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Notas de Mecânica dos Fluidos

Domingos H. U. Marchetti
Depto. Fı́sica Geral
Email: marchett@if.usp.br
Web: http://gibbs.if.usp.br/∼marchett

Ifusp - 2008
2

RESUMO
Índice

Prólogo 5

1 Algumas Considerações Gerais 7


1.1 Funções de Estado de um Fluido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1.2 Conservação da Massa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1.3 Conservação de Momento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.4 Conservação de Energia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

2 Equações do Movimento 17
2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contı́nuo . . . . . . . . . . . 17
2.2 Movimento de um fluido Ideal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
2.3 Campos Helicoidais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
2.4 Decomposição do Movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

3 Fluidos Ideais: Diversos Resultados 45


3.1 Equação da Vorticidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
3.2 Teorema da Circulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
3.3 Movimentos Estacionários Elementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres . . . . 67

4 Fluidos Reais: Algumas Aplicações 75


4.1 Equações de Navier–Stokes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
4.1.1 Escoamento de Poiseuille Entre Dois Planos Paralelos . . . . . . . 77
4.1.2 Escoamento de Poiseuille em um Tubo Cilı́ndrico . . . . . . . . . 78
4.1.3 Equação de Navier–Stokes em Coordenadas Cilı́ndricas . . . . . . 80
4.1.4 Escoamento de Couette–Taylor entre Dois Cilı́ndros Coaxiais . . . 82
4.1.5 Fórmula de Stokes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
4.2 Termohidráulica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
4 Índice

4.2.1 Aproximação de Boussinesq . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92


4.2.2 Solução Estacionária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
4.2.3 Forma Adimensional das Equações . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
4.2.4 Estabilidade da Solução Trivial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
4.3 Camada Limite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
4.3.1 Um Exemplo Simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
4.3.2 Interpolação da Camada Limite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
Prólogo

O Instituto Clay de Matemática, sediado em Cambridge, Massachusetts, instituiu no ano


2000 um prêmio no valor de 1 milhão de dolares a quem resolvesse um dos sete problemas
do milênio que resistem por anos solução (veja http://www.claymath.org/millennium).
Um deles é Provar a existência e suavidade das soluções da equação de Navier–
Stokes.
O enunciado surpreende a primeira vista, visto ser as primeiras questões a serem inves-
tigadas de uma equação. Se nada podemos afirmar sobre sua própria existência, como uti-
lizar a equação de Navier–Stokes (e equação de Euler também) para descrever fenômenos
de escoamento em fluidos?
Deixando de lado os problemas sobre a existência, as equações de Euler e Navier–
Stokes tem, nos últimos dois séculos, sido utilizada para compreender os mais variados
fenômenos em fluidos por intermédio de soluções analı́ticas em uma e duas dimensões,
redução esta devido a simetria do problema, ou por soluções aproximadas em combinação
com engenhosos artifı́cios ou ainda por intermédio de integração numérica. Boa parte
desta fenomenologia se encontra concisamente apresentada no texto de Mecânica dos
fluidos por Landau e Lifshitz.
Os problemas solúveis terão destaque neste curso por seu papel ilustrativo, especi-
almente aqueles cuja geometria bidimensional permite empregar a Teoria Potencial de
funções a variável complexa. Além disso, são importantes pois o escoamento de fluidos
incompressı́veis com viscosidade próxima a zero comporta–se como um fluido ideal exceto
nas proximidades de obstáculos e fronteiras, devido a velocidade do fluido se anular ou
acompanhar a interface. O estudo das “boundary layers” envolvendo técnica não pertur-
bativas permite uma abordagem qualitativa de vários fenômenos interessantes.
O presente curso de Mecânica dos Fluidos é uma introdução à Mecânica dos Meios
Contı́nuos e está dividido em três partes. Um terço do curso para entender as equações
do movimento de um fluido, sua dedução das leis da Mecânica e Termodinâmica e a sua
cinemática. Outro terço será empregado em aplicações. A última parte do curso será reser-
vada para o problema da propagação de chamas em canais. A escolha deste tópico reside
6 Prólogo

no fato da Teoria de Darrieus–Landau sobre combustão reduzir equações hidrodinâmicas


em equações para o perfil da chama que por sua vez, devido a contribuição de vários
autores, permite um tratamento mais detalhado sobre alguns fenômenos relacionados a
“dinâmica caótica”.
Não respeitando a ordem de apresentação, serão cobertos os seguintes tópicos: ◦ fluidos
ideais ◦ referenciais Lagrangeanos e Eulerianos ◦ equações de Euler e Bernoulli ◦ fluidos
compressı́veis e incompressı́veis ◦ escoamento rotacionais e irrotacionais ◦ escoamento
bidimensionais ◦ fluidos reais ◦ leis de conservação ◦ equação de Navier-Stokes ◦ flui-
dos geofı́sicos ◦ ondas superficiais ◦ ondas sonoras. Descreveremos as instabilidades de
Rayleigh–Bénard, Taylor–Couette e outros fenômenos associados à camada limite.
Retornando ao problema de existência e suavidade da solução de Euler e Navier–Stokes,
em duas dimensões, o problema foi resolvido pela matemática russa Ladyzhenskaya. Em
três dimensões, a existência e suavidade é garantida se o campo de velocidades inicial v 0
for suficientemente pequeno. Soluções fracas, satisfeitas pela equação integrada em uma
região, foram investigadas por Leray em 1934. Leray mostrou que a equação de Navier–
Stokes em três dimensões admite soluções fracas com certo crescimento mas sua unicidade
não é conhecida. A unicidade da solução fraca de Euler é falsa. Caffarelli-Kohn-Nirenberg
obtiveram os melhores resultados sobre regularidade parcial (a menos de um conjunto
singular que não contém curvas no espaço × tempo) de soluções fracas.
O próprio Caffarelli conclui sua apresentação do problema para Instituto Clay com as
seguintes palavras: “... Fluids are important and hard to understand. There are many
fascinating problems and conjectures about the behavior of solutions of the Euler and
Navier–Stokes equations. Since we don´t even know whether these solutions exist, our
understanding is at a very primitive level. Standard methods from Partial Differential
Equations appear inadequated to settle the problem. Instead, we probably need some
deep, new ideas”.
Podemos tentar ir um pouco mais longe sobre a necessidade de idéias novas. As equações
da mecânica dos fluidos não tem uma natureza fundamental. São, em última instância,
equações fenomenológicas e por esta razão não se deve exigir muito delas. Porém estas
não devem estar erradas e devemos sempre contrapor as questões de origem matemáticas
sobre as equações com o fenômenos que pretendemos descrever por estas.
Segue uma pequena lista de sugestões de textos:
L. D. Landau e E. M. Lifshitz, Fluid Mechanics, Pergamon Press, 2a impressão 1963
R. Teman e A. Miranville, Mathematical Modeling in Continuum Mechanics, Cam-
bridge University Press, 2a edição 2005
A. J. Chorin e J. E. Marsden, A Mathematical Introduction to Fluid Mechanics, Springer-
Verlag, 2a impressão 1984
H. Ockendon e J. R. Ockendon, Waves and Compressible Flow, Springer–Verlag 2004
Hydrodynamics and Nonlinear Instabilities, Editado por C. Grodrèche e P. Manneville,
Cambridge University Press 2005
1
Algumas Considerações Gerais

Mecânica dos fluidos é uma disciplina que tem como escopo descrever o movimento de flui-
dos, incluindo nesta categoria lı́quidos e gases. Escoamento em tubos, canais ou através de
objetos; transferência e difusão de calor; combustão; propagação de ondas, som ou chamas
são alguns fenômenos que serão abordados nestas notas. Por ser impossı́vel e, portanto,
irrelevante acompanhar a dinâmica dos constituintes de um fluido apenas grandezas
macroscópicas são utilizadas para descrição destes fenômenos. Destituı́do de seu cara-
ter molécular o fluido é idealmente tratado como um meio contı́nuo.

1.1 Funções de Estado de um Fluido


A descrição matemática do estado de um fluido em movimento é feita através de funções
definidas no instante t e posição x = (x1 , x2 , x3 ) do espaço. Devido a hipótese do contı́nuo,
xi , i = 1, 2 e 3, são variáveis reais e t ≥ 0. Se Ω ⊂ R3 denota uma região do espaço
pertinente ao problema, definimos as seguintes funções

1. Densidade: ρ : R+ × Ω −→ R+ , ρ = ρ (t, x)

2. Temperatura: T : R+ × Ω −→ R+ , T = T (t, x)

3. Entropia (por unidade de massa): s : R+ × Ω −→ R+ , s = s (t, x)

4. Campo de velocidade: v : R+ ×Ω −→ R3 , v = v (t, x) = (v1 (t, x) , v2 (t, x) , v3 (t, x))

Somente duas funções termodinâmicas entre as três primeiras são independentes devido
a equação de estado
f (s, T, 1/ρ) = 0 (1.1)
correspondente ao fluido em questão. Para um gás ideal, temos

s = ln kT cV /ρR

8 1. Algumas Considerações Gerais

onde cV é o calor especı́fico a volume molar constante, R a contante universal dos gases
e k um valor de referência do estado: s = ln k em T = ρ = 1.

Nota 1.1 Um leitor mais atento pode neste ponto se preocupar com a depedência tem-
poral nas grandezas termodinâmicas ρ, T e s. Não seriam as grandezas volume especı́fico
V = 1/ρ, temperatura T e, consequentemente, entropia s definidas a partir do equilı́brio?
De fato há aqui diferentes escalas de tempo e espaço envolvidas na dinâmica do fluido.
Quando tomamos um elemento infinitesimal do fluido ainda assim é grande suficiente
para conter um número de Avogadro de moléculas de tal forma que seu movimento é
governado pela média das velocidades das moléculas no elemento. Da mesma forma,
quando tomamos um tempo infinitesimal na dinâmica do fluido, ainda assim é grande
suficiente para que as moléculas do fluido termalizem e a noção de temperatura continue
aquela definida pelo equilı́brio termodinâmico. Neste limite, as mudanças nas grandezas
termodinâmicas ocorrem de forma adiabática.

Há fluidos cujo único tipo de força de coesão exercida por uma parte deste sobre a
superfı́cie que o separa do resto é a pressão na direção normal à superfı́cie. A pressão é
uma função escalar p = p (t, x) ∈ R e nem sempre representa todo tipo de esforço que um
fluido exerce sobre si mesmo em seu movimento. O efeito da viscosidade, por exemplo,
não pode ser representado por um escalar. Como a força de atrito, sua ação na direção
do movimento normal a superfı́cie depende da variação da velocidade sobre a superfı́cie.
Introduzimos um tensor (matriz 3 × 3) σ = [σij ]3i,j=1 que descreve a força df por
unidade de superfı́cie que parte do fluido em contato com um elemento de superfı́cie dS
cuja normal é n exerce sobre a parte oposta com respeito a superfı́cie através da relação

df = σn dS

isto é,
    
df1 σ11 σ12 σ13 n1
 df2  =  σ21 σ22 σ23   n2  dS
df3 σ31 σ32 σ33 n3
 
σ11 n1 + σ12 n2 + σ13 n3
=  σ21 n1 + σ22 n2 + σ23 n3  dS
σ31 n1 + σ32 n2 + σ33 n3

O ı́ndice j de σij indica a direção normal da superfı́cie sobre a qual atua a força em
cada uma das direções cartesianas i. Assim σ11 , σ2,1 e σ31 são, respectivamente, forças
por unidade de supefı́cie que atuam sobre a superfı́cie de normal e1 = (1, 0, 0) na direção
normal e nas duas outras direções sobre a superfı́cie (Veja Figura 1.1).
O tensor dos esforços (ou das tensões) σ é simétrico pois, caso contrário, o torque
sobre a superfı́cie de um elemento infinitesimal do fluido, exercido pelo próprio fluido,
faria com que este se movesse em rotação com velocidade angular infinita. O tensor dos
esforços pode depender do tempo e das coordenadas espaciais σ = σ (t, x) pela forma
funcional de σ em termos das funções de estado p, ρ, T , s, v e derivadas de v com
respeito as coordenadas espaciais. Esta relação requer considerações de natureza fı́sica
1.2 Conservação da Massa 9

FIGURE 1.1. Representação do tensor dos esforços

do fluido e da decomposição do movimento introduzidas no decorrer do curso. Para um


fluido estático
σ = −pI,
onde I é a matriz identidade.
Com excessão dos fluidos ideais, cuja a função entropia s(t, x) é constante ao longo do
fluxo, o calor se propaga através de um elemento de superfı́cie dS = n dS de normal n
de acordo com a lei de Fourier

dQ = −κ∇T · n dS

onde κ = [κij ] é o tensor de condutividade térmica (κ = KI se o fluido for homogêneo).


Concluı́da a lista das quantidades relevantes para descrever o movimento de um fluido
buscamos as relações entre estas grandezas estabelecidas pelas leis da mecânica.

1.2 Conservação da Massa


Seja Ω0 uma região de R3 conexa com superfı́cie Γ0 = ∂Ω0 regular fechada. Considere
um fluido em movimento em uma região que contém Ω0 . Se o movimento do fluido for
regular, o fluido em Ω0 no instante t = 0 ocupa uma região Ωt no instante t com Γt = ∂Ωt
uma superfı́cie igualmente regular e fechada. A conservação da massa implica
Z Z
3
ρ(0, x) d x = ρ(t, x) d3 x (1.2)
Ω0 Ωt

para todo t > 0 e toda região Ω0 ⊂ Ω.


Considere um incremento infinitesimal de tempo t → t + δ. Um ponto x do fluido é
arrastado para
x′ = x + v(t, x)δ + O δ 2

10 1. Algumas Considerações Gerais

e, em ordem dominante, a região Ωt é transladada na direção v(t, x) por um incremento


proporcinal a δ:
Ωt+δ = Ωt + v(t, x)δ
O jacobiano desta transformação de coordenadas
∂x′1 ∂x′1 ∂x′1



′ ∂x′1 ∂x2′ ∂x3
∂x ∂x2 ∂x2 ∂x′2

J = =
∂x ∂x1 ∂x2 ∂x3


∂x′ ∂x′ ∂x′3
3 3
∂x1 ∂x2 ∂x3

é dado por
        
∂v δ ∂v ∂v δ
J = det I + δ = det exp δ = exp Tr δ =1+∇·v δ (1.3)
∂x ∂x ∂x
δ
onde = significa igualdade até primeira ordem da expansão de potências em δ.
Exercı́cio 1.2 Verifique a relação

det A = exp (Tr (ln A))

para A = [aij ] uma matriz n × n real simétrica, aij = aji e positiva: u · Au > 0 para
qualquer u ∈ Rn não nulo. Esta relação vale para uma matriz n × n qualquer? Justifique
sua afirmação.
Indicação: Mostre a relação para uma matriz diagonal A = diag (α1 , . . . , αn ) com αi > 0 e,
em seguida, use o fato das funções det(A) e Tr (A) serem invariantes por transformações
de similaridade: det (U −1 AU) = det A e Tr (U −1 AU) = Tr (A). Conclua o argumento
para uma matriz simétrica. Repita o mesmos passos para uma matriz A triangular su-
perior e utilize o Teorema de Schur–Toeplitz sobre a redução de uma matriz qualquer à
forma triangular superior por uma transformação de similaridade unitária.
Temos
Z Z
′ 3 ′ δ
ρ(t + δ, x ) d x = ρ(t + δ, x + δv) (1 + δ∇ · v) d3 x
Ωt+δ Ωt
Z   
δ ∂ρ
= ρ(t, x) + δ (t, x) + v · ∇ρ(t, x) (1 + δ∇ · v) d3 x
Ω ∂t
Z t  
δ ∂ρ
= ρ(t, x) + δ (t, x) + v · ∇ρ(t, x) + ρ(t, x)∇ · v d3 x
Ωt ∂t
de onde se conclui, juntamente com (1.2),
Z  
∂ρ
(t, x) + v · ∇ρ(t, x) + ρ(t, x)∇ · v d3 x = 0
Ωt ∂t
Mas t > 0 e a região Ω0 são arbitrárias e, pela hipótese de regularidade de Ωt , o integrando
deve, necessáriamente, ser identicamente nulo.
1.3 Conservação de Momento 11

Exercı́cio 1.3 Mostre que v · ∇ρ + ρ∇ · v pode ser escrito como ∇ · (ρv).


A equação da continuidade
∂ρ
+ ∇ · (ρv) = 0
∂t
é a expressão local do conceito de conservação da massa do fluido em movimento regular.
A quantidade j = ρv, denominada fluxo de massa, é a massa do fluido por unidade de
tempo que flui através de uma superfı́cie unitária perpendicular a direção de escoamento.

1.3 Conservação de Momento


A quantidade de movimento de um fluido em uma região Ωt cuja superfı́cie Γt = ∂Ωt é
regular e sem borda, é dada por
Z
P (t, Ωt ) = ρ(t, x) v(t, x) d3 x .
Ωt

Pela conservação do momento (Lei de Newton), sua variação


dP
= FΩ + FΓ
dt
é equacionada pela força total F Ω que age sobre o fluido no interior da região Ωt e pela
força F Γ que atua sobre a superfı́cie Γt . Assumindo que a única força externa seja devido
a ação da gravidade, temos
d
Z Z Z
3 3
ρ(t, x) v(t, x) d x = ρ(t, x) g(x) d x + σn dS . (1.4)
dt Ωt Ωt Γt

Para calcular a derivada, um procedimento análogo ao empregado anteriomente pode


ser usado a partir da definição
dP P (t + δ, Ωt+δ ) − P (t, Ωt )
= lim . (1.5)
dt δ→0 δ
Temos
Z
P (t + δ, Ωt+δ ) = ρ(t + δ, x′ )v(t + δ, x′ ) d3 x′
Ωt+δ
Z
δ
= ρ(t + δ, x + δv)v(t + δ, x + δv) (1 + δ∇ · v) d3 x

Z t    
δ ∂ρ ∂v
= ρv + δ + v · ∇ρ v + δρ + v · ∇v (1 + δ∇ · v) d3 x
Ω ∂t ∂t
Z t  
δ ∂(ρv)
= ρv + δ + v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v d3 x
Ωt ∂t
Z  
∂(ρv)
= P (t, Ωt ) + δ + v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v d3 x
Ωt ∂t
12 1. Algumas Considerações Gerais

de onde se conclui
Z  
dP ∂(ρv)
= + v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v d3 x . (1.6)
dt Ωt ∂t

Para o último termo em (1.4), utilizamos o teorema de Green


Z Z
σn dS = ∇ · σ d3 x . (1.7)
Γt Ωt

Combinando as equações (1.4), (1.6) e (1.6), resulta


Z  
∂(ρv)
+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v − ρg − ∇ · σ d3 x = 0
Ωt ∂t

e como t ≥ 0 e Ω0 são arbitrários,


∂(ρv)
+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v = ρg + ∇ · σ . (1.8)
∂t
Note que ∇ · σ é um vetor cuja i–ésima componente
∂σi1 ∂σi2 ∂σi3
(∇ · σ)i = + + .
∂x1 ∂x2 ∂x3
Exercı́cio 1.4 Mostre que o lado esquerdo de (1.8) pode ser escrito como
   
∂v ∂ρ
ρ + v · ∇v + + ∇ · (ρv) v
∂t ∂t

A primeira equação cardinal que governa a dinâmica do campo de velocidades é


obtida de (1.8) juntamente com a equação da continuidade

∂v 1
+ v · ∇v = g + ∇ · σ . (1.9)
∂t ρ
Nestas notas de aula, apenas duas formas do tensor dos esforços serão utilizadas extensi-
vamente. Se processos de dissipação de energia, que ocorrem em um fluido em movimento
devido a viscosidade e transferência de calor entre suas partes, puderem ser desprezados
então o tensor dos esforços é semelhante a de um fluido estático. Adotamos a seguinte
Definição 1.5 Um fluido ideal é um fluido cujo tensor das tensões satisfaz

σ = −p(t, x)I .

A equação (1.9) correspondente a um fluido ideal


∂v 1
+ v · ∇v = g − ∇p (1.10)
∂t ρ
foi derivada pela primeira vez por Euler em 1775.
1.4 Conservação de Energia 13

A outra forma a ser considerada é

σ = −pI + σ ′ (1.11)

onde σ ′ é a parte do tensor dos esforços devido a viscosidade cuja forma geral pode ser
escrita como  
′ ∂vi ∂vj 2
σij = η + − ∇ · v δij + ζ∇ · v δij
∂xj ∂xi 3
A primeira parte do tensor tem traço nulo e os coeficientes de viscosidade η e ζ são
constantes positivas. A equação (1.9) correspondente,

∂v 1
+ v · ∇v = g − ∇p + ν∆v , (1.12)
∂t ρ
devido a condição
∇·v =0 (1.13)
satisfeita por um fluido incompressı́vel, é a famosa equação de Navier–Stokes. ν = η/ρ
é denominada viscosidade cinemática.
Exercı́cio 1.6 Derive a condição (1.13) para um fluido incompressı́vel a partir da con-
dição V̇ (t) = 0, onde Z
V (t) = d3 x
Ωt

é o volume da região Ωt , e da equação de continuidade.

1.4 Conservação de Energia


A energia total de um fluido em movimento em uma região Ωt regular,
Z  
1 2
E(t, Ωt ) = ρ |v| + ρε d3 x ≡ K (t, Ωt ) + U(t, Ωt ) (1.14)
Ωt 2

é a soma da energia cinética e energia interna do fluido contida nesta região. Por simpli-
cidade, usaremos a notação
u2 = u · u
no lugar de |u|2 para o quadrado da norma de um vetor u.
A energia interna por unidade de massa ε pode ser escrita em termos das quantidades
ρ, T , s e p usando a lei termodinâmica
p
dε = T ds − pdV = T ds + dρ (1.15)
ρ2
onde a segunda igualdade segue diferenciando o volume especı́fico V = 1/ρ. Tendo em
vista que a entalpia por unidade de massa é dada por
p
h=ε+
ρ
14 1. Algumas Considerações Gerais

(lembre da relação dh = T ds + V dp que, juntamente com (1.15), conduz a dh = dε +


d (pV )), temos
d (ρε) = εdρ + ρdε = hdρ + ρT ds (1.16)

que é útil na descrição do movimento de um fluido isentrópico s(t, x) = s0 (veja Seção


2.2).
Similar à conservação de momento, o balanço energético na região Ωt é dado pela
relação
dE
= WΩ + WΓ + QΓ (1.17)
dt
onde
Z
WΩ = ρ v · g d3 x
Z Ωt
WΓ = v · σn dS
Γt
Z
QΓ = κ∇T · n dS
Γt

são, respectivamente, o trabalho realizado por unidade de tempo (potência) pelas forças
que atuam sobre o fluido no interior da região Ωt – considerando apenas a força gravi-
tacional, o trabalho por unidade de tempo do esfoço que o fluido exerce sobre si mesmo
através da superfı́cie Γt e a quantidade de calor conduzida para o interior de Ωt através
da superfı́cie Γt . A última expressão também pode ser escrita como
Z
QΓ = ∇ · (κ∇T ) d3 x
Ωt

pelo teorema de Green.


Para calcular a derivada da energia, procedemos como no caso do momento (veja (1.5)
e equações que a seguem). Temos

K(t + δ, Ωt+δ )
δ 1
Z
= ρ(t + δ, x + δv)v(t + δ, x + δv) · v(t + δ, x + δv) (1 + δ∇ · v) d3 x
2 Ωt
Z     
δ 1 2 ∂ρ 2 ∂v 2
= ρv + δ + v · ∇ρ v + δρ 2v · + v · ∇v (1 + δ∇ · v) d3 x
2 Ωt ∂t ∂t
∂(ρv 2 )
Z  
δ δ
= K(t, Ωt ) + + v · ∇(ρv ) + ρv ∇ · v d3 x
2 2
2 Ωt ∂t

de onde se conclui
∂(ρv 2 )
Z  
dK 1
= + ∇ · (vρv 2 ) d3 x . (1.18)
dt 2 Ωt ∂t
1.4 Conservação de Energia 15

A equação da continuidade e a equação cardinal (1.9) pode ser utilizada para simplificar
esta expressão. Substituindo
∂(ρv 2 ) ∂ρ ∂v
= v2 + 2ρv ·
∂t ∂t ∂t  
2 1
= −v ∇ · (ρv) + 2ρv · −v · ∇v + g + ∇ · σ
ρ
 
2 2 1
= −v ∇ · (ρv) − ρv · ∇v + 2ρv · g + ∇ · σ
ρ
 
1
= −∇ · (vρv 2 ) + 2ρv · g + ∇ · σ
ρ
em (1.18), resulta
 
dK 1
Z
= ρv · g + ∇ · σ d3 x
dt ρ
Z Ωt Z Z
3 3
= ρv · g d x − Tr (σ∇v) d x + ∇ · (σv) d3 x
Z Ωt Z Ωt ZΩt
= ρv · g d3 x − Tr (σ∇v) d3 x + v · σn dS (1.19)
Ωt Ωt Γt

onde empregamos na segunda e terceira linhas, respectivamente, integração por partes e


o teorema de Green.
Equações (1.14), (1.17) e (1.19), resultam
dU
Z
= (Tr (σ∇v) + ∇ · (κ∇T )) d3 x (1.20)
dt Ωt

e como t ≥ 0 e Ω0 são arbitrários, podemos obter uma equação de evolução para densidade
de energia interna. Antes disso, devemos notar
Z  
dU d ∂ (ρε)
Z
3
= ρε d x = + v · ∇ (ρε) + ρε ∇ · v d3 x (1.21)
dt dt Ωt Ωt ∂t
pelo mesmo procedimento empregado na conservação do momento e energia. Finalmente,
utilizando a equação da continuidade e a equação (1.15)
 
∂ (ρε) ∂ε
+ v · ∇ (ρε) + ρε ∇ · v = ρ + v · ∇ε
∂t ∂t
   
∂s p ∂ρ
= ρT + v · ∇s + + v · ∇ρ
∂t ρ ∂t
 
∂s
= ρT + v · ∇s − p∇ · v .
∂t
Equacionando (1.20) e (1.21) e usando a decomposição (1.11) do tensor dos esforços
juntamente com a identidade Tr (−pI∇v) = −p∇·v, obtemos uma equação para entropia
 
∂s
ρT + v · ∇s = Tr (σ ′ ∇v) +∇ · (κ∇T ) . (1.22)
∂t
16 1. Algumas Considerações Gerais

Para um fluido ideal, σ ′ ≡ κ ≡ 0, esta equação se reduz a


∂s
+ v · ∇s = 0 (1.23)
∂t
que expressa a conservação de entropia ao longo do movimento.
2
Equações do Movimento

As leis de conservação satisfeitas por um fluido foram examinadas de maneira bastante


ampla e com algumas hipóteses sobre a forma do tensor de esforço correspondente. Dedu-
zimos como conseqüência destas leis várias equações que descrevem a evolução temporal
das funções de estado. Estamos em posição agora de ampliar, em vários aspectos, o en-
tendimento do movimento de um fluido.

