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“BRINCAR DE CAIR” / TENTATIVA DE DESLOCAR-SE EM UM LUGAR

IMAGINÁRIO

Fernanda Andrade - Psicóloga do Centro Médico


Psicopedagógico Infantil - Hospital Geral Otávio de Freitas
Serviço da Secretaria do Estado de Pernambuco.

Convivo com crianças diagnosticadas de autistas e psicóticas, já há 9


anos, no campo de trabalho, e ainda continuo a me surpreender, para não dizer, a me
desconcertar, com alguns de seus comportamentos bizarros. Atualmente, o deslocar
dos seus corpos no espaço tem recebido destaque ao meu olhar.

Deparo-me com algumas crianças que parecem “vaguear a esmo”


lembrando um barco a deriva; outras, agarradas às paredes, banindo os espaços livres e
amplos, como se evitassem ser tragadas por algum buraco, ou, quando o fazem,
lembram equilibristas de circo numa corda bamba. Acrescentando a estas, outras que
parecem marionetes que despencam e se erguem aos rápidos e ágeis movimentos das
cordas invisíveis de um manipulador. Para nos deixar ainda mais tontos, há também
aquelas que parecem bailarinos incansáveis, que dançam e rodopiam nas pontas dos
pés.

Tais cenas que presencio há algum tempo neste Centro não passam
despercebidas, embora pela repetição tragam uma sensação de familiaridade, exigindo
uma elaboração.

Diante dessas cenas e impregnada pelo dualismo cartesiano,


pergunto-me:

a) Há Sujeito ( subjetivado ) que habite esses corpos ?

b) Se há Sujeito, vivem num corpo sem delineamento ?

c) Se há Sujeito, em que lugar se encontra siderado, amarrado,


impossibilitado de se locomover ?

O que por associação me vem imediatamente à mente é o “nome”


de um livro de Milan Kundera: A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER.

O percurso que pretendo desenvolver aqui, consiste num transitar


por tais questões, fruto da convocação feita por essas estranhas cenas diárias.

1) PRAZER NO MOVIMENTO
Para começar, reporto-me às hesitações, vacilações e tropeços de
uma pequena criança, na tentativa da aquisição da postura ereta, algo da ordem do
humano. Essas sensações, embora, certamente, já esquecidas por nós, adultos, podem
ser reavivadas, quando por algum motivo somos acometidos por vertigem, tontura e
tremores.

Assinalo já, neste momento, que este ato motor tão peculiar ao
humano de erguer, sustentar e se mover no espaço não implica apenas na maturação
do sistema neuromuscular. De que mais, então, depende ? Lacan, no seu Seminário
“As Psicoses”, diz: “O subjetivo aparece no real na medida que supõe que temos à
nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo do significante. E
capaz de servir-se dele não para significar algo, mas precisamente para enganar sobre o
que se tem de significar”1.

Para abordar este aspecto do prazer que está implicado no


movimento, lembrei-me de um fragmento do artigo de Freud, a “Interpretação dos
Sonhos” ( l900 ), quando ele destaca o quanto as crianças gostam e solicitam
incessantemente jogos que envolvam movimento: “Não pode haver um único tio que
não tenha mostrado a uma única criança como voar, arremessando-se com ela pela sala
em seus braços estendidos, ou que não tenha brincado deixando-a cair e fazendo-a
cavalgar em seu joelho e então de súbito, estirando a perna, ou levantando-a bem alto
e, subitamente, fingindo que vai deixá-la cair. As crianças adoram tais experiências e
nunca se cansam de pedir que as repitam, mormente se produzirem algo que cause um
pequeno susto ou tonteira”2. E continua: “o prazer que as criançinhas desfrutam nas
brincadeiras desta espécie (bem como em balanços e gangorras) é bem conhecido;
quando passam a ver façanhas acrobáticas num circo, sua lembrança das mesmas é
reativada” 3(Freud, l900).

Essas experiências são posteriormente reativadas nos sonhos,


embora que nesses, as mãos que antes as sustentavam são agora retiradas. Por este
motivo, neste tipo de sonhos, ou as crianças flutuam ou terminam caindo sem apoio.
Portanto, sensações antes agradáveis ligadas a essas experiências são transformadas em
angústias.

