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. p.47-53.
HTUN, Mala. From racial democracy to affirmative action: changing state policy
on race in Brazil. Latin American Research Review, v. 39, n. 1, p. 60-89, 2004.
LACERDA, Carlos. Depoimento. Editado por Carlos Lacerda Paiva. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1977.
LARSEN, Neil. O “híbrido” como fetiche: “raça”, ideologia e narrativa em
Casa-grande e senzala. In: LUND, Joshua; McNEE, Malcolm (Ed.). Gilberto
Freyre e os estudos latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de
Literatura Iberoamericana, Universidade de Pittsburgh, 2006. p. 379-394.
LEHMANN, David. Gilberto Freyre: the reassessment continues. Latin
American Research Review, v. 43, n. 1, p. 208-218, 2008.
LISSOVSKY, M.; SÁ, P. S Moraes de. Colunas da educação: a construção do
Ministério da Educação e Saúde, 1935-1945. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Getúlio Vargas:
Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil, 1996.
LUND, Joshua; McNEE, Malcolm (Ed.). Gilberto Freyre e os estudos
latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura
Iberoamericana, Universidade de Pittsburgh, 2006.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008
Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue 385
Recebido em 30/11/2007
Aprovado em 05/02/2008
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008