2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contı́nuo


Definição 2.1 Uma trajetória {φ(t; x0 ), t ≥ 0} de um ponto do fluido em movimento
é uma curva em Ω ⊂ R3 parametrizada por t ≥ 0 cuja tangente à curva no ponto
x = φ(t; x0 ) coincidente com a velocidade v(t, x) do fluido:

φ̇(t; x0 ) = v(t, φ(t; x0 ))

com a condição inicial


φ(0; x0 ) = x0 .
Exemplo 2.2 1. As trajetórias do campo estacionário v(x) = (ax2 , −ax1 , 0), cujo
retrato pode ser visto na Figura 2.1 são as integrais das equações

φ̇1 = aφ2
φ̇2 = −aφ1
φ̇3 = 0

com φ(0) = x0 variando sobre uma região Ω0 . Escrevendo estas equações na forma
vetorial,  
0 a 0  
A 0
φ̇ =  −a 0 0 φ = φ = Bφ (2.1)
0 0
0 0 0
18 2. Equações do Movimento

0.5

-0.5

-1

-1 -0.5 0 0.5 1

FIGURE 2.1. Retrato do campo de velocidades v

e tendo em vista a propriedade


 2   
2 A 0 2 I 0
B = = −a
0 0 0 0
e consequentemente,
B 2n+1 = (−1)n a2n B
 
2n n 2n I 0
B = (−1) a
0 0
para n = 0, 1, 2, . . . , a solução deste sistema pode ser obtida pela série formal em
potências
φ = exp (tB) x0

X tk k
= B x0
k!
k=0
     
0 0 I 0 1 A 0
= + cos at + sin at x0
0 1 0 0 a 0 0
 
cos at sin at 0
=  − sin at cos at 0  x0
0 0 1
= Re3 (−at)x0
2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contı́nuo 19

com Re(θ) a matriz de rotação por um ângulo θ em torno do eixo e. Escrevendo a


condição inicial em coordenadas esféricas

x0 = (r sin θ cos ϕ, r sin θ sin ϕ, r cos θ)

temos
x = φ(t; x0 ) = (r sin θ cos(ϕ − at), r sin θ sin(ϕ − at), r cos θ)
e qualquer região Ω0 no instante t = 0 move, acompanhando o campo de velocidade
até a região Ωt no instante t, em rotação no sentido horário de um ângulo at em
torno do vetor e3 sobre o eixo 3.

2. Considere as trajetórias do campo vetorial v(t, x) = (ax2 , −ax1 + bt, 0) . Devemos


para este problema acrescentar à equação (2.1) um termo não homogêneo

φ̇ − Bφ = b(t)

onde b = (0, bt, 0). A solução é dada pela fórmula da variação das constantes
Z t
x = exp (tB) x0 + exp ((t − s)B) b(s)ds
0
  
cos at sin at 0 x0,1
=  − sin at cos at 0   x0,2 
0 0 1 x0,3
  
Z t cos a(t − s) sin a(t − s) 0 0
+b  − sin a(t − s) cos a(t − s) 0   s  ds
0 0 0 1 0
   
x0,1 cos at + x0,2 sin at at − sin at
b 
=  x0,2 cos at − x0,1 sin at  + 2 1 − cos at 
a
x0,3 0
2
 
x0,1 cos at + (x0,2 − b/a ) sin at + bt/a
=  (x0,2 − b/a2 ) cos at − x0,1 sin at + b/a2 
x0,3

A região Ωt move, igualmente, em rotação no sentido horário de um ângulo at em


torno de um vetor e3 (t), paralelo ao eixo 3, porém se deslocando linearmente no
bt b
tempo com o ponto ( , 2 , 0). Uma trajetória descreve uma ciclóide de raio b/a2 .
a a
3. As trajetórias do campo v(t, x) = a(t) (x, −y.0) para uma função a(t) não–negativa
satisfaz as equações

φ̇1 = a(t)φ1
φ̇2 = −a(t)φ2
φ̇3 = 0
20 2. Equações do Movimento

com φ(0; x0 ) = x0 , cuja solução é


Z t 
x1 = φ1 (t; x0 ) = x0,1 exp a(s)ds
0
 Z t 
x2 = φ2 (t; x0 ) = x0,2 exp − a(s)ds
0
x3 = φ3 (t; x0 ) = x0,3 .
Z t
Note que A(t) = a(s)ds é monotona não–decrescente, por hipótese. As tra-
0
jetórias satisfazem
x1 x2 = x0,1 x0,2
e, potanto, são hipérboles, independentemente da função A(t), que governa com que
rapidez as percorre.

0.5

-0.5

-1
-1 -0.5 0 0.5 1

FIGURE 2.2. Retrato do campo vetorial v

A noção de trajetória permite ser um pouco mais preciso sobre a regularidade do


movimento do fluido. Para isso, vamos considerar o fluxo FΩ0 de trajetórias com o
ponto de partida x0 variando sobre um conjunto Ω0 ⊂ Ω.
Regularidade. O movimento do fluido é regular se as seguintes propriedades forem
satisfeitas:
2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contı́nuo 21

1. A trajetória φ(t; x0 ) é continuamente diferenciável como função de t e x0 .

2. O mapa Φt : Ω0 −→ Ωt

x0 7→ Φt (x0 ) = x = φ(t; x0 ) (2.2)

que atribui a cada ponto x0 ∈ Ω0 um ponto x ∈ Ωt com t ≥ 0 fixo, é uma bijeção


(injetivo e sobrejetivo) e, portanto, Φ−1
t existe.

3. Φ−1
t : Ωt −→ Ω0 é uma mapeamento diferenciável.

Estas hipóteses garantem que as operações do cálculo feitas até então envolvendo de-
rivadas e integrais sejam legı́timas. Ítem 3, além disso, evita que a matriz derivada de Φt
se anule, devido a relação
−1
∂Φ−1

t ∂Φt
=
∂x ∂x0
obtida pela diferenciação de Φ−1
t ◦ Φt (x0 ) = x0 . Mas adiante será necessário enfraquecer
estas hipóteses, permitindo que as trajetórias φ(t; x0 ) sejam seccionalmente diferenciáveis
afim de ser possı́vel tratar ondas de choque.
Se f : R+ ×Ω −→ R é uma função diferenciável, a derivada total de f sobre a trajetória
é, de acordo com as regras do cálculo para derivada de uma função composta,

d ∂f
f (t, φ(t; x0 )) = (t, φ(t; x0 )) + φ̇(t; x0 ) · ∇f (t, φ(t; x0 ))
dt ∂t

com o vetor tangente φ̇(t; x) à trajetória no ponto x = φ(t; x0 ) coincidente com a


velocidade v(t, x) do fluido neste ponto.

Definição 2.3
Df ∂f
= + v · ∇f
Dt ∂t
é denominada a derivada material (ou derivada convectiva) de uma função f no ponto
(t, x) ∈ R+ × Ω.

Demonstraremos em seguida uma relação envolvendo a derivada material conhecida por


teorema do transporte. Por intermédio da seguinte proposição várias manipulações
que fizemos na dedução das equações do movimento podem ser generalizadas e justificadas
apropriadamente.

Proposição 2.4 Seja f : R+ × Ω −→ R uma função diferenciável, Ω0 ⊂ Ω uma região


regular e Ωt = Φt (Ω0 ) a região formada pelo fluxo das trajetórias φ(t; x0 ) partindo dos
pontos x0 ∈ Ω0 no instante t. Então

d Df
Z Z
3
ρ(t, x) f (t, x) d x = ρ(t, x) (t, x) d3 x (2.3)
dt Ωt Ωt Dt
22 2. Equações do Movimento

Segue da equação (1.4) e Proposição 2.4 com f (t, x) = e · v(t, x), onde e um vetor
qualquer,
Dv
Z Z
3
ρ(t, x) e · (t, x) d x = e · (ρg + ∇ · σ) d3 x .
Ωt Dt Ωt

Como t ≥ 0, Ω0 e e são arbitrários, reobtemos a primeira equação cardinal de movimento


de um fluido
Dv
ρ = ρg + ∇ · σ .
Dt
As outras equações podem ser facilmente derivadas por esta proposição.
Prova. O Jacobiano
∂Φt
J(t, x) =

∂x
do mapeamento Φt : Ω0 −→ Ωt , dado por (2.2) é, pelas hipóteses de regularidade do
fluxo, não nulo. É, mais precisamente positivo pois se negativo fosse haveria mudança de
orientação em Ωt (mão direita para mão esquerda com respeito aos eixos de referência)
durante o movimento do fluido. Fazendo a mudança de variável x = φ(t; x0 ) no lado
esquerdo de (2.3), resulta em

d
Z
ρ(t, φ(t; x0 )) f (t, φ(t; x0 ))J(t, x0 )d3 x0
dt Ω0
d
Z
= ρ(t, φ(t; x0 )) f (t, φ(t; x0 ))J(t, x0 )d3 x0
Ω dt
Z 0 
d ∂J
= (ρf ) (t, φ(t; x0 )) J(t, x0 ) + (ρf ) (t, φ(t; x0 )) (t, x0 ) d3 x0 (2.4)
Ω0 dt ∂t

onde na segunda linha a troca de ordem entre a derivada e a integração é permitida


pelas hipóteses de regularidade. Note que não há mais dependência em t na região de
integração. Para o primeiro termo do integrando, temos

d D (ρf )
(ρf ) (t, φ(t; x0 )) = (t, φ(t; x0 )) (2.5)
dt Dt
por definição de derivada material.
O outro termo em (2.4) é controlado por um lema da Álgebra Linear. O seguinte
resultado é a versão diferencial da relação (1.3). Para efeito de comparação, retomamos
a notação lá empregada fazendo a substituição x0 → x e x → x′ .

Lema 2.5
∂J
(t, x0 ) = ∇ · v (t, φ(t; x0 )) J (t, x0 )
∂t
Prova do Lema. Escrevemos a matriz jacobiana em termos dos vetores de suas linhas
 
∇Φt,1
∂Φt
=  ∇Φt,2 
∂x0
∇Φt,3
2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contı́nuo 23

onde Φt = (Φt,1 , Φt,2 , Φt,3 ) com Φt,i (x0 ) = φi (t; x0 ) e


 
∂φi (t; x0 ) ∂φi (t; x0 ) ∂φi (t; x0 )
∇Φt,i = , ,
∂x0,1 ∂x0,2 ∂x0,3
é o gradiente de Φt,i com respeito a variável x0 . Devido a multilinearidade do determi-
nante, temos
∂ ∇Φt,1 ∇Φt,1
     
∂J ∇Φt,1

(t, x0 ) = det  ∂t∇Φ + det  ∇Φt,2  + det 
∇Φt,2  (2.6)
    
∂t ∂t ∂
t,2
 
∇Φt,3 ∇Φt,3 ∇Φt,3
∂t
onde, pela definição de velocidade φ̇ (t; x0 ) = v (t, φ(t; x0 )) = v (t, x),
3
∂ X ∂vi
∇Φt,i = ∇φ̇i (t, x0 ) = ∇vi (t, φ(t; x0 )) = ∇φj (t; x0 ) (t, φ(t; x0 )) . (2.7)
∂t j=1
∂xj

Exercı́cio 2.6 Seja A = [aij ] uma matriz n × n cujas entradas aij = aij (t) são funções
diferenciáveis e escreva  
A1
A =  ... 
 
An
onde Ai = (ai1 · · · ain ) denota a i–ésima linha da matriz. Use a definição de determinante
X
det A = (−1)s(π) a1π1 a2π2 · · · anπn
π
 
1 2 ··· n
onde a soma percorre todas as permutações π = , para confirmar a
π1 π2 · · · πn
relação (2.6):
A1
 
 .. 
n  . 
d X
det A =  Ȧi 
 
dt  . 
i=1  . 
.
An
Continuando, cada termo em (2.6) pode ser desenvolvido como

     
∇Φt,1 3 ∇Φt,j ∇Φt,1
∂v1 ∂v1
det  ∂t∇Φ
X
= det  ∇Φt,2  = det  ∇Φt,2  (2.8)
 
∂x ∂x
t,2

j 1
∇Φt,3 j=1 ∇Φt,3 ∇Φt,3

devido a linearidade do determinante com respeito cada uma de suas linhas (primeira
igualdade) e ao determinate de uma matriz com duas linhas iguais ser igual a zero (se-
gunda igualdade). Substituindo (2.8) para cada uma das componentes em (2.8), resulta
 
∇Φt,1
∂J
(t, x0 ) = ∇ · v (t, φ(t; x0 )) det  ∇Φt,2 
∂t
∇Φt,3
24 2. Equações do Movimento

e a prova do lema fica concluı́da pela definição de J(t, x0 ).


2
Substituindo (2.5) e Lema 2.5 na equação (2.4) retornando, em seguida, às variáveis
originais, resulta

d
Z
ρ(t, x) f (t, x) d3 x
dt Ωt
Z  
D (ρf )
= (t, φ(t; x0 )) + (ρf ) (t, φ(t; x0 )) ∇ · v (t, φ(t; x0 )) J(t, x0 )d3 x0
Ω Dt
Z 0 
D (ρf )
= (t, x) + (ρf ) (t, x) ∇ · v (t, x) d3 x
Ωt Dt

de onde se conclui a assertiva da proposição juntamente com

D (ρf ) Df Dρ
= ρ + f
Dt Dt Dt 
Df ∂ρ
= ρ + + ∇ · (ρv) − ρ∇ · v f
Dt ∂t
Df
= ρ − ρf ∇ · v
Dt

pela equação da continuidade.


2

Observação 2.7 A equação da continuidade pode ser deduzida do Lema 2.5 apenas:

 
d d ∂J
Z Z
3
ρ(t, x)d x = ρ(t, φ(t; x0 )) J(t, x0 ) + ρ(t, φ(t; x0 )) (t, x0 ) d3 x0
dt Ωt Ω dt ∂t
Z 0 

= (t, φ(t; x0 )) + ρ(t, φ(t; x0 ))∇ · v(t, φ(t; x0 )) J(t, x0 )d3 x0
Ω Dt
Z 0 
∂ρ
= (t, x) + ∇ · (ρv) (t, x) d3 x . (2.9)
Ωt ∂t

Ao passo que o Teorema 2.4 é conseqüência do Lema 2.5 juntamente com a equação da
continuidade.

Um fluido é incompressı́vel se o volume

Z
V (t) = d 3 x = V0
Ωt
2.2 Movimento de um fluido Ideal 25

de uma região Ωt se deslocando com o fluido é constante no decorrer do tempo. Uma


implicação do Lema 2.5 sobre esta definição é a seguinte. Temos

d
Z
0 = d3 x
dt Ωt

Z
= J(t, x0 ) d3 x0
∂t
ZΩ0
= ∇ · v (t, φ(t; x0 )) J (t, x0 ) d3 x0
ZΩ0
= ∇ · v (t, x) d3 x
Ωt

Como t ≥ 0 e Ω0 são arbitrários e o movimento é regular por hipótese, concluı́mos o


seguinte

Critério 2.8 Um fluido é incompressı́vel se e somente se a equação

∇·v =0

for satisfeita para todo (t, x) ∈ R × Ω. Ou, equivalentemente, se e somente se

J (t, x) ≡ 1 .


Usando a equação da continuidade na forma +ρ∇·v = 0, o Critério 2.8 e o fato que
Dt
ρ > 0 , um fluido é incompressı́vel se, e somente se, a densidade de massa for constante
ao longo do movimento

=0.
Dt

2.2 Movimento de um fluido Ideal


A conservação de energia fornece a última equação necessária para determinar o movi-
mento do fluido. Nesta seção abordaremos as equações do movimento em duas situações
opostas: para um fluido ideal incompressı́vel (que além da entropia também a energia in-
terna U(t, Ωt ) se mantém constante igual a U0 ao longo do movimento) e para um fluido
ideal isentrópico.
Para um fluido ideal a conservação de energia se reduz a (veja (1.17))

dK dU
+ = WΩ + WΓ (2.10)
dt dt
com o integrando de WΓ dado por v · σn = −pv · n. Proposição 2.4 e a equação de Euler
(1.10), implicam

dK d 1 2 3 Dv 3
Z Z Z
= ρv d x = ρv · d x = WΩ − v · ∇p d3 x . (2.11)
dt dt Ωt 2 Ωt Dt Ωt
26 2. Equações do Movimento

Note que esta expressão coincide com (1.19) para um fluido ideal porém aqui a derivamos
mais brevemente.
Equação (2.11) é satisfeita inclusive quando Ω0 = Ωt = Ω é a região onde o fluido
em movimento está inteiramente contido. Como o fluido não pode atravessar a fronteira
Γ = ∂Ω de Ω, a componente normal de v sobre a superfı́cie deve se anular:
n · v|Γ = 0
com n o versor normal à Γ. Conseqüentemente,
Z
WΓ = − pv · n = 0
Γ

e as forças de coesão atuando sobre Ω através de sua borda Γ = ∂Ω não exercem trabalho
por unidade de tempo sobre a fronteira do fluido.
Por outro lado, se Ω0 é uma região regular arbitrária do fluido, integrando a integral
do lado direito de (2.11) por partes aplicando, em seguida, o teorema de Green, temos
Z Z Z
3 3
v · ∇p d x = ∇ · (pv) d x − p ∇ · v d3 x
Ωt
ZΩt Z Ωt
= pv · n dS − p ∇ · v d3 x
Γt Ωt
Z
= WΓ − p ∇ · v d3 x
Ωt

de onde se conclui, juntamente com (2.10) e (2.11),


dU
Z
=− p ∇ · v d3 x = 0 , (2.12)
dt Ωt

devido a condição ∇ · v = 0, e a energia interna U(t, Ωt ) = U0 de um fluido ideal


incompressı́vel é uma constante de movimento.
O movimento de um fluido ideal incompressı́vel é descrito pelo seguinte problema
de valor inicial e de fronteira (PVIF):
Dv
ρ = −∇p + ρg
Dt

= 0
Dt
∇·v = 0 (2.13)
para t > 0 e x ∈ Ω, sujeita a condição de fronteira
n · v|Γ = 0 , t>0
e condições iniciais
ρ(0, x) = ρ0 (x)
p(0, x) = p0 (x)
v(0, x) = v 0 (x) .
2.2 Movimento de um fluido Ideal 27

Note que temos 5 equações para 5 incógnitas (ρ, p, v1 , v2 , v3 ). Devemos ainda impor uma
condição de fronteira sobre a pressão como conseqüência da continuidade de σn na fron-
teira. Abordaremos esta questão mais adiante.
Observação 2.9 Um fluido incompressı́vel é dito ser homogêneo se ρ(t, x) = ρ0 . A
maioria dos lı́quidos podem ser tratados como fluidos incompressı́veis homogêneos.
Equação (2.12), definição de energia interna (1.14) e Proposição 2.4, implicam
Z  

ρ + ∇ · v p d3 x = 0
Ωt Dt

que devido a t ≥ 0 e Ω0 serem arbitrários e o movimento ser regular, reduz a



ρ +∇·v p =0 . (2.14)
Dt

Em um fluido ideal incompressı́vel a energia se conserva ao longo do movimento, =
Dt
0. Em um fluido ideal compressı́vel podemos assumir que a dependência nas variáveis t
e x da energia interna seja através da função densidade de massa ρ: ε(t, x) = ε(ρ(t, x)).
Pela relação termodinâmica (1.15) esta hipótese significa entropia constante.
Definição 2.10 O movimento de um fluido é dito ser isentrópico se

s(t, x) = s0

for satisfeita para todo t ≥ 0 e x ∈ Ω.


Observe que para um fluido ideal, devido a (1.23), se a entropia é constante no instante
inicial s(0, x) = s0 , temos
∂s
= −v · ∇s = 0
∂t
e a entropia permanecerá constante para t > 0. Devido esta hipótese, temos
Dε Dρ
= ε′ (ρ) = −ε′ (ρ)ρ∇ · v
Dt Dt
pela equação da continuidade, que juntamente com (2.14) resulta

p(ρ) = ρ2 ε′ (ρ)

A função energia é, dessa maneira, obtida por integração da equação


 
1 1
dε = p 2 dρ = −p d
ρ ρ
Z 1/ρ
ε(ρ) = ε0 − q(υ) dυ ′
1/ρ0

com a pressão q(υ) = p(1/υ) escrita como função do volume especı́fico υ = 1/ρ.
28 2. Equações do Movimento

As equações de Euler para um fluido ideal isentrópico ficam:


Dv
= −∇h + g
Dt

= −ρ∇ · v
Dt
para t > 0 e x ∈ Ω, sujeita a condição de fronteira

n·v =0 , t>0

em Γ = ∂Ω e condições iniciais

ρ(0, x) = ρ0 (x)
v(0, x) = v 0 (x) .

Aqui, a entalpia por unidade de massa h = ε + p/ρ satisfaz a relação dh = dp/ρ devido
a isentropia: ds = 0 (veja as equações que seguem a (1.15)).
Observação 2.11 Para que o problema de valor inicial e fronteira de um fluido isen-
trópico seja bem posto, devemos ter p′ (ρ) > 0, compatı́vel com nossa experiência sobre
o aumento da pressão com o decréscimo do volume especı́fico 1/ρ. Boa parte dos gases
podem ser considerados como fluidos isentrópicos, com

p (ρ) = Aργ

com A e γ constantes e γ ≥ 1. Para um gás ideal A = RT , γ = 1 e h = ε + RT =


RT ln ρ/ρ0 .
Observação 2.12 A condição de incompressibilidade é de certa forma oposta a condição
de isentropia. Por exempo, se um fluido é incompressı́vel homogêneo ρ(t, x) = ρ0 , então
p = p(ρ) não pode ser inversı́vel como função de ρ. Entretanto, ρ = ρ0 pode ser visto
como um caso limite no qual p′ (ρ) → ∞.
Exemplo 2.13 Considere um fluido incompressı́vel homogêneo em um canal ao longo
do eixo 1 cuja fronteira Γ é formada pelos planos x2 = 0 e x2 = a. Devido a geometria,
o problema pode ser considerado em duas dimensões espaciais x = (x1 , x2 ).
Suponha ainda que a pressão α na seção x1 = 0 seja maior que a pressão β na seção
x1 = L, de forma que o fluido seja empurrado ao longo do canal. Temos

v(t, x1 , x2 ) = (v1 (t, x1 ), 0)


p(t, x1 , x2 ) = p(x1 )

As equações de Euler para este problema são:


∂v1
ρ0 = −p′
∂t
∂v1
= 0 (2.15)
∂x1
2.3 Campos Helicoidais 29

para t > 0 e x1 ∈ R. Note que a condição de fronteira v · n|Γ = v2 = 0 é satisfeita


identicamente não somente em Γ mas em toda região Ω. Derivando a primeira equação
com respeito a x1 e usando a segunda (∇ · v = 0), temos

∂ 2 u1 ∂ 2 u1
p′′ = −ρ0 = −ρ0 =0
∂x∂t ∂t∂x
cuja solução é
β−α
p(x) = α + x.
L
Substituindo na primeira equação, a solução geral de
∂v1 α−β
ρ0 =
∂t L
é dada por
β−α
v1 (t, x1 ) = v1,0 (x1 ) + t
ρ0 L
com v1,0 (x1 ) = v1,0 uma constante devido a equação (2.15).
A velocidade do fluido em um canal, sujeita um gradiente de pressão constante, cresce
linearmente com o tempo. Esta patologia é devido ao fato das equações de Euler desprezar
os efeitos da viscosidade. Veremos que a viscosidade tem o papel de freiar o escoamento
próximo à fronteira e isso impede o crescimento arbitrário da velocidade, atingindo um
regime estacionário.

2.3 Campos Helicoidais


O movimento de um fluido é estacionário se a velocidade em cada ponto for indepen-
dente do tempo
v(t, x) = v(x) . (2.16)
Dizemos que o movimento de um fluido é rı́gido se a região Ωt , obtida seguindo as
trajetórias de cada ponto x0 de uma região Ω0 arbitrária do fluido em t = 0, mantiver a
sua forma original para t > 0. Faremos a seguir uma breve exposição sobre as propriedades
do campo vetorial de velocidades de um fluido em movimento rı́gido. Note que o campo
de velocidade nos Exemplos 2.2 1 e 2 corresponde a um fluido em movimento rı́gido,
sendo o primeiro também estacionário.
Proposição 2.14 A condição necessária e suficiente para que v = v(t, x), x ∈ Ωt , seja
um campo de velocidades de um fluido em movimento rı́gido é

(x − x′ ) · (v(t, x) − v(t, x′ )) = 0 (2.17)

para cada x e x′ em Ωt e para cada t > 0. Alternativamente, v = v(t, x) descreve um


movimento rı́gido de um fluido, se e somente se, para cada instante t, existir um vetor
b = b(t) e uma matriz B = B(t) real antisimétrica (B T = −B) tais que

v(t, x) = Bx + b (2.18)
30 2. Equações do Movimento

onde  
0 −ω3 ω2
B =  ω3 0 −ω1  .
−ω2 ω1 0
O campo vetorial pode também ser escrito com

v(t, x) = ω × x + b (2.19)

com ω = (ω1 , ω2 , ω3 ) um vetor de R3 .