Freud, inclusive, assinala que os jogos de movimento, embora


puros em si mesmos, produzem sensações sensuais.

Os sonhos de cair, principalmente nas mulheres, podem receber


a significação de “rendição a uma tentação erótica”, afirma Freud. As expressòes
populares tão comuns para designar o estar apaixonado, tais como: “arriado” ou
“caidinho” de amor ratificam essa conotação de queda do estado amoroso.

Os sonhos de vôos são sonhos de ereção, segundo o Dr. Paul


Federn, como cita Freud: “pois a notável manifestação de ereção, em torno da qual a
imaginação humana tem constantemente se entretido, não pode deixar de ser
impressionante, envolvendo, como acontece, uma aparente suspensão das leis da
gravidade” 4
A Interpretação erótica dos sonhos de voar também é apoiada
por Mourley Vold, na medida que aponta para a “intensa sensação de vibração no
corpo que acompanha tais sonhos e ressalta a frequência com que estão ligados à
ereção ou ejaculações”5, cita o pai da psicanálise.

A partir disto, podemos perceber o quanto as sensações


decorrentes da mudança de aceleração ( redução/ aumento) e de orientação (“ir em
frente”/ “marcha ré”, de “pé no chão”/ de flutuar, de rodopiar e de cair ) do corpo no
espaço, estão associadas ao erótico.

O que, então, ocorre com tais crianças autistas e psicóticas que


apresentam tais peculiaridades na locomoção ?

2) DIFICULDADES NA LOCOMOÇÀO versus


IMPOSSIBILIDADE
DE TRÂNSITO SUBJETIVO

Continuando no legado do pai da psicanálise, apesar de se


tratar de um caso de neurose, o jovem Hans tomou conta das minhas lembranças.
Criança de 4 anos e 9 meses, quando foi capturado por uma “crise psicológica”
nomeada de fobia. Diz-se “capturado”, porque o que ocorre não é que o sujeito
desenvolva uma neurose, mas sim que ele é encerrado nela, afirma Lacan no Seminário
“A Relação de Objeto”. Além disso, diz que o jogo significante se apodera do sujeito
com suas próprias leis, tomando-o muito para além daquilo que se possa intelectualizar
( Lacan, l957 ).

Essa crise restringiu a sua liberdade de movimento, chegando


até a inviabilizar Hans de sair à rua.

Apesar de “imobilizado”, Hans mostra-se bastante interessado


no circuito do cavalo, ou seja, no tráfego que ocorre diante de sua casa na famosa
estação. Fica extremamente atento à chegada e partida dos cavalos atrelados às suas
carroças, aos atos de carregar e descarregá-las e ao que é capaz de se despreender ou
cair, quando de um movimento brusco de partida.

Hans deseja poder ultrapassar o seu campo limitado de


locomoção e atingir a rampa de descarregamento para subir numa das carroças, onde
já havia visto anteriormente alguns meninos brincando em cima de caixotes e sacos.
Hans expressa seu medo e o seu pai interpreta-o como sendo decorrente do fato de
que o cavalo, entrando em marcha de repente, não lhe restasse tempo de descer e ele,
consequentemente, se afastaria de casa, podendo não mais voltar. Hans não aceita tal
interpretação, dizendo-lhe que poderia falar onde morava e o trariam de volta. Lacan,
indo de encontro a esta explicação mais óbvia, destaca tal dado, assinalando que talvez
seja exatamente o não conseguir sair de um lugar, faça o que se fizer, é que esteja em
questão (Lacan, l957).

Este lugar de que se trata, certamente, está posicionado em


relação ao desejo materno, lugar este extremamente desejado, mas, por outro lado,
também temido, que o aprisiona. Lacan, neste mesmo seminário, afirma: “este está
aprisionado, de saída, na relação de engodo onde se desenrola inicialmente o jogo do
falo. Isto é bastante para manter entre sua mãe e ele um movimento progressivo cujo
objetivo, a perspectiva, o sentido, é a identificação perfeita com o objeto do amor
materno”6.

