A Rota Sangrenta
“O oficial russo cai para frente e eu cravo meus dentes em sua garganta. O
sangue corre por sobre meu rosto, mas eu não o noto. Estou lutando por minha
vida. Ele se bate desesperadamente para se soltar. mas eu mantenho meus
dentes cerrados como um buldogue enlouquecido. Minha boca enche-se com
seu sangue. Ele agita-se num longo estertor e um terrível tremor apossara-se de
seu corpo. Seccionei-lhe a carótida... Torço-me para sair de sob seu corpo e
agarro sua metralhadora. Viro-a em direção aos outros, mas o carregador está
vazio.
Com toda minha força atinjo a cara do que está mais perto com o cano da
arma. Dando um agudo grito, ele cal com o rosto numa sangrenta massa.”
Eles eram conhecidos como a unidade mais selvagem de todo o exército
alemão! Naquela mortífera floresta de cactos, Tiny, Porta e o resto deles
encontraram um lugar que Deus esquecera, que rescendia a perigo e a morte...
A ROTA SANGRENTA
A ROTA
SANGRENTA
Tradução de
ANTONIO C. G. PENNA
EDITORA RECORD
Título original inglês
THE BLOODY ROAD TO DEATH
A FLORESTA DE CACTOS
AS PULGAS
SERVIÇO DE ESCOLTA
CHÁ DARJEELING
ELEVAÇÃO DEMON
O COMISSÁRIO
FOI ASSASSINATO
Se eu não for muito cuidadoso, aquele maldito do Himmler em breve
colocará todos os meus amigos dentro de seus campos de concentração.
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Escondidos atrás de uma parede, eles pintam a Mercedes preta com tinta de
camuflagem do Exército. Para dar maior verossimilhança, Porta dá-lhe algumas
amassadelas com uma marreta. Acabamento do front oriental, ele as batiza.
– Foi uma pena; era um carro tão bonito – comenta Tiny.
Dirigem vagarosamente através da cidade.
– Vamos tomar um café – diz Porta, apontando para um grande e pomposo
edifício que se parece com um hotel de luxo.
Tudo o que lhe falta para isso são as mesas na calçada e guarda-sóis. Ele
faz com elegância a curva até a entrada.
– Não pare! – grita Carl. – Olhe para aquelas sentinelas!
– Jesus! – murmura Porta. – Isto não me parece de forma alguma um lugar
próprio para nós.
– SD! – geme Tiny, amedrontado. – Se alguém perguntar, não estou com
vocês!
Porta dá uma rápida acelerada no motor e o carro lança-se para a frente,
soltando dois colossais tiros pelo cano de descarga que fazem as sentinelas SD
agacharem-se, procurando cobertura. Passam por diversas patrulhas de polícia e
bloqueios de estradas, mas tão logo os guardas notam o galhardete triangular de
comando fazem sinal para o carro prosseguir e, em breve, os três estão fora da
cidade.
No dia seguinte, entram em Kukes onde encontram um Ajutante di
Battaglia italiano* que é o mestre-cuca de uma unidade de estado-maior de alta
posição.
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* Ajutante di Battaglia: W.O.
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Com surpresa, descobrem por seu intermédio que estão na Albânia.
– Nós estamos a caminho de Gemersheim via Viena – diz Carl, tristonho.
– Então vocês estão um pouco fora de seu caminho – diz o italiano, rindo.
– Mas agora que estão aqui, por que não comem algo comigo?
Dois ajudantes de cozinha põem uma mesa na calcada debaixo de um
grande toldo com as cores verde, vermelha e branca da Itália.
O primeiro prato é peru com um molho verde.
– Isto era para meu comandante de divisão – informa o italiano cujo nome,
diz-lhes ele, é Luigi Trantino. – Eu lhe darei outro prato. Os convidados de
Luigi têm direito à boa comida.
Saboreiam o peru com vinho de montanha servido num enorme jarro.
. – Sou um bravo soldado – afirma Luigi, apontando para uma fileira de
brilhantes fitas de condecorações em seu peito. – Estas eu ganhei na Abissínia.
– Ah, sim. Você estava ali ensinando aos pretos a verdadeira fé romana? –
pergunta Tiny. Luigi concorda com a cabeça, incapaz de falar com a boca cheia
de peru.
– Eles entendem depressa. Apenas um Deus!
– Naturalmente – concorda Porta, recostando-se e colocando mais um
pedaço de peru na boca escancarada.
– Como é aquela gente por lá? – pergunta Tiny, curioso. – Eles mordem?
– São boa gente – diz Luigi, fazendo um gesto com o garfo. – Eles não têm
mau cheiro, como dizem os americanos. Este negócio de raça não faz sentido.
– A mim também não incomoda – exclama Porta, mergulhando um pedaço
de pão no molho verde.
– Antes da guerra eu tinha um hotel de primeira categoria – proseia-se
Luigi. – Todos os homens importantes vinham comer comigo. Musso comeu
duas vezes. Era um grande harém! Toda a espécie de mulherio! Todas! Depois,
os porcos fascistas fizeram os pacíficos italianos irem lutar na guerra! – suspira
ele. – Os soldados ocupam meu hotel. Fazem-me usar uniforme. Tudo uma
merda! A África é terrível! Durante muitos meses, nunca vi uma zuppa de
calamaro. Não há cultura por lá. Tão ruim como na Alemanha, um italiano
morre de corpo e de alma, se ficar lá muito tempo.
Os ajudantes trazem o próximo prato.
– Pasta com le sarde – anuncia Luigi, orgulhoso. – Isto a Máfia come,
quando seus chefões planejam grandes golpes.
Porta estala a língua.
– Vocês romanos certamente sabem como gozar a vida.
– Nós não somos lá tão ruins – admite Luigi.
– Você tem espaguete? – pergunta Porta. – Sabe: com molho pardo e
coberto com queijo.
– Naturalmente que temos! – E a encomenda é passada imediatamente para
a cozinha. – Quando eu monto um bordello nunca aceito pequenas que não
foram criadas com Spaghetti alla Carbonara – confidencia Luigi, deliciado. –
Lubrifica bem por dentro!
Tiny serve-se de uma enorme porção de espaguete do prato no meio da
mesa. Mastiga, engole e luta bravamente com a massa.
Parece que o espaguete jamais vai desaparecer por sua garganta abaixo.
Vagarosamente, o rosto dele começa a ficar azulado.
– Com isto deve-se comer queijo – diz Luigi, com um ar profissional.
Tiny inclina a cabeça, com a boca inteiramente cheia. Sacode o queijo
sobre o que parece tiras quilométricas de espaguete.
– Ele vai morrer – diz Porta, observando com interesse o rosto arroxeado
de Tiny.
Desesperado, Tiny agarra o espaguete com ambas as mãos e arranca-o da
boca.
– Por amor de Deus! Como é que vocês italianos conseguem continuar
vivos com uma refeição de espaguete? – geme ele.
– Você precisa aprender a comer – explica Luigi. – Veja só! – Como um
relâmpago, ele enrola o espaguete em torno do garfo. – Veja de novo! – diz
novamente cheio de segurança, e repete o truque várias vezes.
Porta e Carl desistem logo, mas Tiny, em sua teimosia. atrapalha-se todo
com o espaguete. Por fim, desiste e passa a comer o resto com os dedos.
– Este é um lugar de merda – declara sombrio Luigi, quando eles já
digeriram em silêncio durante algum tempo. – Os oficiais são todos uns merdas.
Já estou cheio deles; são uns tremendos glutões. Reclamam sempre que o vinho
está muito novo ou que está frio demais. Querem comer pato assado, caça,
lagosta. Eles não parecem saber que estamos no meio de uma guerra de 30
anos, com fome e miséria por toda a parte. Fico tão danado que me dá vontade
de mijar neles.
– Vocês comem e bebem bem – diz uma voz subitamente ao lado da mesa.
– Que diabo é isso? – grita Luigi, e quase não pode acreditar em seus
olhos.
Um negro, preto como carvão, usando um fez vermelho na cabeça, vestido
com uma túnica de uniforme iugoslavo cinza-azulado está de pé na beira da
calçada rindo-se abertamente. No pé esquerdo, calça uma bota de tropa de
montanha italiana; no pé direito, uma comprida bota de montaria de oficial
alemão.
– Vocês comem bem – repete ele, apontando para comida na mesa. –
Deem-me um pouco!
– Os bons modos fazem o homem, meu bom preto velho – diz Porta, com
dignidade. – Você está em companhia de brancos.
– Vá-se foder, alemão! Quer que lhe arrebente os dentes?
– Isto me faz perder a porra da cabeça – grita Tiny, indignado. – Não ê que
a porra dos colonos aprenderam a falar! Está indo para a porra do Reich,
companheiro?
– Se ele está indo para lá, vai ter um choque – diz Porta. – O socialismo
não é o que dizem!
– De onde vem você, negro? – pergunta, curioso, Luigi.
– Foda-se você também, spaguetti. Não perguntei de onde você apareceu,
perguntei? Arranje-me alguma comida! – E puxando uma cadeira, senta-se à
mesa sem esperar por convite, empurrando o prato de Carl para o lado a fim de
abrir espaço.
– Beppo! – grita Luigi para a cozinha. – Traz uma lagosta. Você gosta de
molho forte? – dirige-se ao negro, com um sorriso maroto.
– Posso comer fogo, se quiser.
– Por Deus que eu gostaria de ver isso – exclama Tiny. – Vi alguém fazer
isso no Reeperbahn. mas era uma puta.
– Diabo Especial Vermelho nº 1 – ordena Luigi para a cozinha, com um ar
de expectativa estampado no rosto.
Porta levanta-se e vai para a cozinha ajudar Beppo.
– Chili – ordena ele, esvaziando uma lata inteira de pó no molho. Uma
colher ou duas de pimenta de Caiena e um toque de caril preto. Lembra-se em
tempo de juntar algumas pimentas vermelhas.
– Páprica é cheia de vitamina e – diz Beppo, passando-lhe uma lata grande
do condimento.
– Beleza de comida – diz Porta rindo e terminando com uma enorme
porção de alho em pó.
Beppo ri tanto que quase deixa cair as cinco lagostas ao trazê-las para a
mesa.
– Serviço demorado! – reclama o negro albanês.
– Aqui está o molho especial – diz Porta – mas estou certo de que será forte
demais para você. Apenas homens brancos o suportam.
– Nada é forte demais para mim – brada o negro, proseando-se, e
apanhando uma lagosta arranca a parte carnosa dela, quebra-lhe as garras com
os dentes e mergulha tudo no molho Diabo Vermelho.
Porta observa-o com os olhos arregalados como alguém assistindo a uma
tentativa de suicídio.
– Vocês acham que devemos chamar os bombeiros? – pergunta Beppo,
encarando, firme, sua vítima.
O negro enfia a lagosta na boca e engole-a. Seu rosto fica subitamente
cinzento, endurece, sua boca se abre, e terríveis caretas espalham-se por sua
cara. Por um momento, parece já estar morto.
Tenta falar. Nenhum som escapa-lhe dos lábios.
Polidamente, Porta oferece-lhe vinho.
Ele o agarra e engole o conteúdo do jarro. Agora e que o molho começa
realmente a agir. Corno um foguete, o preto pula no ar, ansiando para respirar,
corre em círculos e depois sai pela cozinha de onde pula para fora através de
uma janela aberta. Emite um longo guincho agudo e para um momento ao lado
da mesa.
Automaticamente, Porta oferece-lhe o jarro de vinho. Ele engole o resto do
vinho e o molho passa a queimar mil vezes mais do que antes.
– A-a-a-a-ah! – berra o preto, como um lobo atingido por uma carga de
chumbo. Com uma das mãos agarra o estômago e com a outra a garganta. Rola
de costas pelo chão agitando as pernas no ar. A bota de alpinista italiano voa
pelo ar. Seu corpo se torce em um arco e ele se arrasta pela rua coleando como
uma serpente. A seguir, fica de novo em pé, pula para dentro do rio e bebe de
sua água como se estivesse tentando esvaziá-lo.
Pouco depois, sai de dentro d’água e sobe um barranco quase vertical como
se fosse um cabrito montes.
– É de espantar o que esses malditos canibais podem fazer quando querem,
não é? – exclama Tiny.
– Que diabo vocês puseram no molho? – pergunta Luigi.
– Uns tranquilizantes que farão dele um bom rapazinho – diz Porta, rindo.
Algum tempo depois, o negro volta. Parece um homem que cruzou o
Deserto de Góbi a pé. Oferece-lhes polidamente sua mão para cumprimenta-los.
– Você já vai embora? – pergunta Porta.
– Vou de volta para a Líbia!
– Fazer o que por lá? – pergunta Tiny.
– A comida por aqui não combina comigo!
As lagostas de Beppo excedem a todas as expectativas deles. Porta elogia-
as entusiasmado.
Luigi segura uma das garrafas como se tora um bastão de marechal.
– Em breve acaba tudo por aqui. Estou pronto para ir-me embora, mas não
voltarei para a Itália um homem pobre! – sussurra ele, confidencialmente.
– Você faz muito bem – diz Porta, lambendo os beiços. – Apenas os tolos
saem de uma guerra mais pobres do que nela entraram.
– A maior parte é idiota – afirma Luigi, mergulhando um
pedaço de lagosta no molho de maionese com alho.
– Deus seja louvado – sorri, feliz, Porra. – É Seu trabalho!
– As coisas serão boas de novo na Itália – afirma Luigi.
– Não estou interessado na guerra. Tenho na Itália aquilo de que necessito.
– Esta é também a maneira como vejo as coisas – concorda Porta. – Tudo o
que eles fazem conosco alemães e com vocês italianos é mergulhar-nos nesta
merda de guerra para morrermos.
– Dê lembranças nossas na Itália – diz Tiny, no meio de uma bocada de
lagosta. – Talvez nós não iremos chegar muito depois de vocês.
– Gesú, Gesú! – exclama Luigi horrorizado, quase engasgando com sua
própria lagosta. – Que a Madre di Christi impeça isso!
– Ele se benze e rola os olhos para o céu, – Espero que o último dos
alemães tenha deixado a Itália antes que eu volte para lá!
– Por quê? Então você não gosta de nós? – pergunta Porta, surpreendido. –
Nós somos aliados e estamos ombro a ombro numa guerra que nos foi imposta.
– Não estou dizendo que os italianos não gostam dos alemães – fala Luigi,
sacudindo a cabeça. – Como nós estamos agora somos bons camaradas, mas
quando se juntam muitos fazem barulho demais e ocupam muito espaço.
– Há algo no que você diz – admite Tiny, lambendo o resto do prato de
maionese de alho.
– Vocês atiram a toda a hora – insiste Luigi – e não compreendem como é
perigoso. Você atira num homem e ele atira de volta em você na maioria dos
casos.
– Isso é verdade – diz Porta, suspirando.
– Vocês querem café ou conhaque? – pergunta Luigi, levantando-se.
– Comi tanto que quase não posso me mover – diz Porta, desabotoando a
cintura da calça. – Adoro comida. Poderia viver apenas para comer!
– Você tem tudo de bom por aqui. – Carl elogia Luigi ao provar seu
conhaque com ar de connoísseur.
– Aqui vai tudo bem – admite Luigi, esticando confortavelmente suas
pernas. – Só desejo liberdade. Talvez os Tommies venham em breve e nos
ataquem com tanta força que nós nem vamos querer reagir.
– Ainda sobrou algum? – pergunta Porta. estendendo seu copo de conhaque
para Luigi. – Só Deus sabe quando veremos de novo uma bebida como esta.
Sorrindo, Luigi enche-lhe o copo até a borda de forma que Porta tem que
inclinar-se para beber. Ele suga a bebida como uma vaca bebendo água.
– Eles estão levando uma boa sapecada agora – diz Tiny, cuspindo na
direção de um cartaz de recrutamento no qual aparece um soldado SS
idealizado.
– Ontem eu vi um general passar por aqui, com uma porção de coisas
saqueadas num caminhão que o seguia. E foi apenas ontem – diz Luigi. – O que
é um bom sinal.
– Há cortes marciais funcionando sumariamente em toda a parte – diz
Porta, deixando escapar um peido barulhento. – Em breve, haverá mais cães de
guarda aqui do que soldados. Mesmo a falta de munição não os faz parar; eles
sempre arranjam uma viga e uma corda. Se poupar o chicote, você estraga a
criança, como dizem os pedagogos.
– O Grande Exército alemão está reduzido a uma merda, como se poderia
dizer – suspira Tiny, atirando para trás por cima da cabeça um pedaço de torta
de maçã para grande júbilo de um cachorro que está por ali e que pronto o
engole.
– Vou terminar esta famosa campanha em Germersheim e levarei
vantagem como uma pessoa politicamente perseguida, quando voltar para casa
– diz Carl, rindo satisfeito. – Isto poderá levar-me longe. Os vilões de ontem
são os heróis de amanhã.
– Não se ria cedo demais – adverte Porta, agourentamente. – Não vai
demorar muito até que todos os idiotas se curem do choque de haver perdido
uma guerra.
– Dizem que toda a porra do Nono Exército desertou para o inimigo – diz
Tiny, em tom de quem confia um segredo.
– O Nono Exército? Este foi derrotado há muito tempo – fala Carl, bastante
admirado.
– O Generalfeldmarschall Von Mannstein está sentado numa montanha na
Polônia chorando como uma criança – revela Porta, confidencialmente.
– Ele não é nenhum Mannstein – fala Tiny, o sabe-tudo.
– Ao nascer chamava-se Levinski, um nome que não agrada nada a Adolf.
Digam vocês o que disserem, mas isto é uma coisa muito surpreendente!
– É uma coisa engraçada. As boas notícias nunca aparecem nos jornais do
Exército – filosofa Luigi.
– O Führer disse que não há mais necessidade de gênios táticos para as
operações – explica Porta. – Agora temos que ter comandantes-de-exercito do
tipo cabeça-dura que nos conduzam à batalha com um feliz grito e que
permaneçam na frente de combate.
– Então isto será o maldito fim de tudo – confirma Tiny, com um ar
importante. – Um exército de carneiros que a nada reage...
– Que amontoado de malditas mentiras nos foram impingidas nos últimos
anos – diz Carl, desanimado.
– Além de uns poucos de nós, todo o mundo acreditou nelas – acrescenta
Porta, sorrindo com seu riso superior.
– E o pior é que muitos ainda acreditam nelas – murmura Luigi.
– Deveriam ser fuzilados – diz Tiny.
– Nossos líderes de guerra perderam o comando de suas rédeas – decide
Porta. – A saúde deles, companheiros!
– Alguma vez tiveram o comando das rédeas? – pergunta Luigi, com ar de
surpresa. – Penso que os alemães sempre foram gente engraçada. De cabeça
quadrada!
– Gröfaz* em breve estará sendo frito em sua própria gordura – diz Tiny,
sempre otimista.
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* Gröfaz (Grosster Feldher: aller Zeiten): o maior líder militar de todos os
tempos (termo de gíria para Hitler).
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– Nós estamos marchando em direção a tempos difíceis – fala Porta. – Em
breve não poderemos fazer meia-volta sem sermos chamados de desertores.
– Eles devem estar todos loucos no QG do Führer – opina Carl.
– Aqueles a quem Deus deseja que se fodam, ele primeiro cega – explica
Porta, com uma voz patética.
Uma companhia de recrutas aproxima-se cantando ao descer a coleante
trilha da montanha. Suas botas e seus equipamentos estão limpos e polidos e
seus capacetes do tipo novo brilhantes, com a águia ao lado.
Porta coça as costas com a baioneta e observa, pensativo, os recrutas que
cantam.
– Quando você vê um bando de heróis alemães arrumadinhos como estes,
todos limpinhos e lustrosos, quase que poderia acreditar que o mito do
heroísmo alemão ainda existe.
– Daqui a três dias, os guerrilheiros terão liquidado com esses garotos –
afirma, lacônico, Luigi.
– Graças a Deus que estávamos aqui no começo – diz Porta – pois de outra
forma não estaríamos vivos agora.
– Os velhos soldados nunca morrem – suspira Carl, espreguiçando-se de tal
forma que a cadeira de vime na qual está sentado quase desmonta.
Tiny solta um longo arroto que faz com que o primeiro-sargento que
comanda a companhia fique imóvel.
– Vocês não sabem fazer continência? – pergunta ele, zangado.
Todos os quatro fazem continência em silencio, mas sem se levantar de
suas cadeiras de vime.
Um barulho de trovoada aproxima-se vindo do leste e rola cada vez mais
para perto, como uma tempestade que rapidamente se aproxima. Uma salva de
projéteis cai com grande estrondo na cidade, levantando para o céu uma chuva
de terra e de fogo. Uma comprida fiada de casas desaparece numa grande
nuvem de cal. A escola do outro lado da rua é levantada do chão, eleva-se no ar
e cai em pedaços vagarosamente. O teto cai intato em cima das paredes
pulverizadas.
O sargento comandante da companhia é cortado em dois e seus pedaços
jogados para cima na encosta da montanha. A companhia de recrutas dissolve-
se num mar de chamas.
Luigi desaparece com espantosa velocidade numa trincheira aberta,
seguido de perto por Porta e Tiny. Carl apanha uma cadeira de vime e cobre
com ela a cabeça na estranha esperança de proteger-se do shrapnel que chove
por todos os lados em volta dele.
O choque de uma granada ao explodir joga-o numa depressão do terreno.
Uma granada consegue um impacto direto na casa na qual se estabeleceu a
cozinha da divisão. Nuvens negras de fumaça sobem para o céu, à medida que a
casa desmorona vagarosamente sobre si mesma. Apenas a chaminé e uma
enorme e brilhante caldeira de cobre permanecem intatas.
O grande toldo verde, vermelho e branco levanta voo e vem aterrar
gentilmente sobre a trincheira.
– As cores da velha Itália! – diz Luigi, orgulhoso. – Elas dão sorte!
Cai uma nova salva. Suas bocas estão cheias de poeira de tijolos. As
árvores da encosta estalam como palitos de fósforos e sobem para o ar. Corpos
em pedaços caem por cima dos telhados.
Um par de cavalos é arremessado longe, encosta acima. A rua transforma-
se num vulcão de pedras e lascas de madeira voando.
– Vamos sair daqui! – grita Porta. – Você vem conosco, Espaguete? Aqui
não se precisa mais de sua arte culinária!
Luigi fica parado pensando por um momento. Depois, coloca na cabeça seu
emplumado chapéu de bersaglieri, lançando um último olhar amoroso ao
colorido toldo.
– Si! Vou agora para casa na Itália!
Carl vem descendo a rua correndo com a cadeira de vime ainda
precariamente cobrindo-lhe a cabeça.
– Quem pelos diabos está atirando tanto? – pergunta ele, excitado.
– Telefone e peça informações – sugere Porta.
Para seu espanto, encontram a Mercedes sem qualquer dano no meio de
toda a destruição.
– O diabo cuida das coisas da Gestapo – diz Porta, rindo, ao deixarem a
cidade a toda velocidade.
Sobem por uma estreita trilha de montanha, o instinto de Porta acautela-o
para não usar a estrada mais larga e pavimentada.
– Para onde vamos? – pergunta Luigi, alisando suas plumas.
– Para um lugar muito distante – murmura, misteriosamente, Tiny.
– Jesus Cristo! Essas guerras modernas são terríveis – fala Porta.
– Você acha que elas tinham mais graça antigamente? – pergunta Carl.
– Completamente diferente, completamente! – responde Porta. – Um cara
chamado Marius derrotou os címbrios, com a ajuda de cães de guerra.
– Isto é uma porra de uma mentira – exclama Tiny. – Mas naquela época
deveria ser muito mais divertido. Cães de guerra! Nós logo daríamos um jeito
neles.
Um major Jaeger fá-los parar e ordena–lhes que lhe deem uma carona.
Tiny passa para o banco de trás entre Carl e Luigi; entram em Kralfero na
frente de um batalhão de caçadores.
O major inspeciona a Mercedes com olhos suspeitosos.