Prova. Sejam x0 e x′0 dois pontos em Ω0 e x = φ(t, x0 ) e x′ = φ(t, x′0 ) suas imagens
por Φt em Ωt . Temos
2 2
|x − x′ | = |φ (t; x0 ) − φ (t; x′0 )|
que, em vista da hipótese sobre a rigidez do movimento, mantém–se constante para t > 0.
Portanto
d 2
0 = |x − x′ |
dt  
′ ′
= 2 (φ (t; x0 ) − φ (t; x0 )) · φ̇ (t; x0 ) − φ̇ (t; x0 )
= 2 (x − x′ ) · (v (t; x) − v (t; x′ )) .

Por outro lado, pelas mesmas equações percorridas no sentido inverso, se (2.17) for sa-
tisfeita para qualquer dois pontos x e x′ em Ωt , então a distância entre estes dois pontos
não é alterada ao longo do tempo e o movimento é rı́gido.
Vamos agora mostrar que a condição (2.17) é equivalente a (2.18).
Primeiramente, (2.18) e (2.19) são equivalentes se

ω × x = Bx (2.20)

para todo x ∈ Ωt . O conjunto das matrizes reais antisimétricas

A = B : R3 −→ R3 : B T = B


forma um espaço vetorial: B = α1 B1 + α2 B2 ∈ A se B1 , B2 ∈ A e α1 e α2 reais, isomorfo


a R3 . De fato, há apenas três entradas independentes pois B têm diagonal nula e as
entradas na parte triangular superior e inferior diferem por um sinal. Podemos então
estabelecer uma relação 1 para 1 entre vetores ω = (ω1 , ω2 , ω3 ) ∈ R3 e matrizes
 
0 −ω3 ω2
B =  ω3 0 −ω1 
−ω2 ω1 0

através da relação (2.20). Note que o lado esquerdo de (2.20)



e1 e2 e3

ω × x = ω1 ω2 ω3
x1 x2 x3
= (ω2 x3 − ω3 x2 )e1 + (ω3 x1 − ω1 x3 )e2 + (ω1 x2 − ω2 x1 )e3 (2.21)
2.3 Campos Helicoidais 31

coincide com o lado direito desta equação:


    
0 −ω3 ω2 x1 −ω3 x2 + ω2 x3
 ω3 0 −ω1   x2  =  ω3 x1 − ω1 x3 
−ω2 ω1 0 x3 −ω2 x1 + ω1 x2
para qualquer x ∈ Ωt .
Basta então mostrar que a condição (2.17) é equivalente a (2.19). Supondo (2.19),
temos
v(t, x) − v(t, x′ ) = ω × (x − x′ )
e, consequentemente,
(x − x′ ) · (v(t, x) − v(t, x′ )) = (x − x′ ) · ω × (x − x′ ) = ω · (x − x′ ) × (x − x′ ) = 0
pela definição (2.21) de produto vetorial.
Para a implição no outro sentido, seja v(t, x) tal que (2.17) é satisfeita para todo x e

x em Ωt . Suponha, sem perda de generalidade, que 0 ∈ Ωt e v(t, 0) = b. Então,
ṽ(t, x) = v(t, x) − v(t, 0) = v(t, x) − b
satisfaz
x · ṽ(t, x) = 0 (2.22)
para todo x ∈ Ωt , por hipótese. Temos, também por hipótese,
(x − ei ) · (v(t, x) − v(t, ei )) , ∀x ∈ Ωt
que, escrita como
(x − ei ) · (ṽ(t, x) − ṽ(t, ei )) , ∀x ∈ Ωt
juntamente com (2.22), implica
ei · ṽ(t, x) = −x · ṽ(t, ei ), ∀x ∈ Ωt , i = 1, 2 e 3 . (2.23)
Expandindo ṽ(t, x) na base Cartesiana canônica, temos
3
X
ṽ(t, x) = ei · ṽ(t, x) ei
i=1
3
X
= − x · ṽ(t, ei ) ei
i=1
3
X
= − ei ṽ(t, ei )T x
i=1

onde y T denota a matriz 1 × 3 formada pelas componentes de y, de onde se conclui que


 
X3 v1 (t, e1 ) v2 (t, e1 ) v3 (t, e1 )
T
B=− ei ṽ(t, ei ) = − v1 (t, e2 ) v2 (t, e2 )
 v3 (t, e2 ) 
i=1 v1 (t, e3 ) v2 (t, e3 ) v3 (t, e3 )
é antisimétrica: vi (t, ei ) = 0 devido a (2.22) e vi (t, ej ) = −vj (t, ei ) por (2.23).
2
32 2. Equações do Movimento

Observação 2.15 Existe uma única escolha de b = b(t) e ω = ω(t) para cada campo
vetorial de velocidades v(t, x) de um fluido em movimento rı́gido. Note que

ω × x + b = ω ′ × x + b′ , ∀x ∈ Ωt

implica b = b′ se x = 0 e, consequentemente, (ω − ω ′ ) × x = 0 é válido para todo x


somente se ω = ω ′ .

Definição 2.16 Denomina–se campo vetorial helicoidal (CVH) o campo vetorial de


velocidades v(t, x) de um fluido em Ωt em movimento rı́gido .

Equivalentemente, v(t, x) é um CVH se puder ser escrito na forma (2.19) para algum
vetor b = b(t) de translação e rotação em torno de ω = ω(t). b = v(t, x̄) é o momento do
campo helicoidal em algum ponto x̄ de referência e ω é denominado resultante do campo
vetorial helicoidal v. O CVH v(t, x) é inteiramente caracterizado pelo par (b(t), ω(t)):

v(t, x) = v(t, x̄) + ω(t) × (x − x̄) , ∀x ∈ Ωt (2.24)

Note que, para t fixo, v(t, x) é constante ao longo do eixo de rotação ω(t) passando por
x̄.
Os dois exemplos mais simples de campos helicoidais são: (i) campo uniforme ω = 0
(v(t, x) = v(t, x′ ) , ∀x, x′ ∈ Ωt ) e (ii) campo torque v(t, x) · ω(t) = 0 (como nos
Exemplos 2.2.1 e 2.). De um modo geral, se o CVH não for uniforme, então existe um
único eixo ao longo do qual v(t, x) é paralelo a ω(t). Para um campo torque, v(t, x) = 0
ao longo do eixo passando por x̄ na direção de ω(t).
Outras propriedades do campo vetorial helicoidal são:

1. Os conjunto dos CVH forma um espaço vetorial (isomorfo a R6 ): se v 1 (t, x) e


v 2 (t, x) são dois campos vetoriais helicoidais e α1 e α2 são escalares, então

v(t, x) = α1 v 1 (t, x) + α2 v 2 (t, x)


= α1 (ω 1 (t) × x + b1 (t)) + α2 (ω 2 (t) × x + b2 (t))
= (α1 ω 1 (t) + α2 ω 2 (t)) × x + (α1 b1 (t) + α2 b2 (t))
≡ ω(t) × x + b(t)

2. Relação similar é satisfeita para derivada com respeito a t,

∂v
(t, x) = ω̇(t) × x + ḃ(t)
∂t

O centro de massa x̄(t, Ωt ) de uma região Ωt se deslocando com o fluido é definido por
R
xρ(t, x)d3 x
x̄(t, Ωt ) = RΩt
Ωt
ρ(t, x)d3 x

e é independente do sistema de referência adotado para descrever seu movimento.


2.3 Campos Helicoidais 33

O centro de massa não segue necessariamente uma trajetória de algum ponto do fluido
mas definimos sua velocidade e aceleração de maneira usual

d
v̄ (t, Ωt ) = x̄(t, Ωt )
dt
d2 d
ā (t, Ωt ) = 2
x̄(t, Ωt ) = v̄ (t, Ωt )
dt dt
Como a massa Z
m = m(t, Ωt ) = ρ(t, x)d3 x
Ωt

d
em Ωt é uma quantidade conservada pelo movimento: m(t, Ωt ) = 0 (veja (1.2)) temos,
dt
pela Proposição 2.4,

1 d
Z
v̄ (t, Ωt ) = xρ(t, x)d3 x
m dt Ωt
1 Dx
Z
ρ(t, x)d3 x
m Ωt Dt
Z  
1 ∂x
= + v · ∇x ρ(t, x)d3 x
m Ωt ∂t
1
Z
= v(t, x)ρ(t, x)d3 x (2.25)
m Ωt

e, analogamente,
1
Z
ā (t, Ωt ) = a(t, x)ρ(t, x)d3 x
m Ωt

onde  
Dv ∂v
a(t, x) = (t, x) = + v · ∇v (t, x) (2.26)
Dt ∂t

é a aceleração φ̈(t, x0 ) de um ponto x = φ(t, x0 ) do fluido em sua trajetória.


Estas expressões permitem entender um pouco melhor as equações do movimento do
fluido que derivamos no capı́tulo anterior. Primeiramente, notamos que tanto v̄ (t, Ωt )
como ā (t, Ωt ) definem um campo vetorial helicoidal. Para o primeiro, introduzimos a
quantidade de movimento linar e angular da região Ωt no instante t:
Z
P (t, Ωt ) = v(t, x)ρ(t, x)d3 x
ZΩt
L(t, x̄) = (x − x̄) × v(t, x)ρ(t, x)d3 x .
Ωt

Devido a equação (2.25), o momento linear satisfaz a relação

P (t, Ωt ) = m(t, Ωt )v̄ (t, Ωt )


34 2. Equações do Movimento

correspondente ao momento de uma partı́cula de massa igual a massa do fluido em Ωt ,


concentrada no centro de massa x̄, se deslocando com velocidade v̄. Em um ponto x′
qualquer, temos
L(t, x′ ) = L(t, x̄) + P (t) × (x′ − x̄)
Z
= ((x − x̄) × v(t, x) + v(t, x) × (x′ − x̄)) ρ(t, x)d3 x
Z Ωt
= (x − x′ ) × v(t, x)ρ(t, x)d3 x
Ωt

pela propriedades a × b = −b × a do produto vetorial. Logo L é um campo vetorial


helicoidal.
Analogamente,
d
Z
Ṗ (t) ≡ P (t, Ωt ) = a(t, x)ρ(t, x)d3 x
dt Ωt
Z
L̇(t, x̄) = (x − x̄) × a(t, x)ρ(t, x)d3 x
Ωt

definem um campo vetorial helicoidal associado com o momento dinâmico (torque)


L̇(t, x′ ) = L̇(t, x̄) + Ṗ (t) × (x′ − x̄)
Z
= (x − x′ ) × a(t, x)ρ(t, x)d3 x .
Ωt

Na Seção 1.3 sobre a conservação do momento vimos que as forças que atuam sobre a
região Ωt do fluido são de duas naturezas: as forças externas F Ωt (ação da gravidade, por
exemplo) e a força que a região complementar a Ωt exerce sobre Ωt através da superfı́cie
F Γt . Usando o teorema de Green, as duas contribuições podem ser escritas como
Z
F (t, Ωt ) = F Ωt + F Γt = f (t, x)d3 x
Ωt

onde
f (t, x) = ρ(t, x)g + ∇ · σ(t, x)
A identificação do campo helicoidal de momento dinâmico L̇(t, x′ ) com o campo helicoidal
das forças, definido por
Z Z
′ ′ 3
ϕ(t, x ) = (x − x ) × f ext (t, x)d x + (x − x′ ) × f con (t, x)dS (2.27)
Ωt Γt

onde
f ext (t, x) = ρ(t, x)g
f con (t, x) = σn
são, respectivamente, a força externa e a força exercida sobre a superfı́cie Γt , reproduz
de uma só vez duas leis: a lei de conservação de momento linear
d
P (t, Ωt ) = F (t, Ωt )
dt
2.3 Campos Helicoidais 35

e de momento angular
d
Z Z
3
L(t, x̄) = (x − x̄) × f ext (t, x)d x + (x − x̄) × σndS (2.28)
dt Ωt Γt

Observe que em um sistema de referência inercial, na ausência de forças o centro de


massa x̄(t, Ωt ) se desloca em movimento retilı́neo uniforme, como por exemplo em um
fluido ideal a pressão constante.
Para aprofundar nosso entendimento da força no segundo termo de (2.27), faremos um
pequeno aparte.
Tensor das Tensões de Cauchy. Cauchy introduziu algumas hipóteses para modelar
a força de coesão exercida sobre uma região Ω do fluido pelo seu complemento Ω′ através
da fronteira comum Γ.
H1 A força de coesão é exercida por contato.
H2 Existe um vetor T = T (t, x; n) dependente de t do ponto x na superfı́cie Γ e da
normal n à superfı́cie no ponto tal que
f con (t, x) = T (t, x; n) .

H3 (t, x) 7−→ T (t, x; n) é uma função contı́nua.


Por intermédio destas hipóteses é possı́vel mostrar, equilibrando a força de contato
sobre o tetraedro
Th = x = (x1 , x2 , x3 ) ∈ R3 : x1 , x2 , x3 ≥ 0 e x1 + x2 + x3 ≤ h


no limite h → 0, que o tensor das tensões é um transformação linear atuando sobre a


normal n. Escolhendo uma base {e1 , e2 , e3 } para representá-la, temos
3
! 3
X X
T t, x; ni ei = σij (t, x)nj ei .
i=1 i,j=1

Este cálculo pode ser encontrado na maioria dos textos de mecânica dos fluidos e será
omitidos nestas notas. Daremos mais detalhes sobre o tensor σ na seção a seguir.
A equação (2.28) permite também concluir que o tensor das tensões σ é represen-
tado por uma matriz simétrica: σij = σji . Substituindo a equação cardinal (1.9) no lado
esquerdo de (2.28) aplicando, em seguida, o Teorema de Green, resulta
Z Z
3
0 = ((x − x̄) × (∇ · σ))i d x − ((x − x̄) × (σn))i dS
Ωt Γt
∂ 
Z Z X 
3
= ((x − x̄) × (∇ · σ))i d x − εijk (x − x̄)j σkl d3 x
Ωt Ωt j,k,l ∂xl
Z X
= − εijk σkj d3 x
Ωt j,k

1
Z X
= εijk (σjk − σkj ) d3 x
2 Ωt j,k
36 2. Equações do Movimento

válida para qualquer componente i, instante t e região Ω0 , de onde se conclui a afirma-


tiva.Na segunda linha usamos a definição
3
X
(a × b)i = εijk aj bk
j,k=1

com εijk o tensor totalmente antisimétrico:

ε123 = ε231 = ε312 = −ε213 = −ε132 = −ε321 = 1

e εijk = 0 se houver coincidência de algum par de ı́ndices. Na última igualdade, usamos


εijk (σjk + σkj ) /2 = 0 devido a antisimetria do tensor εijk pela troca de qualquer par de
ı́ndices.
Algumas vêzes é conveniente fixar o sistema de referência na região Ωt com a origem em
x̄(t, Ωt ). Neste sistema não–inercial atuam sobre Ωt forças adicionais devido a aceleração
ā (t, Ωt ) do centro de massa.
Representamos um ponto x do fluido, sua velocidade v e aceleração a, em uma base
{ē1 (t), ē2 (t), ē3 (t)} fixa em Ωt por
3
X
x = x̄ + Xi ēi
i=1
3  
X .
v = v̄ + Ẋi ēi + Xi ēi
i=1
3  
X .. .
a = ā + Ẍi ēi + Xi ēi + 2Ẋi ēi
i=1

onde X = (X1 , X2 , X3 ) são as coordenadas do ponto no sitema fixo em Ωt . Vamos


considerar o movimento rı́gido de um fluido. Neste caso Ẋi = Ẍi = 0 (velocidade e
.
aceleração relativa nulas) e existe ω ∈ R3 tal que ēi = ω × ēi . Logo,

v = v̄ + ω × (x − x̄)
X3
= v̄ + Xi ω × ēi
i=1
= v̄ + ω × X

e
3
X ..
a = ā + Xi ēi
i=1
3
X
= ā + Xi (ω̇ × ēi + ω × (ω × ēi ))
i=1
= ā + ω̇ × X + ω × (ω × X) (2.29)
2.3 Campos Helicoidais 37

Para uma aplicação deste formalismo vamos determinar o perfı́l da superfı́cie livre
de um fluido ideal, incompressı́vel e homogêneo, em um balde cilı́ndrico de raio R em
movimento circular uniforme, com velocidade angular ω = −ae3 , sob ação da gravidade.
Supondo que o movimento tenha atingido o regime estacionário, o campo de velocidades
é dado pelo Exemplo 2.2.1. As equações de Euler para este movimento são dadas por
(2.13). Temos que a única contribuição para aceleração no referencial que acompanha o
movimento do fluido
∂v
a= + v · ∇v = ω × (ω × X) (2.30)
∂t
é devido a força centrı́fuga, pois o centro de massa x̄ = 0 permanece imóvel e a velocidade
angular ω é constante.
Usando a identidade
a × (b × c) = (a · c) b = (a · b) c (2.31)
escrevemos o lado direito de (2.30) como
ω × (ω × X) = a2 (e3 × (e3 × X))
= a2 (X3 e3 − X)
= −a2 (X1 e1 + X2 e2 ) .
Note que obtemos o mesmo resultado se aplicarmos a derivada material D/Dt = ∂/∂t +
v · ∇ ao campo de velocidades do Exemplo 2.2.1:
 
Dv ∂ ∂
= a x2 − x1 (ax2 , −ax1 , 0)
Dt ∂x1 ∂x2
= −a2 (x1 , x2 , 0)
As equações de Euler
1
ω × (ω × X) = − ∇p − ge3
ρ
escritas em componentes
1 ∂p
= a2 X1
ρ ∂X1
1 ∂p
= a2 X2
ρ ∂X2
1 ∂p
= −g
ρ ∂X3
pode ser resolvida para p por separação de variáveis: p(X1 , X2 , X3 ) = P1 (X1 ) + P2 (X2 ) +
P3 (X3 ):
1
p(X1 , X2 , X3 ) = P0 + ρa2 X12 + X22 − ρgX3 .

2
Em coordenadas cilı́dricas
X1 = r cos θ
X2 = r sin θ
X3 = z
38 2. Equações do Movimento

temos
1
p(r, z) = p0 + ρa2 r 2 − ρg(z − z0 )
2
com a independência em θ devido a simetria do problema. Note que o campo vetorial do
Exemplo 2.2.1 satisfaz as condições de fronteira

v · n|Γ

sobre a superfı́cie lateral do cilı́ndro, pois


1
n = er = p (x1 , x2 , 0)
x21 + x22

é ortogonal a v. Também satisfaz a condição de fronteira na base inferior em z = 0. A


superfı́cie superior do fluido S = {(r, θ, z) : z = z(r) , 0 ≤ r ≤ a e 0 ≤ θ < 2π} está em
contato com a atmosféra a uma pressão p0 constante. Pela continuidade da pressão na
interface entre os dois fluidos (o que se encontra no balde e a atmosfera), temos

p(r, z(r)) = p0 , 0≤r≤a.

Concluı́mos a partir da solução que a superfı́cie S de contato do fluido com a atmosfera


satisfaz a equação de um parabolóide de revolução
1 2 2
a r = g(z(r) − z0 )
2
 
a 2
com o ponto mı́nimo e máximo, (rmin , zmin) = (0, z0 ) e (rmax , zmax ) = R, z0 + R ,
2g
na superfı́cie lateral do cilı́ndro.

2.4 Decomposição do Movimento


O propósito desta seção é decompor o movimento de um fluido na soma de uma translação
(rı́gida), uma deformação e uma rotação (rı́gida) em torno de um vetor ξ. Será necessário
introduzir algumas noções básicas antes de enunciá-la mais precisamente. Convém, porém,
enfatizar que esta decomposição é independente das caracterı́sticas do fluido bem como
de sua dinâmica, dizendo respeito apenas ao carater vetorial do campo de velocidades
v = v(t, x).
O mapa Φt , definido por (2.2) para um tempo t fixo, é denominado mapa de deformação
da região Ω0 no instante t e a matriz Jacobiana

∂Φt
F (t, x0 , x) :=
∂x0
tem um papel destacado no estudo das distorções locais de distâncias e ângulos.
Seja, como anteriormente, x0 e x′0 dois pontos em Ω0 e x = Φt (x0 ) e x′ = Φt (x′0 ) suas
imagens por Φt em Ωt . Se a distância entre os pontos for de ordem ε, isto é |e0 | = O(ε)
2.4 Decomposição do Movimento 39

onde e0 = x′0 − x0 , temos


e = x′ − x
= Φt (x′0 ) − x
∂Φt ′
= Φt (x0 ) + (x0 − x0 ) + O(ε2 ) − x
∂x0
= F e0 + O(ε2)
e, na ordem dominante,
ε
|e|2 = F e0 · F e0 = e0 · F T F e0 ≡ e0 · Ce0
onde C é uma matriz 3 × 3 real simétrica:
T
CT = F T F = F T F = C.
Considere um outro ponto x′′0 ∈ Ω0 , cuja diferença e′0 = x′′0 − x0 tenha norma de
ordem ε, e respectivas imagens x′′ = Φt (x′′0 ) e e′ = Φt (e′0 ). Tendo em vista que o ângulo
θ formado pelos vetores e e e′ satisfaz
e e′
cos θ = ·
|e| |e′ |
temos, analogamente,
ε
e · e′ = F e0 · F e′0 = e0 · F T F e′0
de onde se deduz que a matriz C mede também a variação de ângulos no movimento do
fluido.
Observação 2.17 1.
2. A matrix
C = C(x0 ) = F T F
além de ser real simétrica, é também positiva definida:
y · Cy = F y · F y = |F y|2 > 0,
é satisfeita para todos os vetores y 6= 0. Esta matriz é denominada matrix de
deformação à direita de Cauchy–Green e, de maneira análoga, a matriz de
deformação à esquerda é definida por B = F F T .
3. No caso de Ωt ser um deslocamento rı́gido de Ω0 , tanto as normas
|e| = |e0 |
|e′ | = |e′0 |
como o ângulo
e · e′ = e0 · Ce′0 = e0 · e′0 ,
de dois vetores quaisquer são preservados e, consequentemente,
C=I .
40 2. Equações do Movimento

4. Denotando por u = x − x0 o vetor deslocamento, a matriz Jacobinana é escrita


∂u
como F = I + e
∂x0
 T    T  T
∂u ∂u ∂u ∂u ∂u ∂u
C= I+ I+ =I+ + + .
∂x0 ∂x0 ∂x0 ∂x0 ∂x0 ∂x0

Estas observações sugerem a seguinte


Definição 2.18 A diferença da matriz C e a identidade mede o quanto a região Ωt é
deformada em seu movimento. Denominamos
1
X= (C − I)
2
e  T !
1 ∂u ∂u
D= +
2 ∂x0 ∂x0
respectivamente, tensor de deformação e tensor de deformação linearizado.
Considere agora a deformação de Ωt por um incremento de tempo da ordem δ pequeno.
Cada ponto x′ ∈ Ωt+δ , da forma

x′ = φ(t + δ; x0 )

pode ser atingido pela trajetória φ(δ; x) partindo de x ∈ Ωt por um tempo δ com
x = φ(t; x0 ). Denotando por
∂x′
F (t + δ, x, x′ ) =
∂x
a matriz Jacobiana desta transformação, temos

lim F (t + δ, x, x′ ) = F (t, x, x) = I . (2.32)


δ→0

Vamos mostrar que X é de fato responsável pela deformação do movimento. Pelas


definições, temos
 T !
dX 1 dC 1d T 1 dF dF
= = F F = F + FT
dt 2 dt 2 dt 2 dt dt

e tomando o limite δ → 0 nesta equação, tendo em vista (2.32),

d ∂x′

dF ∂ ′
∂v
lim = = φ̇(t + δ, x ) = (t, x)
δ→0 dt dt ∂x δ=0
∂x ∂x
δ=0

e expressão análoga para (dF/dt)T , conclui–se

dX
= D(t, x)
dt
2.4 Decomposição do Movimento 41

onde  T !
1 ∂v ∂v
D(t, x) := (t, x) + (t, x) (2.33)
2 ∂x ∂x
Como D é uma matriz simétrica, existem autovalores λ1 , λ2 e λ3 reais e autovetores
correspondentes f 1 , f 2 e f 3 mutualmente ortogonais tais que
dX
fi · f = λi |f i |2
dt i
Portanto, nestas direções a matriz de deformação expande ou contrai dependendo se λi
for maior ou menor que 0.
Podemos agora enunciar a seguinte
Proposição
√ 2.19 Seja v = v(t, x) um campo de velocidades e h um vetor com h =
h · h da ordem ε. Então,
1
v(t, x + h) = v(t, x) + D(t, x)h + ξ(t, x) × h + O(h2 ) (2.34)
2
onde D(t, x) e
ξ(t, x) = ∇ × v(t, x) (2.35)
são, respectivamente, o tensor de deformação (2.33) e o campo de vorticidade associados
a v(t, x).
Prova. Pelo teorema de Taylor,
∂v
v(t, x + h) = v(t, x) + (t, x)h + O(h2 ) .
∂x
Escrevendo a matriz Jacobiana como uma soma de duas matrizes
∂v
=D+S
∂x
onde D é a matriz simétrica de deformação (2.33) e
 T !
1 ∂v ∂v
S= − (2.36)
2 ∂x ∂x

a parte antisimétrica da matriz Jacobiana, a prova da proposição se reduz a representar


a matriz antisimétrica S por uma matriz da forma
 
0 −ξ3 ξ2
1
S =  ξ3 0 −ξ1  (2.37)
2
−ξ2 ξ1 0

para algum vetor ξ = (ξ1 , ξ2, ξ3 ) tal que


1
Sh = ξ × h (2.38)
2
42 2. Equações do Movimento

(veja (2.20) e equações a seguir). Pelo isomorfismo entre A e R3 esta representação é


única e, por comparação das duas expressões de S, (2.36) e (2.37), temos
∂v3 ∂v2
ξ1 = −
∂x2 ∂x3
∂v1 ∂v3
ξ2 = −
∂x3 ∂x1
∂v2 ∂v1
ξ3 = −
∂x1 ∂x2
de onde se conclui
e1 e2 e3

ξ = ∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3 = ∇ × v ,
v1 v2 v3
e a prova da proposição.
2
Observação 2.20 O movimento Ωt de uma região Ω0 do fluido é rı́gido se difere de Ω0
apenas por uma translação e uma rotação. O campo v(t, x) de velocidades neste caso é
um campo helicoidal e a decomposição na Proposição 2.19 é localmente da forma (2.24)
com ξ no lugar de ω (Dh = 0). Se o movimento é rı́gido o volume de Ωt é preservado e o
Jacobiano da transformação J(t, x0 ) = 1. O termo Dh na expressão (2.34) é responsável
pelas mudanças na forma de Ωt . Partindo do ponto inicial x′0 , um ponto x′ ∈ Ωt com x
fixo pode ser escrito como x′ = x + h(t). Então, por definição,
d (x + h)
= v(t, x + h)
dt
e movendo para um referencial fixo em Ωt com origem em x de tal forma que os termos
da expansão (2.34) até primeira ordem, com excessão do termo do tensor de deformação,
são todos nulos, resulta
dh
= Dh .
dt
A variação do volume de um paralelepı́pedo formado pelos eixos principais de D
3
X fi
h(t) = hi (t)
i=1
|f i |

é dada por (lembre que os eixos principais são ortogonais)


d
h1 h2 h3 = ḣ1 h2 h3 + h1 ḣ2 h3 + h1 h2 ḣ3
dt
= (λ1 + λ2 + λ3 ) h1 h2 h3
= TrD h1 h2 h3
= ∇ · v h1 h2 h3
como no Lema 2.5. Note que em um fluido incompressı́vel a soma dos autovalores é
nula, podendo haver direções contrativas e expansivas mantendo, porém, o volume do
paralelepı́pedo constante.
2.4 Decomposição do Movimento 43

Examinemos alguns exemplos de movimento.