Hans tem uma outra fantasia relativa ao circuito da estrada de


ferro chamada cena da plataforma, onde poderemos observar o giro significante que
Hans opera: de que ele parte e para chegar a quê. Ele parte no trem junto com sua avó,
antes que o pai conseguisse descer a passarela, inviabilizando-o de ir com eles. Hans
faz uma construção impossível de que, ao mesmo tempo, chega ao ponto de partida ( a
plataforma ) a tempo de pegar o segundo trem agora com o pai. Lacan salienta que
“não se pode deixar de ver a relação existente entre a ida e volta implacável em direção
à mãe, e o fato de que, um belo dia, sonha-se pelo menos com tornar a partir no
caminho certo com o pai”7.

Portanto, essa impossibilidade de se deslocar pelos cantos da


cidade onde morava, retratava uma medida que Hans lançou mão para dar conta de um
lugar subjetivo ocupado, ou seja, não se refere ao medo do trânsito em espaços
específicos da cidade, mas de dimensões outras, onde Hans era colocado pelo desejo
materno e pela insuficiência paterna..

Sendo a mãe uma “fera” buscando algo para devorar, a


questão da criança seria como saciar o desejo materno com respeito à sua falta fálica.
Hans solicita ao pai para que se ocupe um pouco mais da mãe, para que ela o deixe.
Insuficiente, enquanto pai terrível, de que Hans necessitaria para sair do domínio
materno, Hans necessitou do cavalo, no lugar do pai, no lugar da castração que
esperava do lado paterno.

No final das contas, espera-se que se instale a dinâmica do


desejo, ou seja, que não se deseje algo em específico, mas que o desejo seja sempre de
uma outra coisa, sempre fadado à insatisfação.
O desejo materno, portanto, é soberano em possibilitar aos
descendentes efetuar um percurso em seu próprio nome ou apagar-se enquanto
Sujeito.

Por conseguinte, em que lugar essas crianças ”imobilizadas


no andar” foram colocadas no desejo materno ?

3) AUTISMO
Marie Christine Lasnik-Penot, estudiosa desses severos
distúrbios, tendo Lacan como fonte fecunda de inspiração, situa o autismo num tempo
pré-especular, num “tempo lógico anterior a constituição do Estágio do Espelho”. Por
não encontrar lugar no imaginário materno, não chega a assumir antecipadamente uma
imagem de totalidade de si, vivendo no reino da dispersão angustiante do corpo, no
tempo da fragmentação. Portanto, o corpo não ganha consistência imaginária.

Lacan fala sobre este tempo de fragmentação: “... os


pedaços do corpo original são ou não tomados, apreendidos no momento em que i(a)
tem a ocasião de se constituir. É por isso que devemos apreender que antes da fase do
espelho, o que será i(a) está na desordem, pequenos a que ainda não se questiona tê-
los ou não. E é a isso que responde o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo para
dar ao termo de auto-erotismo, é que se tem falta de si, se assim posso dizer, do tudo
ao tudo. Não é do mundo exterior que se tem falta, como se exprimem
impropriamente, é de si mesmo” 8 .

Portanto, podemos pensar que enquanto não se ascende à


apreensão da imagem especular do corpo, a criança fica “perdida” nas dimensões do
tempo, espaço; enfim, da sua história.

Continua Lacan, neste mesmo seminário: “precisamos


primeiro e primitivamente em sua constituição de sujeito considerar como anterior a
esta constituição uma certa incidência que é a do significante. O problema é a entrada
do significante no real e ver como disto nasce o sujeito”9.

Eliane Pirard - Van Diere, outra estudiosa desse assunto,


define o lugar de um bebê autista “como o lugar de um vivo percebedor que caminha
lado a lado com o Outro sem que o significante venha traçar a marca de seu corte
sobre o corpo” 10 no seu artigo “O Autismo seria uma resposta a um tipo particular
de melancolia parental ?”. Continua, afirmando que a sua hipótese é que no autismo
haveria uma ausência de marca corporal pelo significante e que isto seria um efeito do
fracasso da primeira identificação por incorporação.

