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A tua morte em mim Metamorfose

(excerto)

Ao pé dos cardos sobre a areia fina 
À memória de Raquel Moacir que o vento a pouco e pouco amontoara 
contra o seu corpo (mal se distinguia 
tal como as plantas entre a areia arfando) 
A tua morte é sempre nova em mim. um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto? 
Não amadurece. Não tem fim. E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas, 
Se ergo os olhos dum livro, de repente quantos luares nas águas ou nas nuvens, 
tu morreste. tisnado haviam essa pele tão lisa 
Acordo, e tu morreste. em que a penugem tinha areia esparsa? 
Sempre, cada dia, cada instante, Negros cabelos se espalhavam onde 
a tua morte é nova em mim, nos braços recruzados se escondia o rosto. 
sempre impossível. E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos
no breve espaço em que o seu bafo ardia? 
E assim, até à noite final Mas respirava? Ou só uma luz difusa 
irás morrendo a cada instante se demorava no seu dorso ondeante 
da vida que ficou fingindo vida. que de tão nu e antigo se vestia 
Redescubro a tua morte como outros da confiada ausência em que dormia? 
redescobrem o amor, Mas dormiria? As pernas estendidas, 
porque em cada lugar, cada momento, com um pé sobre outro pé e os calcanhares 
tu estás viva. um pouco soerguidos na lembrança de asas; 
as nádegas suaves, as espáduas curvas 
Viverei até à hora derradeira a tua morte. e na tão leve sombra das axilas 
Aos goles, lentos goles. Como se fosse adivinhados pêlos... Deus ou deusa? 
cada vez um veneno novo. Há quanto tempo ali dormia? Há quanto? 
Não é tanto a saudade que dói, mas o remorso. Ou não dormia? Ou não estaria ali? 
O remorso de todo o perdido em nossa vida, Ao pé dos cardos, junto à solidão 
coisas de antes e depois, coisas de nunca, que quase lhe tocava do areal imenso, 
palavras mudas para sempre, um gesto do imenso mundo, e as águas sussurrando ­ 
que sem remédio jamais teve destino, ­ou não estaria ali?... E um deus ou deusa? 
o olhar que procura e nunca tem resposta. Imagem, só lembrança, aspiração? 
De perto ou longe não se distinguia.
O único presente verdadeiro é teres partido.
Jorge de Sena
Adolfo Casais Monteiro
Sabedoria Amor é fogo que arde sem se ver

Desde que tudo me cansa,  Amor é fogo que arde sem se ver;
Comecei eu a viver.  É ferida que dói e não se sente;
Comecei a viver sem esperança...  É um contentamento descontente;
E venha a morte quando  É dor que desatina sem doer;
Deus quiser. 
É um não querer mais que bem querer;
Dantes, ou muito ou pouco,  É solitário andar por entre a gente;
Sempre esperara:  É nunca contentar­se de contente;
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco  É cuidar que se ganha em se perder;
Voava das estrelas à mais rara; 
Outras, tão pouco,  É querer estar preso por vontade;
Que ninguém mais com tal se conformara.  É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Hoje, é que nada espero. 
Para quê, esperar?  Mas como causar pode seu favor
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;  Nos corações humanos amizade,
Se quero, é só enquanto apenas quero;  Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar... 
E venha a morte quando Deus quiser.  Um mover d'olhos, brando e piadoso

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Um mover d'olhos, brando e piadoso,
Continuam brilhando, altas e belas.
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
José Régio quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
Horas breves de meu contentamento
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
Horas breves de meu contentamento   üa pura bondade, manifesto
Nunca me pareceu quando vos tinha,   indício da alma, limpo e gracioso;
Que vos visse mudadas tão asinha  
Em tão compridos anos de tormento.  um encolhido ousar; üa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
As altas tôrres, que fundei no vento,   um longo e obediente sofrimento;
Levou, em fim, o vento que as sostinha; 
Do mal que me ficou a culpa é minha,   esta foi a celeste fermosura
Pois sôbre cousas vãs fiz fundamento.   da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
Amor com brandas mostras aparece:  
Tudo possível faz, tudo assegura;   Luís de Camões
Mas logo no melhor desaparece. 

Estranho mal! Estranha desventura!  
Por um pequeno bem, que desfalece,  
Um bem aventurar, que sempre dura!

Luís de Camões
Quando ela passa

Quando eu me sento à janela
P'los vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa... passa... passa...

Lançou­me a mágoa seu véu: ­
Menos um ser neste mundo
E mais um anjo no céu.

Quando eu me sento à janela,
P'los vidros que a neve embaça
Julgo ver a imagem dela
Que já não passa... não passa...

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Dá a surpresa de ser

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

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