Exemplo 2.21 1. O campo de vorticidade dos Exemplos 2.2.1 e 2 na Seção 2.1 é
constante igual a

e1 e2 e3

ξ = ∇ × v = ∂/∂x1
∂/∂x2 ∂/∂x3 = −2ae3

ax2 −ax1 + bt 0

e do Exemplo 2.2.3 é nulo.

2. O campo de vorticidade de um fluxo estacionário na direção e1 dado por

v(x) = (bx2 , 0, 0)

é igualmente constante na direção do eixo 3: ξ = −be3 . Mesmo mantendo a direção


constante, a variação da intensidade de v com respeito a x2 produz vórtices.

3. O tensor de deformação no Exemplo 2.2.3 é dado por


 
a(t) 0 0
D =  0 −a(t) 0 
0 0 0

O fluido expande a uma taxa a(t) na direção e1 e contrai com a mesma taxa na
direção e2 . Note que o movimento correspondente a este campo de velocidades é de
um fluido incompressı́vel (∇ · v = TrD = 0).
Tensor das Tensões de um fluido Newtoniano. σ deve ser uma função invariante
por mudanças de referênciais inerciais e por translações e rotações espaciais. O tensor de
deformação D(t, x) possui tais propriedades e não há outra quantidade que atenda todos
os requisitos necessários para compor o tensor das tensões. Logo,

σ = f (D)

Em um fluido viscoso Newtoniano, f é uma função linear dada por (1.11), isto é,
2
f (D) = [(ζ − η)TrD − p]I + 2ηD
3
com η e ζ positivos.
44 2. Equações do Movimento
3
Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Nesta capı́tulo serão considerados apenas fluidos ideais incompressı́veis homogêneos e


fluidos ideais isentrópicos. Em ambos os casos a força de contato por unidade de massa
1 1
f con = − ∇p
ρ ρ
pode ser escrito como um gradiente: −∇ (p/ρ0 ) para o fluido incompressı́vel e −∇h, com h
a entalpia, para um fluido isentrópico (veja Seção 2.2). Para simplificar a notação, vamos
denotar também pela letra h a função p/ρ0 e dependendo do contexto h assumirá um ou
outro significado. O propósito é estabelecer uma série de resultados clássicos envolvendo
o campo de vorticidade ξ = ∇ × v. Daremos em seguida várias aplicações.

3.1 Equação da Vorticidade


Iniciaremos escrevendo a aceleração (2.26) de um ponto do fluido em uma forma mais
apropriada. Para isso, as passagens da demonstração da Proposição 2.19 são de grande
utilidade. Substituindo em (2.38) h por v, temos
 T !
∂v ∂v
(∇ × v) × v = − v
∂x ∂x
1
= v · ∇v − ∇ (v · v)
2
de onde se conclui
∂v
a = + v · ∇v
∂t
∂v 1
= + (∇ × v) × v + ∇v 2
∂t 2
com v 2 = |v|2 = v · v.
46 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Escrevendo a força gravitacional por unidade de massa igualmente como um gradiente


1
f = −∇V = g
ρ ext
a equação de Euler (1.10), devido a equação que acabamos de obter, pode ser escrita
como
∂v
+ (∇ × v) × v = −∇H (3.1)
∂t
onde
1
H = V + h + v2
2
é uma função escalar.
Antes de escrever a equação satisfeita para o campo de vorticidade ξ = ∇ × v, a
seguinte observação é pertinente. Pela definição de produto vetorial, temos


e1 e2 e3

∇ × ∇H = ∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3
∂H/∂x1 ∂H/∂x2 ∂H/∂x3
 2
∂2H

1X ∂ H
= εijk − ei = 0
2 i,j,k ∂xj ∂xk ∂xk ∂xj

Tomando o rotacional da equação (3.1) juntamente com a definição (2.35), resulta


∂ξ
+ ∇ × (ξ × v) = 0 . (3.2)
∂t
Observação 3.22 O termo ∇ × (ξ × v) difere se a dimensão efetiva no movimento de
um fluido incompressı́vel for d = 2 ou d = 3. Por uma identidade análoga a (2.31), temos
∇ × (ξ × v) = v · ∇ξ − ξ · ∇v
Se v(t, x) = (v1 (t, x1 , x2 ), v2 (t, x1 , x2 ), 0) então a vorticidade ξ(t, x) = (0, 0, ξ3(t, x1 , x2 ))
está na direção e3 e

e1 e2 e3

∇ × (ξ × v) = ∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3
−v2 ξ3 v1 ξ3 0
 
∂(v1 ξ3 ) ∂(v2 ξ3 )
= + e3
∂x1 ∂x2
 
∂ξ3 ∂ξ3
= v1 + v2 e3 = v · ∇ξ
∂x1 ∂x2
devido a condição de incompressibilidade
∂v1 ∂v2
∇·v = + =0.
∂x1 ∂x2
Para d = 2 temos ξ · ∇v = 0 e, neste caso, a equação da vorticidade fica
∂ξ
+ v · ∇ξ = 0 . (3.3)
∂t
A vorticidade de um fluido ideal incompressı́vel cujo movimento é bidimensional é, por-
tanto, conservada ao longo do movimento.
3.2 Teorema da Circulação 47

3.2 Teorema da Circulação


No regime estacionário v(t, x) = v(x), ∂v/∂t = 0 e a equação de Euler (3.1) para um
fluido ideal (incompressı́vel homogêneo ou isentrópico) pode ser escrita como

(∇ × v) × v = −∇H .

Tomando o produto interno em ambos os lados desta equação com v, tendo em vista

v · (∇ × v) × v = (∇ × v) · v × v = 0

e H não depender explicitamente do tempo, devido a estacionaridade, temos


DH
0 = v · ∇H =
Dt
de onde se conclui
Proposição 3.23 (Regime estacionário) Para um fluido ideal incompressı́vel homo-
gêneo ou isentrópico em regime estacionário

H = V + h + 21 v 2

é uma constante do movimento.


O movimento de um fluido é dito ser irrotacional se ξ = ∇×v se anular identicamente.
Para um movimento irrotacional temos a seguinte implicação

∇ × v = 0 ⇐= v = ∇ϕ . (3.4)

De fato ∇ × v = 0 se e somente se
∂vi ∂vj
= (3.5)
∂xj ∂xi

for satisfeita para todo i 6= j. Seja ϕ uma função potencial de v da classe C 2 (duas vezes
continuamente diferenciável) em Ω: v = ∇ϕ. Então

∂vi ∂2ϕ ∂2ϕ ∂vj


= = =
∂xj ∂xj ∂xi ∂xi ∂xj ∂xi
e, portanto, ∇×v = 0 é uma condição necessária para que v seja um campo de velocidades
gradiente. O seguinte exemplo mostra que a condição (3.5) não é suficiente.
Exemplo 3.24 O campo vetorial v = (v1 , v2 , v3 ) definido por
x2
v1 (x1 , x2 , x3 ) =
x21
+ x22
−x1
v2 (x1 , x2 , x3 ) = 2
x1 + x22
v3 (x1 , x2 , x3 ) = 0
48 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

no domı́nio Ω = {(x1 , x2 , x3 ) ∈ R3 : r 2 < x21 + x22 < R} com 0 < r < R < ∞ satisfaz
∇ × v = 0 em Ω mas não é um campo gradiente. Note que a integral de linha de v ao
longo da curva fechada C = {x21 + x22 = ρ2 , x3 = z}

1
Z Z
v · dx = (sin θ, − cos θ, 0) · ρ (− sin θ, cos θ, z) dθ
C 0 ρ
Z 2π
sin2 θ + cos2 θ dθ = −2π

= −
0
Z
não é nula e contradiz a propriedade v · dx = 0 para toda curva fechada C em Ω
C
satisfeita por um campo gradiente.

A condição necessária e suficiente para que v seja um campo gradiente é ∇ × v = 0 em


uma região simplesmente conexa Ω.1 Substituindo v = ∇ϕ na equação (3.1), resulta
 
∂ϕ
∇ +H =0
∂t

de onde se conclui

Proposição 3.25 (Movimento Irrotacional) Se ∇ × v = 0, então existe uma função


ϕ = ϕ(t, x) da classe C 2 definida em uma região simplesmente conexa Ωt tal que

v(t, x) = ∇ϕ(t, x)

e
∂ϕ
+H =C (3.6)
∂t
com C = C(t) dependente apenas de t.

Observação 3.26
1. Podemos sempre escolher uma função potencial da velocidade ϕ tal que (3.6) é
satisfeita com C = 0. Para isso, basta tomar
Z t

ϕ =ϕ+ C(s)ds .
t0

Note que ∇ϕ′ = ∇ϕ = v.

2. Se o movimento de um fluido é irrotacional e estacionário então H é constante em


uma região simplesmente conexa Ωt .

Para um fluido incompressı́vel temos, além disso,

1 Uma região Ω é conexa se quaisquer dois pontos de Ω puder ser ligado por uma linha poligonal, inteiramente contida

em Ω, formada por um número finito de segmentos de reta. Uma região Ω é simplesmente conexa se quaisquer duas
linhas poligonais ligando dois pontos, inteiramente contidas em Ω, puderem ser continuamente deformadas uma na outra.
3.2 Teorema da Circulação 49

Proposição 3.27 (Bernoulli) Se o movimento de um fluido ideal incompressı́vel for


irrotacional, então a função potencial do campo de velocidade ϕ satisfaz a equação de
Laplace
∆ϕ = 0
isto é, ϕ é uma função harmônica.

Prova. Um fluido ideal e irrotacional em uma região Ω simplesmente conexa satisfaz


v = ∇ϕ. Se, além disso, o fluı́do for incompressı́vel, temos ∇ · v = 0 e

0 = ∇ · v = ∇ · ∇ϕ = ∆ϕ .

2
O seguinte resultado é conhecido por teorema da circulação.

Teorema 3.28 (Kelvin) Seja C0 uma curva fechada em Ω0 e denote por Ct a curva em
Ωt obtida pelo movimento do fluido de cada ponto x0 ∈ C0 em t = 0. Suponha um fluido
ideal satisfazendo a equação (3.1) (imcompressı́vel homogêneo ou isentrópico). Então a
circulação de v(t, x) ao longo de Ct
Z
v(t, x) · dx
Ct

permanece constante no tempo. Se Σt é uma superfı́cie em Ωt cuja borda é Ct então o


fluxo de vorticidade através de Σt
Z
ξ(t, x) · ndS
Σt

permanece constante.

Prova. Primeiramente, vamos mostrar uma igualdade semelhante a (2.9):

d Dv
Z Z
v · dx = · dx . (3.7)
dt Ct Ct Dt

Para isso, é conveniente parametrizar a curva em t = 0

C0 = {x0 = x0 (s), 0 ≤ s ≤ 1 : x0 (0) = x0 (1)}

A curva Ct no instante t, obtida seguindo as trajetórias φ(t; x0 ) dos pontos x0 ∈ C0 , é,


desta forma, parametrizada pelos parâmetros (t, s):

Ct = {x = x(t, s) = φ(t; x0 (s)), 0 ≤ s ≤ 1 : x(t, 0) = x(t, 1)}

Por esta escolha, um elemento dl de integração ao longo da curva Ct é escrito como


dx = φ(t; x0 (s))ds .
∂s
50 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Temos
1
d d ∂
Z Z
v · dx = v(t, φ(t; x0 (s))) · φ(t; x0 (s))ds
dt Ct 0 dt ∂s
Z 1
∂ ∂
+ v(t, φ(t; x0 (s))) · φ(t; x0 (s))ds
0 ∂t ∂s
e para obter (3.7), basta empregar a regra da cadeia na primeira e mostrar que a segunda
integral se anula. Invertendo a ordem de derivação na segunda integral e usando φ̇(t; x0 ) =
v(t, φ(t; x0 )) concluimos
Z 1 Z 1
∂ ∂ ∂
v(t, φ(t; x0 (s))) · φ(t; x0 (s))ds = v(t, φ(t; x0 (s))) · v(t, φ(t; x0 (s)))ds
0 ∂t ∂s 0 ∂s
Z 1
1 ∂ 2
= v (t, φ(t; x0 (s)))ds
2 0 ∂s
1 2
v (t, x(t, 1)) − v 2 (t, x(t, 0)) = 0

=
2
pelo teorema fundamental do cálculo e devido a curva Ct ser fechada.
Dv
Devido as hipóteses sobre o fluido, é o gradiente da função F = H − v 2 /2 e a
Dt
conclusão da prova da primeira parte do teorema segue da igualdade
Dv
Z Z I
· dx = ∇F · dx = dF = 0 . (3.8)
Ct Dt Ct

Para a segunda parte, basta empregar o Teorema de Stokes


Z Z Z
v(t, x) · dx = (∇ × v) (t, x) · ndS = ξ(t, x) · ndS
Ct Σt Σt

juntamente com (3.7) e (3.8).


2
Uma conseqüência do teorema de Kelvin é a seguinte. Se
1
ω(t, x) = ξ(t, x)
ρ
é o campo de vorticidade por unidade de massa, então ω é carregado pelo fluido em seu
movimento:
∂Φt
ω(t, φ(t; x0 )) = ω(0, x0 ) (3.9)
∂x0
onde Φt é o mapeamento que leva um ponto x0 em Ω0 no instante t = 0 ao ponto x
∂Φt
em Ωt no instante t e denota a matriz Jacobiana deste mapa. Daremos uma breve
∂x0
demonstração deste fato a seguir. É importante notar que a transformação linear (3.9) é
satisfeita para um vetor qualquer arrastado pelo movimento. Se y 0 for um vetor em x0
no instante t = 0, então
1 ∂Φt
y = lim (φ(t; x0 + εy 0 ) − φ(t; x0 )) = y
ε→0 ε ∂x0 0
3.2 Teorema da Circulação 51

é um vetor em x = φ(t; x0 ) no instante t (note que y 0 = limε→0 ((x0 + εy 0 ) − x0 )/ε).


Prova da igualdade (3.9). O lado esquerdo de (3.9) satisfaz
Dω 1 Dξ ξ Dρ
= − 2
Dt ρ Dt ρ Dt
1 Dξ ξ
= + ∇·v
ρ Dt ρ
pela equação da continuidade. Substituindo a equação (3.2) juntamente com a identidade
∇ × (ξ × v) = ξ∇ · v − ξ · ∇v − v∇ · ξ + v · ∇ξ (3.10)
resulta
Dω 1 ∂ξ 1 ξ
= + v · ∇ξ + ∇ · v
Dt ρ ∂t ρ ρ
1 1 ξ
= − ∇ × (ξ × v) + v · ∇ξ + ∇ · v
ρ ρ ρ
ξ 1
= · ∇v + v∇ · ξ
ρ ρ
= ω · ∇v (3.11)
pois ∇ · ξ = ∇ · ∇ × v = 0. Note que a derivada material de ω no ponto (t, x) coincide
com a derivada total, com respeito ao tempo, de ω(t, φ(t; x0 )).
Exercı́cio 3.29 Verifique a identidade (3.10).
Denotando por G = (G1 , G2 , G3 ) o lado direito de (3.9):
G(t, x0 ) = ∇φ(t; x0 ) ω(0, x0 )
e usando φ̇(t; x0 ) = v(t, φ(t; x0 )), temos exatamente como em (2.7)
∂Gi
= ∇φ̇i (t; x0 ) ω(0, x0 )
∂t
= ∇vi (t, φ(t; x0 )) ω(0, x0 )
3
X ∂vi
= (t, φ(t; x0 )) ∇φj (t; x0 ) ω(0, x0 )
j=1
∂xj

de onde se conclui que G satisfaz a mesma equação linear (3.11) satisfeita por ω em
x = φ(t; x0 ):
∂G
= G · ∇v
∂t
sujeita a mesma condição inicial
G(0, x0 ) = ω(0, x0 ) .
Por um resultado geral em equações diferenciais, se ∇v é uma função contı́nua de t
(condição esta satisfeita pela hipótese de regularidade do movimento), então existe uma
única solução desta equação e, portanto, vale a igualdade (3.9).
2
52 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Observação 3.30 Por definição, uma linha ou superfı́cie de vórtices é uma linha ou
superfı́cie tangente a ξ em cada um dos seus pontos. Por exemplo, qualquer linha cuja
tangente em cada ponto aponta na direção e3 é uma linha de vórtices no Exemplo 2.2.1
(veja também Exemplos 2.21). A equação (3.9) juntamente com a conservação de massa,
escrita na forma
ρ(t, x) = J(t, x0 )ρ(0, x0 ) ,
onde J(t, x0 ) = |∂Φt /∂x0 | é o Jacobiano de Φt , implica que linhas ou superfı́cies de
vórtices são preservadas ao longo do tempo. Este resultado também pode ser obtido pelo
teorema da circulação, Teorema 3.28.
Observação 3.31 No movimento bidimensional de um fluido, v = (v1 , v2 , 0) e o campo
de vorticidade ξ = ∇ × v = (0, 0, ξ3) aponta na direção e3 (veja Exemplos 2.2 e 2.21).
Como a matriz Jacobiana ∂Φt /∂x0 atua como identidade na direção e3 : (∂Φt /∂x0 ) e3 =
e3 (veja Exemplo 2.2.1), a equação (3.9), nestes casos, reduz a
ω(t, x) = ω(0, x0 ) . (3.12)
Em outras palavras, ω(t, x) = ξ(t, x)/ρ(t, x) se propaga pelo fluido como um escalar.
A conservação da vorticidade (3.12) pelo movimento é um instrumento útil na prova de
existência e unicidade das equações de Euler (Navier–Stokes, igualmente) para um fluido
ideal em movimento bidimensional. A falta de uma equação similar para o movimento
geral é o maior obstáculo para se compreender as propriedades mais essenciais da solução
das equações de Euler.
Considere o movimento bidimensional de um fluido ideal incompressı́vel. De acordo
com a Observação 3.22 sobre a equação para vorticidade do fluido, temos
∇×v = ξ
∇·v = 0

= 0
Dt
sujeita a condição de impenetrabilidade
n · v|Γ = 0 (3.13)
na fronteira Γ = ∂Ω de uma região simplesmente conexa Ω que contém o fluido.
Considerando apenas as variáveis independentes x = (x1 , x2 ) e as componentes não–
nulas da velocidade v(t, x) = (v1 (t, x1 , x2 ), v2 (t, x1 , x2 )), a vorticidade é um escalar ξ =
ξ(t, x1 , x2 ). Pela equação de incompressibilidade
∂v1 ∂v2
=− (3.14)
∂x1 ∂x2
juntamente com a hipótese de simples conectividade de Ω, existe uma função ψ =
ψ(t, x1 , x2 ) tal que
∂ψ
v1 =
∂x2
∂ψ
v2 = − (3.15)
∂x1
3.2 Teorema da Circulação 53

Definição 3.32 Uma linhas de corrente associadas ao campo v(t, x) é uma solução
(x(s), y(s)) paramétrica da equação diferencial

x′ = v1 (t, x, y)
y ′ = v2 (t, x, y)

para t fixo, com (x(0), y(0)) = (x0 , y0 ).


Segue da definição que as linhas de corrente são curvas de nı́vel de ψ:
d ∂ψ ′ ∂ψ ′
ψ (t, x(s), y(s)) = x (s) + y (s)
ds ∂x1 ∂x2
= −v2 v1 + v1 v2 = 0

e, sempre mantendo t fixo,


ψ (t, x(s), y(s)) = const
ao longo das linhas de corrente.
Em particular, a curva Γ que delimita a região Ω que contém o fluido é uma curva de
nı́vel de ψ. Note que, pela Definição 3.32, (v1 , v2 ) é tangente a linha de corrente em cada
ponto desta. Porém, devido a condição (3.13), (v1 , v2 ) é tangente a curva Γ e, como uma
linha de corrente é uma curva de nı́vel de ψ, concluimos que Γ é uma curva de nı́vel.
Podemos sempre ajustar ψ de tal forma que

ψ(t, a1 , a2 ) = 0

para todo (a1 , a2 ) ∈ Γ e essa condição determina univocamente ψ. Note que esta condição
é satisfeita para cada t.
Observações importantes: (i) Γ não precisa ser uma única linha de corrente, podendo
ser composta por várias destas linhas separadas por pontos de estagnação, que são
zeros da função velocidade, isto é, as soluções para x da equação implı́cita

v(t, x) = 0 ;

(ii) No regime estacionário as trajetórias das partı́culas do fluido coincidem com as linhas
de corrente e, pela Proposição 3.23 H é constante ao longo destas.
Exercı́cio 3.33 Verifique que
Z x2 Z x1
ψ(t, x1 , x2 ) = v1 (x1 , x′2 )dx′2 − v2 (x′1 , a2 )dx′1
a2 a1

é a solução do sistema de equações (3.15) sujeita a condição (3.14) com (a1 , a2 ) ∈ Γ .


Em vista das equações (3.15), o escalar vorticidade ξ satisfaz
∂v2 ∂v1
ξ = −
∂x1 ∂x2
∂2ψ ∂2ψ
= − 2 − 2 = −∆ψ
∂x1 ∂x2
54 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

em Ω sujeita a condição de Dirichlet de fronteira

ψ (t, a1 , a2 ) = 0 , ∀ (a1 , a2 ) ∈ Γ

A equação
∆ψ = −ξ
juntamente com (3.15) e
∂ξ
+ v · ∇ξ = 0 (3.16)
∂t
determinam o movimento do fluı́do: dado ξ, resolvemos a equação de Poisson para
ψ(t, x; ξ) e derivamos em seguida a velocidade do fluido v = v(t, x; ξ). Substituindo
em (3.16) resulta em uma equação para a dinâmica da vorticidade escalar.
Comentário. A seguinte observação é útil nas aplicações.

∂ξ ∂ξ
v · ∇ξ = v1 + v2
∂x1 ∂x2
∂ψ ∂ξ ∂ψ ∂ξ
= −
∂x ∂x ∂x1 ∂x2
2 1
∂ξ ∂ξ


∂x1 ∂x2
= ∂ψ ∂ψ = J(ξ, ψ)

∂x1 ∂x2

é o Jacobiano de ξ e ψ. Assim, o movimento é estacionário se e somente se ξ e ψ forem fun-


cionalmente dependentes e, conseqüentemente, se a dependência funcional for verificada
em algum instante é verificada para os todos instantes.
Suponha, por exemplo,
p que no instante t = 0 a função ψ(t, x1 , x2 ) dependa apenas da
distância radial r = x21 + x22 . Neste caso as linhas de corrente são cı́rculos concentricos.
Escrevendo
χ(t, r) = ψ(t, x1 , x2 )
e assumindo que ∂χ/∂r > 0, temos

∂χ ∂r x2 ∂χ
v1 (t, x1 , x2 ) = =
∂r ∂x2 r ∂r
∂χ ∂r x1 ∂χ
v2 (t, x1 , x2 ) = − =−
∂r ∂x1 r ∂r
que também pode ser escrito como

∂χ
v(t, x1 , x2 ) = eθ
∂r
com eθ o versor tangente aos cı́rculos. Além disso,
 
1 ∂ ∂χ
ξ = −∆ψ = − r
r ∂r ∂r
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 55

é uma função de r que, por sua vez, pode ser escrita, pelo teorema da função implı́cita,
como uma função de χ devido a hipótese ∂χ/∂r > 0: r = r(χ). Concluı́mos que

ξ = ξ(ψ)

consequentemente,
∂ξ ∂ξ ∂ψ ∂ψ


∂ξ ∂x1
J(ξ, ψ) = ∂x1 ∂x2 = ∂x2 =0

∂ψ ∂ψ ∂ψ ∂ψ ∂ψ


∂x1 ∂x2 ∂x1 ∂x2

e o movimento bidimensional do fluido em cı́rculos concentricos é uma solução estacionária


da equação de Euler para um fluido ideal incompressı́vel.

3.3 Movimentos Estacionários Elementares


Definição 3.34 O movimento de um fluido é π planar se o campo de velocidades as-
sociado for paralelo ao plano π em cada ponto e invariante por translação na direção
perpendicular a π.
Na maioria dos casos escolhemos o plano π12 formado pelos eixos e1 e e2 para descrever
o movimento π planar, como temos feito até agora. Dizemos, nestes casos, simplesmente
que o movimento é planar, sem referência do plano ao qual o campo é paralelo.
Nesta seção o movimento planar e irrotacional de um fluido ideal incompressı́vel será
investigado. As condições ∇ · v = 0 (incompressibilidade) e ξ = ∇ × v = 0 (irrotaciona-
lidade), escritas na forma das equações de Cauchy–Riemann

∂v1 ∂v2
= −
∂x1 ∂x2
∂v1 ∂v2
= , (3.17)
∂x2 ∂x1
são necessárias e suficientes para que a função f : C −→ C dada por

f (t, z) = v1 (t, x1 , x2 ) − iv2 (t, x1 , x2 )

seja analı́tica na variável z = x1 + ix2 com (x1 , x2 ) no domı́nio Ω.