Outros autores, também pautados na concepção lacaniana ,


ratificam essa particularidade da posição do autista em relação ao campo do Outro.
Levando-se em consideração que é nesse campo, que o sujeito irá se servir dos
significantes, construindo sua identidade, talvez no caso do autismo, ele não encontre
nesse campo a estrutura significante mínima que lhe permita realizar o fort-dá, afirma
Souza Lima. Portanto, compromete-se o habitar do simbólico no corpo, como corpo
significante, nomeado. Souza Lima, continua: “Em consequência, parece ficar imersa (
a criança ) no puro real, possuída por um gozo absoluto, excluída da relação ao Outro”
11.

Então, do lado deste campo opaco do Outro, o sujeito não poderá


se servir da trama significante, ou seja, do dom da equivocidade da cadeia significante.

Vale salientar que outros teóricos, ao contrário da linha de


raciocínio anteriormente exposta, apontam para o fato de que dizer que o autista está
fora do campo do Outro é abusivo e talvez eticamente inadequado. Além disso, dizer
que está no campo do Outro implica em localizá-lo em relação à estrutura do
significante. Será que isto se constitui mesmo numa contradição, ou numa possível
brecha para novos questionamentos ?

Eliane Pirard - Van Diere continua os seus comentários, no artigo


citado acima, perguntando-se: “Será que é o lugar da criança na estrutura subjetiva da
mãe que provocaria esse fracasso ?”.

Ela descreve uma melancolia parental que alteraria a dialética da


função mãe: “O Outro, encarnado pela mãe, seria como que um espelho sem estanho,
uma presença cuja falta não inscreveria a possibilidade de um movimento de vai-e-vém,
o de presença-ausência”12 . Continua, afirmando que o “bebê permanece para ela um
pedaço de corpo desligado, pedaço entretanto vivo do qual a mãe satisfaz as
necessidades fisiológicas de maneira automática, com um imaginário imobilizado e uma
palavra esvaziada”13 . A mãe estaria demasiadamente presente no nível da
necessidade, mas ausente ao que poderia ser dito no nível do desejo.

Portanto, ao contrário do que se imagina, o que provoca


angustia não são as ausências maternas, já que quando normalmente regulada, aponta
para a segurança de seu retorno. Porém, o que angustia é a insegurança materna, que
leva a mãe a atender tão imediatamente as necessidades de seu filho, retirando a
mínima possibilidade da dimensão da falta, a partir da qual o desejo poderá emergir.
Por conseguinte, Lacan diz que a angústia surge, quando ‘ a falta vem a faltar “.

A partir dessas concepções teóricas, comecei a pensar nas


impossibilidades e irreverências do brincar do autista.

A clínica evidencia a intolerância dessas crianças a qualquer


separação com respeito a um objeto inanimado. Parece SER a água que escorre, a bola
que desaparece, etc. Colocar esse “ir embora”, esse “esvair-se” à distância é a sua
razão de viver.

4 ) PSICOSE INFANTIL

Situa-se, por outro lado, a psicose infantil no tempo especular,


ou seja, a criança fica prisioneira da relação imaginária do Estágio do Espelho. Apesar
do que se coloca, não se segue uma linha de pensamento evolucionista na constituição
do Sujeito.

Este estágio consiste na identificação fundamental, durante a


qual a criança assume a imagem do corpo próprio. Esta identificação irá promover a
estruturação do Eu, terminando com essa vivência psíquica singular que Lacan
denomina como fantasma do corpo esfacelado.

A criança antecipa a conquista da unidade funcional de seu próprio


corpo, ainda inacabado nesse momento, no plano da motricidade voluntária.
No início da situação imaginária, a criança é engajada numa
dinâmica desejante, embora alienada ao desejo da mãe. Isto ocorre porque a mãe
pressentida como faltante pode ser imaginariamente preenchida pelo objeto de desejo
que lhe falta ( falo ), objeto este que a criança pode imaginariamente se identificar.

Na medida em que a mãe demonstra interesse pelo que vem do


lado do pai, a criança começa a cair deste lugar. Essa mediação simbólica só se efetua
na medida que do lado materno, ela deve significar à criança sua dependência desejante
face ao pai; e do lado paterno, este não deve deixar de confirmar sua incidência,
colocando-se como aquele que dita a lei à mãe.

Por isso, torna-se mais claro a seguinte afirmação de Lacan: “a


criança mais amada é justamente aquela que um dia deixou inexplicavelmente cair”14 .