– O que estão fazendo por aqui? – pergunta.
Porta entrega-lhe tranquilamente seus documentos forjados.
– Oh! Oh! – rosna o major, examinando pensativamente as ordens de
movimentação e bilhetes para a estrada de ferro. – Vocês não estão um pouco
fora do caminho para Viena?
– Com o devido respeito, senhor, os guerrilheiros não nos permitiriam
tomar a rota direta – diz Porta, sorrindo amavelmente.
– O que está fazendo esse italiano com o Exército alemão? – rosna o major
em dúvida, e pede os papeis de Luigi.
Este procura desesperadamente em seus bolsos pelos papéis.
O major acena para dois PMs, mas antes que eles cheguem ao carro são
atingidos por uma rajada de fogo de metralhadora.
Sobre a rua chovem granadas de mão; dos tetos, metralhadoras abrem fogo
sobre o batalhão Jaeger. Soldados feridos rastejam gemendo ã procura de
abrigo. Coquetéis Molotov explodem com um som oco; o líquido inflamado
atinge homens e objetos.
– Guerrilheiros! – brada o major, pulando do carro.
Porta faz-lhe uma continência e sorri como um idiota.
– Sim, senhor! Parece que vão liquidar-nos. Parece!
Uma saraivada de balas de metralhadora varre a rua e sacode os corpos dos
homens já mortos.
Porta dá uma marcha à ré no carro de encontro à parede de uma casa, de
onde eles podem observar o drama em comparativa segurança.
Um carro blindado no qual está montado um canhão automático aparece na
esquina metralhando as paredes e os tetos das casas. Granadas de mão voam
pelas janelas para dentro das casas. Um comprido lençol branco desenrola-se de
uma das janelas. Os soldados invadem as portas das casas; pouco depois,
corpos de homens e mulheres são jogados das janelas, batendo no pavimento
com um som surdo.
Dois Pumas lançam-se para a frente, suas metralhadoras despejando
rajadas de balas traçadoras através das janelas.
Subitamente, aparece de novo ali o major.
– Você está preso! – grita ele, apontando a pistola para Luigi, mas cai para
a frente com um arquejo.
Tiny rola para um lado, a fim de evitar que o corpo do major caia em cima
dele.
A Mpi de Carl abre fogo. Uma figura cai de um telhado; logo após ela,
despenca do mesmo lugar uma Mpi.
Uma hora depois, tudo está resolvido. Os prisioneiros são amontoados
numa igreja com os soldados furiosos a rodeá-los.
– Esta cadela matou o Herbert da quarta bateria! – grita um gordo sargento
de artilharia; dá um soco na cara da mulher, rebentando-lhe os lábios e a seguir
dá-lhe um chute entre as pernas.
– Cadela! – gritam os outros. – Acabe com ela!
Um tenente consegue aproximar-se por entre a multidão.
– Atenção! – grita ele, a voz estridente com a raiva.
Os soldados enraivecidos nem o notam até que ele atira para o ar com sua
pistola.
– Os prisioneiros têm que ser tratados corretamente – ordena ele. – Nós não
somos bandidos como o inimigo! Estamos estabelecendo uma corte marcial
sumária e eles todos serão fuzilados, mas primeiro têm que ser julgados.
– Esperem, seus filhos da puta. Nós vamos arrancar-lhes as tripas pelo olho
do cu! – ameaça um sargento de caçadores a três prisioneiros que estão de
encontro a uma parede, com as mãos cruzadas atrás da nuca.
– Por que desperdiçar tempo julgando-os? – pergunta um cabo de um
batalhão de sapadores. Aponta para uma mulher jovem que está de pé num
canto – Aquela cadela ali é minha. Por Deus do céu que ela vai se divertir antes
de morrer.
– Vocês ouviram o que o tenente disse – adverte um sargento de cavalaria a
alguns soldados que estão começando a dar sinais de fazer mais do que
ameaçar. – Nós somos o Herrenvolk, mas não somos brutos!
– Quando Ivan, o untermensch, passar por aqui, esses filhos da puta vão
ver a diferença – exclama um sargento, maliciosamente.
Um soldado alto e magro espeta um rapazinho com o cano de sua Mpi.
– Este porco destruiu nossa viatura-cozinha. Ele é o patife a quem temos de
agradecer por não termos comida quente hoje.
– Amasse a cara dele – sugere uni velho soldado de infantaria com um
salsichão debaixo do braço.
Um oficial auditor estabeleceu-se por detrás do altar que, com a ajuda de
uma bandeira, tinha-se transformado num tribunal. Seus óculos sem aros
refletem a luz para baixo sobre duas fileiras de prisioneiros alinhados a sua
frente. O oficial pigarreia, apanha uma longa lista e com uma vozinha fina
começa a recitar-lhes os nomes. Depois de cada nome, levanta os olhos e diz
solenemente:
– Em nome do Führer e do povo alemão, sentencio-o por morte por
fuzilamento!
Ele repete isso 67 vezes.
Os sentenciados são levados para fora da cidade. Numa cascalheira a dois
quilômetros de Samaila, os sapadores entregam a cada um deles uma pá, para
cavarem um longo fosso como sepultura comum. Esta é a maneira mais prática
de fazer as coisas.
Quando acabam o serviço, limpam as pás antes de devolvê-las a seus
captores. Eles são camponeses pobres e sabem o valor de uma pá.
Um tenente muito jovem está no comando do pelotão de execução. Ele sua
e gagueja nervosamente.
Os prisioneiros são alinhados ao longo da beira da vala comum de forma a
caírem de costas diretamente dentro dela.
– Vamos, vamos! – grita o tenente. – O próximo, o próximo, vamos nos
mexendo aí!
O rapaz que destruiu a viatura-cozinha está tão assustado que cai dentro da
vala e tem que ser puxado de novo para fora por seus companheiros.
Alguns deles começar a cantar a Internationale e a gritar “Nazistas
assassinos!”
O coronel, que veio ver a execução, expressa sua admiração pela conduta
dos prisioneiros.
– Excelente, excelente! – diz ele. – Muitos traidores alemães poderiam
aprender algo com essa gente. Ê um prazer vê-los!
– Deus sem dúvida levará tudo em consideração –– comenta o ajudante,
engolindo com dificuldade.
– Eles o merecem – diz o coronel, um homem profundamente religioso.
Quando o último homem é executado, a terra é jogada sobre os corpos e os
sapadores pisoteiam em cima para acomodá-la.
Porta vai buscar a Mercedes e leva-a para uma estrada primitiva de terra.
Uma ponte na estrada principal foi dinamitada.
Subitamente, ocorre uma tremenda explosão e a estrada abre-se ao meio.
Uma coluna de chamas sobe para o céu. A Mercedes é atirada para cima por ela
e os quatro homens são jogados para fora do carro.
– E agora? – lamenta-se Luigi, sentindo-se infeliz quando estão sentados ao
abrigo de um monte de feno olhando para a Mercedes inutilizada. A única coisa
que resta intata ê o galhardete de comando.
Porta enfia-o em sua cintura, por dentro da camisa; poderá ser-lhes útil em
alguma ocasião.
– E agora? – pergunta Carl, preocupado. – Será que jamais vou chegar a
Germersheim e começar a cumprir meus 10 anos?
– Cada dia que você está conosco é um dia a menos em sua sentença –
conforta Tiny.
– Por que não fiquei com minha própria gente? – lamenta-se, choroso,
Luigi. – Eu ganharia uma nova cozinha divisional.
O Exército italiano nunca faz guerra sem uma cozinha para spaghettí
Carbonara.
Começa a cair chuva quando eles marcham miseravelmente pela estrada. O
frio desce das montanhas. Embaixo, no vale, o Danúbio serpenteia cinzento e
triste, Ao longe. ouvem-se metralhadoras a pipocar.
Ao cair da noite, eles se aquartelam numa pouco convidativa vila nos
arredores de uma aldeia, mas apenas acabam de fechar os olhos Quando são
acordados por um grupo de soldados de infantaria que também estão à procura
de alojamento.
Um tenente esbraveja com eles e ordena-lhes cine mostrem seus
documentos. Estes se queimaram no desastre da Mercedes.
– Amanhã vocês serão entregues à PM – ameaça o tenente. bruscamente.
– Nós somos PMs – diz orgulhosamente Tiny. exibindo sua braçadeira.
No momento em que ele o faz, metralhadoras começam a martelar e
granadas de mão explodem na estrada do lado de fora da casa. Ouvem-se vozes
duras gritando ordens em sérvio.
– Vamos dar o fora – grita o tenente. – Guerrilheiros!
– Vamos sair daqui – sussurra Porta e movimenta-se espertamente pela
porta dos fundos, com seus três companheiros nos calcanhares.
Quando eles saem, um grupo de guerrilheiros entra na vila. Gente com
olhar enlouquecido sai das ruas laterais e coquetéis Molotov são atirados
através das janelas das casas.
– Estão indo em nossa direção? – diz Porta, rindo, pendurando-se num
caminhão de um comboio que está a caminho de Belgrado.
Um pouco antes de chegar a Belgrado, o comboio é atacado pelo ar. O
caminhão no qual eles conseguiram uma carona é desviado para um campo.
Um shrapnel atinge Porta no ombro. O pé de Tiny é esmagado sob uma caixa
de projéteis. Carl tem seu braço quebrado.
Eles se arrastam com todo o otimismo até Belgrado e apresentam-se a um
hospital de campanha. Tiny usa um fuzil como muleta. Luigi tem a esperança
de pegar um trem em Belgrado para a Itália.
– Realmente seria melhor se você também estivesse ferido – diz Porta,
olhando sério para Luigi e brincando com sua Mpi.
– Você receberia um novo jogo de documentos. Em Ubi, eles caem de
novo sob fogo. Uma granada explode em frente a Luigi, rebentando a metade
de seu rosto e um braço. Ele cai gemendo e antes que eles lhe possam dar os
primeiros socorros morre com a hemorragia.
Enterram-no no jardim da casa de um funcionário da estrada de ferro e
penduram o emplumado capacete de bersaglieri numa cruz de bétula plantada
sobre o túmulo.
– Oito dias deve ser suficiente – diz o oficial medico de cara azeda que os
atende no Reserve-Kriegs-Lazarert 109, em Belgrado.
Um artilheiro de flak* diz-lhes com um ar alegre de mau gosto que o
paciente anterior no leito de Porta morreu há apenas uma hora.
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* Flak: canhão antiaéreo.
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– Isto é que é sorte! – exclama Porta, satisfeito. – Não é muitas vezes que
duas pessoas morrem uma após a outra no mesmo leito.
– Eles riscaram meus documentos com tinta vermelha – diz um soldado de
infantaria, de um canto onde está sentado tranquilo, observando uma mosca
que, na cobertura da lâmpada da noite, alisa suas asas. – Vocês acham que eles
vão fuzilar-me, quando eu melhorar?
– É claro que vão fuzilá-lo – diz o cabo de artilharia que está no hospital há
muito tempo. – Você e um caso de ferida autoprovocada. A maior parte dos
caras daqui são birutas – diz ele, voltando-se para Porta. – Se o inimigo pusesse
um espião aqui, ele voltaria e relataria que todo o Exército alemão é constituído
de maníacos. Nós temos aqui um cara do Corpo de Engenheiros (Construções).
Ele foi encarregado de construir uma chaminé para a padaria. De uma estranha
forma, ele acabou de construir a chaminé mas com ele dentro dela e incapaz de
sair de lá. Isto aconteceu numa parte do edifício raramente usada, e ele foi dado
como desertor; se não tivesse acontecido que um padeiro entrasse no quarto
onde ele estava dentro da chaminé, eles nunca o teriam encontrado.
Conseguiram tirar esse biruta lá de dentro com o auxílio de um par de
marteletes pneumáticos Ele ficou na chaminé 12 dias e estava louco furioso
quando o retiraram. Agora, querem que ele confesse que foi uma tentativa de
deserção. Ele diz que não julga que sabia o que estava fazendo e que a
argamassa secou antes que descobrisse onde estava.
– Não podia subir pela chaminé, pois ela estreitava para cima. Agora está
vindo uma comissão de Berlim; fotografaram a chaminé e fizeram desenhos
dela. Tentaram escala-la para certificar-se de que ele realmente não poderia
escapar dessa maneira. Mais ainda insistem em que ele o fez numa tentativa de
deserção.
– Bem, se ele não podia sair da chaminé – diz Porta, em tom sério – seria
difícil desertar!
– É exatamente nossa opinião – fala, rindo, o artilheiro – mas os burocratas
são de opinião diferente. Um PM visita-o diariamente e senta-se em sua cama
gritando-lhe; “Confesse, homem, ou irá sofrer por isso. Você estava tentando
desertar!”
– Eles desejam algum pobre coitado que possam fuzilar, suponho – diz
Tiny, pesaroso. – Uma guerra sem ninguém para executar não é uma porra de
uma boa guerra.
– Há uma porção de gente aqui que está seriamente ferida Eu próprio perdi
ambas as pernas e metade do estômago.
– Você não faz muita questão das rações, então, faz? – diz Porta, com seu
senso prático. – Em tempo de guerra é preciso pensar nessas coisas, sabe?
Como aconteceu?
– Eu estava dormindo num pomar.
– Não parece lá coisa muito perigosa.
– Foi quando um canhão autopropulsor passou por cima de mim – explica
o artilheiro, tristemente.
– Você não está arriscado a ser acusado de automutilação?
– Não, o comandante SP tem que levar a culpa. O pomar era terreno
proibido para exercícios. Tinha sido requisitado pela divisão e eu estava
tomando conta dele. Na ocasião, eu dormia na minha folga do jantar. O chefe
da SP está agora engatinhando na frente oriental descobrindo minas e o
condutor do canhão pegou o dele por dirigir sem cuidado: está na solitária em
Torgau.
– No Bloco B estão os cegos e aqueles que ficaram mudos – diz o
artilheiro. – Eles estão preparando uma enfermaria também para os surdos.
Agora existe apenas um, e eles vão fuzilá-lo na semana que vem. Deixou de
obedecer às ordens: esqueceu-se de colocar seus tampões nos ouvidos. Servia
na artilharia sobre trilhos; a corte marcial reuniu-se à beira de seu leito e
tiveram que mostrar–lhe a sentença por escrito, pois ele não podia ouvi-la lida.
Desde então, ele tem estado a chorar e tentando apresentar-se como voluntário
para qualquer coisa, mas quem deseja um soldado que tem que receber todas as
ordens por escrito?
– Não. Realmente não há tempo para isso, ha? – concorda Porta, pensativo.
– No Bloco A estão aqueles que se ringem de doentes para fugir ao serviço.
A coisa por lá é animada. Logo de manhã cedo eles lhes dão o nº 9 e uma dose
de vomitório, não importa que doença os aflija. A mesma coisa ao fim do dia.
Um caso fingido de tifo morreu disso anteontem. Há um camarada que está
fingindo de maluco há um ano. Tão logo alguém se aproxima dele, põe-se a
rosnar como um cão e atira-se às pernas da pessoa. O caso mais interessante de
todos, porém, e este rapaz no leito aqui ao lado. Quebrou o pescoço, de
verdade, tentando ensinar a seus camaradas como dançar a prisjatska. Tentou
duro demais e, quando chegou na hora do grande pulo no ar, errou o caminho e
voou pela janela. Quebrou um mastro de bandeira ao cair, deu urna cambalhota
e teria aterrado de pé não fora ter virado de novo ao bater no quadro de notícias
do regimento. Desta forma, ele aterrou de coco e quebrou o pescoço. E vai
custar-lhe também uma fortuna. Já lhe disseram que seus danos não podem ser
considerados como consequência do cumprimento do dever e que ele terá que
pagar por todos os estragos que causou e pelo tratamento.
– Isso ira ensiná-lo a manter-se afastado dessas malditas danças russas –
filosofa Porta. – Para mim, prefiro algo mais intimo; pelo menos você tem um
par a quem agarrar-se quando está dançando uma valsa.
– Deveríamos realmente chamar o padre e livrar nossas consciências de
todo o pecado – diz um dragão.
– De forma que a gente possa começar com a ficha limpa. Você está certo!
– concorda Porta.
A porta se abre violentamente, bate de encontro à parede e um soldado
miúdo, em uniforme cinza da Finlândia, entra fazendo grande barulho na
enfermaria. Em seu ombro, ele carrega um uniforme de capitão novo em folha.
Bate os calcanhares e faz continência.
– Cabo de caçadores Jussi Lamio, de Taijala, mandado para cá por engano.
– Pendura o uniforme de capitão no abajur, chega-se para a mesa, corta duas
fatias de um comprido pão e põe entre elas um grosso pedaço de salsichão.
– Algum de vocês esteve em Naesset? – pergunta, entre bocadas.
– Agora dispa-se e meta-se na cama – ordena uma enfermeira entrando na
sala. – Saia de cima desta mesa e retire aquele uniforme do abajur!
– Vocês, cadeias alemãs, são boas para dar ordens! – replica Jussi. – Não
se engane: eu sou o Cabo Lamio, do 3º Batalhão Sissi, e em Kariliuto chamam-
me de o “flagelo de Deus”. Na Karelia, não toleramos que nenhuma cadela
alemã nos diga quando ir para a cama. Se nos queremos sentar-nos na mesa,
nos sentamos na mesa, por Deus do céu. Odeio mulheres tentando nas ordens.
O lugar das mulheres é na cozinha ou então divertindo-nos na sauna!
A enfermeira sacode a cabeça e sai tão logo arrumou a cama.
– Em Naesset nós demos um jeito num batalhão de cadeias de Leningrado,
e muito bem! Elas eram verdadeiras filhas de Satã. Não como essa titica aí que
pensa que pode dar ordens a um cabo finlandês. Quando eu quero sentar-me na
mesa, eu me sento na mesa.
– Mulheres soldados? – Pergunta o artilheiro antiaéreo, admirado.
– Na Rússia não é necessário ter um cacete pendurado entre as pernas para
fazer o sujo trabalho de infante nas trincheiras. Essas cadelas comunistas nos
serviram com suas balas de metralhadoras, enquanto elas duraram. E depois
avançaram com as coronhas dos fuzis. Éramos duas companhias de caçadores
do Batalhão Sissi e ficamos em suas pegadas todo o tempo desde Suomisalmi.
Foi uma marcha dura: muitas vezes estávamos em território inimigo.
Movimentamo-nos tão rapidamente que era difícil viver uma vida normal.
Aquelas russas podiam sentir a nós finlandeses soprando em suas nucas todo o
tempo. Nosso comandante de companhia, filho de pagãos de Lahti, que só tinha
na cabeça morte e mulheres, decidira que iria pegar algumas dessas mulheres
de Leningrado. Pessoas que leem mais do que a Bíblia e sabem do que estão
falando, dizem que é maravilhoso pegar uma dessas cadeias ideológicas num
monte de feno. Talvez devêssemos ter lido alguns desses livros nas bibliotecas
que queimamos em nosso trajeto. Por duas vezes, estamos próximo de pegá-las.
Ai! Mas essas cadeias eram danadas! Você pode sentir no ar esta fanática febre
comunista. Nós lhes prometemos tudo, se elas apenas levantassem as mãos e se
entregassem. Nosso capitão tinha um aparelho para ampliar sua voz e podia
falar russo, de forma que sabiam o que nós lhes estávamos dizendo.
“Veruski roj!”
“Mas elas não arriavam as armas. Não sei quantas vezes ele gritou
“Stoi!”com seu aparelho. Não sou um contador mas foram muitas vezes.
Nenhum homem formado ã imagem de Deus pode persuadir essas cadelas
comunistas a arriar suas armas e terminar a luta.
Jussi lança uma enorme cusparada através da janela e pega uma nova fatia
de salsichão. Ele está mascando tabaco ao mesmo tempo que come.
– Fica gostoso assim? – pergunta Carl, admirado.
– Se não ficasse eu não o faria, não acha? – responde o pequeno finlandês.
despreocupado. mordendo o pão. – Por fim, nós encurralamos aquelas cadeias
contra o mar. onde elas só poderiam voltar para casa nadando – continua ele. –
Mas sua política não as havia feito tão loucas que fizessem isso. Bem, nós
somos cristãos. a maioria de nós, e sentimos que é errado fuzilar mulheres,
mesmo quando elas são umas cadeias-soldados comunistas. Atiramo-nos com
tanta força sobre elas a princípio, mas em breve tivemos que mudar de ideia.
Elas cantam canções pagãs e atiram-se sobre nós com pás de infantaria, de
forma que temos que costurá-las pela frente e pelas costas com nossas balas de
metralhadoras. Nossas Suomis* ficaram rubras. Mas tivemos que continuar até
que todas elas estivessem mortas como arenques na praça de Wiborg.
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* Suomis: jargão para a metralhadora Mpi finlandesa.
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Então confiscamos o que elas tinham e havia muitas coisas boas para levar
conosco. Nosso capitão, aquele filho de um demônio, ficou com todo o cabelo
delas. Disso, ele mandou fazer belas escovas que pendurou nas paredes de sua
casa para recordar-se dessas cadelas-soldados de Leningrado.
A enfermeira volta com dois sargentos do corpo médico que estão ansiosos
por entrar em ação, mas antes que eles possam dizer uma palavra, Jussi desce
da mesa, coloca seu barrete de esquiador finlandês na cabeça, faz continência e
começa em alta voz a cantar:
– Não diga nada mais – fala ele, voltando-se para a enfermeira. – Já desci
da mesa, tirarei o uniforme de oficial do abajur e irei para a cama. Mas não se
engane: isto eu faço porque desejo, não porque você diz que devo fazê-lo. –
Sem sequer um olhar para a enfermeira e os dois sargentos, ele pendura o
uniforme de capitão finlandês na cabeceira do leito, escova-o cuidadosamente
com uma pequena escova de roupa, dá um polimento no leão finlandês na
lapela e faz continência para ele.
Silenciosamente, despe-se e enrola seu próprio uniforme, como é de hábito
no Exército finlandês.
– Que espécie de uniforme é esse que você tem aí? – pergunta Porta,
interessado.
– Você pode ver que é o uniforme de capitão finlandês de caçadores.
– Por que, diabo, você anda com isto por aí? Você não é capitão! –
comenta Tiny.
– Por Jesus Cristo Nosso Senhor! Esses alemães são estúpidos. Não
entendo como vocês jamais ousaram entrar numa guerra! Vocês nem sabem
que a galinha Ó maior do que os pintos. Quem disse que eu sou um capitão de
caçadores? Se alguém o disse, então eu o declaro um mentiroso. Eu sou um
cabo no Batalhão Sissi e o uniforme eu apanhei no alfaiate em Kuusamo. O
Capitão Rissanen deveria usá-lo para uma bela recepção, mas, louvado seja
Nosso Senhor, nós ainda não pagamos um marco pelo uniforme. O capitão sem
dúvida ainda estará sentado de cuecas esperando por mini. A única coisa que
ele tinha era seu uniforme de combate com o qual vinha perseguindo o inimigo
há muitos meses, de forma que estava meio gasto e manchado. Ninguém pode
ir a uma bela festa com bonitas mulheres e elegantes oficiais de estado-maior
com uma velha túnica de batalha finlandesa de verão, mesmo que ela tenha
estrelas na gola. Mais cedo ou mais tarde, ainda entrego este uniforme a ele.
Acho que devo telefonar-lhe antes de voltar. Devo dizer-lhes que o Capitão
Rissanen pode esquentar a cabeça e ficar muito zangado. Ele esteve internado
por algum tempo no Asilo Lapintahti, próximo a Helsinque, porque, num
acesso de raiva, atirou num guarda-florestal; quando veio esta guerra, porém,
eles verificaram que estavam com falta de oficiais e declararam-no bom de
novo. O coronel tem ordens para não excitá-lo; quando ele não está zangado, é
um homem muito bom. Se não fosse por causa de vocês, estúpidos alemães, ele
teria recebido seu uniforme há muito tempo e teria podido ir a muitos bailes e
festas elegantes.