Nota 3.35 Uma função f é analı́tica no ponto z0 = x0,1 + ix0,2 , com (x0,1 , x0,2 ) perten-
cente a um conjunto aberto Ω, se o limite

f (z) − f (z0 ) f (z0 + εeiθ ) − f (z0 )


lim = lim
z→z0 z − z0 ε→0 εeiθ
existe e independe de θ. Na segunda equação representamos o incremento em coordenadas
polares: z − z0 = εeiθ . Escolhendo as direções θ = 0 e θ = π/2 o limite converge se e
somente se as equações de Cauchy–Riemann (3.17) forem satisfeitas.
56 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Pela Proposição 3.27 e equações (3.15), existem duas funções ϕ = ϕ(t, x1 , x2 ) e ψ =


ψ(t, x1 , x2 ), harmônicas

∆ϕ = 0
∆ψ = 0 (3.18)

tais que
∂ϕ ∂ϕ
v1 = , v2 =
∂x1 ∂x2
∂ψ ∂ψ
v1 = , v2 = − . (3.19)
∂x2 ∂x1
Consequentemente, estas também satisfazem as equações de Cauchy–Riemann
∂ϕ ∂ψ ∂ϕ ∂ψ
= , =−
∂x1 ∂x2 ∂x2 ∂x1
e definem uma função W : C −→ C na variável z = x1 + ix2 ,

W (t, z) = ϕ(t, x1 , x2 ) + iψ(t, x1 , x2 )

analı́tica no domı́nio Ω.
As funções f e W são, respectivamente, a velocidade e o potencial complexo do
movimento de um fluido e estão relacionadas por
Proposição 3.36
∂W
=f . (3.20)
∂z
Prova. Para deduzir esta relação, escrevemos
z + z̄
x1 = x1 (z, z̄) =
2
z − z̄
x2 = x2 (z, z̄) =
2i
com z̄ = x1 − ix2 o complexo conjugado de z. Aplicando
 
∂ ∂x1 ∂ ∂x2 ∂ 1 ∂ ∂
= + = −i
∂z ∂z ∂x1 ∂z ∂x2 2 ∂x1 ∂x2
sobre a função W = ϕ + iψ:
     
1 ∂ ∂ 1 ∂ϕ ∂ψ i ∂ϕ ∂ψ
−i (ϕ + iψ) = + − − = v1 − iv2
2 ∂x1 ∂x2 2 ∂x1 ∂x2 2 ∂x2 ∂x1

obtemos, em vista das equações (3.19), o lado direito de (3.20) .


2
Devemos ainda impor condições de fronteira sobre as funções potenciais na borda Γ
da região Ω que contém o fluido, devido a impenetrabilidade. Em alguns exemplos que
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 57

daremos a seguir Ω é o complemento de um obstáculo a ser contornado pelo fluido. Se o


obstáculo é fixo, (3.13) é equivalente a

n · ∇ϕ|Γ = 0
τ · ∇ψ|Γ = 0

onde n denota a normal à curva Γ que separa o obstáculo do fluido e τ é o versor tangente
à Γ. Lembre que ψ(t, x1 , x2 ) = const. sobre a curva Γ (composta por linhas de corrente)
e, portanto, a derivada de ψ ao longo da curva se anula.
As curvas determinadas pelas equações

ϕ(t, x1 , x2 ) = c
ψ(t, x1 , x2 ) = d

com c e d constantes reais, são, respectivamente, equipotenciais e linhas de corrente e


possuem a propriedade de serem ortogonais entre si. No caso do movimento de um fluido
ser estacionário, v (t, x) = v(x), ambas as funções ϕ e ψ são independentes do tempo e
as linhas de corrente coincidem com as trajetórias do fluido.
Daremos a seguir exemplos de movimento planar estacionário irrotacional. Em vista
da linearidade das equações de Laplace (3.18), alguns destes serão construı́dos por super-
posição de movimentos mais elementares.
a) Movimento Estacionário Uniforme. Temos

W (z) = v0 ze−iα
= v0 (x1 + ix2 ) (cos α − i sin α)

com v0 e α reais, está definida no plano inteiro (x1 , x2 ) ∈ R2 e tem parte real e imaginária

ϕ(x1 , x2 ) = v0 (x1 cos α + x2 sin α)


ψ(x1 , x2 ) = v0 (x2 cos α − x1 sin α)

As linhas de corrente satisfazem a equação

x2 = c + tan α x1 , c∈R

de uma reta com inclinação α e as equipotenciais são também retas, porém com inclinação
α + π/2. O campo de velocidade é constante:

v(x1 , x2 ) = (v0 cos α, v0 sin α) .

b) Fontes e Sorvedouros. Em coordenadas polares z = x1 + ix2 = reiθ ,


D
W (z) = ln z

D
= (ln r + iθ)

58 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

0.5

-0.5

-1
-1 -0.5 0 0.5 1

FIGURE 3.1. Campo de velocidade uniforme.

com D real. A parte real e imaginária de W satisfaz


D
ln x21 + x22

ϕ(x1 , x2 ) =

D x2
ψ(x1 , x2 ) = arctan .
2π x1
As linhas de corrente são retas que cruzam a origem e as equipotenciais cı́rculos concên-
tricos. A origem é uma fonte se D > 0 e um sorvedouro se D < 0.
O campo de velocidade
 
D D
v(x1 , x2 ) = cos θ, sin θ
2πr 2πr
está definido em todo plano com excessão da origem.
c) Movimento Dipolar.
−K −K −iθ
W (z) = = e
2πz 2πr
com K real, tem parte real e imaginária
−K
ϕ(x1 , x2 ) = cos θ
4πr
K
ψ(x1 , x2 ) = sin θ
4πr
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 59

0.5

-0.5

-1

-1 -0.5 0 0.5 1

FIGURE 3.2. Campo de velocidades de uma fonte.

com r 2 = x21 + x22 e tan θ = x2 /x1 . As linhas de corrente são cı́rculos centrados sobre o
eixo e2 e tangentes ao eixo e1 . As equipotencias são, analogamente, cı́rculos centrados
sobre o eixo e1 e tangentes ao eixo e2 . Note que, a equação de um cı́rculo de raio R
centrado em (R, 0):
(x1 − R)2 + x22 = R2
é equivalente a
x21 + x22 = 2Rx1
r 2 = 2Rr cos θ
que, por sua vez, coincide com a equação da equipotencial ϕ(x1 , x2 ) = −K/(8πR).
Este movimento pode ser obtido como um limite em h → 0 de uma fonte na origem e
um sorvedouro em (h, 0) de intensidades D = K/h, vindo daı́ o nome dipolar para este
movimento. Temos
 
Dh ln z − ln (z + h) −K
W (z) = lim = −Wb′ (z) = .
h→0 2π h 2πz

d) Vórtice.
γ
W (z) = ln z
2πi
−iγ
= (ln r + iθ)

60 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-1

-2
-2 -1 0 1 2

FIGURE 3.3. Linhas de corrente de um movimento dipolar.

tem parte real e imaginária


γ
ϕ(x1 , x2 ) = θ

−γ
ψ(x1 , x2 ) = ln r .

Comparado às fontes e sorvedouros, as equipotenciais e linhas de corrente para este
movimento tem seus papeis trocados. As equipotenciais e linhas de corrente são, respec-
tivamente, retas que cruzam a origem e cı́rculos centrados na origem.
O campo de velocidades
 
−γ γ
v(x1 , x2 ) = sin θ, cos θ
2πr 2πr
está definido em R2 \{(0, 0)} e o movimento é invariante por rotação. Note que, diferen-
temente do Exemplo 2.2.1, este campo diverge na origem e tem vorticidade
1 ′
ξ = −∆ψ = − (rψ ′ ) = 0
r
em todos os pontos com exceção da origem. O movimento conserva o volume mas não é
rı́gido como no referido exemplo.
O Exemplo 3.24 é de um campo vetorial de um vórtice com γ = −2π. Este campo em
uma região Ω contendo a origem não é potencial. A circulação do campo de vórtice em
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 61

-1

-2
-2 -1 0 1 2

FIGURE 3.4. Linhas de corrente de um vórtice.

uma circunferência C centrada na origem


Z 2π
γ
Z
v · dx = (− sin θ, cos θ) · (− sin θ, cos θ) rdθ = γ . (3.21)
C 2πr 0
e) Movimento Espiralado. Combinando linearmente uma fonte (ou sorvedouro) com
um vórtice,
D γ 1  γ
W (z) = ln z + ln z = D+ ln z
2π 2πi 2π i
resulta
1
ϕ(x1 , x2 ) = (D ln r + γθ)

1
ψ(x1 , x2 ) = (Dθ − γ ln r)

e as linhas de corrente são espirais de Bernoulli.
f) Movimento Contornando Objeto Agudo.
1 1
W (z) = az 2 = ar 2 e2iθ
2 2
tem parte real e imaginária dada por
1  1
ϕ(x1 , x2 ) = a x21 − x22 = ar 2 cos 2θ
2 2
1 2
ψ(x1 , x2 ) = ax1 x2 = ar sin 2θ
2
62 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

0.5

-0.5

-1

-1 -0.5 0 0.5 1

FIGURE 3.5. Campo vetorial de um vórtice na origem.

Tanto as equipotenciais como as linhas de corrente são hipérboles sendo as primeiras


assintóticas aos eixos cartesianos e as segundas assintóticas às bissetrizes. O campo de
velocidades neste caso é
v(x1 , x2 ) = (ax1 , −ax2 )
Note que as linhas de corrente, que coincidem com as trajetórias devido ao movimento
ser estacionário, são dadas pelo Exemplo 2.2.3. Restrito ao semiplano superior de C, o
movimento do fluido, que se aproxima do plano x2 = 0 vindo de x2 = ∞ uniformemente
na direção −e1 , é desviado por um objeto agudo localizado na origem.
Faremos uma pausa nos exemplos afim de verificar a seguinte propriedade satisfeita
pelas curvas analı́ticas.
Ortogonalidade das Linhas de Corrente e Equipotenciais. Seja C : ϕ(x1 , x2 ) =
ℜe(W ) = c e D : ψ(x1 , x2 ) = ℑm(W ) = d uma equipotencial e uma linha de corrente
traçadas no plano complexo z = x1 + ix2 e seja z0 = x1,0 + ix2,0 um ponto de intersecção
entre elas. O ângulo θ entre as tangentes a cada curva no ponto z0 é dado por (veja pág.
43 de “The Schwarz function and its applications” por Philip J. Davis)

S ′ (z0 ) − T ′ (z0 )
tan θ = i (3.22)
S ′ (z0 ) + T ′ (z0 )

onde z̄ = S(z) e z̄ = T (z) são, respectivamente, as funções de Schwarz associadas às


curvas C e D obtidas resolvendo para z̄ as equações ϕ(x1 , x2 ) = c e ψ(x1 , x2 ) = d com
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 63

-1

-2

-2 -1 0 1 2

FIGURE 3.6. Movimento de um fluido em espiral.


z + z̄ z − z̄
x1 = e x2 = . Note que S ′ (z0 ) e a inclinação λS = tan θS da tangente a curva
2 2i
C no ponto z0 estão relacionados por
dz̄ dx1 − idx2 1 − idx2 /dx1 1 − iλS
S ′ (z0 ) = = = = (3.23)
dz dx1 + idx2 1 + idx2 /dx1 1 + iλS
O ângulo θ entre as tangentes às curvas C e D no ponto z0 satisfaz
λS − λT
tan θ = tan (θS − θT ) =
1 + λS λT
devido a identidade trigonométrica tan(α + β) = (tan α + tan β) /(1 − tan α tan β). Subs-
tituindo a inversa de (3.23)
1 − S ′ (z0 )
λS = −i
1 + S ′ (z0 )
1 − T ′ (z0 )
λT = −i
1 + T ′ (z0 )
obtem-se a equação (3.22).
Usando W (z) = W̄ (z̄),2 temos
W (z) + W̄ (S(z))
=c (3.24)
2
2 Se f (z) = u(z) + v(z) é uma função analı́tica com u e v funções reais, f¯(z) = u(z) − iv(z).
64 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

é satisfeita para z sobre a curva C e, analogamente,


W (z) − W̄ (T (z))
=d (3.25)
2i
é satisfeita para z sobre a curva D. Logo

S(z) = W̄ −1 (2c − W (z))


T (z) = W̄ −1 (W (z) − 2id)

e diferenciando (3.24) e (3.25) juntamente com a regra da cadeia e a definição da função


de Schwartz, resulta
−W ′ (z)
S ′ (z) = ′
= −T ′ (z) (3.26)
W̄ (z̄)
no ponto z = z0 de intersecção das curvas. Substituindo este resultado em (3.22), con-
π
cluimos θ = e as curvas C e D se interceptam ortogonalmente.
2
2
g) Movimento Contornando Objeto Circular. Sobrepondo um movimento uniforme
a um dipolar, o potencial complexo é dado por
a2
 
W (z) = v0 z +
z
a2 −iθ
 

= v0 r e + 2 e
r
2
a2
   
a
= v0 r 1 + 2 cos θ + iv0 r 1 − 2 sin θ
r r

em coordenadas polares z = reiθ . As linhas de corrente são soluções implı́citas da equação


a2
 
v0 r 1 − 2 sin θ = d (3.27)
r

com d reais. O movimento do fluido no domı́nio Ω = {(x1 , x2 ) ∈ R : x21 + x22 > a2 } é dado
por um campo de velocidade assintóticamente uniforme na direção do eixo e1 e as linhas
de corrente contornam o obstáculo circular de raio a em sua proximidade. Note que que a
circunferência de raio r = a e a direção do eixo e1 satisfazem a equação (3.27) com d = 0
e são linhas de corrente. Note ainda que (±a, 0) são pontos de estagnação do movimento:
v (±a, 0) = 0.
h) Movimento Contornando Objeto Circular na Presença de Vórtice. Sobre-
pondo o movimento uniforme, a um dipolar e um vórtice, resulta no seguinte potencial
complexo
a2
 
γ z
W (z) = v0 z + + ln
z 2πi a
2
a2
     
a γ γ r
= v0 r 1 + 2 cos θ + θ + i v0 r 1 − 2 sin θ − ln
r 2π r 2π a
3.3 Movimentos Estacionários Elementares 65

-1

-2
-2 -1 0 1 2

FIGURE 3.7. Fluido através de um obstáculo circular.

com z = reiθ . As linhas de corrente


a2
 
γ r
v0 r 1 − 2 sin θ − ln = d
r 2π a
com d reais, são deformadas com respeito ao caso anterior. Embora a circunferência de
raio a continua sendo uma linha de corrente dada pela equação ψ(x1 , x2 )|x2 +x2 =a2 = 0
1 2
o eixo na direção e1 não se encontra mais sobre uma curva de nı́vel de ψ. Podemos, no
entanto, descrever qualitativamente a deformação com respeito ao exemplo g) das linhas
de correntes calculando os pontos de estagnação. Os pontos de estagnação são os zeros
da velocidade f (z) = W ′ (z). Temos
a2
 
′ γ
W (z) = v0 1 − 2 + =0
z 2πiz
é equivalente a equação de segundo grau
γ
z2 + z − a2 = 0
2πv0 i
cujas soluções s
−γ γ2
z± = ± a2 −
4πv0 i 16π 2 v02
66 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-1

-2 -1 0 1 2

FIGURE 3.8. Fluido através de um obstáculo circular na presença de um vórtice na origem.

γ2
se encontram no cı́rculo de raio a se a2 ≥ γ 2 /(16π 2v02 ). Note que |z|2 = + a2 −
16π 2 v02
γ2
2 2
= a2 . Parametrizando as soluções
16π v0
z± = ±a exp (±iφ) = a (i sin φ ± cos φ) ,
obtemos
γ
sin φ = . (3.28)
4πv0 a
A velocidade sobre a fronteira Γ do obstáculo circular é tangente á circunferência de raio
a. Podemos calculá-la escrevendo o potencial ϕ do campo de velocidades em coordenadas
polares. Temos
a2
 
γ
ϕ(r, θ) = v0 r 1 + 2 cos θ + θ
r 2π
e a componente tangencial da velocidade sobre a circunferência
∂ϕ γ
τ · v(a, θ) = (a, θ) = −2v0 a sin θ +
∂θ 2π
A velocidade é máxima, em valor absoluto, para θ = −π/2 se γ > 0 e para θ = π/2 se
γ < 0. Na figura (3.8) acima a vorticidade γ é negativa.
3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres 67

3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres


Utilizaremos os resultados estabelecidos nas subseções anteriores para o cálculo da força
de suspensão exercida sobre um obstáculo pelo movimento de um fluido ideal incom-
pressı́vel e irrotacional. Este movimento é denominado nos livros textos de fluxo poten-
cial, em referência ao potencial do campo de velocidades. Para que a força de suspensão
tenha uma dependência não trivial da forma, é necessário considerar obstáculos gera-
dos por uma transformação conforme singular e ajustar o fluxo potencial de maneira a
satisfazer a condição de Kutta–Joukowski.
Considere um fluido ideal e incompressı́vel contornando um obstáculo O ⊂ R2 . A força
exercida sobre O pelo fluido em Ω = R2 \O atua, de acordo com Cauchy, por contato na
superfı́cie Γ: Z
F =− pn dS (3.29)
Γ

onde n é a normal à superfı́cie Γ de O (apontando em direção ao fluido). Veremos que


esta força pode ser calculada em termos do potencial complexo W correspondente ao
movimento em Ω.

Lema 3.37 (fórmula de Blasius)


Z  2
iρ0 dW
F = dz
2 Γ dz

onde F = F1 − iF2 com Fi a i–ésima componente do vetor F = (F1 , F2 ).

Prova. De acordo com a fórmula de Bernoulli para o movimento estacionário de um


fluido incompressı́vel homogêneo (na ausência de forças externas),

1 1
H= p + v2
ρ0 2

é constante em uma linha de corrente L. Escolhendo a linha L que termina em um ponto


xO de estagnação no obstáculo O, e denotando por pmax o valor da pressão neste ponto,
temos
ρ0 2
pmax = p + v
2
ρ0 2
= p + |W ′(z)|
2

onde usamos v 2 = v12 + v22 = |f |2 , Proposição 3.36 e as funções p e v 2 calculadas sobre L.


A borda Γ do obstáculo é também uma linha de corrente contendo xO e esta expressão
é igualmente válida sobre Γ.
Parametrizando Γ pelo comprimento de arco: z(s) = x1 (s) + ix2 (s), 0 ≤ s ≤ l, com
z(0) = z(l) e |z ′ (s)| = 1, o versor normal n = (n1 , n2 ) é dado por

n(s) = (x′2 (s), −x′1 (s))


68 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

devido sua ortogonalidade com o versor tangente τ = (x′1 , x′2 ) à curva Γ: n · τ = n1 x′1 +
n2 x′2 = 0. Escrevemos a seguir o versor normal na forma complexa n = n1 − in2 ,

dz̄
n(s) = x′2 (s) + ix′1 (s) = i .
ds
Substituindo estes resultados em (3.29), resulta
Z
F = − pn ds
ZΓ 
ρ0 ′ 2

= − pmax − |W (z)| idz̄
Γ 2
iρ0
Z
= W ′ (z)W ′ (z)dz̄
2 Γ
Z
pois pmax é uma constante e dz̄(s) = z̄(l) − z̄(0) = 0. Usando a relação (3.26) para a
Γ
função de Schwarz z̄ = T (z) associada à Γ e W ′ (z) = W̄ ′(z̄), concluı́mos

iρ0
Z
F = W ′(z)W̄ ′ (z̄)T ′ (z)dz
2 Γ
iρ0
Z
2
= (W ′ (z)) dz .
2 Γ
2
Observação 3.38 O mesmo procedimento pode ser aplicado para calcular o momento
exercido pela força de contato sobre obstáculo O
Z Z
M = x × (−pn) dS = p (−x1 n2 + x2 n1 ) e3 dS
Γ Γ

Se M denota a intensidade do momento na direção ortogonal ao plano π12 , então


Z
M = p (x1 ẋ1 + x2 ẋ2 ) ds
Γ
Z 
ρ0   dz̄ 
′ 2
= pmax − |W (z)| ℜe z ds
Γ 2 ds
−ρ0
Z
2
= ℜe z (W ′ (z)) dz .
2 Γ

A força exercida pelo fluido sobre o obstáculo circular de raio a nos exemplos g) e h)
pode ser calculada pela fórmula de Blasius. Temos, repectivamente,

a2
 

W (z) = v0 1 − 2
z
a2
 
′ γ
W (z) = v0 1 − 2 +
z 2πiz
3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres 69

ambas expressões convergindo, quando z → ∞, para o campo de velocidades uniforme


v0 na direção e1 . Escrevendo um ponto z = aeiθ de Γ em coordenadas polares, temos
dz = iaeiθ dθ e
iρ0
Z
2
F = (W ′ (z)) dz
2 Γ
ρ0 v0 2π
Z
2
= − 1 − e−2iθ aeiθ dθ
2 0
ρ0 v0 a 2π iθ
Z
e − 2e−iθ + e−3iθ dθ = 0

= −
2 0

para o exemplo g) devido a integral


Z 2π
1 2πik
eikθ dθ =

e −1
0 ik
se anular para todo k inteiro difrente de 0.
Para o exemplo h) temos
iρ0
Z
2
F = (W ′ (z)) dz
2 Γ
ρ0 2π  γ −iθ 2 iθ
Z
v0 1 − e−2iθ +

= − e ae dθ
2 0 2πia
Z 2π
γ
= −ρ0 v0 dθ = iρ0 v0 γ
2πi 0
e, como ρ0 , v0 e γ são constantes reais, existe uma força atuando sobre o objeto circular
na direção e2 de intensidade −ρ0 v0 γ. Se a circulação γ do campo de vórtice for positiva
(negativa) e v0 > 0, então o fluido exerce sobre o objeto uma força para baixo (cima)
sendo esta perpendicular à direção assintótica do campo de velocidades. Esta última
propriedade é um caso particular do seguinte
Teorema 3.39 (Kutta-Joukowski) Considere um fluido ideal incompressı́vel homo-
gêneo e irrotacional contornando um obstáculo O ⊂ R2 . Assumindo que o campo de
velocidade v = (v1 , v2 ) é tal que a velocidade complexa f = u1 − iv2 seja uma função
analı́tica em Ω = R2 \O e que convirja a um campo uniforme v 0 = v0 (cos α, sin α) no
infinito, a força exercida sobre O pelo fluido é dada por

F = −ρ0 v0 γ (− sin α, cos α)


R
onde γ = Γ
v · dx é a circulação do campo e é perpendicular a v 0 .
Prova. Pelas hipóteses, f pode ser expandida em uma série de Laurent

γ X an
f (z) = v0 e−iα + +
2πiz n=2 z n

convergente fora de um disco D de raio R centrado na origem tal que contenha O. Note
que f tende para v0 e−iα no infinito e, sendo uma função limitada para |z| ≥ R, nenhum
70 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

termo de potência positiva de z pode aparecer nesta expansão. A série é uniforme e


absolutamente convergente em |z| ≥ R e |an | ≤ KR0n é satisfeita para alguma constante
K com R0 o menor R tal que o O ⊂ D.
A integral sobre um contorno C, contendo D em seu interior é dada por

!
γ an
Z Z X
−iα
f (z)dz = v0 e + + dz = γ ,
C C 2πiz n=2 z n

pelo teorema dos resı́duos. Pela analiticidade de f em R2 \O e o teorema de Cauchy, o


valor da integral não se altera se substituirmos C pelo contorno Γ formado pela borda
∂O do obstáculo. Temos
Z Z Z Z
γ = f (z)dz = (v1 − iv2 ) (dx1 + idx2 ) = (v1 dx1 + v2 dx2 ) = v · dx
Γ Γ Γ Γ

devido a condição de fronteira v · n = 0, concluindo que γ coincide com a circulação de


v. Note que n = (x′2 (s), −x′1 (s)) e dx = (x′1 (s), x′2 (s)) ds são ortogonais e isso implica no
cancelamento dos termos cruzados da integral:

v1 dx2 − v2 dx1 = (v1 x′2 − v2 x′1 ) ds = (v · n) ds = 0 .

Quadrando a série de Laurent obtemos uma série de Laurent para f 2 do mesmo tipo

γv0 e−iα γ2
 
2 2 −2iα −iα 1
(f (z)) = v0 e + + v0 a2 e − 2 +···
πiz 4π z2

onde os termos de potência de 1/z de ordem superior a 1/z 2 foram omitidos por não
serem relevantes ao que vem a seguir. Note que a série de f 2
2
∞ ∞ n   ∞
X aj X 1 X n X 1
≤ |aj | |an−j | ≤ K 2
(2R0 )n

n
j
z |z| j |z|n


j=0 n=0 j=0 n=0

converge uniforme e absolutamente, pelo menos, para |z| > 2R0 .


Aplicando o lema de Blasius, o teorema de Cauchy e o teorema dos resı́duos, obtemos
(para algum contorno C ′ contendo o disco D ′ de raio 2R0 centrado na origem)

iρ0
Z
F1 − iF2 = (f (z))2 dz
2 Γ
iρ0
Z
= (f (z))2 dz
2 C′
−iα 1 dz
Z
= iρ0 γv0 e
2πi C ′ z
−iα
= iρ0 γv0 e = −ρ0 γv0 (− sin α + i cos θ)

de onde se conclui o resultado.