Portanto, a criança tem que renunciar a SER o objeto de desejo da


mãe e deve reconhecer o pai como aquele que TEM e pode dá-lo à mãe.

A criança abandona, assim, a sua posição inicial de


ASSUJEITADO e tece um caminho a posição de SUJEITO desejante que se esboça.

Segundo Jerusalinsky, outro teórico extremamente atento a essas


patologias, nas crianças psicóticas, “há um nome-do-pai, embora ele não possa exercer
a sua função”. Continua: “há inscrição do Sujeito, numa posição tal, que esta inscrição
não pode ter consequências na função significante ... a criança psicótica recebe a
demanda do Outro numa posição em que a inscrição produzida exige, para se manter,
sua repetição no Real. É por isto que a criança psicótica responde com o seu corpo à
demanda do Outro sob a forma de agitação motora, debatendo-se em hiperatividade,
sob a forma de grito, ou demorando suas aquisições evolutivas no campo da
motricidade” 15.

5) UM CORPO QUE INSISTE EM CAIR

Na clínica, observo a passagem de um estado onde as crianças


não suportam o cair do seu corpo no espaço a de um outro de intenso prazer,
recorrendo a estas situações de uma forma lúdica e incessante. O que elaboram nesse
brincar ? Cair, implica sair de um para outro lugar ? O que cai, quando o seu corpo cai
?

Essas perguntas surgiram no exato momento em que observei o


desenrolar desses estados numa determinada criança tratada neste Centro.
Inicialmente, apresentava-se bastante hiperativa, jogando-se estabanadamente no
espaço. O seu corpo era uma ferida só e, pensava eu, ele está em “carne viva” ou
“vivia na carne”. As cicatrizes, outras, antes feridas abertas, eram marcas no corpo ...
forma de talvez inscrever ou escrever sua história ? Logo, no primeiro dia de
atendimento, joga-se no chão e “lasca” a cabeça, sendo levado imediatamente ao
serviço de emergência.

Ao longo do tratamento, as suas quedas sofreram transformações.


No balanço do pátio, amarrado aos galhos de um grande jambeiro, ele se lança
agilmente, de um lado para o outro, quase rente ao chão, num vôo rasante, testando o
limite mínimo entre o seu corpo e a superfície. De outra forma, imprime também um
movimento circular em torno do tronco desta grande árvore, enrolando e
desenrolando-se ( ou talvez melhor dizendo, colando e descolando-se ) com intenso
prazer repetitivamente. Para completar, sobe pelas meias-paredes e, antes de se lançar
no espaço, diz: “Socorro, vou cair, vou cair” ... e entre risos, já no chão, completa:
“caiu”, num tom de que isto é algo inevitável. Perguntava-me: quando foi que a
angústia que acompanhava esses momentos de queda tinha dado lugar ao intenso
prazer ? Parecia que o ato puro de se jogar no chão tinha se transformado em brincar,
brincar este de testar a consistência de algo simbólico que agora parecia sustentar e
contê-lo. Ele sai de uma posição onde despencava, a uma outra, onde embora caia, fica
pendurado.

Remeto-me novamente a Jerusalinsky: “O que ocorre na psicose


? Aquilo que dá sustento à criança para produzir o seu sintoma, que é a consistência do
significante fundamentado no Nome-do-Pai lhe falta. E, à falta da consistência deste
significante pela forclusão do Nome-do-Pai, a criança fica brutalmente catapultada a
um dos dois extremos desta contradição: ou fica totalmente tomada do lado do auto-
erotismo, ou fica totalmente tomada do lado da alterização absoluta. Evidentemente,
nestes dois extremos ela luta por se desengatar dessa posição que a sidera e a deixa
incessantemente na posição de queda, tanto de um lado quanto do outro. A situação de
queda lhe é inexorável, porque não pode deslizar nem sequer um passo sem encontrar
à sua frente o abismo, já que o que a sustenta na borda do abismo é a cadeia
significante, e se essa cadeia não tem consistência, ela despenca. É por isso que as
crianças brincam de cair” 16. Ele continua, dizendo: “... é nessa queda que elas fazem
o registro de “o que” as recolhe ... exatamente do mesmo modo, a criança comprova
nesta brincadeira de cair ou de lançar objetos, a consistência da sua corda significante”
17.