– Não diga besteiras – fala o artilheiro antiaéreo, rindo. – Como podemos,
nós alemães, ser responsáveis pelo fato de seu capitão não haver recebido seu
uniforme?
– Se você jamais tivesse encontrado seu regimento de artilharia de
montanha SS Nord, não estaria fazendo esta pergunta tola – responde Jussi,
abrindo os braços num gesto desanimado. – Eles me ordenaram seguir com o
regimento, fizeram um barulhão e disseram uma porção de coisas sem sentido
em alemão. Como vocês estão ouvindo, sou capaz de falar um bom alemão,
mas aqueles camponeses não podiam entender-me. Em Culu, eu me vi
subitamente, de uma forma estranha, a bordo de um grande navio que se
chamava S.S Niedeross e nesse navio viajamos por muitos lugares que eu
jamais teria visto, se aquela gente da caveira não me houvesse feito
acompanha-los. Depois, mandaram-me de regimento para regimento. Não é
impossível que não estivessem pensando em meu bem-estar e querendo aliviar
a monotonia desta guerra para mim. Estive em Ssennosero, Kliimasware.
Rovaniemi e Karunki, e então um dia fui mandado para Hammerfest com a
1694 Divisão de infantaria da Turingia. Dali, continuamos de navio, um feio
navio que parecia um penico, e me parecia que todo o mundo estava de certa
forma com medo. Nós nos deslocávamos como se o próprio Satã estivesse atrás
de nós virando o hélice. íamos a terra e rapidamente de novo embarcávamos.
Estivemos em muitos, muitos lugares na Noruega. Não sei o nome de todas as
cidades; elas nada tinham de especialmente notável, de forma que não havia
razão para lembrar-me delas.
“Certa manhã, chegamos a um novo país, a Suécia. Todas as viaturas
foram seladas e esses homens suecos andavam por toda a parte armados e
tentavam parecer muito terríveis. Em vez disso pareciam tolos. Se o inimigo os
tivesse visto, teria ido para a casa tranquilizado.
“Em Engelholm, 23 homens desapareceram. Os alemães diziam que em
Engelholm sempre desapareciam homens, não importa quão cuidadosa fosse a
vigilância. Era como se Engelholm os engolisse. Aquela viagem foi de fato
muito estranha; todo o mundo cantava e sentia-se feliz até que chegamos a
Engelholm, mas tão logo partimos não se via nada a não ser caras tristes e
desapontadas.
“Em Trelleborg. resolvo dar um passeio mas isto é algo que não se deve
fazer se não se é sueco. Naquele país tudo é idiota e ao contrário. Você aguarda
tranquilamente para cruzar a rua olhando para a esquerda, como lhe ensinaram
em casa, e subitamente surge um caminhão que quase lhe arranca o nariz. Você
entra em pânico e começa a correr, sempre olhando para a esquerda, mas esses
demônios continuam a vir em sua direção de onde menos se pode esperá-los.
Quando chega no meio da rua e começa a olhar para a direita, como as pessoas
sensatas fazem, eles correm para cima de você vindos da esquerda,
perseguindo-o como se você fosse um coelho. Fiquei tão brabo que saquei
minha baioneta e comecei a berrar o velho canto de guerra do Exército
finlandês: “Hug ind, nordens drenge!*”
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* Hug ind, etc.: “Á luta, rapazes do Norte!”
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“Acreditem-me quando lhes digo que aqueles suecos corriam. Nossos
vizinhos russos não seriam mais ligeiros. Um de seus policiais com um sabre
pendurado na cintura tentou postar-se em meu caminho.
“Volte para onde você veio! Enfie-se na boceta de sua mãe!, gritei-lhe eu.
“Abra o caminho para os livres filhos da Finlândia!”
“Vieram outros mais e tentaram prender-me, mas sem sucesso. Nenhum
sueco comprido de pernas finas pode fazer parar um cabo de caçadores
finlandês que já mandou mais de cem de nossos vizinhos ateus para o Diabo.
Mas então chegaram os PMS alemães com seus capacetes de aço e toda a
artilharia que podem carregar pendurada em suas costas. Gritaram-me toda a
espécie de palavreado pagão; pareciam russos fazendo uma festa.
“Dívertimo-nos mais ou menos por uma meia hora; o sangue corria
livremente e os uniformes foram feitos em frangalhos. Foi um belo dia.
“Graças a Deus”, falei com meus botões, quando estava de novo a bordo de
meu navio. ‘Agora estamos a caminho da Finlândia novamente, com o
uniforme novo do Capitão Rissanen. Mas iria desapontar-me: fui desembarcado
na Alemanha! “Muito bem, disse para mim mesmo, “agora você vai conhecer a
Alemanha, Jussi. Terá algumas histórias para contar, quando voltar para
Karelia! Mas eles vão pensar que tudo são mentiras. Vocês querem fazer o
favor de escrever seus nomes em minha caderneta de pagamento? Ela está toda
cheia de carimbos. Eu não me sentiria feliz, se eles pudessem encostar-me
numa parede como desertor, quando de novo voltar para casa.
– Você vai precisar de uma enorme montanha de carimbos para que
acreditem nessa história – diz Porta, rindo.
– Deixe que eles duvidem, então – exclama Jussi, batendo com o punho no
cobertor. – A dúvida não causa mal algum; e uma coisa saudável. Que tal se
tivéssemos que acreditar em todas as mentiras que os políticos contam para os
pobres?
“Em Berlim, encontrei um major finlandês, um homem alto e magro com
seu quepe puxado por sobre os olhos como se estivesse receoso de ser
‘reconhecido e levado a encarar uma corte marcial por seus crimes. Era um
homem mau, com esporas e botas de montaria negras, embora não fosse nem
um dragão. Não gosto dessa gente que usa esporas, mas que não recebe nem
uma bicicleta.
Seu rosto refletia o mesmo olhar de todos esses cavalheiros de alta estirpe,
e o militarismo irradiava dele. Proseou-se de que podia mandar-me de volta
para a Finlândia muito rapidamente.
“Dois homens da Missão Militar finlandesa levaram-me para o trem. No
caminho para a estação, demos uma olhada pela cidade e conseguimos tomar
um bom porre finlandês. Depois de alguma discussão com os alemães na
estação, permitiram-nos ultrapassar as barreiras. Os alemães colocaram-me no
trem e lá fui eu. Meus dois amigos finlandeses acenaram e gritaram hurras
enquanto podiam ver o trem se afastar.
“O que aconteceu em Berlim eu não sei – continua Jussi – mas o trem
partiu na direção oposta. Em vez de ir para Helsinque. estou agora em Belgrado
e aqui fui ferido. Eles são loucos por aqui: de todos os lugares atiram nas
pessoas. “Parem. seus filhos de Satã! Eu não sou alemão! Sou um cabo
finlandês de caçadores. que nada tem a ver com essa guerra aqui!”grito-lhes eu,
mas mesmo assim eles continuam a atirar em mim e por fim me atingem, esses
demônios!
Jussi puxa o cobertor por sobre a cabeça, enrola-se numa bola como um
cachorro e dorme imediatamente. Durante o resto de seu tempo no hospital. ele
não dirige mais uma palavra a ninguém.
Bem cedo numa manhã, os três têm alta e lhes são dadas novas ordens de
movimentação. Como diz Porta, eles se tornaram novos homens com todos seus
velhos pecados esquecidos.
Na estação ferroviária dizem-lhes que seu trem não partirá senão muito
tarde à noite e eles vão para o Tri Sesira, onde Porta extravagantemente
encomenda Bosanrk cufe. Comem as almôndegas frias, mas isto não as faz ter
um gosto menos delicado.
Encontram-se com três prostitutas e vão para casa com elas.
– Apenas – diz Carl – para ver como elas vivem.
Tudo o que Porta se recorda deste episódio são as mulheres nuas e uma
cadeira da cozinha que se quebra.
– Está muito bem. Nico, tudo o que nós queremos são alguns tira-gostos –
explica Porta em tom amigável para o maitre em traje a rigor no restaurante de
alta classe Zlatni Bokal. Uma orquestra de cordas toca Strauss e há um aroma
de perfume caro no ar.
Pessoas bem vestidas amontoam-se na sala de espera.
– Meu nome não é Nico – diz o maitre com ar frio.
– Não? A semelhança é notável! – fala Porta, rindo e balançando-se nas
pontas dos pés. – Saia da frente, Nico, e deixe-nos entrar para comer.
– Meu nome não é Nico – rosna o maitre, seu rosto ficando vermelho. –
Meu nome é Pometniks!
Porta inclina-se profundamente e levanta seu chapéu amarelo.
– Primeiro-Cabo Joseph Porta e este é o Primeiro-Cabo Creutzfeldt. Venha
aqui Tiny e cumprimente Monsieur Nico!
– Alô, companheiro! – diz sorrindo e meio tonto Tiny, agarrando a pequena
mão branca do maítre e esmagando-a em sua gigantesca manopla.
Pometniks respira profundamente e endireita sua gravata branca.
– Lamento, Sr. Porta. Este é um restaurante exclusivo. Os senhores não se
sentiriam à vontade aqui e, lamentavelmente, todas as mesas estão ocupadas.
Tiny estoura numa gargalhada sem qualquer sentido e passa a mão pelo
cabelo cheio de brilhantina do garçom-chefe, fazendo o cabelo arrepiar-se.
– Nico, Nico! Você é um número! Ali há uma mesa vazia com duas
cadeiras. – Levanta Pometniks de forma que ele possa ver por sobre as cabeças
e, com uma cadeira embaixo do braço, abre caminho através do restaurante
ricamente atapetado.
O maitre tem que correr para manter-se junto com eles. O homem pragueja
em voz baixa, mas violentamente, em sérvio e alemão.
– Esta mesa está reservada – diz ele, respirando com dificuldade. – Mas os
senhores podem ficar com aquela do canto, porém apenas por uma hora, pois
ela também está reservada.
– E para quando você está reservado, Nico? – pergunta Porta, fazendo-lhe
uma festinha debaixo do queixo.
– Pometniks – corrige ele, sibilando.
– Você quer dizer que não é Nico, o conhecido criminoso sexual?
Inacreditável a semelhança!
– Você é um boa praça! – diz Porta, sorrindo e passando a mão pelo cabelo
do maítre. Depois, tira a túnica do uniforme e pendura-a nas costas da cadeira,
folga a gravata e abre a camisa para coçar seu cabeludo peito.
Os fregueses ficam boquiabertos observando a mesa deles. A orquestra
falha um compasso, quando o maestro esquece de agitar a batuta.
Um garçom miudinho com uma cara que parece a de um ratinho passa-lhes
o cardápio e fica esperando com o lápis pronto.
– Mickey, leve o material de leitura! – diz Porta. – Nós não estamos numa
biblioteca. pois não?
– O nome dele é Mickev? – pergunta Tiny. olhando para o garçom com a
expressão no rosto de um gato esfomeado.
– Não é evidente? – diz Porta. rindo. – Ele nunca poderá passar por perto
de um hospital: eles o colocariam dentro de uma gaiola num minuto com o
resto dos animais para fazer experiências.
– O que os senhores desejam? – pergunta o pequeno garçom, de má
vontade.
– Prase – pede Porta arrogantemente, inclinando-se para trás e balançando
a cadeira.
– Lamento, monsieur, nós não temos leitãozinho assado no espeto.
– Cara de rato: será que você poderia talvez arranjar Djuvic?
– Com muito prazer, monsieur. Deseja com tempero forte?
– Naturalmente, Mickey. Você não está pensando que nós vamos comer
guisado sérvio que não seja forte? Mas sirva-nos primeiro um bom prato de
Poddvarac para abrir-nos o apetite.
– Galinha com sauerkrant antes do guisado? – espanta-se o garçom. – Não
creio que os senhores possam...
– Não pense, homem! – diz, sorrindo, Tiny. – Traga a comida,
companheiro!
– Antes de mais nada traga-nos um pouco de chá de ameixas para tirar a
merda de nossos dentes. É melhor trazer logo duas garrafas – ordena Porta.
O garçom nem acabou de abrir a primeira garrafa e ela já está vazia.
– Esta é a melhor porra de chá que já provei na minha vida! – exclama,
excitado, Tiny.
– Nada tem merda nenhuma a ver com chá – corrige Porta. – É puro álcool.
– Por que então chamam de chá? – pergunta Carl, admirado.
– É porque assim eles não têm que mentir para suas mulheres, quando
dizem que estiveram tomando chá – explica Porta.
Quando terminam a segunda garrafa, Tiny passa o braço pelo ombro de
uma senhora da mesa ao lado, que está com um vestido de cavado decote. e
tira-lhe um dos seios para fora.
Porta começa a cantar uma canção obscena numa voz alta e estridente.
Carl pega a vendedora de cigarros e começa a dançar a spjetka com ela.
Tropeçam e os cigarros espalham-se pelo chão.
O maitre acorre, seguido por dois garçons e um porteiro.
– Já chega! – exclama ele, em voz baixa. – Isto não é um bordel. Ponham-
se na rua!
– Ainda nem comemos – protesta Porta. – Seja um bom sujeito, vamos,
Nico! Mamãe disse que não podíamos vir aqui sozinhos!
– Rua, ou chamo os PMs!
– Não se incomode, nós já estamos aqui! – Porta exibe sua inestimável
braçadeira.
– Ponha-os na rua – ordena o maitre ao porteiro.
O homem estende uma mão de respeitável tamanho em direção a Tiny.
– Vamos embora, não me criem nenhuma dificuldade!
– Dê-lhe um soco nos dentes! – grita Porta, pegando um prato de
sauerkraur na mesa ao lado deles e jogando-o na cara do maitre. Este joga um
copo de vinho tinto em Porta. Dentro de segundos, não há nada mais na mesa
para ser jogado. Tiny recua sua bota ferrada, tamanho 42 e chuta com toda a
força, alcançando a canela do porteiro; este dá um berro e sai dançando pelo
salão.
Dois garçons, vestidos com jaquetas verdes de uniformes de hussardos,
agarram Carl que quebra em suas cabeças uma tábua de picar carne.
A vendedora de cigarros corre e arranha o rosto de Tiny; este atira-a em
cima da orquestra que continua sempre executando a valsa Danúbio Azul.
Porta acerta a mão do maitre com um garfo; uma terrina voa pelo ar
espalhando sopa de carneiro em todas as direções.
Os fregueses riem-se às gargalhadas, pensando que se trata de um show.
No Zlatni Bokal há sempre alguma espécie de show surpresa.
Um general de brigada ri tanto que a dentadura lhe cai dentro da sopa.
Ao saírem, Porta apanha duas garrafas de Slivovitz de uma prateleira,
declarando-as confiscadas pela polícia militar para serem analisadas.
Quanto Tiny passa pelo bufê, um prato de guisado sérvio é empurrado para
fora no local de servir. Ele considera que é um presente. mas enfia sua cabeça
para dentro antes para dizer um muito obrigado.
Ninguém protesta. O maitre fica contente ao vê-los pelas costas. Ele já
estava vendo a hora em que o restaurante seria inteiramente reduzido a cacos.
– Um dia destes eu jogo um coquetel Molotov naquela baiuca! – exclama
Porta ao subirem para uma carruagem e irem para a estação. Dirigem-se para a
sala de espera da primeira classe, onde as cadeiras são mais macias, colocam a
garrafa de Slivovitz e a terrina de guisado entre eles e atiram-se a elas.
– Devíamos voltar lá e arrebentar a cabeça daquele filho da puta do Nico –
exclama Tiny, com a boca cheia de comida. – Depois, devíamos tocar fogo
naquela porra daquele porteiro e vê-lo ser assado. Isto é o que eu penso.
Fizemos um papelão, sim senhor! Deixamos que eles mijassem em nós. Não
representamos a Pátria como deveríamos ter feito!
Um funcionário da estrada de ferro, que se aprestava para expulsá-los da
sala de espera de primeira classe, muda de ideia ao ouvir as observações de
Tiny.
O trem atravessa escuras montanhas e cruza a fronteira sem parar. Dois
dias já se passaram. Fora de Budapeste há uma parada aguardando o sinal para
entrar na estação.
Carl repara em alguns túmulos militares com capacetes enferrujados
pendurados em cruzes baratas.
– Pobres infelizes! – diz ele, melancólico. – A Pátria não da muito a seus
heróis mortos!
– A Pátria é uma porção de judeuzinhos espertos! – afirma Porta.
Uma grande gaivota pousa numa das cruzes e solta um guincho de
protesto, quando um corvo a expulsa dali.
Curioso, o corvo enfia o bico embaixo do capacete, para a fim de alisar
suas penas e a seguir investiga de novo.
– Vejam o que ele está procurando – diz Porta. – Aquele preto safado ainda
não se esqueceu dos bons tempos em que se deixavam os corpos dos soldados
insepultos por tempo suficiente para os corvos comerem sua iguaria predileta:
olhos humanos.
Um soldado romeno mostra-lhes o toco do braço.
– Bang, crash, Germanos! – explica-lhes, numa espécie de língua franca
improvisada, ao mesmo tempo que gesticula com sua mão restante. – Malo
kszenep szepen.* Job tvojemadj! Nic hammnesjov**.
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* Malo, etc... : Muito obrigado.
**Job tvojemadj, etc... : Nós não temos nada para comer.
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O trem entra vagarosamente na estação principal de Budapeste. Tem três
horas de espera, pois os trens de transporte de tropas têm prioridade.
No sujo restaurante da estação, que cheira a soldados que há muito não se
lavam, tentam arranjar alguma comida.
O cardápio é muito elegante. Eles escolhem canja de galinha picante. A
acreditar no menu a canja contém: carne de galinha, aipo, salsão, gengibre seco,
cebola, brotos de feijão, ovos e lascas de limão. Revela-se uma água amarelo-
esbranquiçada na qual a inspeção mais cuidadosa não encontra nem mesmo o
menor traço de gordura na superfície. A canja picante também está fria.
– A sopa está fria – diz Porta, indicando seu prato.
O garçom, em seu seboso dinner-jacket enfia um dedo na sopa para testá-la
e sacode a cabeça com um sorriso.
– Está quente, senhor soldado alemão!
– Está fria, senhor garçom húngaro! – replica Porta.
O garçom vai buscar o cozinheiro, um cara grandalhão, gordo, com cara de
poucos amigos, o qual, sem dizer uma palavra, pega a colher de Porta e
experimenta a sopa.
– Quente – diz o cozinheiro, rindo e mostrando os dentes escuros, e volta-
se para ir embora.
Tiny pega-o por trás pelo colarinho e enfia-lhe a cabeça no prato de sopa.
– Vá bebendo a sopa, seu cigano filho da puta! – grita Tiny, cheio de raiva.
O cozinheiro bebe como um cavalo sedento para evitar afogar-se na sopa.
Derramam os dois outros pratos dentro da calça dele e, seguido por sérias
ameaças de arrebentar-lhe a cara, ele dispara para a cozinha.
Quando saem do restaurante com sua fome ainda sem ser satisfeita, o
veterano romeno vem correndo atrás deles.
– Nich hamm!* – grita ele, desesperado.
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*Nic hamm: nada para comer.
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O trem está mais do que superlotado. Só há lugar na primeira classe. Ali,
eles podem colocar seus pés em cima dos bancos enquanto em todo o resto do
trem os passageiros estão como sardinha em lata; têm até que ficar nos toaletes,
onde se riem das pessoas que desejam usá-los.
– Urine pela janela – recomendam. – Mas não contra o vento, por favor.
Aqui está uma senhora que precisa ir. Alguém tem um bolso de borracha?
Todos os uniformes da Europa Central estão em exposição. PMs com
crachás de meia-lua brilhantes abrem caminho com brutalidade através da
multidão. Cumprimentam discretamente os civis de casacos de couro que usam
as abas dos chapéus caídas sobre os olhos. Gestapo. Há sempre uma verificação
em andamento. Bata com a língua nos dentes descuidadamente e você sentirá
uma pesada mão descansar em seu ombro, quando sair do trem:
– Geheime Staatspolízei.
Sem fazer uma ondinha outra pessoa desapareceu. Há três mil pessoas no
comprido trem expresso que ronca como um trovão, com as luzes apagadas,
através do campo a caminho da Alemanha. Esta, localizada como um tumor no
coração da Europa, com seus quartéis, suas prisões, seus campos de
concentração, hospitais, praças para execuções e cemitérios. Uma terra em que
milhões de pessoas torturadas passam a maioria de suas noites abrigadas nos
porões.
O maquinista da locomotiva toma um gole de sua garrafa térmica de café.
Ele está dirigindo o trem há 18 horas sem um momento de descanso. Os
regulamentos dizem que não se pode trabalhar mais de oito horas, mas se está
cm guerra e há muita falta de maquinistas.
Seu companheiro joga pás de carvão dentro do estômago em chamas que
fica por baixo da caldeira.
Na primeira classe, as pessoas estão se aprontando para deitar. Um coronel
de ceroulas compridas dá ouvidos a um major da polícia secreta.
– Em Odessa nós costumávamos coloca-los de pé num caminhão; quando
este se movimentava eles lá ficavam pendurados – diz o major, rindo. – Era
muito engraçado de ver.
O coronel concorda com a cabeça silenciosamente e continua a espremer
cuidadosamente uma espinha, olhando-se num espelho.
Altos suspiros podem ser ouvidos do outro vagão, onde um engenheiro de
petróleo romeno está cuidando da mulher de um coronel alemão. Ela esteve em
Bucarest para visitar seu marido que está seriamente ferido. O engenheiro a
beija e enfia a mão por seu redondo traseiro. Ela ri e o empurra.
O homem derruba-a de costas em cima do veludo do banco, levanta-lhe a
saia pregueada até aparecerem as ligas que lhe suspendem as meias. Empurra–a
um pouquinho mais para cima; ela se ri excitada, quando ele lhe abre as pernas.
– Não – murmura ela. – Você não deve fazer isso.
Ele passa a mão por trás dela e puxa-a para cima dele. Ao ritmo do balanço
do trem. eles gozam dos prazeres do amor. Num vagão um pouco adiante, uma
enfermeira alemã está deitada com o vestido acima da cintura. Um tenente de
infantaria está com a cabeça enterrada entre suas pernas. Ela enrola as pernas
em torno do pescoço dele e se enrosca toda, gemendo de prazer.
No banco em frente a eles, um oficial de Marinha está puxando para baixo
um par de calcinhas vermelhas da mulher de um conhecido médico de Viena.
Os dedos dela arrancam. nervosos, os botões da braguilha da calça do oficial,
enquanto olha, fascinada, o casal no banco à sua frente.
Porta acaba de terminar a negociação referente a um porquinho preto que
anda numa coleira como um cachorro. Carl e Tiny jogam dados com dois
marinheiros. Usam como mesa caixas colocadas no chão. Entre jogadas, Tiny
passa a mão nas coxas de uma camponesa romena.
– Quando você estiver em Heyn oyer Strasse, pergunte por Alberto, o
Torto. Ele irá ajuda-la a arranjar um trabalho decente. Uma tetéia como você
não deveria queimar-se numa porra de uma fábrica.
– O que irá dizer a Gestapo? – pergunta, nervosa, a moça.
– Mantenha-se afastada deles e que diabo tem você que se incomodar com
o que eles dizem?
Gritos e ruídos como de um órgão soam na noite negra. O maquinista deixa
cair sua garrafa térmica e atira-se sobre o freio.
Seu companheiro já está na porta, pronto para saltar. O coronel em ceroulas
escuta nervoso, com sua escova de dentes na mão. O major pula do leito de
cima e começa, nervosamente, a procurar seu uniforme.
– Aviões! – grita ele. – Os desgraçados não têm nunca paz. Quando não é
uma coisa é outra Já estava em tempo que eles descobrissem esta maldita arma
final!
– O que há? – pergunta a enfermeira, que agora tem sua cabeça enterrada
entre as pernas do tenente.
– Escute! – diz a mulher do coronel a seu engenheiro de petróleo. Sua
bunda nua está virada para cima.