2
3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres 71

Observação 3.40 As componentes paralela e perpendicular ao campo de velocidades no


infinito da força exercida sobre o obstáculo O pelo fluido são denominadas, respectiva-
mente, força de arrastamento e força de suspensão. Em desacordo com os fatos
experimentais, um fluido ideal incompressı́vel, pelo Teorema de Kutta–Joukowski, não
exerce força de arrastamento sobre obstáculos. Veremos adiante que o acréscimo de uma
pequena viscosidade ao fluido permite corrigir este problema. Pior que a ausência de ar-
rastamento é a dependência da circulação γ, introduzida arbitrariamente no Exemplo h)
da Seção 3.3 pela inclusão de um vórtice à origem, sem nenhuma relação com o obstáculo.
Para que haja suspensão, γ deve ser negativa (vorticidade no sentido horário).
Observação 3.41 Um movimento estacionário de um fluido ideal incompressı́vel, as-
sintóticamente uniforme, contornando um obstáculo esférico O (ou de qualquer outra
forma tridimensional) não exerce força de arrastamento nem de suspensão. Este fenô-
meno, conhecido por paradoxo de D’ Alembert, é devido a região Ω = RR3 \ {|x| ≤ a}
ser simplesmente conexa e, conseqüentemente, a circulação do campo γ = C v · dx = 0
para qualquer contorno contido em Ω.
Para que o Teorema de Kutta-Joukowski seja útil ao cálculo da força de suspensão
de um aerofólio, é necessário relacionar γ com alguma propriedade de O. O seguinte
procedimento faz uso das transformações conforme.
Considere
z = h(ζ)
uma função holomórfica bijetiva (bi–holomórfica)3 que leva cada ponto ζ de um disco

D(ζ0 , a) = {|ζ − ζ0 | < a}

de cento ζ0 e raio a em um ponto z do interior do domı́nio DO do obstáculo O:

h : D(ζ0 , a) −→ DO

Por ser uma função um–para–um, h′ não se anula em D(ζ0 , a) e a inversa h−1 está bem

definida em todo domı́nio DO . Note que (h−1 ) = 1/h′ existe e h−1 é analı́tica em DO .
Utilizaremos uma função bi–holomórfica h para transformar uma função analı́tica f
definida no domı́nio formado pelo complemento do disco D(ζ0 , a) em uma função analı́tica
g definida no complemento do domı́nio DO por composição:

g(ζ) = f ◦ h(ζ) ≡ f (h(ζ)) .

Do ponto de vista da teoria das funções analı́ticas, as funções f e g são indistinguı́veis


uma vez que g satisfaz as equações de Cauchy–Riemann no domı́nio complementar a
DO , se f as satisfaz no donı́nio complementar à D(ζ0 , a), pela regra da cadeia. Por
um resultado de Carathéodory h−1 pode ser extendida aos pontos da fronteira Γ do
domı́nio DO como uma função contı́nua de Γ à valores na circunferência |ζ − ζ0 | = a,
contanto que Γ seja uma curva contı́nua fechada simples (curva de Jordan). Esta condição
será respeitada pelos obstáculos considerados, exceto no caso que trataremos a seguir.

3 Uma função é holomórfica se satisfaz as equações de Cauchy Riemann sendo, portanto, sinônimo de analı́tica.
72 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Contudo, para que o Teorema de Kutta-Joukowski seja empregado de maneira não trivial,
h−1 não deve ser diferenciável em um ponto z da curva Γ.
O aerofólio mais simples é obtido da seguinte maneira. Considere a transformação
conforme  
a ζ a
h(ζ) = + (3.30)
2 a ζ
que leva o disco D(0, a) em um segmento de reta de comprimento 2a duplamente per-
corrido. h também leva o complemento |ζ| > a do disco D̄(0, a) no plano complexo com
o segmento de −a a a recortado: C\ [−a, a]. Note que a imagem z = h(aeiθ ) = a cos θ
da circunferência ζ = aeiθ , 0 ≤ θ < 2π, é o segmento [−a, a] percorrido de a para −a
quando 0 ≤ θ < π e de −a para a quando π ≤ θ < 2π. Note ainda que h(ζ) tende a
infinito quando ζ → ∞.
Considere agora um fluido incompressı́vel e irrotacional passando através de um obs-
táculo circular com velocidade uniforme assintótica de inclinação α e vorticidade γ (veja
exemplos a) e h)):
a2 eiα
 
−iα γ ζ
W (ζ) = v0 ζe + + ln . (3.31)
ζ 2πi a
Para obter o fluido passando por um aerofólio fino formado pelo segmento [−a, a], com-
pomos W com a inversa de h:

ζ = h−1 (z) = z + z 2 − a2
onde o sinal positivo da raiz foi escolhido de maneira tal que ζ tenda a infinito quando
z → ∞. O potencial complexo associado ao aerofólio achatado é dado por
Wfólio(z) = W ◦ h−1 (z)

√ a2 e2iα z 2 − a2
 
−iα γ z+
= v0 e z + z 2 − a2 + √ + ln
z + z 2 − a2 2πi a
O ponto importante é que as extremidades do aerofólio são singularidades para o
movimento. Calculando a velocidade a partir do potencial do aerofólio:

′ 1
ffólio = Wfólio = W ′ ◦ h−1 · h−1 = W ′ ◦ h−1 · ′
h ◦ h−1
pela regra da cadeia, temos que
−1
a2

1 1
= ′ =2 1− 2
h′ ◦ h−1 (z) h (ζ) ζ
diverge para ζ = ±a. Para sanar este problema, fixamos o único parâmetro livre do
movimento, a vorticidade, de forma que o campo de velocidades
W ′ ◦ h−1 (z) = W ′ (ζ) = f (ζ)
associado ao potencial do movimento contornando o cı́rculo, cancele a singularidade no
ponto a:
a2 eiα
 
′ −iα γ −iα iα
 γ
W (a) = v0 e − 2 + = v0 e − e + =0
ζ 2πiζ ζ=a 2πia
3.4 Aplicação à Teoria dos Aerofólios e Problemas de Fronteira Livres 73

de onde se conclui
γ = −4πv0 a sin α .
Esta condição, devido a Kutta-Joukowski, permite calcular a circulação de um aerofólio.
Note que a condição de Kutta-Joukowski, obtida por um critério matemático de can-
celamento de uma divergência, é também uma condição fı́sica pois ajusta as linhas de
corrente passando o aerofólio de tal maneira que a extremidade posterior do aerofólio seja
uma delas.
O aerofólio fino continua tendo, mesmo depois da condição de Kutta-Joukowski, a ve-
locidade divergindo na extremidade frontal em −a. Este problema pode talvez ser contor-
nado com a inclusão de outro vórtice. Uma maneira prática e mais realı́stica, no entanto,
consiste em ”arredondar”a parte frontal do aerofólio mantendo a cauda na forma de uma
cuspe. A função h com estas caracterı́sticas é construı́da pelo seguinte procedimento.
Primeiramente, substituiremos a em (3.30) por uma constante real l independente:

l2
 
1
h(ζ) = ζ+ (3.32)
2 ζ

A função (3.30) possuia pontos fixos sobre a circunferência de raio a em ζ = ±a. Vamos
agora considerar h : D(ζ0, a) −→ C como uma mapa do cı́rculo de raio a centrado em ζ0
com um ponto fixo dado pelo ponto mais a direita de interseção da circunferência de raio
a com o eixo e1 . Temos
l2
 
1
h(ζ) = ζ+ =ζ
2 ζ
implica ζ ∗ = ±l e, escrevendo ζ0 = ρeiβ e tomando a raiz positiva, obtemos o ponto de
interseção
ζ ∗ = ζ0 + aeiθ = l (3.33)
resultando

l = ρ cos β + a cos θ
0 = ρ sin β + a sin θ .

O potencial complexo para um fluido contornando um disco de raio a deslocado por ζ0


com ângulo α de insidência é dado por:

a2 eiα
 
−iα γ ζ − ζ0
W (ζ) = v0 (ζ − ζ0 ) e + + ln
ζ − ζ0 2πi a

e compondo com h−1 , temos



√ a2 eiα z + z 2 − l 2 − ζ0
 
 γ
Wfólio (z) = v0 z + z 2 − l2 − ζ0 e−iα + √ + ln .
z + z 2 − l 2 − ζ0 2πi a

A velocidade complexa do aerofólio

′ 1
ffólio(z) = Wfólio (z) = W ′ (ζ)
h(ζ)
74 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

diverge em ζ = l a menos que W ′ (ζ) cancele a divergência neste ponto. A condição de


Kutta-Joukowski é escrita como
a2 eiα
 
′ −iα γ
W (l) = v0 e − +
(ζ − ζ0 )2 2πi(ζ − ζ0 ) ζ=l
a2 eiα
 
−iα γ
= v0 e − +
(ζ − l + aeiθ )2 2πi(ζ − l + aeiθ ) ζ=l
 γe−iθ
= v0 e−iα − ei(α−2θ) +
2πia
−iθ −i(α−θ) i(α−θ)
 γ
= v0 e e −e + =0
2πia
de onde se conclui
γ = −4πv0 a sin(α − θ) (3.34)
coincidente com o resultado do aerofólio achatado quando o disco é centrado na origem
(θ = 0). Usando (3.33) podemos escrever a vorticidade em termos das coordenadas de ζ0 :

γ = −4πv0 a (sin α cos θ − cos α sin θ))


= −4πv0 (sin α(l − ρ cos β) + ρ cos α sin β))

Interpretação: Em um fluido ideal a vorticidade é conservada. Porém, se admitirmos


uma pequena viscosidade ao fluido, as linhas de corrente obtidas pelas curvas de nı́vel
de ψfólio = ℑm (Wfólio ) não são alteradas fora de uma pequena vizinhança do aerofólio.
O campo de velocidades na camada limite ajusta o flux potencial na parte exterior
com a condição de fronteira v(t, x)|Γ = 0. Na transição a componente tangencial da
velocidade
Z ao longo de Γ varia com respeito a direção normal dando origem a circuitação
v · dx < 0 não–nula e, consequentemente, uma vorticidade residual γ < 0 que não
C
desaparece no limite de viscosidade ν → 0.
4
Fluidos Reais: Algumas Aplicações

O objetivo aqui é estabelecer diferenças e similaridades do movimento de um fluido viscoso


quando comparado a um fluido ideal. As equações de Euler diferem das de Navier–Stokes
não somente pelo acréscimo de um termo proporcional a viscosidade ν mas também pela
condição de não deslizamento do fluido junto a fronteira. A mudança na condição de
fronteira
√ faz com que o movimento seja distinto do caso ideal em uma estreita camada da
ordem ν próximo a fronteira. A técnica de limite de camada será introduzida em alguns
exemplos elementares. Examinaremos também alguns movimentos estacionários simples
e a sua estabilidade com respeito a pequenos e grandes desvios dos referidos movimentos.
Devido a exiguidade de tratamentos analı́ticos e propriedades gerais, esta seção será mais
voltada a aplicações. Faremos uma breve excursão ao problema de Rayleigh–Bénard em
termohidráulica e da propagação de chamas em canais.

4.1 Equações de Navier–Stokes


Em um fluido ideal a força que uma região deste exerce sobre a superficie S que separa
a região complementar se dá somente na direção normal a S. De acordo com a teoria
cinética, as moléculas constituintes do fluido em agitação térmica “colidem” com S vindo
de todas as direções resultando uma pressão normal a superfı́cie.
Considere agora duas regiões do fluido em movimento cujas respectivas superfı́cies S
e S ′ se encontram em contato em um dado instante e suponha que a normal a interface
de contato Γ = S ∩ S ′ seja perpendicular ao movimento. Embora idealmente não haja
transferência de momento de uma a outra região, se a velocidade do fluido variar brus-
camente através de Γ, as moleculas da região mais rápida que penetram na região mais
lenta por difusão podem acelerar esta última e, vice-versa, as moleculas vindas da região
mais lenta podem atuar como um freio à região mais rápida. A equação de movimento
considerada até o momento não leva em consideração a dissipação de energia que ocorre
em processos cujos efeitos devido a fricção e condução térmica tornam–se importantes.
76 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

A equação de Euler deve, nestes casos, ser modificada pela adição de um termo que dê
conta destes efeitos no tensor dos esforços.
Neste capı́tulo, adotaremos a forma do tensor das tensões σ introduzida na Seção 2.4
do Capı́tulo 2 para um fluido viscoso Newtoniano

σ = −pI + σ ′
2
σ ′ = 2ηD + (ζ − η)TrD I
3
onde I e D são, respectivamente, a matriz identidade e o tensor das deformações, dado
pela simetrização da matriz Jacobiana da velocidade (veja eq. (2.33)). Os elementos de
matriz deste tensor são
 
∂vi ∂vj 2
σij = −pδij + η + − ∇ · v δij + ζ∇ · v δij (4.1)
∂xj ∂xi 3

com os coeficientes de viscosidade η e ζ constantes positivas tais que ζ > 2η/3, devido a
dissipação de energia e monotonicidade da entropia: o termo
 
2 2
Tr (σ ∇v) = Tr (2ηD + (ζ − η)TrD)(D + S) = 2ηTr(D 2 ) + (ζ − η)(TrD)2

3 3

é responsável pelo decréscimo de energia cinética em (1.19) e acréscimo de entropia em


(1.22), por unidade de tempo. Para esta expressão, usamos a decomposição ∇v = D + S
da matriz jacobiana, com D T = D e S T = −S, e a propriedade TrDS = 0 devido ao fato

TrDS = Tr(DS)T = TrS T D = TrDS T = −TrDS.

As equações de Navier–Stokes em uma região Ω de R3


 
∂v
ρ0 + v · ∇v = ρ0 g − ∇p + η∆v
∂t
∇·v = 0 (4.2)

descrevem o movimento de um fluido real incompressı́vel (homogêneo) que é regido pela


equação cardinal (1.9) com tensor das tensões (4.1) e equação da continuidade. Observe
que a força causada pela viscosidade se reduz a um único termo
3    

X ∂ ∂vi ∂vj 2
(∇ · σ )i = η + − ∇ · v δij + ζ∇ · v δij
j=1
∂x j ∂x j ∂xi 3
 
1 ∂ ∂
= η ∆vi + ∇·v +ζ ∇ · v = η∆vi
3 ∂xi ∂xi
devido a condição ∇ · v = 0.
Devemos acrescentar às equações (4.2) condições de fronteira. Se Γ denota a fronteira
de um recipiente em repouso com interior Ω, devemos impor a condição de Dirichlet em
Γ:
v|Γ = 0 . (4.3)
4.1 Equações de Navier–Stokes 77

Esta condição resulta de duas outras condições. Em analogia ao fluido ideal, a condição
de impenetrabilidade das paredes do recipiente requer

n · v|Γ = 0

com n o versor normal a superfı́cie Γ. Por razões de origem experimental e a exigência de


haver tantas condições quanto a ordem das equações de Navier–Stokes, devemos impor,
em adição, a condição de não–deslizamento

τ · v|Γ = 0

onde τ é o versor tangente ao movimento na superfı́cie Γ. O movimento na superfı́cie é


tangencial e o fluido não deve deslizar em qualquer direção do plano tangente permane-
cendo, portanto, em repouso quando em contato com a superfı́cie.
Se Γ é uma fronteira livre como, por exemplo, a interface de dois fluidos imissı́veis,
temos

n · v 1 − v 2 Γ = 0


σ1 n − σ2n = 0 .

Γ

A condição (4.3) é necessária para que as equações de Navier–Stokes sejam um pro-


blema bem posto, isto é, uma única solução destas equações existe e depende continua-
mente com respeito as condições iniciais. Ainda é um problema aberto em mecânica dos
fluidos se a solução das equações de Navier–Stokes existe para todo t > 0.
Em alguns casos especiais é possı́vel obter uma solução estacionária das equações (4.2).
A seguir daremos alguns exemplos.

4.1.1 Escoamento de Poiseuille Entre Dois Planos Paralelos


Considere um fluido incompressı́vel viscoso em movimento estacionário entre dois planos
paralelos infinitos em x2 = ±h. Se o movimento do fluido é planar na direção e1 , então
∂v1
0=∇·v = (4.4)
∂x1
pois v2 ≡ v3 ≡ 0, implica
v(x) = v1 (x2 )e1
e, consequentemente,
∂v1
v · ∇v = v · ∇v1 e1 = v1 e1 = 0 . (4.5)
∂x1
As equações de Navier–Stokes para este problema se reduzem a
1 ∂p ∂ 2 v1
− +ν 2 = 0
ρ0 ∂x1 ∂x2
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x2
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x3
78 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

de onde se conclui p = p(x1 ) e a separação de variáveis da primeira equação

∂ 2 v1 ∂p
η 2
= = −K (4.6)
∂x2 ∂x1

com K uma constante positiva. Note que o lado esquerdo na primeira igualdade depende
somente da variável x2 enquanto que o lado direito depende somente da variável x1 . Note
que o gradiente da pressão apontando na direção oposta a e1 , o fluido é empurrado para
direita na direção e1 .
Integrando a equação (4.6), resulta

p(x1 ) = p0 − Kx1

e
K 2
v1 (x2 ) = − x + ax2 + b
2η 2
onde a e b são determinados pelas condicões de contorno

K 2
v1 (±h) = − h ± ah + b = 0 .

Subtraindo as duas equações, obtemos a = 0 e b = K/η, concluindo

K 2
h − x22

v1 (x2 ) =

4.1.2 Escoamento de Poiseuille em um Tubo Cilı́ndrico


O movimento estacionário de um fluido incompressı́vel viscoso em um tubo cilı́ndrico de
raio h é obtido de maneira semelhante ao movimento entre dois planos paralelos. Supondo
o movimento do fluido e o eixo do cilı́ndro ambos na direção e1 , temos

v(x) = v1 (x2 , x3 )e1

com a dependência em x1 omitida devido a equação da continuidade (4.4). A equação


(4.5) é igualmente válida para esta geometria e as equações de Navier–Stokes reduzem–se
a
1 ∂p
− + ν∆v1 = 0
ρ0 ∂x1
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x2
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x3

onde
∂ 2 v1 ∂ 2 v1
∆v1 = + .
∂x22 ∂x23
4.1 Equações de Navier–Stokes 79

Conclui–se, de maneira analoga, que a pressão depende apenas da variável x1 , p = p(x1 )


e
∂p
η∆v1 = = −K
∂x1
com K uma constante positiva. A equação para p resulta,
p(x1 ) = p0 − Kx1
e v1 satisfaz a equação de Poisson
K
∆v1 = − (4.7)
η
no disco D = {x22 + x23 < h2 } com condição de fronteira
C = x22 + x23 = h2

v1 (x2 , x3 ) = 0 em
Em coordenadas cilı́ndricas, a parte radial do operador de Laplace é dada por
∂2
 
1 ∂ ∂ 1 ∂
∆|radial = r = 2+
r ∂r ∂r ∂r r ∂r
e escrevendo a função v1 (x2 , x3 ) = u(r), devido a simetria do problema, a equação (4.7)
reduz–se a
1 ′ K
(ru′) = − .
r η
A solução geral desta equação pode ser obtida por integração:
K 2
ru′ = − r +a

K
u(r) = − r 2 + a ln r + b .

Impondo as condições u(h) = 0 e u(r) regular na origem, resulta
K 2
h − r2

u(r) =

e, consequentemente,
K 2
h − x22 − x23 .

v1 (x2 , x3 ) =

Observação 4.42 O nome para este escoamento é devido a Jean Louis Marie Poiseuille
(1797 - 1869), médico e fisiologista francês com formação em Fı́sica e Matemática pela
École Polytechnique de Paris. Poiseuille escreveu sua tese de mestrado sobre escoamento
sanguı́neo em tubos estreitos. Entre 1838 e 1846 formulou e verificou experimentalmente a
lei de Hagen–Poiseuille sobre escoamento estacionário laminar de um fluido viscoso
incompressı́vel em tubos cilı́ndricos. O fluxo em uma seção tranversal do tubo
Z h
Kπ h 2 Kπh4
Z Z
h − r 2 rdr =

φ= v1 (x2 , x3 )dx2 dx3 = 2π u(r)rdr =
D 0 2η 0 8η
é proporcional ao gradiente de pressão K e a quarta potência do raio h do tubo.
80 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

4.1.3 Equação de Navier–Stokes em Coordenadas Cilı́ndricas


No exemplo anterior, foi vantajoso escrever as equações de movimento em coordenadas
que respeitavam as simetrias do problema. Tendo em vista aplicações menos elemen-
tares que o problema anterior, escreveremos as próprias equações de Navier–Stokes em
coordenadas cilı́ndricas. Isto é mais que necessário ao que temos em vista, porém a pre-
sente subseção pode servir como ilustração e um roteiro para a transformação em outros
sistemas de coordenadas.
O sistema Cartesiano de coordenadas é formado por um ponto O (origem) de referência
e uma base canônica (e1 , e2 , e3 ) de versores de forma que, qualquer vetor neste espaço
pode ser representado pelas coordenadas na base. Um ponto no espaço e o vetor velocidade
no ponto, por exemplo, são representados por
x = x1 e1 + x2 e2 + x3 e3
v(x) = v1 e1 + v2 e2 + v3 e3
com as componentes v1 , v2 e v3 de v dependentes das coordenadas (x1 , x2 , x3 ) do ponto
x.
Representaremos agora um vetor qualquer em termos de uma nova base (er , eθ , ez )
dada pelas relações
er = cos θe1 + sin θe2
eθ = − sin θe1 + cos θe2
ez = e3 (4.8)
com a origem O ′ desta nova base no ponto x = (x1 , x2 , x3 ) cujas coordenadas cilı́ndricas
(r, θ, z) satisfazem as relações
x1 = r cos θ
x2 = r sin θ
x3 = z
Temos
v(x) = vr er + vθ eθ + vz ez
com as coordenadas vr , vθ e vz de v na nova base depedentes das coordenadas (r, θ, z) de
x. Note que os versores er e eθ também dependem da coordenada θ do ponto x. Note
ainda que os versores (4.8) são ortogonais, independentemente do ponto x de referência.
Representemos agora o operador diferencial Laplaceano
∂ ∂ ∂
∇ = e1 + e2 + e3
∂x1 ∂x2 ∂x3
em coordenadas cilı́ndricas. Primeiramente, pela regra da cadeia,
∂ ∂r ∂ ∂θ ∂ ∂z ∂ ∂r ∂ ∂θ ∂
= + + = +
∂x1 ∂x1 ∂r ∂x1 ∂θ ∂x1 ∂z ∂x1 ∂r ∂x1 ∂θ
∂ ∂r ∂ ∂θ ∂ ∂z ∂ ∂r ∂ ∂θ ∂
= + + = +
∂x2 ∂x2 ∂r ∂x2 ∂θ ∂x2 ∂z ∂x2 ∂r ∂x2 ∂θ
∂ ∂r ∂ ∂θ ∂ ∂z ∂ ∂
= + + =
∂x3 ∂x3 ∂r ∂x3 ∂θ ∂x3 ∂z ∂z
4.1 Equações de Navier–Stokes 81

Para calcular as derivadas de r e θ com respeito a x1 e x2 , vamos utilizar as relações


inversas
q
r = x21 + x22
x2
tan θ =
x1
Temos
∂r x1
= = cos θ
∂x1 r
∂r x2
= = sin θ
∂x2 r
∂θ ∂ tan θ x2 sin θ
sec2 θ = =− 2 =−
∂x1 ∂x1 x1 r cos2 θ
∂θ ∂ tan θ 1 1
sec2 θ = = =
∂x2 ∂x2 x1 r cos θ
de onde se conclui,
∂ ∂ sin θ ∂
= cos θ −
∂x1 ∂r r ∂θ
∂ ∂ cos θ ∂
= sin θ +
∂x2 ∂r r ∂θ
que juntamente com (4.8) e a ortogonalidade dos versores, resulta

∇ = er (er · ∇) + eθ (eθ · ∇) + ez (ez · ∇)


∂ 1 ∂ ∂
= er + eθ + ez (4.9)
∂r r ∂θ ∂z
Seja f = f (x) uma função escalar. De (4.9) e a ortogonalidade dos versores, temos
 
∂f 1 ∂f ∂f
v · ∇f = (vr er + vθ eθ + vz ez ) · er + eθ + ez
∂r r ∂θ ∂z
∂f 1 ∂f ∂f
= vr + vθ + vz (4.10)
∂r r ∂θ ∂z
Para calcular o termo v·∇v da derivada material na equação de Navier–Stokes devemos
tomar cuidado com a aplicação de ∇ sobre v. Note que, devido a (4.8),
∂er
= − sin θe1 + cos θe2 = eθ
∂θ
∂eθ
= − cos θe1 − sin θe2 = −er
∂θ
e, consequentemente,
vθ2
   vr vθ 
v · ∇v = v · ∇vr − er + v · ∇vθ + eθ + v · ∇vz ez
r r
82 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

onde v·∇vα , α = r, θ e z, é dado por (4.10) com f substituido pela respectiva componente
de v. Note que o termo vθ (1/r) (∂eθ /∂θ) vθ , apesar de envolver a componente θ de ambos
v’s, aponta na direção er e, semelhantemente, vθ (1/r) (∂er /∂θ) vr aponta na direção eθ .
Um pouco mais de trabalho é necessário para calcular o termo ∆v = ∇ · ∇v. As
equações de Navier–Stokes para um fluido incompressı́vel (na ausência de forças externas)
em coordenadas cilı́ndricas tem a seguinte forma

vθ2
 
∂vr 1 ∂p 2 ∂vθ vr
+ v · ∇vr − = − + ν ∆vr − 2 − 2
∂t r ρ0 ∂r r ∂θ r
 
∂vθ vr vθ 1 ∂p 2 ∂vr vθ
+ v · ∇vθ + = − + ν ∆vθ − 2 − 2
∂t r ρ0 ∂θ r ∂θ r
∂vz 1 ∂p
+ v · ∇vz = − + ν∆vz (4.11)
∂t ρ0 ∂z
onde
1 ∂2f ∂2f
 
1 ∂ ∂f
∆f = r + 2 2 + 2 (4.12)
r ∂r ∂r r ∂θ ∂z
e
1 ∂ 1 ∂vθ ∂vz
∇·v = (rvr ) + + . (4.13)
r ∂r r ∂θ ∂z
Por completeza, calculemos o Laplaceano de uma função escalar (4.12) em coordenadas
cilı́ndricas. Pela equação (4.9) e ortogonalidade dos versores, temos
   
∂ 1 ∂ ∂ ∂f 1 ∂f ∂f
∇ · ∇f = er + eθ + ez · er + eθ + ez
∂r r ∂θ ∂z ∂r r ∂θ ∂z
2 2 2
∂ f ∂er 1 ∂f 1∂ f ∂ f
= 2
+ eθ · + 2 2 + 2
∂r ∂θ r ∂r r ∂θ ∂z
∂2f 1 ∂f 1 ∂2f ∂2f
= + + 2 2 + 2
∂r 2 r ∂r r ∂θ ∂z
de onde se conclui (4.12).
Exercı́cio 4.43 Deduza a relação (4.13) para o divergente de v.