Fui tomada pela semelhança do brincar do neto de Freud, que fazia


uso de um carretel, jogando e puxando-o através de um fio e dessa criança , que se
lançava no ar através das cordas visíveis do seu balanço e das invisíveis no ato de cair.

Segundo Freud, o seu neto de l8 meses, através desse jogo


do carretel, procurava lidar com o aparecimento e desaparecimento maternos, ou seja,
tinha a ilusão de controlar ativamente as idas e vindas maternas, realidade esta que lhe
escapava. Vale salientar que este ato era acompanhado pelos sons fort ( ir embora ) e
dá ( voltou ), atestando o momento do nascimento do significante. Então, é no
significante que alguma coisa de uma dimensão passa a ser registrada numa outra
ordem, como a da linguagem. Dito de outra forma, o significante inscreve algo que é
uma ausência.

Por outro lado, neste brincar, há a saída da criança de uma


posição passiva, de ser abandonada pela mãe, para a inversa, ativa, de que ela
abandona sua mãe simbolicamente. Era a mãe que a repelia, ausentando-se; agora, é
ela que repele a mãe ao arremessar o carretel. Daí a jubilação intensa da criança ao
descobrir seu controle da ausência do objeto perdido.

É nas palavras de Marie Christine Lasnik-Penot, apontando para


o fato que a bobina representa algo do sujeito que se destaca do todo, estando ainda
retido pelo fio, retratando algo de uma “experiência de auto-mutilação “, já que se
traduz numa perda simbólica de uma parte de seu próprio corpo, que encontro eco às
experiências do “colar” e “descolar-se” incessante, empreendidos ativamente, por essa
criança ao grande tronco de um jambeiro.

Retorno a seguinte questão: o que cai, quando um corpo cai


? Entre o Sujeito e o Outro, o ‘objeto a” deverá cair, enquanto resto, instaurando a
dimensão da falta. Surge no cenário: o Sujeito dividido e o Outro barrado. Assim, a
criança poderá cair deste lugar de objeto imaginário que preencheria a falta do Outro e
que a sidera. O advento do Sujeito atualiza-se numa operação de linguagem, na qual a
criança se esforça por designar simbolicamente sua renúncia ao objeto perdido.

Para concluir, o brincar desta criança se constitui num


verdadeiro ritual festivo, onde comemora a posse de significantes. Entretanto, ao longo
do tratamento, somos testemunhas das constantes montagens, desmontagens e
remontagens do frágil tecido significante.

PORTANTO, DEVE HAVER ALGO DE ( in)SUSTENTÁVEL


PARA A LEVEZA DO SUJEITO.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LACAN, J. - O Seminário, Livro 3, As Psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,


l988, p. 258.
2. FREUD, S. - Obras Completas ( A Interpretação de Sonhos ), Rio de Janeiro,
Imago Editora Ltda, l972, Vol V, p. 419.
Idem, p. 420.
Idem, p. 421.
Idem, p.421.
LACAN, J. - O Seminário, Livro 4, A Relação de Objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Ed., l995,p. 307.
Idem, p. 322.
LACAN, J. - O Seminário, A Angústia, tradução feita pelos membros do CEF-RE,
Recife, l997, Lição IX, 23/01/63.
Idem, Lição VIII, 09/01/63.
LASNIK-PENOT, M.C. - Coleção Psicanálise da Criança, Salvador, Ágalma, 1991, n
6, p. 80.
Publicação da Escola Letra Freudiana - O Autismo, Rio de Janeiro, Revinter, l995,
Ano XIV, n 14, p. 16.
LASNIK-PENOT, M. C. - Coleção Psicanálise da Criança, Salvador, Ágalma, 1991, n
6, p. 81.
Idem, p. 81.
LACAN, J. - O Seminário, A Angústia, Tradução feita pelos membros do CEF-RE,
Recife, lição IX, 23/01/63.
Publicação da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Psicose, Porto Alegre,
Boletim, l993, Ano IV, n 9, p. 63.
Idem, p. 66.
Idem, p. 66.

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