– Para o inferno com eles! – geme o engenheiro, que está quase acabando
de gozar. E pretende acabar, mesmo que toda a Força Aérea Americana ataque
o trem de uma só vez. Agarra-a pelas coxas e empurra tudo o que pode
loucamente para dentro dela.
O oficial de Marinha e a mulher do médico estão no chão. Ela está por
cima dele e tão concentrados no que estão fazendo que nem ouvem as vozes da
guerra do lado de fora.
– Que diabo! – grita Tiny que somente agora conseguiu tirar as calças da
camponesa. – Esses porras desses aviadores não poderiam ter esperado mais
uns 10 minutos?
– Vamos dar o fora – diz Porta, colocando o porquinho preto debaixo do
braço.
Carl joga-se no chão e coloca os braços sobre a cabeça a fim de proteger-se
contra o que está vindo.
Uma jovem nua corre pelo corredor com o amante em seu encalço somente
de meias e uma camiseta.
– O soldado alemão pode tornar-se sujo mas nunca é sujo – diz, orgulhoso,
um general de brigada. Ele está conversando com alguns oficiais húngaros e
romenos num vagão isolado. Eles não ouvem os Jabos*que baixam das nuvens
guinchando e mandando balas traçadoras em direção à linha da estrada de ferro.
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* Jabos: Caças-bombardeiros.
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A próxima onda deixa cair bombas. A terra levanta-se como se fossem
fontes d’água de ambos os lados do leito da estrada de ferro. Pedras, terra e
lama caem como uma cascata sobre o trem.
Na próxima investida, os aviões atingem a máquina. O carvoeiro salva-se
atirando-se para fora. Dando cambalhotas ele desce a rampa, levanta-se num
pulo e corre para o bosque. Não é a primeira vez que salvou a vida desta forma.
Atira-se dentro de uma depressão do terreno e fica observando o trem que
vagarosamente perde velocidade.
– Jesus Cristo, Jesus Cristo! – suspira ele. – Estão fazendo uma limpeza em
condições!
O canhão automático ronca. Outro vagão desce pela ribanceira, cai de lado
e desaparece. Um vagão alemão e um iugoslavo empinam-se um contra o outro
como se num abraço amoroso. Os truques caem sobre os trilhos.
O coronel de ceroulas corre soluçando ao longo dos trilhos. Uma rajada de
balas traçadoras atravessa-o. Como um porco abatido, seu corpo rola pelo
declive abaixo. Um par de rodas soltas passa por cima dele cortando seu corpo
em dois.
O major da polícia corre com sua pasta preta GEKADOS embaixo do
braço: uma pasta que contém sentenças de morte. Atira-se dentro de um buraco,
mas chega lá junto com uma bomba aérea. Nada sobra dele ou de sua pasta
GEKADOS.
A jovem nua abrigou-se sob um vagão virado. O deslocamento causado por
uma bomba desloca o vagão mais para baixo pela ribanceira; a moça é
amassada contra o lado do vagão como manteiga num pão quente.
A enfermeira e o tenente correm ao longo do lado do trem; ninguém nota
que ela só está de meias e ligas. Correm direto para uma rajada de um Jabo e
nem sentem o beijo da morte.
A mulher do médico de Viena e arremessada por uma janela; uma
comprida e afiada lasca de vidro corta-lhe o corpo ao comprido. Suas entranhas
ficam penduradas no vidro estilhaçado da janela.
O oficial de Marinha desapareceu por completo; apenas resta seu boné no
chão do compartimento. A maior parte aos passageiros está espalhada entre os
altos e delgados pinheiros. Os corvos esvoaçam vagarosos, por sobre o trem
destruído.
As bombas abriram caminho para dentro do trem e lançaram os passageiros
para fora por entre as árvores. Choros e gritos levantam-se da massa de carne
esfacelada, miolos, ossos e juntas. O general de brigada está vomitando em
cima de uni cadáver.
Os gritos dos feridos abafam o barulho que ele faz. Usualmente, ele tem
orgulho de sua dureza; já viu bastante sangue em sua vida e está acostumado à
visão de corpos esfacelados. Mas a vista de entranhas vermelho-azuladas,
cobertas com enxames de gordas e satisfeitas moscas, é demais mesmo para um
duro general alemão, que se gloria com o pensamento de uma morte de herói.
Um oficial da SD jaz um pouco afastado dentro do bosque. Olhando
através de uma renda de agulhas de pinheiro pela qual se filtra a luz da manhã,
ele vê os restos de uma mulher empalada numa árvore. Não tem mais braços; as
pernas estão penduradas para um lado como as asas de um pássaro deslizando
no ar. Um chapéu com uma pena azul ainda está em sua cabeça.
A mulher deve ter sido atingida por uma explosão, pensa ele, e não pode
afastar seus olhos do grotesco cadáver balançando em cima da árvore. Ele não
pode mover-se. Uma estaca atravessou-o e o mantém pregado ao chão, mas não
sente nenhuma dor.
Diversos vagões continuam sobre os trilhos; por dentro são como
abatedouros; feridos e mortos numa massa de ossos expostos e carne em
frangalhos.
Um soldado corre ao longo dos trilhos; o sangue jorra de seu ombro.
– Filhos da puta, filhos da puta, vejam o que fizeram com meu braço! –
grita ele, tropeçando e caindo para frente para morrer.
Um cabo, com não mais de 17 anos, está sentado numa porta de vagão
arrancada e olha para suas pernas. Elas estão penduradas por tiras de
ligamentos. Seu rosto está ensanguentado; apenas os olhos tem vida. Toca sua
Cruz de Ferro de 1ª classe. Um mísero pagamento por uma juventude perdida; o
sujo agradecimento da Pátria a uma geração traída.
Um trem de socorro chega da direção contraria e para bem em frente à
locomotiva virada.
Um Oberstabsarzt calçando brilhantes botas de montaria examina
friamente a cena da chacina. Grita algumas ordens e padioleiros saem do trem
com lonas debaixo do braço. Primeiro, os soldados alemães feridos; em
seguida. os soldados alemães mortos. Depois, os civis alemães e por último as
pessoas dos territórios ocupados.
– Jesus Cristo! – exclama Porta, que está sentado num para-brisa entre
Tiny e Carl. – Essas bombas podem realmente fazer uma limpeza! Muito mais
eficiente do que granadas!
– O que é aquilo que ele tem na mão? – pergunta Tiny, apontando para o
corpo de um soldado de cavalaria morto.
Carl inclina-se e abre a mão fechada, aparecem uma nota de cem marcos e
três dados.
– Parece que ele tirou um seis – diz Carl.
– Nossa Senhora de Kalan; – exclama Tiny, admirada.
– Então conquistou um lugar no céu – Considera porta.
– Pobre diabo. Morreu com três Seis e cem marcos no jogo – suspira Carl,
tirando a rolha de uma garrafa de schnapps. Pegou-a quando ela veio voando
pelo ar ao sair do carro-restaurante.
– Aquele porra daquele seu porco está comendo um cadáver – diz Tiny,
rindo
– Sempre esfomeados os porcos – diz Porta, sacudindo a cabeça. – Estão
há muito tempo com os alemães.
Dois padioleiros passam com um tenente morto numa padiola. A perna
dele foi arrancada e eles a colocaram atravessada em cima do corpo; ela cai e
rola pela escarpa abaixo. A comprida e brilhante bota ainda está nela e sem
demonstrar qualquer dano. A espora brilha ao sol.
Carl pega a perna e coloca-a de volta sobre o corpo do tenente.
– Sag’ zum Abschied, Ieise Servus – canta Porta para a padiola com o
tenente morto.
– Uma porção de gente morreu aqui – diz Tiny. – A pátria é uma gulosa
filha da Puta.
– A gente fica arrepiado só de pensar em todas estas pessoas mortas tão
rapidamente – diz Carl.
– Um homem que chora quando vê uma coisa destas acontecer não é um
verdadeiro alemão; não tem tutano – diz Porta, pegando o leitão e colocando-o
embaixo do braço.
– Estou com uma fome danada – fala Tiny. – Será que eles vão-nos dar
algum grude?
Param ao lado dos corpos de duas Blitzmädel*.”
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* Blitzmädel: Moças telegrafistas.
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– Que merda! – exclama Porta. – Que belo par de pernas. O diabo sabe o
que está fazendo, se é isso que ele deseja.
– Colchões de serviço em campanha do Exercito modelo 39-40 – diz Tiny,
levantando, curioso, uma saia. – Há gente que faz coisas com corpos mortos –
confidencia ele, em voz baixa.
– Você está louco? – diz Porta. – Iria direto para o inferno.
Partindo de uma capoeira, eles ouvem imprecações e gemidos. Afastando
os galhos dos arbustos, encontram um suboficial morrendo com uma granada
de 20 mm espetada no peito sem ter explodido.
– Praguejando desta forma e agonizante – fala Carl! escandalizado.
– Se Deus não o receber. o diabo o fará! – exclama Porta, sempre prático.
Padioleiros carregam-no. Um trem-oficina de socorro remove os restos do
destruído expresso.
Em Viena, a viagem deles é interrompida por vários dias. Porta quer ir para
Grinzing.
– Você sempre pode cavar alguma garota por lá – explica aos outros dois. –
Só se tiver a aparência de um Frankenstein de ressaca é que você vai para casa
sem arranjar alguma coisa ali.
Em Munique, encontram um conhecido de Porta. Um cabo dos caçadores
alpinos que está celebrando o dia em que sua mãe quase morreu, há 25 anos. O
porquinho preto é convidado e naquela festa aprende a tomar cerveja.
Chove quando partem de Munique, um dia miserável e úmido. O vagão
cheira a roupas molhadas e corpos azedos.
Carl perdeu seu bom humor; ele não está mais com pressa de chegar.
Os três ficam em pé juntos no corredor, observando a paisagem triste que
desfila com a passagem do trem. Ruínas por toda a parte. Em Stuttgart, têm que
esperar várias horas fora da cidade, enquanto um ataque aéreo está em curso.
– Viva o feliz guerreiro alemão! – diz Tiny.
Porta morde, pensativo, um pedaço de pão.
– Que sorte tivemos de haver nascido na Alemanha – suspira Carl.
melancólico.
– Há alguém por aqui que pense que eu amo a Pátria e a ideia de deixar-me
matar por ela? – indaga Porta. em tom provocador, numa pergunta dirigida em
geral aos outros passageiros que aparentam sentir-se tão miseráveis quanto ele.
Tiny sacode-se de riso e encara um camponês alemão que está servindo-se
de um gole de uma garrafa de schnapps.
– Se você me oferecesse um, acha que eu diria não?
O camponês passa-lhe a garrafa de má vontade.
Tiny toma um grande gole e passa a garrafa para Porta e Carl, que quase
esvaziam a garrafa.
O camponês olha tristonho para o que resta e decide bebê-lo enquanto
sobra alguma coisa.
Numa fria e chuvosa tarde de domingo, os três chegam a Karlsruhe, onde
baldeiam para um pequeno trem local.
Um oficial da RTO, mal-encarado, para-os e pede-lhes seus papéis.
Examina Carl dos pés à cabeça, em tom zombeteiro. A seguir, aponta para o
porquinho preto que acompanha Porta amarrado numa corda.
– O que você tem ai? – pergunta ele.
– Meu cão! – responde Porta, batendo os calcanhares.
– Isto é um sujo porco – protesta o major.
– Não, senhor, ele está limpinho! – pondera Porta.
O major sacode a cabeça e afasta-se com um tilintar de esporas.
E eles viajam apenas por pouco tempo no trem suburbano; os trilhos foram
bombardeados. A 25 quilômetros mais ou menos de Germersheim, decidem
fazer a pé o resto do caminho. Chove de cachorro tomar água em pé. O porco
guincha; eles o cobrem com algumas folhas.
– O bicho está com fome! – diz Tiny.
– Se tivéssemos alguma farinha, poderíamos fazer umas panquecas –
sugere Porta, lambendo os beiços. – Porcos também gostam de panquecas.
– Jesus e Maria, panquecas! Panquecas com açúcar e geleia – exclama
Tiny, excitado. – Talvez se encontre algum rum por aí? E tão gostoso que nem
aguento pensar!
– Seria um belo jantar de despedida para Carl, antes que ele entre no
purgatório – diz Porta. – Nós vamos dar um jeito de fazer panquecas com rum,
açúcar e geleia. Vamos dar um jeito.
– Calem a boca! – diz, rispidamente, Carl. – Vocês me enjoam!
– Você vai comer uma refeição supimpa antes que nós o entreguemos
àqueles filhos da puta na cadeia! – promete, solenemente, Porta.
– Vamos consegui-lo com a porra de nossas engraxadeiras – exclama Tiny.
– Então eles vão entender; esses malditos comedores de salsichas que ficam em
casa vão saber que chegaram visitas da frente leste.
Depois de uns 15 quilômetros, eles param para descansar, ensopados até os
ossos e exaustos, na vala ao lado da estrada.
– Por Deus que estou cansado – geme Carl, sacudindo a água do boné. – Se
minhas pernas não estivessem plenamente visíveis, eu pensaria que as tinha
gasto.
– Você está bem – diz Porta, despejando água das botas.
– Só tem outros 16 quilômetros para andar, mas nós temos que refazer toda
a viagem de novo e quem nos diz que o regimento ainda está em Corfu? Eles
podem ter-se movimentado. Podem estar no norte da Finlândia. Temos que
levar tudo isso em consideração, quando se está viajando a serviço do Exército.
– Nossa Senhora de Kazan! – exclama Tiny, aterrorizado. – De Corfu até o
norte da porra da Finlândia. Não creio que eu consiga.
– Aqueles a quem Deus ama, Ele manda para seu mundo – diz, tranquilo,
Porta.
– Ele certamente que nos ama muito – considera Tiny.
– Vamos procurar algum lugar para secar-nos – fala Porta, levantando-se.
Sem nosso coronel nenhum de nós teria escapado. Eles atiravam em tudo o
que se movia, até mesmo em nossos cães-sinaleiros – explica um prímieiro-
cabo, com os olhos vendados. – Companhias estavam reduzidas a 15 ou 20
homens e havia incêndios por toda a parte. Mais de 500 feridos abrigavam-se
na fábrica. Uma porção deles se matou rolando até os poços dos elevadores e
deixando-se cair. Ninguém tinha nenhuma dúvida sobre o que lhes aconteceria,
se caíssem nas mãos dos russos...
– Mas como é que você se livrou? – pergunta um cabo no meio do grupo
que estava em volta do leito.
– Bem, vejam! Isto foi um caso à parte. Foi sabotagem de ordens, como se
chama, ou morte certa, mas nosso coronel tomou uma decisão firme e ordenou-
nos a retirada. Isto foi depois de ambos os filhos dele terem sido mortos.
Ambos eram tenentes e comandavam companhias. Os feridos teriam que ir
conosco, ordenou o coronel. Eles foram acomodados em trenós e nós
marchamos contra a tempestade de neve. Muitos morreram durante a marcha.
Atravessamos as linhas russas com nosso coronel à frente com sua Mpí
embaixo do braço. Tropas de esquiadores golpeavam-nos todo o tempo. o
coronel encravou todos os canhões de forma a podermos usar os cavalos para
puxar os trenós com os feridos.
– Que diabo está você dizendo, homem? – exclamou um sargento,
indignado. – Inutilizou sua própria artilharia? Que belo comandante, por Deus
do céu!
– Você não esteve lá, camarada. Era preciso ter estado lá para saber o
gosto que tinha. Cossacos com sabres desembainhados e tropas esquiadoras
com Mpis flamejantes! Quarenta e cinco graus centígrados abaixo de zero e
uma tempestade de neve! Você teria adorado, não teria, companheiro?
– Quem é que você está chamando de companheiro? – berra o sargento. –
Você não vê que sou um superior seu?
– Eu hoje não posso ver mais nada, camarada! Perdi meus olhos na
tempestade de neve. Congelados, compreenda. Para mim, você é só uma voz.
– Cego ou não, você ainda é um soldado, primeiro-cabo! – grita o
sargento, com o rosto incendiado. – Ainda pode ficar em posição de sentido.
Componha-se agora ou eu darei parte de você por recusar-se a obedecer a
uma ordem. Deixe-me ver seu livro de pagamento!
O cego entrega o livro de pagamento ao sargento, que anota
cuidadosamente o nome dele e sua unidade num caderninho.
Por toda a volta deles, os soldados estão manifestando seu desagrado.
– Fiquem quietos ou darei parte de vocês todos! – grita o sargento, e a
passos largos afasta-se do hospital de campanha.
– O que aconteceu com esse coronel de vocês que estourou seus canhões?
– pergunta um sapador, que teve ambas as pernas amputadas.
– Um tenente-coronel da GEFEPO apareceu e levou-o no dia seguinte
aquele em que rompemos as linhas. Dois dias depois, ele estava enfrentando
uma comissão de sindicância. Todas as testemunhas estavam a favor dele e o
general comandante da divisão depôs como sua testemunha, mas mesmo assim
eles o fuzilaram no dia seguinte. Vocês sabem qual foi a acusação. Sabotagem
das ordens recebidas.
– Porco! – diz alguém do canto. Ninguém toma o partido do sargento.
CHÁ DARJEELING
Blatz está para deixar o lugar e desaparecer, quando o Capitão Von Pader
bate na parede e o chama.
Nada podendo fazer, ele tem que entrar na reserva por menos que deseje
fazê-lo.
– Blatz, tire daí esse idiota cantador! – ordena, furioso, o capitão. – Fuzile-
o, se lhe agradar!
Blatz arrasta os pés, como uma galinha no choco.
– Herr capitão! – gagueja, em tom confuso.
– Isto é uma ordem! Tire esse palhaço daqui! – explode Von Pader, fora de
si. Blatz suspira como um condenado. Com incertos passos ele se dirige para
fazer Tiny sair.
Por detrás da cortina, Von Pader observa o que vai acontecer, em
companhia de uma garrafa de conhaque. Dominar e esmagar um soldado tinha
sido tão fácil para ele, até agora, como matar um mosca. Toma um longo trago
da garrafa. Com um pouco de sorte, em breve estaria de volta a Berlim e então
esses meio-humanos soldados da frente iriam realmente conhecê-lo. Espia
cuidadosamente para fora da janela e vê, satisfeito, que Blatz está falando com
Tiny.
Se alguém pode dominar aquele caipira é o Primeiro-Sargento Blatz, o
terror da escola de formação de subalternos, o Quebra-Osso Blatz!
Von Pader resmungando ri de novo para si mesmo, bebe outro gole da
garrafa de conhaque, e começa a andar para cá e para lá na cabana de teto
baixo; está aquartelado no estilo ao qual um oficial alemão de sangue azul nas
veias tem direito. O dono da cabana, naturalmente, foi expulso e fixou
residência num buraco no chão.
O Barão Von Pader não condescenderia em viver na mesma casa com um
untermensch russo. Ele poderia transmitir-lhe alguma espécie de suja doença.
Dera uns tiros na mulher russa, quando ela criara alguma dificuldade com
relação a uns potes e panelas que queria levar com ela. Para que, diabo, queria
ela potes e panelas? Disseram-lhe que um dos tiros a havia atingido, mas ele
não deixou o sargento-enfermeiro examina-la. Enfermeiros alemães não
deveriam ser obrigados a tocar untermensch. Eles não haviam recebido seu
custoso treinamento para cuidar deles. Nunca seja bom para um russo; isto os
faz atrevidos, como os negros. De chicote, é que eles precisam. E uma
execução de vez em quando não era nada mau. O Capitão Von Pader gostava
de enforcar gente. Já o Coronel Hinka era contra este tipo de coisas. Ele exigia
que os untermensch fossem tratados como os alemães! Muito bem! Aquele
emproado coronel em breve perderia toda sua empáfia, quando o levasse ã Rua
Almirante Schröder. Derrotista, sabotador racial!
Tiny está cantando cada vez mais alto no meio dos canteiros de nabos. O
Primeiro-Sargento Blatz desapareceu.
O Barão Von Pader aperta os lábios, pega sua Mpi de cima da mesa e
afasta as cortinas para um lado. No mesmo instante, uma vidraça estoura atrás
dele e uma granada de mão rola pelo chão. Ele grita de medo e atira-se ao solo.
Tiny corre para dentro da cabana, com sua Mpi engatilhada, para no meio
da sala, olha para seu comandante estirado no chão e para a granada de mão
prestes a explodir. Abaixa-se, pega-a e joga-a para fora pela porta aberta.
Von Pader consegue por-se de pé, limpa com as mãos seu uniforme cinza-
ardósia e volta as costas ostensivamente para Tiny. Este, evidentemente, para
ele, não existe.
Tiny nem está ligando. Tagarela alegremente acerca de jogar granadas,
guerrilheiros e muitas outras coisas que fazem parte da vida atrás das linhas.
– Herr capitão, senhor, estou muito certo de que muitos destes oficiais aqui
estão tentando brincar comigo! Agora se eu pudesse encontrar um rato morto,
que fedesse muito, então nós poderíamos jogá-lo no meio deles. Isto não é
brincadeira estar jogando granadas em mim. é? E com o senhor sendo novo na
função, como se poderia dizer!
O Capitão Von Pader fecha e abre as mãos num esforço para conter sua
raiva. Passa a mão pelo coldre da arma: será que ele deveria atirar neste homem
e dizer que o havia atacado? Decide não fazê-lo.
Porta está sentado cm frente ao Mecânico-Chefe Wolf na comprida e larga
mesa de Wolf, discutindo com ele quatro caminhões e diversas caixas de
suprimentos da cantina. Wolf está comendo uma metade de uma cabeça de um
leitãozinho. Porta está preparando um sanduíche do modo que ele acha que um
sanduíche deve ser feito. Primeiro, um pedaço de pão com uma demão de
gordura de ganso; depois, um bom pedaço de presumo defumado, coberto
com fatias de salsicha e mais qualquer coisa disponível. O conjunto
finalmente coberto com uma camada de geleia de groselha!
Abre completamente suas mandíbulas e consegue manobrar o enorme
sanduíche para dentro da boca. Encontra alguma dificuldade em atravessa-lo
com seus dentes, mas finalmente o consegue.
– Quero vê-lo engasgar! – diz Wolf, animando-o.
Porta consegue deglutir o último pedaço e pega uma galinha sobre a qual
derrama um pote inteiro de geleia.
– Não espere demais, Wolf – diz ele, enchendo a boca com a galinha. – Eu
poderia engolir um porquinho inteiro de bom tamanho, escutá-lo grunhindo
dentro de mim o dia inteiro e acabar cagando-o de novo sob a forma de uma
ninhada completa de leitõezinhos de leite vivos!
– Eu não duvidaria de que você fosse capaz – resmunga Wolf, enojado,
comendo sauerkraut junto com o pé de porco. – Lembre-se apenas, no entanto,
de que é minha comida que está filando e, quanto eu possa lembrar, você nem
foi convidado.
Porta ri gostosamente, descansando as mandíbulas.
– Está perdoado, irmão Wolf, mas eu deveria dizer-lhe que nunca sou
convidado. Não é necessário! Eu venho sem ser convidado, mas estou sempre
vestido para jantar!
Durante algum tempo, comem silenciosamente, olhando um para o outro,
avaliando-se. Os únicos sons que se ouvem são os de ossos sendo partidos e de
vinho descendo pela goela abaixo.
Wolf, que foi bem-educado, bebe de um copo; Porta, direto da garrafa.
Wolf tem seu próprio serviço de jantar particular; Porta está disposto a pegar
sua comida diretamente da panela. A coisa principal, no que lhe respeita, é que
haja bastante.
– Vamos dividir a cabeça do porco? – pergunta ele, cravando uma longa
faca de cozinha precisamente entre os olhos do animal que domina a mesa com
um tomate na boca.
Wolf resmunga algo ininteligível que termina com “merda”.
Porta corta a cabeça do porco em duas parte, ficando com a maior para ele.
Esvazia seu conteúdo com um longo chupão capaz de enjoar estômagos
delicados.
Wolf olha para ele com asco.
– Diga-me, filho: você nunca moce num rancho?