4.1.4 Escoamento de Couette–Taylor entre Dois Cilı́ndros Coaxiais


Considere um fluido viscoso incompressı́vel (homogêneo) entre dois cilı́ndros coaxiais
de raios R1 e R2 , R2 > R1 , que se encontram em movimento de rotação em torno do
eixo comum com velocidade angular ω1 e ω2 , respectivamente. Desejamos descrever o
movimento estacionário deste fluido.
Se o eixo dos cilı́ndros aponta na direção e3 , devido a simetria do problema, o mo-
vimento é planar no plano gerado por e1 e e2 e o campo de velocidades do fluido é da
forma
v(x) = vr er + vθ eθ
com vr = vr (r) e vθ = vθ (r) coordenadas polares de v. Analogamente, a pressão também
depende apenas de variável radial, p = p(r).
4.1 Equações de Navier–Stokes 83

Inicialmente, vamos mostrar que a componente radial da velocidade vr é nula. Pela


equação da continuidade
 
∂ 1 ∂ ∂
∇·v = er + eθ + ez (vr er + vθ eθ )
∂r r ∂θ ∂z
∂vr 1
= + vr = 0
∂r r
Considerando que vr depende apenas da variável r, temos
1 ′
(rvr′ ) = 0
r
cuja solução geral é
vr (r) = c ln r + d
com c e d constantes a serem fixadas pelas condições de impenetrabilidade

vr (R1 ) = c ln R1 + d = 0
vr (R2 ) = c ln R2 + d = 0

Subtraindo uma equação da outra, resulta

R1
c ln = 0 =⇒ c = 0
R2
pois R1 6= R2 por hipótese e, consequentemente, d = 0 também, de onde se conclui que
vr (r) ≡ 0.
Pelas equações de Navier–Stokes em coordenadas cilı́ndricas (4.11), temos

−1 2 −1 ′
vθ = p
r ρ0
 
1 ′ ′ vθ
0 = ν (rvθ ) − 2 . (4.14)
r r

Usando a identidade

(rvθ )′′ = (rvθ′ ) + vθ′
na segunda equação, resulta
′vθ
0 = (rvθ′ ) −
r
′′ vθ
= (rvθ ) − vθ′ −
r
1
= (rvθ )′′ − (rvθ )′
r
cuja solução da equação
1
w′ − w = 0
r
84 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

para w = (rvθ )′ é
w = w0 r .

Integrando a equação
(rvθ )′ = w0 r

temos
w0 1
vθ (r) = r + t0
2 r
com w0 e t0 constantes a serem fixadas pelas condições de fronteira de não deslizamento

w0 1
vθ (R1 ) = R1 + t0 = ω1
2 R1
w0 1
vθ (R2 ) = R2 + t0 = ω2 .
2 R2

Subtraindo a primeira equação multplicada por R2 (R1 ) da segunda equação multiplicada


por R1 (R2 ), resulta

−R1 R2
t0 = (ω1 R2 − ω2 R1 )
R22 − R12
w0 ω2 R2 − ω1 R1
= (4.15)
2 R22 − R12

de onde se conclui
 
1 R1 R2
vθ (r) = 2 (ω2 R2 − ω1 R1 ) r − (ω1 R2 − ω2 R1 ) .
R2 − R12 r

Substituindo este valor na primeira equação de Navier–Stokes (4.14),


 2
1 ′ 1 w0 1
p = r + t0
ρ0 r 2 r
2
w0 w0 t0 t2
= r+ + 03
4 r r

e integrando de R1 até r, com R1 ≤ r ≤ R2 , obtemos


 r
w02 2 t20

p(r) = p0 + ρ0 s + w0 t0 ln s − 2
8 2s R1
 2
t20 1
 
w0 2 2
 r 1
= p0 + ρ0 R1 − r + w0 t0 ln + −
8 R1 2 R12 r 2

com w0 e t0 dados por (4.15) e p0 a pressão na superfı́cie cilı́ndrica de raio R1 .


4.1 Equações de Navier–Stokes 85

4.1.5 Fórmula de Stokes


Comentamos no capı́tulo anterior que um fluido incompressı́vel ideal passando por um
obstáculo esférico não exerce qualquer força sobre este (veja Observação 3.41 sobre o
paradoxo de D’Alembert e comentários ao final desta subseção). Nesta subseção calcu-
laremos a força de arrastamento sobre uma esfera exercida por um fluido incompressı́vel
no regime em que o termo de inércia do fluido v · ∇v é dominado pelo termo ν∆v de
viscosidade.
Com a finalidade de comparar a relevância dos termos da equação de Navier–Stokes é
conveniente introduzir quantidades dimensionais que caracterizam o problema.
Um fluido incompressı́vel de viscosidade cinemática ν = η/ρ0 move, quando distante
do obstáculo, com uma velocidade uniforme constante U na direção do eixo 1:
lim v(x) = Ue1 .
|x|→∞

O fluido passa através de uma esfera de raio a centrada na origem e as quantidades


envolvidas (ν, U, a) têm as seguintes dimensões
[ν] = L2 /T
[U] = L/T
[a] = L
Uma grandeza R adimensional formada por estas quantidades satisfaz
L2α+β+γ
[ν]α [U]β [a]γ = =1.
T α+β
Fazendo γ = 1 em
2α + β + γ = 0
α+β = 0
resulta β = 1 e α = −1. O número de Reynolds
aU
R=
ν
é, por conseguinte, a única quantidade adimensional associada a este problema.
O movimento estacionário do problema em questão é descrito pelas equações de Navier–
Stokes
1
v · ∇v = − ∇p + ν∆v
ρ0
∇·v = 0 (4.16)
sujeita as condições lim|x|→∞ v(x) = u0 e v|Σ = 0 assintótica e de não–deslizamento na
superfı́cie Σ da esfera. Em coordenadas esféricas
x1 = r cos θ
x2 = r sin θ cos ϕ
x3 = r sin θ sin ϕ
86 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

estas condições são dadas por

lim v(r cos θ, r sin θ cos ϕ, r sin θ sin ϕ) = Ue1


r→∞
v(a cos θ, a sin θ cos ϕ, a sin θ sin ϕ) = 0

para todo 0 ≤ θ < π e 0 ≤ ϕ < 2π.


Vamos considerar as equações no limite em que o número de Reynolds tende a 0. Neste
regime temos, tipicamente,
[v · ∇v] U 2 /a
= =R≪1
[ν∆v] νU/a2
e o termo não–linear da equação pode ser desprezado.
Tomando o rotacional da primeira equação em (4.16) (com v · ∇v = 0), resulta

∆ξ = 0 (4.17)

para o campo de vorticidade ξ = ∇ × v. Usamos, para isso, ∇ × ∇p = 0 e assumimos


regularidade do campo vetorial necessária para que a ordem de derivação seja trocada.
Esta hipótese, que será adotada em várias passagens a seguir sem menção, pode ser
verificada posteriormente.
Faremos outras hipóteses a respeito do movimento. Escrevendo

v = u0 + u (4.18)

onde u0 = u0 (x) denota o campo uniforme Ue1 , vamos assumir, pela simetria do pro-
blema, que u = u(x) dependa apenas da variável radial r e das direções radial x/r e
do movimento no infinito u0 e seja tal que limr→∞ u(r; x/r, u0 ) = 0. Como u tende a
zero no infinito, todas as suas derivadas tenderão igualmente para zero. u é o campo de
velocidades de uma esfera se deslocando na direção −e1 em um fluido que se encontra
em repouso no infinito. Note que o sistema de referência escolhido, cuja origem coincide
com o centro da esfera, continua a acompanhar a esfera em movimento uniforme devido
a transformação (4.18).
As equações (4.16), segundo estas considerações, ficam

∇p = η∆u
∇·u = 0 (4.19)

sujeitas às condições u(a) = −u0 e u(∞) = 0.


A condição de incompressibilidade ∇ · u = 0, implica que

u=∇×A (4.20)

para algum potencial vetor axial A, isto é, para um (pseudo–)vetor que não troca o sinal
quando o sistema de cordenadas é refletido ej → − ej , j = 1, 2 e 3.
Como u depende apenas de r, x/r e u0 , A é da forma

A = ∇f × u0 (4.21)
4.1 Equações de Navier–Stokes 87

para uma função f = f (r). Note que, pela regra da cadeia,


x
∇f = f ′ ∇r = f ′ (4.22)
r
x
aponta na direção do versor radial n = (normal à esfera). A é um vetor axial pois
r
resulta do produto vetorial n × u0 de dois vetores n e u0 que trocam de sinal quando o
sistema de coordenadas é refletido. A dependência em u0 em (4.21) é devido a linearidade
das equações de movimento e da condição de fronteira em r = a, esta última também
linear com respeito a u0 . Note que A, e consequentemente u, tende a 0 quando u0 → 0.
Terminada estas considerações, passemos à solução da equação (4.17). Faremos, para
isso uso da identidade
∇ × (∇ × A) = ∇∇ · A − ∆A (4.23)
(os dois primeiros termos da igualdade (3.10) com ξ substituı́do por ∇).
De (4.21) e propriedade cı́clica do produto misto, temos

∇ · A = ∇ · ∇f × u0 = u0 · ∇ × ∇f = 0

devido a u0 ser constante, de onde se conclui

ξ = ∇ × v = ∇ × u = ∇ × (∇ × A) = −∇∆f × u0

e, consequentemente,
∆ξ = −∇∆2 f × u0 = 0
se a equação
∆2 f = c (4.24)
for satisfeita para uma constante de integração c que deve ser escolhida igual a 0 pois u
e suas derivadas tendem a 0 no infinito.
Escrevendo
g = ∆f (4.25)
a solução geral da equação de Laplace ((4.24) com c = 0)

∆g = 0 ,

para uma função g = g(r) dependente somente de r:


1 2 ′ ′
r g =0
r2

b
g(r) = + d˜
r
com d˜ = 0, pela mesma consideração utilizada para escolha de c = 0 em (4.24).
A solução geral da equação (4.25):
1 2 ′ ′ b
r f =
r2 r
88 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações


b 1
f (r) = r + d + e . (4.26)
2 r
Pelo fato de u0 ser constante, (4.21) pode ser escrita como

A = ∇f × u0 = ∇ × f u0

e fazendo uso novamente de (4.23), temos

u = ∇ × (∇ × f u0 )
= ∇ (∇ · f u0 ) − ∇ · ∇f u0
= ∇ (u0 · ∇f ) − ∆f u0 . (4.27)

Calculamos o primeiro termo desta expressão utilizando (4.26), a regra da cadeia e (4.22):
 
b 1
u0 · ∇f = u0 · ∇ r+d +e
2 r
 
b1 1
= − d 3 u0 · x
2r r

e, conseqüentemente,
   
b1 1 b 1 1
∇ (u0 · ∇f ) = − d 3 u0 − − 3d 5 (u0 · x)x
2r r 2 r3 r
   
b1 1 b1 1
= − d 3 u0 − − 3d 3 (u0 · n)n .
2r r 2r r

Para o segundo termos, usamos a equação (4.25):

b
∆f =
r
Juntando as duas contribuições, concluı́mos

−b (u0 · n)n + u0 3(u0 · n)n − u0


u= +d (4.28)
2 r r3
Note que u satisfaz a condição de fronteira no infinito. Para fixar as constantes b e d,
impomos a condição de fronteira em r = a. A equação

−b (u0 · n)n + u0 3(u0 · n)n − u0


u(a) = +d = −u0
2 a a3
sendo satisfeita para n qualquer é equivalente a
b d
+ 3 = 1
2a a
b 3d
− 3 = 0
2a a
4.1 Equações de Navier–Stokes 89

resultando em b = 3a/2 e d = a3 /4. Substituindo em (4.28) e (4.18), obtemos o campo


de velocidades do fluido passando pela esfera

3a (u0 · n)n + u0 a3 3(u0 · n)n − u0


v = u0 − +
4 r 4 r3
Obtemos a pressão do fluido p = p(r; n, u0 ) a partir das equações (4.19) e (4.27):

∇p = η(∇∆ (u0 · ∇f ) − ∆2 f u0 )
= η∇∆ (u0 · ∇f )

pois ∆2 f = 0, de onde se conclui, juntamente com ∆f = b/r = 3a/(2r), a regra da cadeia


e ∇r = n,

p = p0 + ηu0 · ∇∆f
3 u0 · n
= p0 − ηa 2 . (4.29)
2 r
Exercı́cio 4.44 Tomando o divergente da primeira equação em (4.19), juntamente com
a equação da continuidade, resulta
∆p = 0 .
Mostre que a expressão (4.29) satisfaz a equação de Laplace com p(∞) = p0 e
3ηU
p(a) = p0 − cos θ. (4.30)
2a
Calculemos a seguir a força exercida pelo fluido sobre a esfera
Z
F = σn dS
Σ

onde Σ é a superfı́cie da esfera e σ = −pI + σ ′ o tensor das tensões Newtoniano:


 T !
∂u ∂u
σ′ = η +
∂x ∂x

e, conseqüentemente,

σn = −pn + η ((n · ∇)u + ∇(u · n)) .

Devido a simetria do problema somente a componente F1 de F = (F1 , F2 , F3 ) é não nula


e, usando a regra da cadeia, temos
Z
F1 = (−pe1 · n + η ((n · ∇)u1 + e1 · ∇(u · n))) dS
Σ
Z  

= −p cos θ + η (u1 + (u · n) cos θ) dS
Σ ∂r

onde (e1 · ∇)r = e1 · n = x1 /r = cos θ nas coordenadas esféricas adotadas.


90 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

Substituindo u0 = Ue1 em (4.28), temos

1 3a a3
   
u·n = U 1− − 3 cos θ
2 r r
e
3
 
∂ 3U a a
(u · n) = 2
− 4 cos θ = 0
∂r r=a 2 r r r=a
A derivada radial da componente 1 da velocidade u:

cos2 θ + 1 2
 
aU 2 3 cos θ − 1
u1 = −3 +a
4 r r3
é, na superfı́cie da esfera, dada por

3aU cos2 θ + 1 2
 
∂u1 2 3 cos θ − 1

= − a
∂r r=a 4 r2 r4
r=a
3U 2
 3U 2
= 1 − cos θ = sin θ .
2a 2a
Substituindo esta expressão, juntamente com (4.30), na componente F1 de F
Z  
3ηU 2 2
F1 = −p0 cos θ + (cos θ + sin θ) dS
Σ 2a
3ηU 3ηU
Z
= dS = · 4πa2
2a Σ 2a
resulta a conhecida fórmula de Stokes

F = 6πηaUe1 .

Note que
Z Z π
2
−p0 cos θdS = −2πa p0 sin θ cos θdθ
Σ 0
π
= −πa2 p0 sin θ 0 = 0 .
2

Solução para um fluido ideal e comentários comparativos. Para efeito de com-


paração, vamos calcular o movimento de um fluido ideal incompressı́vel irrotacional pas-
sando por uma esfera Σ de raio a.
Pelas Proposições 3.25 e 3.27, o campo de velocidades v deste fluido pode ser escrito,
analogamente, como
v = u0 + u
com u = ∇φ (pois ∇ × v = ∇ × u = 0) o gradiente de um potencial φ satisfazendo a
equação de Laplace
∆φ = 0
sujeita as condições lim|x|→∞ φ(x) = 0 e n · u|Σ = − n · u0 |Σ .
4.1 Equações de Navier–Stokes 91

Para acomodar a condição de fronteira em Σ admite–se, desta vez,

φ = φ(r; n, u0 ) = u0 · ∇φ0 (4.31)

onde φ0 = A/r é a solução da equação de Laplace que decai no infinito. Temos

a3
φ = u0 · n
2r 2
a3
u = (u0 − 3 (u0 · n) n)
2r 3
e a pressão em Σ é dada pela equação de Bernoulli (veja Proposição 3.25)

1 1 1 ∂φ
p0 = p + |u|2 +
ρ0 ρ0 2 ∂t
onde
∂φ −1
3 (u0 · n)2 − |u0 |2

= u0 · ∇φ = (4.32)
∂t 2
em Σ (do ponto de vista do campo de velocidades u, uma esfera se deslocando com
velocidade −u0 com referencial fixo em seu centro satisfaz Dφ/Dt = ∂φ/∂t−u0 ·∇φ = 0)
e
1 2 1
3 (u0 · n)2 + |u0 |2

|u| = (4.33)
2 8
em Σ, de onde se conclui que a força exercida pelo fluido sobre a esfera
Z π 
1
Z
2 2 2

−pndS = −2πa e1 p0 + ρ0 U 9 cos θ − 5 cos θ sin θdθ
Σ 0 8

devido a π
π
cos2n θ
Z
2n−1
cos θ sin θdθ = − =0
0 2n 0
é identicamente nula.
Teceremos alguns comentários sobre a solução das equações de Euler e de Stokes para
o problema em questão.
Apesar da não linearidade das equações de Euler, o campo de velocidades u, sendo o
gradiente de uma função harmônica φ, satisfaz uma equação linear de Laplace sujeita a
condição não-homogênea em Σ. Para contornar a dificuldade com a condição de fronteira,
adotou–se um potencial φ (veja (4.31)) de maneira tal que

u = ∇ (u0 · ∇) φ0 (4.34)

é a solução da equação de Laplace com n · u|Σ = − n · u0 |Σ . A pressão é, devido a


(4.32), a única quantidade afetada pelo termo não–linear de inércia e, apesar disso, p
isoladamente não contribui para a força de arrastamento. Os demais termos, p0 e (4.33),
da equação de Bernoulli para p não contribuem igualmente, de maneira que a ausência da
força de arrastamento não resulta de um cancelamento mas é uma simples conseqüência
da solução harmônica.
92 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

As equações de Stokes (4.19), por outro lado, são lineares por hipótese do número de
Reynolds R ser desprezivelmente pequeno. A linearização das equações de Navier–Stokes
∆u = ∇p/η, no entanto, não implica em um campo de velocidades u harmônico e a
equação de Laplace é satisfeita pelo campo de vorticidade (veja (4.17)). O campo de ve-
locidade, por sua vez, deve necessariamente ser escrito como o rotacional de um potencial
vetor A (pois ∇ · u = 0), escolhido da forma (4.21) para facilitar a condição de fronteira
não–homogênea em Σ. A escolha u = ∇ × A com A dado por (4.21) poderia ser feita
igualmente para o fluido ideal bastando, para isso, substituir f pela função harmônica φ0 .
Neste último caso, como ∆φ0 = 0, restaria apenas o primeiro termo da equação (4.27) e
o campo u escrito desta forma coincide exatamente com a forma (4.34) adotada anteri-
ormente. Por estas consideração, podemos concluir que a força de arrastamento, expressa
pela fórmula de Stokes, é essencialmente não nula devido ao fato da função f em (4.21)
não ser harmônica mas satisfazer ∆2 f = 0.

4.2 Termohidráulica
Nesta seção examinaremos a instabilidade de Rayleigh–Benárd no problema de Benárd
para um fluido incompressı́vel, porém não homogêneo, em um recipiente com um gra-
diente da temperatura na direção da ação da gravidade. A instabilidade tem origem na
competição entre duas forças. Por um lado o fluido mais denso na superfı́cie superior
tende se mover, pela ação da gravidade, em direção a superfı́cie inferior onde o fluido é
mais rarefeito. Do outro lado, a viscosidade e a difusão do calor no fluido atuam de modo
a impedir o movimento. Para descrever o fenômeno escreveremos as equações de Navier–
Stokes na aproximação de Boussinesq e introduziremos quantidades adimensionais em
termos das quais a estabilidade de uma solução estacionária por perturbações pode ser
examinada.

4.2.1 Aproximação de Boussinesq


Lidamos até o momento com fluidos reais incompressı́veis cujo movimento é regido pelas
equações (4.2):
Dv
ρ = ρg − ∇p + η∆v
Dt
∇·v = 0

Para o problema em questão devemos acrescentar às equações de Navier–Stokes uma


equação, fornecida pela conservação de Energia, que leve em conta os efeitos de dissipação
devido a viscosidade e propagação de calor pelo meio. Pelas equações (1.20) e (1.14), a
energia interna ε por unidade de massa satisfaz

= Tr (σ∇v) + ∇ · (κ∇T ) (4.35)
Dt

onde σ = −pI + η ∇v + (∇v)T − 2∇ · vI/3 + ζ∇ · vI é o tensor das tensões de um
fluido Newtoniano, ∇v é a matriz jacobiana do campo das velocidades e κ é a matriz de
difusão, isotrópica para os devidos fins: κ = κ0 I com ρκ0 a condutibilidade térmica.
4.2 Termohidráulica 93

A temperatura do movimento que pretendemos descrever varia muito pouco e a densi-


dade do fluido tem uma variação igualmente pequena, embora suficiente para que a ação
da gravidade atue como agente neste fenômeno. Vamos, portanto, asumir as seguintes
hipóteses:
O termo devido a viscosidade em (4.35) é desprezı́vel comparado com o termo de
condução do calor:
[Tr (σ∇v)]
≪1;
[∇ · (κ∇T )]
A energia interna ε satisfaz
ε = cυ T
onde cυ é a capacidade calorı́fica do fluido a volume especı́fico υ = 1/ρ constante.
Aproximação de Boussinesq A densidade ρ em todos os termos das equações de mo-
vimento do fluido é constante igual a ρ0 com exceção do termo devido a força
gravitacional, para o qual assumimos a seguinte forma
ρ = ρ(T ) = ρ0 − α(T − T0 )
onde α/ρ0 é o coeficiente de expansão volumétrica do fluido com relação a uma
temperatura T0 de referência.
O movimento de um fluido de Boussinesq, satisfazendo as hipóteses acima, é governado
pelas seguintes conjunto de equações
Dv α 1
= (1 − (T − T0 ))g − ∇p + ν∆v
Dt ρ0 ρ0
DT
= χ∆T
Dt
∇·v = 0 (4.36)
onde D/Dt = ∂/∂t + v · ∇, ν = η/ρ0 e χ = κ0 /cυ são, respectivamente, a derivada
material, a viscosidade cinemática e a difusibilidade térmica.
No experimento de Bénard, observa–se o movimento de um fluido viscoso, contido em
um recipiente Ω na forma de um paralelepı́pedo retangular de dimensões L1 (largura),
L2 (altura) e L3 (profundidade), com o plano da base x2 = 0 e o plano superior x2 = L2
em contato com reservatórios térmicos mantidos, respectivamente, à temperatura T1 e
T2 , T1 > T2 :
T (t, x1 , 0, x3 ) = T1
T (t, x1 , L2 , x3 ) = T2 (4.37)
t ≥ 0, 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3 , e as demais faces Γ′ = Γ\ {x2 = 0, x2 = L2 } do
paralelepipedo, isoladas termicamente:
n · ∇T |Γ′ = 0 . (4.38)
O campo de velocidades satisfaz, além da impenetrabilidade, a condição de não–
deslizamento na fronteira Γ:
v|Γ = 0 . (4.39)
94 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

4.2.2 Solução Estacionária


Vamos procurar uma solução independente do tempo v(x), T (x) e p = p(x) das equações
(4.36) em Ω com condições de fronteira em Γ = ∂Ω dadas por (4.37), (4.38) e (4.39). A
mais simples solução consiste em considerar

v = v (est) ≡ 0.

Esperamos que esta solução permaneça estável por perturbações se o gradiente de tem-
peratura T1 − T2 for pequeno comparado com o produto da viscosidade e difusibilidade
νχ, em unidades convenientes. Examinaremos a estabilidade em detalhes mais adiante.
Pela simetria do problema, T = T (x2 ) mantêm–se constante em cada plano

{(x1 , x2 , x3 ) , 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3 }

e as equações (4.36) ficam


 
α 1 ∂p
− 1 − (T − T0 ) g − = 0
ρ0 ρ0 ∂x2
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x1
1 ∂p
− = 0
ρ0 ∂x3
χT ′′ = 0 (4.40)

com T (0) = T1 e T (L2 ) = 0.


A solução da última equação é
 
(est) x2 x2
T (x2 ) = T2 + 1 − T1 . (4.41)
L2 T2

As duas equações do meio implicam p = p(x2 ) e substituindo (4.41) na primeira equação,


resulta
α
p′ = − (ρ0 + α(T1 − T0 )) g − (T1 − T2 )x2
L2
cuja solução é dada por
α
p(est) (x2 ) = p0 − (ρ0 + α(T1 − T0 )) gx2 − (T1 − T2 )x22 (4.42)
2L2

É conveniente reescrever as equações (4.36) em torno da solução estacionária v =


(est)
v ≡ 0, p = p(est) e T = T (est) . Fazendo a substituição de variáveis

u = v − v (est)
q = p − p(est)
θ = T − T (est)
4.2 Termohidráulica 95

em (4.36), levando em consideração


 que as equações (4.40) e condições de fronteiras,
satisfeitas por p(est) , T (est) , são lineares, resulta

Du αg 1
= θe2 − ∇q + ν∆u
Dt ρ0 ρ0
Dθ T1 − T2
= χ∆θ + e2 · u
Dt L2
∇·u = 0 (4.43)

com

u|Γ = 0
n · ∇θ|Γ′ = 0
θ(t, x1 , 0, x3 ) = θ(t, x1 , L2 , x3 ) = 0 (4.44)

t ≥ 0, 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3 . Para a segunda equação de (4.43), note que


DT Dθ
= + u · ∇T (est)
Dt Dt

= + e2 · uT (est)′
Dt
Dθ T2 − T1
= + e2 · u = χ∆θ = χ∆T .
Dt L2

4.2.3 Forma Adimensional das Equações


Sejam L, V , τ , e Q quantidades de dimensão de comprimento, velocidade, tempo e
pressão, não necessariamente independentes, que caracterizam o problema, e considere
as seguintes mudanças para variáveis adimensionais

x = Lx′
u = Uu′
t = τ t′
q = Qq ′

Multiplicando a primeira equação em (4.43) por L/U 2 = τ 2 /L, obtemos


Du′ α

= θ′ e2 − ∇′ q ′ + ν ′ ∆′ u′
Dt ρ0
onde
L
1 = g
U2
1 1
ν′ = ν=
LU R
Q
1 = .
ρ0 U 2
96 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

O número de Reynolds R foi introduzido na Subseção 4.1.5 como o parâmetro que es-
tabelece quando a viscosidade e a inércia do fluido são comparáveis. No experimento
de Bénard, L2 é um comprimento caracterı́stico e devemos usar a primeira relação para
estabelecer uma escala de velocidade:
p
U2 = gL2 .
Com isso, o número de Reynolds e as escalas de tempo e pressão ficam determinados por
1 ν
ν′ = = √ 3/2
R gL2
s
L2
τ =
g
Q = ρ0 gL2 .
Outra quantidade adimimensional, relacionada à condução do calor pelo fluido, depende
do gradiente T1 − T2 de temperatura entre os planos inferior e superior de Ω. Definindo,
θ = (T1 − T2 )θ′
α
α′ = (T1 − T2 )
ρ0
χ
χ′ = √ 3/2
gL2
temos que as equações de Navier–Stokes, na aproximação de Boussinesq, escrita em quan-
tidades adimensionais são dadas por
D ′ u′
= α′ θ′ e2 − ∇′ q ′ + ν ′ ∆′ u′
Dt′
D′ θ′

= χ′ ∆′ θ′ + e2 · u′
Dt
∇′ · u ′ = 0 (4.45)
sujeitas às condições de fronteira (4.44) com u e θ substituidos por u′ e θ′ .
Para abreviar a notação, daqui para frente omitiremos as linhas em todas as quantida-
des adimensionais nestas equações com excessão das constantes α′ , ν ′ e χ′ que determi-
nam, de fato, o regime do movimento do fluido. Convém ainda introduzir alguns números
convencionalmente utilizados na descrição de fenômenos em termohidrálica:
 2
1
Gr = número de Grashof
ν′
ν′ ν
Pr = ′
= número de Prandtl
χ χ
1
Ra = ′ ′ número de Rayleigh
νχ
Finda estas considerações, passemos para a questão de estabilidade da solução tri-
vial ( u, q, θ) = (0, 0, 0) correspondente à ausência de desvio da solução estacionária
(v (est) , p(est) , T (est) ).
4.2 Termohidráulica 97

4.2.4 Estabilidade da Solução Trivial


Para analisar a estabilidade de uma solução estacionária deve–se investigar em quais
condições as soluções dependentes do tempo de uma dada equação são levadas ao estado
estacionário desejado. É, em geral, mais fácil estudar a estabilidade por pequenos desvios
do que a partir de uma condição inicial arbitrária. O objetivo de uma análise dita local
consiste em encontrar as direções e correspondentes taxas de convergência para a solução
estacionária. Em uma linguagem mais técnica, traduzimos como encontrar as autofunções
e respectivos autovalores das equações linearizadas em torno da solução estacionária. As
dificuldades inerentes ao carater vetorial das equações (4.45), nos obrigam a postergar
este tipo de análise. É, no entanto, instrutivo investigar a estabilidade global da solução
trivial, mesmo que para isso faz–se necessário recorrer a uma desigualdade para se esta-
belecer a dominância da matriz Jacobiana ∇u do campo de velocidades sobre o campo
de velocidades u.
Multiplicando a segunda equação em (4.45) por θ, integrando em seguida sobre Ω,
somos levado a igualdade
Z  
∂θ
Z
3
+ u · ∇θ θd x = (χ∆θ + u2 ) θd3 x (4.46)
Ω ∂t Ω

que deve ser trabalhada com a finalidade de se investigar a estabilidade. Começando pelo
lado esquerdo desta equação, temos

∂θ 3 1 ∂ 2 3 d1
Z Z Z
θd x = θ d x= θ 2 d3 x
Ω ∂t 2 Ω ∂t dt 2 Ω

e, usando a incompressibilidade (terceira equação em (4.45)) e o teorema da divergência,

1
Z Z
3
(u · ∇θ) θd x = u · ∇θ2 d3 x
Ω 2
ZΩ
1 1
Z
2
 3
= ∇· θ u d x− (∇ · u) θ2 d3 x
2 Ω 2 Ω
1
Z
= θ2 u · ndS = 0
2 Γ

devido a condição de fronteira u|Γ = 0. Para o primeiro termo do lado direito de (4.46),
por uma estratégia similar, temos
Z Z
3
(∆θ) θd x = (∇ · ∇θ) θd3 x

ZΩ Z
3
= ∇ · (θ∇θ) d x − ∇θ · ∇θd3 x
ZΩ Z Ω
= θn · ∇θdS − |∇θ|2 d3 x
ΓZ Ω

= − |∇θ|2 d3 x (4.47)

98 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

pois, pelas condições de fronteira (4.44), θ = 0 nas faces inferior e superior de Γ e


n·∇θ = 0 nas demais faces laterais. Neste ponto faremos uso da desigualdade de Poincaré
Z Z
2 3
θ d x≤ |∇θ|2 d3 x
Ω Ω

válida para toda função


Z θ = θ(t, x) definida em R+ × Ω a valores reais, continuamente
diferenciável e tal que θd3 x = 0.

Substituindo estes resultados em (4.46), obtemos
d1
Z Z Z
2 3 ′
θ d x ≤ −χ θ d x + u2 θd3 x .
2 3
(4.48)
dt 2 Ω Ω Ω

Tomando, agora, o produto interno da primeira equação em (4.45) por u, integrando


em seguida sobre Ω, obtemos uma igualdade similar a (4.46)
Z  
∂u
Z Z
3 ′
+ u · ∇u · ud x = α u2 θd x + (−∇q + ν ′ ∆u) · ud3 x
3
(4.49)
Ω ∂t Ω Ω

cujo lado esquerdo pode ser tratado de maneira análoga à integral anterior:
∂u 1 ∂ d1
Z Z Z
2 3
3
· ud x = |u| d x = |u|2 d3 x
Ω ∂t 2 Ω ∂t dt 2 Ω
e
1
Z Z
3
(u · ∇u) · ud x = u · ∇ |u|2 d3 x
Ω 2
Z Ω Z
2  3
= ∇ · |u| u d x − (∇ · u) |u|2 d3 x
ZΩ Ω

= |u|2 u · ndS = 0
Γ

devido a condição de fronteira u|Γ = 0. Para o segundo termo do lado direito de (4.49),
temos
Z Z Z
3 3
∇q · ud x = ∇ · (qu) d x − q (∇ · u) d3 x
Ω ZΩ Ω

= qu · ndS = 0
Γ

devido a u|Γ = 0. Empregamos para o último termo um procedimento analogo a (4.47):


Z Z
3
(∆u) · ud x = (∇ · ∇u) · ud3 x

ZΩ Z
3
= ∇ · ((∇u) u) d x − (∇u) · (∇u) d3 x
ΩZ Z Ω
1
= n · ∇ |u|2 dS − |∇u|2 d3 x
2 Γ
Z ZΩ
= − |∇u|2 d3 x ≤ − |u|2 d3 x
Ω Ω
4.2 Termohidráulica 99
Z
devido a u|Γ = 0 e pela desigualdade de Poincaré com ud3 x = 0. Substituindo estes

resultados em (4.49), resulta
d1
Z Z Z
2 3 ′ 2 3 ′
|u| d x ≤ −ν |u| d x + α u2 θd3 x (4.50)
dt 2 Ω Ω Ω

Combinando as desigualdades (4.48) e (4.50) com uma desigualdade elementar


Z Z
3
u2 θd x ≤ |u| |θ| d3 x
Ω Ω

(note, para isso, que |u|2 = u21 + u22 + u23 ≥ u22 ) concluimos
d 1 2
Z Z
2 3
−χ′ θ2 − ν ′ |u|2 + (1 + α′ ) |u|2 |θ| d3 x .

θ + |u| d x ≤ (4.51)
dt Ω 2 Ω

Introduzindo o vetor
 
|θ|
Θ =
|u|2
Θ2 = Θ · Θ = θ2 + |u|2

e a matriz
1 + α′
 

 −χ 2
A =  1 + α′



−ν
2
a desigualdade (4.51) pode ser reescrita em uma forma mais compacta
d 1 2 3
Z Z
Θ d x≤ Θ · AΘd3 x
dt Ω 2 Ω

e juntamente com o seguinte resultado em álgebra linear


Proposição 4.45
Θ · AΘ ≤ λ+ Θ · Θ
onde
−1 ′ 1
q
λ± = (χ + ν ′ ) ± (χ′ − ν ′ )2 + (1 + α′ )2 (4.52)
2 2
são os autovalores de A.
obtemos para a função (funcional de Lyapunov)
1 2 3 1 2
Z Z
θ + |u|2 d3 x

U(t) := Θ d x=
Ω 2 Ω 2

uma cota superior para sua variação

U̇ ≤ 2λ+ U (4.53)
100 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

pela qual pode–se deduzir condições para que a solução trivial seja estável.
Prova da Proposição. A é uma matriz real simétrica e, portanto, diagonalizável por
uma transformação de similaridade ortogonal. Os autovalores e autovetores são obtidos
da equação
1 + α′
 

 −χ
   
2 1 1


 1 + α′
a a

−ν ′
2
que é equivalente ao par de equações
1 + α′
−χ′ + a = λ
2
1 + α′
− ν ′ = λa (4.54)
2
Resolvendo a equação para a:
2(χ′ − ν ′ )
a2 − a−1=0
1 + α′
resulta s
′ ′
2
χ −ν χ′ − ν ′
a± = ± +1
1 + α′ 1 + α′
que ao substituir na primeira equação em (4.54) leva a (4.52) (note que λ− ≤ λ+ ).
Definimos, em seguida, a matriz ortogonal X = [x+ x− ] com os vetores
 
1 1
x± = √
1 + a± a±
formando as colunas de X. Pode–se verificar que X T = X −1 e
 
λ+ 0
D= = X −1 AX .
0 λ−
Definindo Θ′ = X −1 Θ, temos
Θ · AΘ = XΘ′ · AXΘ′
= XΘ′ · XDΘ′
= Θ′ · X T XDΘ′
= Θ′ · DΘ′
2 2
= λ+ (Θ′1 ) + λ− (Θ′2 )
≤ λ + Θ′ · Θ′ = λ + Θ · Θ
2
Passemos a integração da desigualdade (4.53). Assumindo U =
6 0, a equação (4.53)
pode ser dividida por U e integrando ambos os lado, resulta
Z t Z t
U̇ /U ds ≤ 2λ+ ds
0 0
4.3 Camada Limite 101

Note que a desigualdade é preservada devido a U ser positivo. A desigualdade é também


preservada também por exponenciação:
Z U (t) !
exp dU/U ≤ exp (2λ+ t) ,
U (0)

de onde se conclui
U(t) ≤ U(0)e2λ+ t
e a função U(t) tende a zero quando t → ∞ se λ+ for negativo.
O autovalor λ− é, em vista da expressão (4.52), claramente negativo enquanto que o
autovalor λ+ é negativo se, e somente se,
2 2 2
(χ′ + ν ′ ) − (χ′ − ν ′ ) > (1 + α′ )
ou, equivalentemente, se e somente se
(1 + α′ )2
<1. (4.55)
4χ′ ν ′
Resta–nos concluir que a solução u(t, x) e θ(t, x) das equações (4.45) sujeitas às
condições de fronteira (4.44) e inicial u(0, x) = u0 (x) e θ(t, x) = θ0 (x) arbitrárias con-
verge, sob a condição (4.55), para a solução trivial u = 0 e θ = 0. Admitindo que as
soluções sejam regulares para todo t ≥ 0 (continuamente diferenciáveis o número de vezes
exigido pelas equações), temos
1 2
Z
θ + |u|2 d3 x = 0

lim U(t) = lim
t→∞ t→∞ Ω 2

e o integrando de uma integral de funções positivas tendendo a 0 se anula no limite:


lim |θ| = 0, lim |u| = 0
t→∞ t→∞

por continuidade.

4.3 Camada Limite


Considere as equações de Navier–Stokes para um fluido incompressı́vel homogêneo (com
ρ0 = 1) escrita em quantidades adimensionais:
Dv 1
= −∇p + ∆v
Dt R
∇·v = 0 (4.56)
em um domı́nio Ω de R3 , com v|Γ = 0 na fronteira Γ de Ω, quando o número de Reynolds
R é muito grande. Perguntamos como difere o movimento de um fluido governado por
(4.56) de um governado pelas equações de Euler para um fluido ideal (com ρ0 = 1):
Dv
= −∇p
Dt
∇·v = 0 (4.57)
102 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

no mesmo domı́nio Ω, sujeita a condições de fronteira (n · v) |Γ = 0.


Se em t = 0 o campo de vorticidades ξ = ∇ × v = 0 para todo x ∈ Ω, o movimento de
um fluido ideal permanece irrotacional para t > 0, e o fluxo (de trajetórias das partı́culas
do fluido) gerado pelo campo de velocidades v é, conseqüentemente, um fluxo potencial:
v = ∇ϕ para uma função ϕ harmônica (veja Proposição 3.27). Tomando o rotacional de
(4.56), obtemos, de maneira análoga a (3.2), uma equação para vorticidade

∂ξ 1
+ ∇ × (ξ × v) = ∆ξ (4.58)
∂t R
de um fluido real incompressı́vel em Ω. Note que ξ ≡ 0 é uma solução de (4.58) para
t ≥ 0, porém a equação (4.56) é parabólica (primeira ordem em t e elı́ptica na variável
x) e, como veremos no exemplo a seguir, a condição de fronteira v|Γ = 0 é, de certa
maneira, incompatı́vel com um campo de velocidades irrotacional na vizinhança de Γ.
1
Argumentaremos a seguir que a presença do termo ∆v em (4.56), e a mudança na
R
condição de fronteira, afeta

1. o movimento governado √por (4.57) drasticamente em uma região cuja distancia a


Γ é menor que δ = O(1/ R);

e esta região modificada, também denominada camada limite,

2. pode separar da fronteira Γ e

3. atua como fonte de vorticidade.

Embora a camada limite torna-se arbitrariamente pequena com o aumento de R, os


efeitos 2. e 3. persistem mesmo no limite.

4.3.1 Um Exemplo Simples


Considere um movimento planar no semi–plano Ω = {−∞ < x1 < ∞, 0 < x2 < ∞} e
suponha que Γ = {x2 = 0} seja uma fronteira rı́gida e a velocidade em x2 = ∞ paralela
ao eixo 1:
lim v(t, x1 , x2 ) = v0 e1
x2 →∞

Tentaremos encontrar uma solução em Ω da forma

v(t, x1 , x2 ) = (v1 (t, x1 , x2 ), 0)


p(t, x1 , x2 ) = p0

A única solução v (E) das equações de Euler (4.57) de acordo com estas exigências é
uniforme:
v (E) (t, x1 , x2 ) = v0 e1
Note que n · v|Γ = v2 (t, x1 , 0) = 0 é satisfeita por hipótese e esta condição basta para as
equações (4.57).
4.3 Camada Limite 103

Pela equação da continuidade,


∂v1
∇·v = =0
∂x1
v1 = v1 (t, x2 ) independe de x1 e as equações (4.56) se reduzem a equação do calor

∂v1 1 ∂ 2 v1
= (4.59)
∂t R ∂x22
em t > 0 e 0 < x2 < ∞ sujeita a condição de fronteira

v1 (t, 0) = 0
v1 (t, ∞) = v0 .

Vamos usar o fato que a equação (4.59) é invariante pela mudança de variáveis
t
t′ =
T
x2
x′2 =
L
se T = L2 . Escrevendo v1′ (t′ , x′2 ) = v1 (t, x2 ), temos

∂v1′ 1 ∂ 2 v1′
=
∂t′ R ∂x′22

e a solução de (4.59) é uma função de x2 / t:

v1 (t, x2 ) = v0 f (η)
r
R
η = x2 .
2t
Aplicando a regra da cadeia,
∂v1 −η
= v0 f ′
∂t 2t
1 ∂ 2 v1 1
2
= v0 f ′′
R ∂x2 2t
a equação (4.59) pode ser escrita como uma equação ordinária

f ′′ + ηf ′ = 0 (4.60)

satisfazendo f (0) = 0 e f (∞) = 1. Integrando duas vezes, temos


 2
′ −η
f (η) = B exp
2
Z η  2
−ξ
f (η) = f (0) + B exp dξ
0 2
104 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

onde B é fixado por



−ξ 2
  r
π
Z
B exp dξ = B =1
0 2 2
p
de onde se conclui que B = 2/π e
r !
R
v1 (t, x2 ) = 2v0 erf x2
2t

com a função erro definida por1


η
−ξ 2
 
1
Z
erf (η) = √ exp dξ .
2π 0 2

A largura δ da camada limite deste problema para t fixo é obtida observando, pela
definição e tabela a seguir,

2erf (1) = 0.682 69


2erf (2) = 0.954 50
2erf (3) = 0.997 3
..
.
2erf (∞) = 1

que a função erro converge muito rapidamente√para o ponto de saturação. Excluindo uma
vizinhança da fronteira de largura δ = O(1/ R), v1 (t, x2 ) é praticamente igual a v0 e
não se distingue de v (E) (veja Figura 4.1).
A largura δ pode também ser estimada pela derivada da inversa v1−1 de v1 em v1 = 0:
r r
∂v1−1

∂v1 1 2t 1 πt
(t, 0) = 1 (t, 0) = = .
∂x2 ∂x2 v0 f ′ (0) R v0 R

Separação da fronteira. Explicaremos por um argumento intuitivo os mecanismos que


levam a camada limite a separar–se da fronteira Γ pela ação da viscosidade.
Considere o movimento irrotacional de um fluido ideal passando por um cilı́ndro na
origem de raio a com o campo de velocidades distante da origem uniforme. Na repre-
sentação planar do movimento a superfı́cie do cilı́ndro é uma circunferência Γ formada
por duas linhas de correntes (semi–cı́rcunferência superior e inferior) divididas por dois
pontos de estagnação A e C.
De acordo com a equação de Bernoulli (com ρ0 = 1), a quantidade

1 2
H =p+ |v|
2
1 Note que a função erro adotada difere um pouco da definição mais comumente encontrada nos textos erf(η) =
` √ ´ η
Z
exp −ξ 2 dξ.
` ´
1/ π
0
4.3 Camada Limite 105
!!!!!!!!!!!!!!
x2 2 t  R

1.5

0.5

v1 v0
0.2 0.4 0.6 0.8 1

FIGURE 4.1. Perfil do campo de velocidades próximo à fronteira Γ.

é mantida constante ao longo das linhas de corrente. Aplicando esta equação em Γ, uma
partı́cula do fluido partindo do ponto de estagnação A com velocidade 0 e pressão p0 ,
atinge um ponto intermediário B sobre a circunfêrencia com velocidade máxima v 1 e
pressão mı́nima p1 retornando, em seguida, ao ponto de estagnação C com velocidade 0
e pressão p0 . Sua trajetória se assemelha a de uma partı́cula sujeita a um potencial cujo
perfil é uma senóide, movendo–se entre dois máximos consecutivos.
Considere agora o movimento de um fluido real passando pelo mesmo cilı́ndro. Devido
ao efeito da viscosidade e mudança na condição de fronteira, esperamos que este movi-
mento, com exceção de uma camada limite formada na próximidade de Γ, se assemelhe
ao de um fluido ideal irrotacional. Ocorre, porém, que ao formar–se a camada limite esta
acaba favorecendo a separação da fronteira na parte posterior do cilı́ndro. O argumento
para isso é o seguinte.
Primeiramente, notamos que o ponto de estagnação C antecede o ponto diametralmente
oposto a A. Fazendo uso da analogia de uma partı́cula sujeita a um potencial senóidal, a
presença da viscosidade no fluido acrescenta um termo dissipativo de fricção e a energia
cinética máxima da partı́cula no ponto B não é mais suficiente para levá–la ao segundo
máximo da senóide, antecipando o ponto de estagnação C. A camada limite separa da
fronteira neste ponto, pois o fluxo de partı́culas do fluido na camada logo acima do arco
AC segue uma trajetória para o infinito, evitando a região posterior do cilı́ndro.
O argumento capaz de descrever intuitivamente o efeito de separação não é matema-
ticamente correto. A presença da viscosidade não somente freia as partı́culas próximas
a fronteira Γ como também destroi a validade do Teorema de Bernoulli! Como os fa-
tos experimentais confirmam a separação da camada limite, deve ter algo que possa ser
aproveitável. Z
Vorticidade. É fácil de se convencer que a circulação γC = v · dx é estritamente
C
negativa em qualquer circuito C na camada limite do exemplo da Subseção 4.3.1. Devido
106 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

ao gradiente não nulo do campo de velocidade na direção paralela ao eixo 2, a contribuição


para a circulação é maior nas partes de C mais afastadas de Γ do que na partes mais
próximas a Γ. Pelo mesmo motivo, a circulação γC é não nula na camada limite formada
próxima a fronteira Γ do cilı́ndro tendo o sinal negativo na parte superior e positivo na
parte inferior.
Considere no lugar do cilı́ndro um obstáculo aerodinámico como, por exemplo, o fólio
cujo perfil Γ é a imagem da circunferência pelo mapa conforme (3.32). Na Teoria de
Kutta–Joukowski ajustamos a singularidade do mapa exatamente sobre o ponto de es-
tagnação C posterior. Este ajuste faz com que a linha de corrente partindo de C para o
ininito divida as partı́culas fluindo acima e abaixo desta linha e a velocidade do fluido
em Γ seja praticamente igual a velocidade máxima v 1 por toda cauda do fólio.
O argumento utilizado para a camada limite separar da fronteira em um fluido real
passando por um obstáculo não se aplica ao fólio pois a presença da viscosidade não
divide e traz para frente o ponto de estagnação C como anteriormente.
Permanecendo a camada limite próxima a Γ, procuramos entender a origem da força F
de sustentação exercida por um fluido ideal sobre um fólio, dada pela fórmula de Blassius,
como um processo limite. Pelo Teorema 3.39 F é proporcinal à circulação γ e para haver
sustentação γ deve ser negativa. Na Teoria de Kutta–Joukowski γ depende do ângulo de
ataque α (veja equação (3.34)) de tal forma que se α > 0 o comprimento de arco AC
entre os pontos de estagnção medido por cima do fólio é maior que o comprimento de
arco por baixo. A camada limite dá origem, desta maneira, a um excesso de circulação
negativa que persiste mesmo no limite R → ∞ e coincide com γ.

4.3.2 Interpolação da Camada Limite


Dado que o movimento de um fluido real em Ω difere do movimento de um fluido ideal
em uma camada limite próxima a fronteira Γ, e considerando que são raras as soluções
exatas das equações (4.56), a pergunta natural a fazer é se não poderiam ser obtidas
das equações de Euler por perturbação. Não há esperança de poder aplicar uma teoria
perturbativa usual visto que o termo de perturbação a (4.57) muda de primeira para
segunda ordem estas equações. Nesta subseção empregaremos a técnica de perturbação
singular em um exemplo simples de equação diferencial ordinária.
Considere a equação
εu′′ + xu′ − xu = 0 (4.61)
no domı́nio 0 < x < 1 com condições de fronteira
u(0) = 0
u(1) = e .
A teoria de perturbação usual recomenda procurar uma solução na forma
u(x) = u0 (x) + εu1 (x) + · · ·
Substituindo na equação, temos
u′0 − u0 = 0
u′′0 + xu′1 − xu1 = 0
.. .
. = ..
4.3 Camada Limite 107

cuja solução é

u0 (x) = Aex
u1 (x) = (B − A ln x) ex
.. .
. = ..

Notamos que não é possı́vel impor as condições de fronteira na ordem dominante. Ou


u0 satisfaz u0 (1) = e com A = 1 ou satisfaz u0 (0) = 0 com A = 0, sendo a segunda
solução identicamente nula e, portanto, sem interesse.
Afim de tratar a equação na vizinhança da origem, devemos estabelecer uma escala l
tal que o primeiro termo da equação seja da ordem do segundo termo. Temos

u(l) − u(0) 1
u′ ∼ = u(l)
l l
u(l)/l − u(0)/l 1
u′′ ∼ = 2 u(l)
l l
e, portanto, os dois primeiros termos se comparam
ε 1
εu′′ ∼ 2
u(l) = l u(l) ∼ xu′
l l

se l = O( ε). Note que o terceiro termo é desprezı́vel nesta escala

xu ∼ lu(l) = O( ε)

Definindo
φ(y) = u(x)

para y = x/ ε a equação (4.61) reduz a

φ′′ + yφ′ − εφ = 0 (4.62)

que pode ser tratada por perturbação. Substituindo



φ(y) = φ0 (y) + εφ1 (y) + · · ·

em (4.62), temos

φ′′0 + yφ′0 = 0
φ′′1 + yφ′1 − yφ0 = 0
.. .
. = ..

A equação do termo dominate sujeita a φ0 (0) coincide com (4.60) e, portanto,


Z y  2
−ξ
φ0 (y) = B exp dξ
0 2
108 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicações

onde B é uma constante a ser fixada pela seguinte condição

c = lim φ0 (y) = lim u0 (x) = 1


y→∞ x→0

p
de onde se conclui que B = 2/π e a solução interpolante de ordem mais baixa é dada
por
(interp) √
u0 (x) = u0 (x) + φ0 (x/ ε) − c
 
x x
= e + 2erf √ −1
ε

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