– Naturalmente que sim – diz Porta, rindo. – Existe alguma coisa que não é
servida lá?
Eles se reclinam em suas cadeiras; dois longos e satisfeitos arrotos fazem-
se ouvir. Porta tira suas botas e meias e coloca-as na mesa. Um cheiro acre
emana delas. Olha atentamente para Wolf, que começou a comer um prato de
fumegante pudim de chocolate, e chega para mais perto dele uma das meias,
cujo dedão não prima pela limpeza. Luxuriosamente, agita os dedos dos pés.
Sem lhe dar a menor atenção, Wolf derrama molho de maçã em cima do
pudim.
Porta começa a cortar as unhas dos pés. Aparas de unhas passam zunindo
pelos ouvidos de Wolf.
Os cães-lobos fungam com desprazer e afastam-se da mesa. As meias de
Porta são um pouco mais do que seus sensíveis focinhos podem suportar.
– Que diabo de cheiro é este? – pergunta, subitamente, Wolf, levantando os
olhos da salsicha.
– Cheiro? – pergunta Porta, inocentemente. – Deveria ser esperado, não é?
Em sua companhia?
– Não seja confiado, filho – rosna Wolf, ameaçador. – Não se esqueça de
quem é mecânico-chefe e sargento aqui. E não se esqueça quem e portador da
medalha da Cruz Alemã em prata. Tire essas malditas meias daqui. Quem
jamais ouviu que se colocassem meias em cima de uma mesa de jantar? – Com
seu garfo, ele as atira no chão; elas vão cair perto dos cães que recuam ganindo
e uivando.
– Sei onde existem três tratores – diz Porta, após um longo silêncio. – De
esteiras, do tipo que a artilharia pesada usa.
– Que tratores? – pergunta Wolf, com aparente desinteresse.
– Coisa de primeira classe. Não estão nem estragados por mau óleo ou
querosene. Vieram direto dos Estados Unidos, endereçados a Ivan.
– Que marca? – pergunta Wolf, mergulhando na gordura um pedaço de pão
camponês ucraniano. – Se forem Fords, eu não poderia estar menos interessado.
Tito começou a odiar os capitalistas seriamente, quando eles lhe enviaram
alguns deles. São a vingança da América contra a Europa por nós lhes
havermos mandado todos os nossos indesejáveis.
Porta lava a boca com uma meia garrafa de champanha da Criméia, da qual
ele se serve sem ser convidado.
– Quem está falando acerca de Fords? Estou falando sobre Caterpillars. O
que tem a dizer?
– Você está mentindo – retruca Wolf, antes que possa lembrar-se da
primeira regra do comprador: deixar de mostrar qualquer interesse no que está
sendo oferecido.
Porta abre uma lata de carne, sem pedir permissão, e joga o conteúdo para
dentro da boca com a ponta da baioneta.
– Onde você está guardando esses Caterpillars?
Porta acaba sua lata de carne antes de responder e está evidentemente
gozando da impaciência de Wolf.
– Eu não os tenho. Acontece que apenas sei onde eles estão neste
momento.
– Estamos desperdiçando o tempo um do outro – decide Wolf,
bruscamente. – Você não pode vender algo que não tem.
– Você sempre faz isso, Wolf – diz Porta, com ar sabichão. – Vamos ter
um café para completar depois deste modesto almoço?
– Eu trago a latrina para aqui, se você quiser! – rosna Wolf. – Tire seus
fedorentos pés da mesa, seu filho da puta. Nunca aprenderá a ser educado,
nunca! Colocar os pés ao lado do prato do dono da casa nunca fará de você um
convidado popular. Pensei em oferecer-lhe um emprego quando acabasse a
guerra, mas seria como se soltasse um porco amalucado no meio do infeliz
resto do mundo.
“Mocca! – ordena Wolf a seu criado, um ex-sargento russo, para trazer-lhes
café, embora com má vontade.
– O homem disse café! – grita Porta para o russo.
– Desde que o conheci, eu me converti para o partido tóri, e palavra de
honra que odeio o proletariado socialista das sarjetas – resmunga, amargo,
Wolf.
– Eu bebo somente Java – diz Porta, rindo, sem se sentir de forma alguma
insultado.
– Java? Onde no inferno você acha que eu seria capaz de encontrar Java? –
mente Wolf.
– Tire a merda de seus ouvidos – fala Porta, confiante. – Wolf: você pegou
três sacos de Java há um mês. Poderá enganar todo o Exército alemão o tempo
todo, mas a mim você nunca pode tapear, meu chapa!
– Santos não é bom bastante para você? O pobre perseguido povo alemão
daria seus colhões por uma xícara de Santos. Há. Até alguns Herrenvolk que
nunca provaram uma xícara de Santos.
– Você é realmente um homem mau, Wolf, realmente mau! – fala Porta
sorrindo com jeito cativante. – Em primeiro lugar, não sou um dos pobres e
perseguidos alemães que você mencionou antes. Entre você, eu e o respeitável
público, eles podem foder-se todos no que me diz respeito. Eu venderia amanhã
a todos eles, a Pátria e tudo o que ela contém, incluindo as bandeiras, ao nosso
vizinho Ivan. Não quero sua merda amarga de Santos. Quero Java.
E, meu amigo, se eu não o beber agora, você não terá mais nenhum em
estoque amanhã!
Wolf vira a cabeça e dá um berro pelo sargento russo.
– Igor! Java! Qualidade B!
– Qualidade A, amigo! – corrige Porta.
Um gostoso aroma enche todo o armazém. Com o café, eles comem torta
de queijo.
– Tenho cinco quilos de chá – diz Porta, depois da quarta xícara de café. –
Darjeeling com um pouco de verde misturado, excelente qualidade. Faria um
chinês sair voando com seus bagos tilintando ao som da marcha Radetzky
durante todo o tempo em que estivesse voando!
– Conversa fiada! – comenta Wolf. – Chá é impossível de obter hoje em
dia. Tenho obrigação de saber, pois tentei-o várias vezes. A China é enorme e
está coberta de chá. Meus rapazes chineses me dizem que há o bastante para
eles se afogarem em chá se o desejarem. Mas nós não estamos na China.
– Tenho conexões – proseia-se Porta, desdenhoso. – Eu tenho, Imagine
uma caravana de camelos com um harém completo e alguns vagabundos árabes
ou um submarino inglês completo com projéteis e torpedos? E uma sopa! A
Scotland Yard está nas pegadas do maquinista, de forma que ele topa a parada.
Você poderá viajar à vontade, Wolf!
– Foda-se – rosna Wolf, sem ficar impressionado. – Camelos eu tenho.
Quem deseja camelos hoje cm dia? É atrás de rodas que se anda! Quanto você
quer pelo seu chá?
– Quanto você paga? – retruca Porta, limpando os dentes com sua faca de
combate.
– Dez mil marcos – oferece Wolf, com um brilho ganancioso nos olhos.
Porta reclina-se para trás na cadeira, rindo a bandeiras despregadas.
– Não estou em falta de papel higiênico, Wolf!
O sargento levanta-se sem uma palavra e passa para a sala vizinha. Corre
os dedos ao longo da parede, abre um painel e aparece um cofre. Ele desliga
diversas conexões elétricas e abre o cofre. Qualquer um que tentasse fazê-lo,
seria reduzido a migalhas.
Quando volta, Porta está de pé em cima da mesa mexendo com os
cachorros que rosnam e tentam mordê-lo raivosos. Wolf ri com gosto.
– Pare de tentar dar comida para meus cães, filhinho!
Chuta uma salsicha que está no chão. – Eu poderia fazer você comê-la.
Quanto tempo pensa que levaria para esticar a canela?
– Eu sou bem durinho – replica Porta, sorrindo amigavelmente. – Daria a
mim mesmo uns 30 segundos, calculo.
Wolf enxota os ferozes cães para um canto. Rosnando eles lá ficam,
vigiando Porta, que desce de cima da mesa.
– Olha aí! – diz Wolf, empurrando uma caixa preta para ele.
– Você pode ficar com estes por seu chá.
Porta examina os três grandes diamantes com uma lente de joalheiro.
– Você é engraçado! Seria o melhor número do circo da vila! Você sabe: o
cara que sempre cai de bunda no chão. Mostre esta merda para um judeu de
Amsterdã, Wolf, e ele mandará examina-lo por um médico antes de você poder
dar meia-volta.
– O quê? – pergunta Wolf, insultado.
– Você sabe do que estou falando, sabe muito bem. Natal na Tiffany! Enfie
estes vidros no rabo e guarde-os até que possa fazer negócio com um socialista,
ou qualquer outra espécie de idiota.
– Não entendo uma palavra do que você quer dizer – suspira Wolf, batendo
com a tampa da caixa preta.
– Você parece um jornal com tinta fresca, todo borrado – diz Porta,
zombando do mecânico-chefe.
– Muito bem, esqueça! – concede Wolf. – Admito que eles são de vidro,
mas como poderia eu saber que você não tinha sofrido uma concussão cerebral,
quando foi atingido por aquela explosão em seu caminhão na semana passada.
Os tempos andam duros. Valeu a pena a tentativa!
– Você está me fazendo chorar – diz Porta.
– Não gostaria de um mês de licença? – esgrime Wolf. – Ou talvez de uma
viagem a serviço pela Europa inteira? Que tal uma hospitalização com uma
doença de verdade que nenhum oficial-médico possa curar? Isto é, enquanto
você não quiser que ela seja curada.
– Jesus Cristo, Wolf, você só tem merda no coco! – Porta sacode a cabeça,
resignado. – Se eu quisesse uma licença, eu estaria fora daqui a 10 minutos. Se
eu quisesse dar parte de doente, tenho 10 mil doenças das quais você nunca
ouviu falar, variando desde dores de crescimento até pragas e pestes. Por Deus
que nos escuta, qualquer hospital me receberia em todas as honras, se eu
realmente desejasse recolher-me. O General Sauerbrauch, o chefão, viria de
avião para seguir meu complicado caso tão de perto quanto possível. E viagens
a serviço! Viagens a serviço, eu, Wolf, sou perito em conseguir. Vejamos agora
o que mais tem você naquele cofre!
– Porta, se você se aproximar daquele cofre, seu corpo de judeu ficará com
mais buracos do que uma peneira! Seriam necessários todos os porretas dos
generais médicos do Exército alemão e do Exército russo para tapá-los de novo,
meu filho!
– Muito bem, Wolf, não preciso tirar as botas e contar até 20. Nós não
vamos fazer negócio. – Porta levanta-se e dirige-se para a saída. Aperta o
cinturão da pistola, solta o pino de segurança de sua Mpi e recua. – Felizmente
conheço outras pessoas que sabem o que vale chá Darjeeling e chá verde.
Ofereci a você por consideração a nossas antigas relações, assim não se desfaça
em lágrimas quando eu voltar, dentro de 10 minutos, e lhe disser que vendi o
lote.
– Acalme-se, agora – diz Wolf, sorrindo e tentando mostrar-se agradável. –
De onde você tirou essa ideia maluca de que não quero comprar o chá?
Sentam-se numas almofadas árabes. O chefe da segurança de Wolf serve-
lhes mais café. Aparece uma garrafa de conhaque Napoléon. Charutos surgem
de uma caixa de prata que certa vez pertenceu a um príncipe romeno.
Depois de três horas de duras negociações, o chá muda de mão. Vão buscá-
lo, sorrindo, mas cada um cobrindo o outro com suas Mpis. Eles se conhecem
há muito, muito tempo.
O chá está escondido atrás de alguns grandes fardos de palha em lcolchor.
Wolf experimenta-o ceticamente. Seus peritos em chá, os dois chineses,
examinam-no mais cientificamente e depois de algum tempo declaram que se
trata de Darjeeling com uma mistura de chá verde.
– Onde, diabo, você conseguiu isso? – pergunta Wolf, suspeitoso.
– Da China – responde Porta. – De onde mais poderia ser? É o lugar onde
eles preparam essa espécie de coisa.
– Você nunca esteve na China, Porta!
– Olhe aqui! Jamais perguntei a você onde arranjou a grana para comprar o
chá Darjeeling?
– Há algo de suspeito nisso! – resmunga Wolf, com ar preocupado.
– Chá bom, chá muito bom! – garante Wung. – Eu garanto chá bom. Não
há melhor!
– Acredito – diz Wolf, pensativo. – Mas tenho um instinto mais aguçado
do que 50 judeus. Há algo de errado nisso, que não está certo... Os sinos estão
soando em minha cabeça.
– Esqueça-se então – diz Porta, indiferente. – Eu me livro do chá sem
dificuldade. Então você poderá ver aonde o levaram seus 50 judeus!
Wolf prova de novo na língua o chá e levanta os olhos para o céu como se
esperando um sinal de Deus. O chá é bom; é chá de muito boa qualidade. Ele se
empertiga e olha perversamente para Porta.
– Joseph: se você estiver me embrulhando com esse chá, que Jesus Cristo e
Nossa Senhora de Kazan tenham piedade de você!
Você irá precisar mais do que isso. Necessitará de todos os santos no
maldito calendário para manter-se vivo, filho!
Wolf paga e leva o chá.
Porta dá um passo para embarcar no anfíbio de Wolf, mas os guarda-costas
empurram-no grosseiramente com suas Mpis.
– O negócio está fechado! Não há lugar para você aqui, Porta! Vá a pé
como o resto dos caipiras. Apenas as classes militares superiores andam de
carro.
– Você poderia ter guardado um pouco daquele chá para nós – diz o Velho,
desapontado, quando Porta volta.
– Isto é melhor do que chá! – sorri Porta, mostrando triunfalmente uma
caixa de velhas moedas de ouro. – O chá em breve terá evaporado e este
material amarelo mantém seu valor.
– Que barbaridade! – grita Tiny, espantado. – Há o suficiente aí para
comprar um desses porras todos cheios de passadeiras douradas, com todo seu
estado-maior, de porteira fechada.
– Talvez eu faça isso um desses dias – responde Porta, misteriosamente. –
Esses caras irão valorizar-se muito, quando nossos vizinhos os inimigos
começarem a fazer julgamento de criminosos de guerra.
– Você ajudaria a eles? – pergunta o Velho, com ar de desgosto, acendendo
seu cachimbo de borda de prata.
– Eu ajudo a qualquer um com qualquer coisa, desde que me paguem o
suficiente. A Pátria e uma bandeira drapejante não são minha fraqueza!
– Você venderia sua própria mãe, se tivesse oportunidade – diz Heide, em
tom de desprezo.
– Por que não? – retruca Porta, sorrindo. – Tão logo eles a conhecessem
estariam dispostos a me pagar para aceitá-la de volta. Agora vocês me
desculpem; tenho que me livrar de um par de tratores do Exército.
Wolf tem convidados quando chega Porta. Um oficial da intendência da
Quarta Divisão Panzer do Exército que veio na realidade para comprar sabão
perfumado e garotas. Seus olhos caem num saco de chá e ele se esquece do que
veio fazer.
– O que tem você aí, Wolf? – pergunta, com um olhar cobiçoso.
– Chá – responde Wolf numa voz controlada, com raiva de si mesmo por
não haver escondido a mercadoria. Há limites para o preço que ele pode pedir
ao oficial da intendência.
Porta abre-se num sorriso, quando observa o brilho de cobiça nos olhos do
intendente e começa, sem o menor pensamento de camaradagem, a elogiar a
alta qualidade do chá. Wolf não irá ganhar muito naquele chá e Porta está
francamente feliz com isso.
– Quanto chá há aqui? – pergunta o gordo oficial intendente, sopesando o
saco de chá na mão.
– Um pouco mais de um quilo – resmunga Wolf, desejando que lhe fosse
possível dar um chute nos colhões do intendente.
– Que espécie de preço você estaria pensando em pedir por ele, Wolf? Isto
é para mim!
– Receio não poder vendê-lo, senhor. Não é meu. – Serve conhaque e reza
para que o intendente perca o interesse pelo chá. Começa a descrever os
encantos das senhoritas polonesas e eslavas com quem ele está em contato, –
São verdadeiras macacas em cima de uma cama, senhor. Sabem como rebolar
mais do que se possa imaginar. senhor! – exclama, entusiasmado.
– Voltemos para a questão de quem realmente é o dono do chá – insiste o
intendente, com um olhar maroto por detrás das grossas lentes dos óculos, que
o fazem parecer como um sapo gordo sentado em cima de uma pedra,
aquecendo-se ao sol.
– Desculpe-me, senhor. O chá pertence a um oficial de alta patente. – Wolf
bate no próprio ombro e corre com o dedo por sobre o lado esquerdo do peito
várias vezes, para demonstrar, pelo número de medalhas, de que alta patente se
trata.
– Já ouvi falar de oficiais mesmo de patente muito alta que tiveram suas
coisas roubadas, apesar de suas camadas de medalhas – considera o intendente,
inchando as gordas bochechas.
Em sua consciência, Wolf tem que concordar com ele.
– Senhor, senhor! De maneira alguma. Sou um homem honesto. Nunca
poderia fazer urna coisa destas. – Por um momento, Wolf parece um santo no
vitral.
Porta tosse discretamente ao fundo do cômodo e coloca mais um pouco de
conhaque no copo. Wolf esquecera-se inteiramente dele. Quando o cabo
novamente vira a garrafa sobre o copo, Wolf arranca-lhe a garrafa das mãos e
enche o próprio copo e o do intendente que parece um sapo. Rápido corno um
relâmpago, Porta troca seu copo vazio pelo copo cheio de Wolf.
Wolf lança-lhe um olhar assassino. Uma longa discussão, sobre a questão
do chá, desenvolve-se entre Wolf e o sapo-intendente. Este explica, em voz
agradável, o processo pelo qual poderia, se desejasse, requisitar o chá. Ele é,
naturalmente, o chefe da intendência da Quarta Divisão Panzer do Exército.
Wolf replica com uma bela ameaça oblíqua, que o intendente deixa passar
de lado sem aparentemente nenhuma reação visível. Ele já tem um número por
demais grande de compromissos com Wolf para permitir sentir-se insultado.
Wolf sabe que está segurando o lado certo da corda; se perder para o
intendente, a Quarta Divisão Panzer vai-se junto com ele e a maré montante
levará mais do que uns poucos outros com ele. Ate na Rua Almirante Sehröder
isto seria notado.
Depois de um longo tempo, o oficial intendente parte com seu saco de chá.
Ele se sente nas nuvens, em parte devido ao conhaque, em parte por ter obtido o
chá. Esqueceu-se por completo das tão elogiadas senhoritas. Adora chá e já
calculou que dispõe do suficiente para durar-lhe o resto da guerra, mesmo que
esta se transforme numa guerra de posição, com trincheiras e as formas mais
suaves de gases venenosos.
Wolf tornou-se o feliz proprietário de um enorme urso pardo, que sabe
beber cerveja e atirar granadas de mão.
– Para que você quer esse horrível monstro? – pergunta Porta, divertido,
parado ao lado de Wolf observando o urso, que acabou de chegar como
passageiro de uma grande Mercedes. O motorista, um Oberscharfürer SS, faz
continência quando apeia do veículo. O urso tem um boné verde de oficial da
NKVD na cabeça e dão-lhe imediatamente um engradado de cerveja. Wolf sabe
como receber bem um oficial russo de alta patente.
Porta ri até quase ter cãibras no estômago e em breve torna-se amigo do
urso. Beijam-se no estilo russo. Wolf olha pensativo do urso para Porta. i
– Eu o venderei a você – decide ele. – Ele lhe será enormemente útil no
front. Ensine-o a comer os vermelhos e, quando você estiver num serviço de
limpeza, ele poderá farejar os esconderijos deles para você.
– Até que esta não é uma má ideia – decide Porta, olhando para o urso com
grande interesse. – Ouvi dizer que esses ursos são mais fáceis de ensinar do que
cães ou cavalos. Eu poderia ensiná-lo a fazer a saudação russa com o punho
fechado. Os rapazes de galões dourados iriam adorar, mesmo sem poder punir
um urso russo por ser leal a Moscou. Por quanto sua consciência permitiria a
você separar-se dele?
– Não sei – diz Wolf, vagarosamente. – Ursos estão um pouco fora de
minha linha. Eu o recebi de um circo russo que faliu.
– Eles são uma praga no mercado – diz Porta, com ar de entendido. – A
Sibéria está pululando deles.
– Embora nós não estejamos na Sibéria, Porta – lembra-lhe Wolf.
– Mais cedo ou mais tarde você vai parar lá – adverte Porta,
agourentamente.
– Sim, do jeito que o sol parece deitar-se sobre o Reich alemão, com a forte
possibilidade de um novo movimento dos povos alemães para o norte, você
pode estar certo – diz Wolf, apontando para o urso. – E possível que haja
muitos como ele na Sibéria, mas nem todos eles aprenderam a beber cerveja e a
atirar granadas de mão.
– Você está errado, homem, inteiramente errado! Ainda não ouviu dizer –
continua Porta – que os bares siberianos estão cheios deles até altas horas da
noite?
Eles passam a discutir os Caterpillars, e, quando finalmente chegam a um
acordo e Wolf os vê e descobre que são tão novos que a graxa protetora ainda
nem foi removida, ele exclama, estupefato:
– Que diabo, Porta! Os ianques consignaram estes diretamente para você?
– Não está muito longe da verdade – proseia-se Porta, fazendo um largo
gesto com as mãos. – Eles vieram por via férrea diretamente da terra do próprio
Deus via círculo ártico. Há até uma Bíblia instalada logo atrás dos
carburadores!
– Por Jesus Cristo, homem! – exclama, admirado Wolf. – Continue desta
maneira e você em breve estará se queimando ao sol na companhia dos grandes
gregos em Mônaco!
Voltam para a casa de Wolf a fim de tornar um drinque à saúde da
barganha. O urso enrola-se numa bola em um canto e olha com desprezo para
os cães-lobos. Estes se mantêm a uma distância respeitosa.
– Para provar-lhe que sou seu amigo de verdade – começa Wolf, em tom
solene – vou dar-lhe o urso de presente!
– Isto quer dizer ser amigo? – pergunta Porta, desconfiado.
– Você deseja livrar-se dele, Wolf! Esse urso é invendável e esses garotões
pardos comem mais do que um esfomeado alemão que atravessou as três
últimas guerras. Para ser perfeitamente honesto com você, não estou ligando
muito para seu presente. Certamente vai trazer-me mais problemas do que
prazer. Antes que saiba o que está acontecendo, você se estrepa com um
monstro como este. Lembre-se daquela porquinha que tínhamos. Aquela que
não tivemos a coragem de matar. Se os vizinhos não houvessem capturado
Sophie, nós ainda a teríamos, e aquele garotão pardo ali parece ter muito mais
charme do que Sophie, jamais teve! O Exército não é bom lugar para animais
de estimação. Repare no olhar dele! O que ele precisa é de um bom lar, para ter
a certeza de uma velhice feliz. Por falar nisso, qual é o nome dele?
– Já perguntei, mas ele não diz! Quer vê-lo beber cerveja?
Sem esperar por resposta, Wolf coloca quatro garrafas de Schlosspilz sobre
a mesa e faz um sinal ao urso.
– Você não vai primeiro abrir as garrafas? – pergunta Porta, admirado.
– Não, não, não! O urso faz isso ele mesmo!
O animal movimenta-se até a mesa e com seus dentes morde e tira a
tampinha de uma garrafa; a seguir esvazia seu conteúdo com a velocidade de
um estivador morto de sede, atira a garrafa vazia em cima dos cães-lobos e
pega a seguinte.
– Nossa Senhora de Kazan! – exclama Porta, espantado. – Que eu me
dane! Será que você acha que ele poderia ser ensinado a atirar com um
Kalashnikov?
– Por certo, por certo! – assegura Wolf. – Você pode ensinar a esse urso
tudo o que quiser! Um animal muito inteligente. Ele estava com uma unidade
especial em Moscou antes de vir para o circo.
O urso dirige-se para Porta, põe-lhe a enorme pata no ombro e pespega-lhe
um grande e úmido beijo bem no meio da cara.
– Ele gosta de mim! – diz Porta, entusiasmado. – Não há muitos que
gostem de mim, você sabe?
Porta e Wolf são servidos de café. Eles concordam em pegar os tratores no
meio da noite. De preferência, entre duas e quatro da madrugada; esta é a hora
da noite em que os guardas estão com mais sono.
O grande gatarrão branco de Wolf vem andando arrogantemente do outro
depósito ao lado.
Porta chama-o. Ele adora gatos. Nunca se conformou com a perda de
Stalin*. O gato de Wolf ignora-o por completo. Balança zangado a cauda.
quando Porta o chama de novo e lhe oferece um pedaço de patê.
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Legion of the Damned. do autor.
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– E um gato francês – esnoba Wolf, em nome do gato. – De Paris!
– Isto é óbvio. Tem um forte senso de patriotismo.
– Você está absolutamente certo – diz Wolf. – Meus prisioneiros franceses
são as únicas pessoas que ele deixa tocá-lo e dar-lhe comida.
– Ele não deixa você tocar nele? – pergunta Porta.
– Non, monsieur! Não pense que ele jamais se conformou de nós lhes
havermos roubado a Alsáeia-Lorena em 1870.
– Aquilo foi uma coisa tipicamente alemã para fazer a bons vizinhos –
admite Porta, solenemente. Observa com admiração o gato, quando este passa
pelos cães-lobos com o rabo em pé e um ar do mais profundo desprezo por
todos os cães em geral e esses dois em particular.
Quando o Capitão Von Pader ouve falar no urso, vai direto ao quartel-
general do comando do regimento.
– Porta e um urso, hem? – O coronel Hinka ri. – Enfrente a questão: nada
há nos regulamentos que o proíba de ter ursos.
– O senhor deseja que ele desfile? – pergunta Von Pader, de crista abatida.
– É sua decisão! Você é seu comandante! – O Coronel Hinka corta a
conversa, desinteressado.
O urso desfila com a companhia; depois de algum tempo, todo o mundo
acostuma-se com ele. A única coisa que o enraivece é a visão de uniformes
cáquis. Estes o transformam de um gigante bem-humorado a uma rosnante
besta selvagem. Os olhos ficam-lhe pequeninos e adquirem um brilho perigoso.
Fazemos urna enorme festa de batizado para ele e damos-lhe o nome de
Rasputin. Há algo no urso que nos recorda o monge russo; especialmente
quando bebe cerveja.
Wolf chega a festa com seu coro particular. Entre canções são feitos
discursos. Heide fica tão embriagado que se deixa converter ao comunismo.
Mais tarde, sente arrepios de consciência e torna-se católico, recebe a
absolvição de Porta. Que certa vez esteve com o Padre Corpoz*
===============
* padre Corpo: personagem de Wheels of Terror, do autor.
===============
O Velho levanta-se com dificuldade. Teimosamente tenta sentar-se numa
cadeira de rodas e finalmente consegue. O resultado É formidável: a cadeira,
tendo atravessado o depósito, Tiny abre polidamente as portas duplas e ela rola
rapidamente pelo estreito caminho a baixo até cair dentro do rio.
Imediatamente, organiza-se uma equipe de salvamento.
– Honrados cantores – balbucia o Velho, quando o trazem de volta para
terra. – Aquele homem ali – soluça e aponta, hesitante, para Gregor. – Aquele
homem... aquele homem ali! Ele canta como se fosse um porco! Exatamente
como um porco! – E olha de novo para Gregor. – E tem três cabeças!
Gregor coloca-sc de pé com grande dificuldade. Os schnapps atingiram o
nível de suas amígdalas. De modo inseguro, apoia-se contra um canhão de 20
mm.
– Devo dizer-lhe, senhor! – dá um soluço e tenta cuspir na direção do
Velho. – Devo dizer-lhe que o senhor é o mais estúpido dos estúpidos que
jamais encontrei. O senhor é um verdadeiro merda!
O Velho cai de cara na mesa, com o rosto mergulhado na decoração de
flores.
– Soldados alemães! Que não podem cantar! Sejam fuzilados ao
amanhecer! Não merecem viver! – resmunga ele, Sua voz sufocada pelas
pétalas da decoração da mesa, que ele começa a comer.
– Cantem, seus filhos da puta! – grita Gregor. Ele conseguiu trepar no
pequeno banquinho atrás do 20 min. – Um, dois, três, cantem! Nada mais dessa
embromação – funga ele. – Se nós não podemos cantar, nada mais resta. O
canto é o, a, o, a... porra da coluna vertebral do Exército! – Enquanto fala, imita
os movimentos de carregar o canhão.
– Fuzi... fuzi... fuzilem-me finalmente! – gagueja Porta, sentado ao lado de
Rasputin e perdidamente embriagado.
– Atiro em quem eu gostar e, quando me aprouver, atiro em quem eu quiser
– tartamudeia Gregor e subitamente vomita em cima do canhão.
– Você vai limpar esse canhão – grita Heide, brabo. – Se você é de fato um
graduado, irá limpá-lo, companheiro!
O canhão dispara, atirando um carregador inteiro de balas de 20 mm pelo
teto. Felizmente, elas são balas de penetração e não explosivas.
– Parem de bobagens agora – adverte Wolf, num tom paternal. Uma das
balas arrancou-lhe o boné. – Nós somos um coro sóbrio ocupado em honrar um
batizado e não um clube de tiro enlouquecido pela guerra em exercícios de
milícia no parque da cidade, em uma manhã de domingo.
– O Sargento Beier vai cantar a próxima canção – diz com voz enrolada
Gregor, caindo do canhão.
– Vou mandar prendê-lo pelos PMs! – grita o Velho. Ele está tentando
engolir a longa haste de um cravo, pensando que come um aspargo.
– Sargento Gregor Martin – grita Heide. – Você é uma desgraça para o
corpo de graduados alemães. Os homens riem-se de você! Sargento Martin, é
uma mancha para o corpo!
– Membros do corpo que não compreendem que os soldados devem
permanecer dominados pelo exercício da estrita disciplina nunca deveriam ser
feitos sargentos – exclama Wolf, solenemente.
Tenta levantar-se da cadeira, mas não consegue de modo algum. Em vez
disso, cai para baixo da mesa onde o Legionário já chegou antes dele e está
sentado dando ordens a um esquadrão de camelos. Pensa que está em algum
lugar no Saara.
– Mille díables, você pode sentir o cheiro das tamareiras, mon ami? Elas
estão em flor nesta época do ano. Allah el Akbar, de joelhos para a oração! –
grita, batendo piamente com a cabeça no chão.
Wolf consegue puxar-se de novo para cima da cadeira, cai sobre o pescoço
de Heide e revela para o mundo quão feliz está por haver encontrado de novo
sua irmã mais velha. cujo marido a havia deixado.
– Nós vamos arrebentar esses fodidos soldados! – berra Heide.
– Ele quer se referir a nós – diz Porta, insultado. Põe o braço
amigavelmente em volta dos ombros de Tiny. – Ele não compreende a
verdadeira classificação militar de postos, aquele monte de merda marrom!
O urso levanta a cabeça e rosna ameaçadoramente ao ouvir a palavra
“marrom”.
– Sargento Julius Heide – diz Porta, condescendentemente. – Você tem
merda na cabeça, onde deveriam ficar os miolos. Eu quase que disse que você
era um estúpido como um alemão, mas raramente cuspo para cima.
– Ele é um estúpido bocal – diz Tiny enrolando a língua.
Seus olhos ficam vidrados e ele cai em cima dos cachorros que o mordem
na perna. Felizmente, está por demais bêbado para senti-lo.
– Julius – diz ele, soluçando – você não sabe que nós, cabos, de alguma
forma nos igualamos aos oficiais de estado-maior. Você nem sempre encontra
um suboficial ou um sargento com o estado-maior, nem mesmo um tenente. O
que você encontra é uma dúzia de nós, cabos, agitando-se e mantendo a porra
do moral do lugar alto!
– Tiny sabe do que está falando – elogia Porta. – Nós levamos com
dignidade e orgulho as duas divisas que só são concedidas aos soldados com
matéria cinzenta dentro dos crânios. Escutem, seus merdas de sargentos –
continua ele, numa voz que se sobressai no infernal barulho. – Em alguns leitos
os cabos superam os malditos generais!
– E vocês todos não se esqueçam de que o Comandante Supremo alemão
não é nada mais do que um cabo! – diz Tiny, friamente. – E ele nunca
conseguiu a porra da outra divisa!
– É como eu digo – continua Porta. – É preciso ter muitas células cinzentas
para chegar a ser cabo.
– Que ele se cuide – adverte Tiny, dando um bruto arroto.
– Brüder, ur Freiheit, zur Sonne... – começa Porta a cantar, numa voz
estridente.
– Alta traição! – berra Heide, zangado. – Eu deveria mandar prendê-lo. Die
Strasse frei. SA marchiert... – grita ele, tentando abafar o hino comunista que
Porta ensaia.
– Prenda-os – diz com ar atoleimado Wolf, procurando no chão por seu
cinto e cartucheira.
Seu cão-lobo, Satã, os trás para ele na boca.
Wolf cumprimenta o cão e lhe agradece. Com dificuldade, saca a arma do
coldre. Levanta a pistola na frente dele com ambas as mãos e tenta fazer
pontaria em Heide. O cano vira para lá e para cá, apontando ora para um ora
para outro.
– Sargento Julius Heide, seu cachaceiro, você está preso. Se tentar escapar,
eu atire. – E cai sobre a mesa ao mesmo tempo que a pistola dispara. A bala
assobia ao lado do rosto de Heide e vai cravar-se na parede atrás dele.
Heide, aterrorizado, olha em volta de si.
– Guerrilheiros – sussurra ele, rígido e tremendo de medo.
– Nix partisanski – diz Porta rindo, e depois canta:
Himmler olha friamente para “Gestapo Müller”, quando ele lhe comunica
que o SS-Obergruppenführer Heydrich foi seriamente ferido numa tentativa de
assassinato em Praga e que deu entrada no Hospital Bülow.
– Ele está vivo? – sussurra em voz rouca Himmler, cerrando os punhos até
que suas juntas ficam azul-escuro. – Voarei para Praga imediatamente! Faça
os devidos arranjos! Mande-me Kaltenbrunner!
– Muito bem, Herr Reichsführer!
Os teletipos esquentam; os serviços telefônicos ficam bloqueados de
chamadas. Em Praga, proclama-se um estado de emergência.
Centenas de prisões são feitas. E como se um ninho de marimbondos
tivesse sido mexido com uma vara.
No RSHAJ na Prinz Albrechtstrasse*, quando chegam as notícias tudo vira
um inferno. Com as sirenes guinchando e as luzes piscando, a limusine preta
de Himmler cruza Berlim a toda velocidade, dirigindo-se para o Aeroporto de
Tempelhofer.
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* RSHA (Reichssicherheitshauptamt): Quartel-General dos Serviços de
Segurança do Estado.
===============
Preciso chegar em Praga em primeiro lugar, pensa ele, batendo
impacientemente com as luvas em suas altas botas pretas de montaria.
Em pouco tempo, ele desembarca em Praga e sobe aos pulos os degraus
do Hospital Bülow. Seu rosto está pálido como um lençol e seus olhos,
arregalados.
Dois médicos e uma enfermeira tentam impedi -lo de entrar na sala de
cirurgia, mas ele os afasta brutalmente e, com um chute, abre a porta.
– Saiam – sibila para os médicos que estão para começar a operação.
De boca aberta, eles encaram o homenzinho de uniforme cinza-rato.
– Saiam! – repete ele.
– Mas Herr Reichsführer – gagueja o cirurgião-chefe – O general está sob
anestesia.
– Acordem-no. Preciso falar com ele imediatamente.
– Impossível –– responde o cirurgião-chefe, sacudindo a cabeça. – Levará
três a quatro horas antes que o Reichsführer possa falar com o general.
– Ele deverá estar consciente dentro de no máximo três horas, de forma
que eu possa falar com ele. Se não o estiver, o senhor será executado por
sabotagem – grita Hímmler, numa voz estridente e sai bruscamente da saia de
cirurgia.
O SS-Obergruppenführer Frank vem apressadamente pelo corredor e
apresenta-se a Himmler.
– Frank, assuma imediatamente a posição de Heydrich como
Reichsprotektor da Boêmia e Morávia. Cerque o hospital com soldados SD e,
tome bem nota disso, Frank, ninguém, absolutamente ninguém, nem Deus nem
o próprio diabo, deve entrar ou sair deste hospital sem minha permissão
pessoal, Frank. Sua cabeça responderá por isso!
Alguns minutos depois, o hospital é isolado do mundo exterior.
O SS-Gruppenführer Ernst Kaltcnbruner apresenta-se a Himmler, que
passeia raivoso para cima e para baixo no corredor junto à sala de operações.
– O General-Professor Sauerbruch está a caminho para assumir a direção
do caso – diz, em voz baixa, Kaltenbrunner.
– Por ordem de quem? – pergunta, zangado, Hímmler.
– Do Führer/
– Que inferno! Ele está voando de Berlim?
– Sim, Reichsführer! Já aterrissou em Praga.
Hímmler aperta as mãos com tanta força que as juntas estalam.
– Você sabia que o Führer tinha assinado a nomeação de Heydrich para
Ministro do Interior e chefe supremo de todas as unidades de polícia?
– O quê... – exclama, espantado, Kaltenbrunner.
Himmler confirma com a cabeça, sombriamente.
– E isto não é tudo. Ouvi outras coisas. Volte diretamente para Berlim e
assuma o comando no RSHA. Coloque guardas de segurança em todos os
escritórios de Heydrich. Isole os assistentes pessoais de Heydrich, mas
cautelosamente. Estamos lidando com serpentes venenosas!
– Confie em mim, Reichsführer – diz Kaltenbrunner. – Sei
como lidar com elas.
– Espero que saiba, para seu próprio bem – diz, friamente, Himmler em
resposta.
Duas horas mais tarde, Hímmler inclina-se sobre o leito de Heydrich e fixa
os olhos no rosto pálido, que mais parece uma caveira.
– Heydrich, você pode me ver?
– Muito bem, Herr Reichsführer.
– Onde está sua “caixa de explosivos”? Seus documentos secretos?
Heydrich descobre os dentes ao sorrir; seus olhos rasgados fixam-se
friamente nos de Hímmler.
– Os papéis, seu danado! – rosna Hímmler, impacientemente.
Heydrich fecha os olhos sem responder. Hímmler sacode-o.
– Heydrich, os papéis? Heydrich, escute! Você hoje é o Ministro do
Interior. Você e’ o Chefe Supremo da Polícia alemã. Os papéis?
Depois de algum tempo, Hímmler compreende que Heydrich caiu de volta
na inconsciência. Senta-se como se fora uma estátua de pedra ao lado do leito
e seus olhos não se afastam do rosto comprido e bem marcado com os tortos
olhos mongóis.
Naquela noite, o Professor Sauerbruchy operou Heydrich:
Hímmler não se move do lado do paciente. Cada palavra que ele balbucia
em sua febre é anotada por uma estenografa. Na madrugada do dia 4 de julho,
Heydrich morre sem haver recobrado a consciência.
Hímmler voa de volta a Berlim e comanda pessoalmente a busca pelos
arquivos secretos de Heydrich. Eles jamais são encontrados.
Por ordem de Hitler, é feito um exame post-mortem do cadáver de
Heydrich. O relatório do patologista afirma que a causa da morte foi infecção
dos órgãos principais e do tecido glandular na região do baço. Grãos de
explosivo tinham penetrado no peito. Ê possível que a morte tenha sido
causada por substâncias tóxicas.
A ELEVAÇÃO DEMON
GEHEIME STAATSPOLIZEI*
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* Geheime Staatspolizei: Polícia Secreta do Estado.
** Geheim: Confidencial.
*** Sofort: Urgente.
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para: Reichssicherheitshauptamt,
Berlin SW 11
Prinz-Albert-Strasse 8.
Na área de batalha de Zhitormir, o Primeiro-Tenente Albert Wunderlich e
o Sargento Kurt Weith desertaram do Sexto Regimento de Fuzileiros Montados.
Existem provas de que eles se passaram voluntariamente para o 480 Corpo de
Exército russo. De acordo com as parágrafos 99 e 91 b do StGB*, todos os
parentes próximos devem ser presos e interrogados atentamente a fim de
descobrir se qualquer deles tinha conhecimento prévio desse ato traiçoeiro. Na
eventualidade que qualquer um deles tenha tido tal conhecimento, essa pessoa
deverá ser entregue à Corte Criminal e punida de acordo com os parágrafos
98c e 91a, do StGB.
===============
* StGB (Strafgesetzbuch): Código Penal.
===============
Os parentes que não puderem ser inculpados, devem ser aprisionados
como reféns num dos principais campos de concentração como um aviso para
os demais.
Obergrupprfnfiihrer Dr. Müller
Der Chef der Sicherheitspolizei und des SD*
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* Chefe da Polícia e dos Serviços de Segurança.
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Sojka ri, prazerosamente. Seu dedo aciona alegremente o disco do
telefone.
– Preciso de todos os papéis pessoais referentes ao Primeiro-Tenentc
Albert Wunderlich e ao Sargento Kurt Weith, do Sexto Regimento de Fuzileiros
Montados, Quartel em Krefeld. Todos os parentes em primeiro grau devem ser
presos e escoltados até aqui.
Devem ser presos de acordo com o parágrafo 91a. Tratem do assunto com
diligência, senhores, repito, com diligência! – E Sojka bate o fone.
Cinco horas mais tarde, 12 pessoas inocentes estão a caminho de Berlim.
Nenhuma delas tem qualquer conhecimento do fato de que um parente próximo
desertou.
É tarde da noite quando as pesadas portas da Casa de Detenção de
Moabitt fecham-se com estrondo atrás delas. Nenhuma sabe que inferno na
terra as aguarda.
O COMISSÁRIO
Uma patrulha russa de sequestradores pegou três dos nossos numa noite. O
Primeiro-Tenente Strick, oficial de transmissão, foi um deles.
Numa manhã bem cedo, os russos levantaram uma bandeira branca. Um
sargento conduz um homem em uniforme de campanha cinza até a terra de
ninguém e lá o deixa. É um oficial alemão.
Uma patrulha o traz para nossas linhas: é o Primeiro-Tenente Strick e ele
foi tratado horrivelmente. Onde deveriam ser seus olhos há duas feridas
inchadas e purulentas.
Strick tenta falar, mas só consegue articular ruídos estranhos e agoniados.
Sua boca é um buraco de sangue coagulado de onde a língua foi arrancada.
– Mon Dieu, mon Dieu! – murmura o Legionário, e abandona o abrigo.
– Você compreende o que estou dizendo? – pergunta o Coronel Hinka,
colocando a mão no ombro de Strick. – Preciso fazer-lhe algumas perguntas.
Sacuda a cabeça ou incline-a em resposta. Os outros dois homens estão vivos?
Strick sacode a cabeça, negativamente.
– Eles também foram torturados? – A mão de Hinka fica branca segurando
a pistola no coldre– Seu rosto parece de granito.
Strick acena que sim com a cabeça.
– Foi um russo que o torturou?
Strick sacode a cabeça, negando.
– Foi um comissário?
Strick concorda, demonstrando cansaço; tonteia e teria caído do banquinho
se o ajudante não o amparasse.
O oficial-médico dá-lhe uma injeção e um pouco mais tarde o Coronel
Hinka pode continuar a interrogá-lo.
– O comissário falava alemão?
Strick acena que sim.
– Teve a impressão de que ele em alemão?
Strick confirma, com um aceno de cabeça.
– Ouviu falar seu nome? – Hinka para abruptamente pois compreende que
fez uma pergunta que não pode ser respondida. O Tenente Strick não pode
escrever; os ossos de ambas as mãos foram esmagados.
O Dr. Repp interrompe o interrogatório e determina que o tenente seja
evacuado para tratamento de emergência. Pouco depois de ser admitido no
hospital, ele se suicida. Urna enfermeira esquecera uma faca em sua mesa de
cabeceira; ele abre as artérias e o leito está encharcado de sangue, antes que um
médico possa chegar para estancá-lo.
– Nós vamos pegar aquele porco daquele comissário, mesmo que ele esteja
se escondendo no próprio Kremlin – diz o Coronel Hinka, com a voz dura. –
Precisamos de prisioneiros agora, para saber quem ele é.
Apenas duas horas mais tarde, uma patrulha de combate traz um idoso
capitão russo.
O oficial de informações da divisão, que fala russo fluentemente, vem para
interrogar pessoalmente o capitão. A princípio, o russo fica teimosamente
calado, mas quando vê os rostos ameaçadores que o rodeiam, e quando o oficial
de informações ameaça entrega-lo aos soldados, ele se torna um pouco mais
cooperador.
– Foi o Vojenkom* da 89ª Divisão o responsável pelas torturas – explica o
capitão, com nervosos gestos.
===============
Vojenkom (em russo): Comissário da Divisão.
===============
– Qual é seu nome? – pergunta o oficial de informações. – Nós acreditamos
que ele seja alemão.
– Ele é um antigo oficial alemão que veio para a Rússia com uma missão
militar – diz o capitão. – E nos foi mandado há muito pouco tempo para
arrochar a disciplina. Começou executando dois comandantes de regimento e
submetendo muitos oficiais e pessoal graduado à corte marcial.
– Qual é o nome dele? – pergunta o oficial que faz o interrogatório.
– Era Josef Geis, mas não usa mais este nome – informa o capitão, com um
sorriso. – Agora ele é Vojenkom Josef Oltyn. Ele estabeleceu uma ordem
permanente que todos os oficiais capturados por nossa divisão devem ser
imediatamente fuzilados, logo após haverem sido interrogados.
– Onde ele está agora?
– Escondido em segurança – responde o oficial, com um encolher de
ombros. – Lá para trás no Beresina, em Olszany, num castelo, junto com seu
pessoal.
– Obrigado isto é tudo – diz o interrogador, fechando a pasta.
– Os senhores estão pensando em ir atrás dele? – pergunta o capitão
admirado, esvaziando o copo de vodca que o oficial de informações moveu em
direção a ele.
– Não estamos pensando! Vamos fazê-lo!
– Esqueçam-se disso – diz o capitão, com um risinho curto. – O bom
comissário está muito bem protegido. Depois de alguns quilômetros, seu
comando irá esbarrar com unidades de segurança, e se por acaso. o que não é de
esperar, conseguir passar por esses camaradas, o comando nunca mais voltará.
Vocês terão uma distância de cerca de 130 quilômetros a cobrir e, se não
seguirem as estradas, terão que atravessar terríveis trechos de charcos e
florestas impenetráveis, que somente podem ser cruzados com equipamentos
especiais.
– Você poderá ajudar-nos? – pergunta o oficial de informações. – Não irá
se arrepender, se o fizer. – Oferece ao capitão um charuto e o acende para ele. –
Tão logo nosso comando tenha pegado Herr Oltyn, você poderá regressar para
sua unidade.
– Que garantia tenho disso? – pergunta o capitão, na dúvida.
– Minha palavra de oficial!
O capitão parece estar considerando a oferta em sua cabeça, enquanto
continua a fumar o charuto em silêncio. A seguir, apaga-o. O ordenança do
regimento traz café; o interrogador faz-lhe um sinal e ele traz conhaque.
– Eu os ajudarei a pegar aquele patife! – diz o capitão. – Um dos oficiais
que ele executou era meu amigo do peito.
Ele marca a rota num mapa e previne contra os perigos do Pantanal
Jasiolda.
– Vocês precisam circundá-lo mesmo que isto signifique um desvio de 60
quilômetros. Devem ir por Grolow e depois na direção de Ufda; e é
absolutamente necessário dispor de um bote de borracha para o comando.
Doutra forma, nunca serão capazes de atravessar o Sna; isto sem falar do
Slutsch, onde terão que esconder o bote. Felizmente um bote de borracha é fácil
de esconder – acrescenta, fazendo um gesto com a mão.
– E quanto aos outros rios? – pergunta o oficial de informações. – Eles são
bastante fundos e a correnteza é rápida.
O capitão debruça-se sobre o mapa de novo e marca diversas posições.
– Aqui ficam as passagens a vau; são guardadas mas não muito fortemente.
Quase sempre, apenas uma sentinela. Seu comando deve usar uniformes russos
e carregar armas e equipamento russos. Recomendaria que não enviasse um
comando maior do que uma seção. A estrada de volta será a pior. Tão logo o
Vojenkom seja aprisionado, toda a área será colocada em condição de alerta.
Nós estamos na trincheira prontos a rastejar para a terra de ninguém. O
capitão russo está inspecionando nosso equipamento junto com o oficial de
informações. Aponta para o grande cantil francês que Porta tem na cintura.
– Livre-se disso! É uma loucura!
– Vou morrer de sede – protesta Porta, zangado. – Esses pequenos cantis
russos não levam água suficiente para manter vivo um pardal!
A despeito dos protestos, o cantil francês é substituído por um cantil russo
regulamentar.
Nossa artilharia martela as linhas russas, para mantê-los ocupados. Como
um relâmpago, pulamos nas trincheiras inimigas e liquidamos com as raras
sentinelas em pouco tempo, pois as mesmas estavam se abrigando de encontro
ã parede mais próxima da trincheira.
Porta tem dificuldade em conter Rasputin. O urso pode farejar russos e
Machorka (cigarro russo), e não pode entender por que não os estamos matando
como usualmente.
O fogo de artilharia segue nosso avanço; cai à nossa frente, abrindo um
caminho limpo que podemos seguir.
Os primeiros 25 quilômetros são percorridos com uma velocidade enorme.
O bote de borracha inflável é pesado e desajeitado para carregar e
continuamente temos que trocar os carregadores.
O Velho dá-nos apenas pequenos descansos; deveremos cruzar o Sna antes
do amanhecer.
Meus pulmões arquejam e ansiam. Sinto a punhalada de minha velha
ferida. O único de nós que parece não ser afetado pela velocidade com que
progredimos é o urso. Ele tem tempo para brincadeiras, para trepar em árvores,
e para cair delas, enrolar-se no chão como uma bola e morder o próprio rabo.
Cruzamos o Sna rapidamente e entramos na floresta a leste de Lutszczak.
Subitamente, Rasputin fica de pé farejando o ar. Rosna e move-se para a frente,
cautelosamente.
– Ateus por perto! E próximo! – alerta Porta, num sussurro.
Cautelosamente, seguimos o urso, mas ainda sem ver ou ouvir um sinal do
inimigo.
Com um rosnado, Rasputin desaparece no mato como se tivesse o diabo
em seu encalço.
Algo escuro pode ser visto entre os pinheiros.
– Um lobo ou um cão – diz Porta.
– Maldita tolice! – zanga-se o Velho. – Não temos tempo para desperdiçar,
enquanto aquele porra daquele urso sai por aí atrás de cachorros! Você não vai
jamais crescer e deixar de criar animais de estimação, seu criançola? Gatos,
cachorros, porcos e agora um urso! Qual será o próximo? Uma porcaria de um
elefante, não me admiraria!
– Antigamente costumava-se ir para a guerra montado em elefantes, de
forma que você não devia queixar-se muito deles – fala Porta, rindo. – Aqueles
que tinham os maiores e em maior quantidade eram os que venciam!
– O que faziam eles com a porra dos bichos? – pergunta Tiny, intrigado. –
Comiam-nos?
– Eles eram uma espécie de tanques – explica Heide, lançando-se numa
longa e confusa descrição sobre o uso de elefantes na guerra.
– Deveria ser algo formidável ouvir um bando de elefantes aproximar-se
galopando – considera Tiny. – Onde você aprendeu isso tudo, de qualquer
maneira?
– Lendo – responde Heide. importante.
– No Völkischer Beobachter * suponho – diz Tiny, contendo o riso. – Se
foi ali pode esquecer-se; não se pode acreditar numa maldita palavra do que ele
diz.
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* Völkischer Beobachter: jornal nazista.
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Ouve-se um barulho de gritos e rosnados por entre as árvores, com galhos
sendo quebrados.
– Que diabo é isto? – diz o Velho, assustado.
Rasputin matou um sargento russo de sinaleiros; ele está transformado
numa posta de carne e sangue, quando lá chegamos pelo mato adentro.
– A questão agora é – raciocina, pensativo, o Velho – se este sinaleiro
encontrou nosso urso por acidente ou se ele nos vinha mantendo sob
observação há tempo e comunicando nossa posição.
– Impossível – responde Porta. – Se ele tivesse estado próximo a nos,
Rasputin nos teria alertado. O cheiro de um ateu a quilômetros dele vira-lhe o
estômago.
– Bem, em breve o saberemos, garanto-lhes – assegura o Velho,
pessimista, acendendo seu cachimbo enfeitado de prata.
Chegamos ao Slutsch bem ã tardinha, mas temos que esperar até meia-
noite para cruzá-lo. Escondemos o bote de borracha no lado oposto e vamos
procurar abrigo no mato que aqui é muito denso. Enrolamos-nos em nossos
sacos de dormir e rapidamente estamos inconscientes.
Logo após o amanhecer, continuamos a progredir em fila indiana. Fazemos
um amplo círculo em torno de Nowojeinia e saímos numa ampla planície onde
o capim é alto como um homem. Uma companhia de infantaria russa passa por
nós à pequena distância; acenam para nós e nós respondemos alegremente. Um
oficial a cavalo examina-nos com seu binóculo.
Rasputin solta um grunhido de advertência.
– Por amor de Deus, mantenha bem preso esse maldito urso! – diz o Velho,
nervoso.
Entramos novamente na floresta. Quando estamos justamente
ultrapassando o topo de um morro, o urso atira-se de barriga no chão, seus
incisivos à mostra, brancos e brilhantes.
– Que, diabo, está acontecendo com esse grandalhão? – sussurra Gregor,
alarmado.
Puxo uma granada de minha bota e a armo.
– Cuidado com essa porra dessa granada – avisa Barcelona.
Rasputin rasteja vagarosamente para a frente com Porta em seu encalço,
mas subitamente recusa-se a continuar. Rosnando baixo, o animal fixa os olhos
numa grande árvore cujo topo é coberto de folhas.
– São os malditos vizinhos – diz, baixo, Porta.
Três russos estão postados em cima da árvore com uma metralhadora
pesada; uma posição de primeira classe foi ali construída e está muito bem
camuflada. Graças ao urso, vimo-la primeiro.
– Derrube-os dali – sussurra o Velho para Porta – mas sem fazer barulho.
Porta se levanta e caminha lépido para a frente pela estreita trilha. Tiny
segura o urso que protesta, rosnando, contra o afastamento de Porta.
Ei, tovaritsch – grita Porta, empurrando seu boné verde para trás da cabeça,
à modo do pessoal subalterno da NKVD.
– Quem é você? – grita uma voz da árvore. – Dê-me a senha!
– Job tvojemad! – responde, gritando, Porta, ao mesmo tempo que aponta
alegremente para ele seu Kalashnikov. – Enfie no rabo sua senha, seu macaco
amarelo. Sabe o que e isso?
Bate com a mão no gorro verde empurrado para trás da cabeça.
Um largo rosto mongol aparece no meio da espessa folhagem.
– No seu rabo, seu camponês moscovita – grita o mongol.
– Vá para casa e aprenda a falar russo direito de forma que os russos
legítimos possam entender o que você diz!
– Desça aqui, seu pica-pau! – grita Porta, sua voz ecoando na floresta. –
Puxarei seu fígado e farei com que ele saia por suas amígdalas!
– O que você quer? – pergunta um sargento, cujo rosto aparece ao lado do
mongol.
– Desçam! Tenho uma importante mensagem para vocês – responde Porta,
com ar de autoridade.
– Não pode transmiti-la daí? – responde o sargento, arrogantemente.
– Idísodar – berra Porta, ríspido, no tom que as pessoas usam quando
sentem que têm uma autoridade por detrás de si. – Dawai, dawail O Sampolit
deseja dizer-lhe alguma coisa.
– Sobre o que ele quer falar comigo?
– Como vou saber, djadja*. Tudo o que ele me disse foi: Cabo Joseph,
mexa seu rabo daqui e vá dizer àqueles três duraks** em cima da árvores que
desejo vê-los. Acho que vocês vão receber um tratamento especial. – Porta ri,
barulhentamente. – Vocês já começaram a acreditar em Deus?
===============
* Djadja (em russo): tio.
** Durak (em russo): idiota.
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– Você está sozinho? – pergunta uma voz desconfiada da árvore.
– Djadja, djadja! Será que você machucou a cabeça, trepando nessa árvore?
Vocês podem ver alguém além de mim? Não posso mais continuar a conversar
com vocês seus idiotas. Vou voltar para o Sampolit e dizer-lhe que vocês se
recusam a obedecer suas ordens. Dassvadanja*, seus pequenos duraks!
===============
* Dassvadanja (em russo): Até logo.
===============
– Vá com calma, camarada – grita o sargento, nervosamente, começando a
descer da árvore. seguido de perto pelos outros dois.
Os pés do sargento ainda nem tocaram o chão, quando o urso o pega e mata
com uma mordida. Aterrorizado, o mongol perde o apoio e cai da árvore. O
terceiro soldado consegue puxar sua pistola Tokarew, mas o Legionário é mais
rápido do que ele com dois certeiros tiros de sua Mpi.
O mongol quebrou a espinha e o sangue escorre pelos dois cantos de sua
boca; ele não mais pertencerá a este mundo por muito tempo.
– Nós vamos visitar um Herr Oltyn – explica Porta, com largos gestos dos
braços. – Temos um convite para ele. Você poderia indicar-nos o caminho mais
curto?
O mongol cospe sangue:
– Você quer dizer o Vvjenkom? – pergunta ele, em voz fraca.
– Rapaz esperto! Tirou grau 10! – diz Porta, rindo. – Este é exatamente o
gaspodin que nós estamos procurando!
– Quando vocês entrarem em Olszany, a casa dele é a terceira a partir do
fim da rua larga. Uma casa vermelha com janelas azuis. – O mongol tosse e um
jato de sangue é expelido de sua boca. – Germanski? – pergunta ele, cada vez
mais fraco.
– Você deve ter poderes de vidente – diz Porta. O corpo do mongol agita-
se numa convulsão e ele morre.
– Deve ser uma porra de uma surpresa para um cara ser comido por um
urso no meio de uma guerra – diz Tiny, mexendo nos corpos com o cano de sua
Mpi.
– Uma porção de coisas engraçadas acontecem cm tempo de guerra –
proclama Porta, solenemente. – Lá vem você gozando a vida imensamente e de
repente, puft! Lá vai você para o outro mundo!
– Não me agrada a história daquele comissário naquela casa vermelha – diz
o Velho, com ar pensativo.
– Por que não? – pergunta Porta. – Se um comissário soviético não pode
ser encontrado numa casa vermelha, quem diabo o pode?
– Não e isto o que quero dizer, seu idiota – rosna o Velho, irritado. – O
capitão disse que ele vivia num châreau, e agora ele está sendo rebaixado para
uma casa vermelha. Se você tem um castelo disponível, não é provável que se
mude para uma casa, por mais vermelha que ela seja.
– Você não entende de política! – grita Porta, batendo com seu boné da
NKVD para tirar-lhe a poeira. – Um comissário comunista com o mínimo de
respeito por si mesmo não pode ficar peidando num castelo branco, quando há
uma bela casa vermelha proletária por perto apenas esperando para ser ocupada.
Numa estreita ponte duas sentinelas estão encostadas numa cerca de
madeira meia podre, Divertem-se cuspindo nӇgua por falta de outra coisa para
fazer; estão tão descuidadas que deixaram suas armas encostadas de encontro a
um poste. Não podem sonhar que nada de desagradável possa acontecer ali.
Tudo recende a quietude e paz. As rãs são a única coisa a fazer algum barulho.
– Sacha, resolvi violentar Tanja esta noite – diz um deles. – Amanhã lhe
digo como foi.
– Vai custar-lhe a vida – murmura o outro. Não diz mais nada: sua
garganta foi cortada e seu camarada sofre o mesmo destino. Nenhum dos dois
ouviu Barcelona e o Legionário virem por detrás deles.
– Vem, morte, vem! – cantarola o Legionário com voz fanhosa. fingindo
tristeza. – Isto é o que acontece com soldados de meio expediente que não
sabem que cada minuto da vida de um soldado é perigoso.
– Eles tiveram uma morte rápida e boa – considera Barcelona. – Nem
tiveram tempo de ficar com medo, nem isso!
Cautelosamente, atravessamos Olszany e logo achamos a casa vermelha
onde nos disseram que o Vojenkom vive. Há apenas um homem de guarda; um
cabo de caçadores que está sentado numa pedra num canto da casa, cortando
tiras de um pedaço de porco defumado. Ele se estica com preguiça e boceja
audivelmente; o bocejo é cortado abruptamente pelo garrote de arame do
Legionário.
Porta e Tiny esgueiram-se até uma janela e espiam por um buraco deixado
onde o material de black-out se rompeu. Veem uma sala de teto baixo; um
homem está deitado dormindo num banco de madeira. O comissário. Seu boné
e sua capa colocadas sobre a mesa são inconfundíveis.
– Lá está ele, aquele maldito ex-alemão. deitado e tirando uma soneca com
uniforme de Ivan! – sussurra Tiny, com raiva, cuspindo na janela.
– Nós vamos pegá-lo tão facilmente como o Diabo pega a virgindade de
uma freira em Whitsuntide – diz Porta, resoluto, puxando sua pesada Tokarew
de seu coldre amarelo.
– Não vá foder o negócio agora! – adverte o Velho. – Ele não deve emitir
nenhum som!
– Fique apenas sentado por aqui e continue fazendo seu tricô – acalma
Tiny. – Uma pequena pancadinha entre os olhos com este brinquedo russo e ele
perderá qualquer intenção que tenha de cantar!
– Por amor de Deus, homem, acalme-se! – rosna o Velho. – Joguem um
cobertor em cima da cabeça dele mas não a façam desmaiar ou teremos que
carregá-lo.
– Vamos tratá-lo tão gentilmente quanto uma virgem jovem da qual os
mercadores de escravos estão fazendo um pacote em Hong Kong – diz Porta,
rindo.
– Por que não o matamos logo? – pergunta Tiny. – Por que ter todo este
trabalho com um maldito torturador que está ligado com os ateus. Vão liquidá-
lo de qualquer maneira quando chegarmos com ele em casa. Vamos
simplesmente corta-lo em pedaços e pendurá-los nas malditas paredes. O cacete
dele ficaria bem naquele vaso de flores ali com aqueles pássaros azuis. Eles
nunca terão visto uma flor como aquela antes!
– Vocês comparecerão em frente a uma corte marcial, se alguma coisa
acontecer a ele – ameaça, furioso, o Velho. – Este piquenique foi planejado
para trazer o filho da puta de volta vivo. Uma ordem é uma ordem,
entenderam?
– Não poderíamos pelo menos arranhar um pouco os colhões dele com
nossos pequenos canivetes alemães de Solingen? – pergunta Tiny, desapontado.
– Façam o que eu mandei! – diz o Velho, encerrando a discussão.
– Por que não mandar-lhe um convite por escrito com a suástica e toda essa
porra de pássaros e tudo o mais? – sugere Porta.
– Ele apenas limparia o rabo com isso! – conclui Tiny.
– Peguem-no! – rosna o Velho. – Vocês podem despi-lo e trazê-lo nu se
quiserem, mas nenhum arranhão nele, entenderam?
– Vamos lá – diz Porta – acabemos com os prolegômenos! O começo de
uma festa é sempre em geral o pior!
Na soleira da porta, Tiny volta a cabeça e diz para o Velho:
– Não terá sido nossa culpa se ele morrer de um ataque do coração de pura
felicidade ao ver seus compatriotas!
Gregor está tendo a maior dificuldade para segurar o urso; ele sempre fica
inquieto, quando Porta não está visível.
Sem fazer barulho, eles entram no cômodo de teto baixo.
Uma meia garrafa de vodca atrai a atenção de Tiny; ele a esvazia em dois
goles, sem parar.
– À saúde, tovaritsch – murmura ele, pondo a garrafa de novo no chão
cuidadosamente.
Quando Porta se inclina sobre o homem que está dormindo, este abre os
olhos e um grito meio estrangulado lhe escapa. Seus instintos o alertaram do
perigo. Tiny pula sobre ele e enfia-lhe o gorro verde de comissário na boca. Em
um minuto, estão com o homem amarrado.
– Nada de tolices agora – ameaça Porta – ou lhe cortamos os bagos, e você
sabe quão pouco valem um homem e seus bagos quando separados um do
outro!
– Como vai, tovaritsch – cumprimenta Tiny, fazendo uma continência. –
Você vai fazer uma viagem, camarada, vai para a máfia de Adolf! Há alguém
que está querendo ter uma conversinha com você!
Eles abandonam a cidade em passo acelerado. Tiny dá um jeito de levar um
vidro de tomates em conserva com ele.
Só param quando estão bem dentro da floresta. Tiram então o gorro da
boca do comissário.
– Você ó o Comissário Militar Oltyn? – pergunta o Velho, em alemão.
– Njer, niet, nix panjemajo* – grita o prisioneiro aterrorizado.
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* Njer, niet, nix panjemajo (em russo): Não, não, não entendo.
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– Pare de conversa fiada, filho! – diz Porta, segurando-o pela gola da
túnica do uniforme. – Quando nosso tovaritsch sargento diz que você é Oltyn,
então é muito melhor que você seja Oltyn! Pensa que somos malucos?
– Vire o cu dele pelo avesso por cima das orelhas – sugere Tiny. – Isto, na
certa, o fará pensar melhor!
– Nix Oltyn! – grita o prisioneiro, teimosamente.
– Quem no inferno então é você? – brada o Velho, furioso.
– Politkom* Alexej Viktorowitsch Sinzow. Nix Vojenkom Josef Oltyn!
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*Politkom (em russo): Comissário Político,
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– Confesse, qual era o nome de sua mãe? – brada Porta.
– Anna Georgijewna Poliwanow!
– Que diabo a puta da porra da mãe dele tem que ver conosco? – rosna
Tiny. – Cortem-lhe a barriga e deixemos o urso comer o que ele tem lá dentro.
Rasputin ainda não tomou seu café da manhã.
– Nada disso. Não me digam que vocês pegaram o homem errado! – berra
o Velho, segurando a cabeça com ambas as mãos.
– Dien sûr que si, mon sergent – diz o pequeno Legionário, morrendo de
rir.
– Este maldito aborto soviético poderia pelo menos ter-se apresentado – diz
Tiny, amargo. – Qualquer soldado sabe que é isso o que tem a fazer quando
estranhos vêm inspecioná-lo.
– Escute aqui agora –– diz o Velho, sentando-se resignado ao lado do
aterrorizado prisioneiro. – Então você não é o Vojenkom Oltyn, não?
– Njet, njet – grita o prisioneiro – njet hromoj*!’
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* Hromoj (em russo): o “Diabo Capenga”
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– Levante-se, sua beterraba comunista! – grita Porta. – E Deus tenha
piedade, se você capengar.
O prisioneiro corre para cima e para baixo na estrada, sem ‹› menor traço
de capengar. Mas Porta fá-lo marchar em passo de ganso, dançar com Tango
como se fosse uma mulher e ficar de pé numa perna e fazer uma pirueta.
– Njet hromoj – geme o prisioneiro, no meio dos testes. – Eu pequeno
Politkom! Vojenkom Oltyn, ele grande porco!
– Ele está dizendo a verdade – diz Porta, encolhendo os ombros e abrindo
as mãos de ambos os lado do corpo. – Lamento sinceramente, Velho, mas nós
pegamos o pedaço errado da merda soviética. Isto só serve para provar que as
pessoas estão certas quando dizem que esses russos são uns tapeadores de
primeira linha!
– Vamos quebrar-lhe o joelho de forma que ele seja um mal-
dito capenga de ora em diante – sugere Tiny. – Dessa maneira,
podemos leva-lo de volta e jurar que ele é a verdadeira merda,
apenas mentindo. A maldita Gestapo fará ele confessar que é hromoj!
Eles já deram um jeito em sujeitos mais importantes do que ele!
– Bobagem! – resmunga o Velho. – Ein que confusão nos
metemos!
– Vamos voltar para a cidade e perguntar-lhes onde se esconde o grande e
perigoso Sr Oltyn – diz, sorrindo, Porta.
– Nós podemos apenas dizer que somos uns camaradas do mvarítsch que
vieram à cidade para visitá-lo – sugere Tiny.
– Eu desejaria que o diabo se encarregasse dos merdas de vocês dois –
repreende o Velho. – Infeliz de mim que tive a sorte de comandar a seção mais
doida em toda a porra do Exército alemão!
– Bem, você não pode dizer que teve muitos momentos aborrecidos
conosco – considera Tiny. – Se eles lhe derem uma nova turma, em breve você
terá saudades de nós. Não há muitas seções
– Escute aqui, tovaritsch – diz Porta, dando um tapinha na bochecha de
Politkom – você se meteu num erro muito aborrecido.
– Dois – intervém Tango. – O primeiro erro que ele cometeu foi ter nascido
na terra de Stalin!
– Sim – concorda Porta, rindo. – Mas este agora é o último para ele. Nós
vamos ter que espremê-lo, tovarirsch, ou irá mandar todos seus companheiros
comunistas atrás de nós. Deve compreender que devemos a nós mesmos não
deixá-lo escapar!
– Darei minha palavra de honra de não dizer nada – exclama o prisioneiro,
em desespero.
– Não e que ele é um bom sujeito! – diz Búfalo. – Abaixem seus sabres,
rapazes!
O Velho senta-se numa pedra e sacode a cabeça violentamente; está
tentando decidir o que vai fazer.
– Não há nada mais a fazer – diz ele, finalmente. – Esse maldito comissário
de guerra tem que voltar conosco. – Olha para Julius Heide. – Você tem que
descobrir dele onde seu grande colega está se escondendo. E nós vamos pegá-lo
esta noite!
– Imagino que haja um bom hotel por aqui, onde poderíamos descansar e
comer alguma coisa enquanto esperamos que chegue a noite? – pergunta Tiny.
– Não. Receio que não – diz Porta. – Não há bons hotéis nesta área. Os
cozinheiros todos ingressaram no Exército.
– Parem com essa criancice – exclama o Velho, irritado. – É difícil
acreditar que vocês sejam homens crescidos e, além disso, soldados!
– A pessoa tem que ser crescida para ser soldado? – pergunta Tiny. – A
maior parte daqueles que tenho encontrado não parecem ter mais de 12 anos!
– Cale a boca, seu bobalhão! – diz, ríspido, o Velho. – Estamos metidos
aqui num negócio perigoso.
– Não conte então comigo – grita Porta, afastando-se pelo caminho a
dançar cantando: – Estou indo para casa...
Heimat, deine Sterne...
– Que fazemos nós com o prisioneiro? – pergunta Barcelona, de forma
prática.
– Liquidêmo-lo, tão logo obtivermos a informação que desejamos – diz
Heide, friamente.
– Você talvez o fuzilará? – pergunta o Velho, sarcasticamente.
– Por que não? – responde Heide, num tom assassino, puxando sua
Tokarew. – As ordens do Führer de agosto de 1941 estabelecem que todos os
judeus e comissários devem ser mortos com um tiro na nuca.
– O pobre coitado está tremendo como uma geleia de medo e terror – diz
Porta, batendo no ombro do prisioneiro de uma forma amigável. – Ele não é
pior do que ninguém embora tenha arranjado um boné verde para usar. Ele é
apenas esperto, apenas isso, e descobriu que ser comissário é uma boa coisa!
Toda a seção olha para o prisioneiro, que está branco como cal de medo.
Sabe que não podemos deixa-lo ir-se e o que queremos com seu colega.
Febrilmente, ele começa a falar-nos acerca do Vjonkom, que ele pinta tão negro
quanto possível, numa tentativa de nos amolecer.
– Os comunistas, e todos os judeus, são umas pestes! – grita ele abrindo os
braços num gesto de quem tenta convencer.
– Você não pode querer dizer isso – diz Porta, entusiasmado. – Pense em
todas as belas pequenas iídiches que há no mundo. Dê-me agora uma dúzia
delas aqui e veja o que aconteceria!
– É muito óbvio! – diz, rindo, Búfalo. – Ele é um anticomunista e tem sido
um amigo do peito de Adolf a vida toda!
– Ele é um merda de um traidor de sua pátria! – exclama Tiny, com
desprezo. – Para um verdadeiro idealista é uma coisa horrível ouvir corno ele,
que é um Politkom, pode voltar sua língua ferina contra o Tio Joe. – Tiny reúne
todo seu pretenso desprezo numa enorme cusparada.
– Vamos pendura-lo pelos pés e deixar que o bom senso volte à sua cabeça
– sugere Tango.
– Amarrem-no a uma árvore – ordena o Velho. – Assim ele terá pelo
menos a chance de ser encontrado. Se eles não o encontrarem, então o azar foi
dele.
O Legionário e Barcelona amarram o infeliz prisioneiro a uma árvore, Tiny
diz que poderiam tê-lo amarrado num formigueiro; assim pelo menos ele teria
alguma companhia, se não fosse encontrado.
– Devo mandar uma mensagem para o regimento? – pergunta Heide,
pronto no pequeno transmissor de ondas curtas.
O Velho pensa sobre o assunto.
– É um pouco arriscado. Os russos poderiam localizar-nos.
– Impossível – diz Heide, puxando a antena para cima. – Mandarei a
mensagem curta e rápida. Do outro lado, está o Telegrafista-Chefe Müller e
ninguém pode transmitir rápido demais para ele.
O Velho acena sua concordância com a cabeça.
As frequências de ondas curtas estão densamente ocupadas e muito ativas.
Há particularmente uma estação do Exército russo muito potente.
– Pode desistir disso – suspira o Velho, quando ouve aquela confusão de
guinchos e apitos. – Você nunca alcançará nossa gente.
– Deixe que o pessoal de rádio se preocupe com isto – responde Heide,
enfezado, procurando alcançar o extremo da faixa de nossas transmissões. Ele é
um dos melhores telegrafistas do Exercito.
Subitamente, aparece nosso sinal de identificação. A poderosa estação
russa entra continuamente, solicitando, irritada, nossa identificação.
“Job tvojemadj, seus vermelhos de merda!”, manda Heide em Morse,
furioso.
De repente, o sinal de identificação aparece alto e claro.
“P.4-F.6.A.-R. KARLA-, transmita!”
“WERNER”, repete Heide cinco vezes, com curtas pausas, e depois com
uma diabólica velocidade ele manda a mensagem.
O Telegrafista-Chefe Müller é também muito rápido. Apenas os melhores
telegrafistas podem entender uma mensagem mandada com tal velocidade.
Gregor. que é assistente-telegrafista, perde-se logo no princípio da
transmissão e nunca mais consegue segui-la. Resignadamente, fecha seu
caderno de mensagens.
Heide fecha o aparelho e entrega ao Velho a mensagem passada a limpo:
CONTINUE A AÇÃO. COLHA QUANDO MADURA.
COMUNIQUE NA HORA ACERTADA. FIM DE MENSAGEM.
– É inacreditável que os untermenrch tenham projetado um transmissor tão
bom – diz Heide, cheio de admiração, passando a mão pelo pequeno aparelho. –
Estes aparelhinhos soviéticos são fantasticamente bons.
– Sim, não há limite para o que os untermensch podem fazer, quando o
tentam – diz Tiny, batendo em seu kalashnikov com um aceno apreciativo da
cabeça. – Quem tem uma balalaica corno esta, pronta a cantar a porra de sua
música rápida como um raio?
Permanecemos na floresta, cochilando, durante todo o dia. O prisioneiro
nos disse que Oltyn sai do clube de oficiais todas as noites muito alto. O clube
está localizado num pequeno castelo, um pouco afastado da cidade; ele fez um
mapa para nós e deu-nos todos os detalhes. Simplesmente não será possível
errar.
De tardinha, o Velho e Barcelona vão dar comida ao prisioneiro e
encontram-no caído sobre as cordas. Estrangulado!
O Velho perde a cabeça e ameaça fuzilar a todos nós.
– Quero esse assassino e quero-o agora. – berra ele. – Chega! Não suporto
mais isso!
– Assassinos? – responde Porta, sorridente. – Você tem a intenção de
insultar-nos?
– Poderíamos queixar-nos de você por dizer coisas assim – exclama Tiny.
– Assassinos, eu disse! – grita, furioso, o Velho. – Que belo grupo de
malditos enfeites vocês compõem para a nova Alemanha! Matando um pobre
prisioneiro indefeso, seus covardes filhos da puta! Mas vou encontrar o merda
que fez isso! Não há mais do que três entre vocês que sabem usar um fio de
arame!
– Eh, eh! Você não está ficando um maldito técnico? – grita Tiny,
admirado. – Se eu tivesse toda essa capacidade em minha cabeça, teria tentado
entrar para a Kripo. Você é melhor do que Pretty Paul* em qualquer porra de
um dia. Se ele deixa cair o emblema do partido na porra do chão, tem que
convocar toda a maldita seção mais a alfândega mais o pessoal do imposto para
ajuda-lo a achar de novo!
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* Vide Gestapo, publicado no Brasil pela Record.
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– A vida é feia e dura – diz Porta, mal-humorado. – O coitado daquele
rapaz ateu não existe mais. – E finge limpar seus olhos com um sujo lenço.
– Exibicionista de merda! – exclama o Velho, sempre zangado. Põe na
boca um pedação de tabaco e cospe com violência.
– Ele era um comissário. Um instrumento do judaísmo internacional –
rosna Heide, friamente. – Merecia ser liquidado!
– Cale sua suja boca – grita o Velho, com o rosto vermelho como um galo
de briga. – Mesmo que seu Führer tenha ordenado mil vezes que os comissários
sejam fuzilados, eu o levo perante uma corte marcial, se foi você que o fez!
– Meu Führer? – retruca Heide, ameaçador e com os olhinhos quase
fechados. – Seu Führer também, espero, Sr. sargento?
O Velho olha para ele irritado.
– Você votou nele, eu não!
– Será interessante ouvir o que o NSFO terá a dizer disso – responde
Heide, e começa a afinar raivosamente um pedaço de pau com a faca.
Porta corta grossas fatias de um comprido pão russo. Tostamos numa
fogueirinha e comemos com tomates em conserva e alho.
Tem um gosto maravilhoso.
– Esta era a arma secreta da Espanha vermelha durante a guerra civil – diz
Barcelona, dando uma grande dentada no pão.
– Foi por isto que a perderam – goza-o Porta.
A lua já vai alta quando partimos; o luar brilha como seda por entre as
folhas.
Um cão late à distância e Rasputin reage eriçando os pelos do pescoço.
Como sempre, ele vai à frente junto com Porta.
Estranhamente, não há nenhum bloqueio do lado de fora da cidade. Talvez
os russos não possam imaginar a possibilidade de um ataque. Não há nem
mesmo patrulhas de polícia nas ruas. Tudo respira paz e tranquilidade.
Numa rua lateral, um grupo de soldados canta com suas namoradas.
Marchamos em passo ordinário e fazemos continência olhando à direita
para um major que passa. Não é difícil para nós imitarmos soldados russos.
Seus regulamentos de serviço e ordem-unida são cópia fiel dos nossos. O
mesmo passo de ganso com um chute para a frente, o mesmo balanço do braço
para cima até a altura da fivela do cinturão.
Porta nota dois caminhões de transporte de pessoal estacionados num pátio.
– Vamos pegar aqueles dois caminhões – sugere, num sussurro. – Eles nos
darão a chance de uma fuga mais rápida, quando houvermos pegado nosso
prato de carne!
Tiny aproxima-se nas pontas dos pés e dá uma olhada no pátio.
– Há apenas dois porretas meio adormecidos ali – diz, baixo. – Podemos
pegá-los num piscar de olhos!
– Muito bem! – concorda o Velho. – Peguem-nos! Mas nada de barulho!
Dois segundos mais tarde, os dois soldados do corpo de suprimento estão
mortos, estrangulados. Jogamos os corpos num poço.
Empurramos os caminhões para fora do pátio e só damos partida neles,
quando estão na rua.
Com uma velocidade louca atiramo-nos ao longo da estreita rua, mas
ninguém repara em nós; esta é a maneira de os russos dirigirem. Subitamente,
encontramo-nos dentro de um grande quartel.
Algumas sentinelas gritam para nós, quando damos marcha à ré recuando
pelos portões.
– Job tvojemadj! – grita Porta para eles.
Fazendo a volta, caímos numa estreita rua sem saída, na qual há uma
prisão. Um camarada da NKVD parece contente; ele pensa que nos trazemos
prisioneiros, mas temos que desapontá-lo.
– Qual é o destino de vocês? – pergunta o homem, azedo.
– Vojenkom Oltyn – responde Porta. – Será que pode dizer-nos como
chegar até ele, camarada?
O homem da NKVD se aproxima do caminhão da frente.
– Você fala um dialeto infernal. De onde você é? De Tiflis, certamente não.
– Karelia – responde Porta. rindo audaciosamente. – Minha mãe era uma
puta finlandesa e meu pai um alce russo.
– Você tem cara disso mesmo, companheiro – diz, rindo, o guarda da
NKVD, e indica-nos o caminho para o Château.
– Como era mesmo a maldita senha para esta noite? – pergunta Porta,
arriscadamente. – Nós carélios filhos de prostitutas não temos lá muito boa
memória.
– Tamkan* e você responde Papojka**.
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* Tamkan (em russo): barata.
** Papojka (em russo): partido.
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– Sim, é isso mesmo – acha graça Porta. – É engraçado, não é? Há muitas
baratas por aqui desde que vocês as usam como senha?
– Não – responde o homem da NKVD – nem partidos tampouco! – Oferece
um pacote de Papyros.
Porta passa-lhe seu cantil. Ele toma um bom trago da vodca que o cantil
contém.
Deixamos de marcha à ré a rua sem saída e pouco tempo depois
estacionamos os caminhões escondidos sob umas grandes árvores no parque
que rodeia o castelo.
Porta pendura seu Kalashnikov no ombro pela bandoleira, enterra o
redondo capacete de aço russo até os olhos e dirige-se aos pulinhos, brincando.
em direção a um soldado que está parado próximo a uma escada que conduz ao
castelo. Heide e o Legionário esgueiram-se ao longo da parede de forma a se
colocar atrás da sentinela. Esta tem toda sua atenção fixada em Porta que se
dirige, dançando. em sua direção pelo campo aberto, e cantando
tranquilamente:
Soce yseco
spischu do tebe,
wetsclir blysenko,
letschu do tebe...*
===============
*O sol está se deitando
A noite se aproxima
Apresso-me a voltar para ti
Voo para casa...
===============
Porta dá um chute numa pinha, dribla-a como um jogador de futebol e a
arremessa para a sentinela que a pega habilmente como um goleiro e a passa de
volta. Logo a seguir está morto, após uns poucos estertores das pernas e dos
braços. O Legionário aperta um pouco mais o arame. Arrastam o corpo para os
rododendros, esvaziam-lhes os bolsos e se apossam do que lhes pode ser útil.
– Idiotas! – exclama o Legionário. – Tão logo não ouvem mais os ruídos da
linha de frente, pensam que não há mais perigo e passam a andar distraídos
como as galinhas dentro de um cercado. C’est la guerre!
Porta torna o lugar da sentinela, mas mantém-se na sombra, caso apareça
alguém que conheça o russo.
Um relógio anuncia as horas de sua torre sonoramente, tocando uma
musiquinha.
Um grupo de oficiais sai rindo barulhentamente de dentro do château; um
deles tropeça e rola pela escada abaixo.
– Oh, oh, Nikolajewitsch, você não é capaz de suportar o champanha do
Tovaritsch Oltyn?
Porta faz ombro-arma com a sua Mpi e junta os calcanhares. Um gordo
oficial com uma pelerine verde sobre os ombros leva descuidadamente um dedo
até a aba de seu boné em resposta.
Um halo de alho e schnapps rodeia o grupo, à medida que eles
desaparecem cantando, bêbados, em direção a um comprido edifício.
– Porcos beberrões, untermensch – resmunga Heide, em tom de desprezo. –
Ele está embaixo de um dos caminhões com sua LMG pronta.
Porta pega uma maçã de uma árvore e mastiga-a ruidosamente.
– Ele é maluco – sussurra o Velho. – Faz tanto barulho como um cavalo
comendo um nabo congelado.
Quatro mulheres em uniforme do Exército Vermelho saem rindo do clube.
Uma delas levanta a saia e alivia-se alegremente.
– Nossa Senhora de Kazan! Jesus Cristo Todo-Poderoso! – exclama Tiny,
em voz baixa. – Babacas de mulheres soldados. Vamos levá-las conosco junto
com o porra do hromoj!
As pequenas param perto de Porta e dançam provocadoramente em torno
dele; prometem-lhe toda a sorte de boas coisas, se ele for procura-las quando da
rendição da guarda.
– É melhor que ele não tente – resmunga o Velho, ameaçadoramente.
– Jesus Cristo! – exclama Tiny, quando uma das pequenas passa a mão
entre as pernas de Porta e solta um gritinho de satisfação. – Essas são umas
boas putas!
– Elas gostariam de recolher um carro na garagem delas – murmura
Barcelona.
Alguns oficiais saem do clube, e as pequenas vão-se embora
apressadamente. Os oficiais têm com eles um cão que para, olha em nossa
direção, fareja no ar e começa a rosnar.
Rasputin, que está sentado na boléia de um dos caminhões, começa a dar
uns pulinhos; as molas do assento rangem. Ele mostra os dentes para o cachorro
que corre um pouco em nossa direção.
Uma voz firme chama-o de volta. Um dos oficiais olha com atenção para
Porta quando passa por ele e ordena-lhe que corte o cabelo. Os soldados russos
usam o cabelo à escovinha.
Soltamos as travas das armas, mas o oficial russo continua seu caminho
sem outro comentário.
– Que inferno! – geme o Velho. – Já não estou em condições de suportar
muito disso!
– Excitante, não é? – diz Tiny, respirando profundamente.
– É divertido pensar que aqui estamos nós, não estamos? Bem no meio do
maldito covil do velho “Ivan”. Suficientemente perto para cuspir-lhe na porra
do olho, se quiséssemos.
– Eles eram capazes de cagar-se todos, se soubessem que estamos aqui –
diz Gregor, rindo, sem demonstrar preocupação.
– Quanto tempo vamos ficar por aqui, de qualquer maneira? – pergunta
Tiny, impaciente. – Se fosse eu que comandasse a seção, entraria ali e retiraria
a porra do pedaço de carne que viemos buscar.
– Sim, tente essa espécie de merda e você tem que sair disparando com
uma divisão inteira atrás do seu rabo – diz o Velho em voz sibilante, enchendo,
zangado, seu cachimbo de enfeite prateado.
O vento torna-se mais forte; nuvens cobrem a lua e a escuridão fica
completa.
– O Deus dos alemães está conosco – murmura Barcelona, animado.
– Exato. Ele está. É assim que diz nas fivelas de nossos cinturões – fala,
rindo, Búfalo.
Outro grupo de barulhentos oficiais desce sapateando pelas escadas. Um
tenente magro e miúdo dá uma bronca em Porta por estar com as botas sujas e o
cabelo comprido.
– Apresente-se a mim de manhã para duas horas de ordem-unida de castigo
– ordena o tenente. – Qual é seu nome?
– Soldado Serpelin, senhor! – replica Porta rapidamente, juntando os
calcanhares.
– Lembrar-me-ei de você – promete o tenente, ao voltar-se para ir embora.
– Pode apostar que ele vai... fala Gregor, convencido.
– Meus pés estão ficando dormentes – queixa-se Barcelona.
– Estou deitado em cima de uma pedra – digo eu.
– Jogue-a fora – sugere Gregor, dando um bocejo.
– Ou afaste-se dela – diz o Velho, irritado.
Saio de cima da grande pedra sobre a qual estava deitado e deixo cair
minha Mpi que rola barulhentamente pela ribanceira.
Uma ave do alto de uma árvore solta um grito agudo. Os outros me
amaldiçoam violentamente e me xingam. Apenas Tiny acha graça; ele não se
incomoda com o que aconteça, desde que algo aconteça. Nasceu num domingo
e nada de ruim lhe pode acontecer.
Rasputin está nervoso. Faz força de encontro à grade da janela, que cede
um pouco. Gregor tem que ir lá para aquietá-lo.
Por algum tempo, há silêncio. Do Château ouve-se o barulho da música e
de canções. Um cão uiva longa e lugubremente. Um pelotão de guarda marcha
pela estrada abaixo. Depois, ouvimos ríspidas ordens de comando e o bater de
armas no chão.
– Inferno! – exclama Barcelona. – Agora sim estamos na merda! Porta não
pode ser rendido na guarda! Mesmo que costumem limpar o rabo com areia e
não acreditem em Deus, eles logo vão ver que Porta não é um deles!
– Ele já estará muito longe, quando chegarem até seu posto – diz Tiny,
sempre otimista. – Ninguém que não tenha pura merda debaixo de seu chapéu
iria ficar ali esperando para dizer aos vizinhos que ele veio do outro maldito
lado!
O Velho puxa sua Mpi para a frente dele.
– Você pensa que é a guarda de rendição? – pergunta Heide, nervoso.
– Pode ser – responde o Velho – mas pode também ser uma patrulha. Logo
veremos!
Porta caminha para lá e para cá, batendo com os pés a moda russa. Um
gato vem andando pelo campo aberto à sua frente, com o rabo empinado, e
Porta o chama. Vagarosamente, o gato se aproxima dele. O cabo pega-o no colo
e começa a fazer-lhe festas.
– Estrangulo aquele infeliz, se ele trouxer de volta com ele um gato
soviético! – rosna o Velho.
– Nós faremos uma lavagem cerebral no patife e faremos dele um bom
nazista – fala, divertido, Tiny. – Em breve, expulsaremos dele as ideologias
comunistas. Já temos resolvido casos mais difíceis do que o de um gato
comunista do interior. Faremos com que o patife aprenda o Mein Kampf de cor!
Diversos tanques começam a esquentar seus motores; o ar treme com o
barulho que fazem os pesados motores Otto.
– T-34 – diz Heide, sempre sabido.
Pesados caminhões roncam do outro lado da cidade; passos apressados e
altas vozes de comando podem ser ouvidos.
Apuramos nossos ouvidos, escutando, mas não pode ser nada de sério ou
eles não estariam continuando com sua festinha no clube.
Abrem-se inteiramente algumas janelas e a luz se espalha pelo terreno em
volta do castelo. Ninguém parece preocupar-se com o black-om. Provavelmente
não consideram que a Força Aérea alemã ainda seja perigosa.
Vozes de mulheres gritam, excitadas; ouvimos risos e cantos. Alguém toca
alto um acordeão; ouve-se a batida dos pés de danças russas. As mulheres
gritam de novo.
– Eles agora estão tirando as roupas delas – diz Tiny, lambendo os beiços,
excitado. – Não há nada tão divertido como quando as roupas vão se
amontoando num bolo no meio do chão e todas as bundas começam a pular
para cima e para baixo como um cardume de arenques brilhando sob um sol de
agosto!
– Seu porco sujo – admoesta o Velho. – Você não tem outra coisa em sua
cabeça?
– Vamos dar um pulo até lá para ver, vamos? – fala Tiny. – Eu gosto de ser
o que eles chamam um voyeur!
– Deveria ser divertido – diz Búfalo, rindo, agradado da ideia. – Então,
quando os ateus tiverem feito o serviço deles, nós poderíamos assumir!
– Ouvi dizer que as garotas russas gostam de ficar por cima do homem –
diz Tiny. – Se pudéssemos enfiar nossos tomates para dentro delas, a questão
estaria resolvida de uma vez por todas!
Contemplamos com inveja Porta que está de pé tranquilamente olhando
pela janela aberta. Ele se volta, examina-nos e dá um estalo com a língua.
– Você não acha que devemos cortá-lo um pouco, apenas um pouquinho,
esse peste desse comissário russo-alemão, quando o pegarmos? – pergunta
Tiny, esperançoso.
– Tome cuidado com você! – responde o Velho, sério.
A mim parece que estamos parados ali há horas; todo meu corpo coça e
está dormente.
Diversas corujas esvoaçam em torno das árvores; um mocho orelhudo solta
um grito amedrontador.
Subitamente, uma alta e corpulenta figura aparece no topo da escada do
castelo. Veste uma longa pelerine. Passa a mão em sua cabeça completamente
calva. Um soldado corre, inclinando a cabeça apressado, para trazer-lhe seu
boné e o cinturão da pistola.
– C’est lui*! – sussurra o Legionário, em voz rouca. – Nada de erros agora!
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*C’est lui! (em francês): É ele!
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A prisão de trânsito de Osmita, que fica quase cinco quilômetros para fora
da cidade de Chita, tem a reputação de ser a prisão mais “segura” do mundo.
De qualquer forma, é a mais sinistra e a mais feia, construída de grandes
blocos de cantaria cinza-escuro. Não e uma prisão no sentido verdadeiro, na
qual os prisioneiros cumpram sentenças, mas um caravançará para aquela
enorme massa de carga de seres humanos que se escoa através dali de toda as
prisões da Rússia em direção à Sibéria.
Em Osmita o prisioneiro encontra, pela primeira vez, o maior caçador de
homens do mundo, o pequeno e sorridente soldado dos comboios siberianos
com a temível nagajka pendurada no ombro. Na maior parte do tempo, ele está
vestido com um grande casacão cinzento que lhe cai até os tornozelos e um alto
boné branco de cossaco com um tampo vermelho, no qual está inserida uma
cruz verde. A despeito de sua pequena estatura, há algo aterrorizante nele. Um
Kalashnikov, com seu tambor circular de balas, está pendurado no peito. Na
ilharga, há um sabre cossaco numa bainha de couro preto. Na sua frente, sobre
o peito, aparece um coldre negro aberto, do qual se projeta a coronha de uma
pistola Nagan. A arma está presa a um cordão branco que passa por ambas as
ombreiras e desce pelo peito.
Quando os prisioneiros chegam a Chita, são entregues à custódia desses
homenzinhos com a cruz verde em seus gorros. É uma experiência chocante
para a maioria deles. Nos trens-prisão para Chita só era permitido aos
soldados baterem nos prisioneiros com ordem de um oficial, mas os
homenzinhos com a cruz verde têm permissão de usar a temida nagajka sob
sua própria responsabilidade e tão logo eles assumem o controle dos
prisioneiros, a nagajka
Começa a assobiar pelo o ar, espalhando terror onde se abate. Antes e o
comboio ter chegado a Osmita, os mais fracos já foram chicoteados até
morrer.
O que acontece dentro dos muros da prisão de trânsito ninguém realmente
sabe.
Os prisioneiros são, de qualquer forma que isso seja Conseguido,
treinados para uma obediência de animais. Quando partem, três Semanas mais
tarde, transportados em centenas de trenós, todo o vestígio de vida
desapareceu de seus rostos:
Estes pequenos soldados-policiais ficaram famosos desde que o grande
deserto siberiano tornou-se o maior centro de extermínio do mundo.
Pelo menos quatro milhões de prisioneiros de guerra alemães passaram
por Chita e foram “educados” em Osmita sob o látego mordente da nagajka,
antes de ser enviados para as minas ao longo do rio Kolyma, na Sibéria, ou
para os acampamentos que se espalham em torno de Novaya Zemla. Apenas
uma porcentagem muito pequena deles voltou para a Alemanha depois da
guerra.
FOI ASSASSINATO?